A Luz dos Olhos Teus

Última atualização: 15/06/2024

Capítulo 1


Sabe aquele momento da sua vida que você sente que está afundando? Aquele momento em que você evita até pensar, porque fazer isso pode te levar ainda mais fundo. Quando você quer chorar e sumir. Quando você se questiona o porquê. Quando você está tão cansada que não quer mexer nenhum músculo do seu corpo. Quando pensar no futuro é apavorante.
Era exatamente assim que eu estava me sentindo quando meus olhos tentaram abrir lentamente com o sol forte de fevereiro entrando pela fresta da cortina, ainda nas primeiras horas da manhã. Xinguei mentalmente a mim mesma por não ter fechado as cortinas decentemente na noite anterior. Lá fora já dava pra escutar o barulho dos carros, os gritos dos vendedores ambulantes, e o samba tocando em algum lugar ao fundo. Eu não poderia esperar nada diferente de Santa Tereza uma semana após o carnaval. A magia da festa carioca ainda estava por aqui.
Me mexi na cama contra a vontade, e escutei Paçoca resmungando no meu pé, mas assim que percebeu que eu havia acordado, seu rabinho começou a bater freneticamente na cama. Eu amava aquele som. Arrastei meu corpo até onde minha linda vira-latinha caramelo se esticava toda, aguardando meu carinho na barriga e foi o que eu fiz. A paz que ela me trazia eu jamais poderia retribuir. Depois de uns 10 minutos de chamego, finalmente criei coragem pra levantar, ainda que minha cabeça estivesse latejando e o cheiro de erva ainda estivesse na minha roupa. Eu precisava de um banho.
No caminho para o banheiro, senti Romeo se esfregando entre minhas pernas, e quase tropecei no meu gato. Minha outra pessoinha preferida no mundo. Peguei ele no colo e encarei seus expressivos olhos amarelos antes de cheirar seu pescocinho e beijá-lo.
- Bom dia pra você também, bebê. - falei enquanto o colocava no chão novamente e entrava no banheiro.
Deixei a água gelada cair no meu corpo pra ver se me despertava e permaneci no chuveiro por quase meia hora. Quando saí, ainda enrolada na toalha, encarei meu reflexo no espelho. Meu cabelo que eu sempre havia usado longo e perfeitamente alinhado, estava recém cortado Chanel bem acima do queixo, a franja molhada grudada na testa. Observei o piercing no meu nariz, as tatuagens no meu braço. Eu costumava ser alguém tão diferente no passado. Mas a mulher que eu encarava naquele espelho, ela havia crescido tanto na dor, que eu não poderia me sentir mais orgulhosa de quem ela havia se tornado.
Bati rapidamente uma vitamina e fui pra sala com meu copo, ligando o notebook no meu colo. Mais um dia enviando uma sequência de currículos, sem muita fé. Afinal, quantas manhãs eu já havia perdido fazendo aquilo depois que tinha sido mandada embora sem nenhuma explicação lógica. Mas eu já sabia qual era a razão. Michele, a nova namorada do Léo. O que a mulher tinha de linda, tinha de insegura. Aposto que foi ela quem fez a cabeça fraca dele. Cuzão.
Eu ainda não conseguia acreditar. Eu estava naquele trabalho desde que havia largado tudo pra trás e saído de casa. O Léo abriu as portas pra mim mesmo sabendo que eu nunca havia trabalhado, sempre me incentivou a buscar minha independência. Fui acolhida no bar, fiz amizades, eu era feliz ali. Uma vida simples e leve que eu nunca tinha experimentado. Trabalhava à noite, e pintava de dia. Quando dava sorte, o Joel conseguia vender alguns quadros meus para uns gringos na Lapa. E assim eu estava indo bem em caminhar com as minhas próprias pernas.
Além disso, eu estava me sentindo bem melhor emocionalmente depois de tudo que aconteceu com o Danilo. Pensar nele não doía mais como antes. E mesmo quando ele mandava mensagem vez ou outra, eu me sentia bem o suficiente para responder.
Meu coração estava se curando, minha vida financeira era suficiente, e eu finalmente podia pintar sem me preocupar em estar “desperdiçando minha vida”. Eu estava feliz. Mas do absoluto nada, tudo aquilo poderia ter um fim. Sem emprego eu não conseguiria me bancar, eu não conseguiria nem mesmo pagar as contas do próximo mês. Sem um emprego eu não teria opção a não ser voltar para casa dos meus pais e depender deles novamente. E eu não sabia se seria capaz de voltar a ser um fantoche nas mãos deles, sendo a filha perfeita, aquela que atende a todas as expectativas e necessidades dos dois. As chances de eu surtar definitivamente eram altíssimas, eu não queria passar por outra crise novamente. Apenas pensar naquela possibilidade fazia meu coração disparar e a respiração se tornar ofegante. Eu não queria deixar essa vida aqui para trás, porque pela primeira vez eu me sentia livre para ser apenas eu.
Eu até poderia ficar ali sentada sentindo pena de mim mesma, como havia feito algumas vezes naquela última semana inclusive, mas era quinta-feira, e como toda quinta, eu tinha um compromisso mais importante do que eu, meu desemprego e minha crise de ansiedade. Tomei um floral para acalmar, coloquei um vestido leve, um tênis e um boné, joguei a mochila nas costas e beijei meus pets. Desci a pequena ladeira da minha rua rumo ao bondinho, mas antes passei pra comprar um pastel de camarão no Santa Saideira, que seria meu almoço.
O calor estava estranhamente brando naquele dia, mas isso não impedia que eu sentisse algumas gotas de suor escorrer nas minhas costas enquanto seguia de bondinho até a Rua Almirante Alexandrino, que dava acesso para o Morro dos Prazeres. Prazeres havia sido pacificado desde 2010, sendo ocupado pelos militares, o que permitiu que fosse desenvolvido na comunidade a Escolinha de Reforço, que oferece para os moradores aulas de inglês, cidadania e cultura. Quando descobri isso, comecei a passar todas as tardes de quinta-feira ensinando crianças e mãe a pintar. Aquela havia se tornado minha rotina nos últimos seis meses e eu amava cada minuto que eu passava com aquelas pessoas.
Quando cheguei na escolinha, estranhei o alvoroço, mas fui direto para a sala, cumprimentando rapidamente quem eu encontrava no caminho. Assim que passei pela porta, já estranhei o espaço completamente vazio. Exceto pelo homem parado de costa pra mim, encarando a janela fixamente. Ele não pareceu notar minha presença, mas quando me aproximei para deixar a mochila sobre a mesa, sem querer chutei o pé da cadeira e o barulho fez com que ele virasse rapidamente em minha direção. Seus olhos encontraram imediatamente os meus. Tenho certeza que corei. Eu estava confusa com a situação. Quem era aquele lindo estranho parado bem na minha frente? Eu tinha total certeza que nunca o tinha visto. Então ele sorriu discretamente, quase imperceptivelmente, antes de falar um português com sotaque carregado.
- Achei que eu tinha pedido para ficar sozinho aqui. - Embora seu tom fosse educado, ele parecia levemente incomodado com a minha presença. Metido.
- Você quer dizer sozinho na minhasala durante o horário da minha aula? - Senti minha voz levemente irritada, mas talvez isso tenha sido a causa da risadinha baixa que ele deixou escapar.
- Você deve ser a professora de artes, não é? - ele falou enquanto chegava mais perto.
- E eu deveria saber quem é você? - Falei cruzando os braços. Agora ele sorriu. Céus, aquele sorriso quase me fez esquecer que ele estava me irritando com aquele ar de superioridade.
- Provavelmente, mas parece que é a única que não sabe quem eu sou… - aparentemente ele ia continuar a frase, mas ele foi interrompido quando a Beth, assistente social da escolinha, entrou na sala.
- Desculpe senhor Leroy, não consegui avisar a a tempo para não vir direto pra sala hoje. - Ele sorriu educadamente para Beth, mas ela não deixou que ele respondesse ao seu pedido de desculpas - , vamos lá para os fundos, já estão todos lá para a apresentação do senhor Leroy, pode deixar suas coisas aqui. Não o incomoda, não é?
- Beth, por favor, sem essa história de senhor Leroy porque me sinto o meu avô. E claro, não tem nenhum problema a deixar as coisas dela aqui. - Senti um leve deboche ao pronunciar meu apelido e tenho certeza que fechei a cara involuntariamente.
- Não pensei que teria problema em usar a minha sala, Beth. - Falei um pouco mais alto do que esperava, e ela me encarou com um olhar que lembrava a minha babá quando me repreendia na infância. Eu tinha entendido o recado, não contrariar a aparente divindade que se encontrava no recinto.
- Vamos? - Ela sorriu forçadamente antes de sair quase me empurrando pelas costas - Aguardamos o senhor, digo, você assim que estiver pronto.
Quando finalmente estávamos longe da sala, Beth tirou as mãos das minhas costas. Ela parecia nervosa.
- Talvez eu tivesse interesse em saber o que diabos está acontecendo aqui hoje. - Falei um pouco aborrecida. Estava tudo estranho e eu era a única que não estava entendendo nada.
- Você já sabe. A visita do chef francês. - Ela falou como se fosse óbvio. Pensei um pouco.
- Mas não ia ser semana que vem? Na sexta? Eu até iria vir especialmente para o evento. - Falei tentando entender e ela bufou.
- Sim, era. Hoje de manhã ligaram antecipando pra hoje, pois ele não poderia mais na próxima semana. Está uma loucura aqui desde cedo por causa disso, não estávamos prontos para recebê-lo hoje, mas não dava pra desmarcar e correr o risco de ele não vir. Aliás, desculpe por não a ter informado antes. - Ela sorriu e eu apenas retribui assentindo, pensando no quão óbvio era um cara com o tamanho do ego do “senhor Leroy” vir quando bem entendesse, sem se importar em cumprir o que foi combinado. Além disso, quando disseram que um chef francês viria palestrar na comunidade eu não imaginei que ele fosse tão jovem, nem tão bonito, nem tão malhado… eu definitivamente não tinha imaginado nada daquilo.
Eu estava distraída mexendo no celular quando ele se posicionou em frente a plateia. Só percebi porque os moradores começaram a aplaudir. Ele sorria e acenava, cheio de simpatia. Na mão esquerda trazia um toque blanche branquíssimo.
Ele começou a contar calmamente sua história de vida e tenho que confessar, era hipnotizante ouvi-lo falar. Ele era firme, intenso. Para minha surpresa, chef Leroy era cria do Morro dos Prazeres. Pelo menos foi até os oito anos de idade. O pai brasileiro, a mãe francesa. Depois de mais da metade da vida morando na França, ele estava de volta ao seu país de origem.
- Meu pai não era rico, ele era daqui. Minha mãe, francesa, não era rica. Eles deram muito duro na vida para me levar para França e me criar lá, na fazenda dos meus avós. Não tínhamos luxo e vivíamos da terra. Parecem realidades completamente diferentes, mas sabem o que tem em comum? A nossa perseverança é o que nos move. A nossa incapacidade de desistir ou de aceitar as circunstâncias que nos foram impostas. Não tenham medo de pensar grande, porque isso é o que vai tirar vocês do lugar. Acreditem que é possível, deem crédito aos sonhos de vocês. Quando a gente tem que descer da favela para o asfalto, a gente sabe que tudo é mais difícil. Mas não vamos deixar ninguém dizer o que podemos ou não fazer, ou quem podemos ou não ser. - Nesse momento eu percebi que todos os olhares estavam fixos naquele homem, absorvendo suas palavras - Aqui vocês têm uma oportunidade de estar em contato com educação, cultura, esporte… aproveitem cada segundo e usem isso para conseguirem descobrir o caminho que querem trilhar. Eu agradeço a oportunidade de estar aqui conversando com vocês e estou à disposição para perguntarem o que quiserem. - Nesse momento vários braços se levantaram, mas especialmente dos mais novos.
Eu sorri encantada com a animação daqueles meninos e meninas. Aquele discurso foi um sopro de motivação muito bem-vindo. Depois de cerca de 20 minutos de conversas, perguntas aleatórias e respostas divertidas, Leroy voltou a falar.
- É por isso que eu voltei para o Brasil, para abrir meu próprio restaurante aqui. Meu país, minha cidade, o lugar ao qual eu pertenço. E eu quero que parte da minha equipe seja formada por pessoas daqui, do Morro dos Prazeres. - Nesse momento, palmas e assovios frenéticos tiveram início - Os currículos poderão ser entregues até a semana que vem, para a Beth. Boa sorte a todos!
Observei as pessoas levantarem para cumprimentarem aquele homem com empolgação. Beth teve um pouco de dificuldade para chegar até onde estava o microfone.
- Pessoal, serviremos alguns salgadinhos e um bolo feito especialmente pelo chefe Leroy. As aulas desta tarde serão canceladas, mas vejo vocês amanhã.
Fiquei um tempo ali fora, participando daquele momento. Risos, música e conversas altas. As crianças não paravam. Embora me mantivesse afastada do nosso visitante, não conseguia deixar de observá-lo mesmo de longe, mas desviava o olhar toda vez que nossos olhos se encontravam. Por algum motivo, estava me sentindo estranha com a presença dele, poderia dizer até levemente incomodada.
Depois de um tempo, fui sozinha até a sala buscar minhas coisas. Estava sendo uma tarde legal, mas já que não teríamos mais aulas, achei que seria bom chegar mais cedo em casa. Talvez começasse até um quadro novo, quem sabe.
- Já vai embora? - Dei um pulo quando ouvi aquela voz atrás de mim. Virei rapidamente apenas para encarar aquele lindo homem encostado na porta. Meu coração acelerou, mas tenho certeza que foi pelo susto.
- A educação francesa envolve chegar repentinamente sem anúncio? - Falei com tom baixo, mas o deboche era evidente. Ele pareceu se divertir com meu comentário.
- Você não foi com a minha cara mesmo, não é? - Ele entrou definitivamente na sala, parando ao meu lado, próximo a mesa. Revirei os olhos involuntariamente. Juro.
- Acho que nem estive com você tempo suficiente pra isso, senhor Leroy.
- Por favor, não fomos apresentados adequadamente, meu nome é . Chega de senhor Leroy por aqui. - Sua mão estava esticada em minha direção.
- Sou , mas você já ouviu isso. - Preenchi sua mão com a minha. Senti seu toque suave, porém firme. O tom de noite da sua pele formando um bonito contraste com a minha. Talvez ele também tenha reparado nisso, porque ficamos algum tempo em silêncio encarando nossas mãos antes de soltar finalmente.
- Sim, eu ouvi . - Mais uma vez, ele me chamou pelo apelido, mesmo eu não tendo me apresentado assim. Ele era ligeiramente petulante ou era implicância minha? Acho que não devo ter feito uma cara muito boa, pois ele sorriu discretamente antes de continuar - Agora acho que já ficou tempo suficiente para não ir com a minha cara. Ainda que eu não consiga entender muito bem o porquê. - Agora ele parecia intrigado ao me encarar.
- Não tente me entender, eu não faço muito sentido. - Falei sincera, mas talvez se eu tivesse pensado um pouquinho antes de falar não teria soltado aquela frase, então só respirei fundo - Da próxima vez que for ocupar a sala de alguém, seja mais educado, chef Leroy. Agora como você gentilmente pediu mais cedo, vou deixá-lo sozinho.
- Você vai deixar seu currículo? - Ele perguntou de repente, antes que eu saísse pela porta e eu parei bruscamente.
- O que? - Me virei confusa em sua direção.
-MBeth disse que estava procurando emprego. Que tinha experiência trabalhando em bar. - Ele respondeu calmamente. Beth, mas que boca grande você tem! Fiquei o encarando sem palavras por alguns segundos, que na minha cabeça pareceram horas.
- Eu… - eu tava sem resposta - …eu não tinha pensado nisso. - Falei sincera. Eu tinha sido pega de surpresa com aquela pergunta.
- Como principal responsável pelo processo seletivo, acho que deveria participar. - Ele sorriu, parecendo repentinamente mais amigável.
- Acha que eu tenho perfil para alguma vaga? - O questionei seriamente. Apesar de tudo, a possibilidade de um emprego naquele momento era um assunto muito sério pra mim, independente de quem fosse ser meu chefe. Muita coisa estava em jogo na minha vida.
- Eu não teria perguntado se achasse que não. - Ele me encarava com um sorriso muito discreto, quase imperceptível no canto da boca.


Capítulo 2


Eu estava em Ipanema. O sol já estava fraco indicando que logo não poderia mais ser visto e ainda sim, o calor de março me abraçava. Eu estava encarando o belo imóvel à minha frente, com estilo rústico, porém refinado. De fato, trazia encantadoras referências das construções do interior da França. Era muito bonito.
- Olá! - Ouvi uma voz por trás de mim e me virei num pulo. Um homem alto, com tom de loiro avermelhado no cabelo e na barba sorria educadamente para mim. Ele segurava uma caixa grande nas mãos.
- Hm… Oi. - Falei um pouco sem graça.
- Pelo tempo que você está parada aí encarando, acho que gostou da fachada. - Ele correu os olhos de mim para a entrada do restaurante. Senti que corei por ter sido flagrada no meio do meu devaneio. Sorri um pouco sem graça - Mas eu entendo, eu também não me canso de olhar. Veio pra entrevista? - Ele perguntou de repente, reparando a pasta na minha mão. Eu confirmei com a cabeça e o sorriso dele aumentou - Bom, então acho que deve entrar. Meu nome é Caio, sou sócio daqui e…
- Caio! - Uma voz feminina estridente surgiu repentinamente entre nós - Você me deixou com todo o resto das coisas e nunca mais voltou. - Uma linda e alta mulher loira, carregando o que parecia duas sacolas pesadas, estava parada atrás de nós. O homem revirou os olhos, mas sem perder o bom humor.
- Essa é minha querida irmãzinha, Elen. - Ele me apresentou gentilmente. A mulher sorriu, nem tão simpática quanto o irmão, mas educada. - Essa bela moça, cujo nome ainda não sei, veio pra entrevista.
- Oi. - Falei, sorrindo, mas antes que eu pudesse dizer qualquer outra coisa, a mulher recomeçou a falar.
- O está lá dentro? Alguém precisa carregar isso pra mim ou meus braços vão cair. - Ela falou sem realmente esperar por uma resposta, pois antes que o rapaz pudesse dizer qualquer coisa, ela já havia entrado.
- Bom, vamos entrar. - Ele fez um sinal com a cabeça, eu sorri e o segui para o interior do restaurante. Quando chegamos ao hall, observei mais duas pessoas sentadas ali. Provavelmente também aguardando para a entrevista. - Você pode se sentar aqui, em breve alguém irá chamá-la.
Agradeci e me sentei, mas não sem antes correr os olhos por todo o local. A decoração era de muito bom gosto, e não pude evitar pensar que esse seria exatamente o tipo de lugar que eu frequentaria há pouco tempo atrás com a minha família e com o… balancei a cabeça discretamente a fim de afastar aquele nome. Eu não devia estar pensando no que tinha ficado para trás. Aquele restaurante agora era o tipo de lugar que eu trabalharia, se tivesse sorte. E era isso.
Talvez eu tenha ficado presa naqueles pensamentos tempo demais, porque quando minha mente voltou ao presente, eu vi a última pessoa antes de mim ser chamada. Imediatamente ajeitei meu corpo na cadeira. Desde quando eu tinha começado a ficar nervosa por estar ali?
Meus dedos batiam ritmados na pasta no meu colo. Na realidade, aquela era minha primeira entrevista de emprego formal, para uma vaga que muito possivelmente eu não era capacitada, mas eu definitivamente a queria, afinal, além do fato de precisar de um emprego de qualquer forma, aquele ambiente me parecia agradavelmente familiar e o salário deveria ser bem melhor do que o bar do Léo - com todo respeito e gratidão que eu devia a ele. No bar do Léo eu nem sequer precisei passar por entrevista, na verdade, bastou o convite do Léo e eu estava começando duas noites depois.
- Macedo. - A loira apareceu na porta, parecendo entediada. Quando me levantei, ela me guiou até uma sala menor e se afastou. Quando eu entrei, notei que o local era similar a um escritório. Havia duas mesas com computadores e uma pequena mesa redonda no centro, onde dois homens sorriam pra mim. Um sorriso genuinamente simpático, Caio. E um sorriso discreto, levemente surpreso, .
- Pode se sentar, senhorita Macedo. - Caio fez sinal com as mãos e eu me sentei. Foi Caio quem conduziu toda a entrevista, ele fazia perguntas e eu as respondia, mas eu estava começando a me sentir incomodada com o olhar de sobre mim, ele parecia analisar cada palavra que saia da minha boca, mas sua expressão não dava a menor ideia do que ele poderia estar pensando sobre elas. Eu estava começando a me sentir julgada e aquilo estava me irritando, eu só não podia demonstrar. De repente, soltou uma risadinha que fez com que eu e Caio imediatamente virássemos nossos olhares pra ele, claramente confusos de qual era a graça.
- Desculpe. - Ele falou dando mais um risinho, antes de retomar sua postura. - Mas é que, você fala inglês fluentemente?
- Sim. - Respondi ainda sem entender, pois eu havia acabado de responder exatamente isso para o Caio.
- E você fala francês? - Ele perguntou novamente. Precisei respirar fundo antes de responder novamente.
- Não tão bem quanto inglês, mas consigo me virar bem. - Talvez… talvez minha voz tenha soado impaciente, mas eu esperava que não.
- Isso é muito conveniente para nós, não acha, Caio? - Ele desviou os olhos de mim para encarar o sócio, que assentiu, parecendo satisfeito - No entanto, depois de ouvir um pouco sobre você, não posso deixar de me questionar algumas coisas. - Ele correu os olhos pelo meu currículo em suas mãos - Estudou nos melhores colégios do Rio de Janeiro, cursos de línguas em uma excelente escola de idiomas com intercâmbio e embora não esteja aqui, você mencionou que havia começado a estudar medicina e interrompeu. - Ele me encarou como se esperasse uma confirmação. Eu assenti delicadamente, mas meus punhos por baixo da mesa estavam fechados, minhas unhas pressionando as palmas das minhas mãos - Qual faculdade você fazia?
- Isso é relevante? – Sorri sem vontade. Eu não sabia exatamente onde ele queria chegar, mas se tinha algo que era quase insuportável para mim, era falar sobre uma vida à qual eu não pertencia mais. Que eu só desejava esquecer, pois ainda trazia muita mágoa dentro de mim, ainda que por vezes eu não admitisse isso e insistia em dizer que estava tudo bem.
- É só uma pergunta. - Ele respondeu sem explicações. Houve alguns segundos de silêncio antes que eu respondesse.
- PUC. - Minha voz mal saiu da minha boca e ele parecia satisfeito com a resposta que eu dei. Como se tivesse ganhado uma aposta que eu nem sabia que existia.
- Seu currículo é intrigante, o que me leva a pensar, por que uma garota como você está procurando uma vaga como essa? Você parece ter qualificações para… - Ele pareceu pensar por alguns segundos - … Outros tipos de vagas. - Eu podia sentir meu coração acelerado. O que eu iria dizer? A verdade? Que eu contrariei as expectativas dos meus pais e em troca havia perdido tudo que um dia eu tive? Naquele momento senti meu rosto queimar, eu não iria responder nada daquilo. Eu não ia me expor, nem a minha vida pessoal por emprego nenhum.
- Com todo respeito, - ou não, minha mente me corrigiu internamente - mas isso não é da conta do meu possível empregador. - Nesse momento notei que Caio também encarava , confuso e surpreso com a sua fala.
- Ela tem razão, isso não nos interessa, não é, ? - Ele pareceu chamar a atenção do sócio educadamente.
- Perdão, tem razão. Deixei minha curiosidade falar mais alto. O que nos interessa é: você gostaria de trabalhar aqui? - Seus olhos ainda me encaravam com a curiosidade mencionada por ele.
- Se eu estou aqui, não é mesmo? - respondi um pouco ríspida demais, mas eu sentia que ainda estava bastante irritada com aquele homem. Talvez Caio tenha percebido isso, porque e eu ficamos nos encarando por tempo demais.
- Então , acho que isso basta para nós. Seu desejo de estar conosco para realizar esse grande sonho, que é o Bistrô Provence. Nós iremos entrar em contato caso tenha sido selecionada para alguma das vagas disponíveis. Agradecemos seu interesse. - Caio esticou a mão para que eu acertasse, e assim o fiz antes de me levantar da cadeira. não disse uma palavra, apenas me observou, calado, mas quando eu estava na porta, pouco antes de sair, ouvi sua voz.
- Até mais, . - Me virei para encará-lo, e dessa vez, percebi nitidamente o sarcasmo na sua voz.

***


Naquela noite, eu não estava conseguindo dormir. Relembrar a entrevista e os questionamentos do disparou um gatilho em mim. É como se alguém estivesse tentando dizer em voz alta coisas que eu evitava pensar. Embora faltasse pouco para completar um ano que eu havia mudado completamente a minha vida, durante todo esse tempo, para sobreviver, eu havia mantido meus sentimentos bem escondidos dentro de mim. Eu tentava ser prática, para evitar sentir. E estava funcionando, por isso eu precisava continuar assim. Não pensar, significava não sentir. E isso era o que eu precisava.
Esquecer que eu tinha uma família que me amava e me apoiava, desde que meus desejos fossem iguais aos deles, que eu ia ser médica e ia me casar, que eu tinha minha vida praticamente toda pronta pra mim. Eu tive que deixar muita coisa pra trás para ser quem eu queria ser. Assim como a vovó teve que fazer, ela também abriu mão de muita coisa para seguir o coração, para ser quem ela era, uma artista e, estar morando na casa que um dia foi dela, com suas lembranças e sonhos, me aquecia o coração. Pensar nela sentada na sala, compondo seus sambas, pensar naquela casa viva, ecoando música, risos e alegria. Eu amava ouvir suas histórias, amava estar com ela, era como se alguém me enxergasse de verdade, não como a filha obediente, a aluna exemplar, a menina de sorte, a herdeira dos Macedo, apenas eu.
“Ah vovó, como eu sinto sua falta. E como agradeço que sua alma ainda esteja em cada detalhe desta casa”. Era como se eu ainda pudesse senti-la comigo, me abraçando, me confortando e me dizendo que eu havia tomado a decisão certa. Ela mais do que ninguém, me apoiaria. Não pude evitar o nó na garganta de saudade. Quase dois anos sem ela parecia uma eternidade e ao mesmo tempo, era como se tivesse estado aninhada em seu colo no dia anterior.
Com a cabeça cheia de pensamentos, desisti de dormir. Quando me mexi na cama para levantar, Paçoca resmungou, mas continuou em seu sono. Caminhei até a janela do quarto, abrindo uma fresta na cortina. O som dos trovões e os clarões no céu indicavam que logo cairia bastante água do céu. Olhei a rua escura e vazia próxima ao sobrado, onde uma vez ou outra ao longo do último ano, eu podia ver um bêbado equilibrista passando, cantarolando a alegria de estar vivo.
Abri algumas gavetas até encontrar três cigarros de palha soltos no fundo. Acendi um antes de caminhar até a sala. Peguei o conhecido disco de Dorival Caymmi da vovó e coloquei para ouvir a música que ela havia escrito pra mim, e tinha sido eternizada na voz de seu grande amigo e apoiador. Ainda assim, por melhor que fosse a canção de Caymmi, ouvi-la na voz da minha avó me fazia muita falta. Quando as primeiras notas de “Meu doce pardal” começaram, a chuva já estava torrencial e eu na metade do meu segundo cigarro. Fechei meus olhos, tentando esvaziar minha mente.

“Na gaiola o meu lindo pardal não canta/ele apenas espera a hora de voar/quando ouve de fora viola/suas asas começam a dançar…”

Rio de Janeiro, 2006

Vovó abriu a porta radiante, como sempre. Aquele sorriso aberto que sempre trazia com ela. Mesmo que naquele momento eu não estivesse tão animada, quando eu a via, tudo sempre ficava melhor.
- Vovó! - Sorri verdadeiramente me jogando em seus braços.
- Meu pardalzinho! - Ela me abraçou apertado - O que fizeram com os seus dentes? - Sua mão segurava docemente o meu queixo e eu lhe abri um enorme sorriso banguela.
- Caíram dois nesta semana! - Falei empolgada gesticulando exageradamente - Mamãe disse que daqui a pouco serei uma menina grande. - Minha avó sorriu.
- Mas é claro que vai. Uma linda mocinha. - Com as mãos no meu ombro, vovó agora voltou sua atenção para o meu pai, parado a sua frente segurando minha mochila – Oi, filho.
- Oi, Inês. - Eu nunca entendia porque o tom do meu pai mudava tanto ao falar com a minha avó, mas eu sentia que ela ficava triste toda vez. - , toma, leva suas coisas lá para dentro. - Peguei as coisas da mão do meu pai, ele me deu um beijo na testa e mandou que eu me comportasse, então entrei, mas ainda pude escutar a conversa lá na porta - Eu trouxe a , porque você sabe, ela insiste em ver a senhora mais do que eu acho necessário.
- Eu sei filho, e agradeço por poder passar um tempo com a minha neta. - Vovó parecia triste com a fala do meu pai, por isso, fiquei parada atrás da porta, onde eles não pudessem me ver.
- Amanhã às 16h eu passo para buscá-la.
- Ela não pode ficar até domingo? Fazem meses que não a vejo. - Senti a voz da minha avó vacilar.
- Acha que confio em deixar a minha filha um fim de semana inteiro com você e seus amigos de farra, mamãe? Ainda bebe como antes?
- Eu nunca fui alcoólatra, Rogério. E não, eu não bebo. Olha a minha idade, eu tenho alguma responsabilidade com a minha saúde embora você não acredite.
- Olha, ao menos isso. Ao menos com a sua saúde você tem alguma responsabilidade. Não podemos dizer o mesmo sobre a sua família. - Ouvi um suspiro cansado sair da boca da minha avó.
- Quando vai superar isso, Rogério? Quando vai deixar de ser injusto comigo?
- Acho que sabe a resposta. - Teve um longo silêncio depois disso.
- Por favor, deixe ela comigo até domingo. - Nessa hora eu quase apareci pra ajudar a vovó a implorar pra que eu ficasse mais, era o que eu queria também. Não houve resposta do meu pai - Por favor, Rogério.
- Sem roda de samba, sem músicos em casa, sem bebidas, sem suas histórias. Não quero que encha a cabeça da minha filha com essas ideias absurdas de arte e libertinagem. Ela não tem maturidade de entender a superficialidade de uma vida assim. - Eu não tinha entendido metade das palavras que meu pai havia acabado de dizer, mas meus ouvidos estavam bem atentos esperando uma resposta dele. Acho que vovó deve ter concordado porque em seguida ouvi meu pai dizer - Pego ela no domingo às 16h. Não deixe que eu me arrependa.
Quando minha avó fechou a porta e entrou eu estava parada no corredor, ainda segurando minhas coisas.
- Estava escutando atrás da porta? - Ela me lançou um olhar divertidamente desconfiado. Meu sorriso banguela me denunciou covardemente.
- Vou poder ficar até domingo. - Eu estava em êxtase.
- Sim, você vai pardalzinho. Vamos nos divertir muito bem juntinhas. - Minha avó envolveu meus ombros com o braço.
- Vovó, o que é “alcotrola”?
- O que? - Minha avó me encarou tentando entender minha pergunta.
- “Alcotrola”. Que você disse para o papai que não era. E liber… “libernagem”? - Essa eu não sabia mesmo como dizer.
- Você está se saindo uma bela de uma curiosa, hein. - Ela disse sem responder mais nada. Depois de um tempinho em silêncio, ela olhou para o papel que eu segurava em minha mão. - O que isso aí? - Segui seu olhar até a pintura.
- Ah, isso não é nada. É uma bobagem, como papai diz. - Falei me sentindo desanimada de novo. Eu havia saído da aula de artes muito empolgada, porque a professora havia dito que minhas mãos eram de uma artista pelo desenho daquele dia, mas quando mostrei para o meu pai ele não pareceu dar importância, disse que artista não é elogio, que eu deveria ficar feliz quando elogiam meu cérebro, como quando ganhei a Feira de Ciências da escola e que arte era bobagem para pessoas como nós.
- Mas isso é completamente impossível. É simplesmente a pintura mais linda de todas. - Vovó pegou a folha da minha mão, admirando com calma os detalhes do meu desenho - Nós vamos até emoldurar, colocar em um porta-retrato e deixar aqui na sala, para todos os meus amigos verem. - Ela parecia animada, o que me fez sorrir de novo.
Minha avó caminhou até uma gaveta tirando um porta-retrato grande de lá, tirou uma foto que eu não consegui ver qual era e no lugar colocou meu desenho. Ao lado da TV, colocou o objeto bem à mostra.
- Agora todos que chegarem aqui vão saber que a minha neta é uma artista. - Ela estava orgulhosa.
- Como você, vovó? - Perguntei me sentindo muito especial.
- Eu diria ainda melhor. - Ela sorriu carinhosamente - Você gosta disso?
- Eu amo isso! - Falei fazendo um movimento enorme com os braços.
- Então não deixe ninguém parar você, . Faça o que seu coração pedir, porque ninguém pode viver sua vida por você. E ninguém pode te dizer que é errado ser quem você é.


Embora eu sempre tenha lembrado daquela frase da minha avó, eu só havia percebido o peso delas depois de adulta. E toda vez que eu olhava para o meu desenho envelhecido, ainda no porta-retrato ao lado da TV, eu me lembrava delas. Eu me lembrava do porque estava ali, naquele bairro, naquela casa, naquela vida. Eu estava ali pra ser quem eu era de verdade.


Continua...



Nota da autora: Sem nota.



Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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