Autora: Jaque Pallisser
Beta-reader: May


(...)
De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se de amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.

Vinícius de Moraes, Soneto de Separação


O sol entrava timidamente pelas frestas da cortina. Lá estava ele, dormindo esparramado na cama, o peito subindo e descendo em uma respiração calma. O relógio na parede logo atrás indicava 6:12 AM. Tudo que se ouvia no quarto era o tique-taque alto.
queria chorar. Sentia que devia chorar. Mas nenhuma lágrima escorria; seus olhos nem sequer estavam marejados. Perguntava-se se estava fazendo o certo, se era aquilo mesmo o que queria. Separar-se nunca fora cogitado no início. Tudo era perfeito no início, na verdade. Agora a separação parecia-lhe a única solução. Não sabia se ainda o amava; tinha medo que ele perguntasse. Tinha medo de ouvir a resposta dele também. E será que esse medo dizia algo? Que deveria rasgar os papéis em suas mãos, talvez? Não, não. Estava decidida. Já pensara demais e também já agira. Os papéis estavam ali afinal, só faltavam as assinaturas.
respirou alto, porém não acordou. A esposa o olhou pelo barulho. Ele se remexeu na cama, virou-se de lado. O lençol cobria metade do peito nu. , que antes estava sentada longe em uma cadeira de frente para a cama, resolveu se aproximar. Tirou o sapato de salto que calçava, deixou os papéis que segurava de lado e caminhou silenciosamente até que ficasse de frente para o marido adormecido. Sentou-se sobre o tapete ao lado da cama e ajeitou-se ali. Ela levantou o rosto e encarou o de a um palmo do seu. Podia ver cada detalhe; do contorno de sua boca até as pequenas e recentes linhas de ruga ao lado dos olhos.
Seu rosto estava bondoso durante o sono pesado. Ela podia jurar ter visto um leve sorriso. Ou dois. Teve vontade de tocá-lo, de saber o que se passava no sonho que estava tendo. Perguntou-se se estava nele. Se, pelo menos em sonho, fosse ela quem o estivesse fazendo sorrir. Desejou aquilo. Desejou afetá-lo como o afetava há seis anos.
Sem que notasse já estava de olhos fechados. Queria que aqueles últimos seis anos do casamento não tivessem se passado, queria ainda querê-lo como o queria. Se arrepiar com seu toque ou estremecer com sua voz. Queria aquele amor que doía, que a fazia querer chorar e rir ao mesmo tempo. Queria o antigo , com tudo que ele lhe causava, só para ela. Porque aquele à sua frente não era o mesmo de seis anos atrás, e também não era dela.
Novamente desejou chorar, pra que tudo aquilo que se acumulara em seu peito durante anos, saísse. Que apenas saísse. Àquela altura não se importava se sairia em forma de dor. Tinha que sair. Ela precisava que todo aquele peso sumisse.
A respiração de tocou sua face. Ela abriu os olhos de repente. Assustou-se com o pensamento de que talvez ele tivesse acordado e a tivesse visto daquela maneira. Mas ele ainda dormia. Levantou-se cuidadosamente para não esbarrar em nada.

foi novamente até os papéis que segurava antes; pegou-os, observou-os por um longo tempo. Releu algumas partes. Releu tudo. Suspirou. Não conseguia ter certeza. Sabia que se quisesse voltar atrás a hora era aquela; ainda não sabia de nada, fizera tudo em segredo. Se desistisse ali, ele nunca desconfiaria. Mas o que aconteceria se ela desistisse? Ainda teria que arranjar desculpas para não estar em casa, enquanto ele voltava cada vez mais bêbado e tarde? Continuariam com as brigas cheias de ofensa? E, mesmo com tudo isso, ainda fingiriam um casamento normal na frente dos outros? Ela não queria isso.
Evitou pensar mais. Foi até a parte vazia da cama, o seu lado, e deixou os documentos. O relógio já marcava 6:32 AM, em poucos minutos o despertador tocaria. colocou novamente os sapatos e deixou o quarto.
Começou a preparar o café-da-manhã para ela e – eram apenas os dois no apartamento, não tinham filhos. Fazia tudo automaticamente: pôs água na cafeteira, o pó de café e o açúcar. On. Plugou a torradeira na tomada, colocou dois pães de forma nela. Pegou a tolha de mesa na última gaveta e estendeu-a. Tirou da geladeira manteiga e geleia. Pôs o leite para esquentar depois disso e as torradas já estavam prontas. Continuou a preparar o café, da mesma forma que fazia todas as manhãs, e só voltou a si quando o despertador tocou ao longe.
Em segundos ele veria a papelada. não voltaria mais atrás. Seu coração passou a pulsar rápido, o nervosismo a pegando maior do que antes. Qual seria a reação dele? Ela não aguentava mais esperar. Derrubou a xícara que se esquecera de segurar e os cacos foram parar por toda a cozinha. Ignorou-os sentando-se em uma das cadeiras à sua frente, o olhar perdido. Ele vai gritar, pensou. contradizia-se em sentimentos: a imagem de bravo e decepcionado a apavorava, a fazia se perguntar se não deveria ter esperado mais. Mas também queria que tudo acabasse de forma rápida.
O chuveiro da suíte foi ligado. Ela suspirou. É claro, o marido sempre tomava banho antes de ir para o café. Mas isso soou-lhe extremamente pacífico da parte de ; ou ele ainda não vira os documentos, ou o banho era realmente prioridade. riu, sem vontade. A segunda opção era tão provável que se tornava quase cômica. Voltou seu olhar para os cacos da xícara no chão e levantou-se, a fim de limpá-los. Sem ânimo algum, juntou todos os pedaços e os jogou no lixo. Sentou-se outra vez, olhando sem a mínima fome para o café-da-manhã pronto sobre a mesa. Os minutos arrastavam-se torturantes. O que pareceu um século se passou e o barulho do chuveiro cessou.
Deveria ficar sentada ou levantar-se? Na dúvida, levantou-se. Mais dois ou três minutos e finalmente ela escutou, cada vez mais alto, passos até a cozinha, até finalmente vê-lo.
já vestia a camisa e a calça de alfaiataria do trabalho, e o cabelo molhado ainda estava bagunçado. Observou-o caminhar, sentar-se, colocar os papéis em uma parte vazia da mesa e depois olhar para ela.
- Esperava que ao menos falasse comigo antes de procurar um advogado. – Ele não parecia surpreso, nem mesmo bravo. Deu um fraco sorriso que não tocou seus olhos e continuou: – Ou que no mínimo me mostrasse os papéis pessoalmente.
não disse nada. Sustentou o olhar de até que ele voltasse sua atenção para o leite quente sobre a mesa e o colocasse calmamente em uma xícara. Sentiu raiva dele. Por que não estava gritando?
- Então você sabia? – Disse finalmente, observando-o passar manteiga na torrada.
- Não devia ter contratado o mesmo advogado que sua irmã usou na separação dela. Ele ligou aqui na semana passada e se enroscou em uma desculpa. Ele só cuida de casos de separação, eu logo concluí que era isso que você vinha fazendo em segredo o mês todo. Francamente, , deveria ter disfarçado melhor.
- Cale a boca – sibilou ela. – Não poderia se mostrar um pouco, pelo menos um pouco, chateado com tudo isso? É sua chance de me mostrar que esse casamento significa algo pra você. Ou que já significou.
hesitou. Quebrou o olhar que mantinha com a esposa, e apenas disse:
- Você sabe que significa.
encarou o chão por dois segundos. As palavras dele haviam soado tão frias.
- Não, eu não sei. – Ela tinha os braços cruzados à frente do peito. Voltou a olhá-lo. – Mas eu realmente queria saber.
Ele não respondeu. O silêncio na cozinha era total.
- Por que não me convence, então, de que agi errado procurando um advogado sem você saber? – Pediu. Ele a olhava, o rosto sem expressão alguma. A mulher esperou por quase um minuto, mas não obteve resposta. – Por favor, .
O marido soltou um riso silencioso e fraco enquanto abaixava a cabeça.
- O que foi? – questionou-o. Não via nenhuma graça na situação, ele estava sendo completamente infantil.
- Você nunca me chama de . – E voltou a fitá-la. – Faz parte de tudo isso aqui? Quero dizer, o se afastar de mim e tudo o mais.
Era verdade, sempre chamava-o de . Mas chamá-lo assim naquela situação não era fácil, ele já fora seu um dia.
- De que importa se te chamo de ou ? – Perguntou impaciente, aumentando o volume de sua voz. – Parece que você não entendeu ainda, só tem que decidir se vai assinar ou não.
soltou outro pequeno riso com aceno de cabeça, um riso que dizia claramente que achava tudo aquilo ridículo.
bufou.
- Por que não pára com isso? – Falou ela, a raiva transparecendo. – Parece que está a todo momento tentando me deixar com raiva de você.
Ela encarou o chão e recebeu o silêncio em resposta outra vez. Prendeu-se em pensamentos por alguns segundos; riu outra vez sem vontade e voltou-se para ele.
- Sabia que tudo que tenho sentido por você há muito tempo é isso, raiva? Até da forma que fala comigo, ou quando não fala e age como se eu fosse apenas a mulher que dorme ao seu lado. Sinto raiva também quando fala mal da minha família. E, ah, como sinto raiva de quando você bebe!
estava lívido de expressões novamente. Ele parecia não participar daquela cena, olhava para a esposa e ao mesmo tempo pensava, como se o tempo para ele passasse em câmera lenta e tivesse que analisar o que falava, decidir o que sentir. Era uma daquelas situações em que você sua frio e entende que todos estão rindo de você, só não sabe o que fazer. A diferença era que não tinha as risadas, mas só a esposa ali. Não, aquilo não parecia estar acontecendo com ele. Devia ter imaginado que as coisas chegariam aquele ponto.
Ele continuou em silêncio. queria que ele falasse. Ela era uma mulher bonita. Não aparentava seus trinta e poucos anos, mesmo que os últimos seis do casamento a tivessem desgastado. Tinha a pele clara, cabelos castanhos curtos e lisos. Seus olhos eram de um castanho-claro intenso. Ela definitivamente aparentava ser uma mulher forte. Só parecia esgotada.
- Por que não assina logo? Nosso casamento já acabou há muito tempo mesmo. – Indagou, cansada de esperar que ele falasse.
pareceu finalmente cair em si, e voltou a enxergá-la à sua frente. Ia dizer algo, mas sua expressão de leve horror veio com novas palavras:
- Sua mão está sangrando.
- O quê? – Perguntou sem compreender.
- Sua mão. – Ele falou se levantando; foi até ela, que o olhou surpresa. O rapaz ficou frente a frente com a esposa e pegou uma de suas mãos, onde o sangue escorria da palma.
Ele puxou um papel-toalha e o molhou na torneira ao lado, limpando o sangue em seguida e revelando um mínimo corte. não se interessou pelo machucado, nem sequer pensou na xícara que quebrara minutos atrás; ainda olhava para sem entender o que acontecia, um misto de emoções, sensações e pensamentos invadindo-a enquanto a mão quente dele tocava a sua. Não se lembrava da última vez que ele parecera preocupado com ela.
- Você quer mesmo que eu assine? – Questionou o rapaz ainda pressionando levemente o papel-toalha sobre o corte.
teve de fazer algum esforço para entender a pergunta, tamanha confusão em sua cabeça. Por que ele fazia aquilo? Se achava que aquela simples ação a faria voltar atrás estava enganado. Completamente enganado, afirmou para si em pensamento. Mas não pôde negar que não parecera haver nenhuma outra intenção em sua voz.
- Quero.
Sentiu os olhos dele sobre ela, mas não olhou para eles.
- Eu não sei se consigo fazer isso. – quase sussurrou, colocando o papel sujo de sangue sobre a pia ao lado deles e com a outra mão acariciou o rosto da mulher. Ela estremeceu novamente e se afastou.
- Ah, por favor, você teve muito tempo pra tentar reverter as coisas. Agora é um pouco tarde.
O rapaz suspirou. Ela tinha razão. Viu a mulher puxar a cadeira e se sentar, de costas para ele.
- Não era pra tudo isso estar acontecendo, . – Não se virou para falar, e também mal reparou que acabara de chamá-lo pelo apelido. – Nós éramos perfeitos um para o outro. Não acha?
acenou um sim com a cabeça, esquecendo-se que ela não estava vendo, e continuou a falar, como se apenas estivesse refletindo sozinha.
- Bom, eu era uma garota bem bonita... E você estava lindo naquele smoking na festa que nos conhecemos. Eu não pude acreditar na minha sorte... Imagine, , um cara tão bonito e gentil não se encontra todos os dias. – Lembrava-se ela. O vestido amarelo rodado que usava, com uma fitinha preta na cintura, vieram à sua mente, junto com um treze anos mais novo e de olhos notavelmente mais doces vindo à sua direção, com uma taça de champagne em cada mão. - Três meses depois e nós já estávamos namorando. Eu estava totalmente cega de paixão. Meu pai não gostava de você, minha família toda não te achava bom pra mim. Mas, mamãe, por favor, você não conhece o ! Ele é tão responsável e esforçado... E, ah, os outros namoros não duravam cinco meses. Com você já estava durando três anos! Você era o cara, tinha que ser o cara. Eu não tinha nenhuma outra certeza senão de que te amava e seus olhos brilhavam tanto quando me dizia que eu não amava sozinha. E aí você fez o pedido... – Recordou ela, um sorriso solitário brincando no canto de sua boca. - Foi um dos dias mais felizes da minha vida. Olhe só, ele me pediu em casamento e meu pai nos abençoou...
- Para, ! – exclamou, já não aguentando os comentários. finalmente virou-se para ele com o semblante franzido. – As coisas mudaram, nós dois sabemos disso, pare de agir como se eu fosse o único culpado de tudo.
- Você mudou. – acusou com desgosto.
- É, eu não sou mais o cara inocente de treze anos atrás. Eu sei que é o que quer, mas você não vai mais achá-lo aqui. – As palavras dele a desarmaram. – Aquele cara tinha esperanças e acreditava em muita coisa que eu não acredito mais. E tinha orgulho, eu não tenho mais muito disso.
- O que está querendo dizer?
- Eu quero dizer que aquele que você gostava não tinha dinheiro, mas tinha princípios e orgulho, . Ele não trabalhava na empresa do sogro e o carro popular que tinha pagara com o próprio dinheiro. – O rapaz disse, dando um pequeno suspiro e desviando o olhar do de - que o escutava atenta e surpresa - para pensar, depois voltou a fitá-la.
- Você está dizendo que o nosso casamento acabou porque meu pai resolveu nos ajudar? Se ele não tivesse te dado aquele emprego, você ainda estaria trabalhando no restaurante da sua tia!
- Eu preferia ainda estar lá! Mas não, eu aceitei trabalhar com o seu pai porque sabia que era importante pra você que ele nos apoiasse. E o genro dele não podia ser só o faz-tudo de um restaurante.
não falou nada depois disso. Não sabia que se sentia assim até ali. E, afinal, por que ele nunca lhe dissera?
- Olha, eu não estou colocando a culpa toda no seu pai. Ele só percebeu antes que eu nunca poderia te dar nada do que você queria. Ele te conhecia há mais tempo do que eu, eu deveria...
- Não seja ridículo! – A mulher o interrompeu por um segundo.
- Eu não teria dinheiro pra comprar essa casa – ele olhou ao redor, a cozinha grande de azulejos brancos não tinha nada que fosse realmente barato. – Com meu salário do restaurante, eu não poderia nem mesmo pagar o seguro dos dois carros que estão na garagem. Você já estava acostumada com tudo isso, . Não era como se eu pudesse te pedir pra se desacostumar.
- Eu poderia, ! – Exclamou ela, e o rapaz continuou sem considerar a opção assim mesmo.
- Até a única coisa que eu tinha certeza que poderia te dar, eu não pude, . Era o nosso sonho ter filhos, e nem mesmo isso...
- – ela o chamou, incrédula –, isso não está sob o seu controle! Ninguém é estéril porque quer. Eu sei o quanto você também queria.
O rapaz abaixou a cabeça e soltou o ar devagar. Nunca quisera ter aquela conversa, era como ter uma de suas lamentações solitárias expostas. Ele não era o cara certo para , por mais que quisesse. Admitir para si mesmo já fora difícil, admitir para ela, depois de treze anos juntos - nove anos casados - era pior ainda. Eles já haviam passado por tanta coisa juntos. não era um cara fraco, não era covarde. Apenas fora assim que aprendera a se sentir naqueles últimos nove anos.
- Eu não me casei com você só para ter filhos, . – Ele sentiu a mão gélida da esposa tocar seu rosto, o levantando para encarar os olhos castanho-claros dela. – Eu me casei com você porque te amava. É verdade sim que meu pai te ofereceu o emprego porque não queria um genro pobre – ela torceu a boca em desaprovação ao pai –, mas ele também só fez isso porque eu disse a ele que fugiria com você se ele não aceitasse o nosso casamento. E eu não estava blefando.
- Você o quê?! – Perguntou sem acreditar, aquilo também era novidade para ele.
- Meu pai achou que você seria como os outros, nunca cogitou que eu realmente te amasse... Por isso ele disse que eu não iria me casar com você quando contei sobre o pedido. E então eu falei que fugiria se fosse preciso, e é claro que ele não acreditou até que me visse fazendo as malas.
Como poderia esquecer-se daquela noite? Fora a primeira vez que enfrentara o pai. Lembrava-se de sua mãe desesperada, dos insultos a que o pai fizera, da imensa raiva que sentira por este querer controlar sua vida. E, melhor ainda, lembrava-se da sensação de liberdade que a invadira quando subira as escadas correndo e começara a juntar suas coisas para a fuga.
- Por que nunca me contou? – Murmurou .
- Por quê? Você o odiaria ainda mais. Poderia não aceitá-lo no casamento. Tantas coisas que...
- Devia ter contado. – Ele falou, firme. – Você não só omitiu, me disse que ele ficara feliz com nosso casamento. Feliz, ! E eu ainda o agradeci! Você tem alguma noção de como me sinto humilhado? Do quanto já me humilhei perante seu pai?
Ela não soube o que fazer. parecia tão magoado à sua frente. Sentiu-se ridícula. Realmente não tivera o direito de mentir para ele. Mas parecia-lhe tão certo, antes, esconder isso! Ela havia, de fato, evitado muitas coisas. Ele não poderia apenas levar isso em consideração?
- , eu... – Mas as palavras faltaram. Olhou para a cozinha ao seu redor e novamente para . – Me desculpe.
O rapaz não disse nada.
Então ela fugiria comigo, foi o que veio à sua cabeça. Então tudo poderia ter sido diferente.
Sempre pensara em como ele próprio já abrira a mão por muitas coisas para estar com ela. Em como já se esforçara, em vão, para não ser sempre o cara pobre casando com a garota rica. Para ele, mesmo isso sendo uma das coisas que mais lhe doíam, só abdicara de ser mãe. Mas ela já estivera disposta a fugir com ele. Isso mudava em muito as coisas.
- , já se passaram nove anos. – Ela tentou atrair a atenção dele para si, o olhar perdido do rapaz já se mantinha por tanto tempo que a mulher estava temerosa sobre sua próxima ação.
- É, eu sei... – Ele murmurou, sem sair de seu transe. Então ela fugiria comigo..., aquilo não saía de sua cabeça.
- Eu entendo se estiver bravo comigo – tentou outra vez, mas foram suas outras palavras que o fizeram olhá-la: – Mas eu gostaria de te lembrar que também tenho motivos para estar brava com você.
- Eu não estou bravo com você. – Ele falou em resposta, só então se lembrando por que estavam tendo aquela conversa e percebendo que já ter estado ou não disposta a fugir com ele não faria a mínima diferença ali. – ...
- O quê?
- Nós não podemos terminar assim. - esperou por mais, olhando para um inseguro. – Quero dizer, acho que muitas coisas precisam ser esclarecidas aqui. E eu não posso acreditar que você esteja pronta pra isso, porque... porque eu não estou. Então se você me desse uma chance nós poderíamos fazer tudo diferente.
- Eu nem mesmo sei se ainda poderia confiar em você. – Ela falou e mirou a mesa de madeira à frente, sem realmente vê-la.
- Uma chance. – Ele repetiu. o encarou dessa vez. Não queria dizer não, mas aquele peso todo ainda estava sobre ela, também não queria se machucar mais. – Sei que já errei muito. Mas, por tudo que nós já passamos juntos... Por favor.
viu um brilho nos olhos dele. Um brilho bom que não via há muito tempo.
- As coisas não deram muito certo pra gente no começo, mas estávamos juntos e poderia ter sido pior – concluiu ele, sentindo-se mais confiante para falar quando viu o assentimento da esposa. – E nesses últimos anos elas continuaram a dar errado... Eu briguei com meu pai e com a sua mãe, e ainda quase saí da empresa. Tudo isso junto me deixou com raiva, e eu fui um idiota e descontei em você.
A mulher já pensara tanto nos primeiros anos. É, as coisas não haviam dado muito certo para eles. Já tinham um ano de casados quando decidiram ter um filho, o primeiro. As tentativas foram muitas até descobrirem a infertilidade de . Aquilo fora como levar cem facadas, e a pior parte era vê-lo infeliz consigo mesmo.
Teve de convencê-lo que a inseminação artificial era a solução, e foram mais seis meses até encontrarem o doador de sêmen perfeito e tudo estar certo. Mas o médico deixou claro que a possibilidade de gravidez era de 70%, e que na maioria dos casos a primeira tentativa acabava sendo frustrada. Eles tentaram mesmo assim, e por três dias, depois de injetados os espermatozoides, tudo pareceu ocorrer bem. Nas outras cinco tentativas esse prazo foi maior, e o sofrimento ao ver que não havia dado certo, também. achara que tudo aquilo era agressivo demais para a esposa, e preferira que ela não tentasse mais. se manteve por muito tempo a sensação de que a sétima ou a oitava tentativa poderia ter dado certo.
- Você é minha família, . – Sussurrou ele. – E veja tudo isso como uma fase. Outra que nós iremos superar.
- Uma fase de seis anos? – Perguntou com veemência.
arqueou as sobrancelhas; não esperava que ela tivesse algo assim calculado.
Para , referir-se àqueles últimos seis anos como os “anos ruins” já era comum. Ter filhos era seu sonho desde menina, o maior deles, mas não considerava os três primeiros anos do casamento, onde esse sonho fora esmagado, os piores. Como dissera, eles estavam juntos.
- , eu acho impossível que as coisas voltem a ser como eram no começo. – Falou ela, recordando o que pensara há algum tempo quando o estava observando adormecido na cama.
- A que você se refere? – Perguntou, sem entender.
- Você sabe – ela gesticulou com as mãos como se procurasse as palavras. – Aquele sentimento maluco. – Preferiu não entrar em detalhes sobre qual sentimento. – Acho que se esgotou.
O rapaz desviou o olhar para os pés. Não era o melhor dos sentimentos aquele ali que sentira ao ouvir tal confissão. E ela não precisara entrar em detalhes pra que ele soubesse a que se referia. Mas também não era daquele jeito, pensou. Os sentimentos não haviam se esgotado para ele. Não estaria tentando fazer dar certo se sentisse que era hora de terminarem tudo.
- – disse entre um suspiro e deu um passo à frente, para mais perto dela, que não se esquivou -, aquilo era paixão. Dizem que ela não dura muito mesmo.
A mulher piscou, sem desgrudar os olhos dos dele. Não queria admitir, mas era daquele jeito que se sentia segura; perto dele. Mas apenas isso não é suficiente, concluiu rapidamente.
- Só que eu sei que o eu sinto por você agora nunca vai mudar. – Ele passou novamente uma das mãos pelo rosto da esposa, acariciando com o polegar da têmpora ao queixo, parando com esta no último. – Lembra quando eu te disse que queria passar o resto da minha vida com você? – Ela fez que sim com a cabeça. – Aquilo foi real, . Aquele momento foi real, minha vontade era aquela. Eu tinha certeza. Eu não tive muitas certezas na minha vida e, se quer saber, eu estou bem confuso agora. Mas eu ainda acredito naquela certeza. Ainda quero passar o resto da minha vida ao seu lado. Podemos passar por mais seis anos difíceis, eu não quero desistir de nós dois.
Quase se esquecera da influência que as palavras de tinham sobre ela, costumava sempre tomá-las como certas. Esforçou-se para agir racionalmente de novo, procurou algum erro nelas. Tirou a mão do marido de seu rosto quando conseguiu.
- Eu não quero viver pelo que nós já fomos, . Eu não duvido da verdade daquele momento, mas ele já passou. A situação é outra, não dá pra...
- , eu sei que você está disposta a se separar de mim há algum tempo – interrompeu ele -, mas não é por isso que você não pode mais mudar de ideia. Você já está procurando desculpas pra mostrar que eu estou errado.
- Você não pode dizer o que eu estou ou não fazendo. E sim, você está errado.
pensou em mil coisas para dizer em resposta, mas sabia que seria inútil e só sentiria mais raiva dele.
- Se você tem tanta certeza... – Disse ele baixinho, à contragosto, mas a mulher o escutou mesmo assim.
- Olha – começou , e apontou o dedo para o marido, quase encostando no mesmo. Não sabia por que, mas a desistência dele também a irritava –, você não tem a mínima ideia do que passei durante esses últimos anos. E tudo por sua causa. Então não tente dar uma de mocinho da história porque é tarde demais pra você querer mudar alguma coisa aqui. E não me venha com essas conquistas baratas, você não tem mais esse direito.
O rapaz sustentou o olhar decidido da esposa. Ela parecia estar sofrendo e isso fazia-o sentir-se mal, por saber que era ele o motivo. A coisa certa era fazer a vontade dela, ele não podia querer consertar tudo na última hora.
- Você está certa. – Concordou, vendo a esposa abaixar o indicador. – Estou sendo egoísta. Sinto muito por tudo que eu te fiz passar, você não mereceu. Eu... – Ele engoliu a saliva com amargura, criando coragem. – Eu vou pegar as minhas coisas até amanhã.
escutou aquilo com o coração apertado. Por que ele estava desistindo tão facilmente? Que imbecil.
fez que fosse se retirar quando percebeu que não teria resposta.
- Espera.
- O quê? – Ele se virou.
- É... – Não tinha o que falar.
- . – Chamou ele, a expressão de dúvida no rosto. – Hm... Não, esquece.
- Tudo bem, pode falar. – Ela agradeceu internamente por ele ter algo a dizer e ela não precisar parecer idiota por muito tempo.
- Não, era bobagem. Mas você ia dizer algo.
- Ah, não. Bobagem também. – O viu balançar a cabeça em compreensão e se virar novamente. O rapaz deu dois passos e depois mirou a mesa, onde o documento da separação se encontrava.
- Acho que devo assinar isso aqui, não é?
viu ele pegar os papéis. Aquilo tudo estava sendo bem doloroso, pior do que imaginara.
- É. – Ela acenou um sim com a cabeça. Finalmente entraram em um acordo. Mas... Por que de repente sentia esse medo?
- Tem uma caneta aí?
- Hm, é, na minha bolsa. – olhou ao redor e avistou a bolsa pendurada em uma das cadeiras. Foi até lá e pegou a caneta, percebendo um leve tremor em suas mãos.
a observou vir até ele.
- Obrigado – falou. Ele puxou os papéis e encontrou no fim da folha o local onde deveria assinar. Ouviu a respiração de logo ao seu lado e preferiu não olhar para ela até terminar a assinatura. – Pronto, é a sua vez.
Ela estendeu a mão para que lhe passasse a caneta, mas ele não fez isso.
- Está tudo bem? – Perguntou o rapaz.
Ela percebeu o que havia de errado e colocou a mão atrás das costas.
- Acho que não vou poder assinar agora. Sabe, por causa do corte. – Forçou uma risada o olhando de frente.
não disse nada em resposta, continuou a fitá-la; vira a mão dela a tremer.
não sabia o que dizer. Que bizarro, o convencera a assinar e não o faria porque estava tremendo.
O rapaz continuou quieto, apenas olhando-a. Ela abaixou a cabeça, olhou para os lados... Parecia sem graça. Ele esperou mais um pouco mas as coisas continuaram iguais.
- Está tudo bem, ? – Repetiu a pergunta. A mulher olhou-o. Estavam bem próximos.
- , eu poderia... – Mas sua voz sumiu no fim da frase.
- Poderia...? – Ele a viu morder o lábio inferior e logo depois dar mais um pequeno passo em sua direção. E então o abraçou.
A surpresa dele fora tão grande que por um momento não retribuíra o abraço, mas o fez logo que assimilou as coisas. A cabeça de estava em seu peito, ela fechou os olhos com força e enterrou o rosto ainda mais ali. acariciava com ternura o cabelo da esposa enquanto esta sentia o perfume dele, que ela mesmo escolhera. O abraço começara de forma delicada da parte de , e de repente parecia forte.
- Aquela hora – começou ele – eu ia te perguntar uma coisa. Mas agora só vou te dar a minha resposta.
a sentiu amolecer um pouco no abraço.
- Eu te amo – cochichou. ainda não falou nada, continuou como estava.
A única reação que o rapaz receberia veio um pouco depois.
ouviu um soluço abafado. E mais uma vez. Ficou preocupado, deixou o abraço mais solto, mas ela ainda o segurava com força. Ele sentiu a camisa onde o rosto de estava ficar quente, provavelmente molhada. Ela soluçou de novo e de novo e não o largou. A mulher puxava o ar e logo depois soluçava, num choro nem um pouco calmo. Tentava parar, mas parecia impossível. Estava chorando tudo o que não chorara em anos.
- Eu... Eu... – Mas o “Shh...” de , com as batidinhas nas costas, diziam para ela não se preocupar.
- Está tudo bem. Eu vou ficar o tempo que você precisar.
O rapaz olhou para o horário no microondas; 7:45.
- Nós já estamos atrasados para o trabalho mesmo. – Brincou ele, com uma risadinha. Não sabia o que significava a tremedeira de , e muito menos o choro, mas preferia tê-la com ele naquele abraço do que pensar no assunto.
E chorou. Chorou por vários minutos, no mesmo choro desesperado. O marido ficou o tempo todo com a mão no mesmo movimento terno em seu cabelo. Até que os soluços foram diminuindo e suas lágrimas cessando. Ela ficou mais algum tempo ali, respirando calmamente enquanto sentia o perfume dele, pensando no que teria de falar. E no que ele dissera. Não fosse a dor nas costas que começava a surgir, poderia ficar ali. Seria melhor, pelo menos não teria de encará-lo com o rosto vermelho. E aquele abraço parecia-lhe tão certo, tão sob medida. O corpo dele sempre parecera feito para o dela, esquecera-se disso. Sentiu por mais um momento a mão dele em seu cabelo. Pensou em como aquilo era bom e isso causou-lhe uma sensação estranha. Era como cócega, uma sensação divertida, mas isso ainda não definia bem. Aquilo parecia não passar. Foi quando, de súbito, ela percebeu que conhecia bem aquela sensação.
- Já está melhor? – Perguntou , e a voz dele resultou novamente nas borboletas brincando em seu estômago. Só pode ser brincadeira, pensava.
- Estou. – Disse, dando uma última respirada chorosa, e abandonou a camisa do marido, enquanto limpava com as costas da mão direita o rosto.
Encontrou sorrindo para ela. Como ele é lindo, foi o pensamento inevitável que lhe ocorreu e ela tentou afastar.
- Então... – Ele falou baixinho e limpou a maquiagem borrada no rosto dela. Os grandes olhos castanho-claros, mirando-o, estavam mais claros ainda, e vermelhos em volta. Ela parecia tão indefesa e adorável.
- Eu realmente não gosto de algumas das suas atitudes, . – Falou ela, ainda parecendo afetada. – Num momento sou o amor da sua vida, no outro não sou mais. Você não pode me tratar assim, não é justo.
O nó na garganta dele pulsou, sentindo o peso daquelas palavras. Queria encarar o chão. Não é à toa que dizem que a verdade dói.
- Você tem que me mostrar mais o que diz sentir – seus olhos marejaram-se novamente. – Essas foram todas palavras muito bonitas, e você já me disse dezenas de milhares delas. Mas elas destroem mais quando não as respeita do que você construiu quando as disse. Quando não me respeita. – Ela limpou a lágrima amarga que desceu. – Você não é o único culpado aqui, ninguém briga sozinho, isso tudo foi entre nós dois.
não sabia o que dizer, nem mesmo queria dizer alguma coisa.
- Mas eu te perdoo. – Sussurrou ela, por fim.
A ficha do rapaz demorou a cair e um sorriso sincero apareceu quando isso aconteceu.
- Talvez eu não te queira longe. – Ela disse depois, percebendo que, assim como ele provavelmente também, já estava cansada. De tentar ser forte e de ter que aguentar. Queria ceder um pouco, respirar mais aliviada depois de todo aquele choro.
Pareceu que escutava seus pensamentos, porque sentiu a boca dele sobre a sua segundos depois, trazendo-lhe mais sensações que de tão velhas pareciam novas. Aquele não era mesmo o primeiro beijo dos dois, mas fora totalmente novo apenas pela situação.
Tê-lo ali com ela, tão dela de novo, a boca quente e macia tocando a sua e aquelas borboletas no estômago que voltavam a surgir... Tudo isso tornava a ideia de ter uma cama de casal para dormir sozinha, loucura. Ela não queria perdê-lo. Estava acostumada com sua presença e até com a rotina de pensar no que ele acharia de qualquer coisa que decidia fazer. Não queria ter um vazio onde antes estava . Eram treze anos juntos; de quantos anos precisaria para esquecê-lo e quantos mais para que alguém se tornasse para ela o que ele já era?
- Me diz que você não vai assinar. – Sussurrou ele, as bocas estavam próximas e os olhos ainda fechados.
- Eu não vou. – O garantiu, abrindo os olhos. – Mas se você disser aquelas três palavras de novo, vai poder ter mais certeza.
Ele teve de olhá-la, estava com a expressão divertida.
- Quais palavras mesmo?
levantou a sobrancelha, vendo-a suspirar num falso desapontamento.
- Você sabe, “eu te amo”. – Disse, percebendo só depois a jogada dele.
- Ah, eu sei, querida. – Os dois riram enquanto levava tapas no ombro. – Ei, ei, eu também te amo.
ignorou mais uma vez as borboletas que insistiam em não deixá-la e voltou a beijá-lo, sentindo-o sorrir no beijo. Tudo o que conseguia pensar era em como estava feliz, em como sentira falta da boca dele e em como acertara na escolha daquele perfume.


N/A>: Well, well, well... Espero que tenha sido uma leitura agradável! Fazia tempo que eu não escrevia uma fic em terceira pessoa, mas apesar de todos os pesares, eu gosto dela. E eu simplesmente adoro Vinicius de Moraes e aquele soneto ali de cima. Haha Eu queria agradecer a Lena pela capa, e todas aquelas pessoas que sempre opinam sobre uma fic quando eu peço! :D Muuito obrigada, vocês são pessoas lindas e abençoadas! :)
E um masterobrigada a você, que deu atenção à fic e a leu! Agora, bom, não custa nada comentar, fala aí? Mesmo que não tenha gostado tanto assim... Eu adoro comentários construtivos! A-DO-RO mesmo, rs.
Se você gostou dessa fic, fique ligado em Eu e Você, Sem Rimar, que deve estar no FFOBS em pouco tempo, na parte de Outros, e é uma long minha e da Lena (que escreve Sheefield High). E se você já leu minha outra short, Parte de Mim (McFLY - Finalizadas), e gostou, logo logo vai ter ela reescrita aqui pelo FFOBS! :D
Beijos,
Jaque.

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