Última atualização: 19/12/2017

Carta I

São Paulo, 1 de Dezembro de 2012.
Saudações .


Pardo, como o urso, meu animal favorito, e essas cartas são para mim, para lembrar de tudo, sejam as coisas boas ou as ruins. São endereçadas para uma rua qualquer de São Paulo, a penúltima casa da esquina, a branca com detalhes escuros com o carro preto na garagem. Eu não sou aquela garota que todos conhecem na escola, não sou a que é incrivelmente inteligente, nem a garota que passou pelo milagre da puberdade e virou uma beldade ambulante, mas se acham que sou o patinho feio, erraram. Eu sou normal, como poucos amigos (porém os melhores), que arrasava em história ou em biologia.
Bom, essas são minhas memórias, as mais íntimas e secretas que jamais pensei em escrever, mas eu só queria lembrar e escrever me permite viajar, mesmo que eu não possa mais fazer isso.



“Era a manhã mais tediosa que poderia existir, dia 14 de Setembro de 2012, quarta-feira, só tinha passado duas aulas e as outras quatro eram dobradinha, português e biologia. Só de lembrar posso sentir as lágrimas imaginárias escorrerem por meu rosto, não tinha ser humano que aguentasse isso. Como eu odiava essas matérias, mas não sabia o que era pior: essas matérias ou escutar a voz sonsa da minha professora de história. Afinal, pra qual adolescente escola é o paraíso? Todos fazem coisas para benefício próprio, alguns vão pra escola pra reencontrar os amigos, pra jogar na educação física, pra rever o namorado, brigar, comer os lanches da cantina, causar no intervalo. E comigo não era diferente.

- Tenta mudar essa cara, anjo, antes que mais alguém note que está quase cometendo suicídio. – Eu escutei a voz masculina falar ao meu ouvido. Olhei pra trás e o vi debruçado sobre sua carteira sorrindo divertido, ele, um dos motivos de eu ir para a escola. , ou , como eu costumava chamar desde quando tínhamos seis anos. O que dizer sobre ele? Garoto bonito que chama atenção e se estivesse em um time esportivo seria a destruição da escola, ou como minha mãe dizia: “o pesadelo dos pais”, porém ela o amava.
- Falando assim até parece que você não está pensando o mesmo.
- Só que eu odeio história e você, ama, então eu saio com razão se eu sair correndo e me jogar do segundo andar. – Eu ri achando graça na sua fala dramática e recebi em peteleco na testa.
- Vou me lembrar disso quando tivermos aula de Inglês e você dar a desculpa que tá passando mal. – Revidei.
- Eu já sei inglês, não tem motivo assistir as aulas da Sara. – Ele se acomodou melhor na cadeira, mas ainda estava debruçado para perto de mim. – E ela pronuncia de forma errada, eu deveria ser pago pela ajuda que ela pede pra mim.
- Oh, desculpe senhor bilíngue.
- Não se desculpe, minha cara. Todos temos algo que somos bons, e não posso fazer nada se tem muitas coisas que sou bom. – Revirei os olhos, negando logo em seguida. Ele era tão idiota que chegava a doer na pele.
- Que tal vocês compartilharem o que estão conversando com a sala e o que isso se aplica na segunda guerra mundial, e ?

Virei pra frente ao ouvir a professora e o profundo silêncio que a sala mergulhou. Endireitei-me na minha cadeira constrangida com a atenção de todos direcionados a mim e principalmente as risadinhas das meninas que sentavam na frente, como eu as detestava.

- Os kamikazes cometiam suicídio pelo bem da nação, né? – O tom do meu amigo era brincalhão. – Deixa que ela perceba a indireta. – Escutei a última parte mais baixa, como um segredo só pra mim.
- Percebo que não está prestando atenção em nada, , faça o bem pra sala e se retire. – Ah, aquela voz cortante e esganiçada que a professora de história pronunciava quando queria mostrar seu poder para meros mortais.
- Ah, o quê? Como assim não estou prestando atenção? Os kamikazes não são da Segunda Guerra? – protestou com falsa indignação, ele só queria causar mais e puxar mais risadas.
- Não vou repetir, , já sabe onde é a saída.
- Oh, sim, minha rainha, pois eu sou apenas um escravo nesse reino distante chamado __. Por favor, não corte minha cabeça, ainda preciso completar minha aventura para encontrar Gandalf.
- Esses alunos só falam asneiras. – Ela concluiu quando passou por ela, arrancando risos da sala quando parou na porta e gritou “You Shall Not Pass!”.

Estava comprovado, depois da maratona de “O Senhor dos Anéis”, estava completamente afetado. Eu neguei com a cabeça achando graça antes de voltar a fingir que estava prestando atenção, os desenhos em meu caderno eram provas vivas disso.

E assim passei o resto da aula, em silêncio, não tinha muitos amigos na minha sala, ou em qualquer parte da escola, talvez porque não me permitia isso, já tinha alguém com que podia contar. Eu saí da sala junto com os outros alunos, não estava mais tão frio como as rotineiras manhãs, e a maioria estavam bem mais humorados.
Virando o corredor, encostado na parede e cercado por meninos, estava meu amigo, conversando alegremente. Ele sempre teve um jeito fácil de socializar com todos, só bastava um cumprimento que tudo estava certo para horas de conversa. Eu, diferente dele, era muito tímida pra isso, as pessoas vinham falar comigo e não o contrário.
Assim que ele me viu, abriu o sorriso mais bonito que eu conhecia. Sério, ele tinha um sorriso encantador, capaz de arrasar qualquer coração, mas o meu era imune, bem... era isso que eu queria acreditar. Cheguei perto, mas nem parei, ele já foi me arrastando para longe do circulo de garotos.

- Você não vai acreditar!
- Se você não falar, realmente vai ser difícil acreditar.
- Não corta meu barato, anjo, e só deixa eu terminar. – Eu ri achando graça da sua afobação.
- Parabéns, , espero que consiga. – Escutei a voz dela, juro que quase vomitei. Sério isso? Eu tentei segurar a tensão que apossou meu corpo.
- Valeu. – acenou pra ela de forma amigável, o que me deixou mais irritada. - Então...
- Desde quando fala com a Clara nojenta? – Eu estava irritada sim e não tinha como disfarçar, não tinha como. Essa menina pegou no meu pé o meu primeiro ano inteiro e só parou porque mudou de horário, agora ela voltou no terceiro e ele conversando com ela? Com a menina que fez do meu início de ensino médio uma merda? percebeu que eu não estava de bom humor.
- Calma, foi só “Valeu”.
- Esse é seu argumento, ? – Parei de andar no meio do pátio.
- Eu prefiro quando você fala ... mas nesse momento você não está muito a fim, beleza. Como eu te contei, eu fiz teste para entrar no Corinthians Steamrollers...
- O que é isso?
- Você disse que sabia, confirmou quando perguntei ontem. – Eu não estava prestando atenção, mas sabia que ele ficaria chateado de saber disso, então só confirmei novamente. – Então, vamos dizer que a Clara gosta muito de futebol americano e o irmão dela também é do time.
- Legal, vai chamar ela pra ficar com a gente no intervalo também? Que tal levar ela no meu aniversário? E cantar parabéns pra ela?
- Ahh, , para com isso. Exagerou no drama. – Ele riu alto, passou os braços fortes pelos meus ombros e me puxou para si. – E ela nem iria no seu aniversário, como eu iria cantar parabéns pra ela?
- Espero que você morra hoje de forma bem lenta, .
- Eu particularmente não quero isso. Temos maratona de Game of Thrones. – Voltamos a andar em direção do nosso canto do intervalo.
- Eu não entendo que tive que te esperar pra assistir, sendo que podia acompanhar os lançamentos. – Resmunguei, desviando da massa de pessoas que minuto em minuto falavam com e comigo.
- Você sabe que odeio esperar uma semana pra lançamento de ep novo.
- Que fresco você é.
- Eu prefiro exigente, se não se importa.

Sentamos no nosso cantinho isolado, de baixo da árvore perto da entrada do auditório. deitou a cabeça em minhas pernas e praticamente me obrigou a afagar seu cabelo enquanto conversava. Eu não prestei muita atenção na conversa, eu estava concentrada demais em sentir os cabelos macios em minhas mãos, os fios lisos se desmanchando do penteado que sempre fazia. As pálpebras escondiam os olhos brilhosos que eu tanto amava observar, aquele castanho com um leve fundo verde, eu repetia pra mim o quanto eram lindos. Os lábios dele estavam constantemente úmidos, talvez pelo fato dele sempre umedecê-los com a língua, eles eram finos.
Lembrei de quando éramos ainda crianças, um menino magricela de gênio forte, bom, isso antes da morte do pai dele. Depois disso, viramos carne e unha. Dois corpos que não se separavam. Ele virou meu melhor amigo e eu a melhor amiga dele. Virou um hábito observar enquanto o peito dele subia e descia calmamente, dormindo com a cabeça sobre meu colo. Um hábito tão cravado dentro de mim que eu sentia falta quando isso não acontecia, quando um momento só nosso era esquecido ou não tínhamos tempo. Desde quando isso começou a acontecer? Alisei mais uma vez seus cabelos, ele se acomodou mais em mim e sorriu em resposta, um gesto inconsciente de saber quem estava ali fazendo o carinho.

O resto do dia passou sem muitos detalhes, não que eu deveria lembrar. Provavelmente só arrumei a casa, fiquei no computador escrevendo, ou vendo qualquer coisa na TV. Era isso que eu fazia quando eu saia da escola, mas naquele dia em especial... uma ligação.

- Você tem dez segundos pra aparecer na minha casa, se não chegar, terá consequências. Que os jogos comecem.

Não deu tempo de falar nada, a ligação foi encerrada e eu tive que correr pra casa do meu melhor amigo. Não que fosse uma distância exorbitante, já que ficava do outro lado da rua. Assim que cheguei a casa dele, já fui entrando. Fala sério, ele já era praticamente da família.
Dei de cara com a sala e sentado no sofá-cama com a boca cheia.

- Está atrasada dez segundos. – Miserável, ele já estava comendo, e o pior de tudo...
- Meu fini!
- Não, MEU fini, eu ia ser caridoso e ia dividir com você, se chegasse nos dez segundos que mandei. – Eu fiz bico, sério, eu amava fini e foi bem triste ver comendo, se deliciando. – Mas eu tenho um pacote extra.
- Me dá, me dá. – Me joguei no sofá cama ao lado dele, agarrando o pacote com a agilidade de um gatuno.
- Não me devore, sua maluca! – Ele foi pra trás, ajeitando-se no sofá enquanto ria. – Eu só posso ser retardado de ficar entre você e um Fini.
- Eu concordo. – Eu já comia.
- Vamos assistir GOT. Precisamos terminar a próxima temporada hoje.
- Maratona? – Eu o vi se levantar e pegar o notebook na mesinha de centro. Sentado na beira do sofá eu consegui notar melhor seus músculos das costas. estava malhando e isso estava bem evidente. – Cuidado pra não virar o Hulk, não quero te perder para Os Vingadores.
- Me perder para eles? Jamais! Você iria me trocar pelo Tony Stark. – Ele riu sem tirar a atenção do notebook.
- Ele é meu favorito, não tem argumentos contra isso.
- Eu ficaria com ciúmes se isso acontecesse. – Seus olhos castanhos com fundo esverdeados viraram para mim, brincalhões e quase escondidos completamente pelas pálpebras.
- Você supera.

Eu ri, ajeitando-me no sofá como índio. Eu continuei sorrindo, olhei pra ele agradecida pelo Fini, o canudinho estava na minha boca e meu paladar já apreciava o gosto doce. Ele continuava sorrindo e de forma mais comum possível, jogou os fios rebelde do cabelo, que caiam na testa, pra trás.
Assistimos a sexta temporada de Game of Thrones, uma das melhores temporadas da série. Quando terminamos, já estava bem tarde e como de costume, a mãe de estava fora trabalhando.

- Dorme aqui? – Ele estava todo largado no sofá, o notebook já de volta na mesinha de centro.
- Durmo.

Duas horas da manhã, a única luz que iluminava a sala era da TV, que estava ligada sem motivo aparente, já que nenhum dos dois estava assistindo.
Não era um convite anormal, pelo contrário, sempre quando a mãe de trabalhava à noite, ele pedia pra eu ficar. Quando éramos menores, ele dormia na minha casa e minha mãe cuidava de nós dois, mas agora, eu já ficava na casa dele.”



Assim, como irmãos, compartilhávamos o sofá. Ele estava de frente para mim, seus olhos fechados, respiração calma que batia no meu rosto de tão perto. Na minha cabeça as lembranças. não era mais aquele menino catarrento, chorão e chato. Lembro quando perdeu o pai, de como ele precisava de alguém para se apoiar, e esse alguém era eu. A única que ele confiava e se permitia chorar. Eu lembro, sim, foram dias difíceis. A empatia que eu sentia por ele fazia toda dor me dilacerar por dentro. O que eu não daria para impedir que mais lágrimas saíssem por aqueles olhos que eu aprendi a amar? O que eu não faria para ver sorrir como quando entrou no time de futebol americano? O que eu não daria para ter notado antes o quanto eu amava meu melhor amigo?
Ali, deitada naquele sofá-cama na sala do meu melhor amigo, entorpecida por meus sentimentos, vidrada no rosto angelical que adormecia tão perto do meu, eu me deixei levar. Eu não sei como, mas uma coragem, ou o desespero, me fez tocar os lábios do meu melhor amigo com os meus. Lembro até hoje da sensação, de como meu peito se inundou em uma explosão de sentimentos. De como seus lábios eram macios e úmidos. De como me senti culpada depois de ter dado um selinho nele dormindo e a vontade que eu tinha de acordar e falar o quanto eu o amava.
E foi assim que tudo começou, que tudo aflorou, e que tudo caminhou para o fim. As consequências de certas escolhas vêm em peso, e saber passar por isso é difícil. Por algum motivo eu virei à culpada de muitas escolhas que trouxeram consequências desastrosas para minha vida, mas isso você só saberá nas próximas cartas.

Até a próxima.
.


Carta II

São Paulo, 2 de Dezembro de 2012.


Uma vez alguém me disse que a vida é o mar, nós somos como condutores de embarcações. Nesse mar cheio de barcos, uns estão em conflito com outros, alguns parados observando a movimentação de outros barcos, outros isolados de todos, outros afundam sem mesmo perceberem isso, uns remam com força em qualquer direção, outros se deixam levar pelo vento. E a pergunta? Ah, sim, isso me fez pensar. Qual deles eu sou? Eu consigo encontrar o meu lugar? A terra onde eu devo ancorar meu barco e viver? Ou continuarei perdida nessa imensidão azul?
Você deve estar perguntando por que escrevi a carta anterior se não foi basicamente o início. Eu só quis me lembrar daquele dia, já que foi um dos melhores momentos da minha vida. Eu me diverti, estava com alguém que eu amava, comi o que gostava, assisti o minha série favorita, dormi com alguém que descobri o quanto era importante pra mim. Um momento simples que me trouxe tanta felicidade... E eu digo, faça tudo, não retire nenhum detalhe, porque essas foram as melhores memórias que alguém poderia ter. Confesso que pensei muitas vezes: “E se eu não tivesse feito aquilo?” e a resposta sempre foi um mistério, então eu escolho o que aconteceu, sem retirar nada. Eu fui sincera com meus sentimentos e fiz o que meu coração mandou e espero que você faça o mesmo, do passado.
Hoje o clima está bom. Pelo menos é o que parece pela janela do meu quarto. O sol brilha lá fora, escuto o canto de alguns pássaros, tudo muito diferente do dia que vou escrever agora, mas vamos lá, próxima carta em andamento. Fique alerta! Esta é uma carta importante e eu vou me abrir muito.



“Passaram duas semanas, tinha finalmente realizado o sonho de entrar no time de futebol americano do Corinthians, o Steamrollers, se não me engano. Mesmo o esporte não sendo tão famoso no Brasil quanto o comum, você estava radiante a semana inteira.
Esse dia em especifico eu não tinha ido à escola, e meu melhor amigo estava tão ocupado com o time que esqueceu completamente de algumas coisas que tinha marcado comigo e uma dessas coisas foi o meu exame que fiz na sexta-feira e o dia de pegar o resultado. Eu não o culpei, afinal, a rotina dele ficou meio apertada, principalmente com alguns trabalhos extras que ele precisava fazer. sempre foi péssimo em algumas matérias da escola e agora estava correndo para passar de ano. Diferente de mim que não tinha problema em faltar.
Era segunda-feira de manhã, estava nublado e a brisa era gelada, nada muito anormal no clima confuso da capital de São Paulo. Eu até gostava, sempre preferi o frio que o calor, então tudo certo pra mim.
Depois que as dores não paravam, a menstruação vir em maior quantidade e minha mãe insistir tanto para que eu fosse ao médico, fiz a ultrassonografia como solicitado. Por livre espontânea pressão eu tive que ir buscar o resultado e agora estava fazendo meu retorno com o médico pra ele transformar os termos técnicos em alguma coisa que eu entendia. Eu nem ousei abrir o exame já que sabia que tudo ali escrito não passaria de coisas confusas e algumas imagens estranhas.
Eu tentava me entreter com uma revista que estava à disposição para as pessoas ocuparem a mente, bem aquelas revistas de cinco anos atrás, mas até eu estava conseguindo me ocupar um pouco. Tinha um artigo de alimentação saudável, alguma coisa de alimentos crus, mas só li o título e passei para a folha seguinte.
Minha atenção saiu da revista quando vi uma mulher saindo pela porta. Ela se apoiava em um homem, parecia sem forças para se manter em pé. Ela chorava intensamente, uma angustia que eu senti na pele e me fez revirar na cadeira que não parecia mais tão confortável assim. O homem a abraçava e a pegou no colo antes de saírem do meu campo de visão, ele não parecia bem, parecia pronto para desabar em lágrimas e percebi seu esforço em segurar o choro. Eu não sabia o que estava acontecendo, mas me senti mal ao ver essa cena, um pouco curiosa e vontade de ajudar, mas não sei se eu seria útil.

- Que triste, não é? – Eu olhei para meu lado rapidamente. Uma garota magra e de cabelos curtos observava à porta de saída por onde o casal passara minutos antes. Ela já estava ali ao meu lado desde quando cheguei, mas era a primeira vez que eu ouvia sua voz. – É tão comum isso que chega a doer.
- Comum? – Perguntei confusa. Não queria usar a pergunta: “Do que você tá falando? Quem é você?”, seria um pouco antipático da minha parte.
- Nem sempre quem visita essa clínica recebe uma boa notícia nessas salinhas infernais. – Ela desviou o olhar da porta para mim. Seus olhos verdes, assim como os meus, estavam tristes. Eles carregavam histórias, conhecimento que eu quis por um segundo conhecer também.
- Por quê?
- Experiência própria. Eu descobri ano passado que tinha câncer de mama. – Eu não consegui evitar, arregalei os olhos surpresa, ela pareceu compreensiva com minha vergonha. Eu não sabia o que falar, então continuei com a mesma expressão até ela completar – Eu sei, chocante. Como eu disse: nem sempre é notícia boa. E você? O que veio fazer?
- Eu vim fazer um retorno – Falei – Nada demais. Só insistência da minha mãe.
- Mãe sendo mãe. A minha está ali. – Ela apontou para um canto e eu virei pra olhar. Elas eram parecidas, a mulher estava segurando um café, parecia bem cansada e um pouco apreensiva, julgo isso pelo ritmo frenético que ela batia o pé contra o chão. – É meu retorno pra ver se o câncer não voltou. Ela está bem uma pilha.
- Normal. Minha mãe também estaria. – Rimos, claro que de certa forma foi para não ter um clima tão tenso.
- Pardo. – Chamou à voz feminina, era a atendente de expressões simpáticas que fez minha ficha de entrada.
- Sou eu. – Disse por fim antes de sair.
- Boa sorte, . – A garota estranha falou baixo, como um segredo sussurrado, e eu sorri fraco para ser educada.

Eu me aproximei da atendente e sorri tentando ser simpática. Certo, eu tinha que melhorar minha interação com estranhos.

– Sala nove, segue o corredor a penúltima porta à esquerda.
- Obrigada. – E eu fiz o que ela mandou. Segui pelo corredor branco e frio pelo ar-condicionado ligado. Mais pessoas vinham no mesmo corredor, porém eu notei um casal, a mulher era jovem e tinha um sorriso radiante assim com o homem que a acompanhava, ela alisava a barriga pouco avantajada.

Nem todas as notícias são ruins constatei tomando mais coragem e erguendo a cabeça. Foquei em meu destino e cheguei à porta branca de numeração prata. Ela estava aberta como se indicasse que não havia paciente ali e estava livre para mim.

- Entre, . E feche a porta, por favor. - A voz soou gentil e convidativa, bem humorada até.
- Com licença, doutor Lúcio. – Eu entrei, sorrindo de forma gentil assim como ele sorria pra mim. Dessa vez estava mais natural, já que eu já o conhecia, ele era o médico que acompanhou a gravidez da minha mãe e sempre era convidado para meus aniversários.
- Como está? Está se sentindo bem? – Perguntou. Vi um leve resíduo de preocupação profissional, atribui essa reação pela careta de dor que fiz assim que sentei.
- Estou ótima.
- Sua mãe não está com você? Ela não está tão coruja como antes? – Ele brincou enquanto suas mãos vasculhavam a papelada que estavam de lado na mesa, porém seus olhos estavam fixos em mim, curiosos.
- Ela precisou resolver uma coisa no trabalho. Eu tive que insistir que não era nada demais para convencê-la. – Ri me lembrando da cena. O doutor riu e colocou a pasta que achou perto de mim.
- Sua mãe nunca vai mudar. Trouxe o exame?
- Ah, sim. – Eu entreguei o envelope que carregava e esperei.

O Doutor abriu e começou a leitura. Eu fiquei o observando cuidadosamente, tentei absorver alguma reação, mas ele parecia bem concentrado. Ele folheou algumas vezes até tirar os óculos e me encarar com a expressão neutra. Eu engoli em seco com o coração acelerado, eu conhecia aquela expressão, não era coisa boa, eu senti isso na pele, o incomodo se alastrando.

- , seria muito bom se sua mãe estivesse presente, eu preciso conversar com ela também. Seria bom se de alguma forma pudéssemos contatar a chamá-la aqui.
- Ela está no interior, só volta depois de amanhã. O que diz aí?
- Bom, eu posso te adiantar, mas preciso que traga ela o mais urgente possível, sim? – Eu concordei prestando atenção. O doutor abriu a pasta e ali estavam as imagens da minha ultrassonografia. – Certo, vou ser bem franco com você. Está vendo essas manchas escuras? – A caneta circulou a mancha e meu coração travou em meu peito. A respiração falhou e meus olhos se arregalaram apreensivos. Não seja isso, não seja. Implorei internamente e permiti que o médico continuasse, não iria entrar em desespero precipitado, mesmo tendo o pressentimento que nada de bom estava por vir – São quatro nódulos que precisam ser tratados o mais rápido possível. Pela quantidade, arrisco que sejam malignos, então precisamos tratar com urgência.
- O quê? – Eu estava perdida, meu coração acelerado estava pesado, eu não sei, não sabia explicar. Um peso despencou nos meus ombros, uma agonia sem tamanho que me roubava o ar e entalava os soluços na minha garganta. Senti lágrimas quentes escorrerem pelo meu rosto, senti meu corpo fraco, pesado contra a cadeira. Meu ar falhou e encarei meu médico que tinha um olhar triste. – Não... por favor, não é o que estou pensando.
- ... – Eu estava tão perdida que não percebi quando ele se levantou, somente quando estava abaixado perto de mim e tocou minha mão. – Calma, você precisa se manter calma.
- O que eu tenho? – A pergunta saiu, mas eu não sabia se queria saber ou não. Algo em mim gritava pra saber, assim eu pensaria em alguma saída, mas outro lado tinha medo de saber e não ter uma solução.
- Seu câncer está um pouco avançado. Vamos começar com quatro ciclos de quimioterapia, tudo bem? Vamos ver como seu organismo vai reagir, o que podemos fazer depois disso.
- Quimioterapia? – Eu não enxergava direito, somente o embaçado pelas lágrimas que se intensificaram, negando a realidade, fechei os olhos e implorei que meus olhos se abrissem em meu quarto, implorei por misericórdia, mas o ar frio da sala atingia minha pele trazendo mais lágrimas desesperadas. Era real, tudo parecia tão real...
- Seu cabelo vai voltar a crescer. – Meu cabelo, eu amava meus longos fios loiros, como amava, mas não faria diferença. Isso me enfureceu com tamanha força que eu o encarei irritada.
- Eu não ligo pro meu cabelo. Preciso saber – Segurando o choro com a maior determinação que eu conseguia. – qual a chance? – Eu não queria ouvir a resposta, mas achei que precisava disso, tinha esse direito. Sabe quando alguém chega e limita seu tempo de vida em dias, meses ou anos? Era assim que eu me sentia, e o pior de tudo foi vê-lo ponderando em quanto tempo eu continuaria respirando. – Qual é minha chance de sobreviver, Lúcio?
- Isso só depende de você, . É uma luta contínua até a cura total e só você é capaz de querer lutar ou desistir.

Meus pés tocavam o chão, me levavam para qualquer lugar distante da clínica, qualquer lugar longe de tudo que eu estava vivendo. Quando? Desde quando isso crescia dentro de mim? Eu não notei, eu não o sentia destruir meu organismo, me destruir, eu não o sentia me matando aos poucos.
O que vai acontecer com a minha mãe quando descobrir? Com meu pai? Senti o aperto mais forte no peito, a dor de vê-los perdidos, culpando-se por algo que não tinham culpa.
Sentei na calçada, abaixei a cabeça e chorei. Eu não queria ser o motivo dor, eu não queria olhares de pena, sorrisos encorajadores. Eu queria o meu luto, sozinha, absorver toda essa bomba despejada em meus braços. Meu caminho se tornou escuro, a esperança que seria a última pontinha de luz havia sumido.

- Nem começou a luta e já está desistindo? – Sussurrei pra mim mesma. A luta estava aqui, na minha cara, e ia lutar para viver. Eu devia fazer isso!

Olhei para o céu, o mesmo nublado com pequenas gotas de chuva que caia sobre mim. Elas se misturavam com minhas lágrimas que ainda escorriam pelo meu rosto, grudando meu cabelo em minhas bochechas molhadas. Minha mente estava voando longe, tentando desvendar o futuro ou se perder no passado. Eu queria saber o que ia acontecer, mas também queria achar que ainda não sabia da notícia.
O que eu falaria pra minha mãe quando ela chegasse de viagem? Como diria? Eu não teria essa coragem, eu não conseguiria vê-la despedaçada como a mãe daquela garota da clínica. Não aguentaria saber que era por minha culpa. Eu não iria contar, iria esconder pra mim e ver até onde eu seguraria essa mentira. Me esconderia de todos aqueles que eu amava e guardaria isso dentro de mim.
Voltei pra casa e lá fiquei até anoitecer. Não falei com o dia todo, nem tive cabeça pra isso. Não assisti, não fiz nada além de deitada na cama pensando como eu resolveria tudo sem precisar contar. Sabe, eu sempre me perguntava como falaria se engravidasse na adolescência, como daria a notícia. Meu pai ficaria louco e minha mãe mais ainda. O que eu não daria para estar grávida? Para saber que a luta seria para cuidar de uma vida e não lutar pela minha vida.
Eu virei e encarei o céu, chorei amargamente, aquele choro que quer respostas e tudo ainda continuava silencioso, minha mente se limitava em memórias alegres como uma despedida, ou estivesse tentando me mostrar que valia à pena a luta. Ah sim, valia. Pelos abraços dos meus pais, pelos sorrisos de , pelo amor, pela vida, a luta valia e eu tinha por quem lutar, não só por mim, mas por todos os que amava.
Olhei para minha parede e os olhos castanhos com fundo verde me encaravam em uma pintura que minhas mãos trabalharam tão arduamente. sorria, feliz com seu primeiro carro, um veloster. Lembrei da primeira vez que saímos juntos, ele dirigindo e a lua cheia despontando no céu. E ? Como eu contaria pra ele? Talvez não estivesse pronta.
Escutei a porta de entrada abrir e respirei fundo ao ouvir minha mãe me chamar.

- ! – Ela gritava.

Eu pulei da cama e corri para a porta, mas quando a vi no topo da escada, tudo desabou.

- Mãe...

Ela estava ali, seu rosto contorcido em dor, molhado de lágrimas, seu cabelo bagunçado. Eu senti dor, senti raiva de mim, eu senti tudo, porque ver a dor nos olhos dela foi a minha ruína, eu me detestei por isso. Meu pai passou por ela, que ainda estava imóvel, e veio até mim. Seus braços me envolveram em um abraço apertado, tão forte que eu sabia que ele sempre estaria ali para me manter de pé, porque minhas forças se esgotaram e ele sustentava meu corpo para não cair.

- Eu estou aqui, meu anjo, estou aqui sempre. – Sua voz embargada arrancou uma dor do meu peito, uma agonia de saber a culpada por isso. – Você é minha maior fraqueza, filha, eu não vou perder você. Prometa-me que vai fazer de tudo, até o impossível. – Ele me segurou pelos ombros me fazendo encarar seus olhos vermelhos. – Prometa.
- Eu não quero morrer.
- Não fala isso, ! – Minha mãe me segurou pelos ombros, apertando-os. – Vamos passar por isso. Você entendeu? Você é forte como eu e seu pai, não é? – A voz dela entalou em um soluço choroso. – Vamos passar por isso.”



Só de lembrar, sinto mais lágrimas surgirem em meus olhos escorrendo pelo meu rosto. Eu sinto uma sensação sufocante enquanto escrevo isso, doeu relembrar, ver cada detalhe repassar em minha mente. E quando eu achei que não tinha luz, meus pais me fizeram enxergar o ponto brilhante no fundo da escuridão. Eu lutei, por eles, dei tudo de mim.
Bom, o doutor Lúcio se certificou que eu não ficaria sozinha naquela noite, ele ligou para minha mãe e conversou com ela. Eu sou agradecida porque depois disso, eu me tornei mais forte. Eu vi que não precisava carregar tudo nas costas e que eu queria lutar para conseguir tê-los ao meu lago sempre.
Esse é o fim da segunda carta, foi difícil reviver tudo, mas ainda é o começo.

Beijos.
.


Carta III

São Paulo, 3 de Dezembro de 2012.


Todo o ser humano nasce com a eternidade no coração e anseia realizar grandes coisas. Nasce com uma sede por significado e propósito, mas nem sempre o significado é claro, nem sempre as respostas são certas, nem sempre entendemos os porquês.
Eu finalmente acordei e peguei o caderno pra escrever. Minha mãe acabou de sair do quarto, só estava esperando por isso pra continuar escrevendo. Se você acha a mãe coruja, imagine depois de tudo.
Como sabe, na carta passada eu contei como descobri minha doença. Eu queria contar mais detalhes, mas confesso que nem mesmo sei esses detalhes. Fiquei atordoada, me lembro de alguns pensamentos que eu tive. Sabe, eu percebi que se eu não superasse a notícia, eu iria me perder no futuro, então eu superei. Mas agora é a terceira carta, final de semana seguinte. Eu ainda não tinha começado o tratamento, mas esse dia é importante, muito.



“Sábado de manhã, o mesmo sol adentrava a janela do meu quarto e deixava os olhos pintados no quadro na minha parede mais vivos. Lindos olhos castanhos claros com fundos esverdeados que eu teria que encarar hoje à noite.
Eu não conversei muito com nessa semana, eu andei bem fechada em minha bolha e ele atribuiu isso como “birra por não ter mais tempo pra mim”, mas sabemos que essa não é a verdade. Ele também andou distante, me evitava algumas vezes, era só o orgulho falando mais alto.
Eu tinha conflitos maiores para lidar, como a bateria de exames para o início da quimioterapia. Certo, me lembrar disso me deixava pra baixo, era quase que inevitável, pois tudo parecia não passar de algo irreal que um dia iria passar.
Eu já aceitei a minha situação, mas é impossível não pensar o porque de estar acontecendo comigo.
Eu sempre admirei essas pessoas que conseguiam vencer o câncer, que mostravam o sorriso e seguiam firmes, me perguntava se eu seria uma dessas pessoas, se poderia ser exemplo de luta para tantas pessoas, que seria um exemplo de sobrevivência assim como elas.
Eu não encontrei meus pais em casa, ambos estavam na igreja e me deixaram sozinha. Sentei-me no sofá e comecei a pensar como seria minha conversa com , o que diria? Estava certa que iria contar da doença, mas confesso que a preocupação de falar dos meus sentimentos não deixava meus pensamentos. Era loucura, não precisava de ninguém pra me lembrar disso, e não sabia por que essa ideia maluca não tinha deixado meus pensamentos ainda.
tinha jogo, disse que sairia mais tarde e viria direto pro BK que costumávamos comer sempre, nos nossos aniversários, em alguma comemoração, ou pra passar o tempo. Eu estava feliz por ele, finalmente ele tinha conseguido entrar no time que tanto sonhava, jogar futebol americano em um país que está crescendo os apreciadores por este esporte. Passou em branco essa comemoração porque eu não estava com muita cabeça pra isso, bem, ainda não estou, mas ele merecia saber que eu estava torcendo por ele. E ainda teria um grande passo, estava incerta pra isso, não sabia se deveria contar, mas era o certo. O pai dele morreu dessa mesma doença e o medo de como ele reagiria afligiu meu coração. Eu não pensei nisso, ensaiei cada reação, mas todas pareciam tão irreais no momento que me senti idiota.
Dois acontecimentos marcantes estavam pra acontecer, em questão de minutos. Eu iria me declarar para meu melhor amigo e depois iria falar que estava com a doença que levou o pai dele. Isso não pareceu certo, pareceu até cruel pensando direito. O que eu estava pensando? Chegaria na hora e falaria , eu preciso falar uma coisa. Cresceu algo que eu não queria, que foi impossível controlar, e quando dei por mim já não era amor de amigo que eu estava sentindo. Eu comecei a te ver de outra forma e meu coração ficava acelerado com isso. Eu me senti tão presa a você que era difícil ficar longe. Eu pensava que as lágrimas que eu soltava quando te via viajar para longe com seus pais era uma birra infantil de uma pessoa que não queria abrir mão do melhor amigo, mas era evidente que não. Não depois dos diversos momentos que senti vontade de te beijar quando estava dormindo ao meu lado, mas o medo de te acordar, de me soltar dos melhores abraços que eu poderia ter, não permitia completar o ato de sentir seus lábios nos meus. Infelizmente demorei muito pra notar isso, e um pouco mais pra falar. Eu não estou muito bem e futuramente sei que estarei pior, mas só será por fora porque por dentro estarei firme e forte. É difícil dizer isso, muito mesmo, mas preciso ser forte pra esse momento. Faz uma semana que descobri e você é uma das primeiras pessoas que eu estou contando. Eu estou forte e confiante, então também quero que esteja. Eu estou doente, descobri que tenho câncer no útero, mas o médico disse que sou jovem e posso vencer fácil.” Bom, não parecia tão mal quando eu imaginava, mas duvidava que o dialogo seria tão simples assim.
Iria dar certo, eu só precisava lembrar de respirar e de parar de olhar o relógio do celular. Ele estava atrasado, muito atrasado. A partida já tinha acabado há duas horas e nada dele aparecer. Atribui isso ao trânsito, ou qualquer outro empecilho desconhecido por mim, mas estava difícil não sentir a pontada no peito em cogitar a ideia que ele não apareceria. Eu precisava contar, eu precisava dele mais que nunca, tinha que aparecer.
Eu olhei ao redor, o grupo de amigos na mesa ao lado conversando e rindo, e eu sozinha em uma mesa para dois. Senti falta de ter pessoas ao meu redor, qualquer amigo que eu pudesse estar agora, rindo e me divertindo, mas eu me prendi tanto a que não fiz fortes amizades. Eu não tinha mais ninguém, e não queria, conseguia suprir tudo dentro de mim, todas as lacunas vazias. Pelo menos era isso que eu sentia.
Sabe aquela cena de filme que o garçom chega e pergunta se quer a conta, pois está com dó? Então, isso não aconteceu. Talvez minha imaginação que tudo daria certo acabou de me dar outra rasteira.
Eu estava triste, senti novamente minhas lágrimas surgirem nos meus olhos. Quatro horas de espera e ele não apareceu, não ligou e nem mandou mensagem. De todos os momentos da minha vida, eu precisava dele, eu queria contar com alguém que não fosse meus pais, alguém que eu pudesse falar o medo que estava sentindo, o pesadelo que estava sendo essa semana, mostrar o quanto estava fragilizada, e esse alguém não existia. Não mais.
Eu segurei meu choro. Perdi as contas de quantas vezes chorei nesses dias e dessa vez eu não choraria por ele, eu não podia chorar... droga, eu estava chorando.

- Estamos fechando, moça. – A menina do BK surgiu em minha frente. Seus olhos ficaram confusos ao ver lágrimas nos meus. – Está tudo bem?

Eu estava tão desesperada, eu precisava de alguém, só por um momento eu precisava conversar com alguém. Abaixei a cabeça, senti um nó na garganta, o desespero falar mais alto que o bom senso.

- Semana passada – Comecei, ergui a cabeça para encarar a jovem – Eu descobri que tenho câncer. Eu ia contar pro meu melhor amigo, mas ele não veio. – O olhar de pena surgiu nos olhos da garota, eu não queria isso, eu queria palavras mesmo parecendo que nada pudesse ser dito.

Sorri fraco enquanto nenhuma palavra saia da boca da atendente, somente seus lábios se moviam perdidos sem saber o que pronunciar pra mim. Senti injusta com ela, uma garota desconhecida que joga uma bomba e sem me conhecer, sem ter nenhum vinculo comigo, precisa dizer algo que me conforte.

– Esquece – Levante-me secando as lágrimas – Eu só precisava falar isso pra alguém.
- Eu sinto muito. – Foi o que ela disse com a voz fraca.

Se ela sentia ou não, eu não sei, somente permiti que um sorriso fraco estampasse no meu rosto antes de sair dali.
Eu fui pra casa. Passei por muitas pessoas que saiam nesse sábado à noite. Eu por um momento senti uma forte inveja delas, por estarem sorrindo, conversando, brincando ou apenas se olhando. Era errado querer trocar de lugar? Trocar de vida, eu virar outra pessoa e ela virar eu? Seria injusto e cruel. O que eu estava pensando? Não gostaria que nem meu pior inimigo passasse pelo que estou passando, nem presencie o que estou presenciando. Meus pais pensam que não notava seus soluços à noite e seus olhos avermelhados e de bolsas roxas pela manhã. E eu me culpei, sim, porque era a culpada de cada noite não dormida, de cada lágrima escorrida, de toda a dor que estavam sentindo. Eu quis acabar com tudo, terminar tudo, avançar no tempo, mas nem isso eu conseguia fazer.
Quando cheguei em casa, quatro carros estavam estacionados em frente a casa de enquanto uma música alta tocava no interior da sua residência, mas diferente de antes, eu não me importei. Estava quase no meio do meu quintal quando o escutei.

- !

Aquela mesma voz de que fez merda e agora estava tentando consertar de alguma forma irreparável. Eu o olhei. estava com os cabelos bagunçados, pálpebras pouco caídas, ele estava bêbado.

- Volte pra sua festinha particular, . – Minha voz dura o incomodou e virar as costas pra ele o deixou irado, já que a força que segurou no meu braço foi maior quanto jamais o fez. – Solte-me. – Grunhi tentando me livrar dele.
- Sério isso? E não te dou atenção por uma noite e você tem esse ataquezinho de merda? – Seu rosto estava vermelho, seus olhos que antes me olhavam com carinho, agora me encaravam com raiva.
- Você sabe onde eu estava? – Ele não respondeu, estava bêbado demais pra raciocinar. – Eu, a trouxa que está dando “ataquezinho”, estava te esperando na merda do BK enquanto você enchia a cara com seus novos amiguinhos. Quer saber? Vai lamber o rabo deles pra ganhar atenção e me esquece.
- Quer mesmo que eu faça isso? – inclinou a cabeça em minha direção, seus olhos em puro desafio e o sorriso superior. – Vai aguentar ficar sem mim? – Eu ia argumentar, mas ele levantou o indicador fazendo eu me calar. - Eu tenho uma novidade pra você. Eu estou bem bonzinho hoje, então você vai ganhar o que quer. Diferente de você, eles não ficam colocando pilha na minha cabeça.
- Vai à merda. – Eu puxei com força meu braço que o impulso me fez dar dois passos para trás. – Como você é ridículo quando quer.
- Você não está muito longe disso.
- SAI DAQUI! – Eu estava descontrolada.
- Saio sim, minha senhora. Eu preciso dar atenção aos meus amigos. – Ele se curvou em falsa reverencia.
- ! – Não acreditei, não era possível. – Você não vem?
- A Clara? Sério? E eu pensando que não dava pra você chegar ao fundo do poço.
- Já vou. – Ele disse pra ela como se devesse alguma satisfação e isso me deixou transtornada. De todas as coisas, de tudo que ele podia me fazer, essa foi a mais dolorosa pra mim. – A coisa boa de estar no fundo do poço, é que não dá pra descer mais, só subir.”



Lembro bem o quanto eu o odiei por aquilo. Lembro-me de tirar seu retrato da minha parede naquela noite, do quanto eu chorei, do quanto eu o senti raiva ao ouvir suas risadas, de saber que elas não eram mais pra mim, que era pra outra pessoa.
não tinha aparecido, ele se fechou pra mim, deixou-me no momento que mais precisei de alguém. No momento que eu estava pronta pra me abrir e contar meus sentimentos, ele não estava ali. No final das contas, eu me iludi muito para achar que um dia nós daríamos uma chance para algo a mais, então eu me decidi não contar nada. Foi minha vez de me fechar e seguir com as lutas, sozinha, pois ele não existia mais pra mim. Eu precisava ir mais alto, mais profundo, buscar forças e vencer.
O que eu aprendi nessa carta foi não contar com ninguém mais que não seja minha família, pois eram os únicos que estavam comigo.

Boa noite, .


Carta IV

São Paulo, 04 de Dezembro de 2012.


Oi, .
Mais um dia, mais uma carta e eu não tenho nenhum pensamento para expressar. Ontem eu tive que fazer algumas exames, coisa de rotina, não consegui dormir direito e agora estou aqui, extremamente cansada. Eu vou escrever porque essa foi uma grande etapa na minha vida. Uma coisa que eu preciso que você faça, não julgue sem saber.
De todas as novidades da minha vida, o que mais achei surpreendente são as pessoas que me cercam. A força que irradia de cada uma, o brilho de vida, o amor demonstrado a todo instante, a todo segundo.



“Uma semana, era esse tempo que fazia desde o início do tratamento no hospital onde passei todos os dias tomando quimioterapia. Dois furos, um em cada braço, o embrulho no estômago, o gosto metálico na boca era o legado de uma pessoa que estava no início do tratamento. Mais uma manhã que não tinha acordado muito bem, só de pensar em comida já dava vontade de vomitar. Nesse dia em especial, depois de quinze dias sem comparecer na escola, tive que levantar cedo pra ir. E naquele animo de manhã, levantei e me aprontei pra ir. No espelho eu encarei meu reflexo antes de sair como de costume, talvez para ver se algo em mim mudou, mas ainda nada parecia fora do comum. Estava tudo em ordem, cabelo ainda estava ali, mas meu rosto já estava abatido.
Encontrei minha mãe me esperando na sala, ela mandava o olhar preocupado de mãe, passou a mão em minha cabeça em um cafuné carinhoso.

- Está tudo bem se não quiser ir, querida. Posso falar com sua diretora.
- Eu consigo. – Falei confiante. Não era como enfrentar um bicho de sete cabeças, era só a escola, talvez um bicho de quatro.
- Eu vou ficar em casa caso precise de mim, tá?

Eu concordei. Minha mãe conseguiu férias do trabalho para ficar comigo o início do tratamento e me levar para o hospital sempre.
Quando cheguei na escola passei direto para a sala de aula. O sorriso de força da minha mãe me fez entrar na sala de cabeça erguida e sentar onde sempre sentava como de costume. O que me deixou chateada foi ver passar pela porta, seus olhos castanhos encontraram os meus e não ficaram presos em mim até ele sentar do outro lado da sala. Desde a nossa briga no meu quintal, tudo desmoronou de vez. Eu quase não o via e quando isso acontecia, era só essa troca de olhares matadora que sempre me deixava triste. O que eu era pra ele? Estava bem claro que eu não era o que ele era pra mim, nem chegava perto.
Não prestei atenção naquela aula de física e nem nas duas seguintes. Eu fiquei desenhando algumas coisas no meu caderno enquanto me esforçava para não olhar ao meu lado e ver sorrindo como sempre fazia. Eu lutei muito contra minha vontade de ir até ele, eu fiz de tudo para não fazer nada. Inclinei a cabeça disfarçadamente, meus fios loiros estavam um pouco na frente, mas eu consegui vê-lo. Seu cabelo estava mais bagunçado que o habitual, seus olhos esbouçavam bolsas roxas de quem não dormia e seus lábios estavam pouco feridos. Meu coração parou quando aqueles olhos castanhos esverdeados pousaram em mim e mais ainda foi a dor quando permaneceram ali, carregados de algum sentimento que eu desconhecia. Pelos seus lábios nada era pronunciado, mas seu olhar era um mar de coisas que precisavam ser resolvidas e eu pela primeira vez desviei o olhar.
O sinal tocou indicando o intervalo, eu levantei e peguei minhas coisas. Cheguei perto da porta, a sensação de umidade aumentou de forma estranha, como se eu estivesse fazendo xixi sem notar. Achei estranho e olhei pra ver o que estava acontecendo. A calça azul do meu uniforme estava vermelha tomada pelo sangue que chegava até a metade da minha coxa. Meus olhos estavam arregalados e a sensação de medo tomou conta de mim, eu estava sangrando, e muito. Levei minha mão à minha barriga, perto do meu útero. Isso não podia estar acontecendo, não na escola, não com todos me olhando.

- Meu Deus, está descendo muito. – Eu não sei quem falou comigo, meu choque foi maior quando vi que não estava parando. Olhei pra professora que parecia assustada demais pra falar qualquer coisa, ou pra tentar me ajudar. Ela sabia, assim como muitos dos professores, consegui ver isso no olhar dela logo depois que notou que eu a olhava. Ela sabia que eu estava doente e não sabia como reagir.

Eu olhei para onde estava, eu o olhei em um pedido silencioso de socorro, mas seus olhos arregalados me encaravam e seus músculos não se moviam. Não, eu não podia contar com ele, só comigo mesma. Saí no corredor abarrotado de gente, todos me deram passagem, mas não por gentileza, foi por nojo. Eu podia ver os olhares de repulsa e algumas piadinhas enquanto eu passava. Meu Deus, eu queria sumir, péssima ideia vir pra escola, onde eu estava com a cabeça? O difícil foi segurar as lágrimas, foi bem difícil escutar tantas coisas idiotas de pessoas que não sabiam de nada.
Naquele momento eu queria voar para bem longe, como uma borboleta sem destino. Essa era a verdade, eu queria sumir, eu quis desaparecer.

- Ei, está marcando o caminho pra não se perder depois? – Eu senti alguém segurando meu ombro.

Eu virei no mesmo instante pronta para me livrar da pessoa que me segurava. se aproximava rápido perto do garoto que me segurava e mais rápido ainda foi o soco que acertou a bochecha do garoto que me soltou no mesmo instante quando caiu no chão.

- É bom que você fique no chão, porque se levantar, eu vou te quebrar todo, seu merda!
- O que está acontecendo aqui? – A diretora apareceu olhando para todos os lados até pousar seus olhos em mim. – ... Eu vou ligar pra sua mãe, tudo bem? Espere na diretoria.

Fiz o que ela me pediu, passei por sem me atrever a olhar pra ele porque eu sabia que se o fizesse, teria coisas para contar e eu prometi que não o envolveria nisso. Doeu ver ele me protegendo e mais ainda fingir que não me importei.
Minha mãe chegou logo depois, desesperada e quase subindo na calçada com o carro. O caminho até em casa foi cheio de perguntas e o dia estava só no início.
E mais uma vez sentada naquela poltrona verde musgo esperando todo o líquido entrar na minha veia. Este ardia e me incomodava, mas precisava dele. O potássio era responsável por repor alguns nutrientes que a quimioterapia mata, e também o mais difícil de todos os quatro sacos que eu precisava tomar diariamente. Eu fiz careta mais uma vez pela vontade de ir ao banheiro ainda estar persistindo. Eu então me dei por vencida e fui para o banheiro carregando meus soros comigo com um pouco de dificuldade.
Sai do banheiro e pronta para voltar ao meu lugar, porém eu parei no mesmo instante. Meus olhos se arregalaram ao vê-la no balcão das enfermeiras e o pior de tudo era que ela também me olhava. Não podia ser, sério mesmo, não podia, de todos os lugares, de todos os cantos da terra e de todas as pessoas, não podia ser a Emily. Certo, seria tranquilo se ela não fosse a melhor amiga da garota que infernizou meu mundo, e pior, que um dia já chamei de amiga. Engoli em seco e abaixei a cabeça achando que ainda podia me esconder, pobre ilusão, claro. Estava evidente que ela tinha me visto, mas eu não faria nada a não ser fingir que ela não estava ali.
Voltei pro meu lugar e passei o resto do tratamento olhando para fora, a forma calma que o vento balançava as folhas das árvores ou como os médicos conversavam entre si. Tudo parecia tão normal pra eles e tudo tão diferente pra nós que estamos nessa sala, sentados nessas poltronas. Tudo tão simples.

- ? – Eu olhei meu lado e vi o psicólogo sentado perto de mim. Era comum ele vir aqui conversar com todos, ele ajudava muito porque muitos aqui só precisavam disso, de algumas palavras. Eu sorri pra ele porque uma das pessoas que ele mais ajudava, era eu. – Como está hoje, hm? Vamos lá, não me esconda nada. – Ele soou brincalhão.
- Estou bem.

Eu me abri completamente como de costume e como sempre, ele me ajudou e deu bons conselhos. Eu era bem tratada por todos ali, as enfermeiras eram simpáticas, a minha médica era a melhor pessoa que podia existir e o psicólogo era um grande amigo. Nem tudo era ruim, apenas ter outros olhos para admirar as pequenas coisas.
Sai da sala de tratamento para ir ao estacionamento onde minha mãe me esperava no carro para voltarmos pra casa, mas foi eu colocar o pé pra fora da ala de tratamento que...

- .

Eu parei no mesmo instante, já sabendo quem falavam comigo, olhei para o lado apenas por educação. Emily me olhava, estava sentada como se esperasse por alguém, e esse alguém era eu.
- Eu preciso ir. – Falei um pouco mais fria, mas o fato era que eu queria fugir o mais rápido possível dali.
- Não vai me contar o que está acontecendo?
- Como se você se importasse. Só faz uma coisa, não conte pra ninguém, mesmo que isso seja difícil pra você. Quem te mandou me seguir? Fala que perdeu seu tempo. – Eu fechei a cara e ia voltar a andar quando ela falou.
- Minha mãe disse que te viu aqui.

A mãe de Emily trabalhava nesse hospital e eu tinha me esquecido.

- Pois é, eu estou aqui. – Sorri meio amarga e voltei a andar em direção à saída. Ela veio atrás de mim, passos perto dos meus até que parei rápido, sentindo ela trombar em mim. – Por que está me seguindo?
- Eu quero ver como sua mãe está, eu quero saber como você está. Eu te vejo de longe faz dois dias, mas depois do que aconteceu hoje na escola, eu tive que falar com você.
- Eu estou bem, não se incomode com isso. – Mais uma vez voltei a andar e dessa vez sem intenção de parar.
- O que você tem? Fala pra mim. Você contava tudo...
- Ah, aí que está. Eu contava tudo, não mais.
- , por favor! Eu ainda seu sua amiga, não foi eu que me afastei.
- Está certa e eu estou me certificando que fique longe.

Quando cheguei ao estacionamento, encontrei com minha mãe e Emily já não estava comigo.”



Depois desse meu encontro com a Emily, confesso que senti um peso na consciência. Ela estava querendo se aproximar e eu estava bloqueando isso, não a queria perto por causa da Clara, mas ela era minha amiga antes e eu sentia falta de um amigo da minha idade. Bom, uma semana depois desse meu encontro, ela continuou indo ao hospital, e continuou mostrando que realmente se importava. Lembro que foi com um suco de laranja que nós oficializamos o fim desse desentendimento e ela passou a frequentar minha casa para passar as matérias, já que a escola concordou em me deixar ir em um dia da semana pra fazer as provas finais.
Eu estava feliz porque tinha pessoas que me amavam me rodeando, triste porque nunca mais vi e pior ainda pelo seu namoro. Ele estava indo bem no time pelo que fiquei sabendo por Emily, e também estava namorando uma menina. Se acha que é a Clara... PEEEEEE. Está errada. Era uma das ajudantes do time. Eu ainda não a conheci, mas seja lá quem for, que o faça feliz. E que um dia eu possa conhecer essa menina e ver a grande escolha que fez. Ele nunca teve bom gosto, sempre se apaixonava pelas garotas erradas e tinha um fim trágico. Espero que dessa vez seja diferente.
Oh, que ótimo, está bem tarde e eu ainda nem jantei. Minha mãe deve estar maluca.
Só uma coisa para você. Boa sorte, .

Beijos.
do futuro.


Carta V

São Paulo, 06 de Dezembro de 2012.


Está é a melodia, a letra que surge quando nada pode ser dito, quando as palavras não rimam com a vida, quando as melhores intenções são esmagadas e destruídas, quando os medos são maiores e mais numerosos que as promessas, quando as certezas são engolidas no tenebroso mar de incertezas. Quando confrontadas com indivisível, seja nossa canção, estrofe, ponte e refrão.
Mais uma reflexão de um autor desconhecido. Eu particularmente amo esses textos, principalmente os este e o próximo, pois eles expressão tudo que já passei. Eu vou começar cedo essa carta pra terminar logo. Não consegui dormir direito e minha cabeça está doendo muito.
Eu escrevo essas cartas para você saber o que aconteceu por causa de algumas escolhas que fiz. Não sei como seria se fosse de outra forma, como se eu não voltasse a falar com Emily, porque essa escolha vai refletir nessa quinta carta que acontece quase um mês e meio depois da última carta que escrevi.



“Meu despertador tocou alto, mais que o normal, gritando para mim que era um novo dia longo, como um lembrete da tortura que estava enfrentando a semana toda. Eu levantei cansada, meu corpo pesado e fraco demais para ser tão rápido, meu movimento foi lento e os passos mais lentos ainda. Tirei a roupa para ir em direção do banheiro para tomar banho, mas parei no mesmo instante ao me ver no espelho que ficava na parede do meu quarto. Meus olhos opacos encaravam o reflexo que costumava ser meu, porém não como antes, e não pude deixar de me comparar com o passado. Dois meses, foi exatamente isso que passou desde o início do tratamento. Meu corpo estava magro, pálido com leves vergões roxos espalhados nas minhas juntas dos dedos e em algumas partes da minha pele. Meus braços roxos de tantos furos que diariamente eram provocados pelas agulhas. Cabelo? Bem, meus fios loiros já não estavam na minha cabeça assim como pelos corporais, como minha sobrancelha. Meu cabelo era o que eu mais amava, o que eu sempre arrumava para me sentir bonita, já não me pertencia. Tudo foi arrancado de mim sem que eu pudesse ao menos ter a escolha de pedir o contrário. O que eu não dei para continuar ali, respirando, viva. Eu dei tudo, dei o que mais amava por essa dádiva.
Toquei o espelho onde estava o reflexo do meu rosto abatido. Até que ponto cheguei, até que ponto eu aguentaria ir? Eu não conseguiria responder essas perguntas, jamais conseguiria. Eu só me observava.
Minhas sessões de quimioterapia aumentaram por alguma alteração que estava dando no meu sangue. Agora fazia uma de manhã e uma a noite, semana assim e outra semana só na segunda de manhã e a noite. Estava mais difícil de suportar essa rotina. Ela estava acabando comigo.
Eu nunca fui de me comparar com ninguém que estivesse o mesmo estado que eu, porque a minha luta não estava sendo fácil e muito provável que da outra pessoa também estivesse sendo difícil, porém eu não pude deixar de pegar alguma lição dessa experiência que estava tendo. Eu vi idosos, adultos e crianças ocupando os mesmos bancos que eu, pessoas sem esperança que choravam pelos cantos daqueles hospital, pacientes desenganados pelo médico e eu me perguntava: Quando será eu?
Hoje em especial foi o dia estipulado para eu fazer as provas finais da escola. Eu estava mal, com a forte ânsia de vômito, mas eu tinha que ir e passar logo de ano. Eu não faria o terceiro de novo, definitivamente não.
Eu tomei banho e me preparei para ir pra escola. Minha mãe preocupada me ajudou e me levou pra escola. Ela pediu folga para que pudesse ficar a minha espera até eu terminar tudo e voltar pra casa.
Quando cheguei lá, todos os alunos estavam entrando, então eu esperei no carro. Eu não queria me expor tanto assim, de certa forma. Eu não estava usando o famoso lenço na cabeça e nem tentei fazer uma maquiagem. Eu era péssima em tudo isso. O lenço me deixava com calor e minha habilidade com maquiagens era no mínimo, desastrosa.
Sai do carro e entrei na escola de cabeça baixa para não ver os olhares sobre mim. Eu passei tão rápido que não escutei quando Emily me chamou, somente quando ela segurou no meu ombro e me fez olhá-la.

- Eu estava te chamando. Tá surda? – Falou brincando e eu acabei rindo junto.
- Tentando passar despercebida por esses babacas.
- Claro que sim, mas erga essa cabeça. Você é linda e sempre será. – Voltamos a andar. – Vamos. A primeira aula você tem prova com a gente e depois vai fazer tudo sozinha. Pelo menos posso receber cola em matemática.
- Você não estudou, né?
- Você ainda me conhece tão bem.

Andamos juntas até a sala e entramos. Sabe aqueles olhares que tanto eu tentava fugir? Bem, não deu muito certo. Foi eu pisar na sala que todos olharam pra mim e eu me calei no mesmo instante enquanto Emily continuava falando comigo.
Eu fui para meu lugar rotineiro e fiquei ali até a professora chegar. Minha cabeça doía mais forte pela tensão daquele momento. Seria dois dias de prova para eliminar todas as matérias e estava só no início do primeiro. Certo, eu precisava relaxar um pouco e terminar logo pra ir pra casa.

- Não acredito. – Meu coração parou no mesmo instante. Não podia ser ele, não tão rápido. Eu ergui meu olhar e só Deus sabe o quanto eu pedi para que não fosse ele.
ainda estava vindo em minha direção no meio da sala. Seus olhos inexpressivos, o que me deixou sem saber o que poderia acontecer. Engoli em seco quando me coloquei de pé pronta para ter uma reação positiva, mas... nem tudo é como queremos.

- ... você... – Ele se limitou alguns passos de mim. Seus olhos me encarando tristes e marejados, cheio de dor e isso me feriu. Meu chão se perdeu e tudo ao meu redor sumiu. – Você não pode...

As lágrimas, as raras que via em desde a morte de seu pai, agora eu era a culpada. Eu prometi pra mim mesma afastar todos àqueles que eram culpados por fazê-lo chorar e desta vez eu era a culpada. Os poucos passos que nos separavam foram rompidos por ele que me abraçou forte. Seu corpo tremia abraçado no meu e alguns soluços escapavam por sua garganta.
Destruída. Era assim que eu estava e assim que iria continuar até esquecer essa cena. Ele tentava falar, palavras entalavam em sua garganta. As minhas lágrimas rompiam minhas bochechas como brasas, mas a dor que eu sentia no meu peito, a dor era dilaceradora.

- Por quê? Droga, , por quê? De todas, por que você? Por que a pessoa que mais amo? Por que não me contou? – Tantas perguntas saiam de sua boca, perdidas, sem ordem, algumas não eram pra mim, mas a que era.
- Eu tentei te contar... no BK.
- Me desculpa. – Ele me solto, ficou de frente pra mim. – Eu sou um merda. Inferno, eu não sabia que era pra isso. Eu pensei que... pensei que queria falar sobre o beijo que deu em mim. - Eu paralisei, arregalando os olhos. Não, não era possível, ele tinha sentido o beijo. – Eu não fui no BK porque não conseguiria esconder. Eu não conseguiria te disfarçar meu olhar, não conseguiria esconder o que eu sentia. – Os olhos dele, os lindos olhos estavam ali mais brilhosos, com misto de sentimentos, os meus olhos favoritos estavam ali. – Eu fiquei com medo de tudo mudar quando eu falasse o quanto eu te amava desde que tínhamos doze anos, tudo ficasse estranho entre nós. Eu fiquei com medo, mas essa merda só te afastou de mim.

Eu senti, na minha pele, a cada pelo que se arrepiaram, a cada batida forte do meu coração, nos lábios úmidos e macios de tocando os meus com a mesma delicadeza que eu o beijei naquela noite, como um flashback, uma chance de reviver as memórias, uma chance que eu tinha de aproveitar um pouco aquele momento com ele. Ele desgrudou nossos lábios, poucos centímetros.

- Eu te amo, por favor, deixe-me ficar perto de você.

Eu queria gritar pra ele: “Salve-me, , salve-me”, naquele momento eu tive uma certeza. Ele me salvaria.”



Essa foi minha última memória desde que minha mente apagou e eu apareci na sala branca de hospital. A memória mais linda que jamais poderia ser abandonada, largada longe, pois eu buscaria até no fundo dos meus pensamentos.
De todas as coisas que passaram por minha cabeça, eu nunca pensei que essas coisas fossem acontecer logo comigo. Que história maluca, imagina: Uma garota doente que ama o melhor amigo e que descobre que ele sente o mesmo. É tão bom que perece mentira.
Eu estou feliz por ter a certeza que estava ali, ao meu lado e não importava até quando, ele sempre estaria comigo.

Tenha sempre essa certeza, .
Abraços.


Carta VI

A vida tem ciclos, assim como as estações. Os melhores dias são como memórias antigas de um verão regado de risadas de aventuras e de calor. Mas depois vem o outono, as folhas caem, as circunstâncias mudam. O inverno é tão traiçoeiro que é quase impossível notar quando de fato começa e quanto termina. Os dias são mais escuros, mais curtos. Parecem saber que se fossem mais longos derrubariam até os mais valentes entre nós. Nos levam à reflexão, à esperança de uma nova primavera. No outono, no inverno, esperamos a primavera chegar. E assim como as estações: A Vida.
Eu particularmente amo esse texto porque tudo que passei, todas as lutas, as decepções, as lágrimas, tudo que veio para me deixar mais forte, como o inverno que vem detonando tudo, mas sempre existe uma esperança de uma nova primavera chegar. Esse texto me trouxe esperança e eu fiz de tudo para aguentar, para estar viva.



“O tão esperado dia do baile de formatura é hoje e assim como todas as garotas do ensino médio, estava no meu processo de produção cercada de profissionais (minha mãe). Não tinha muita coisa a ser feita, já que meu cabelo ainda era ralo e não quis ir a nenhum salão dar um jeito em minhas unhas, e também não podia.
Para muitas, o maior momento da vida era esse, ir pro baile como uma princesa, mas pra mim estar viva e passando de ano era a maior vitória de todas. Eu separei um vestido lindo, que no momento estava no meu guarda-roupa esperando pela grande noite. Minha mãe insistiu em me ajudar em tudo e não podia mexer em nada.
Eu terminei os últimos retoques na maquiagem, resumida em uma base e um delineador muito sofrido pra fazer, quando escutei a campainha no andar de baixo.

- Marcos! Atende! – Minha mãe gritou, estava ocupada demais em tirar meu vestido no saco para me ajudar a colocar. – Vai ser a princesa mais linda da festa, vai ver.
- Mãe, princesas não existem em formaturas, só em festas de debutante.
- Aceita que vai ser princesa, não é tão difícil, e olha esse vestido!

Não tive como negar, era a coisa mais linda que eu já tinha visto. Azul com algumas rendas, olhava admirada até ela me ajudar a colocar.
Depois que estava pronta, eu desci e me encontrei com meu pai que estava acompanhado de . Vestido em um smoking azul marinho com detalhes pretos. Estava lindo.

- Como vai a mulher mais linda da festa? – Ele me abraçou e eu sorri abertamente pra ele.
- Você nem viu as outras. – Brinquei.
- Ah, eu deveria vê-las para dar um veredito.
- Ei! – Eu dei um leve tapa nele e me afastei dos seus braços.

Ele continuava rindo até dar um beijo na minha bochecha.

- Eu não mudaria de ideia, porque é impossível alguma garota estar mais linda que você.
- Chega disso, eu sou pai e não estou gostando nada disso. – Meu pai cortou fazendo morrer de vergonha. – Leve minha filha com cuidado.

Aquelas cenas de fotos não podiam faltar, minha mãe estava bem tradicional pra deixar um momento desses passar. E como ela pediu, nós tiramos as famosas fotos de casal.
e eu não tínhamos nada oficial, nada de pedidos diretos ou de alianças nos dedos. O que tínhamos era algo que sabíamos internamente, a vontade absurda que um tinha de pertencer ao outro, alianças simbólicas que uniam nossos corações. Não precisava de nenhum pedido quando tudo que sentíamos era a certeza que o amor estava ali e não nos abandonaria jamais.
Foi como se holofotes pousassem sobre nós quando nós passamos pela porta do evento, como se um couro anunciasse nossa presença, todos aqueles olhares vieram sobre nós dois. Senti minha perna tremer sobre o salto pequeno e meu pé dar um passo pra recuar, segurou minha mão e sorriu.

- Será que a garota mais linda me daria à honra de uma dança?
- , não precisa falar assim. – Eu estava rindo e esqueci-me daquela atenção que todos depositavam sobre nós.
- Eu estou tentando o máximo pra ser um cavalheiro, mas você está tão perfeita que acho que não vou conseguir. – Ele me abraçou, acomodando-me em seus braços, seus pés se moviam lentamente de forma suave.

Apoiei minha cabeça em seu peito, seu coração batia acelerado em sintonia com o meu. Eu poderia passar o resto da minha noite nessa dança infinita que eu jamais me importaria, até que meus pés não aguentassem, até que a letra da música não fizesse mais sentido, eu continuaria na dança eterna.
Os lábios de tomaram os meus, dessas vez mais vivos, em um beijo profundo e gostoso que me fez arrepiar. Ele nunca havia me dado um beijo tão cheio de paixão, como se me sugasse para si, me convidando para um vicio inevitável que era provar seus lábios e não separar mais. Suas mãos apertaram mais minha cintura, puxando-me mais para si, colando nossos corpos. Ele era meu e eu era dele e assim seria até quando o destino nos levasse.

- Eu te amo, Pardo. E eu não aguentaria ficar mais um dia sem te chamar de minha namorada. – Seu punho fechado se abriu, despencando dali uma corrente com um anel que pendia. Meu coração, céus, meu coração... – Quer namorar comigo?

Eu senti lágrimas escorrerem por meu rosto, senti meu peito explodir em um sentimento poderoso que cresceu em todos esses anos. Pela primeira vez eu tinha a certeza que estas lágrimas não eram de dor, de tristeza, e sim, de amor, de felicidade...”



Eu não consigo escrever, essas foram as memórias mais lindas que alguém poderia ter... alguém. Eu tentei escrever essa última carta com lágrimas nos olhos, com dor, muita dor, porque esse sempre foi meu sonho. Ir pra um baile, dançar com alguém que eu amava, estar com pessoas que eu queria por perto. Eu sempre idealizei todos os momentos, cada detalhe, mas tudo não passou de um sonho. A verdade é que ainda estou no hospital. Logo depois que me beijou, a minha dor de cabeça foi tão forte que eu apaguei e desde então estou nesta sala branca. Os médicos fizeram um exame detalhado e um grande tumor foi encontrado na minha cabeça, junto com alguns tumores na mama.
Eu estou aqui, tomando tanto medicamento que minhas veias já não aguentam. Eu sinto dores fortes que me deixam atordoada, eu não estou aguentando mais. Quantas vezes eu pedi pra Deus parar com essa dor? Eu já vivi demais, já sofri demais. Eu não estou mais aguentando os furos diários de agulha, os medicamentos, a dor dos meus pais, a dor da minha família, a dor dos meus amigos, eu não estou mais aguentando viver.
Eu queria que você tivesse essa memória feliz, porque é tudo que eu sempre quis.
Meu adeus eterno.

.


Fim da VI carta



Guardo a carta dentro do meu caderno ainda sentindo as lágrimas escorrerem pelo meu rosto. Deito na cama sem saber pra onde olhar. Eu quero dizer adeus, estou pronta para isso. Pronta para sumir e deixar tudo, apenas meu cheiro, apenas algumas fotografias. Eu estou pronta para ir, mas e eles? Estão prontos para me deixar ir? Eles vão correr atrás de mim ou vão me deixar descansar? De todos meus medos, o maior era não saber o que seria daqueles que eu amo e isso dói demais. Eu não quero continuar presa aqui, ontem já briguem com a enfermeira que veio me furar de novo, não quero mais isso tudo.
Eu quero vê-los pela última vez. Ouvi-los pela ultima vez.

- ... – Ele veio, não consigo abrir meus olhos, mas escuto sua voz.

...





Fim



Nota da autora: Olá gente o/ Depois de muito tempo sem escrever eu me comprometi em fazer esse especial. Esse tema me afetou muito esse ano e infelizmente o acontecimento final é real. Não que a menina escrevia cartas, mas ela descobriu um tumor e agora não está mais entre nós. Isso mexeu muito comigo e ainda mexe por uns motivos pessoais. Eu queria transparecer o sentimento, mas escrever me machucou muito. Então se não ficou tão bom, me perdoem. Confesso que me arrependi depois de ter começado.
Enfim, obrigada pela leitura. E mais uma coisa: Se vocês acham que estão tem saída, que a vida perdeu o sentido, encontre um chama de esperança que faça você lutar.





Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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