Finalizada em: 14/03/2022

Capítulo 21

Deixei a casa dos algum tempo depois, logo que voltou da farmácia. Cheguei em casa, por coincidência, juntamente com Amanda, que acabara de deixar o plantão no hospital. Estranhando o fato de eu ter chegado de algum lugar neste horário, ela questionou:
– Ué, o que você está fazendo aqui?
– Estava na casa de . – Falei.
– Uma recaída? Mas já? – Ela perguntou, sem entender.
– Não, sua tonta! – Eu ri. – Sofia estava doente, ele ficou meio desesperado e ligou para saber se eu estava no hospital e se poderia levá-la para que eu a examinasse. Para evitar que ele fosse com a criança para o pronto atendimento sem necessidade, me ofereci para ir até lá. – Expliquei, no percurso entre o hall do prédio e nosso apartamento.
– E o que ela tinha? – Mandy questionou.
– Herpangina, com certeza. Lesões muito características na úvula e no palato. Várias delas, coitadinha! E febre alta, resistente ao remédio. – Contei, com naturalidade para utilizar os termos médicos, uma vez que sabia que Amanda os entenderia.
– Certamente, então. – Ela concordou com a hipótese diagnóstica e logo perguntou: – E você e ? Se falaram algo?
– Na verdade, sim. Ele questionou os motivos para eu ter me afastado e tudo mais... Mas eu disse que preferia não dizer. – Expliquei, e ela torceu a boca, em desaprovação. – Amiga, o que eu podia fazer? Contar pra ele toda a verdade? Só ia fazê-lo ficar sem graça por ter dito aquelas coisas, sendo que ele tem total direito de me achar uma péssima pessoa para se envolver, e ele nem sabia que eu o estava ouvindo. Aí ele ia se desculpar, de novo, e ia ficar um clima péssimo. Nem era o momento pra isso. – Falei, na defensiva.
– Eu te entendo. – Ela concordou, apesar de seu rosto mostrar o contrário. – Mas não deixa de ser estranha essa história, né? As atitudes dele todas apontavam para um caminho diferente do que ele falou na ligação.
Dei de ombros.
– Por isso que eu não confio em ninguém com base nas atitudes... ou nas palavras – Eu ri, sem graça. – Por isso eu não confio em ninguém, nunca. – Falei.
Amanda torceu a boca, com pena, mudando de assunto logo em seguida para aliviar o clima.
– Ei, você vai fazer algo hoje à tarde? – Ela quis saber.
– Não que eu saiba... Só vou para o hospital à noite. Por quê?
– Queria procurar uma roupa para a festa dos novos internos no Velvet. Sabe quando foi a última vez que usei uma roupa de festa? – Ela fez uma pausa dramática. – Acho que, na época, suspensórios eram moda, junto com calças de cintura baixa.
– Sua exagerada!
Eu ri.
– Se quiser ir comigo, só vou entrar e dormir um pouco, porque estou exausta. Depois saímos e almoçamos por lá, pode ser?
– Pode! Vou tentar encontrar algo para mim também... Considerando que a última vez que saí para algum evento assim, foi com você, tenho medo de só encontrar no meu closet calças fuseaux e polainas. – Falei, entrando na brincadeira e rindo também.
Ainda faltava pouco mais de uma semana para a tal festa e, apesar de estar com o tempo contado, foi bom ter aquela momento no shopping com Amanda, experimentando roupas e planejando uma noite que tinha tudo para ser muito divertida.
Acabei comprando um conjunto de saia e cropped, que, embora deixasse meus ombros e costas desnudos, tinha mangas longas e soltas, além de uma saia no comprimento ideal para não mostrar demais. Optei por um sapato de salto, que me ajudasse a parecer mais alta do que todos os meus 168 centímetros de altura permitiam. Era bom não se vestir com pijamas cirúrgicos e sapatos crocs de vez em quando.
No dia da festa, modelei toda a extensão do meu cabelo em cachos largos e caprichei um pouco mais na maquiagem do que costumava fazer. Abrir mão dos óculos de grau e do rabo de cavalo de todo dia também fazia bem para a autoestima.
Cheguei com Amanda e outras duas colegas, que também eram residentes e compraram entradas para a festa. Como havia local disponível no carro, Mandy ofereceu carona e elas aceitaram.
Chegamos pouco mais de uma hora depois da abertura dos portões, quando o som já estava bem alto e a maioria das pessoas, muito animada. Fomos logo garantir nossas bebidas e também curtir um pouco da música.
Antes que eu pudesse perceber que algum tempo de festa já havia passado, comecei a ouvir as pessoas combinando um “after”. Jovialidade exagerada para minha alma senhoril, que era incapaz de passar horas dançando e bebendo em um lugar e sair de lá rumo a outro lugar para seguir fazendo a mesma coisa, muito embora a primeira parte da noite estivesse sendo muito divertida até então.
Anunciaram que o DJ contratado para ser a atração principal subiria ao palco em mais alguns minutos, e, antes que ele chegasse, eu e as meninas resolvemos ir ao banheiro para aliviar nossas bexigas e conseguir curtir todo o setlist sem interrupções.
No caminho para o banheiro, tive a impressão de ver um rosto conhecido entre a multidão, mas, sem meus óculos de grau e com tantas luzes coloridas que piscavam sem parar, eu não tinha um bom parâmetro para confirmar.
? O que aconteceu?
Amanda me empurrou de leve quando parei de andar para olhar, com os olhos semicerrados, me esforçando para enxergar.
– Pensei ter visto . – Falei, sacudindo a cabeça rápido para tirar aquela ideia da mente.
? Aqui? – Ela riu. – No meio de uma festa barata de universitários? Ai, , a falta de costume com os destilados está afetando sua sanidade.
– Sim! Você tem razão. – Dessa vez, eu ri, meio sem graça, e disse alto o suficiente para que ela ouvisse apesar do som tão alto. – Não se fazem mais Carinas como na época da faculdade. – Brinquei a respeito do nosso tempo de universitárias, quando a quantidade de destilados não me era um problema.
– Vem, vamos fazer xixi! – Amanda respondeu, me puxando pela mão, vendo que havíamos nos perdido das meninas que estavam conosco.
Mais alguns passos adiante, voltei a olhar na direção do bar, onde eu, supostamente, havia avistado . Mesmo com a visão míope e afetada pela bebida, eu seguia com a impressão de que era ele. Meio escondido com a cabeça baixa, um boné e a gola da camisa alta o suficiente para cobrir metade do rosto, mas a tatuagem no braço estava à mostra e seria muita coincidência alguém com tantas similaridades. Ao mesmo tempo, não fazia sentido algum que estivesse ali, tomando bebida barata em uma festa barata. Eu estava em um dilema com minha própria mente.
– Amiga, qual foi agora? – Mandy perguntou, impaciente, quando parei de andar mais uma vez.
– Nada. Vou te esperar aqui, tá? Não estou com tanta vontade de ir ao banheiro e... Acho que vou pegar uma água para ficar um pouco mais sóbria. – Expliquei, convicta de que não tinha bebido o suficiente para ter alucinações, mas decidida a voltar ao meu estado de consciência total.
– Tem certeza? Não vai sair daqui? – Amanda confirmou, gritando para que eu pudesse ouvir.
– Tenho. Vou pegar a água e volto exatamente para cá. Na terceira pilastra, da esquerda para a direita, sentido banheiro. – Falei, dando as coordenadas precisas de onde estávamos, para que ela soubesse que eu não ia me perder.
Minha amiga assentiu e foi em direção ao banheiro, enquanto eu caminhava em outro sentido, rumo ao bar para pedir uma garrafa de água. Pensava em quais motivos poderiam ter levado a aparecer ali, se é que era ele quem eu havia visto, e se havia a possibilidade dele saber que eu estava ali também.
– Ei, você!
Senti uma mão tocar um dos meus ombros e, num sobressalto, olhei para trás, na esperança de ver um rosto específico, mas me decepcionei ao ver outro.
– Oi? – Respondi, olhando o indivíduo com estranheza e voltando a procurar na direção do bar.
– Se lembra de mim? – O rapaz questionou, com a voz embriagada e um tom de desafio.
– Hum... Você é... Não, não me lembro, desculpe. – Falei, com sinceridade.
Ele se aproximou de mim para que eu pudesse ouvi-lo melhor e disse:
– Sou o Dr. Felipe, do 2º ano de Trauma. Te dei carona no estacionamento do hospital no outro dia.
– Ah! Você! – Falei, finalmente me lembrando do rapaz inconveniente que tinha me dado uma carona de dois minutos e insistira em um tom paquerador durante todo o tempo. – Me lembro sim. Tudo bem? – Tentei agir com simpatia, apenas para me despedir e seguir rumo ao bar para pegar a água que queria.
– Tudo! E você? – Ele perguntou, se aproximando de novo. – Não está bebendo?
– Não. Na verdade, eu bebi, mas acho que foi o suficiente por hoje. Estava, na verdade, indo pegar uma água. – Contei, já me movimentando para sair. Ao olhar para lá de novo, percebi que o rapaz parecido com havia saído e eu o perdera de vista.
– Tenho água aqui, você quer? – Felipe ofereceu, pegando uma garrafa na mesa logo atrás, enquanto eu seguia me esticando para tentar ver o rapaz no bar.
– Na verdade, não. Prefiro pegar uma cheia lá no bar, estou com bastante sede. – Justifiquei, a um passo de parar de tratá-lo com educação.
– Depois você pega mais, se quiser. Fica aqui um pouco, nem conversamos ainda, você está tão bonita… – Ele dizia, se aproximando mais e mais, enquanto eu tentava me esquivar, até que segurou meu braço.
– Felipe, você está sendo inconveniente, eu não quero ficar aqui. Solta o meu braço. – Falei, irritada, ao ver que ele realmente não queria que eu saísse.
Todo o meu esforço era em vão porque, apesar de me movimentar com bastante vontade de sair dali, Felipe era mais forte que eu. Ao perceber que eu não tinha interesse, começou a me segurar com bastante força, a ponto de machucar meu braço.
Tentei buscar Amanda com os olhos, no local que combinamos de nos reencontrar, mas ela ainda não havia saído do banheiro.
Justamente na hora em que pensei em gritar por ajuda, o tal DJ foi anunciado no microfone e as pessoas gritaram em conjunto por longos minutos, desde o momento em que ele subiu no palco até a primeira música começar, inclusive também em volume bem mais alto do que as músicas anteriores.
– Se eu te der um beijo, você muda de ideia? – O infeliz perguntou, com o rosto bem perto do meu, enquanto eu seguia tentando desviar.
– Não?! Qual o seu problema, hein? Me solta! – Falei, vendo sua expressão mudar para um traço de raiva por ter sido confrontado.
– Você se acha muito boa, né? – Ele perguntou, segurando agora meus dois braços com força. – Acha que está com moral para ficar escolhendo, mas tá longe de ser isso tudo. Você nem é tão bonita assim.
Confrontar um homem mimado, que não sabia ouvir “não” e que estava alcoolizado, não era lá uma ideia muito boa, mas não pude evitar.
– Ué, vai lá ficar com as melhores que eu, então. Já te falei que não quero nada contigo, me deixa sair. – Respondi, com ódio. Da atitude babaca e do fato de que eu não conseguia me soltar, por mais que tentasse.
Apesar do segundo de coragem antes da frase, logo comecei a sentir medo. Ninguém na festa parecia prestar atenção no que acontecia, pois o DJ estava no palco estreando seu setlist badalado.
Olhei para trás de novo, tentando visualizar Amanda mais uma vez, e, para o meu alívio, percebi que ela havia me visto e que vinha na minha direção, junto de Anita e Vera, as outras colegas que foram para a festa conosco.
Antes mesmo que as três conseguissem chegar perto, percebi outra movimentação vindo pelo outro sentido em nossa direção, e, antes que pudesse olhar, ouvi alguém dizer:
– Qual é a sua, cara? Solta ela!
E senti uma pressão forte, logo conseguindo me soltar dos braços de Felipe, ao passo que ele cambaleava para trás depois de um empurrão.
Tentei processar tudo o que estava acontecendo. Vi que Felipe tentava se reequilibrar de pé e que as meninas pararam de andar em nossa direção, surpresas ao verem algo. Me virei para trás para ver quem havia me ajudado e precisei de alguns segundos para processar a informação e concluir:
?


Capítulo 22

– Ele te machucou? – perguntou, se virando de frente para mim e ignorando Felipe, que precisou se apoiar em uma das mesas para não cair no chão.
– Na... Não. – Gaguejei, tentando entender o que estava acontecendo ali. Eu sabia que o havia visto!
Numa fração de segundo, aproveitando que estava distraído e preocupado comigo, Felipe revidou o empurrão, acertando em cheio o rosto do goleiro com o cotovelo e provocando um barulho bem alto.
– Ouch! – gritou, se afastando e protegendo o rosto com o braço.
! – Exclamei, no susto.
Amanda, Anita e Vera chegaram correndo, e a movimentação chamou a atenção de algumas outras pessoas em volta. Entre elas, de dois outros rapazes que vieram segurar Felipe antes que se formasse uma briga ainda maior.
– O que aconteceu? – Eles perguntavam enquanto o médico tentava, a todo custo, partir para cima de .
– Esse babaca aí incomodando as mulheres. – Uma das meninas reclamou.
Eu estava dividida entre olhar para garantir que Felipe estava contido e olhar para para saber se ele estava bem.
– Se não sabe ouvir “não”, tem que ficar em casa, amigão! – Ouvi um dos rapazes dizer, enquanto “escoltavam” Felipe para outro lugar.
Quando vi que finalmente o médico não conseguiria sair, corri na direção do goleiro.
– Você se machucou? – Perguntei, mais uma vez, me aproximando da mesa onde tinha se apoiado.
Ele tocava seu próprio rosto e olhava para a mão na sequência, aparentemente tentando enxergar sangue, mas as luzes coloridas não ajudavam.
– Acho que quebrou meu nariz. – Ele respondeu, gemendo de dor.
– Vem aqui, deixa eu ver.
Puxei o rapaz pelo braço, guiando-o até um local menos tumultuado e com iluminação melhor. Passamos por uma pequena porta na qual estava escrito “acesso restrito”, que nos levou a uma área externa, onde havia uma caçamba de lixo, alguns entulhos, um amontoado de caixas de madeira e um único poste, que, por incrível que pareça, sozinho, iluminava bem mais do que com aquelas luzes coloridas de dentro do lugar. As meninas vieram atrás, mesmo sem entender muito bem.
– Senta aqui, deixa eu dar uma olhada. – Eu disse, sugerindo que se sentasse sobre uma das caixas de madeira para que eu pudesse alcançar seu nariz com maior facilidade, já que o goleiro media quase dois metros de altura e, mesmo com meu salto novo, eu não ficava alta o suficiente.
– Peraí, você não é aquele cara... que joga no... Naquele time de futebol? – Vera perguntou, parecendo reconhecer .
O jogador sorriu sem graça e assentiu, apesar da expressão de dor.
– Vocês se conhecem? – Anita completou, também parecendo surpresa, mas foi ignorada.
Eu tentava analisar, por vários ângulos, se o nariz estava quebrado ou não, enquanto Amanda ajudava iluminando o rosto de com a lanterna de seu celular.
– Você acha que quebrou? – Ele perguntou, preocupado, ainda com a cabeça inclinada, como pedimos que ele fizesse, para avaliarmos o septo.
– Não! Acho que não. – Respondi. – Amanda, o que você acha? Você está mais acostumada a ver ossos quebrados do que eu.
Trocamos as posições e eu passei a iluminar o nariz do jogador enquanto Amanda analisava. Anita e Vera seguiam atônitas observando.
– Não quebrou! No máximo deslocou o osso nasal, mas consigo realinhar isso aqui em 5 segundos. Posso? – Ela concluiu, pedindo autorização ao goleiro para tocar seu nariz.
– Você o quê? Vai mexer no meu nariz aqui?
O jogador parecia apavorado e olhava para mim na esperança que eu fizesse algo.
– A Amanda é ortopedista, vai dar tudo certo. Calma. – Falei para tranquilizá-lo.
– Bom, teoricamente, ainda não sou ortopedista, mas eu sei realinhar um nariz, cara. Fica tranquilo. Se esperar e calcificar, vai ser pior. – Mandy disse.
– Se calci… O quê? Ai, meu Deus. – O goleiro resmungou, fechando os olhos, pronto para sentir uma dor terrível.
– Vou no 3. – Amanda avisou – 1, 2...
– Ei! Vocês não podem ficar aqui.
Um segurança apareceu, bem na hora, vendo que estávamos em local restrito.
– Amigo, eu estava no meio de algo aqui. – Amanda reclamou por ser interrompida, com uma mão segurando o nariz de e a outra segurando a cabeça do jogador por trás da nuca.
A cena seria cômica se não fosse trágica.
– Moço, nós sabemos. Mas o meu amigo aqui se machucou e nós somos médicas, estamos apenas tentando ajudá-lo e já vamos embora. – Expliquei.
– Hum. – O segurança disse, desconfiado – Nesse caso, tudo bem. Mas não demorem! Não quero ter problemas por causa de vocês.
– Não vamos demorar! – Respondi, agradecida. – Será que você consegue me arrumar um pano e um pouco de água? – Pedi, tentando não abusar demais, a fim de limpar a parte do rosto de que estava suja de sangue, provavelmente por algum vaso sanguíneo que foi rompido com o impacto da cotovelada.
Logo que ele apareceu, virou o rosto para o outro lado e seguiu assim até o rapaz sair dizendo que ia tentar encontrar o tal pano e água. Eu deduzi que o jogador temia ser visto com um machucado após uma briga em uma boate. Era, de fato, um amontoado de informações que daria uma notícia terrível, daquelas do jeitinho que Veronica gostava para levar aos advogados.
– Certo, agora vou. – Amanda avisou, retomando a posição para realinhar o nariz de . – 1, 2...
O som de “crack” se misturou ao grito de dor do goleiro.
– Pronto. Me desculpe. – Ela pediu. – Mas seu nariz está ok agora.
– Obrigado. Eu... acho. – agradeceu, com ar sofrido.
– Consegui um kit de primeiros socorros com o pessoal da organização. – O segurança voltou, trazendo consigo uma pequena maleta.
Internos, apesar de tudo, eram fofinhos. Nas festas dos residentes, a última coisa que alguém encontraria se precisasse seria uma caixa de primeiros socorros.
– Ótimo. Muito obrigada! – Agradeci, pegando a maleta, já abrindo para ver o que podia encontrar lá dentro.
– Meninas, agora que já está tudo bem, por que não voltamos e deixamos a terminar? – Amanda disse, enfatizando que queria nos deixar a sós. As três saíram pela porta por onde entramos e Mandy apontou para seu próprio celular, dizendo, com gestos, que estaria com o aparelho em mãos e que, quando eu acabasse, poderia enviar uma mensagem a ela.
– É só pressionar a ponta do nariz e esperar. Deve parar de sangrar daqui a pouco. – Falei, sem olhar para , enquanto entregava a ele um pedaço de gaze embebido em soro antisséptico, ambos encontrados entre os materiais de primeiros socorros.
. – Ele chamou, percebendo minha falta de envolvimento.
– Assim que puder, também seria bom colocar gelo aí, para não inchar. – Continuei falando, sem mudar meu tom impessoal, ignorando o fato dele ter me chamado.
– Ei, obrigado! Você já ajudou o suficiente com meu nariz. Por favor, me escuta. – O jogador reclamou, me obrigando a olhar para ele.
– O que há de errado com você, hein? – Questionei, bufando irritada. – Eu parei de responder suas mensagens e, em vez de entender que não quero falar contigo, você aparece num evento do meu trabalho? Como você sequer sabia que eu estava aqui? Qual a dificuldade que vocês homens têm em entender um “não”?
, não faz assim. Eu sei que aconteceu algo, porque, em um dia, estávamos bem e, no outro, já não. Você simplesmente parou de responder minhas mensagens e de falar comigo... – Ele disse de novo, mantendo um tom carinhoso. – Eu gosto muito de você para não me importar com algo assim. Eu só quero entender.
– Gosta muito de mim? – Eu ri. – Você nem me conhece, . E nem eu conheço você. – Resmunguei, e ele me olhou com estranhamento, perguntando:
– Por que você diz isso?
– Por quê? – Fiz uma pausa para pegar fôlego, indignada por ele nem sequer imaginar o motivo. – Porque eu achei que te conhecia o suficiente para decifrar seus pensamentos pelas suas atitudes. E pensei que tínhamos isso em comum, mas logo descobri que, para você, eu sou imatura e sentimentalista, bitolada no trabalho, insegura... Então por que você se importa tanto com alguém assim? – Desabafei, com raiva, sem nem pensar muito antes de falar. Apesar do susto ter me deixado sóbria em um instante, o pouco que bebi ainda estava influenciando minhas emoções.
– Quem disse que penso isso de você? – O goleiro perguntou, sem entender, como se nunca tivesse dito tais palavras. Isso alimentou minha raiva e eu respondi, aumentando o tom:
– Você disse isso, ! Se alguém tivesse me contado, eu não acreditaria. Então que bom que ouvi da sua própria boca.
Ele continuava parecendo não entender, até que, algum tempo depois, algo se encaixou em sua mente, fazendo-o se lembrar.
– Meu Deus. Você ouviu? No dia do jogo de cartas? Mas... como?
Revirei os olhos.
– Talvez você devesse conferir se desligou a ligação com a pessoa antes de começar a falar mal dela para os seus amigos.
cobriu o rosto com as mãos, parecendo desacreditado.
, por Deus, não é o que você imagina... Me deixe explicar. – Ele pediu, em desespero.
– Eu não estou imaginando, eu ouvi. – Falei. – Mas não se preocupe, . Você tem todo o direito de pensar o que quiser sobre mim. E de falar o que quiser, também. – Completei, dando de ombros. – Mas eu tenho o direito também de não querer manter contato com alguém que pensa sobre mim como você. E que trata das minhas inseguranças com tão pouca sensibilidade, mesmo depois de fingir que se importava com elas.
– Não adianta justificar, porque você não vai acreditar, eu sei... Mas me escuta, por favor! Me deixa pelo menos tentar explicar. – Ele pediu, e eu dei de ombros, conformada. – Naquele dia, meu irmão estava em casa comigo. – contou – E ele é essa pessoa que pergunta o tempo todo sobre os meus relacionamentos, faz perguntas inconvenientes e comparações. Eu tentei tirar o foco da conversa, mas ele insistiu, então decidi dizer tudo aquilo para soar convincente e ele parar. Mas eu juro, juro por tudo que nada do que disse era verdade. – explicava, parecendo irritado consigo mesmo. – Eu nem acredito nas coisas que eu falei. Foi tudo da boca pra fora, eu te juro. E foi tão insignificante que eu já nem me lembro mais de tudo o que disse.
– Quer que eu te lembre? – Perguntei, com sarcasmo, cruzando os braços.
... Por favor, não. – Ele parecia arrependido e chateado por estar sendo tratado com tanto desdém.
Revirei os olhos, ainda evitando contato visual com o goleiro. Assim ficamos por alguns segundos, até que ele disse:
– A verdade é que as perguntas de Ramón me incomodaram muito, . Como jamais fizeram quando eram sobre outra pessoa. – dizia, cabisbaixo. – Porque elas me fizeram perceber que eu gostava de você. E que queria você de um jeito que não podia querer, porque não era o que combinamos e você fazia questão de sempre repetir isso. – O jogador me olhou por alguns segundos antes de voltar a encarar o chão à sua frente. – Então, como um tolo, na tentativa de não ser visto na posição de rejeitado, eu...
– Tentou me rejeitar primeiro? – Eu ri, mesmo sem achar graça. – Típico de homem.
negou com a cabeça.
– Não foi uma atitude de homem, . Foi a atitude de um babaca, e eu sinto muito! Sinto muito que, de todas as coisas que eu falo e penso sobre você, você tenha dado o azar de ouvir justamente aquelas que eu não quis dizer de verdade. – O goleiro contou. – Você é uma das pessoas mais incríveis, maduras, dedicadas e fortes que eu já conheci. E você é linda, . por dentro e por fora! Eu admiro o quanto você se dedica aos seus pacientes, a ponto de deixar um jantar pela metade para ir ajudar uma criança durante uma cirurgia, ou acordar no meio da madrugada de um dia de folga e ir até a casa de um pai de primeira viagem que não sabe cuidar da febre da filha... – Ele dizia, se atentando às minhas expressões para ver como eu reagia ao que ele falava. – E se isso é um exagero, é um exagero bom. E mostra quanta vocação você tem para fazer o que faz! Eu nunca vi isso como algo negativo. – Ele completou, olhando para mim, que não conseguia parar de fitar o longe, negando com a cabeça enquanto sentia meus olhos se encherem de lágrimas. – E, sobre insegurança, não é que isso seja uma qualidade, mas, depois de passar pelo que você passou, é inevitável e eu sei disso. Foi ridículo e insensível da minha parte ter mencionado assim, sem tato. E, ainda sobre isso, é incrível que você tenha conseguido dar a volta por cima, sem deixar isso te impedir de realizar seus sonhos. Queria conseguir provar para você tudo o que estou dizendo agora, mas não posso. Espero que você acredite. Me perdoa! – Ele pediu, e eu assenti, com certa pressa, apertando as pálpebras numa tentativa de conter as lágrimas. Quem sabe se eu dissesse que o perdoava, ele finalmente iria embora?
Embora insistisse que não quisera dizer aquelas palavras, eu as havia ouvido. E elas foram muito reais e incisivas. Não poderia simplesmente substituí-las pelas palavras que ele dizia agora, embora quisesse muito e achasse que elas combinavam bem mais com a personalidade do goleiro que eu conhecia, ou que pensava conhecer. Minha mente estava em um impasse.
– Está bem, você queria entender o que aconteceu. Já entendeu, já se desculpou... Terminamos? – Perguntei, limpando rápido uma lágrima que escorria antes que ele pudesse ver.
– Ainda não. Tem algo mais que quero te contar. – Ele adiantou. – Na quinta-feira dessa semana, saiu a decisão judicial definindo o regime de guarda da Sofia como compartilhada-alternada. Uma semana com cada, como estivemos tentando esse tempo todo. – disse, mudando o assunto.
Não pude evitar o sentimento de alegria que me invadiu, mas tentei não transparecer e disse:
– Uau! Parabéns! Fico feliz por vocês.
– E, no dia anterior, jogamos pelas quartas de final da Champions e vencemos. O que significa que nos classificamos para a penúltima fase do campeonato mais importante que o time disputa. – dizia, parecendo chateado apesar das notícias boas.
– Eu ouvi mesmo dizer! Parabéns, mais uma vez. – Parabenizei, ainda sem entender a melancolia.
– Desde que paramos de nos ver, , eu sinto falta de algo. Pensei que fosse falta do sexo, e isso foi até fácil de resolver, mas só me fez perceber que não era o que faltava. – Ele explicou, envergonhado. – No dia que você foi me ajudar com Sofia, mesmo em meio ao caos, eu me senti preenchido por estar ali com vocês duas. E isso é muito louco, porque eu não sou essa pessoa, nunca me senti assim...
Continuei ouvindo, sentindo um frio na barriga terrível.
– E tudo me atingiu muito mais forte depois do jogo e depois que recebi a notícia sobre a guarda, porque eu percebi que queria poder comemorar com você, e que já não podia mais, porque você estava chateada comigo e eu nem sabia o porquê. – Ele explicou, com tristeza. – Quando percebi você se afastar, me toquei que pior do que ser rejeitado por você seria te perder sem saber o porquê. E foi por isso que vim até você. Vi pelo Instagram que estaria aqui, e vim. Vim para te dizer que, se existe qualquer interesse da sua parte em sermos mais do que somos, ou que éramos – Ele corrigiu. –, você pode saber que é recíproco...
Eu percebia que ele me olhava fixamente, mas simplesmente não conseguia olhar de volta.
– ... E que eu prometo compensar cada uma daquelas coisas que eu disse, se você me der a oportunidade. – O goleiro finalizou, e eu neguei com a cabeça, em perplexidade.
. Isso é... muito. – Falei, depois de ficar alguns segundos engasgada, sem conseguir emitir qualquer som. – É muito para entender, muito para processar, muito para uma noite só. Minha nossa!
– Tudo bem. – Ele disse para me tranquilizar. – Não precisa falar nada agora. Eu que não poderia deixar de te falar essas coisas. E de torcer para que, no fundo, você sinta o mesmo.
Neguei com a cabeça, não por discordar do que ele dizia, mas por não acreditar que tudo aquilo estava de fato acontecendo.
– Mas tudo bem também se não sentir. – Ele disse, com um sorriso sem graça. – O mais importante para mim agora é saber se você me perdoa. Estamos bem?
Assenti, com os lábios trêmulos, sem conseguir emitir uma palavra.
– Certo. Então já vou indo. – se aproximou para beijar meu rosto com carinho e completou, em tom de despedida: – Você vai ficar bem aqui? Aquele cara não vai voltar a te incomodar?
– Vou ficar bem! Não se preocupe.
Sorri amarelo.
– Amigos?
Ele esticou o dedo mindinho na minha direção, me arrancando uma risadinha.
Fizemos o trato “amigos?” “amigos!” logo que definimos nossa amizade con derechos. Foi impossível não lembrar daquele momento quando ele perguntou, e eu respondi, num sorriso murcho:
– Amigos.
Apertei de volta seu mindinho e, em seguida, observei conforme o rapaz se distanciava, rumo à porta de acesso de volta para o salão principal da festa e, de lá, até a saída da casa noturna.


Capítulo 23

– Por que homens agem como idiotas perto de outros homens, hein? – Amanda questionou, revirando os olhos, logo que nos encontramos no banheiro, como combinamos por mensagem.
Era o único lugar que seria fácil de encontrarmos uma à outra em meio a uma boate cheia como aquela. A música ainda tocava alto no lugar e as paredes do banheiro abafavam um pouco o barulho, nos permitindo conversar. Nos sentamos no parapeito da larga janela, que dava para uma área externa cheia de plantas, e era largo o suficiente para minimizar os riscos de cairmos dali.
Dei de ombros, e ela fez outra pergunta:
– E você? Como se sentiu com isso?
Amanda parecia curiosa, porém já aguardava uma má notícia pela minha expressão pouco satisfeita.
– Eu fiquei em uma encruzilhada, né, amiga? – Falei, com desapontamento. – É fácil ele simplesmente vir aqui e voltar atrás em tudo o que disse, mas como eu acredito nisso agora? Depois de ouvir tudo o que ouvi... Logo eu, que já não confio em ninguém. Não dá! – Expliquei.
– O que você teme que aconteça? – Ela perguntou, tentando compreender.
– Que não seja verdade. Que ele só tenha feito isso por... Sei lá, sentir falta de mim na cama. – Falei, em tom baixo, mesmo sabendo que o banheiro estava vazio. – E que quando voltar a ter isso, não vai querer mais nada. Quem garante que ele sente mesmo falta de mim e não do que eu faço? – Expus uma das minhas preocupações, e Amanda respondeu, tentando não ser sarcástica:
– Amiga, mas será que ele teria mesmo essa disposição? De cruzar a cidade, enfrentar uma boate universitária e se declarar... Só para voltar a transar com você? – Ela riu. – O que você tem aí embaixo? Heroína?
Fui obrigada a rir também.
– Mas ele pode estar agindo por impulso. E se formos além e, de repente, todas essas coisas que antes ele tinha dito que eram defeitos e agora diz que não são voltarem a ser defeitos para ele? E ele me rebaixar de volta ao status de amiga de cama, porque é isso que eu faço bem? – Desabafei com Amanda, que negou com a cabeça por alguns segundos antes de me responder.
– Sabe o que eu acho? – Ela perguntou e, ao me ver negar, explicou: – Acho que Rugan bagunçou sua mente com aquele relacionamento tóxico dele. Te fez acreditar que você não tem nenhum outro valor além do sexo. E você não pode acreditar em algo tão irreal sobre si mesma, ! – Ela dizia enquanto eu me concentrava em absorver suas palavras.
Fazia sentido o que Amanda dizia. Rugan fazia tantas críticas à minha personalidade e às minhas atitudes que era fácil pensar que eu não tinha qualquer valor fazendo outra coisa além daquilo que fazia e ele não reclamava.
– Quando você acredita que não pode ter vindo aqui porque sente falta de você como pessoa, como companheira, como amiga... Você anula todas as suas outras qualidades. E você precisa se lembrar que elas existem, mesmo que um babaca tenha te feito duvidar delas algum dia. – Mandy disse, com firmeza. – Se o bonitão tatuado está dizendo que gosta de você e que quer tentar algo a mais com você... Manda ver, amiga! Você quis por tanto tempo que ele correspondesse. Não foi? – Minha amiga finalizou, me deixando reflexiva.
– E se eu estragar tudo? – Perguntei, trazendo o tom tenso de volta à conversa.
– É uma possibilidade, você vai ter que viver com isso. Mas também há a possibilidade de dar tudo certo e você ser feliz com ele como ainda não foi com ninguém. Acho que você tem que ouvir seu coração e não seu medo dessa vez.
Ela deu de ombros.
– Li uma mensagem no Réveillon que dizia para “não viver o mesmo ano 75 vezes e chamar isso de vida”. A gente precisa deixar a vida surpreender, de vez em quando. – Mandy contou. – Acho que é uma boa forma de pensar.
Assenti, absorvendo os conselhos recebidos.
– Sim! Mas, agora, vamos lá terminar de fazer o que viemos até aqui fazer. – Amanda me puxou pelo braço até o caminho de volta para o salão.
Peguei mais uma bebida e me permiti desfrutar daquele momento de lazer, sem qualquer pressão para tomar uma decisão. Pelo menos por enquanto.
O que quer que fosse acontecer da minha relação com aconteceria – se tivesse que acontecer – da forma certa e no momento certo. Também era bom pensar assim.

Dois dias depois da festa, cheguei ao hospital na parte da manhã e notei uma movimentação estranha no andar principal. A sala de brinquedos estava interditada e pessoas entravam sem parar carregando e deixando caixas lá dentro.
– O que está havendo aqui? – Perguntei, diante da porta, algum tempo depois de ficar parada ali, segurando meu copo de café e observando.
– O hospital recebeu uma doação de brinquedos. Vamos deixar o lugar interditado até que eles sejam higienizados e organizados nos lugares. – Um rapaz da organização respondeu, deixando outra caixa lá dentro.
– Uau! Quem doou isso tudo? – Perguntei, surpresa.
– Não sei. Não me disseram! – Ele respondeu, dando de ombros.
– Deve ter sido alguma escola, porque isso aqui é brinquedo demais! – Falei, ainda surpresa.
– Tem coisa nova aqui, ainda dentro da embalagem. – Ele completou, também surpreso.
Nesse instante, ouvi meu celular tocar e pedi licença para atender, vendo que se tratava do meu preceptor de pediatria.
– Pois não?
– Dra. Valbuena, aqui é o Armando, bom dia. Você já chegou ao hospital? Estou reunido com Elis e Alan na sala de imagens, gostaria que você se juntasse a nós. Estamos avaliando o resultado dos exames de imagem de um dos nossos pacientes. – Ele disse, e eu prontamente respondi que estava a caminho.
A sala de imagens é um dos lugares mais eficientes para discussão de opções de tratamento, porque contém vários monitores em tamanhos variados e combina diversas imagens laboratoriais para que possamos analisá-las atentamente, buscando por detalhes que podem ser cruciais na decisão por um método ou outro.
– Com licença. – Pedi, após bater à porta e abri-la.
– Valbuena, entre, por favor. – Meu preceptor disse, me convidando para me juntar a eles. – Estamos analisando os exames de Mateo Sánchez.
Me aproximei dos três médicos reunidos em uma mesa redonda no centro da sala, mas não me sentei.
– Os exames de antes e depois do tratamento não mostraram melhora significativa do quadro, . Mesmo com os medicamentos. – Armando explicou, me colocando a par da situação.
Me aproximei do monitor, pedindo licença para tocar a tela e movimentar a imagem de tomografia, de modo que me desse melhor visibilidade.
– Como eu ia dizendo anteriormente, doutores, minha sugestão é iniciar os cuidados paliativos o mais rápido possível e encaminhar o paciente para casa, para liberarmos o leito a outros pacientes que estão aguardando transferência. – Dra. Elis disse, com certa insensibilidade.
– De acordo. – O oncologista Alan concordou, retirando os óculos num claro sinal de rendição.
“Como assim? Não vamos sequer discutir outras opções?”, pensei, mas segui observando estarrecida, na esperança de que Armando fosse dizer algo do tipo e comprar comigo a briga por esse paciente.
– De acordo. – Ele disse, parecendo chateado pela decisão, após mais alguns longos segundos observando o conjunto de exames de Mateo.
– De acordo, Dra. Valbuena? – Elis perguntou, me apressando para confirmar que também concordava com sua proposta de seguimento para oficializá-la e finalizarmos a reunião.
– Não. – Respondi, sem pensar.
– Perdão?! – A médica questionou, indignada por eu não ter concordado.
– Não! Existem outras opções, e eu gostaria que elas fossem debatidas e levadas em conta. – Respondi, decidida a não “jogar a toalha”.
– E qual seria sua sugestão, doutora? – Alan perguntou, sem muita confiança. Os residentes do primeiro ano, como eu, eram quase sempre tratados assim. No começo, eu me incomodava, depois aprendi a ignorar.
– Potencializar o esquema VAC com irinotecano ou topotecano seria uma opção? – Perguntei diretamente a Armando, que parecia ser o único ali a validar minha opinião.
– Infelizmente, existe um risco grande de neutropenia por conta das radioterapias às quais o paciente foi submetido anteriormente, , o que inviabiliza o uso destes medicamentos. – Ele lamentou ao me responder.
– Mas se o tratamento for combinado com o transplante de células estaminais do próprio paciente? O risco diminui, não é mesmo? – Questionei.
Elis revirou os olhos, mas eu fingi que não vi. Alan retrucou:
– Seria muito agressivo, . O paciente pode nem sobreviver.
– Ele não vai sobreviver se nada for feito também. – Respondi, de pronto.
Armando seguia pensativo.
– O conselho jamais aprovaria algo assim, garota. Você tem ideia do quanto esse tratamento custaria ao hospital? – Dra. Elis discordou novamente. – O paciente sequer tem um plano de saúde, e eu duvido que qualquer plano cobriria esse tipo de intervenção. Não compensa os gastos que geraríamos à família dessa criança sem ter um prognóstico favorável.
Apesar de confiar na minha proposta de tratamento, esse ponto era verdade. O conselho deliberativo do hospital precisaria aprová-la, e as chances de isso acontecer eram mesmo muito pequenas. Mateo não tinha plano de saúde e sua família era muito simples, não conseguiriam arcar com um tratamento tão caro.
– Eu acho que deveríamos pelo menos dizer à família dele sobre a possibilidade. Talvez consigam fundos por meio de programas sociais ou vaquinhas online. – Falei.
Um silêncio pairou no ar e Elis revirou os olhos mais uma vez, num claro sinal de desaprovação.
– Vocês jovens vivem no mundo da lua. – E aproveitou para declarar assunto encerrado, se despedindo antes de deixar a sala. – Se estamos todos de acordo, preciso ir. Tenho uma cirurgia agora mesmo. Com licença.
– Também vou. Vocês comunicam à família? – Alan perguntou antes de também sair.
– Armando, eu não entendo! Por que não podemos ser francos com eles? – Perguntei quando só restavam eu e meu preceptor na sala.
, querida... Eu admiro muito seu empenho, mas é muito cruel dar esperanças tão irreais assim a uma família. – Ele dizia, parecendo chateado também, apesar de mais conformado que eu. – Eles teriam que ter fundos imediatos para iniciar o novo tratamento o mais rápido possível. Mesmo que a vaquinha fosse um sucesso, seria uma corrida contra o tempo. A medicina é limitada, e às vezes precisamos usar essa justificativa para confortar os familiares. Como pai, eu te digo, será mais sofrido ouvir que existe algo capaz de salvar o filho e perceber que eles não conseguem pagar por isso, por mais que queiram, do que ouvir que nada mais pode ser feito e que eles fizeram o melhor que podiam.
Comecei a sentir meus olhos se enchendo de lágrimas, mas me esforcei para permanecer forte. É muito frustrante lidar com situações assim, principalmente em casos de pacientes com os quais estamos muito envolvidos.
– Precisamos ir até lá comunicá-los. Nesse momento, é preciso acolher a dor dessa família, com respeito e sensibilidade. Você consegue! – Armando completou, com carinho.
Respirei fundo e segui caminhando com ele pelos corredores do hospital, em direção ao quarto onde estava o paciente em questão.
– Oi, Isabel. – Cumprimentei a mãe de Mateo, que lia um livro distraidamente sentada ao lado da cama onde o filho caçula dormia. Os muitos fios ligados ao seu pequeno corpinho verificavam seus sinais vitais, até então estáveis.
! Oi, minha querida. Como vai? Mateo acabou de cair no sono. É uma pena, ele iria adorar te ver. – Ela disse, num sorriso.
– Você tem um minutinho? Podemos conversar? – Pedi, ainda controlando a respiração para não chorar. Ela logo percebeu que não teríamos uma conversa leve e descontraída como de costume, porque rapidamente se levantou e saiu comigo do quarto.
Desenvolvi, logo nos primeiros dias de residência, um protocolo pessoal de não conversar sobre o quadro das crianças com seus responsáveis estando perto delas. Mesmo que estivessem dormindo. Sempre convidava os pais para o lado de fora do quarto, ou do box do CTI, qualquer lugar onde os pacientes não pudessem ouvir. Para mim, cabia a eles absorver e processar as informações primeiro, para depois escolher se e como passá-las aos filhos.
Dr. Armando também tinha esse costume e esperou por Isabel do lado de fora do quarto junto comigo.
– O que houve? – A mãe de Mateo disse, assustada.
– Sra. Sánchez, fizemos hoje uma análise dos exames recentes de Mateo. As análises clínicas e também os exames de imagem que ele fez antes e durante o tratamento. – Falei, me esforçando para finalizar as frases. – Infelizmente, o prognóstico não é bom. A medicação não está sendo suficiente para controlar o foco canceroso nos pulmões.
– E o que faremos, então? Ele precisará de uma dose mais forte? Como reverteremos isso, doutora? – Isabel perguntou, preocupada, observando o filho pela janela na porta do quarto.
– As sessões de quimio e rádio não têm demonstrado eficácia. O organismo e a imunidade de Mateo estão sendo debilitados por esses tratamentos e o resultado não o está curando, apenas o deixando mais doente. Então, nós, como médicos responsáveis pelo tratamento dele, estamos considerando adotar um sistema de cuidados paliativos, para que ele tenha mais qualidade de vida e menos sofrimento... – Dr. Armando tomou a frente da explicação, percebendo minha dificuldade. – Acreditamos que será melhor para ele.
– Cui… dados pa-paliativos? Isso significa que não há mais o que fazer para salvá-lo? – Isabel questionou, incrédula, se entregando às lágrimas. Eu estava a ponto de fazer o mesmo.
– Infelizmente, a doença chegou a um ponto que não nos deixa muitas opções, senhora Sánchez. Eu sinto muito. – O médico disse, ainda falando por mim, já que eu não conseguia sequer emitir um som.
– Não pode ser. Não pode ser verdade, tem que haver algo a ser feito, ele é apenas uma criança. Isso não é certo! – A mãe de Mateo dizia, se debulhando em lágrimas. – Por favor, não pode ser verdade. , não pode ser! Isso não é certo. Os filhos não deveriam partir antes dos pais, isso não é certo! Eu não posso perdê-lo.
Àquela altura, todo meu discernimento da função de médica foi por água abaixo e, enquanto envolvia Isabel em um abraço de consolo, me permiti derramar algumas lágrimas junto dela.
– Eu sinto muito. – Falei, em meio ao choro contido.
– Com o tratamento paliativo, poderemos garantir o máximo possível de conforto para Mateo. Ele não vai sofrer. – Armando disse, de longe, observando nosso abraço. – Voltaremos a conversar sobre isso em um outro momento, mais oportuno. – Ele completou, percebendo que seria cruel abordar agora com Isabel o plano de cuidados paliativos. O pager em seu bolso soou. – Preciso ir agora, Isabel, mas estou à disposição para esclarecer qualquer dúvida. Você tem meu contato. Eu sinto muito mesmo. – O médico disse, algum tempo depois, tocando carinhosamente o ombro de Isabel, que ainda chorava abraçada a mim.
Esses eram os piores momentos na vida profissional de uma médica. Eu tive certeza que o choro desesperado de Isabel e a frase “isso não é certo” ecoariam em minha mente por muito tempo depois daquele dia.
Não era mesmo certo.
Mais errado ainda era não podermos lutar até o final por uma possível recuperação. Eu sabia que as chances eram pequenas, mas, enquanto elas existissem, desistir sem tentar nunca seria minha primeira opção. A hierarquia hospitalar era muito frustrante às vezes.
– Tem algo que eu possa fazer por vocês? Alguém para quem você queira ligar ou… – Perguntei a Isabel, quando ela saiu do abraço alguns segundos depois.
– Não, querida. Meu marido virá no final do dia, trocar de lugar comigo. Prometi às minhas outras filhas que passaria a noite com elas hoje. Já faz uma semana que estou aqui com Mateo, sem vê-las... Então, quando ele chegar, direi a ele. Não vamos falar nada com Mateo por enquanto.
– Tudo bem. – Concordei, tocando com carinho seu cabelo. – Estarei aqui no hospital durante toda a noite. Se precisar de ajuda com isso, é só me chamar.
– Obrigada, . – Sra. Sánchez disse, secando as lágrimas com a gola da camiseta.
– Isabel, eu preciso ir agora. – Falei, em tom de despedida, porque precisava dar sequência ao trabalho do dia. – Eu queria muito poder mudar essa situação toda e curar o seu filho, mas infelizmente algumas coisas fogem do nosso poder. Eu sinto muito mesmo. – Desabafei, sentindo as lágrimas voltando para os olhos.
– Você foi um anjo na vida de Mateo, . Ele se sentiu seguro durante todos os exames e procedimentos, simplesmente por ter você perto, e nós nos sentimos amados e acolhidos. Eu sei que você não mediu esforços por ele. Se chegamos ao ponto de não ter mais o que fazer, eu tenho certeza de que não foi por falta de dedicação sua. – A mãe de Mateo dizia, agora mais serena do que eu, que tentava a todo custo não cair em lágrimas ali mesmo no corredor. Me aproximei dela mais uma vez para um abraço e, antes de sair, a ouvi pedir, segurando minhas mãos:
– Só tenho uma coisa para pedir a você, minha querida. Posso?
– Claro, se eu puder ajudar. – Respondi.
– Se você souber de alguma coisa, qualquer coisa que não foi testada em Mateo e que possa dar a ele uma esperança de continuar vivo... – Isabel engoliu em seco, parecendo atingida pelo peso de dizer aquelas palavras em voz alta. – Por favor, não deixe de me dizer. Estamos dispostos a qualquer coisa. Quero ter certeza de que tentamos de tudo.
Assenti com a cabeça, dessa vez sentindo em mim o peso das palavras proferidas por ela, como se pudesse ler minha mente. Eu também não queria sossegar antes de tentar de tudo, mas, naquele ponto, algumas coisas já não dependiam mais só de mim.
– Se eu souber de alguma coisa... – Eu disse, secando mais uma lágrima. – Farei tudo o que eu puder para que Mateo tenha acesso. Eu prometo!
Isabel sorriu amarelo em agradecimento, e eu repeti que precisava ir.


Capítulo 24

– Dr. Armando? – Chamei, vendo que o médico comia um lanche na cafeteria.
– Olá, ! Como foi com Isabel? – Ele perguntou, preocupado ao me ver.
– Armando, ela me implorou para dizer a ela se souber de alguma alternativa. E eu sei de uma alternativa! Não posso continuar fingindo que não. – Desabafei, sendo totalmente inconveniente por atrapalhá-lo durante um momento de sossego, mas, dessa vez, não me importando nem um pouco com isso.
O médico suspirou.
– De quantos euros estamos falando? – Perguntei. – Só para eu ter uma ideia, assim posso me convencer de uma vez por todas que é impossível conseguir toda essa quantidade de dinheiro em tão pouco tempo. Ou traçar um plano para ajudá-los a conseguir.
Armando suspirou novamente, tirando seu celular do bolso e fazendo algumas pesquisas antes de me responder.
– Acredito que só a extração das células estaminais, o armazenamento delas e o processo de transplante custaria, em média, 6.000 euros. Se isso der certo, ainda teremos as novas sessões de quimioterapia, com os novos fármacos, que ficaria em média mais uns 10.000 euros por sessão. Eu diria que Mateo precisa de umas 10 para vermos algum resultado... Uns cento e dez mil euros, só para começar. Teríamos que checar a disponibilidade desse serviço ser feito aqui no hospital. Caso contrário, precisaríamos encaminhá-lo a outro hospital, em outra cidade, para dar sequência ao tratamento, e aí haveria mais gastos com acomodação e transporte.
– Isso já não seria tão caro! Eu acho que é possível, Dr. Armando, se mobilizarmos várias pessoas.
O médico me olhava com estranheza.
– Você teria que arrecadar quase quatro mil euros por dia para conseguirmos chegar ao valor final em um mês, . – Ele disse, me devolvendo um cálculo matemático feito na calculadora do celular. – Isso é muito dinheiro. Mateo tem pouco tempo.
Refleti por algum tempo e percebi que Armando tinha razão.
Suspirei, me sentindo sem saída.
– Admiro seu esforço, . Mas acho que já é hora de parar. – O médico disse, com um pouco mais de firmeza.
– Tudo bem. Você tem razão – Assenti, cabisbaixa. – Desculpe incomodar.
– Não por isso! – Armando finalizou, em tom de despedida.
Saí caminhando pelo terraço, derramando algumas lágrimas pelo caminho. No caminho de volta para a área de atendimento, passei pela brinquedoteca das crianças mais uma vez e os funcionários continuavam ali, limpando e desinfetando cada peça antes de posicioná-las nas prateleiras.
Algumas caixas ao fundo continham brinquedos que ainda aguardavam para serem limpos e guardados. Quando me aproximei delas, algo me chamou a atenção. Uma das caixas de papelão que estava servindo de embalagem para os brinquedos parecia já ter sido algum dia a embalagem de garrafas de vinho. Na lateral, observei uma logomarca que parecia familiar e um nome que soava mais familiar ainda.
“Bodega Finca Río Negro? Quando foi que ouvi esse nome antes?”, me perguntei, ainda observando o objeto. Foi quando um flash de lembranças me ocorreu, me levando de volta ao dia em que tomei vinho, na adega de após um jogo do Atlético de Madrid.
Na oportunidade, ele comentou que era neto dos fundadores de uma vinícola em uma província da cidade natal de seus pais e o nome era exatamente esse. Bodega Finca Río Negro.
!
Será que ele tinha algo a ver com a doação dos brinquedos ou tudo não passava de uma enorme coincidência?
Titubeei um pouco, mas resolvi enviar uma mensagem para ter certeza.
“Oi, ! Como vai? Desculpa a mensagem tão cedo, mas... você por acaso teve algo a ver com uma encomenda que recebemos hoje aqui no hospital?”
O jogador apareceu online logo em seguida e já começou a digitar as mensagens, que enviou a seguir:
“Oi, !
Na verdade, eu... tive sim. Como sabe?
Que bom que receberam tudo certinho.”
Neguei com a cabeça, sem acreditar, e resolvi ligar para entender.
– Onde você conseguiu tantos brinquedos? A brinquedoteca está parecendo uma unidade da Primark. – Brinquei, citando o nome da rede de lojas de brinquedos mais famosas do país, ainda empolgada, logo que ele atendeu. – As crianças vão adorar, . Muito obrigada, em nome de todos nós aqui do hospital. Ficamos muito felizes!
– Ah, não tem de quê, eu s...
Ele começou a dizer e eu o interrompi:
– Você não está tentando me comprar mimando meus minipacientes, não é? – Perguntei. – Porque esse seria um golpe muito baixo.
Sorri, em tom de piada, mas certa do fundo de veracidade no que tinha dito.
– Não! – Ele exclamou, logo que ouviu, parecendo realmente preocupado que eu pensasse que a doação fora feita por interesse. – Comecei a arrecadação logo depois daquele dia que fui levar o seu celular e você me apresentou ao lugar e disse que ele vive de doações. Separei com a Sofia alguns brinquedos que ela não usa mais e mobilizei meus colegas e os funcionários do time a fazerem o mesmo, doar brinquedos usados dos filhos, ou novos... Demorou algum tempo até reunirmos tudo isso e hoje fizemos a entrega. Não teve nada a ver com aquela nossa conversa, eu juro! Não era nem para você saber que eu tinha algo a ver com isso. – O jogador justificou, me arrancando mais um sorriso.
Eu me lembrava do dia em que tinha apresentado o cantinho das crianças para ele, mas não imaginei que ele estivesse planejando algo assim.
– Eu acredito, ! Não se preocupe. Descobri por um acaso e não pude deixar de ligar para te agradecer – Falei, para tranquilizá-lo. – Agradeça a todos os envolvidos por nós. Se quiser, depois posso pedir à direção do hospital que faça uma publicação agradecendo, ou algo do tipo. – Falei, sabendo que, muitas vezes, as pessoas esperam um reconhecimento em troca de alguma ação de caridade, seja ela qual for. Nas equipes de futebol, esse feedback é muito valorizado, então imaginei que ele fosse aceitar.
– Não se preocupe com isso. O mais importante é que tudo chegou aí perfeitamente. – disse.
– Chegou sim. Os brinquedos estão sendo higienizados agora antes de serem guardados e, como são muitos, talvez isso demore um pouco. – Eu ri. – Mas assim que estiver tudo pronto, te envio uma foto.
– Perfeito. Vou aguardar! – Ele disse, parecendo sorrir de volta. – E se tiver algo mais que nós possamos fazer para ajudar aí no hospital, me avise.
– Obrigada! Como eu te disse, a brinquedoteca não é a prioridade do governo, o que é compreensível, mas todo o essencial chega até aqui muito bem. Ou, pelo menos, tem chegado até agora. – Eu ri. – Se algum dia precisarmos, pode deixar que eu t…
A situação toda me deixou tão empolgada, que, por um breve momento, me esqueci do motivo pelo qual estava chorando minutos antes. Ainda conectada a pelo telefone, desviei o olhar e avistei Armando caminhando pelo corredor o lado, e foi aí que uma ideia me cruzou a cabeça.
! – Chamei, de repente, após alguns segundos de silêncio que minha mente precisou para processar a informação. – Na verdade, eu poderia sim usar a sua ajuda e a dos seus colegas em uma coisa.
– No quê? – Ele perguntou, parecendo notar a mudança no meu tom de voz.
– Hum... Não posso dizer agora, porque é sobre um paciente e... – Expliquei, olhando em volta. – Posso te ligar amanhã quando chegar em casa do plantão? Por volta das 10h.
– Poxa, neste horário vou estar treinando. – Ele lamentou, fazendo uma pausa. Mas logo sugeriu, parecendo se lembrar de uma informação sobre mim que aprendeu durante a época em que nossa amizade con derechos vigorava: – Você tem o dia seguinte aos plantões livre, não é?
– Tenho sim.
– Bom, se preferir conversar pessoalmente, combinamos um café amanhã quando eu sair. Eu te ligo! – sugeriu.
– Perfeito! – Respondi, já me sentindo animada ao raciocinar que, numa equipe grande como a dele, onde todos recebem tão bem, era bem possível que pelo menos uma parte deles se unisse para ajudar na situação de Mateo. – Fico aguardando seu retorno. Só... não esquece, tá? É um pouco urgente. – Pedi, com medo dele esquecer de retornar a ligação. Sabia que estava em uma corrida contra o tempo.
– Claro. Não vou esquecer, não se preocupe! – Ele respondeu e eu ri, timidamente.
– Certo. Preciso ir agora! – Falei, em despedida.
– Até mais! Bom trabalho. – se despediu também.
– Igualmente. – Desliguei, com vontade de dar pulinhos de alegria.
Nunca havia sequer cogitado a possibilidade de pedir ajuda do goleiro para algo assim, mas, de repente, isso fazia total sentido, e eu podia sentir que estava no caminho certo.

Mantive minha boca fechada durante todo o tempo até que finalmente pudesse conversar com o goleiro, considerando a máxima do “o que ninguém sabe, ninguém estraga” e, pontualmente às onze horas do dia seguinte, recebi uma ligação dele.
– Bom dia, ! – Ele disse, logo que atendi.
– Oi, . Bom dia! Obrigada por ligar. – Falei. – Podemos nos encontrar naquela mesma cafeteria do Moraleja Green? – Pedi, sugerindo a cafeteria do shopping onde nos encontramos por acaso aquela vez.
Na oportunidade, eu decidi entrar em contato com meu irmão para ajudar na questão da guarda de Sofia. Esperava que, dessa vez, fosse ele quem me ajudaria com a questão do tratamento de Mateo.
– Podemos. Te vejo lá! – Ele respondeu rapidamente.
Desliguei o telefone com pressa e me vesti para ir até lá.
Passei a noite sem sequer fechar os olhos durante o plantão, mas não porque foi um turno movimentado com pacientes, e sim porque estava muito ansiosa para saber se meu plano daria certo.
Desci em frente ao portão de acesso mais próximo possível da cafeteria e caminhei a passos largos até lá. Já havia ensaiado centenas de vezes o que dizer a logo que o visse e me preocupei ainda em levar o laudo médico de Mateo, para que ele não tivesse dúvidas da veracidade daquilo que eu dizia.
O goleiro já estava sentado em uma das mesas do fundo e acenou logo que cheguei para que eu o visse.
Caminhei até lá com as mãos frias, apertando a alça da bolsa que estava em meus ombros para tentar aliviar a tensão.
– Oi, ! Como está? – Ele perguntou, se levantando para me receber com um abraço e um beijo no rosto. – Tomei a liberdade de pedir seu café de sempre, que é o mesmo que o meu. – Ele riu. – Acabou de chegar!
– Ótimo! Muito obrigada, passei a noite toda acordada no plantão, vai ser bem útil. – Falei, me sentando na poltrona à frente e bebericando o café. – Então, , fico até sem graça de pedir sua ajuda em uma situação como essa. Sei que é um pouco demais, então saiba que se você não puder ajudar, eu vou entender. Ok?
O goleiro me encarou com estranhamento e eu peguei fôlego para continuar o discurso:
– Você se lembra de Mateo? Meu paciente de sete anos para quem você deu uma camisa certa vez… – Perguntei.
– Claro! Me lembro sim. – respondeu, parecendo precisar de quase nenhum esforço para buscar o nome de Mateo na memória.
– Quando o conheci, ele tinha uma massa abdominal que descobrimos se tratar de um câncer. Se lembra? – Expliquei. – Ele começou o tratamento, fez uma cirurgia e várias sessões de quimioterapia até que conseguiram remover o tumor e ele entrou em remissão. Porém, algum tempo atrás, voltou ao hospital com alguns sintomas, e acabamos descobrindo alguns focos metastáticos nos pulmõezinhos dele.
– Alguns focos...? – perguntou, quanto ao termo.
Eu convivia com tantos médicos no meu dia a dia que, às vezes, até me esquecia de usar termos menos técnicos ao falar com as pessoas leigas.
– Metastáticos. Significa que o câncer dele se espalhou para os pulmões – Expliquei, tentando soar o mais compreensível possível. – E então ele voltou às sessões de quimio, mas o câncer dessa vez está bem mais resistente e não estamos conseguindo controlar com as medicações. Os meus preceptores, que são os médicos mais experientes, estão convictos de que o melhor a fazer é tratá-lo paliativamente. Ou seja, parar de tentar curá-lo e dar a ele qualidade de vida até que ele não viva mais. – Contei, terminando de falar com um nó na garganta.
observava com os olhos atentos, tentando entender o que eu dizia e, provavelmente, prever como poderia me ajudar nessa situação.
– Porém, existe uma possibilidade de tratamento que envolve reforçar a medicação atual de Mateo. Isso costuma funcionar em casos assim, mas, como a saúde dele já está bem debilitada pelo tratamento anterior, para conseguir aguentar essa medicação reforçada, ele teria que enfrentar um transplante de células estaminais, que você deve conhecer como “células-tronco”. Nesse processo, a gente retira algumas células “mais saudáveis” do corpo dele antes de receber a medicação e, depois de recebê-la, recolocamos essas células para que elas ajudem o corpo dele a se recuperar. – Expliquei detalhadamente. – Meus preceptores concordam que essa opção pode funcionar, mas se recusam a sequer mencionar a possibilidade aos pais do Mateo, porque é um tratamento caro, pelo qual eles não teriam condições de pagar. – Comentei, fazendo uma pausa para beber um gole de água, porque já estava com a boca seca de tanto falar. – Atualmente, ele é tratado de graça pelo sistema nacional de saúde pública. Só que essa opção que mencionei, com o transplante de células e reforço da medicação, não é coberta por esse sistema. Teria que ser paga à parte. – Contei. – Eu disse que não podíamos desistir por isso, porque existe a possibilidade de fazermos uma vaquinha virtual, ou eventos para arrecadar dinheiro... Mas a verdade é que Mateo não tem tempo, sabe, ? Esse tratamento teria que começar imediatamente para podermos sonhar com uma recuperação total. E, por isso, meus preceptores querem desistir sem sequer dizer aos familiares de Mateo sobre essa opção.
Comecei a sentir meus olhos se enchendo de lágrimas de novo, mas me esforcei para não chorar.
– A mãe dele ainda me implorou para dizer a ela se descobrirmos qualquer possibilidade de continuar lutando, mas não posso fazer isso sem a autorização dos meus superiores, e eles acham errado “alimentar as esperanças” de uma mãe que não pode pagar pelo tratamento do filho. Mas eu sempre me coloco no lugar das pessoas e eu, se estivesse no lugar dela, gostaria de saber. Mesmo que eu não pudesse pagar imediatamente... Pela saúde de um filho, eu venderia meu carro, minhas roupas… Até minha casa, se isso pudesse ajudar. Você não faria o mesmo? Pela sua filha? – Desabafei, tudo de uma vez, falando chorosa e com rapidez tamanha que, até para mim, soava um pouco incompreensível. Mesmo assim, respondeu, demonstrando que havia entendido perfeitamente:
– Eu venderia até minha alma.
– Viu só? É exatamente o que penso. – Falei, levantando o rosto mais uma vez. – A questão não é perder um paciente. Estamos acostumados com isso. Algumas vezes vencemos, outras a doença vence. Isso é comum. – Expliquei. – Triste, mas comum. O que não consigo aceitar é perder antes de tentar até o fim.
– Entendo. – Ele concordou. – Você tem uma estimativa do preço do tratamento dele? Para eu saber com quanto poderia ajudar.
– Tenho um valor estimado que alcancei com algumas pesquisas. Nada definitivo ainda, mas dá para ter uma ideia e mostrar para os seus companheiros. Talvez se cada um puder doar uma parte, não sei... – Sugeri, tirando da bolsa de ombro uma pasta e, de dentro dessa pasta, uma folha na qual imprimi uma lista de gastos que a família de Mateo enfrentaria caso decidisse optar pelo tratamento. – Acho que já te disse também que aqui em Madrid não existe um hospital exclusivamente oncológico, como existe em Valencia. Provavelmente Mateo teria que ser transferido para lá nessa nova etapa do tratamento, por isso aí incluí os gastos estimados com aluguel, alimentação e transporte. – Expliquei enquanto observava atentamente a folha que lhe entreguei.
– Isso seria o valor total ou...? – Ele perguntou, olhando para mim novamente.
– Sim. Como eu disse, está estimado, mas seria o valor total.
, eu... não sei como dizer isso sem parecer arrogante, mas... – Ele disse, parecendo confuso, ainda analisando o papel. – Posso ajudar com isso sozinho.
– Oi?! – Perguntei, arregalando os olhos.
– Sim. Eu teria que conversar no banco para autorizar um saque tão grande, mas não deve ser um problema. – Ele falou. – Ou se tiver uma conta para onde transferir, consigo passar esse dinheiro para a família de Mateo amanhã mesmo.
, você está falando sério? Isso é muito dinheiro. Eu estava pensando em você dividir com seus colegas para chegarmos ao valor total, porque... minha nossa! Eu não acredito. – Falei, ainda muito impressionada.
– Eu faço questão. Sou pai, você sabe. E, se estivesse na situação dos pais dessa criança, pediria a Deus todos os dias e noites que iluminasse alguém com condições de ajudar. E eu tenho. – Ele disse. – Não posso me comprometer a ajudar todas as pessoas que não podem pagar por um tratamento, mas ajudar alguém já é melhor do que não ajudar ninguém. – O goleiro finalizou, dando de ombros.
– Calma, então vamos por partes. – Falei, sentindo até calor pela minha euforia interna. – Vou voltar para o hospital agora mesmo e conversar com meus preceptores para dizer que a parte financeira não será mais um problema. Daí diremos aos pais de Mateo para pedir a autorização e eu volto a falar com você para planejar essa transferência. Ok?
?! Vai voltar para o hospital agora? Você não esteve lá a noite toda? – perguntou, espantado, observando minha movimentação para sair logo.
– Eu preciso ir antes que os preceptores saiam! Como te disse, é uma corrida contra o tempo. – Falei, pegando minha bolsa no ombro da cadeira e meu celular por cima da mesa. Bati o olho na xícara de café e percebi que só tinha bebido metade do conteúdo dela, mas não teria tempo para finalizar. – Você vai ter que terminar esse para mim, de novo. – Falei, rindo, ao lembrar do dia em que perguntou se eu sempre deixava as xícaras de café pela metade.
– Sem problemas, doutora! Faça o que tem que fazer. – Ele disse, com um sorriso encorajador. – E depois durma, por favor. Nem fui eu quem passou a noite em claro, e estou com sono por você. – brincou e eu sorri, concordando. Acenei me despedindo e saí do shopping para o hospital.
Eu tinha certeza de que tudo daria certo.


Capítulo 25

– Doutor Armando, você tem um minuto? – Perguntei, chegando esbaforida no hospital e encontrando meu preceptor na sala de descanso.
No mesmo lugar estavam Elis e Alan, então aproveitei para incluí-los na reunião que estava tentando propor.
– Na verdade, se vocês três tiverem um tempinho, tem algo que gostaria de conversar com vocês aqui na sala de reunião.
Armando se dispôs a se levantar prontamente e caminhou na minha direção. Os outros dois estranharam um pouco. Não costumava ser o caso de médicos residentes solicitarem reuniões, mesmo que informais, com a equipe médica atendente. Mas, naquele momento, eu não poderia me importar menos com isso.
– Pois não, Dra. Valbuena?! – Alan disse, adentrando o cômodo logo atrás de mim.
– Prezados, eu gostaria de reabrir a pauta da nossa última reunião... O tratamento de Mateo.
– Ah, de novo não. – Elis cruzou os braços, demonstrando impaciência.
, já conversamos sobre isso. – Armando respondeu, incomodado também.
– Os senhores podem, pelo menos, ouvir o que tenho a dizer? – Solicitei, com todo o decoro, para tentar obter o mínimo de confiança. – Encontrei uma pessoa disposta a arcar com o valor do tratamento. E a mãe do paciente demonstrou interesse em aceitar medidas drásticas na busca pela cura. Como esses eram nossos principais empecilhos, gostaria de saber se é de comum acordo que agora adotemos a opção de tratamento que garante ao paciente uma chance de viver?
Os médicos pareciam espantados.
– Quem estaria disposto a fazer isso? – Alan perguntou.
– Um doador anônimo, que se comoveu com a história e se comprometeu a arcar com os custos. – Eu disse, tentando preservar o nome de .
– E como é que a senhorita planeja garantir que esse doador está mesmo comprometido a pagar por todo o tratamento de um desconhecido? E como garantir que ele tem condições para tal? – Elis questionou.
– Sei da idoneidade dele, doutora. E de sua condição financeira também. Somos próximos. – Respondi, irritada. Garantindo que o dinheiro estaria na conta da família Sánchez, o resto não interessava a mais ninguém.
– Bom, ... Se Mateo terá seu tratamento patrocinado por alguém, e sua família está disposta a enfrentá-lo, eu não vejo motivos para não dar uma chance. – Alan falou.
– Você é mesmo terrível quando coloca sua mente em algo, não é, Valbuena? – Armando disse, sorrindo e me arrancando um sorriso. – Nesse caso, podemos sim investir na sua sugestão de tratamento.
– A senhorita planeja pedir ao seu namoradinho para bancar o tratamento de todos os seus pacientes carentes, ? – Elis falou, despejando seu veneno.
– Estamos dispostos a ajudar quantos pacientes pudermos e nossa condição financeira permitir, doutora. E poder fazer por um deles já é melhor do que não fazer por nenhum. – Falei, sem desmentir a afirmação da médica de que eu e o doador em questão tínhamos algum envolvimento, porque senti que o comentário foi feito para me constranger. Abri um sorriso ao final, para que ficasse claro que o objetivo não fora alcançado.
Elis ergueu as sobrancelhas em desaprovação, mas não disse mais nada.
Ainda sorrindo, perguntei:
– Então, é de comum acordo que o plano de tratamento de Mateo será alterado? Não entraremos mais com o protocolo paliativo?
– De acordo. – Armando foi o primeiro a dizer, parecendo orgulhoso de mim.
– De acordo. – Alan completou.
– Se todos vocês concordam… – Elis disse, dando de ombros.
– Ótimo! Vou comunicar à família. – Exclamei, saindo em direção ao quarto de Mateo.

– Isabel, posso dar uma palavrinha com você? – Pedi, sem conseguir guardar meu sorriso ao vê-la.
– É claro. – Ela respondeu, tensa, se levantando e caminhando até mim, fora do quarto.
– Isabel, eu tenho ótimas notícias! – Exclamei – Descobri uma forma de potencializar o efeito do tratamento de Mateo, fortalecendo seus medicamentos. Assim, não precisamos partir para os cuidados paliativos e ainda temos uma esperança de cura. – Contei.
– Oh, meu Deus! Que notícia maravilhosa! – A mulher levou as duas mãos à boca numa expressão surpresa. – Mas, , isso seria coberto pelo sistema público? – Ela indagou, agora parecendo preocupada. – Por que não foi cogitada essa possibilidade antes?
– Então, Isabel... O tratamento não é coberto pelo sistema público, e foi por isso que não o consideramos antes. Porém, encontrei um doador disposto a arcar com todos os custos do tratamento de Mateo. Vocês não terão que se preocupar com nada. Só precisam nos autorizar a iniciar esse novo tratamento, mas mais adiante conversaremos e eu explicarei tudo detalhadamente ao seu esposo e a você.
! Isso é sério? É um milagre! Quem seria esse doador? Por que ele fez isso? – Isabel questionou, ainda cobrindo a boca com as mãos.
– É um amigo meu. Contei a ele sobre a situação, e ele se dispôs a ajudar. – Eu disse. – Isabel, querida, preciso que saiba que esse novo tratamento é bem forte e é até um pouco agressivo. Talvez vocês precisem passar um tempo fora de Madrid, e envolve alguns outros procedimentos bem delicados sobre os quais conversaremos em breve. O caminho é longo e que não vencemos ainda, preciso repetir, para não criar expectativas irreais. Mas, pelo menos, com essa possibilidade, podemos continuar tentando, e isso já é algo. – Expliquei, para que ela soubesse que o tratamento ainda exigiria algum tempo de esforço.
– Depois de ouvir que não há mais o que fazer para salvar a vida de um filho, , uma notícia como essa é suficiente por agora. O futuro a Deus pertence, mas, por agora, voltamos a ter esperança. E poder ter esperança é um privilégio. – Ela sorriu. – Obrigada! Agradeça ao seu amigo por mim também. Espero um dia poder agradecê-lo pessoalmente por essa enorme benção.
– Acredito que vocês terão a oportunidade de conhecê-lo muito em breve. – Falei, também evitando expor o nome de , pelo menos por enquanto. – E não há de quê! Eu faria isso mais mil vezes por Mateo. – Contei. – Nos vemos de novo em breve e conversaremos com calma sobre cada etapa a seguir, certo? Fiquem bem! – Falei, em tom de despedida.
– Certo! Obrigada mais uma vez, . – A mãe de Mateo disse, me abraçando.

Voltei para casa e dormi, antes mesmo de conseguir contar à Amanda sobre a novidade ou dar retorno a sobre o caso. Quando enfim retornei ao hospital, alinhamos com a equipe geral todas as etapas que viriam a seguir.
Armando adiantou contato com a equipe do hospital oncológico de Valencia, e a vaga de Mateo já estava reservada com o oncologista de lá, que era de sua confiança e que daria sequência ao tratamento, nos mantendo informados, ainda que de longe.
Explicamos todos os passos aos pais de Mateo, e eles concordaram em iniciar o processo logo que fosse possível. Coloquei a família em contato com , e o valor do tratamento foi entregue a eles em uma única transação.
O peso de duas toneladas saíra das minhas costas quando vi que tudo estava encaminhado.
O goleiro foi convidado algumas vezes para ir até o hospital conhecer Mateo antes da transferência de hospital, porque os pais de Mateo acreditavam – e nós, médicos, também – que essa visita faria muito bem ao pequeno, para motivá-lo naquela nova etapa.
Por conta do calendário corrido, acabou só conseguindo uma brecha na agenda para uma visita na manhã do dia em que Mateo seria levado para o hospital em Valencia, de ambulância, para garantir todo o suporte médico em caso de necessidade.
– Posso levar algo de presente para ele? – O jogador perguntou, por telefone, alguns minutos antes de sair de casa.
– O que seria, no caso? – Questionei para saber se seria autorizado ou não.
– Uma roupinha do Atleti com o nome dele e uma bola. Foi o melhor que consegui pensar... Já pedi à minha faxineira para lavar e higienizar tudo direitinho, não se preocupe.
– Ah, claro! Pode trazer sim. Ele vai gostar. – Respondi. – Só tente não demorar muito. A ambulância para levá-lo deve chegar em mais algumas horas.
– Certo! Saio em cinco minutos. – Ele disse, se despedindo.
– Lembre de chegar pelo estacionamento que te disse. – Completei.
Arquitetei um plano para que conseguisse ir ao quarto de Mateo sem ser visto por muitas pessoas, para evitar transtorno e uma demora que talvez atrapalhasse a visita.
concordou, se despediu e desligamos a chamada. Saí em direção ao hospital também, porque não era meu dia de trabalho, mas eu não poderia deixar de ir até lá me despedir.

Meu plano tinha dado totalmente certo. Passamos pelos corredores mais vazios, e atraiu poucos olhares.
Entreguei a ele uma máscara facial descartável, recomendada para os visitantes dos pacientes de oncologia para evitar o contágio de doenças virais nesse grupo, que tinha a imunidade mais baixa, e adentrei o quarto antes dele.
– Oi, Mateo! Como você está, meu amor? – Perguntei, me aproximando.
– Oi, Dra. ! Por que você não está vestida de médica hoje? – Ele questionou, observando meu look casual.
Eu e sua mãe rimos da espontaneidade, mas fiz questão de explicar:
– Hoje não estou trabalhando, querido. Vim aqui só ver vocês antes da viagem!
– Ah sim, entendi. Eu vou logo? – O pequenino perguntou.
– Sim! Logo, logo. Mas, antes, tem uma outra pessoa que quer ver você e te desejar uma boa viagem. – Falei.
– Quem? – Ele quis saber, curioso, olhando para a mãe à espera de uma resposta.
Isabel negou com a cabeça, fingindo que não sabia do que se tratava, mas, àquela altura, já sabia de tudo. Inclusive de que fora o jogador quem proporcionou aquela nova etapa do tratamento de seu filho.
Fui até a porta e a abri, fazendo sinal para que entrasse.
Isabel estava com o celular ligado na direção do filho para filmar sua reação, que não poderia ter sido mais fofa e espontânea.
– Com licença! Me disseram ser aqui o quarto do menino mais forte de todo esse hospital. É você? – brincou, se aproximando aos poucos de Mateo, que ainda tentava entender, mas assentiu quando fez a pergunta.
O goleiro vestia um conjunto de agasalho do clube onde jogava, e acho que isso facilitou o reconhecimento apesar da máscara. Mateo o observava boquiaberto.
– Qual o seu nome? – O goleiro perguntou. O menininho seguia atônito.
– Mateo. – Ele respondeu, ainda muito impressionado.
– Ah! Então é para você mesmo essa encomenda. – disse, sorrindo e posicionando sobre a cama de Mateo a caixa que trouxera para o menino. – Quer ajuda para abrir?
Isabel seguia filmando e eu de longe observando a cena, com o coração aquecido por tanta ternura envolvida.
– Obrigado, . – Mateo disse, ainda parecendo em choque. – Você é o mesmo, não é? – Ele quis se assegurar, nos fazendo rir.
– Sou sim. – respondeu.
– Vocês parecem formiguinhas quando vejo pela televisão. – Mateo contou, com seu lindo sorriso infantil.
Rimos juntos mais uma vez.
– Sou grandão, não é? – disse, entrando na brincadeira. – A TV nos mostra muito de longe... Que tal se, quando voltar de sua viagem e estiver melhor, eu te levar para ver um jogo no estádio? – ofereceu. – E você entrará em campo comigo. Assim, as pessoas que virem você pela televisão é que vão te ver como uma formiguinha.
– Vou poder ir, mamãe? – Mateo parecia fascinado e perguntou, preocupado se as irmãs poderiam ir junto: – E também Sara e Luna?
– Claro! Poderão sim. – Isabel respondeu, com os olhos cheios de lágrimas. – Mas para isso precisa deixar os médicos cuidarem da sua saúde direitinho, durante a viagem. Tudo bem?
– Isso mesmo. Você vai ser bem forte? – concordou e perguntou, estendendo as mãos para Mateo bater.
– Sim! – Mateo assentiu, empolgado e parecendo energizado, como havia muito tempo não o víamos.
– Posso fazer uma foto de vocês? – Isabel perguntou, logo que ajudou Mateo a se vestir na camisa que levou. O momento merecia mesmo uma foto.
– Claro! Pode sim. – respondeu, já se aproximando do pequeno para a foto.
– Junte-se também, . Por favor! Quero uma foto do Mateo com seus dois anjos da guarda. – A mãe do menino pediu, depois de fazer um click dos dois. Ajeitei o cabelo o melhor que pude e me aproximei, abraçando Mateo de lado, com carinho, enquanto envolvia meus ombros para posarmos para a foto.
Na sequência, ouvimos duas batidas na porta.
– Com licença. A ambulância que fará a transferência dele já chegou. Podemos ir? – Carla, a enfermeira, disse ao abrir a porta.
– Sim! Aqui está tudo pronto. – Isabel respondeu, num suspiro de tensão, observando em volta. O quarto já estava vazio, havia apenas duas malas de viagem posicionadas ao canto e uma mochila infantil junto delas.
Carla e outras duas enfermeiras adentraram o quarto, trazendo consigo a maca da ambulância, para facilitar o transporte. Enquanto faziam todo o procedimento com o pequeno, Isabel se aproximou de e de mim para agradecer.
– Queridos, eu gostaria de agradecê-los imensamente por tudo. Sei que estamos apenas começando essa nova fase do tratamento do meu filho e que não será fácil, mas estamos indo com nossos corações cheios de esperança. – Isabel dizia, com os olhos marejados. – E isso é graças a vocês. Muito obrigada. Que Deus retribua em dobro tudo o que vocês fizeram pelo meu filho. – Ela finalizou, pegando minha mão e dizendo com carinho: – Principalmente você, minha querida. Por ter lutado tanto para Mateo ter acesso ao tratamento. Você nasceu para fazer o que faz, e o mundo precisa de mais pessoas assim.
Comecei a sentir meus olhos se enchendo de lágrimas e nem soube o que responder, apenas a abracei apertado por longos segundos.
– Por aqui tudo pronto, pessoal. – Carla avisou, depois de reposicionar as máquinas que acompanhariam Mateo da cama para a maca móvel.
– Vou com vocês até a ambulância. – Comentei.
– Eu te ajudo com isso. – disse, pegando as duas malas e deixando Isabel levar apenas sua bolsa de mão e a pequena mochilinha infantil do filho.
Chegamos à área de ambulâncias, e o pequeno não parecia impressionado, por já ter estado dentro de uma mais vezes do que alguém poderia imaginar, diante de sua pouca idade. Um paramédico ajustou a maca e prendeu Mateo no cinto de segurança. Isabel adentrou o veículo também na parte de trás e, alguns minutos depois, os dois acenaram pela última vez, antes que a porta por onde eles entraram se fechasse.
Eu estava muito orgulhosa por ter lutado com unhas e dentes para que meu paciente tivesse acesso ao tratamento, por ter tido minha opinião validada por profissionais mais experientes que eu, ainda que a contragosto por alguns deles.
Ao mesmo tempo, isso colocava sobre os meus ombros uma tensão grande.
Eu sabia que, se o novo tratamento não surtisse efeito, ou fosse agressivo demais para o corpinho de Mateo, eu me sentiria culpada. Era muita responsabilidade tomar a decisão de iniciar uma abordagem como aquela, mas, no fundo, eu sabia que tinha feito a coisa certa.
Tantos pensamentos ao mesmo tempo me deixaram emotiva e, enquanto a ambulância manobrava para sair do estacionamento em direção à estrada – e eu seguia parada, observando, envolvendo meu próprio corpo com os braços –, me peguei secando algumas lágrimas que escaparam sem eu perceber.
Senti um toque em meu braço. Antes que pudesse entender, percebi que era me puxando para um abraço de consolo, me envolvendo com um dos braços e acariciando minhas costas com a outra mão.
Me permiti retribuir o abraço e ficar algum tempo sendo alentada por ele.
– Vai ficar tudo bem. – O rapaz disse, com carinho. – Ele vai ficar bem! Você vai ver só.
Assenti, sem dizer nada de volta.
– Você ainda trabalha hoje? – perguntou, logo em seguida.
– Não. Vou já para casa! Meu plantão começa amanhã às 7h e preciso descansar. Só vim me despedir. – Comentei, secando o rosto com uma das mãos, ainda com o outro braço por trás das costas do goleiro, que me abraçava.
– Te deixo lá. Ok? Não aceito não como resposta. – perguntou, sorrindo com ternura, enquanto enxugava uma de minhas lágrimas.
– Bom, acho que, nesse caso, eu aceito sim, então.


Capítulo 26

– Me envolvi tanto com esse caso, você nem imagina. – Comentei, minutos depois, já no carro de , enquanto o rádio tocava uma música de bachata, como aquelas que o goleiro sempre ouvia. Naquele momento, percebi que, de alguma forma, tinha sentido falta daquilo.
– Eu imagino sim. – Ele sorriu. – O que você fez por esse garotinho foi muito especial. O que você faz pelos seus pacientes, num geral... É surpreendente. Sério!
– Ah, obrigada! – Comentei, observando a paisagem por fora da janela, que passava rápida por nós à medida que nos guiava pela cidade. – O meu jeito de lidar com a medicina é cansativo, eu confesso. Seria mais fácil me blindar e não me envolver, mas eu não consigo. Não consigo ver o paciente como um número ou como a própria doença, sabe? Ele tem uma família, tem uma história. Não dá para desistir assim tão fácil do amor da vida de alguém. E quando o resultado do esforço é positivo como foi hoje com Mateo, eu sinto que valeu a pena.
Suspirei.
– Eu só vou precisar de um mês de férias para compensar o tumulto que foi essa última semana. Mas faria tudo de novo! – Comentei em tom de brincadeira, e o goleiro me olhou com ar surpreso. – O que foi? – Perguntei, percebendo a mudança de fisionomia.
– Não, é que... eu... Sobre isso… – Ele gaguejou por alguns segundos e agora já era eu quem o estava olhando com surpresa.
– O que foi? – Questionei mais uma vez.
– Terei uma pausa no calendário de jogos na próxima semana. Aluguei uma casa em Marbella, que é minha praia favorita, porque já faz algum tempo que Sofia está me pedindo para ir à praia e ela estará comigo nesta data. – O jogador explicou, sem olhar muito para mim, parecendo tenso quanto a qual seria minha reação. – Por que você não vem com a gente?
Engoli em seco quando ele terminou de falar, tentando processar o que acabara de ouvir.
– Eu sei, , que, da última vez que conversamos, você ainda estava chateada comigo. E você estava coberta de razão. – Ele tomou a palavra novamente ao perceber que não tinha me manifestado. – Mas eu queria uma oportunidade de me desculpar. De tentar de novo, de um jeito diferente, se você quiser.
pareceu tomar coragem para dizer aquelas palavras olhando diretamente para mim:
– Nós podemos ir devagar, como se fosse a primeira vez. Passos lentos na parte rasa até chegar mais fundo. No seu tempo. – O jogador disse, em um sorriso tímido. – Desculpe. – Ele riu. – Eu nem sei se é o que você quer, mas... Se você puder, e quiser ir, é só me dizer. Tudo bem?
– Tudo bem. – Respondi, com um sorriso amarelo e o coração errando as batidas dentro do peito. Estava nervosa, um pouco envergonhada e, ao mesmo tempo, de alguma forma, um tanto tentada a aceitar o convite. – A gente se fala.
– Sofia vai ficar muito feliz se você for. E eu também! – disse, sorrindo e destravando a porta para que eu descesse do carro. – A gente se fala!
– Tchau!
Acenei timidamente, caminhando em direção ao meu prédio, e o goleiro acelerou pela rua logo que passei pelo portão.

– Eu acho que você deveria ir, . Quando foi a última vez que você tirou férias? Deve ter um crédito de meses com o hospital. – Mandy disse quando contei a ela.
– Bom... Conseguir folga não vai mesmo ser um problema. – Concordei, rindo, tentando buscar na memória a última vez que deixei de trabalhar por qualquer que fosse o motivo.
– Então? Aproveita a oportunidade. Se todo mundo merece uma segunda chance... Acho que pode ser o momento ideal de permitir que tenha a dele. – Ela falou, e eu assenti.
Eu sabia que, com aquele convite, esperava ouvir mais do que apenas “vou à praia com você”. E, sobre essa parte da resposta, eu ainda estava buscando um jeito de dizer a ele que topava sem parecer muito entregue. Não queria que, no fundo, ele pensasse que isso me faria esquecer tudo e ficar totalmente em suas mãos. Parecer vulnerável era um dos meus maiores medos.
– E, além do mais, se por acaso o clima não estiver muito bom entre vocês, tem a criança... Dá para se envolver nas brincadeiras com ela e se distrair. – Ela dizia com tanta certeza que acabei rindo. – Sem contar que você precisa de uma praia, garota. Veja essa pele, branca como a de um vampiro. está lhe fazendo um favor.
Eu ri e disse, logo após me recompor:
– Certo, amiga. Tudo bem! Já entendi que você quer que eu vá.
– E você? O que quer? – Ela perguntou.
– Quero ir também! – Respondi, em tom envergonhado, me rendendo a confessar a vontade que sentia por dentro.
Dizem que o tempo é um bom curandeiro, e eu tinha que concordar.
Quando ouvi todas aquelas coisas que tinha dito sobre mim ao pensar que eu não o escutava, pensei que jamais voltaria a olhá-lo sem desprezo outra vez. Porém, o tempo passou e esse sentimento amenizou. Ele me parecia arrependido de verdade.
Sem contar que, com a doação de brinquedos para o hospital e o tratamento de Mateo, tinha tocado em um ponto fraco meu. Me peguei pensando inúmeras vezes que alguém que se dispõe a isso não podia ser uma pessoa ruim. E, de fato, eu não conseguia ver maldade em . Nem sequer em uma parte de si.
Se aquela pessoa me dizia tão fervorosamente que nunca quis me machucar e que se sentia tão mal assim por tê-lo feito, eu não conseguia negar a ela a chance de se redimir.
Resolvi aceitar o convite. Sem expectativas, somente o coração aberto.
Combinamos data e horário de nos encontrarmos e, entre a semana que separou a data do convite da data da viagem, não conversamos sobre nada além dos detalhes como previsão do tempo e organização de malas. Como grandes amigos à espera de um evento importante.
Pedi autorização e deixei tudo avisado no hospital. Como eu imaginava, não foi difícil conseguir os dias de folga aos quais eu tinha direito.
Dormi mal como uma criança ansiosa pela viagem do dia seguinte, mas mais ainda por tudo o que ela envolvia. Eu não podia evitar sentir muito medo de me envolver com e acabar me decepcionando de novo, ou pior. Aquele parecia ser o desfecho padrão de sempre na minha cabeça.

– Papai, ela está ali!
Sofia foi a primeira a me ver, parada ao lado do totem de check-in do aeroporto de Barajas, que atendia a capital espanhola.
Abri os braços e um sorriso bem grande, me abaixando na altura da pequena para que ela corresse até mim, me recebendo com um abraço.
– Tudo certo com o check-in? – Perguntei. Já tinha feito o meu e faltava pouco para a hora do nosso embarque.
– Tudo certo! Resolvi tudo pelo celular.
sorriu, de orelha a orelha, vendo o apego da filha comigo.
Caminhamos juntos até o portão de embarque e nos entretemos com jogos de mão até que finalmente pudéssemos embarcar para as próximas quatro horas que nos separavam de Málaga, a primeira parada antes de irmos à linda cidade de Marbella, na Costa del Sol.
– Quer vestir seu casaco? – perguntou a Sofia algum tempo de voo depois.
A garotinha quis se sentar na poltrona do meio, entre seu pai e eu – que fiquei do lado da janela – e quase não tive a oportunidade de conversar com , sentado na poltrona do corredor.
O ar-condicionado estava bem frio, e ela assistia a um desenho infantil no próprio iPad.
– Aqui está. – Ele disse logo que ela assentiu, pegando o agasalho em sua mochila de mão.
Pouco tempo depois, enquanto a pequena ainda se aconchegava no casaco, ouvimos a comissária de bordo solicitar a atenção dos passageiros:
– Atenção, senhores passageiros, gostaríamos de solicitar auxílio médico. Caso haja algum médico voluntário à bordo, pedimos a gentileza de se apresentar a algum membro de nossa tripulação. – a comissária disse, duas vezes, e por fim agradeceu. – Obrigada.
– Oh! – Sofia exprimiu surpresa, cobrindo a boca com uma das mãos, – , você é médica!
– Sim, querida. Vou até lá ver do que precisam! – Respondi, desabotoando meu cinto de segurança e me levantando.
– O que houve? – perguntou, percebendo a movimentação e tirando os fones de ouvido pelos quais assistia algum dos filmes disponíveis na tela do avião.
– Solicitaram auxílio médico. Alguém deve ter passado mal! – Respondi, sem precisar de muito esforço para me locomover até o corredor porque as poltronas que escolheu tinham um bônus de espaço conforto para as pernas.
– Espero que não seja o piloto! – comentou, em ar descontraído, apesar da possibilidade ser tensa de verdade.
– Com licença, eu sou médica. Ouvi que solicitaram ajuda! – Falei ao primeiro comissário que vi.
– Sim. Temos um passageiro inconsciente. Por favor, me acompanhe. – Ele respondeu, parecendo aliviado por eu ter me prontificado a ajudar.
Preenchi alguns documentos de identificação e caminhamos juntos até a parte de trás da aeronave, muito mais longe das poltronas super confortáveis de , onde avistei um passageiro deitado no chão e uma acompanhante muito tensa e nervosa ao lado.
– Temos ajuda médica! – O comissário anunciou.
– Eu só não tenho nenhum material aqui. – Avisei de antemão, verificando imediatamente com minhas mãos se o passageiro tinha batimentos cardíacos. Caso contrário, teria que iniciar uma reanimação imediatamente. Por sorte, não era o caso. Eu conseguia sentir sua pulsação. – Vocês têm algo como um estetoscópio e um aferidor de pressão? – Pedi, para descartar outras causas mais sérias.
– Sim, doutora. Aqui estão. – Uma outra comissária disse, me entregando uma maleta cheia de itens de uso emergencial. Peguei o aferidor de pressão, o estetoscópio e também um oxímetro para verificar os sinais vitais.
Aferi a pressão e ouvi os batimentos, logo detectando a anormalidade. É relativamente comum que algumas pessoas tenham um quadro chamado de síncope vasovagal em aviões, porque – ainda que o ar seja pressurizado lá dentro – a diferença de pressão externa e interna pode causar uma queda súbita da pressão arterial, resultando em um desmaio.
Prestei todo o auxílio, com exames físicos para descartar causas secundárias. Posicionei as pernas do senhor em relevo para estabilizar o fluxo sanguíneo e, assim, em pouco tempo, ele recuperou a consciência e a tensão no lugar diminuiu. A tendência agora era que ele continuasse estável até o desembarque em Málaga, mas me coloquei à disposição para ser solicitada novamente no caso de alguma intercorrência.
Voltei à minha poltrona, onde e Sofia me esperavam com olhar apreensivo.
– O que era? – perguntou logo que voltei.
– Um passageiro se sentiu mal e desmaiou. Fui até lá para garantir que não era algo mais sério e ajudá-lo a melhorar. – Expliquei, me sentando de volta no mesmo lugar.
– Por que ele desmaiou? – Sofia quis saber, parecendo curiosa e assustada.
– O coração dele estava batendo muito devagarinho. – Contei da forma mais infantil que pude. – Mas fiz alguns truques para ele voltar a bater mais rápido, não se preocupe. Ele está bem agora.
– Papai! – Sofia chamou algum tempo depois de ouvir minha resposta e ficar parada refletindo.
– Diga, meu amor.
– A tia também é um super-herói da vida real, como os bombeiros. – Sofi exclamou. – Ela salva as pessoas. – Disse com uma seriedade adorável.
– Sim, filha! Ela é. – respondeu, sorrindo para a filha e me explicando o comentário logo em seguida: – Lemos um livro no outro dia sobre os heróis e heroínas da vida real. Acho que alguém entendeu o conceito direitinho. – O goleiro finalizou, piscando um dos olhos e sorrindo mais uma vez.
Desembarcamos em Málaga pouco depois do meio-dia e um carro alugado já estava à disposição de para irmos até nossa cidade de destino. Eu não entendia muito bem como as coisas funcionavam com o jogador, mas a mim parecia que, de certa forma, as coisas estavam sempre prontas esperando por ele.
Almoçamos na estrada e, de lá, seguimos para Marbella, onde passaríamos o tempo de descanso.
A casa – bem menor que aquela na qual o goleiro vivia, mas, ao mesmo tempo, muito maior do que as casas de tamanho tradicional – era toda construída no estilo coastal, com madeiras e peças de alvenaria em tons claros de bege, mobiliário de palha envelhecida e estofados que variavam suas estampas e a paleta de cores entre o branco, o nude e o azul. Muitos detalhes remetiam ao visual praiano com conchas, peixes e remos na decoração. Para completar, o “quintal” da habitação era literalmente forrado pela areia da praia, de forma que estávamos mais perto do mar do que da rua. O som das ondas, indo e vindo lentamente, e a vista da praia tranquila – quase deserta – até faziam parecer que a casa não se localizava em uma das cidades litorâneas mais conhecidas pela badalada vida noturna.
– Quer ajuda para levar isso lá para cima? – perguntou quanto à minha mala.
– Eu consigo. Obrigada! – Agradeci, subindo atrás dele, que também levava sua mala e a de Sofia nas mãos.
, aqui em cima são três quartos, mas eu disse que poderiam arrumar só dois. Assim, durmo com Sofia na suíte principal e você pode ficar à vontade na outra. – O goleiro explicou.
– Perfeito. Vou guardar minhas coisas lá.
Adentrei o quarto que indicou e guardei minha mala. Troquei minha roupa de viagem por um biquíni e vesti por cima uma saída de praia com chinelos, uma vez que a programação seguinte envolvia ir à praia.
– Tudo certo? – disse, algum tempo depois, batendo na porta do quarto, que já estava aberta. – Por que vocês não vão descendo e eu preparo uns petiscos para levar e comermos quando der fome? – O goleiro sugeriu, e eu mal tive tempo de dizer “tudo bem” antes de ser puxada pela mão por Sofia, que vestia um delicado roupão de banho com estampa de unicórnios e não poderia se importar menos com o fato de que o pai não iria ao mar conosco naquele momento.
Deixamos as peças de roupa e nossos chinelos pelo caminho, correndo de mãos dadas até o mar, onde mergulhamos de uma só vez.
Passamos longos minutos entre as ondas, Sofia ditando as brincadeiras e eu seguindo e me divertindo, como se tivesse sua idade.
adentrou o mar sem que notássemos e, numa brincadeira, ainda submerso na água, agarrou nossos calcanhares. Eu e Sofia gritamos de susto, até que, em um segundo, ele se levantou, rindo, e com as mãos acima da cabeça, posicionadas como a nadadeira dorsal de um tubarão.
– Ataque de tubarão! – Ele gritou, rindo e perseguindo a pequena, que gargalhava enquanto tentava se proteger subindo em meu colo.
Já não faltava muito até o entardecer, mas o clima seguiu leve até o fim do dia. Depois das brincadeiras no mar, fomos para a areia. Comemos alguns dos petiscos preparados por , construímos castelos e caudas de sereia e – quando o mar se agitou e a temperatura externa baixou – decidimos que era hora de entrar.
– Quem tem alguma sugestão para o jantar? – perguntou quando nos reunimos de novo na sala de televisão, depois de cada um tomar seu banho.
– Marshmallows, papai! Para assarmos na fogueira, como da última vez. – Sofia pediu, parecendo se lembrar. – Você se lembrou de pedir ao tio Iván para deixar marshmallows, né?
– Sim, Sofi. – Ele riu, me explicando em seguida. – Iván é o proprietário da casa, ele nos aluga o lugar já com a despensa recheada de tudo o que pedimos. – E voltou a falar com a filha: – Mas marshmallows não são jantar. O que comeremos antes?
– Pizza? – Tomei a liberdade de sugerir.
Para mim, noites praianas sempre combinam com pizza. Havaiana, de preferência.
– Para mim, está ótimo. E para você, Sofi?
– Perfeito! – A menininha exclamou.
– Certo. Então vou fazer o pedido e, enquanto a pizza não chega, preparo a fogueira para os seus marshmallows. – O jogador disse.
Apesar de termos ficado apenas algumas horas expostos ao sol – uma vez que chegamos à tarde e o dia logo escureceu –, e Sofia já tinham as bochechas levemente avermelhadas, com um charme praiano todo especial.
– Naquele armário ali, fica guardado um edredom bem grande. – pediu, ainda preparando a fogueira. – Você pode pegá-lo e levar até lá para forrar a areia? Eu levo o restante das coisas.
Fui até o armário que ele apontou e tirei de lá um edredom que provavelmente fora feito para cobrir uma cama de casal. Caminhei com Sofia até a área externa e forramos a areia diante da fogueira feita por .
Ficamos ali, apenas desfrutando do calor do fogo, até que a pizza chegou e foi buscá-la.
Me ofereci para ajudar, mas ele não aceitou e, pouco tempo depois, voltou trazendo a caixa da pizza em uma mão e equilibrando na outra uma garrafa de vinho, duas taças, um suco de caixinha para Sofia e o pacote de marshmallows com espetos para assar.
– Aproveitei para escolher um vinho. Espero que ele harmonize com... Bom... Claras em neve e açúcar. – O goleiro brincou. Eu ri de volta.
Posicionamos a caixa de pizza e nos sentamos mais atrás, deixando Sofia livre na parte da frente para assar seus marshmallows. Ela mal comeu uma fatia de pizza antes de dizer que estava satisfeita e que queria sua sobremesa.
Eu e , porém, continuamos a comer pizza e beber vinho à medida que a noite ia caindo mais e mais.
Quando se cansou de comer seus merengues assados, Sofia se aconchegou entre as pernas do pai e acabou adormecendo.
– Filha?! – chamou, alguns minutos depois, quando finalmente percebemos. – Papai vai te levar pra cama. Ok? – Ele disse, se movimentando para ficar de pé e pegar a pequena nos braços.
Comecei a reunir as coisas, pensando em me levantar e entrar com o goleiro, mas ele disse, já de pé, segurando a filha, que agora dormia com a cabeça recostada em seu ombro:
– Não precisa entrar. Eu volto já!
– Tudo bem deixá-la sozinha? – Perguntei, preocupada.
– Sim, a casa está trancada e estamos no quintal. Não se preocupe. – Ele explicou, seguro de que não havia problema. – E ela está exausta, vai dormir como uma pedra.
– Se você diz… – Assenti então, voltando a colocar as coisas sobre o edredom.
– Espere aqui que volto num instante.


Capítulo 27

O jogador retornou algum tempo depois, se sentando ao meu lado no edredom que forrava o chão da praia.
– Dormiu? – Perguntei, sobre Sofia.
– Nem acordou, na verdade. Só a coloquei na cama! – Ele riu. – A vida é muito curta para vestir o pijama.
– Concordo. – Eu ri de volta, abraçada às minhas pernas. – Quando eu era criança, não tinha nada pior do que estar em um sono bem gostoso e ser acordada para tomar banho ou trocar de roupa.
– Ah, eu também! – Ele respondeu, ainda rindo. – E meus pais eram extremamente chatos com isso. Não me deixavam dormir sujo.
– Que absurdo! – Brinquei, com sarcasmo.
– Mas é sério! – Ele riu de novo. – Hoje em dia, com a Sofi, sou exigente com coisas que realmente possam prejudicar a segurança ou a saúde dela, como usar cinto de segurança, protetor solar... Mas quanto a isso? Se não tomou banho antes de dormir, de manhã ela toma. Não é grande coisa.
– Um pai moderno. – Comentei, rindo.
– Outros diriam irresponsável... Mas soa bem melhor quando você define. – Ele riu. – Gostei!
Rimos juntos mais uma vez, lado a lado sobre a areia, ainda morna apesar da noite fresca. Estávamos diante da iluminação, do calor da fogueira acesa à nossa frente e de um enorme mar, que, embora não pudéssemos ver, conseguíamos ouvir com clareza.
Uma brisa soprou, bagunçando nossos cabelos e nos distraindo do silêncio que se instaurou no lugar.
Mudando de posição, o jogador se deitou de costas sobre o edredom, onde antes estava sentado – assim como eu –, e ficou olhando para cima, observando o céu.
? – Ele chamou alguns segundos depois.
– Hum?
– Quando te disse sobre a praia... – Ele disse, olhando diretamente para mim, que fitava o longe numa tentativa de escape, já imaginando o teor da conversa. – Eu disse algo sobre nos darmos a chance de tentar de novo, de um jeito diferente. – fez uma pausa, buscando as palavras. – Queria saber se... você pensou sobre isso. Se está disposta ou não. Porque talvez você nem sinta vontade, e tudo bem. Mas eu queria saber. Algo no que você me disse aquele dia, sobre achar que poderia decifrar meus pensamentos pelas minhas atitudes, me faz pensar que havia algo a ver com isso.
Suspirei, sem conseguir encontrar as palavras certas para dizer.
Me planejei tanto para falar com ele sobre isso que, na hora H, permaneci muda por longos segundos, tentando formular uma frase.
– Ou não. – Ele disse, rindo sem graça, diante da demora para responder.
– Não, . Eu não disse que não quero! – Respondi, de pronto, quando percebi que ele tinha tirado as próprias conclusões.
– O que é, então? – perguntou, se virando de lado e apoiando o rosto em uma das mãos.
Estávamos próximos um do outro o suficiente para sentir nosso respirar. Não precisávamos falar alto demais para sermos ouvidos, até porque o único som além de nós vinha do mar.
A próxima casa na mesma praia ficava muitos metros distante e não havia outra presença humana ali além da nossa.
– Eu gosto muito de você. E, quando estamos juntos, como agora, queria poder congelar o tempo. Viver para sempre imersa nessa sensação aqui, de leveza e paz... – Desabafei, tentando não olhar para ele de volta para conseguir completar meu discurso. – Mas estou acostumada com as coisas dando certo e caminhando bem logo antes de dar tudo errado, . E foi assim conosco da última vez. Hoje eu sei que você não tinha a intenção de me ferir, mas não muda o padrão. Estávamos bem, até que não estávamos mais, e eu me machuquei. É sempre assim comigo. E esse padrão é muito doloroso para continuar se repetindo, por isso eu tenho medo. – Lamentei. – E eu não consigo evitar. Acho que, afinal, o que você disse sobre a minha insegurança é real. É exagerada, é forte demais, a ponto de me tremer as pernas e dar falta de ar só de pensar. Mas não é porque eu quero. Eu sinto muito mesmo.
O jogador parecia tenso quanto ao que eu dizia e, depois de pensar por alguns segundos, respondeu:
– Você passou por muita coisa, . Por muita coisa que não merecia passar... E eu sinto muito por isso. Sinto muito que hoje você tema sentir algo tão bonito. – disse, sério. – Queria poder voltar no tempo e te proteger dessas mágoas, principalmente daquela que fui eu que causei.
Suspirei, e o goleiro continuou:
– Olha, se você tivesse dito a mim que não quer porque apenas não sente o mesmo ou não tem interesse, eu não insistiria. Mas se você diz que quer e não consegue se abrir, eu quero te ajudar, . Não posso voltar no tempo e cuidar de você no passado, mas posso fazer isso de agora pra frente, se você permitir. Podemos ir aos poucos, até você se sentir segura… – Ele disse, com carinho.
Neguei com a cabeça.
– Nem sei se é possível me sentir segura de novo. – Resmunguei, baixinho, sentindo uma lágrima escorrer. Esse assunto sempre me desestabilizava emocionalmente.
– Me deixa tentar. – Ele pediu, também baixinho, esticando o braço na minha direção para secar com seu polegar a lágrima na altura da minha bochecha.
Respirei fundo e assenti com a cabeça, com uma vontade emergente de beijar o goleiro. Meu lado racional começava a ceder também, decidido a me permitir viver algo novo e diferente daquela vez.
seguiu acariciando meu rosto com carinho até que direcionou sua mão para minha nuca, por entre meu cabelo. Aproximou o rosto do meu e, como quem pede permissão, tocou nossos rostos, antes de selar nossos lábios em um beijo quente, que se estendeu por longos minutos, enquanto suas mãos passeavam por meu corpo e as minhas pelo dele.
Senti um arrepio percorrer minha espinha por esse envolvimento com , que era, ao mesmo tempo, muito mais e muito menos íntimo do que estávamos acostumados.
Voltei a ficar deitada com as costas sobre o edredom, e o jogador acompanhou, segurando minha nuca para nos beijarmos. Estiquei os braços em volta de seu pescoço, permitindo me entregar à deliciosa sensação de ter seus lábios passeando, lentamente, entre minha boca e meu pescoço.
Ajoelhado, com uma das pernas de cada lado da minha cintura, o goleiro passou a se ocupar em despir-se da camisa de botões que vestia.
Toquei seu peitoral e deslizei as mãos por todo o caminho até seu abdômen, despertando meu desejo ao sentir cada relevo que sua definição muscular de atleta permitia haver ali e me lembrar da falta que senti daquela sensação.
– Posso? – perguntou quando ergueu meu tronco, para facilitar seu trabalho de tirar minha roupa também.
Assenti com a cabeça, me lembrando daquelas sensações que um dia me foram tão comuns e que fazia tanto tempo que eu não sentia.
– Tudo bem se fizermos isso aqui? – Perguntei, num lapso de juízo, percebendo que ainda estávamos em uma praia.
Solo no si te da verguenza tener las estrellas de testigos. – O jogador brincou, sorrindo e abrindo um por um dos botões da camisa de flanela que escolhi para o jantar naquela noite que, a princípio, estava fria e, naquele momento, já não mais.
distribuía seus beijos pelo meu colo desnudo, arrepiando cada centímetro de pele do meu corpo. O roçar da barba do goleiro em meus seios enquanto seus beijos alcançavam meus mamilos causava uma sensação única e deliciosa.
Sua boca percorreu meu tronco, passeando pelos desníveis entre minhas costelas – que estavam ainda mais evidentes pela posição em que me coloquei, com os braços erguidos para trás e agarrando o edredom enquanto tentava resistir aos estímulos.
Quando os beijos de finalmente alcançaram meu umbigo, tomei a liberdade de desabotoar os botões do short jeans e abaixá-lo por conta própria para acelerar o processo. Não conseguia me lembrar se já havia estado assim em algum de nossos outros encontros íntimos. Acho que algo sobre saudade, tesão e paixão estarem relacionados; era real, afinal.
O jogador também parecia incomodado com a pressa para se despir, mas seguia tocando meu corpo com desejo e zelo simultaneamente.
Cada passar de suas mãos por meu rosto, cabelo e corpo me fazia sentir mais e mais vontade de tê-lo de todas as formas possíveis.
– Quer continuar? – O goleiro fez questão de se certificar mais uma vez antes de baixar meu short a beijos e me despir completamente.
– Quero muito. – Respondi, ajudando-o no processo e estando, em segundos, completamente desnuda à frente de . Senti meu corpo arrepiar, em parte pelo desejo, mas também pela brisa fria que vinha do oceano e bagunçava nossos cabelos e roupas – àquela altura, já jogadas pela areia.
se livrou de sua bermuda e me colocou por cima de suas pernas.
Frente a frente, sentindo nossos corações batendo e os corpos quase em ebulição, demos sequência aos beijos sufocantes que não se satisfaziam em tocar apenas os lábios. Desciam por todo o pescoço, tanto pelo meu quanto pelo dele.
Me permiti expressar naquele momento todo o desejo que tive por e tinha reprimido por tanto tempo. Minha boca explorava o corpo do goleiro em meio a beijos e afagos, quase como se eu o pudesse engolir.
Apesar de estarmos em um ritmo delicioso e quase melódico, meu corpo parecia ter pressa e ânsia de avançar, como se temesse acordar antes da melhor parte do sonho.
Ainda em meio àquelas sensações, não pude evitar o instinto de movimentar o quadril por cima de à medida que senti enrijecer o volume que a última peça de roupa dele ainda cobria. Percebê-lo crescer de prazer por minha causa era uma das sensações que eu mais gostava. Era bom demais ser desejada por , e ainda melhor ser tão bem tratada por ele na hora H.
Pude sentir as mãos grandes do jogador me segurando com mais força e intensificando o ritmo dos movimentos na direção em que meu desejo guiava, fazendo questão que seu corpo tocasse cada centímetro da minha intimidade, já inchada e molhada de tanto prazer.
– Que saudade eu senti de você. – Confessei, quase irracionalmente.
– E eu de você, hermosa mía.
sorriu maliciosamente, me puxando para mais uma rodada de beijos sufocantes.
O goleiro tomou uma de minhas mãos, beijou seu dorso – como se prestasse uma reverência a um membro da realeza – e seguiu o caminho de beijos por todo o meu braço e de volta ao seio, que ele beijava, chupava e mordiscava naquele momento.
Percebi algumas gotas de suor já se formando em sua testa e soube ali que a sensação de calor era mútua aos dois.
Comecei a tocá-lo por cima da cueca, fazendo-o arfar em resposta. Deslizei as mãos por sua cintura, na intenção de livrá-lo daquela última peça de roupa ainda no caminho entre nosso prazer, e, já desnudo, voltei a estimulá-lo com uma das mãos, me deleitando apenas ao ver que ele se deliciava a cada toque.
– Preciso que você pare. – O goleiro pediu, quase sem fôlego, algum tempo depois, me afastando e contendo minhas duas mãos.
– Parar? – Questionei, em um susto. – Por quê? O que houve?
– Se você continuar, não vou aguentar... – Ele disse, com o riso frouxo, deixando subentendido o recado. – E hoje eu quero ver você gozar primeiro. – completou, já tomando a liberdade de mudar minha posição. O rapaz me erguia com tamanha facilidade que era quase como se o peso de meu corpo fosse desprezível.
Antes que pudesse perceber, estava deitada mais uma vez e fazia dos próprios ombros apoios para minhas pernas. Eu sabia o que estava por vir e senti meu corpo tremer já por antecipação. A brisa praiana vinha forte mais uma vez, carregando o cheiro do goleiro para minha direção e me fazendo desejá-lo mais e mais.
Com toda sua desenvoltura, usou dos dedos e da boca para me fazer chegar ao ápice. A sensação da barba percorrendo os espaços ali embaixo era ainda melhor, e ele não mediu esforços para me agradar do início ao fim.
A visão turva, pernas trêmulas e pressão na pelve foram os sinais que senti de que em breve gozaria para , exatamente como ele queria que eu fizesse. Quando pensei que não aguentaria mais as investidas do jogador acelerando o ritmo do movimento de seus dedos, o cobri com uma ducha de prazer saída em jato de dentro de mim.
– Um squirt! – Ele riu maliciosamente. – Você já tinha tido um?
Neguei com a cabeça, mordendo os lábios e tentando conter minha tremedeira, que se estendia pelo meu abdômen, pelas minhas pernas e por todo o espaço entre elas, que, naquele ponto, parecia ter uma pulsação própria.
Antes de introduzir-se, aproveitou de sua desnudez e usou sua glande para acariciar minha entrada. Eu me contorci em deleite. Em seguida, usou uma das mãos para estimular meu prazer com um dos polegares e me penetrou devagar, usando a outra mão para fazer o encaixe. Com a boca, colada à minha, abafou um gemido que não pude conter ao senti-lo me preencher por dentro; mesmo sabendo que ninguém estava por perto e que minha vontade real era de gritar.
Não consegui conter mais um gemido à medida que as investidas de ficaram mais intensas. Eu sabia que o momento estava chegando para ele e podia sentir que chegaria ao segundo também.
Na ausência de um preservativo por perto, precisou extravasar seu prazer para fora, se derramando por cima de mim enquanto eu me mantinha excitada com os dois dedos em ritmo acelerado. Foram precisos poucos segundos até que o segundo orgasmo viesse.
Senti o peso do jogador desabar por cima de mim ao mesmo tempo que nossas respirações ofegantes tentavam se reestabelecer. Entrelaçamos as mãos e assim ficamos por mais algum tempo.
– Gostou do que fizemos hoje? – perguntou, se levantando e observando ao redor para se certificar de que estávamos realmente sozinhos. E estávamos. Como ele adiantou, tínhamos apenas a lua e as estrelas como testemunhas do que tínhamos acabado de vivenciar.
– Se eu gostei? Olhe para isso aqui. – Respondi, rindo, apontando para uma de minhas pernas, que seguia tendo espasmos enquanto eu tentava contê-los. Aquilo nos fez rir.
– Me acompanha em um mergulho? – Ele sugeriu, vestindo sua cueca.
– Se eu conseguir caminhar até lá… – Brinquei, ainda falando sobre os espasmos.
– Não vamos fazer disso um problema. – disse, me pegando nos braços com a facilidade de quem ergue uma pluma.
Soltei um gritinho pelo susto e caí na gargalhada enquanto ele caminhava até o mar comigo em seus braços, adentrando pouco a pouco a água – ainda estava morna, apesar da noite fria.
Quando a água cobriu completamente tudo abaixo de nossos ombros, permitiu que eu me soltasse de seus braços, apenas para ser envolvida por ele novamente, agora em um abraço, com as pernas presas ao redor de seus quadris.
– Sentiu medo? – Ele perguntou, com carinho, seus dois braços em volta de minhas costas.
Neguei, recostando a cabeça em seu ombro.
– Quero que seja assim. – disse. – Do jeito que for, mas que seja bom para nós dois.
Assenti, sentindo o goleiro beijar minha cabeça enquanto envolvia meus ombros com um dos braços.
– Que seja como seja, mas que estejamos juntos. – Respondi, arriscando um romantismo. – E que se for para tremer as pernas... Eu prefiro que seja assim. – Finalizei, com um tom mais malicioso, que nos arrancou mais uma risada.
– Eu aceito essa missão. Prometo fazer suas pernas tremerem sempre! – O goleiro respondeu, ainda em um sorriso, erguendo meu rosto para me beijar mais uma vez, com toda a paixão e esperança de quem queria muito fazer aquilo dar certo, assim como eu.


Capítulo 28

Despertei com o doce e incomparável aroma de panquecas invadindo o quarto onde eu dormia. Conferi o horário no relógio do celular e me levantei logo da cama, porque alguém que gostava tanto de praia quanto eu precisava começar o dia cedo, e – por esse parâmetro – eu já estava atrasada.
Desci depois de me trocar, lavar o rosto e escovar os dentes, já vestida com meu biquíni por baixo da roupa – pequenos detalhes que comprovavam o quanto qualquer dia começava melhor na praia, como eu sempre costumava dizer.
– Bom dia! – Falei, me aproximando da mesa principal, onde um café da manhã digno de hotel cinco estrelas estava servido. – Uau! Que mesa linda. Quem preparou tudo isso? – Perguntei, cumprimentando e Sofía, cada um com um beijo no rosto.
– Bom dia, ! Dormiu bem? – O goleiro perguntou enquanto comia uma fatia de torrada com geleia. Antes que pudesse responder à minha pergunta, Sofia tomou a palavra:
– Eu e meu pai! – Ela exclamou. – A gente usou a máquina de panquecas.
Puxei uma cadeira ao lado dela – e, estrategicamente, também ao lado das panquecas e do creme de avelã – e me sentei.
– É mesmo? Uau! Nem sei por onde começar! – Brinquei. – Sabe que... não me lembro quando foi a última vez que comi café da manhã em uma mesa posta como essa?
– Sério? – perguntou, impressionado.
– Sim! Sempre como na correria para sair logo de casa, ou compro um lanche qualquer na cafeteria do hospital. – Contei. – Mas acho que sinto falta desse clima de comer tranquila, sem pressa, em família. Vocês sempre fazem assim? – Comentei, me permitindo incluir um desabafo.
– Sim! Na casa dos meus pais, o dia só começa depois do café da manhã em família à mesa. Nem sei como é não ter isso, na verdade. Gosto de manter essa tradição mesmo quando estou sozinho em casa. – Ele comentou.
– Legal! – Eu disse. – Eu gosto da minha rotina corrida. Na verdade, acho que me acostumei. Mas esses detalhes fazem falta.
, ser médico é muito cansativo, não é? Vocês nunca param de trabalhar… – Sofia comentou algum tempo depois.
– É cansativo mesmo, Sofi. Mas paramos sim! Não estou aqui de férias descansando com vocês? – Respondi.
– Minha mãe disse que vocês nunca param, e que, até quando não estão no hospital, às vezes precisam trabalhar salvando as pessoas, como você fez com aquele moço no avião.
– Como a sua mãe sabe do... Como a mãe dela sabe? – Comecei a pergunta, curiosa, olhando para Sofia, mas logo direcionei o questionamento diretamente a , que pareceu também surpreso com a informação.
– Ela está fascinada com o que aconteceu. Quer contar para todo mundo que você é uma heroína. – O goleiro disse, rindo. – Ela conversa com a mãe por videochamada todos os dias de manhã... Deve ter contado a ela hoje mais cedo.
Eu mal tive tempo de rir, até Sofia completar a informação:
– E ela também disse que... você nunca vai ser uma boa mamãe, porque nunca vai ter tempo para os seus filhos. – Sofi contou, com ar chateado, parecendo triste por me repassar essa informação. – É verdade?
– Sofia! – repreendeu, e a pequena olhou assustada, sem entender.
– Tudo bem, . – Eu disse, percebendo o desconforto dele. – Na verdade, Sofi, eu conheço médicos e médicas que são excelentes pais e mães. – Contei, com carinho e paciência, agora olhando para Sofia. – Quando eles decidem se dedicar para a família, podem se planejar para isso. Escolher quanto tempo trabalhar no hospital para terem mais tempo em casa com os filhos... Funciona muito bem! – Contei, mesmo sabendo que, na prática, não funciona tão bem assim.
Na maioria das vezes, a estabilidade na carreira que te permitia flexibilidade de horários só era alcançada muito tempo depois da chegada dos filhos. Aquele era, inclusive, um dos principais motivos pelos quais eu não pensava em ser mãe um dia.
– Entendi! – Sofia exclamou, com inocência. – E você vai fazer isso?
– Bom... Se algum dia eu decidir ter uma família e me dedicar a ela, por que não? Posso fazer isso sim! – Menti, com um sorriso.
A ideia de abrir mão do meu trabalho antes de alcançar minha estabilidade financeira não era real, e eu sabia.
Sofi não teve nenhuma maldade na pergunta que fez e jamais ficaria chateada com uma criança por perguntar algo na inocência, mas, mesmo assim, saber que Veronica havia feito um comentário como esse antes mesmo de eu e assumirmos estar em um relacionamento sério me preocupava um pouco.
Logo demonstrou que pensava assim também.
, por favor, me desculpe pelo comentário de Sofia! Não fico por perto quando ela conversa com a mãe, então não ouvi quando esse assunto surgiu. Eu teria intervido na mesma hora. – disse, parecendo ainda desconfortável, logo que terminamos o café da manhã e saímos rumo à praia. Sofia brincava na parte rasa do mar, enquanto seu pai e eu a observávamos alguns metros atrás.
– Não por isso, ! Nem se preocupe... Ela nem está errada. É algo difícil mesmo de conciliar. – Comentei, rindo amarelo.
– Mas não é o tipo de coisa que alguém em sã consciência diria a uma criança. O que Sofia vai fazer com essa informação? – O jogador resmungou.
– Nada! Ela não fará nada, porque eu já sanei a curiosidade e ela vai esquecer em breve. – Falei para amenizar. – Não se preocupe, . Não quero que isso seja um problema. Vamos acreditar que ela não falou por mal... Assim não alimentamos nenhum sentimento ruim.
– É mais difícil quando você sabe com quem está lidando. – Ele riu amarelo. – Mas tudo bem, vamos fazer assim. – O goleiro concluiu, me abraçando de lado e beijando o topo da minha cabeça com carinho.
Passamos um longo dia brincando na praia e, mais tarde, fomos os três juntos para um passeio de lancha muito gostoso. Comemos em alto-mar e voltamos já no final do dia, com as bochechas e olhos vermelhos como resultado do dia divertido.
– Podemos assistir a um filme na televisão? – Sofia pediu ao pai, depois de vestir seu pijama, enquanto pegava na pequena geladeira do quarto uma garrafa de água. Eu estava por perto, apenas observando, já pronta para me despedir dos dois e ir até o quarto onde estava hospedada.
– Hum... Acho que você não vai conseguir ficar acordada nem até a metade... – Ele riu. Os dias de praia realmente nos derrubavam, e era ainda mais intenso se tratando das crianças, mas não negou o pedido. – Mas, sim. Podemos. O que acha da ideia, ? – perguntou.
– Por mim, tudo bem! – Respondi, sendo interrompida por um bocejo. – Apesar de talvez eu também não aguentar passar da metade. – Confessei, rindo.
Nos acomodamos os três na cama, puxando as cobertas para compensar a temperatura do ar-condicionado regulada por . Sofia logo se deitou ao lado do pai e eu continuei sentada do outro lado da cama, com as pernas cruzadas enquanto esperava o início do filme.
, deite-se aí também. Não se acanhe. – disse, temendo que eu estivesse com vergonha de me aconchegar com os dois.
– Sim, tia . Por favor. Eu sempre quis isso. – Sofia pediu, com seu jeitinho meigo, e eu me rendi.
Afastei a coberta e me aconcheguei ali, ao lado dela, que ficou deitada entre e eu.
– Sempre quis o quê, filha? – O pai perguntou, sem entender.
– Saber como as crianças que moram junto com o pai e a mãe se sentem na hora de dormir. É assim, não é, papai? – Ela surpreendeu com a resposta, nos deixando sem palavras. – Não é, papai? – Sofia reforçou a pergunta, olhando para a televisão, sem se importar muito, mas trazendo o pai de volta para a realidade.
– Sim, meu amor! É exatamente assim a sensação de estar no meio de duas pessoas que amam você. – Ele respondeu, beijando o rosto da filha com carinho e, em seguida, piscando um dos olhos para mim, que sorria de volta para ele, pela espontaneidade no comentário de Sofi.
Eu apenas torcia para que esse passo adiante que e eu estávamos prestes a dar não nos trouxesse problemas. Provavelmente faria com que nós dois tivéssemos muitos outros momentos juntos – dos quais Sofia provavelmente participaria –, principalmente agora que o pai detinha metade de sua guarda. Estar com eles era muito bom e leve. Eu esperava que continuasse assim.
Alguns minutos depois, como já esperávamos, Sofia estava completamente apagada.
– Olha só.
Toquei o braço de , para chamar sua atenção, e ele riu ao observar a menina adormecida.
– Ela sempre insiste em ver filmes e dorme antes da metade. – Ele comentou, e eu sorri, acariciando o rostinho da pequena, totalmente entregue e sereno.
– Você acha que ela vai se dar bem com isso? – Perguntei, algum tempo depois.
– Claro que vai. – respondeu para me tranquilizar. – Ela ama você! Vai ficar muito feliz quando souber.
– Não diremos nada por enquanto, né? Vamos esperar pelo menos um pouco antes. – Sugeri.
– Bom, se você achar melhor assim...
– Só um pouco. Afinal, estamos indo devagar, né? Não quero pegá-la de surpresa. E se ela só gosta de mim como sua amiga? E quando souber que estamos juntos ficar enciumada? Temos que tratar disso com jeitinho. – Falei.
– Certo. Mas não vai ser o caso, fique tranquila! – respondeu, certo do que dizia, beijando meu rosto.
– Eu espero que não. – Falei, suspirando. – Porque se eu tiver que pagar o carma por tudo o que fiz minha madrasta passar, coitada... Tenho muito para sofrer. – Brinquei, e o goleiro – que já sabia de toda a história de peças que preguei quando criança na namorada, e atualmente esposa, do meu pai – gargalhou.
– Não se preocupe com isso! Tenho certeza de que a reação dela será a melhor possível.
– Tomara! – Respondi, sorrindo. – Vou me deitar. Vejo vocês amanhã.
– Até amanhã, . Bons sonhos! – disse, mandando um beijo no ar e cobrindo Sofia com a coberta. Então, se apossou do controle remoto para mudar o canal e assistir algo mais apropriado para a sua idade.
Passamos o resto da semana nos divertindo muito na linda cidade de Marbella e, quando enfim chegou o momento de regressar, me deixou em casa antes de seguir com Sofia para sua casa, onde a pequena dormiria. No dia seguinte, depois da escola, iria para a casa da mãe, na qual ficaria pela próxima semana. Assim, me disse, estavam funcionando as semanas alternadas de guarda compartilhada entre ele e Veronica.
Apesar da ausência de Sofia, o jogador e eu seguimos nos vendo durante a semana. Tomamos o cuidado de não nos expor muito em lugares públicos a fim de evitar possíveis olhares curiosos e cliques de paparazzis – que eram parte de um novo mundo para mim, mas, para , eram parte de seu dia a dia.
Assim fizemos, para não correr o risco de acabarmos estampando blogs de notícias de subcelebridades e assumir o risco de Sofia acabar sabendo sobre nós antes que tivéssemos a oportunidade de conversar com ela sobre isso.
Amanda embarcou rumo à sua tão sonhada residência ortopédica nos Estados Unidos pouco mais de duas semanas depois de eu ter chegado da praia. Apesar de algumas lágrimas que escaparam no momento de nossa despedida – o que já era esperado vindo de mim, que era capaz de chorar até mesmo assistindo a uma comédia na televisão –, eu estava muito feliz pela minha amiga. Sabia que sentiria muita falta dela, mas que continuaríamos conectadas sempre que fosse possível e que essa experiência seria muito enriquecedora para ela.
Já estava a caminho de casa, refletindo sobre aquele misto de sentimentos dentro do metrô – afinal, o carro que dividíamos pertencia a Amanda e fora vendido por seus pais poucos dias antes, já que manter um carro em Madrid já não seria útil, considerando que ela estaria em Nova York pelos próximos dois anos –, quando fui surpreendida por uma mensagem de .
“Hola, linda. Como foi o dia? Levou sua amiga ao aeroporto?”
“Oi, ! Levei sim! Estou a caminho de casa agora, aliás. E seu dia, como foi?”
Enviei de volta.
“Ótimo! O dia foi bom, mas estamos com saudade da praia por aqui…”
Ele disse, logo antes de enviar uma selfie dele e Sofia fazendo careta e vestindo chapéus e óculos de sol.
“... E da sua companhia! Por que não muda a rota e vem passar a noite com a gente hoje?”
completou, me arrancando um sorriso na mesma hora que li.
“Não resisto a vocês! Por sorte estou livre amanhã. Vou em casa pegar um pijama e chego aí em breve.”
Respondi, antes do goleiro enviar mais uma selfie com a filha e a mensagem:
“Te esperamos.”
Passei rápido em casa, coloquei uma peça de roupa e um pijama dentro da bolsa, peguei meu material de trabalho para o dia seguinte e deixei um pouco de ração extra para Thalamus passar a noite, antes de pegar um Uber para ir até a casa de .
– Tia ! – A menininha exclamou ao me ver, me recebendo com um abraço apertado.
– Oi, boneca! Como está?
– Tudo bem. Sofi respondeu, logo antes de seu pai entrar em cena, parecendo se esforçar para lembrar de me cumprimentar com um abraço amigável e um beijo na bochecha em vez de um selinho.
– Como vai, ? – Ele perguntou, rindo sem graça ao perceber que eu notei o quase deslize.
– Estou bem, e vocês? – Perguntei.
– Ótimo. Você chegou junto com o sushi, vem jantar com a gente. – adiantou, tomando Sofia pela mão e caminhando em direção à sua sala de jantar, onde a mesa estava posta e havia um lugar extra, que deduzi ser o meu.
¿Te gusta el sushi, ? – Sofia quis saber antes de se sentar em seu lugar na mesa.
O lugar da pequena estava especialmente preparado para ela, com pratos e copos cor de rosa de acrílico, em vez dos que preenchiam os dois outros lugares à mesa, em cerâmica preta e fosca, como a maioria dos utensílios da luxuosa cozinha de . Inclusive, era assim também a caneca que tinha quebrado no inesquecível primeiro dia que estive ali.
– É uma das minhas comidas favoritas, Sofi!
Sorri de volta para a menina.
sabia que eu gostava de comida japonesa, mas, para a pequena, essa informação era nova.
– Se você não gostasse, papai poderia pedir outra coisa para você. Ele faz assim quando a Lupe está aqui. – Ela contou, e eu assenti, mesmo sem saber de quem ela estava falando.
Crianças sempre contam histórias e dão informações nomeando pessoas, mesmo que não saibamos de quem se trata. Meus pacientes faziam isso sempre e eu até aprendi a concordar, como se soubesse.
– Guadalupe é a minha funcionária, que cuida da casa. E de Sofia também, algumas vezes. – explicou, rindo. – Ela passa algumas noites aqui quando minha mãe não pode vir e eu preciso sair. É quase a segunda avó da Sofi. Né, filha? – Ele perguntou, e Sofia assentiu. – Mas ela não gosta de sushi, então normalmente pedimos outro prato para ela jantar conosco, quando esse é o cardápio.
– Ah, sim! – Assenti, também sorrindo. – Esse seu papai é muito gentil, não é?
– Ele é! – A menininha assentiu.
– Acho que nunca vi uma criança tão feliz comendo comida japonesa quanto você, Sofia! – Comentei, algum tempo depois, quando já estávamos comendo.
– Você viu a classe dela para usar os hashis? – comentou, sarcasticamente, chamando atenção para o fato de que Sofia usava apenas um hashi para pegar suas peças de sushi e levá-las à boca, fincadas no palito como se fosse um garfo.
Caímos na gargalhada os três juntos.
– É mais fácil assim! – A pequena se justificou, rindo com a boca cheia.
– Errada não está! – Comentei.
Apesar de saber manusear os hashis com destreza agora, não havia sido assim sempre. O método de Sofia parecia genial.
– Tia . – Ela chamou, algum tempo depois, quando paramos de rir da forma com a qual ela pegava suas peças de sushi.
– Diga, meu amor.
– Você tem um namorado? – Sofia perguntou, com inocência, e eu troquei olhares assustados com antes de responder.
– Não tenho, querida. Por quê? – Questionei, pensando que aquele era o melhor caminho por enquanto. Não era assim que queríamos contar para ela que estávamos juntos e, afinal, não era mesmo um namoro, já que não houvera um pedido.
– À toa – Ela deu de ombros, espetando mais uma peça de sushi em seu hashi. – Só queria saber.
Respirei aliviada uma vez mais e pareceu fazer o mesmo, discretamente, logo antes de trocar o assunto para evitar um novo comentário desconfortável.


Capítulo 29

, parece que alguém apagou antes do final do filme de novo. – Eu disse, tirando a atenção de da tela de televisão, onde mais um filme infantil passava enquanto nós três assistíamos novamente, reunidos na cama de Sofia, como fizemos aquela vez na praia.
– Ah! – Ele riu, observando a pequena adormecida. – Eu digo, ela vê sempre apenas a metade dos filmes.
– Você tem uma garotinha bem especial aqui, você sabe disso, não é? – Comentei, tocando com carinho o rostinho de Sofi, enquanto falava com seu pai em tom bem baixo para não a acordar.
– Tenho duas. – Ele sorriu, corrigindo a informação e me incluindo nela. Sorri de volta, antes de voltar a observar Sofia enquanto acariciava seu rosto.
– Não quero continuar mentindo pra ela. – Confessei em um suspiro, ainda sem olhar para . – Ou omitindo, seja lá o que estamos fazendo. Acho que já é hora de contarmos, antes que ela descubra sozinha. O que você acha?
– Claro. – O jogador dizia, parecendo totalmente de acordo. – Eu estava mesmo só esperando você concordar. Por mim, já teríamos contado. – Ele concluiu, rindo timidamente.
– Amanhã depois do colégio ela já volta para a mãe, então... diremos amanhã mesmo? No carro, antes da escola? – perguntou, algum tempo depois, explicando a situação. Se não contássemos a Sofia já no dia seguinte, teríamos que esperar por mais uma semana inteira.
– Ai. – Comentei, expressando nervosismo. – Tudo bem. É melhor do que esperar a próxima semana.
Ele riu.
– Está nervosa?
– Um pouco, sim. – Confessei. – Tenho muito carinho por ela. Espero que isso não mude em nada.
– Não vai mudar, não seja boba. Vai ficar tudo bem! – disse, me tranquilizando.
– Sei lá. – Dei de ombros, falando em expressão assustada. – Fico pensando se meu pai não disse a mesma coisa para a minha madrasta, logo antes de tudo ficar absolutamente nada bem.
Soltamos uma gargalhada espontânea logo que terminei de falar e Sofi pareceu se despertar rapidamente, abrindo os olhos parcialmente, em uma expressão confusa.
– Shhh, volte a dormir, filha. Não foi nada. Desculpe. – disse, parando de rir imediatamente e fazendo um carinho em Sofia, que logo se ajeitou em outra posição e voltou a dormir.
O goleiro então sinalizou com a cabeça para que saíssemos do quarto, para evitar um novo momento como aquele.
Eu assenti, e assim o fizemos. Desliguei a televisão e apaguei as luzes enquanto ajeitava o cobertor da filha e a temperatura do termostato na parede.
Seguimos juntos até a suíte principal e o jogador disse que, antes de dormir, precisaria de um banho.
Assenti e permaneci no quarto, deixando o barulho da televisão do cômodo ao fundo enquanto usava meu celular, navegando pelas redes sociais. Isso até voltar do banho – minutos depois – trazendo nas mãos uma pequena embalagem.
– Para podermos dividir, antes eu tenho que tornar oficial, certo?
– Oi? O que é isso? – Perguntei, sorrindo, sem entender, mas já apertando o botão mute no controle remoto para silenciar a TV.
– Abre! – Ele disse, sorrindo de volta.
Abri a embalagem com a pressa de uma criança ao receber um presente, e de lá tirei uma caixinha e um cartão.
Dentro da caixa aveludada, um pequeno anel de ouro rosé, com pequenos cristais em volta e uma pedra solitária de topázio. No cartão – que quase não consegui ler de tão trêmulas que estavam minhas mãos –, estava escrito, com a letra do goleiro:
“Si lo ponen fácil, nos encontramos.
Si preguntam, lo asumimos.
¿Qué te parece? :P”

parafraseava uma de nossas primeiras conversas, quando propôs a amizade con derechos e tentou me explicar como funcionaria, dizendo que aproveitaríamos qualquer oportunidade de nos encontrar e que, se alguém perguntasse, negaríamos.
A proposta agora era de seguir aproveitando as oportunidades de se encontrar, mas, ao sermos questionados, acedermos.
¿Quieres ser mi novia, ? Ahora en oficial. – O goleiro perguntou enquanto eu ainda observava o cartão.
Ri pela tensão do momento, mas sem qualquer sombra de dúvida sobre qual seria minha resposta.
Antes que pudesse colocar a jóia que me dera em meu dedo, me joguei em seu abraço e exclamei:
– É apenas o que eu mais quero, corazón. Obrigada!
Caímos, ainda abraçados, na cama e fizemos com que a noite se tornasse especial, agora já com a oficialização de nosso relacionamento.

Acordei no dia seguinte junto com , ao soar de seu despertador. Ao perceber a movimentação, questionei, esfregando os olhos:
– Que horas são?
– São sete e meia. Preciso acordar Sofia para a escola. – O goleiro explicou, silenciando o despertador do celular. – Pode dormir mais um pouco, se quiser. Te chamo na hora do café. – Ele sugeriu, se virando pela cama para me dar um beijo antes de se levantar.
Tentei fazer o que sugeriu e continuei na cama por mais algum tempo depois dele se levantar para acordar a filha, mas a ansiedade pelo momento de dividir as novidades com Sofia não permitiu que eu aumentasse minhas horas de sono. Então, me levantei e me troquei antes de ir ao seu encontro.
– Bom dia! – Exclamei, depois de duas batidas na porta do quarto, que já estava aberta. A pequena estava vestida em seu adorável uniforme xadrez em tons de verde e azul escuro, sentada sobre a cama enquanto pegava algo no armário logo ao lado.
– Oi, tia . Bom dia! – Ela respondeu.
– Bom dia! – exclamou também, como se ainda não tivéssemos nos visto nesta manhã, se ajoelhando e ajudando Sofia a calçar as meias três-quartos brancas e as sapatilhas pretas de seu uniforme. – Você penteia os cabelos ou quer que o papai penteie para você? – Ele perguntou, casualmente, algum tempo depois, pegando uma escova de cabelo e creme de pentear no banheiro da suíte da filha.
– Papai, você sabe fazer o penteado da Elsa? – Sofia quis saber, acariciando suas madeixas enquanto dobrava o pijama usado pela pequena e seus outros apetrechos, com a naturalidade de quem faz isso sempre. Eu seguia observando com os braços cruzados, encostada na batente da porta e com um sorriso bobo no rosto.
– Não sei nem o que isso é, minha filha. – Ele riu. – Sinto muito. Quer ver se a Lupe consegue fazer isso para você?
– Acho que consigo fazer isso. – Me intrometi, adentrando o quarto.
Sempre tive uma facilidade grande em fazer meus próprios penteados, minhas próprias unhas, maquiagem e todo o resto. No ensino fundamental, na escola, ficava sempre responsável pela produção do penteado das amigas, que chegavam até mais cedo apenas para que eu arrumasse seus cabelos no pátio do colégio, antes do soar do sino de entrada. Apesar de ser uma autodidata, o resultado sempre agradava as “clientes”.
Alguns talentos não se perdem, e eu me sentia capaz de fazer o penteado da Elsa em Sofia. Ou, em outras palavras, uma trança embutida em seus fios loiros de cabelo.
– Melhor ainda! – O goleiro exclamou, sorrindo, parecendo se dar conta de que eu ainda estava ali por perto observando-os. – Tia cuida do seu cabelo e, enquanto isso, o papai vai se trocar para tomarmos café da manhã. Pode ser? – Ele perguntou, agora diretamente a Sofia.
– Pode! – Sofia exclamou, sorridente. – Aqui tem os elásticos. – Ela disse, pegando os elásticos na gaveta de sua mesa de cabeceira. Enquanto isso, seguia de volta em direção ao seu quarto.
Alguns minutos depois, terminei o penteado, e Sofia pareceu amar o resultado. Descemos pelas escadarias da casa conforme sentíamos um delicioso aroma de café fresco, e também de algo como waffles e ovos mexidos, ficando cada vez mais evidente.
– Bom dia, meninas! – Uma senhora disse ao nos ver aproximando. Ela tinha nas mãos uma jarra de suco, a qual posicionou junto aos demais itens da mesa de café da manhã.
– Bom dia. – Eu e Sofi respondemos, em coro.
, essa é Guadalupe, de quem te falei. – se aproximou vindo da cozinha, trazendo consigo um prato de ovos mexidos. – Nosso braço direito aqui em casa. É graças a ela que esse lugar está sempre arrumado. E com comida boa, porque... não sei cozinhar. – Ele riu.
A senhorinha sorriu tímida com o elogio, e eu me aproximei para cumprimentá-la.
– Oi, Guadalupe! Eu sou a . Ainda não experimentei as delícias do seu café da manhã, mas o cheiro me trouxe lá de cima. Está maravilhoso! – Falei, apertando sua mão.
– Espero que goste do sabor também, . Obrigada! – Ela sorriu e, em seguida, completou: – Vou deixá-los à vontade. Com licença.
Nos sentamos os três à mesa, Sofia com seu waffle e achocolatado, com ovos mexidos e café e eu com suco e torradas com geleia.
– Papai! – Sofia chamou, despretensiosa, bebendo seu achocolatado.
– Diga, meu amor. – Ele respondeu, sem qualquer preocupação, também degustando de seu café.
– O que vocês vão me contar hoje? – A pequena questionou, quase nos fazendo cuspir as bebidas em um susto.
– Como? – quis entender enquanto eu tentava me desengasgar do pedaço de torrada, que provavelmente tinha mergulhado rumo ao meu pulmão.
– Ontem à noite quando eu estava dormindo, ouvi vocês dizerem que me contariam algo hoje, antes que eu fosse para a casa da mamãe. – Ela explicou. – Eu achei que estivesse sonhando, mas aí vocês riram alto e eu acordei e vi vocês, então era verdade.
O jogador parecia sem reação, e, apesar de já não estar mais engasgada, eu também estava perplexa com a sagacidade dessa criança. Demos de ombros, rendidos a dizer a verdade agora que havia uma deixa perfeita.
– Sabe o que é, filha? – introduziu o assunto, buscando pelas palavras que provavelmente havia ensaiado, igual a mim, mas que, naquele momento, simplesmente lhe haviam sumido da mente. – Você já sabe que o papai e a tia são amigos e gostam muito um do outro, não é?
Sofia assentiu, atenta na conversa.
– Estamos convivendo muito ultimamente, Sofi, o que fez com que nós dois começássemos a gostar um do outro mais do que só como amigos. – Tomei as rédeas da conversa, atraindo para mim os olhinhos negros e curiosos de Sofia.
– E queríamos saber o que você acha da ideia de eu e sermos... namorados? – perguntou, um pouco confuso com as palavras. – Isso não vai mudar em absolutamente nada o que o papai sente por você, tá bem? Você continua sendo minha princesinha e a pessoa que mais amo nesse mundo. Sempre que quiser ter algum tempo a sós com o papai, é só dizer e teremos. E com a também será igual, mas agora ela vai passar mais tempo conosco. O que você acha disso?
Sofia seguia revezando o olhar entre seu pai e eu, sentados frente a frente na mesa, com ela sentada na ponta, entre nós.
A ausência de reação da menina foi o suficiente para que eu tivesse certeza de que tudo havia dado errado e que, a partir de então, eu pagaria por todos os meus pecados com minha madrasta.
– A vai ser da nossa família? – Ela perguntou, alguns segundos depois de nos encarar por cima da caneca onde tomava achocolatado.
– Bom, sim... É mais ou menos isso. – respondeu, também meio tenso. – Pode parecer estranho no começo, mas eu tenho certeza de que logo você vai se aco...
– Eu sempre quis ter uma família de três pessoas! – Sofia exclamou, abrindo um grande sorriso e nos surpreendendo. – Eu quero muito que você seja da nossa família, . – A pequena disse, saltando da cadeira e vindo em minha direção para me dar um abraço. Ela parecia realmente muito feliz.
– Ah, meu amor... – Falei, respirando aliviada enquanto retribuía o abraço. – Fico muito contente por saber disso.
– Isso significa que você vai ser minha madrasta? Como a da Cinderela? – Sofi perguntou, saindo do abraço.
– Ah, o nome é esse sim, mas eu vou ser uma madrasta muito mais boazinha que a da Cinderela, prometo! – Falei, segurando suas mãos. – E você pode chamar como preferir... Não precisa dizer “madrasta” se não quiser. Também não gosto muito dessa palavra.
observava logo ao lado.
– Para mim, você parece mais a fada madrinha! – Ela sorriu, refletindo sobre a história da Cinderela. – Porque você é boazinha e ainda faz penteados de princesa como esse. – Sofia disse, mostrando a trança em seu cabelo.
– Amei essa ideia. Serei a fada madrinha, então. Certo? E você pode continuar a dizer “tia ” como já está acostumada.
Ela assentiu, sorrindo de volta e retornando ao seu assento.
e eu trocamos olhares aliviados e sorridentes, agradecidos pela reação dela ter sido tão positiva. Logo terminamos nossa refeição e seguimos com Sofia em direção ao seu colégio.
– Tchau, filha. – se despediu, agachado na altura da pequena para dar-lhe um abraço antes que ela entrasse pelo portão. – Te vejo na próxima semana, está bem? Amo você!
– Tchau, papai. – Ela respondeu. – Também amo você.
Permaneci parada ao lado dos dois, observando aquela cena adorável, até que Sofia veio até mim e também se despediu com um abraço.
– Tchau, tia . – Ela falou, se corrigindo imediatamente em um sorriso adorável. – Quer dizer, tia-fada-madrinha.
Eu sorri, retribuindo o carinho.
– Tchau, minha fadinha. Tenha um bom dia e uma boa semana!
O termo “madrasta” é pesado e, até no dicionário, tem uma definição péssima. Então, embora fosse mesmo a minha função, eu esperava conseguir construir com Sofia uma relação saudável e amorosa, como ela merecia. Algo que só fui conseguir ter com a minha própria madrasta muitos anos depois, porque não tinha lhe dado abertura antes. Por sorte, Sofia me pareceu bem aberta, e eu só poderia agradecer por isso.
Já no carro, quando pensei que ganharia uma carona até meu apartamento, ouvi dizer:
– Nem acredito que estou livre do treino hoje. – Ele comentou, abotoando o cinto de segurança. – O que você acha de irmos para casa e passarmos o resto do dia descobrindo quantos filmes é possível assistir em sequência, deitados no sofá? – O jogador brincou, e eu ri.
– Bom, eu achei que ia voltar para casa, mas esse me parece um plano melhor. – Comentei.
– Você não trabalha hoje e nem eu. Essa é uma raridade a ser celebrada, mi amor.
– Claro! Você tem razão. – Comentei, sorrindo. – Antes de irmos, se importa em passarmos no meu apartamento? Preciso dar de comer a Thalamus. – Pedi.
O bichano tinha seus potes de ração espalhados pelo apartamento, mas – ainda assim – eu temia que ele já tivesse comido tudo e ficasse com fome eventualmente ainda naquele dia.
Estava me adaptando ao fato de não ter Amanda em casa e precisar cuidar sozinha dele.
– Claro. Sem problemas! – Ele assentiu, dando partida e dirigindo o veículo pelas ruas de Madrid.
O goleiro foi até meu apartamento e subiu comigo.
Enquanto eu me ocupava em trocar a água dos potes de Thalamus, servindo-lhe mais ração e limpando suas caixinhas sanitárias, tentava fazer amizade com o felino.
, veja só. Somos amigos! – Ele disse, empolgado, com o gatinho branco passeando por suas pernas depois de alguns minutos de entrosamento.
– Você gostou do , meu amor? – Perguntei, erguendo o felino. – Eu sei, ele é fantástico, não é? Sim, bonito também, eu concordo. – Falei, em tom de brincadeira – como se o gato estivesse dizendo aquelas coisas –, arrancando uma risada do goleiro.
– Obrigado pelo elogio, Thalamus. – O goleiro disse, fingindo que ajeitava uma gravata, com a qual nem estava vestido. – O que serei dele, uh? Padrasto? – perguntou, confuso quanto ao termo.
– Todos somos meros escravos do gato até que se prove o contrário. – Eu ri. – Mas acho que padrasto serve.
– Ótimo. – O goleiro comentou, brincando com o gatinho mais uma vez. – Você pensa em ter mais gatos? – Ele perguntou.
– Hum, eu acho que... sim. Não sei, nunca pensei nisso. Por quê?! – Respondi, confusa.
A adoção de Thalamus nem estava nos planos, mas foi um daqueles eventos inesperados da vida que saem melhor do que a encomenda, e agora eu já não via mais minha vida sem ele.
– Ah, por nada. – deu de ombros. – Quem sabe mais adiante podemos adotar um irmão para Thalamus... E fazer dele nosso primeiro filho. – disse, rindo. – Primeiro e único, certo? – Ele completou, um pouco mais sério. – Já que você não quer ter filhos humanos.
– Ei, não acha que está indo um pouco rápido demais com isso? – Questionei, rindo, sem graça.
Fazia apenas um dia desde que nos tornamos oficialmente namorados e ele já estava mencionando filhos.
– É só uma brincadeira, corazón! – disse, recuando no assunto.
– Na verdade, não é. – Tomei a palavra. – É um assunto sério, e você tem razão. A gente deveria conversar sobre isso.
suspirou, se aproximando de mim. Ficamos frente a frente, apoiados nos ombros do sofá. Continuei a falar:
– Se vamos ter algo sério, é melhor termos isso alinhado para não termos problemas no futuro. – Expliquei. – É algo que você quer muito. Não é?
O jogador respirou fundo antes de responder.
– Bom, eu não sei se... Eu acho que, talvez, eu...
– Você quer muito. – Afirmei, sem conter uma risada. – E, mesmo que tente, não vai conseguir omitir isso a vida toda. Pode dizer.
– Na verdade, eu só não acho que precisamos ter isso definido agora. – Ele se explicou. – Minha mãe, por exemplo, não queria ter filhos. Até ter três deles. Pode acontecer.
Neguei com a cabeça antes de explicar.
– Eu não estou dizendo que não possa acontecer igual comigo... Só não quero que você tenha que contar com isso. Entende? – Eu disse. – Não quero que, em mais alguns anos, você se frustre caso eu não mude de ideia.
– Eu não vou. – Ele respondeu, pegando minhas mãos, em tom tranquilo e parecendo conformado.
– Você não sabe, . – Retruquei. – E, na verdade, mesmo que diga que não, eu já me sentiria mal por isso. – Fiz uma pausa de alguns segundos para pegar fôlego, e logo continuei: – Sabe que... às vezes, vejo você com Sofia e só consigo pensar: “Uau! Essa garotinha tem muita sorte por ser filha de alguém tão incrível”, e isso me faz pensar que outras crianças também merecem esse privilégio. Crianças que poderiam ser as minhas crianças. Você entende? – Expliquei, tentando soar compreensível. – E, ao mesmo tempo, você merece poder sentir isso mais vezes. Merece vivenciar uma paternidade em tempo integral, desde o começo, sem essas restrições de guarda compartilhada. E eu temo não poder dar isso a você. – Desabafei. – Mas também temo chegar um dia e me sentir obrigada a dar esse passo tão grande e importante só por você, e não por nós dois. – Continuei falando, sentindo a tensão aumentar. me observava com aparência confusa. – Eu sei que isso parece precipitado, mas o assunto surgiu e é necessário. Se estamos formalizando o relacionamento agora, é porque vemos futuro nele. E essa questão não é como se eu quisesse jantar salmão e você preferisse lagosta... É uma daquelas capazes de mudar tudo. Então, foi bom você tocar no assunto.
respirou fundo, observando o ambiente ao redor e pensando no que responder. Enquanto isso, eu me perdia nos meus pensamentos. Aao mesmo tempo em que concordava que a questão era importante, torcia para não ser algo que nos fizesse ter que finalizar o que havíamos acabado de começar.
Corazón, olha só... – Ele me chamou, parecendo pedir calma. – Não sei como as coisas vão ser em mais alguns anos, honestamente. É sim uma grande decisão, mas não acho que faça sentido tomá-la agora, ou deixar que ela defina o rumo do nosso relacionamento, porque, com o tempo, outras questões vão surgir.
Ele fez uma pausa para pegar fôlego antes de seguir.
– Mesmo que a gente entre em um acordo hoje sobre ter filhos ou não, lá na frente podemos voltar a discordar sobre isso, ou algo ainda maior. Vai que... eu queira me aposentar e ir viver em um trailer, viajando pelo mundo, e você jamais queira trocar o sossego de uma casa confortável na cidade? – O goleiro riu com o exemplo extremista e eu fiz o mesmo. – Nesse caso, se tivermos filhos ou não, se o jantar for lagosta ou salmão... Não vai fazer diferença. Vamos precisar entrar em um acordo novamente ou então seguir outros caminhos, e tudo bem se isso acontecer. – O goleiro explicou didaticamente. – Mas esse não é o caso agora, e o presente é o único com o que me preocupo, . Agora, me sinto completo por ter você e Sofia. Se alguém mais tiver que chegar, será para completar algo que já é maravilhoso; e não vou ser hipócrita, eu vou adorar. Mas, se tiver que escolher entre uma vida com mais filhos ou uma vida com você, eu escolho a vida em que você estiver. Tudo bem? – terminou de dizer, me fazendo lacrimejar.
– Tem algo sobre você que faz a ideia parecer menos assustadora, eu não sei explicar. – Falei, sorrindo enquanto enxugava uma lágrima. – Acho que você faz parecer que, mesmo que eu seja uma mãe terrível, ter você como pai vai compensar, e meus filhos não crescerão traumatizados. – Completei, e ele riu de volta.
– Já está até falando como se fossem reais.
Dei de ombros.
– Talvez um dia eles sejam. – Falei, e logo completei para não elevar as expectativas do goleiro: – Em dez anos, talvez... – Eu ri. –Enquanto isso, aceito a ideia de um filho felino para fazer companhia ao Tatá. Ok?
– Está bem. Posso lidar com isso. – Ele respondeu, em um sorriso, se dando por vencido e me puxando para um beijo.


Capítulo 30

Quando decidimos contar a Sofia sobre nosso relacionamento, eu tive muito receio que a reação dela fosse ruim. Principalmente porque eu, melhor do que ninguém, sabia o quanto um enteado insatisfeito podia tirar a paz do relacionamento de um casal. Fiquei muito feliz por esse não ter sido o caso e por ter concluído assim, precipitadamente, que o caminho a seguir com e com ela seria um caminho extremamente tranquilo.
Descobri algum tempo depois que – ainda que o enteado esteja feliz com seu novo padrasto ou madrasta – existia alguém que podia buscar tirar essa paz da mesma forma.
– Não, papai. Esse eu não quero vestir. – Sofi dizia diante da roupa escolhida pelo pai para jantarmos fora neste dia.
Eu ouvia a conversa, alguns metros distante, fazendo minha maquiagem no banheiro da suíte de hóspedes ao lado do quarto de Sofia, apenas porque a iluminação lá era bem melhor do que a do banheiro da suíte principal. O que é compreensível, afinal, o cômodo pertencia a , e, como ele não precisava se preocupar com maquiagens fora do tom ou nada do tipo, optou por ter luzes de LED colorido por lá, que eram ótimas para relaxar, mas péssimas para fazer maquiagem.
Algumas semanas haviam se passado desde que tínhamos assumido nosso relacionamento publicamente e, mais do que eu gostaria, atraímos vários olhares curiosos. Apesar de odiar ser o centro das atenções sob qualquer circunstância, estava satisfeita com o rumo com o qual minha vida com estava tomando e aceitava pagar esse pequeno preço por isso.
Mantive minha rotina normal no trabalho e, apesar de ser questionada algumas vezes, gostava de manter minha vida pessoal preservada. Em algum momento, meus colegas passaram a entender e se adaptaram a isso.
A única questão que realmente não parecia estar ficando mais fácil com o passar do tempo envolvia Sofia. Mas não ela especificamente, e sim sua mãe.
– Por que não, Sofia? – perguntou, erguendo o vestido. – Você usou esse vestido tantas vezes quando esteve aqui da última vez... O que há de errado com ele agora?
– Ele é feio. – Ela respondeu, convicta.
– Não é feio. A deu a você com tanto carinho... – disse, logo entendendo tudo ao finalizar a frase. – Você acha isso mesmo ou alguém disse isso a você? – Ele questionou, e Sofia não respondeu. – Quem disse isso a você? – O rapaz repetiu a pergunta.
– Minha mãe disse. – A menina confessou, e suspirou, questionando:
– Mas o vestido é seu ou de sua mãe?
– Meu. – Sofia disse, em tom baixo.
– Então é você quem deve gostar dele. – completou pacientemente. – O que eu sei que você faz, porque, na última semana que esteve aqui, quis usá-lo por vários dias.
– Mamãe disse que a tia tem mau gosto. – Ela confessou.
– Bom... Isso é a opinião da sua mãe. Eu não concordo. – disse. – E acho que você também não. Não é?
Sofi assentiu, sem graça.
– Ótimo, então ande logo e vista o vestido, ou vamos nos atrasar e perderemos a reserva. – O jogador determinou, entregando novamente a peça de roupa para a menina.
– Eu não quero esse. – Ela repetiu, em tom triste.
– Sofia, eu não entendo o que está havendo com voc… – disse, parecendo perder a paciência.
! – Eu chamei, aparecendo na porta do quarto. – Deixe que ela escolha outra coisa para vestir. Está tudo bem.
Ele balançou a cabeça, em negação, e respirou fundo para se acalmar antes de dizer:
– Escolha outra coisa, Sofi. Mas rápido, por favor. Certo?
Aproveitei que tinha acabado de fazer minha maquiagem para reunir os produtos e voltar ao quarto de , onde a roupa que escolhi para a noite esperava por mim.
Em mais alguns minutos, ele apareceu e se aproximou por trás, beijando meu rosto enquanto tocava sutilmente meu quadril.
– Ei, me desculpe por Sofia, de novo. Você sabe, ela não tem maldade. Só repete o que...
– … O que escuta – Eu completei, porque ele sempre dizia essa frase e eu já a sabia de cor. – Eu sei. É só um vestido. Está tudo bem.
– Tem certeza? – O jogador questionou, e, dessa vez, fui eu quem respirou fundo.
– Só estou um pouco cansada disso... Toda semana há algo novo. – Suspirei. – Só queria que ficássemos em paz.
– Eu sei. E sinto muito por isso. – Ele lamentou, me envolvendo com carinho.
Respirei fundo mais uma vez, porque era uma situação ruim para nós dois, mas não havia muito o que fazer.
– Vou terminar de me vestir. Se quiserem me esperar no carro... – sugeriu. – Desço em mais alguns minutos.
– Certo. – Respondi, saindo do quarto pouco depois. – Ei, fadinha, quer ajuda com isso aí? – Perguntei, parando ao passar pelo quarto de Sofia, onde ela tentava – com certa dificuldade – arrumar o próprio cabelo.
– Acho que sim.
Ela riu, sem graça.
– Quer uma trança da Elsa, como a que fiz aquele dia? – Perguntei, e a menininha assentiu imediatamente.
– Tia , desculpa ter falado mal do vestido que você me deu. – Ela pediu. – Na verdade, eu gosto um pouquinho dele sim.
– Tudo bem, Sofi. – Falei enquanto penteava seu cabelo. – Não tem problema você dizer o que pensa. Mas só se for sua opinião de verdade. Sobre o que sua mamãe gosta ou não, vocês podem conversar quando estiverem juntas. Mas, aqui, na casa do papai, queremos saber só o que você acha. Tudo bem? – Expliquei gentilmente, e ela assentiu, concordando.
Esse era, novamente, o último dia de Sofia conosco antes do revezamento semanal. Havia se tornado nossa pequena tradição sair para uma refeição especial antes da troca. Minhas horas obrigatórias de plantão decaíram à medida que o final do primeiro ano de residência se aproximava e, assim, cheguei ao ponto de conseguir um dia livre a mais na semana.
Eu normalmente fazia o possível para que esse dia coincidisse com o dia de folga de .
Terminei o penteado, que ela pareceu adorar mais uma vez, e saímos finalmente para o jantar em família.
Na manhã seguinte, depois do tradicional café da manhã e de deixar Sofia no colégio, pedi a que me levasse em casa para alimentar Thalamus, mais uma vez. Sem Amanda por perto, eu jamais poderia me esquecer dessa importante função.
, estava pensando… – O goleiro chamou enquanto ainda estávamos a caminho, segurando uma de minhas mãos e guiando o veículo com a outra.
– O quê? – Perguntei, observando-o.
– Por que você não vai lá pra casa e fica lá com Thalamus? Por um tempo... Pelo menos até encontrar um novo apartamento, já que não gostou de nenhum dos que viu até agora. – Ele propôs.
– Quer que eu vá morar com você? – Perguntei, surpresa.
– Não é isso, é... Bom... Na verdade, sim. Mas não precisa ser em definitivo. É só para te dar tempo de procurar um lar com mais calma. E assim você pode entregar o apartamento atual logo, para não precisar mais se preocupar em pagar o aluguel de lá sozinha. – explicou.
O apartamento que eu dividia com Mandy era realmente muito bom e bem localizado na cidade. Quando o encontramos, o preço do aluguel era pago por nossos pais, mas passamos a nos responsabilizar por isso depois da formatura quando os plantões remunerados começaram. O valor não era tão alto quando dividido por duas, mas agora que eu estava ali sozinha, já não era mais tão viável assim.
Desde que Amanda tinha se mudado, fiquei de procurar um novo companheiro de casa para dividir os gastos, mas nunca o fiz de fato. Acho que algo sobre encontrar um “colega” de casa era mais natural no primeiro ano de faculdade do que já depois de formada, quando as necessidades eram outras.
A ideia de não era ruim, afinal. Eu já tinha formalizado ao proprietário o meu desejo de deixar o lugar, e estava até pensando em ir morar temporariamente na casa do meu pai de novo enquanto não encontrasse um novo apartamento ideal, mas – além do desgaste que causaria a ele e minha madrasta voltando depois de tanto tempo – a casa do goleiro ficava muito mais perto do meu trabalho, e eu não podia negar que gostaria muito de dividir meus dias com ele.
– É só uma sugestão. – O goleiro disse alguns segundos depois. – Se quiser, as portas estão abertas. Mas não se sinta pressionada a aceitar se não quiser, ok?
– Não, na verdade é uma ótima ideia! Me ajudaria muitíssimo. – Falei. – Você tem certeza disso?
– Claro, ! Jamais diria algo assim se não tivesse absoluta certeza. – Ele respondeu, com convicção, perguntando logo em seguida: – Se acha que é uma boa ideia, podemos aproveitar a viagem e já trazer agora mesmo algumas coisas da sua casa para a minha. O que acha? Tem muito para levar?
– Na verdade, não. A maior parte das minhas coisas ficou na casa dos meus pais quando saí, levei apenas roupas e material de estudo. O restante, que são os móveis, os utensílios e a decoração, pertence ao proprietário do apartamento. – Expliquei.
– Então por que não separamos já algumas coisas agora mesmo quando estivermos por lá?
– Tudo bem. – Eu disse.
O goleiro dirigiu até meu apartamento e passamos a tarde esvaziando meus armários e tudo mais que guardasse objetos pessoais. Separamos todo o conteúdo em caixas e as colocamos no carro.
Voltamos para a casa à noite e, muito cansados para nos preocupar em colocar tudo no lugar, posicionamos apenas as coisas de Thalamus – na mesma posição que ficavam no meu antigo apartamento, para que ele não estranhasse tanto a mudança – e observamos enquanto ele explorava seu novo lar temporário.
– Você não vai acreditar no que fiz. – Falei com Amanda, mais tarde, pelo telefone.
– Me teste! – Ela sugeriu, já rindo em antecipação.
– Eu meio que... vim morar com . – Tentei explicar de uma forma menos chocante.
– O quê? – Ela riu. – O que houve com o acordo de ir aos poucos?
– Estou ‘colocando a carroça na frente dos bois’, não estou? – Perguntei, rindo também.
– Enquanto seus bois estão indo, a carroça já está voltando, amiga. – Amanda soltou, com espontaneidade. – Mas você está feliz?
Assenti imediatamente.
– Estou muito. – Respondi. – Quando ele sugeriu que eu viesse para cá, sabia logo que era precipitado, mas de alguma forma parecia certo e eu não tinha nada a perder, então pensei: por que não?! – Completei.
– Claro! Nada é definitivo. Se um dia não quiser mais, pode sair. – Ela disse, dando de ombros. – E, sinceramente, você não imagina o quanto fico mais tranquila por aqui sabendo que você está bem e sendo bem cuidada.
– Obrigada, amiga. – Sorri em agradecimento. – Também fico feliz que estejamos bem.
– Como tem sido com a pequena? Ela curtiu a ideia? – A ortopedista perguntou, sobre Sofia. Respirei fundo antes de tocar no assunto.
– Ela adorou a ideia, no começo. Estava radiante com o fato de ter uma família tradicional, com três pessoas... – Comentei, me lembrando desses primeiros dias. – Mas agora parece que a mãe não para de colocar abobrinhas na cabeça dela. Toda semana que ela vem, algo acontece e uma situação desconfortável se forma diante de algo que ela ouve na casa de Veronica e repete aqui. Isso tem me estressado um pouco. Mas Sofia é uma garotinha adorável, eu tenho certeza de que, com um pouco de conversa, tudo se resolve. Vamos ficar bem. – Eu disse.
– Essa mulher te odeia mesmo, hein? – Mandy questionou.
– Parece que sim… – Resmunguei.
– Mas eu meio que a entendo. Além de estar namorando o pai gato da filha dela que ela não conseguiu fisgar, você ainda o ajudou a descobrir um monte de coisas erradas que ela fazia para prejudicá-lo. – Amanda deu de ombros também. – Se eu fosse ela, também odiaria você por não me deixar ser uma grande filha da puta.
Ela riu e eu ri também, meio sem graça.
– Mas eu não fiz nada contra ela. Tudo o que fiz foi por Sofia e , e não me arrependo. Tomara que ela logo se canse, sei lá, esqueça de nós e vá seguir sua vida. – Desabafei.
– Tomara. – Minha amiga desejou. – Bom, de toda forma... Boa sorte com isso, ! Vou precisar ir agora ou me atrasarei. A gente se fala depois?
– Claro! – Disse, em tom de despedida, antes de desligar o telefone.
O que eu mal podia imaginar era que o plano de Veronica de tirar nossa paz mal havia começado.
Uma semana depois de nossa mudança, Thalamus já se sentia em casa. Folgado, como sempre, dormia esparramado no tapete da sala de televisão enquanto eu trabalhava em casos clínicos pelo notebook, quando Guadalupe se aproximou para falar comigo.
– Senhorita , com licença. disse que se atrasou e não conseguirá chegar a tempo de buscar Sofia na escola. – Ela explicou. – E pediu para perguntar se você gostaria de ir comigo até o colégio para buscá-la.
– Oi, Lupe! Só ‘’ está bem. Por favor, já te disse. – Pedi, com carinho. Odiava ser tratada com tamanha formalidade. – Mas adoraria ir sim. Quando precisamos sair?
– Se possível, agora mesmo. – Ela respondeu, checando o relógio de pulso.
– Certo, vou me trocar! – Avisei, percebendo que vestia um conjunto de camiseta e calça confortáveis, porém não decentes para sair na rua. Aparentemente, não só Thalamus estava se sentindo em casa. Eu também.
Ofereci para ir dirigindo para que o motorista de não precisasse ser solicitado, e Guadalupe não pareceu ver problema, apesar de parecer estranhar o porquê de eu abrir mão daquela regalia.
Caminhamos até o veículo, que não era aquele com o qual eu estava acostumada, mas Lupe explicou que o goleiro deixava esse carro à disposição dos funcionários para ir ao supermercado, buscar encomendas ou, nesse caso, buscar Sofia.
Eu não estava autorizada a retirar a criança da escola sozinha, o que era óbvio, mas Guadalupe sim, porque, pelo que entendi, era o caso em algumas eventualidades.
– Lupita! – Sofia exclamou, feliz, abraçando Guadalupe, na porta da escola.
Fez o mesmo ao me ver, com um abraço apertado.
– Tia !
– Oi, meu amor! – Exclamei, retribuindo o abraço. – Você cortou os cabelos! Que linda está! – Comentei, logo que observei que o longo cabelo da menininha – que quase alcançava a cintura na última vez que vi – estava agora cortado acima dos ombros.
O comentário pareceu fazer Sofia se lembrar desse detalhe sobre sua aparência e logo sua fisionomia mudou.
– Obrigada! – Ela disse, forçando um sorriso tímido em meio à expressão triste. – Eu gostava mais dele grande, mas mamãe disse que precisávamos cortar.
Caminhávamos as três juntas de volta ao carro, até que Lupe perguntou, sem entender:
– Precisava cortar? Por quê?
– Ela disse que... – Sofi parecia desconfortável ao falar. – Sempre que volto da casa do papai, meu cabelo fica cheio de nós e ela não consegue pentear. Então, teve que cortar.
Guadalupe e eu nos entreolhamos, surpresas.
Eu sabia, e certamente Lupe também, que Sofia estava sempre impecável – da cabeça aos pés – quando estava junto do pai. A justificativa não fazia sentido.
– Acho que não vamos poder fazer outra trança da Elsa até ele crescer de novo. Não é, ? – Sofia perguntou, me fazendo entender tudo.
O corte de cabelo era uma demonstração de ciúmes pelos penteados que eu fazia na menina e uma forma de não permitir ser possível repeti-los. Como uma forma estúpida de mostrar “quem estava no controle”.
– Não se preocupe, docinho. Vamos pensar em outros penteados para o seu cabelo novo. – Falei, sentindo o coração apertar por tanta pena. – E vai ficar lindo igual! Prometo.
Dirigi de volta até a casa dos . Estava tão impactada com o acontecido que nem me lembrei de comentar com Sofia sobre o fato de eu e Thalamus estarmos morando lá. Felizmente, ela ficou tão empolgada ao ver o gato que logo voltou a abrir um sorriso e passou o restante da tarde brincando com ele, até o pai chegar.
até reparou na mudança no visual da filha, mas apenas fez comentários ressaltando o quanto ela estava linda. Com ele, Sofia não contou sobre a justificativa da mãe. Então, achei que eu deveria fazer isso.
, queria te dizer algo. – Falei, me levantando da cama, onde estava deitada lendo uns relatórios enquanto tomava banho.
– Pois não, corazón. Diga! – Ele respondeu, alegre, saindo do banheiro com uma toalha enrolada da cintura para baixo. – O que foi? É algo sério? – questionou ao ver minha expressão facial séria, soando um pouco mais preocupado.
– Bom, eu considero sério sim. – Adiantei. – Se lembra dos penteados que tenho feito em Sofia durante as semanas em que ela está aqui?
– Hum... As tranças de não-sei-quem. Sim. Lembro! O que tem isso?
– Ela vinha adorando esses penteados. E, hoje, quando fui até a escola dela e vi o cabelo tão curtinho, me perguntei se teria algo a ver. Ela disse que a mãe insistiu no corte, alegando que o cabelo dela sempre volta cheio de nós quando ela sai daqui.
– Você acha que foi de propósito? – questionou, parecendo assustado.
– Eu acho que sim. – Falei, e o goleiro torceu a boca, refletindo sobre isso.
Continuei a dizer:
– Isso é muito sério, . Principalmente por fazer Sofia acreditar que o motivo de estar passando por isso é que você, ou eu, supostamente não sabemos cuidar do cabelo dela. É como se a culpa fosse nossa. – Completei, tentando manter o tom baixo, apesar de saber que a menina já estava dormindo com Thalamus, em seu quarto, metros distante dali.
ainda observava, sério.
– Isso já ultrapassou todos os limites possíveis. – Expliquei, com indignação. – Já não se trata mais de provocar a mim ou a você. É a autoestima e saúde emocional de Sofia. Você precisa fazer algo!
O jogador parou por alguns segundos, parecendo perdido em seus pensamentos. Muito mais tranquilo do que eu, quase implodindo enquanto expressava minhas palavras.
? Me ouviu? – Chamei ao perceber que ele estava distante.
– Sim, corazón. Mas... o que exatamente eu deveria fazer? – Ele perguntou, parecendo realmente confuso.
Veronica não nos atacava diretamente, nem deixava de cumprir com suas obrigações de mãe ou com a frequência das visitas, então talvez não fosse algo que Eric pudesse resolver legalmente.
A mulher fazia o pior tipo de tortura possível. Aquela que é sutil e silenciosa, mas faz um estrago gigante no psicológico da pessoa – nesse caso, de uma criança –, fazendo com que ela assuma uma culpa que não tem por algo que – nesse caso também – nem é errado.
– Conversar diretamente com Veronica para ver se ela se toca. – Dei de ombros. – Sei lá. Só sei que, como as coisas estão, elas não podem ficar. Sofi era uma criança tão radiante... Nessas últimas semanas, tem se tornado uma florzinha murcha. Você não vê? A cada vez que ela vem aqui, parece mais desconfortável. Parece que tem medo de estar perto de nós e magoar a mãe com isso. Essa mulher está acabando com a saúde mental da sua filha, . Você tem que impedir. – Falei, no calor da emoção.
– Ei, calma aí. – Ele pediu, também falando mais sério. – Essa mulher é a mãe dela, . Não posso travar uma guerra contra a mãe da minha filha. Ainda mais sabendo quem ela é! Você se lembra do inferno que ela me fez passar por conta de um arranhão de gato?
– É justamente por saber quem ela é que você não deveria medir esforços para proteger Sofia. É ela quem está passando pelo inferno agora. E ela nem tem seis anos ainda. – Falei, indignada.
– Ok, acho que você está exagerando um pouco. É só um cabelo, Sofia nem está se importando tanto assim com isso. – O goleiro disse, parecendo realmente ver a situação de forma mais tranquila do que eu.
– Eu não estou exagerando. – Falei. – E não é só um cabelo! Você acha que é coincidência que Sofi não consiga mais dormir sozinha, tenha voltado a falar como um bebê e tenha tido tantos escapes de xixi na cama recentemente? – Questionei, deixando o goleiro reflexivo. – Eu já estudei como funciona a cabeça das crianças, , e posso afirmar que a regressão de comportamento de Sofia tem causa. Por que você tem tanto medo assim de enfrentar essa mulher?
– Temos nossos medos, tudo bem? – Ele retrucou, impaciente. – Eu sei dos seus e os entendo. Os meus envolvem passar de novo por tudo aquilo e ficar mais não-sei-quanto-tempo longe de Sofia. E espero que você os entenda também. – O goleiro disse, caminhando em direção ao seu closet para se vestir.
– Mas isso não está certo. Veronica é quem deveria ter medo por estar fazendo algo tão horrível a uma criança, e não você. – Eu disse, indo atrás dele.
– Olha, , você tem razão. – Ele disse, com carinho, apesar de parecer impaciente com o rumo da conversa. – E eu realmente valorizo muito que você se preocupe com Sofia assim. Mas não vou meter os pés pelas mãos nisso, porque tenho muito a perder. Vou ligar para Eric e agendar uma reunião com ele durante essa semana, assim conversaremos e ele vai saber o que fazer. – completou, baixando o tom.
– Você é quem sabe... – Fiz uma pausa, observando enquanto o goleiro se vestia. – Mas não espere muito tempo. Essas coisas geram traumas grandes, e eles são difíceis de se livrar depois. – Eu disse, antes de me virar e sair de volta para o quarto.


Capítulo 31

– Bom dia! – Exclamei, adentrando a casa pela cozinha, depois de um longo plantão de trinta horas.
Guadalupe era mesmo uma cozinheira de mão cheia e, por isso, o cheiro do lugar era sempre excepcional no horário das principais refeições. Especialmente quando eu chegava dos plantões, cansada e com muita fome.
Neste dia não estava sendo diferente, e eu tentava me lembrar o que foi e quando havia sido a última vez que comi. Talvez meio hambúrguer na lanchonete do hospital, muitas horas atrás.
– Bom dia, querida. – A senhorinha acenou. – Chegou bem a tempo de tomar a vitamina de frutas que fiz.
– Ainda bem, Lupe. Estou com tanta fome que talvez coma essa mesa de café da manhã inteirinha. – Brinquei, deixando sobre o balcão as chaves de um dos carros de , que eu não pedi, mas ele me emprestou para ir ao hospital naquele plantão.
¡Hola, mi amor! disse, sorrindo com alegria espontânea ao me ver chegar, vestindo seu uniforme de viagem e trazendo consigo uma mala de rodinhas e uma mochila pendurada em um ombro. – Que bom que vou te ver antes de partir. – Ele completou, se aproximando e me puxando para um amasso com muitos beijos.
– Você não vai querer fazer isso. – Falei, brincando e tentando me esquivar do abraço. – Estou fedida. Faz aproximadamente trinta e duas horas desde que tomei um banho.
– Não que eu me importe, com toda a saudade que senti de você. – O goleiro respondeu, sem permitir que eu me afastasse, e acabei me rendendo a um abraço e um beijo no rapaz. Diferente de mim, exalava um cheiro delicioso e tinha os cabelos molhados e penteados para trás, comprovando que acabara de sair do banho.
Irresistível.
– Também senti, corazón mio. – Respondi, segurando seu rosto com as duas mãos e dando-lhe mais um beijo. – Já tomou café da manhã?
– Sim. Pode devorar a mesa toda, como queria. – Ele riu. – Preciso ir agora mesmo para o centro de treinamento. De lá, sai o ônibus para o aeroporto e, você sabe como funciona, não toleram atrasos.
– Sei sim. Respondi, sorrindo amarelo. Mesmo em pouco tempo de relacionamento oficial, as viagens do goleiro eram tão frequentes que acabaram se tornando parte da rotina. – Ei, é sexta-feira... Sofi vem hoje? – Perguntei, depois de mais alguns segundos, já me servindo com alguns itens de café da manhã da mesa.
– Sim. Vem! – Ele respondeu. – Mas hoje tem hipismo, então ela sai...
– Às cinco. – Eu disse, já acostumada com a rotina de treinos de Sofia também. – Certo?
– Certo. Vocês duas buscam ela na hípica quando for a hora? – O jogador pediu, pegando a chave do outro carro, logo ao lado daquela que eu acabara de trazer.
Assenti, com a boca cheia, me deliciando com uma fatia generosa de pão com geleia.
– Vejo vocês no domingo. – avisou, se despedindo. – Me deseje sorte. – Ele pediu, se aproximando da cadeira onde eu estava sentada e se curvando para beijar meu rosto. – Eu te amo.
– Boa sorte, corazón. Estaremos na torcida. – Falei, me despedindo e retribuindo o beijo. – Amo você.
estava embarcando para um dos últimos jogos eliminatórios da Champions League antes da final e estava completamente focado naquela partida importante.
Por mais que o futebol não fosse meu assunto de maior domínio, convivendo diariamente com uma pessoa que vivia do esporte, se tornou inevitável o envolvimento, e, de certa forma, eu também estava com a mente na partida do dia seguinte.
Depois do café da manhã e de preencher o buraco negro formado em meu estômago, fui dormir para recarregar as energias até que fosse o momento de buscar minha pequena enteada, de quem eu já estava morrendo de saudades, como se fizesse um mês que não nos víamos.
– Oh, , querida. Acabei de colocar um bolo para assar e preciso ficar de olho no forno para não queimar. Será que você se importaria de ir sozinha hoje? – Guadalupe justificou, preocupada, quando passei por ela na cozinha e disse que já era hora de ir à hípica buscar Sofia.
– De forma alguma, Lupe. Eu posso ir sim! deixou uma autorização lá para mim da última vez. – Expliquei, pegando as chaves no balcão e seguindo até a hípica no bairro Moraleja, onde Sofia tinha aulas de equitação e hipismo.
Deixei o veículo no estacionamento e, entre várias crianças sentadas sobre cavalos, cavalgando pela pista externa principal da hípica, avistei Sofia parada com seu cavalo em um canto do pátio.
Ela vestia seu adorável look de montaria: a calça comprida justa, botas que alcançavam os joelhos, camisa com golas polo e um colete de hipismo. Na cabeça, um capacete arredondado, também típico do esporte.
Em pé ao lado do cavalo onde estava a menina, havia uma adulta loira, que imaginei ser a professora de equitação. As duas conversavam quando me aproximei.
– Sofia, não vou dizer outra vez. Vá agora mesmo até lá para treinar os saltos. – A mulher disse, em tom bravo, apontando para as outras crianças na pista, que estavam em fila com seus cavalos para saltar por cima dos oxers – os famosos obstáculos do hipismo –, sendo conduzidas pelo outro professor.
Logo estranhei, porque não era comum ouvir alguém falando de forma ríspida assim com a menina, que era sempre tão boazinha.
– Mamãe, por favor, eu tenho medo. – Sofi respondeu, chorosa, e eu levei um susto ao perceber que a mulher em questão não trabalhava como professora na hípica, e sim era Veronica, a mãe de Sofia. Eu nunca havia visto sequer uma foto dela em todo aquele tempo que estive com , então a única imagem que eu tinha dela era a imagem criada pela minha cabeça ao ouvir seu nome.
Na vida real, ela era diferente da Veronica que eu imaginava. E, na vida real, ela não deveria estar ali também. Deveria ter apenas levado Sofia para a aula e deixado-a lá para que o pai buscasse, assim como ele fazia quando a situação era oposta e Veronica buscava a pequena após o treino com os cavalos.
As duas não perceberam que eu me aproximava, então continuei caminhando na direção delas e ouvindo o diálogo.
– Que bobeira! Todos os seus colegas estão saltando. Até os que são menores que você! Pare com esse fricote e vá até lá. Não me faça perder a linha com você.
– Mamãe, não! – Sofia implorava. – Por favor.
– O que está havendo? – Perguntei, chamando a atenção das duas para mim.
– Oh! Agora sua madrasta é quem busca você? – Veronica perguntou, alguns segundos depois, com certo desdém ao me ver. Aparentemente, só de olhar, ela já sabia quem eu era.
não pôde vir e pediu que eu viesse. – Expliquei, sem detalhes. – Agora é permitido assistir às aulas? – Questionei, com um leve tom de provocação.
Só era permitido adentrar a pista de equitação ao fim da aula para buscar as crianças. Se Veronica não tinha que buscar Sofia neste dia, por que estava ali?
– Não. Eu pedi para acompanhar a aula hoje para ver por que o desempenho de Sofia tem caído tanto nas aulas de hipismo. – A mulher respondeu, voltando a falar brava com a criança. – Não gasto uma fortuna com essas aulas para ela não participar das atividades.
– Mas eu participo. Só não quero saltar porque estou com medo. – Sofia tentou justificar.
– Tudo bem, Sofi. A aula já acabou... – Falei, conferindo o relógio. – Na próxima, você tenta de novo.
– Nada disso! Ela não desce desse cavalo até treinar o salto, como as outras crianças fizeram. – A mãe insistiu, agora falando diretamente comigo.
Neguei com a cabeça, indignada ao ver aquela situação.
– Não é seguro treinar um salto sem sentir confiança. É melhor ela fazer quando se sentir pronta. Cada criança tem seu tempo... O de Sofia vai chegar. – Falei, tentando manter a calma.
– É um pônei. Os obstáculos não tem mais que meio metro de altura. Não seja exagerada. – Veronica resmungou, menosprezando o medo da filha.
Neguei com a cabeça em descrença e indignação, direcionando minhas palavras à criança:
– Venha, Sofi, vamos pra casa.
– Espera aí, você está achando que é a mãe dela? Sou eu quem mando aqui. – Ela retrucou, possessa, entrando na minha frente quando estendi a mão para ajudar Sofia a descer do cavalo.
– Não, eu não sou a mãe dela. – Respondi, ainda mantendo a calma. – Mas hoje é o dia dela com o pai. E ele me mandou em seu lugar, então eu decido.
Desviei da mulher parada à minha frente e ofereci ajuda a Sofia mais uma vez para descer do cavalo.
– Está tudo bem, querida. Vamos! Outro dia você tenta de novo. – Repeti, observando que a menina seguia titubeando entre atender às palavras da mãe ou às minhas.
Dessa vez, eu acho, foi o medo do cavalo que venceu, e Sofia soltou as rédeas do animal, se apoiando em mim para descer.
– Vá se trocar, estarei te esperando aqui. Está bem? – Falei, colocando-a no chão.
Sofia assentiu e saiu em direção ao interior da hípica, onde trocaria sua roupa de montaria por suas roupas casuais antes de irmos embora.
– Quem você pensa que é, hein? – Veronica questionou, com arrogância. – Passando por cima de minha autoridade diante da minha filha?
– Eu não estou passando por cima da sua autoridade. Sua autoridade vale nos dias em que ela está com você, hoje não é um deles.
Um silêncio pairou no ar enquanto Veronica me olhava, incrédula por tamanha audácia. Logo percebi que ela não era o tipo de pessoa que tinha o costume de ser confrontada.
– Você não vai parar, não é? – Perguntei, algum tempo depois, já falando com mais tranquilidade. – Primeiro o cabelo, depois isso aqui... Até quando você vai continuar fazendo sua filha passar por esse tipo de situação só para reafirmar seu papel? – Questionei, e Veronica não respondeu. Continuou olhando para longe, com os braços cruzados, evitando contato visual comigo.
– Não importa para você que seja um pai amoroso e dedicado, ou que eu tenha carinho e cuidado genuínos pela filha de vocês? – Falei. – No seu lugar, eu seria grata por essas coisas. Por que você não consegue ser? Preferia que fosse o contrário? Que eu fosse uma madrasta cruel, que fosse um pai que não se importa? – Continuei falando, até que ela me interrompeu:
– Olha, garota, eu não devo satisfações a você. – Ela exclamou. – E não. Não me importa! Eu preferia mesmo era não ter que dividir minha filha com quem quer que fosse. Que nem soubesse da existência dela, como planejei fazer no começo.
– Ah, é? – Perguntei, com sarcasmo. – Por que mudou de ideia?
Ela deu de ombros, então supus, sem censura:
– Porque se ele não soubesse, não haveria uma pensão milionária para você aproveitar, né?
Veronica pareceu desconfortável, mas não negou a afirmação.
– Mas saiba que você fez a escolha certa ao contar. Mesmo que tenha sido só pelo dinheiro... – Falei e completei depois de alguns segundos de silêncio: – Não sei se você já viu a relação de com Sofia, mas se visse por um minuto sequer, saberia que uma parte importante na vida dos dois faltaria se eles não se conhecessem. – Comentei, tudo de uma vez, sem me intimidar pela presença de Veronica. – Eu não sou mãe, Veronica. – Voltei a dizer enquanto a mulher fingia me ignorar olhando adiante. – Mas eu convivo com muitas, e posso afirmar que entendo seu medo de perder Sofia. No entanto, devo dizer que não é agindo assim que você vai conseguir impedir isso. Pelo contrário, a cada vez que você critica ou menospreza alguém que ela ama, você causa um sofrimento que afasta ainda mais a sua filha.
Quem sabe, talvez, sendo franca, ela fosse compreender.
– Se você quer o melhor para ela, como imagino que queira, eu imploro: pare essa guerra. O juiz determinou a divisão de guarda igualmente proporcional a você e , e não há nada mais justo que isso. Ela estará com você por metade do tempo. Faça ser o suficiente, faça esses momentos valerem a pena com ela, e, quando for a hora dela ir com o pai, deixe. Não faça ela se sentir mal por ter que ir. Assim, ela vai se lembrar dos momentos de vocês duas com carinho, e não com culpa. Um pai não substitui o lugar de uma mãe no coração de uma criança. Uma madrasta, muito menos. Pare de se preocupar com isso. – Pedi, em tom de quase súplica. – Aquele ditado popular diz que é preciso uma aldeia para criar uma criança... e é! Você nunca pode ter ajudantes demais. – Continuei meu monólogo. – Sofia nunca pode receber amor demais.
– Não é simples assim. – Ela retrucou, baixando a guarda.
– Não mesmo. Eu nunca disse que é simples. Como eu te disse, nunca estive no lugar da mãe. Então só imagino o quanto seja difícil. Mas o que posso te dizer é que já fui a criança. Vivendo entre duas casas, confusa, com medo de magoar uma das duas pessoas que mais amo no mundo. E isso também não é fácil. – Veronica agora me observava com seriedade, parecendo considerar minhas palavras. – E acaba refletindo em outras questões da vida dela. Por exemplo, esse medo aqui com os cavalos, que ela nunca teve antes, pode ser a forma dela de demonstrar que está precisando mais da sua compreensão e do seu carinho. – Falei. – Não faça esse processo ser mais difícil ainda para Sofi. Ela não t...
Ainda estava falando quando ouvi passinhos correndo de volta para nossa direção e percebi que Sofia estava de volta, já com as roupas trocadas e seu material de montaria guardado em uma bolsa que ela carregava. A menininha nos observava com expressão assustada, como se estivesse esperando que eu e a mãe estaríamos trocando tapas quando ela regressasse.
– Prontinho? Vamos nessa? – Perguntei, sem terminar o raciocínio do que estava falando com Veronica.
Sofia assentiu, ainda parecendo assustada.
– Precisamos pegar sua mochila da escola no carro, filha. – Veronica avisou.
– Vou esperar você aqui, está bem? Quer que eu segure a outra bolsa?
Eu não sabia se, pela conversa, Veronica agora me odiava ainda mais. Preferi ficar distante e respeitar o espaço das duas.
A mulher caminhou até um outro carro no estacionamento com Sofia, abriu a porta traseira e tirou de lá a tal mochila. Colocou-a nos ombros da menina e deu-lhe um abraço de despedida.
Fiquei observando as duas, alguns passos distante. Depois que Veronica conversou por mais alguns segundos com a filha – algo que não consegui ouvir –, beijou o topo da cabeça da menina, que correu de volta em minha direção. Nos demos as mãos e Sofia disse, de longe, se despedindo da mãe mais uma vez:
– Tchau, mamãe!
– Tchau, cupcake. Amo você.
Veronica acenou.
Acenei de volta, timidamente, mas não recebi nenhuma simpatia de volta.
Apesar de achar que, na conversa que tivemos, eu havia dito várias coisas com as quais estava engasgada e Verônica tinha ouvido muitas coisas que precisava ouvir, logo que posicionei Sofia em seu assento elevatório no carro e entrei pela porta da frente para dirigir, algo em minha mente fez um click e senti um arrependimento terrível.
Um flashback me levou de volta à conversa com , na semana anterior, quando o episódio com o cabelo tinha acontecido.
Durante todo o percurso entre a hípica e a casa do jogador, era quase como se eu pudesse ouvi-lo dizer em looping: “tenho muito a perder”, “não vou meter os pés pelas mãos dessa vez”.
E, a cada repeat, meu coração batia em disparada, considerando a possibilidade de que, com a minha atitude impulsiva de enfrentar a mãe de Sofia, ela fosse tomar alguma providência que lesaria no que dizia respeito ao convívio com a filha. Eu não sabia se era uma possibilidade real, mas não queria ter que pagar para ter certeza.
Apesar do corpo em estado de alerta pela avalanche de hipóteses terríveis sobre as consequências de minha atitude, cheguei em casa com Sofia e instruí que ela tomasse um banho para comer e depois fazer a lição de casa.
Enquanto a menina estava no chuveiro, eu, do lado de fora, pensava em como resolver essa situação.
Apesar de não me arrepender de nada do que disse – porque, para mim, Veronica precisava ouvir aquelas palavras –, se eu tivesse o contato da mulher, ligaria imediatamente para me desculpar e tentar amenizar a situação, a fim de evitar um desfecho que afetasse .
Foi aí que fez sentido o que ele dizia e o medo que dizia sentir, que era maior do que a vontade de fazer justiça a qualquer preço.
Ele realmente tinha muito a perder.
E, se isso viesse a ser o caso agora, a culpa seria toda minha.
A noite caiu, e Sofia e eu nos deitamos para dormir juntas na cama de . A pequena adorava dormir na cama do pai, mesmo que ele não estivesse presente, e, atualmente, aquela era minha cama também.
Enquanto ela adormecia, eu pensava em formas de resolver a situação sem ter que falar com o goleiro. Tinha medo de qual seria sua reação ao saber que tinha passado por cima de sua vontade e havia enfrentado a mãe de sua filha, sem qualquer tipo de filtro, ignorando as possíveis consequências.
Mas seria pior não dizer nada.
O jogo do dia seguinte era muito importante, e uma conversa como essa seria mais do que suficiente para tirar o foco. Preferi esperar até que ele voltasse para conversarmos com calma. Enquanto isso, eu só podia torcer por um desfecho positivo.
No dia seguinte, pela manhã, acordei com Lupe adentrando o quarto para chamar Sofia. Meu sono acumulado pelo plantão longo e também pela noite mal dormida era tamanho que me despedi da pequena ali mesmo e voltei a dormir.
A lancheira dela era preparada por Guadalupe, e, naquela manhã, ela também se encarregaria de levar Sofia à escola junto do motorista particular de . Aparentemente, nós fazíamos parte da aldeia daquele ditado popular que falei a Veronica, possibilitando que Sofia crescesse.
Eu percebia que meu carinho por ela ia além do que se espera de uma “madrasta”. Mas não conseguia ver isso de uma forma ruim. Eu não me sentia violando o espaço da mãe dela ou fazendo qualquer coisa que justificasse a posição defensiva de Veronica.
À noite, busquei Sofia na aula de música e fomos logo para casa estourar pipocas para assistir ao importante jogo de .
Atlético conseguiu uma vitória por 2x1 e garantiu sua classificação. Nós duas comemoramos muito juntas.
No domingo, voltou. E foi aí que precisamos conversar sobre o acontecimento que tinha feito ferver todos os meus neurônios durante o final de semana inteiro.


Capítulo 32

– Você discutiu com ela? – perguntou, totalmente surpreso, quando acabei confessando o acontecido na hípica.
A princípio, tive muito medo de qual seria sua reação, uma vez que ele já havia deixado claro que não queria travar uma guerra contra a mãe da filha, e o que eu fiz não foi muito diferente disso. Temi que ele se zangasse e temi ainda mais que, por esse motivo, tudo o que estávamos construindo juntos fosse por água abaixo.
Estava gostando muito de estar com ele. De dormir e acordar ao seu lado, de conviver juntos – com uma leveza que até então eu não conhecia. Ter um amigo e um amor na mesma pessoa, saber que podia dividir os ônus e os bônus de cada dia de trabalho e ouvir, mesmo sem entender, sobre o lado bom e ruim de cada dia dele também nos jogos e treinos.
Sem contar que estava mais apegada a Sofia do que jamais estive. A pequena trazia uma sensação boa de família para o nosso cotidiano e, mesmo quando o pai não estava em casa, ela continuava sendo uma parceirinha incrível e alegrando meus dias.
Eu entendia que, por mais que fosse recíproco e que me amasse o mesmo tanto que eu o amava, nada jamais se compararia ao sentimento dele por Sofia. Então, se, com minha ousadia, eu tivesse causado algum prejuízo à relação dos dois, não me espantaria a reação dele ser bem ruim.
– Não foi uma discussão. Ela estava sendo insistente para que Sofia fizesse um salto com o cavalo e Sofi estava amedrontada, então tentei convencer Veronica a não insistir. – Expliquei uma parte e completei, quase sussurrando a outra: – E depois disse a ela algumas coisas com as quais eu estava engasgada. Mas não foi nada tão grave! Desculpa não ter dito antes. Eu não sabia como você reagiria e não queria tirar seu foco da partida importante – Confessei. –, mas foi com uma boa intenção. Eu não estava mais aguentando esse inferno que ela está causando, principalmente na cabeça de Sofia. Ela é só uma criança, não é justo que sofra tanto por minha causa. Eu não consegui me conter
– Está bem. – Ele disse, compreensivo, após um longo silêncio. – Vamos ver como as coisas se resolvem e não sofrer por antecipação. Talvez ela nem faça nada.
Assenti, aliviada por ver seu tom otimista.
– Mas, por favor, . Não faça algo assim de novo. – O goleiro pediu. – Eu disse a você que ia tratar disso com o advogado, por segurança. E assim vai ser. Você não pode atropelar as coisas assim, até mesmo pensando na sua própria integridade. Consegue imaginar o que poderia ter acontecido se a situação saísse do controle? – Ele dizia, com preocupação. – Você tem um senso de justiça que é lindo, e não sossega até resolver o que quer que seja. Foi assim com Mateo, agora com Sofia... Eu entendo e admiro isso. Mas algumas vezes precisa ter mais calma, para evitar problemas maiores. Tudo bem? – finalizou, segurando uma de minhas mãos.
– Está bem!
Eu sabia que o conselho era importante. Minha impulsividade já me havia colocado em situações terríveis algumas vezes e, em muitas delas, mesmo que eu tivesse a melhor das intenções, acabava me prejudicando e saindo como a vilã.
– E, se você quer saber, durante a viagem, conversei com Eric sobre o assunto. – disse, mudando de assunto e atraindo meu olhar para si.
– Foi mesmo? O que ele disse?
– Que existem algumas providências que podemos tomar para proteger minha filha e impedir essas coisas de continuarem acontecendo. – Ele contou. – O primeiro passo já dei, porque contratei uma psicóloga infantil para acompanhar Sofia. Vou agendar para a próxima semana também uma reunião com Veronica para conversarmos sobre isso. O objetivo inicialmente é só de assustar, para que ela veja que estamos bem amparados judicialmente, entende? Eric disse que talvez isso seja suficiente para fazê-la parar. Se não for, colocaremos tudo em prática. Seu irmão vai cuidar de tudo!
Assenti, empolgada. Se Eric estava guiando o caminho, eu sabia que o resultado seria positivo.
– Vai dar tudo certo! – Exclamei.
Como adiantou, na semana seguinte, a agenda movimentada de Sofia passou a contar também com as sessões de terapia que eu, pessoalmente, achava que deveriam ter iniciado muito antes. As pessoas tendem a esperar um problema se instalar para se submeter – ou submeter os filhos – a um acompanhamento psicológico, sendo que o mais sensato a ser feito é tornar isso parte do dia a dia sempre que possível.
Para nossa surpresa, sobre a reunião, Veronica não demonstrou qualquer resistência e apareceu no dia e local combinados.
– Por que ela está aqui? – A mulher perguntou imediatamente, logo que me viu.
– Boa tarde, Veronica. – disse, sério. – Acho justo que participe de momentos como esse, uma vez que ela participa e seguirá participando da vida e da rotina de Sofia.
– Você pode tentar o quanto quiser, mas ela não tem poder nenhum de decisão sobre a nossa filha. Nunca vai ter. Somos eu e você que decidimos. – A mulher falou, já com os nervos aflorados antes da conversa sequer começar.
– Está vendo alguma decisão sobre Sofia sendo tomada sem seu consentimento aqui, Veronica? – O jogador questionou.
– Está bem. Então, o que você tem a dizer? – Veronica perguntou, um pouco afobada por ter sido confrontada.
indicou um lugar à sua frente diante da mesa para que a mulher se sentasse e eu permaneci na cadeira ao seu lado, um pouco assustada e atenta a tudo o que acontecia ali.
O jogador tomou a palavra novamente:
– Bom, vou ser breve. O que tenho a te dizer hoje é que… – Ele dizia, buscando pelas palavras adequadas. – Sofia iniciou nessa semana um acompanhamento com uma psicóloga infantil por recomend...
– Psicóloga infantil? – Veronica interrompeu, parecendo não ver o menor sentido na fala de . – Pra quê? Minha filha não precisa dessas coisas, de onde você tirou essa ideia estúpida?
O goleiro então respirou fundo, parecendo impaciente, mas respondeu mantendo a calma:
– Na verdade, Veronica, são muitas as coisas que uma criança precisa para crescer bem e em segurança. E algumas dessas coisas têm faltado à Sofia. Principalmente no que diz respeito às suas atitudes. – explicou, com seriedade – Temos percebido uma regressão no comportamento dela, tão intensa que até sua personalidade tem mudado. Imagino que você também tenha percebido. – Ele comentou, erguendo as sobrancelhas.
– Você aparece com uma namorada nova e logo já a coloca para morar na sua casa, sem nem dar tempo de Sofia se acostumar com a ideia, mas a culpa dela estar regredindo é minha? – A mulher supôs, com deboche.
– A convivência com nunca foi um problema para nossa filha, você já deve saber disso. – falou – Mas se você tem dúvidas quanto ao motivo que vem causando esse comportamento dela, não se preocupe. A psicóloga é uma profissional mais capacitada do que nós para identificar essas questões. Em breve teremos o retorno. – O jogador explicava, com serenidade. Eu me mantinha ao lado sem emitir qualquer som. estava se saindo muito bem.
Veronica observava, e, apesar de parecer desinteressada, eu podia sentir que ela não estava desmerecendo aquelas palavras.
seguiu falando:
– Mas não pense que Sofia não repete em casa os comentários que escuta de você, ou que deixa de nos contar as situações pelas quais têm passado. Ela nos diz. E a razão pela qual propus essa conversa e também o motivo pelo qual ela começou com as sessões de terapia é que isso já passou de todos os limites possíveis, Veronica. Você quer atingir a mim, faça como quiser. Mas deixe Sofia fora disso. – aumentou o tom brevemente, mas pareceu perceber e logo voltou a falar em tom tranquilo, disfarçadamente, após um pigarro. – Meus advogados já estão a par da situação e estou te comunicando que: se esse cenário não melhorar imediatamente, entraremos com a solicitação de guarda definitiva. Os laudos da psicóloga e depoimento de testemunhas vão ser colhidos e uma nova audiência será agendada para que o juiz tome sua decisão.
Pela primeira vez desde o início da conversa, vi Veronica parecer verdadeiramente assustada. Porém, foi quem deu sequência ao monólogo.
– O fato de estar fazendo parte da vida de Sofia não vai mudar, porque estamos juntos e assim vai ser por muito tempo. Contanto que ela esteja em segurança e bem cuidada conosco, como sempre foi e esteve, não há nada que você possa fazer para mudar isso. Então, poupe seus esforços. – Ele disse. – É sua última chance de refletir sobre isso e se recompor, porque não vou tolerar que minha filha continue sofrendo com algo tão natural quanto isso por sua causa. Espero que tenha ficado claro. – finalizou, perguntando: – Tem algo que queira dizer ou perguntar?
A mulher negou com a cabeça, ainda meio atônita.
– Certo. Então isso é tudo.
Estávamos nos levantando para sair quando Veronica pareceu conseguir finalmente formular uma frase e soltou, no ímpeto:
– Nenhum juiz vai dar a guarda de uma criança a um pai que está sempre fora, ocupado com o trabalho. Não seja tonto.
– Tente a sorte. – respondeu, despreocupado, pegando nossos agasalhos nos ombros da poltrona onde estava sentado. – Eu tenho pessoas muito capacitadas cuidando disso para mim desta vez, Veronica. Você não me amedronta mais.
Ele me entregou meu casaco e vestiu o seu.
Antes de sairmos da sala, o jogador ainda fez questão de dizer algo mais:
– Aquele arranhão no rosto foi um acidente. Não era um risco real ao bem-estar de Sofia e você sabe disso. – Ele disse, se virando novamente de frente para a mulher, ainda parada estática no mesmo lugar. – Mas isso aqui é. E você também sabe disso. Então, esteja avisada de que vou fazer tudo o que eu puder para proteger o bem-estar da minha filha. – E finalizou. – Isso é tudo. Tenha um bom dia.
Caminhamos de mãos dadas em direção ao carro de sem trocarmos sequer uma palavra, até que adentramos o veículo e ele se entregou a um longo suspiro aliviado, retirando novamente o blazer que vestia.
– Como foi? – Ele me perguntou, assustado.
– Está brincando? – Perguntei. – Você foi incrível, mi amor. Foi sério, como o assunto exige, e, ao mesmo tempo, estava seguro de si e de tudo o que dizia. Acho que não poderia ter se saído melhor. – Eu disse, e ele sorriu amarelo, parecendo aliviado.
– Que bom que pareci seguro, porque eu estava tremendo por dentro.
Gargalhei espontaneamente pelo comentário, e ele acabou rindo também.
– Não transpareceu nem um pouco, não se preocupe.
– Aquilo que ela disse sobre um juiz não conceder a guarda a alguém que está constantemente ausente. Faz sentido, não faz? Você acha que isso pode ser um problema se isso vier a ser o caso? – perguntou, alguns minutos depois, parecendo preocupado.
– Eu acho que não. Suas ausências são motivadas pelo trabalho, sempre. E você tem toda uma estrutura para que Sofia continue sendo bem cuidada mesmo quando você não está, então eu não veria isso como um problema se fosse o juiz. – Respondi com sinceridade. – Sem contar que mais coisas são levadas em conta para se tomar essa decisão, então não se preocupe.
– Certo. – Ele respondeu, agora aliviado. – Foi bom ter levado você como mascote de suporte emocional. Obrigado por isso. – brincou, e eu gargalhei mais uma vez.
– Agora mesmo estava tão sério explicando a Veronica o motivo pelo qual eu estava presente, para agora me chamar de mascote de suporte emocional? – Questionei, rindo e arrancando também uma risada do goleiro. – Não agradeça por isso, corazón. Vou estar sempre por perto para apoiar você. – Eu disse, e o jogador tirou os olhos da estrada por um breve instante para me olhar e sorrir em agradecimento, erguendo uma de minhas mãos e beijando-a.
No fundo, eu acreditava que a conversa surgiria efeito e não seria necessária uma audiência para mais uma revisão do regime de guarda. A divisão semanal era justa, e eu sabia que, para Sofia, essa era a melhor opção para continuar a receber atenção do pai e da mãe na mesma medida. Contanto que a atitude de Veronica mudasse, não tentaria alterar isso de novo sem ter um bom motivo.
Ela não precisava me amar ou ser minha amiga, bem como não precisava fazer o mesmo com . No entanto, precisava nos respeitar individualmente e como casal. Era importante para que Sofia se sentisse segura conosco e não sofresse com o processo.
Quase como mágica, com o passar dos dias, foi nítida a mudança de cenário que observamos. Pouco a pouco foi voltando a Sofia espontânea e feliz que conhecíamos, e isso para nós era o mais importante.
Eu, aos poucos, fui parando minha busca por imóveis para me mudar. Não por folga minha, mas porque – sempre que eu iniciava uma busca – fazia o possível para me mostrar defeitos no lugar, não disfarçando nem um pouco que estava gostando de me ter morando consigo e que não queria que eu me mudasse dali.
Também não podia negar que, além de gostar muito de estar com ele, ter a praticidade de viver em uma casa tão confortável quanto aquela, cuja localização era tão boa e contava com tantos funcionários amáveis e que tornavam o nosso dia a dia mais prático, era uma dádiva. Parecia óbvio que minha única motivação para sair dali vinha do sentimento de não querer ser uma hóspede incômoda para ; então, quando ele começou a insistir para que eu não fosse embora, entendi que esse não era o caso e que ele queria mesmo que eu ficasse... Logo, fiquei.
O mês seguinte chegou e, consigo, a data da decisão final do campeonato mais importante que disputava.
A final acontecia em jogo único e campo neutro. Nesse ano, a delegação do Atlético viajaria à Suécia para esse jogo, e eu me organizei com os horários do meu trabalho – agora já como residente do segundo ano – para poder ir, junto com Sofia, além de Lucia e Honório, pais de , e assisti-lo.
A equipe de Madrid entrou em campo nervosa. Os jogadores erravam passes e desarmes de uma forma nunca vista antes. Todos ali diziam que isso era fruto do nervosismo de um time que poderia, pela primeira vez, conquistar um título tão expressivo.
O time adversário estava melhor, mas a defesa do Atleti conseguiu impedi-los de chegar ao gol diversas vezes. , inclusive, fez várias defesas difíceis. A cada uma, gritava nervoso com os companheiros, dando instruções para que eles se organizassem.
Menos de dez minutos faltavam para o apito final – uma prorrogação viria em caso de empate e uma disputa de pênaltis caso o placar permanecesse assim – quando uma falta marcada na entrada da grande área defendida por deixou todos em estado de alerta.
conseguiu defender, caindo e espalmando a bola com as mãos – o chute foi forte demais para que ele conseguisse agarrá-la –, mas, na sequência, a bola sobrou nos pés de um dos jogadores adversários, que aproveitou o rebote – e o fato do goleiro ainda estar tentando se levantar – para empurrar a bola ao fundo do gol.
Imediatamente o clima na parte do estádio onde estávamos ficou tensa e todos torciam para que, naqueles poucos minutos restantes, a equipe do Atlético conseguisse um gol de empate para garantir pelo menos a prorrogação. Mas não foi o caso.
desabou no gramado – em lágrimas, como muitos de seus companheiros – quando o juiz apitou o final da partida.
Sofia chorou por ver o pai chorar e foi logo acolhida pelos avós, que trataram de distraí-la e dizer o quanto já era vitorioso apenas por ter chegado tão longe – o que não era uma mentira, afinal. Mas, naquele ponto, eu já entendia o suficiente sobre o esporte para saber que o segundo lugar não servia. O fato de os jogadores tirarem a medalha de prata imediatamente após recebê-la era prova disso.
Assisti ali, também com os olhos marejados, enquanto o time adversário erguia o troféu, como queria tanto ter feito.
Foi só depois de um longo período de minutos que nossa saída do estádio foi finalmente liberada.
– Querida, você não vem? Vamos esperar por no hotel. – Minha sogra perguntou quando o ônibus que nos havia levado até o estádio chegou e boa parte das pessoas que estavam conosco no espaço reservado aos familiares o adentrou.
– Na verdade, Lu, gostaria de esperar por ele aqui. Tudo bem se vocês forem com Sofia e eu encontrar vocês lá depois? – Eu disse, percebendo que alguns jogadores da equipe já estavam saindo do vestiário e que, inevitavelmente, passaria ali antes de ir para o ônibus que levaria o time de volta ao seu hotel.
Sofia estava adormecida em um dos ombros do avô e eu sabia que não lhes daria trabalho até que eu chegasse, por isso sugeri.
– Nenhum problema. Vai ser bom para ter você aí quando sair. – Ela sorriu amarelo. – Obrigada por se preocupar tanto com meu menino.
– Amo seu filho, Lu. Não precisa me agradecer. – Respondi, devolvendo o sorriso sem graça.
Lucia caminhou com Honório até o ônibus e eu permaneci ali, diante das grades que separavam o espaço restrito da equipe da pequena aglomeração de jornalistas, que tentavam colher uma informação a mais à medida que os atletas iam deixando o vestiário.
passou pela porta cabisbaixo, sério e parecendo mentalmente querer desligar todos aqueles flashes que agrediam seus olhos ainda sensíveis e avermelhados pelo choro desconsolado de mais cedo. Caminhou a passos largos para se livrar logo daquelas pessoas e, sem erguer a cabeça, quase não me viu ao passar por ali.
– Psiu. – Sonorizei para que ele soubesse que eu estava ali.
O jogador ergueu a cabeça ainda sério e checou ainda mais uma vez antes de confirmar que era eu. Foi quando sua expressão séria passou, em segundos, para uma expressão surpresa e, então, todos os músculos de seu rosto se contraíram, fazendo-lhe cair em lágrimas novamente.
Corazón... – Eu disse, chegando mais perto e tomando-lhe em um abraço. – Eu sinto muito mesmo.
– Eu queria tanto isso, . – Ele dizia, com a voz chorosa. – Sinto ter desapontado vocês.
– Ei, não ouse dizer isso. – Eu falei, segurando seu rosto entre minhas mãos – Você jamais nos decepcionou.
– Era o sonho da minha vida.
choramingou, como uma criança, cobrindo o rosto com as mãos novamente enquanto eu o envolvia em meu abraço.
– Mas ele não se acabou, só se adiou um pouco. – Falei, em tom consolador, com uma das mãos em sua cabeça lhe fazendo um cafuné. – Na próxima vez, vocês terão mais experiência e será melhor, eu tenho certeza.
Beijei com carinho o rosto do jogador, que permaneceu mais longos segundos sem dizer nada.
– Se lembra quando aquela vez você me perguntou se não há nada místico em que acredito? – Perguntei, algum tempo depois, ainda falando baixo próximo a seu ouvido.
assentiu, sem entender muito bem.
Por ter crescido em uma família tradicionalmente católica, tinha influências muito fortes. Não que isso tenha sido um problema alguma vez ou que o goleiro fosse um teísta fanático, mas, um dia, por curiosidade, ele questionou se não havia nada sobrenatural em que eu acreditasse, e eu tinha respondido que não. O assunto desvaneceu e não tínhamos tocado mais nele até então.
– Tem uma coisa. – Falei. – Eu acredito que tudo de ruim que se passa na nossa vida acontece logo antes de algo muito bom acontecer. – Expliquei. – Aquela analogia com o fato da hora mais escura da madrugada ser aquela hora antes do sol começar a sair, sabe?
O goleiro concordou, os dois olhos inchados olhando para mim.
– Não sei se é destino ou casualidade, mas comigo tem sido assim. – Falei. – Um dia achei que nunca mais ia ser feliz de novo, mas a felicidade chegou, e já faz um tempo que já nem me lembro mais dessa época. Eu sei que é difícil ver agora, mas vai chegar um dia em que você vai estar tão feliz que isso aqui não vai importar tanto. Eu prometo.
fungou, limpando o rosto cheio de lágrimas.
– Eu já acho que algumas vezes a ordem muda. – Ele disse, se recompondo e finalizando, com um beijo carinhoso no meu rosto: – E a alegria vem antes para a tristeza doer menos quando chegar. Obrigado por isso, minha linda. Eu amo você.


Capítulo 33

– Amor, estava pensando em algo... – disse, caminhando pelo quarto, onde eu analisava – deitada na cama com um notebook sobre as pernas – uma série de artigos médicos que há dias eu estava estudando para pensar em alternativas para o tratamento de um paciente. – Que tal se... esse ano você não pegar o plantão natalino e for conosco para Guadalajara? – Ele sugeriu, tenso, parecendo ter medo da minha reação. – Eu sei que você diz que fica bem, mas não consigo me conformar com a ideia de que você passa a noite de Natal presa em um quartinho de descanso, comendo comida de hospital.
Alguns meses se haviam passado desde a trágica final de campeonato que deu ao Atlético de Madrid o posto de vice-campeão e, apesar de o assunto ainda não ser o favorito entre nós, pensar sobre aquele dia e aquela derrota já não era mais tão sofrido como tinha sido logo que aconteceu.
As luzes decorativas e o frio na capital madrilenha indicavam que o fim de ano se aproximava e, com ele, o período das festas. O pinheiro natalino gigantesco erguido no meio da sala de estar de era a prova de que aquele período tinha muito valor para ele.
Já para mim, não. Como de costume, inclusive, eu estava me preparando para assumir plantões no hospital durante essas duas principais datas até ser surpreendida por sua sugestão.
– Eu ri. –, não é importante para mim, corazón. Eu já te disse.
– Mas para mim é! – O goleiro comentou. – Sem contar que essa seria uma boa oportunidade para você conhecer meus irmãos e as outras pessoas da família. – Ele explicou. – Já faz tempo que estamos juntos e, da minha família, apenas meus pais te conhecem. E o melhor, Sofi vai conosco também. Veronica me escreveu agora há pouco pedindo para trocarmos as datas neste fim de ano.
– Sério? Por que ela faria isso? – Questionei, sem entender.
e Veronica revezavam as datas comemorativas e, a cada ano, um deles passava o período com a pequena.
No ano anterior, o direito ao feriado do Natal foi de e, apesar de toda a confusão com a ordem de restrição de visitas, ao fim, o goleiro acabou conseguindo passar o período com a filha mesmo assim. Portanto, neste ano – por lógica –, o direito era de Veronica.
– Ela participa de uma dessas equipes amadoras de corrida e disse que, em janeiro, eles farão uma viagem para correr em algum lugar legal, e ela quer levar Sofia. A data será justamente no período em que antes ela estaria comigo, por isso pediu para invertermos. – explicou. – E, por mim, está ideal. Eu até prefiro dessa forma, na verdade. Será ainda mais perfeito se você for também.
– Bom, mi amor, se você quer tanto assim, podemos fazer acontecer. – Suspirei, sorrindo. – Creio que não haverá nenhum problema quanto a isso por parte do hospital e... vai ser divertido viajar até a casa de seus pais contigo.
me sorriu de volta, agradecido.
– Perfeito! – Ele exclamou, beijando meu rosto com carinho. – Vou dar a você um Natal especial. Você vai ver só!
– Mal posso esperar. – Respondi, forçando uma empolgação. – Boa viagem. E boa sorte no jogo!
– Obrigado! Amo você. – Ele se despediu, saindo do quarto puxando sua mala de rodinhas.
Segui a rotina normalmente até que, na antevéspera do Natal, chegou de viagem. Buscamos Sofia e, de lá, saímos rumo a Guadalajara, a cidade natal do goleiro e de seus pais.
A viagem não era tão longa, mas o movimento de carros, por conta do feriado natalino, fez com que o percurso demorasse um pouco mais.
Por fim, chegamos, e eu pude observar que a casa dos pais de era enorme e muito bonita, em estilo rústico.
As luzes de Natal estavam penduradas, e havia, é claro, um pinheiro enorme, erguido e decorado logo no jardim à frente.
Descemos com nossas malas e adentramos a casa, sendo imediatamente tomados pelo delicioso cheiro que vinha da cozinha. Aparentemente, o jantar já estava sendo preparado, e comeríamos algo muito saboroso.
Logo na entrada, foi recebido por um menininho, que parecia ter seis ou sete anos, e pulou em seu colo logo que o viu. Ao mesmo tempo, Sofia entrou correndo para cumprimentar seus tios. Não que eu pudesse ver, mas conseguia ouvi-los recebendo-a também com enorme empolgação e carinho.
– Ei, meninão! – disse, satisfeito, jogando o menino para cima e o fazendo dar altas gargalhadas. – Como você cresceu, cara!
– Estou comendo lentilhas. – O menininho contou, orgulhoso.
– Então está explicado! Daqui a pouco vai estar do meu tamanho. – disse, rindo. – Ei, está vendo essa moça bonita aqui? – Ele perguntou, ainda com o menino nos braços, falando sobre mim.
Acenei, e a criança assentiu à pergunta do tio.
– Ela é a namorada do tio . Diga oi e se apresente para ela.
– Oi! Sou Manuel. – O menininho obedeceu, adorável.
– Oi, Manuel! Eu sou a . Muito prazer! – Falei, com simpatia.
Manuel sorriu com um pouco de timidez e logo saiu correndo, nos fazendo rir.
– Ei, pode deixar isso aí. Venha cá! Quero que conheça meus irmãos. – disse, deixando as malas na entrada e sugerindo que eu fizesse o mesmo.
Em seguida, tomou minha mão para adentrar a sala de estar.
A primeira pessoa que cumprimentou foi um rapaz que se parecia com ele, apesar de ter os cabelos mais grisalhos e usar um par de óculos, que lhe conferiam aparência mais velha e intelectual.
– Olá! Eu sou . – Eu disse, apertando a mão dele.
– Eu sei! Ouvimos muito de você. – Ele respondeu, rindo. – Prazer, . Eu sou o Ramón. Essa é minha esposa Julia. – Ele apontou. – E meus filhos Manuel e Santiago você deve ver correndo em algum momento por aí.
– Eles não param quietos, não adianta. Ainda mais aqui... – Julia disse, apertando minha mão e sorrindo com simpatia. – Prazer, .
– Igualmente. Ah, e já nos encontramos com Manuel! – Contei, também sorrindo. – Ele é adorável. Parabéns.
– Finalmente conhecemos você, uh? – Uma outra moça se aproximou, me cumprimentando com um abraço. – Prazer, querida! Eu sou Carmen, a irmã do meio. Estava ansiosa para conhecer a pessoa que finalmente sossegou nosso caçula!
Ela riu, sacudindo o cabelo de e deixando-o sem graça. Ramón e Julia riram juntos, e eu não pude evitar uma risadinha também.
– Fui eu! – Respondi, risonha. – Prazer em conhecer você também.
Carmen era alta, tinha tatuagens e um longo cabelo, negro como o de , e repousava uma das mãos sobre sua linda barriga de grávida, redondinha, que ressaltava apesar do grosso suéter que a mulher usava.
– Ei, vou levar nossas coisas para o quarto. Volto já, está bem? – disse, beijando meu rosto.
Assenti, e ele saiu em direção às malas, me deixando sozinha com seus irmãos e cunhada.
– Como está sendo a gestação? – Perguntei, com simpatia, a Carmen.
– Ah, muito bem, obrigada! – Ela disse. – Nas últimas duas, pensei que fosse morrer de tanta fadiga e enjoo. Já essa aqui tem sido uma benção.
– Você tem outros dois? – Perguntei, surpresa. A mulher me parecia bem jovem para ser mãe de três crianças.
– Eu comecei cedo! Fui a primeira de nós três. – Ela riu. – Paloma é minha filha mais velha. Ela está... Bom, está por aí em algum lugar com a cara enfiada no celular. Você sabe como é, não sabe?
– Sei sim! – Concordei, rindo.
– Aqui dentro está Laura, que chega em maio, e León está... ali com o pai. – Carmen apontou. – Ei, Victor, venha cá com Leo conhecer a namorada de . – Ela chamou, fazendo com que os dois viessem até nós.
Naquele ponto, eu me esforçava para decorar o nome de todas aquelas pessoas.
– Como vai? – O homem cumprimentou, apertando minha mão. – Eu sou Victor.
– Oi, Victor, eu sou ! Prazer. – Eu disse. – E esse meninão tão lindo? – Perguntei, brincando com a criança.
– Esse é León. – O pai disse. – Diga oi para a titia, filho.
O menininho aparentava ter cerca de dois anos, uma carinha de sapeca e muitos cachinhos por todo seu cabelo castanho.
– Você é médica, certo? disse algo sobre isso. – Julia perguntou.
– Sou sim! Estou na residência de pediatria. – Contei. – Concluo em um ano e meio.
– Oh, que maravilha! – Carmen exclamou. – Já sei com quem vou esclarecer minhas dúvidas sobre as crianças agora.
Rimos juntas.
– E, no que depender dessa família, você jamais deixará de ter pacientes. – Julia comentou, rindo. – Nós nunca “fechamos a fábrica” por aqui.
Eu ri.
– Vai ser ótimo cuidar dos pequenos da família. Podem contar comigo! – Falei. – E vocês? O que fazem?
– Eu sou engenheira. Trabalho em uma empresa de construção civil aqui da cidade. – Julia disse. – E Ramón é o diretor financeiro da vinícola da família, você a conhece?
– Ainda não! Mas já me disse sobre ela. Espero conhecer em breve. – Respondi, sorrindo.
Lucia me havia dito anteriormente que os irmãos de não moravam exatamente em Madrid, como ele. Assim, era mais raro se encontrarem no dia a dia, e, por isso, todas as datas comemorativas quando eles se reuniam – a exemplo do Natal – se tornavam um grande evento.
– Victor trabalha com contabilidade, apesar de eu não saber exatamente o que é que ele faz. – Carmen contou, rindo. – E eu sou professora de canto e dona de uma gravadora de música em Barajas.
– Uau! Como vocês conseguem? – Perguntei, surpresa. – Digo, terem profissões tão exigentes e ainda dar conta dos cuidados com as crianças. Deve ser difícil, né?
– Ué, mas você faz isso também, não faz?! – Julia supôs. – Digo, você trabalha e cuida de Sofia quando ela está com vocês. Isso já é algo!
– Isso definitivamente é algo. – Carmen concordou. – Ainda mais considerando o quanto viaja a trabalho. Você é uma das nossas!
Ela riu, nos fazendo rir.
– Ah, mas temos uma funcionária em casa que ajuda muito. – Eu disse, fazendo questão de dar os merecidos méritos a Guadalupe.
– Ora, mas nós também! – Carmen retrucou. – Ou você acha que eu estaria no terceiro bebê se fôssemos apenas Victor e eu? – Ela riu. – Ter uma pessoa de confiança em casa é fundamental para manter as coisas funcionando tanto dentro dela, com as crianças, quanto fora, no trabalho. Não tire seus méritos.
– Bom, pensando por esse lado... – Eu disse, refletindo sobre o que elas diziam.
– Oh! Veja quem está aqui. – Dona Lucia apareceu, parecendo surpresa e feliz ao me ver e tirando o foco inicial da conversa. – Como você está, minha querida?
– Olá, Lu! – Eu disse. – Estou bem! A senhora, como está?
– Muito feliz! Não há nada que eu ame mais do que isso aqui. – Ela disse, parecendo verdadeiramente agradecida. – A casa cheia, todos os quartos ocupados... Um neto em cada canto que eu olho. Eu amo! Que bom que você pôde vir dessa vez e Sofia também veio junto. – Lucia completou, segurando minha mão. – Vim até aqui chamar vocês para o jantar. Vamos? Preparei tudo com muito carinho.
– Claro. Vamos sim! – Eu respondi.
Em mais alguns minutos, estávamos sentados ao redor da mesa, prontos para comer. As crianças maiores comiam sentadas no sofá, com almofadas servindo de apoio para os pratos, diante da televisão – um privilégio exclusivo da casa dos avós. Principalmente porque, caso contrário, a quantidade de lugares na mesa principal não seria suficiente para todos os adultos.
Honório, pai de , fez questão de avisar que estava providenciando para o próximo ano uma mesa de jantar mais espaçosa para que todos da família pudessem se sentar.
Os assuntos da conversa durante a refeição tinham os mais variados tópicos e passavam por todos os períodos da vida dos integrantes da família. Ouvi histórias sobre a infância de , algumas histórias sobre a adolescência dos irmãos e também da época em que Honório e Lucia se conheceram... Casos que nos faziam rir até a barriga doer e viajar imaginando as cenas daqueles momentos, que, de tão especiais, ainda eram lembrados e marcavam a vida daquelas pessoas mesmo anos depois.
Mais tarde naquele dia, Sofia, e eu subimos até o quarto que foi preparado para dormirmos.
– Sabia que esse quarto aqui era o meu? – perguntou, se deitando na cama ao meu lado. – Minha mãe coloca mais camas e berços à medida que chegam mais netos, mas gosta de manter cada filho em seu próprio quarto.
O lugar era espaçoso e não parecia um dia ter pertencido a uma criança. Provavelmente havia passado por uma grande reforma.
Nele, havia uma cômoda grande com espelho, uma cama de casal e uma cama de solteiro, na qual – àquela altura, depois de brincar tanto com os primos – Sofia já estava imersa em um sono profundo.
– Foi dessa janela então que você arremessou o hamster? – Perguntei, relembrando uma das histórias contadas na mesa de jantar.
– Foi. – Ele riu. – Mas eu jurava que o paraquedas ia funcionar!
Eu ri também.
– Você diz... a sacola de supermercado. – Corrigi, de acordo com a história que ouvi.
– Na minha cabeça, ia funcionar como um paraquedas. Pobre hamster. – Ele completou, nos fazendo rir enquanto nos aconchegávamos na cama para espantar o frio que congelava nossos pés, apesar do termostato aquecendo o cômodo.
– Sua família é maravilhosa. – Falei. – Ainda precisarei de mais algum tempo para decorar os nomes de todos e saber qual criança pertence a qual casal. Mas já adorei conhecê-los.
Eu ri.
– Somos muitos. – Ele riu também. – Mas tenho certeza de que, em breve, você saberá os nomes de todos. Afinal, agora você é parte da família também. – disse, carinhosamente beijando minha testa, e eu sorri.
Pouco depois, acabamos dormindo também. No dia seguinte, ao despertar, sugeriu que fôssemos até a famosa vinícola da família, e eu logo topei.
– Ei, mãe. Onde está todo mundo? – Ele perguntou, já na cozinha, cumprimentando a mãe com um beijo no rosto.
– Bom dia, queridos! – Lucia respondeu, guardando algumas louças nos armários. – Estão lá embaixo no quintal, com as crianças.
– Gostaria de levar a para conhecer a Río Negro agora pela manhã, se estiver tudo bem por vocês. – então disse, perguntando em seguida: – Posso deixar Sofia aqui?
– Claro. Você não conseguiria levar Sofia mesmo que quisesse. Não imagina a luta que foi para simplesmente fazê-la parar de brincar para tomar café da manhã. – Lucia contou, rindo. – Ela está bem cuidada conosco. Podem ir despreocupados.
Nos despedimos e saímos rumo ao carro de na garagem.
Antes de sair, avistamos as crianças brincando todas juntas no quintal dos avós, onde um pequeno parquinho havia sido construído especialmente para elas. Apesar da diferença de idade, os primos pareciam muito unidos. Não haveria como ser diferente. Afinal, e seus irmãos eram também muito próximos.
O goleiro guiou o carro pela estrada por alguns minutos, até que parou diante de uma grande construção com uma fachada bem vistosa, em estilo colonial, na qual pude ver os escritos “Bodega Finca Río Negro”.
– É enorme aqui. – Eu disse, surpresa. – Achei que fosse uma bodega bem familiar, mas vocês são profissionais!
– É. – Ele riu. – No começo, era mesmo. Meus bisavós não faziam vinho, apenas vendiam as uvas daqui para vinícolas da região. Meus avós começaram no ramo timidamente, mas foram meus tios e meu pai que viram aqui um potencial de crescimento e começaram a fazer disso o que é hoje.
cumprimentou algumas pessoas na entrada e deu sequência à nossa tour.
– Meus avós moravam ali. – Ele apontou para uma casa, alguns metros distante. – A casa é conservada pelo valor sentimental que tem para a nossa família, mas atualmente ninguém vive lá.
Assenti, observando o local, e continuou contando:
– Uma das coisas que mais gostava de fazer quando criança era vir para cá com meus irmãos. – O goleiro contava, caminhando de mãos dadas comigo para o interior da bodega. – Brincávamos por todo esse espaço aqui, correndo entre as parreiras e fazendo-as de esconderijo... Também tinha a vindima, que é aquele costume de pisotear as uvas, sabe?
Ele perguntou e eu assenti, imaginando as cenas que ele narrava.
– Nós ajudávamos a vó na colheita, mais comendo do que de fato recolhendo os cachos. – Ele contou, caminhando comigo pelo local. – Depois, reuníamos parte dos frutos nestes lagares de pedra e nos reuníamos aqui para pisotear as uvas. É uma sensação deliciosa, você precisa ver. A gente pisa nas bolinhas e sente elas estourando. É quase como uma massagem para os pés.
– Deve ser bom. – Eu ri. – Não fazem mais isso aqui?
– Infelizmente não. É uma pena. Hoje em dia, usam máquinas para fazer a maceração e chegam no mesmo resultado com menos esforço.
Assenti, caminhando com ele pelos espaços da vinícola, aprendendo um pouco mais sobre o processo de produção dos vinhos e também sobre os detalhes familiares que tornavam aquele lugar tão especial para e sua família.
Ao fim do passeio, o goleiro guiou o caminho até uma sala de degustação, e eu o segui. Experimentamos ali um pouquinho dos principais rótulos da casa e, apesar de não ser nenhuma especialista, eu soube que aqueles eram vinhos muito saborosos e que os eram mesmo muito bons no que faziam.
Depois da experiência, voltamos à casa dos meus sogros, onde passamos a tarde em família, conversando e gracejando com as crianças.
Com o cair da noite, ajudamos a preparar a casa para a noite de Natal e, por fim, quando foi o momento, nos arrumamos e nos reunimos novamente ao redor da mesa para celebrar.
A família de me impressionava bastante. Tanto a união saudável entre Lucia e Honório como o companheirismo entre seus filhos e netos, cunhados e cunhadas, genros e noras. Aquelas pessoas conviviam bem, não só por serem da mesma família, mas também por gostarem genuinamente uns dos outros. Algo bonito de se ver e muito gostoso de presenciar.
Após a ceia de Natal, quando as crianças enfim dormiram, saímos silenciosamente etiquetando e espalhando presentes pela casa, para que elas procurassem no dia seguinte ao acordar. Aquela era outra tradição da família à qual eu estava sendo apresentada.
Na manhã de Natal, por fim, enquanto o café da manhã era preparado, as crianças foram despertando pouco a pouco e descendo para procurar seus presentes. Vê-los tão envolvidos e empolgados na procura era adorável.
Eu já estava me sentindo extremamente bem-vinda e acolhida por aquelas pessoas desde o dia em que tinha chegado, mas nem imaginava que, entre os presentes espalhados pela casa, haveria presentes dos irmãos, pais e cunhados de para mim. Os recebi com muita gratidão, mas também um pouco de vergonha por não ter me preparado para presenteá-los também.
A verdade era que, por muitos anos, eu ignorei essas festividades como uma tentativa de escapar da realidade problemática da minha família. Comprar presentes, decorar pinheiros... Nada disso fazia parte da minha rotina de fim de ano havia muito, muito tempo, e eu não podia me culpar por isso.
Aproveitando a lembrança, enquanto os familiares ainda abriam seus presentes, pedi licença e voltei ao quarto para telefonar para meus pais e irmão e desejar um Feliz Natal.
Depois de desligar a última das três ligações, permaneci reflexiva, sentada sobre a cama.
Eu não queria ser ingrata ao falar dos meus pais porque, apesar das dificuldades, sabia que eles haviam se esforçado para dar o melhor a mim e Eric, e que não tinham culpa por terem acabado em um casamento infeliz. Falta de amor de nossos pais por nós nunca foi o problema. Mas, apesar dos esforços, não éramos nem um pouco tão unidos quanto a família de e, por conta das desavenças entre eles, nós sequer tínhamos uma convivência saudável enquanto membros do mesmo núcleo. Não pude deixar de lamentar um pouco por pensar que jamais teríamos um Natal como aquele que eu estava vivenciando.
Esse sentimento, aliás, me fez perceber que, apesar de ter me conformado com a realidade e de dizer sempre que aqueles momentos familiares não me faziam falta ou que eu me dava bem com a ideia de ficar sozinha durante datas especiais e tantas outras, essas eram mentiras que eu contava a mim mesma.
Os dias morando na casa de já vinham me fazendo refletir, e aqueles dias de Natal me fizeram ter certeza de que eu gostava e sentia falta de me sentir parte de um grupo familiar. Me mostrou que eu não queria que aquela sensação acabasse no dia seguinte, ao voltarmos para Madrid, e que também não queria precisar sempre dos pais e irmãos de para continuar a me sentir assim.
Eu queria minha própria família, e estava pronta para dividir com ele esse desejo.


Capítulo 34

, as rabanadas estão prontas. Você acei... – dizia antes de entrar no quarto. Quando me viu, estática e perdida em meus próprios pensamentos, mudou o tom e se aproximou, soando preocupado: – Ei, linda... O que houve?
Neguei com a cabeça, sem querer preocupá-lo.
– Ramón fez alguma brincadeira estúpida? – Ele questionou, preocupado, se agachando à minha frente e segurando minhas mãos. – Se ele tiver passado dos limites, você pode me di...
– Não, meu amor. Seu irmão não fez nada de errado. – Interrompi, rindo da preocupação e completando, para tranquilizá-lo: – Na verdade, seus irmãos são ótimos, seus sobrinhos são adoráveis, seus pais são incríveis. Estou apaixonada pela sua família e... – Eu disse, tentando fazer sentido em meus pensamentos. – E vamos fazer isso. Tudo bem?
– Oi?! – Ele perguntou, confuso.
– Vamos construir uma família, como a sua, cheia de particularidades e tradições. Na qual Sofia tenha companhia para construir memórias e mantê-las guardadas para relembrar quando crescer. – Falei. – Que um dia você precise aumentar a mesa da nossa sala de jantar para acomodar todos os nossos familiares e os familiares deles, porque seremos uma família incrivelmente unida e numerosa. – Precisei de uma pausa para respirar fundo antes de concluir. – Não importa o que eu tenha dito antes sobre isso. Eu quero ter uma família de verdade, mi amor. E quero isso com você.
me olhava, petrificado, sem sequer piscar. As sobrancelhas franzidas, ainda parecendo bem confuso.
– Espera. – Ele pediu. – Está dizendo que você quer ter... filhos? Comigo?
Assenti.
, não me entenda mal, eu adoro a ideia de uma família com você... – disse, ainda confuso. – ... mas por que decidiu mudar de ideia sobre isso agora? Digo, tudo bem mudar de ideia. Mas não está se sentindo pressionada só porque todos aqui têm filhos ou algo assim, não é? – Ele questionou, preocupado, afastando do meu rosto alguns fios de cabelo.
– Não! Não é isso. – Respondi. – Já faz um tempo que venho pensando sobre isso. Desde que comecei a morar na sua casa e conviver com você e Sofi, como família, a ficha caiu de que eu estava em um lar, pela primeira vez em muito tempo, e que eu nem lembrava que gostava tanto de ter um.
– Meu amor… – Ele disse, parecendo surpreso e emocionado com o depoimento, mas interrompi para continuar:
– E agora eu quero mais. – Falei, me emocionando um pouco. – Vendo a relação adorável dos seus pais, eu voltei a acreditar em um casal de felizes para sempre. E acho que nós dois podemos conseguir isso se tentarmos. – assentiu, concordando. – Sem contar que, quando volto atrás nas minhas memórias, eu sempre tive meu irmão ao meu lado. Você sempre teve Ramón e Carmen, e suas memórias de infância estão a salvo com os dois, assim como as minhas estão com Eric... Sofia merece ter alguém mais com quem crescer e criar memórias também. – Continuei a dizer. – Meu trabalho é importante, mas ele não pode ser tudo na minha vida. E, ao mesmo tempo, eu não preciso abrir mão dele. Posso continuar trabalhando se Guadalupe puder continuar nos ajudando em casa... – Finalizei, preocupada. – O que acha? Péssima ideia? – Perguntei, suspirando, me sentindo compartilhar o mais íntimo dos meus pensamentos com o jogador.
– Péssima ideia? – Ele questionou. – Claro que não! É uma ideia maravilhosa, meu amor. – O jogador disse, empolgado, se levantando e me levantando também, envolvendo meu corpo em um abraço apertado e longo. – E se isso é o que você quer, é o que eu quero também.
Me aconcheguei em seu abraço, ouvindo seu coração bater.
– Agora, se me dá licença, preciso ir ali fora recolher algumas rosas brancas do quintal para colocar na árvore. – Ele disse, algum tempo depois, no meu ouvido, ainda abraçado a mim.
– Como assim? – Perguntei, rindo confusa, até que ele explicou:
– Hoje é Natal, e São Nicolau acabou de realizar mais um dos desejos que fiz a ele.
Trocamos sorrisos e beijos apaixonados e descemos em seguida para degustar das deliciosas rabanadas preparadas por Lucia.
Continuamos ali, brincando com as crianças – que tinham pressa de brincar de tudo o que fosse possível antes que chegasse a hora de dormir. Afinal, eles sabiam que, no dia seguinte, todos iriam embora e a família se despediria, indo cada membro para sua casa, sem saber quando seria o próximo evento que os uniria outra vez.
Cada uma daquelas crianças voltaria para casa com pelo menos um irmão, para não se sentir tão só pelos próximos dias. Menos Sofia. Pensar sobre isso só me fazia ter mais certeza sobre a decisão que tinha tomado de enfim aumentar a família em um futuro próximo.
Alguns dias se passaram, um novo ano chegou e, depois da viagem de Sofia com a mãe, suas aulas voltaram e retomamos nossas rotinas, inclusive quanto ao período de uma semana que ela passava com cada progenitor.
Numa quinta-feira como outra qualquer, chegaria de viagem à noite após mais um jogo da La Liga e eu havia passado toda a noite de plantão no hospital, tendo as vinte e quatro horas seguintes de folga. Nada além do usual.
Adentrei o carro no final do turno, por volta das cinco da tarde, e, enquanto tirava os apetrechos de frio – que são úteis quando se está na rua, mas acabam nos deixando enormes e desconfortáveis logo que chegamos a um lugar de temperatura aquecida –, antes que pudesse dar partida no veículo, senti o telefone vibrar no bolso da calça.
O visor indicava uma ligação de remetente desconhecido, mas resolvi atender mesmo assim.
? – A voz do outro lado da linha atendeu.
– Pois não?! – Respondi, tentando identificar o chamador.
, peço desculpas por ter pegado o seu número de celular. Ele estava na internet para que seus pacientes pudessem te encontrar, mas eu peguei porque precisava falar com você. – A pessoa explicou, logo antes de se identificar. – Aqui quem fala é Veronica, mãe de Sofia.
Congelei por alguns segundos sem saber o que responder, mas acabei conseguindo formular uma fala:
– Oi, Veronica. O que houve? Está tudo bem com Sofia?
– Sim. Ela está bem, não se preocupe. – Veronica adiantou. – Na verdade, te liguei porque... ela fará uma apresentação de dança no colégio hoje, mas estou do outro lado da cidade e o trânsito está terrível, não conseguirei chegar a tempo. – Ela completou, com aparente sinceridade. – Sofia se importa muito com essas coisas, você sabe... Se subir ao palco e não enxergar sequer um rosto conhecido na plateia, vai acabar não conseguindo apresentar nada, e ela se esforçou tanto nos ensaios... – A mulher explicou, com pesar. – está viajando, eu sei. Mas vocês moram perto da escola, então pensei que talvez você pudesse ir até lá para assisti-la, se estiver com tempo livre.
– Claro, sem problemas. – Adiantei. – Mas não estou em casa. Estou saindo do hospital agora mesmo porque acabou meu expediente. Estou perto, da mesma forma, mas precisarei de uns dez minutos para chegar. – Expliquei. – É suficiente? Há algo que ela precise? Algum figurino especial ou...?
– É suficiente. A apresentação começa em quinze. E não precisa levar nada, a professora dela vai cuidar de tudo. – Ela respondeu. – Só esteja presente, para Sofia ver você.
– Está bem. Estou a caminho agora mesmo. – Respondi, ainda meio confusa se aquela ligação havia acontecido de verdade.
– Obrigada. Nos vemos! – Ela respondeu, logo antes de desligar o celular.
Mudei a rota e me dirigi até a escola de Sofia, tão preocupada em chegar o mais rápido possível que nem pensei em avisar a sobre a ligação maluca que acabara de receber.
Depois de estacionar, segui o fluxo de pais em direção ao auditório do colégio e me acomodei em uma cadeira vazia logo que encontrei uma.
Em mais alguns minutos, as crianças subiram ao palco e deram início à apresentação em adoráveis trajes de balé.
Assim que identifiquei Sofia no palco, percebi seus olhinhos curiosos buscando alguém na plateia e, percebendo que ela não encontrava, sinalizei com as mãos e me esforcei para que ela enfim olhasse para mim.
Ao me ver, a pequena abriu um enorme sorriso e retornou à sua dança, ainda mais esforçada que antes.
Já era quase o final da apresentação quando olhei em volta e vi Veronica adentrando o auditório. Sofi estava concentrada demais para perceber que a mãe chegara atrasada e, assim, continuou fazendo o que tinha que fazer.
Ao fim do espetáculo, Veronica e eu aplaudimos junto aos outros familiares a apresentação e fomos até o palco para felicitar as crianças.
– Mamãe! – A pequena exclamou, pulando nos braços da mãe.
– Oi, cupcake! Você foi linda na apresentação. Fez um ótimo trabalho! – Veronica disse, orgulhosa, beijando a filha e apertando-a em um abraço.
– Eu não tinha achado você. – Sofi contou, empolgada. – Onde você estava?
– Estava bem ali atrás, como você não me viu? – A mãe perguntou, em tom descontraído, para a filha não perceber a inverdade.
– O tempo todo? – Sofi questionou, rindo de volta.
– Sim! O tempo todo. – Veronica respondeu, logo mudando o assunto e apontando para mim – Veja quem está ali! Vá dizer oi a também. Agradeça a ela por ter vindo ver você.
– Tia ! – A pequena exclamou, dessa vez pulando em meus braços. – Obrigada por ter vindo me ver. Você gostou do show?
– Oi, minha linda! Não há de quê. – Respondi, também a apertando em um abraço. – Claro que eu gostei. Você foi incrível! – Eu disse, e Sofia sorriu.
– Sofi, vamos brincar no parquinho – Uma criança disse, se aproximando de Sofia e puxando-a pelo braço. – Venha!
– Posso ir, mamãe? – Ela perguntou à mãe, juntando as mãos como se implorasse.
– Pode. – Veronica disse, se rendendo. – Mas apenas rapidinho antes de irmos embora, ok?
Sofi assentiu, já saindo correndo, acompanhando a colega e deixando Veronica e eu a sós novamente em um silêncio desconfortável.
– Bom, acho que já vou indo então. – Falei, com pressa para sair logo dali.
– Tudo bem. Obrigada por ter vindo hoje, tenho certeza de que foi importante para ela ver você aqui. – Veronica agradeceu, com uma simpatia que eu sequer conhecia.
– Não foi nada – Respondi, sem graça. – Me sinto feliz por ter sido útil, Sofia é muito especial para mim.
– Eu vejo. – Ela falou. – E acho que te devo um pedido sincero de desculpas. Você cuida tão bem da minha filha... Isso é tudo o que deveria me importar. Eu não precisava ter sido tão dura com você antes.
Assenti, sem graça.
– Tudo bem, desculpas aceitas.
– Ela fala de você com tanta empolgação sempre... – Veronica comentou. – Desde o começo, diz que você é incrível. Uma heroína que salva a vida das pessoas, prepara um excelente achocolatado e ainda faz penteados de princesa. Não dá para competir com isso, sabe? – Ela disse, rindo e me fazendo rir também. – E eu não queria ter que disputar um lugar na vida de Sofia com você.
– E nem vai! Eu nunca quis disputar nada com ninguém. – Falei. – E você nem precisa se preocupar, porque o lugar de mãe é único, e será sempre seu. Eu não quero e nem vou deixar que Sofia me coloque nele. – Disse para tranquilizá-la. – Mas vou sempre cuidar dela com o mesmo amor que eu teria por um filho meu. E você não precisa me agradecer por isso!
– Certo. – Ela sorriu simpaticamente, – Vou me esforçar para que as coisas sejam mais tranquilas de agora em diante.
– Oh, isso será uma maravilha! – Exclamei, quase em súplica. – Sofia é quem mais se beneficiará disso. – Finalizei, agora me despedindo de fato. – Até mais. Diga a ela que lhe deixei um abraço.
A mulher acenou, e eu saí do local rumo ao carro e, por fim, à casa de .
Guadalupe havia deixado um jantar prontinho esperando por mim, e tudo o que precisei fazer foi aquecê-lo por alguns minutos no microondas antes de comer.
Subi rumo à suíte principal e me permiti um longo banho de espumas na banheira, ainda refletindo sobre os acontecimentos inacreditáveis daquela tarde. O mais importante de tudo, ao final, era que Sofia havia ficado feliz e que um acordo de paz aparentemente havia sido selado entre sua mãe e eu.
Brinquei com Thalamus por alguns minutos até que enfim ouvi o som do carro de estacionando na garagem e desci correndo pelas escadas para contar a ele sobre o acontecimento do dia.
– Você não vai acreditar. – Dissemos os dois em uníssono, depois de nos cumprimentarmos, logo que ele entrou.
Rimos da coincidência e ele pediu para que eu contasse primeiro qual era a minha grande notícia.
– Ela disse que vai se esforçar? – perguntou, surpreso, quando terminei de contar tudo com detalhes.
– Sim! E que não deveria ter sido tão dura comigo antes. Você pode acreditar? – Confirmei, ainda surpresa ao me lembrar da cena. – Se foi por medo pelo que você disse a ela na última reunião, não sei. E pouco me importa. Só quero mesmo que ela realmente nos dê dias mais tranquilos daqui pra frente. – Falei, e ele concordou, parecendo esperançoso. – Certo, agora vá você. Diga qual é a sua grande notícia.
– Tudo bem. A sua foi incrível, mas essa aqui vai conseguir superar. – Ele anunciou, empolgado, retirando da mala de viagem um folheto, o qual segurou atrás das costas para que eu não pudesse ver, enquanto me explicava do que se tratava: – Você sabe que o Atlético tem sua própria fundação, não é? Que promove programas e ações sociais... – Ele disse. – Foi a eles que recorri quando levei os presentes para Mateo e também quando levamos ele e as irmãs para entrarem em campo comigo, você se lembra.
– Claro. O que tem? – Respondi, sem entender o rumo da conversa.
– O presidente é Adelardo Rodríguez, um ex-jogador do time. Ele está sempre por perto nos treinamentos e jogos, e costumamos conversar. Na época, eu disse a ele sobre o seu envolvimento nesse caso em questão, o esforço que foi feito para que Mateo alcançasse o tratamento e tudo mais. – Ele explicou. – E ainda atualmente, quando nos encontramos, costumamos conversar sobre isso e assuntos relacionados. Fazia tempo, inclusive, que não nos falávamos. Até que hoje ele me chamou para uma conversa no centro de treinamento quando cheguei do aeroporto para buscar meu carro.
– E disse...? – Eu pressionei para que ele desenrolasse a história logo. Estava curiosa para saber o que tudo isso tinha a ver com o folheto que ele seguia escondendo.
– Ok. Agora começa a ficar empolgante. Está pronta? – Ele perguntou, parecendo muito contente.
– Ande logo! – Brinquei, não evitando uma risada.
– Eles estão com o projeto de criação de uma academia de oncologia pediátrica, em parceria com o hospital La Paz, onde você trabalha. – Ele contou. – Seria um anexo do hospital, como um ginásio, para promover a fisioterapia e exercícios físicos num geral como aliados ao tratamento das crianças e adolescentes.
– Uau! – Exclamei, surpresa. – Que ideia incrí...
– Espera. Ainda não terminei. – interrompeu, se empolgando ainda mais. – Adelardo me disse que estão montando uma equipe multidisciplinar, reunindo pessoas que acreditam terem a ver com a proposta do projeto e... Está pronta? – Ele perguntou, fazendo suspense.
– Estou! – Eu implorei.
– Ele quer que você seja a madrinha do projeto. – contou, de uma vez, com o alívio de quem estava guardando essa notícia com muita ansiedade até finalmente poder dividir comigo. – E que participe dele, é claro, supervisionando a parte médica.
Eu? – Questionei, totalmente surpresa, arregalando os olhos e só então percebendo que minha boca estava aberta em perplexidade.
– Você! – Ele assentiu, orgulhoso. – Rodríguez disse que quando veio a ideia, logo lembrou de nossas conversas e achou que você seria a pessoa ideal para isso, por estar próxima tanto do hospital, que é seu trabalho, quanto do clube e da associação, por minha causa. Ele conversou com contatos que tem no hospital para buscar referências suas, e todas foram muito positivas. Então, ele me perguntou o que eu achava da ideia e se eu achava que você toparia, e eu disse que sim. O resumo de tudo está aqui neste folheto.
O goleiro então finalmente me entregou o folheto, a partir do qual pude entender melhor.
Aparentemente, a Fundación Atlético de Madrid impulsionaria o projeto do hospital por meio da arrecadação de fundos em uma Festa de Gala anual.
Contando com o sucesso da empreitada e a construção da unidade anexa ao hospital, eles promoveriam o esporte como terapia não-farmacológica no tratamento oncológico, humanizando a estadia dos pacientes e seus familiares e, principalmente, o avanço em pesquisas e estudos científicos sobre o assunto. A estimativa era de que, com o projeto em andamento, pelo menos duzentos pacientes fossem beneficiados com ele anualmente.
Eu observava o folheto, em choque por ter sido considerada merecedora de participar de uma iniciativa tão genial quanto aquela, mesmo concordando que o projeto tinha mesmo a minha cara.
– Onde eu assino? – Perguntei, brincando, já ansiosa pela ideia.
– Ele vai conversar com você. – falou. – Pegou seu contato e vai agendar com você uma reunião. Quis me perguntar antes para se certificar de que você toparia, e eu disse imediatamente: “É claro que sim! Isso tem tudo a ver com ela”.
Sorri em agradecimento.
– Você me conhece tão bem. Que sorte a minha. Obrigada!
– A sorte é toda dele, que vai te ter no projeto. – Ele disse. – E de tantas crianças e jovens que serão ajudadas por vocês. – finalizou, me puxando para perto e envolvendo-me em um abraço.
Logo no dia seguinte, pela manhã, recebi um telefonema do Sr. Adelardo sobre o assunto ao qual eu já havia sido adiantada.
Aproveitei que estava livre naquela sexta-feira, por conta do plantão do dia anterior, e confirmei a reunião com ele e sua equipe para o mesmo dia, garantindo que teria tempo para buscar Sofia no colégio logo que acabasse.
Combinei um conjunto de tailleur nude com um scarpin branco, que me conferia uma aparência muito mais formal e madura do que nos demais dias trabalhando no hospital – usualmente vestida em pijamas cirúrgicos, jaleco e crocs nos pés. Ondulei a extensão do cabelo com auxílio de um babyliss e me esforcei para maquiar meu rosto de forma a combinar com a face séria que eu queria transparecer.
Na reunião, conversamos mais uma vez sobre o projeto. Consideramos seus objetivos, orçamento, previsão de execução e conclusão de obra da unidade anexa, qual seria minha função, a remuneração e quanto tempo eu passaria ali por dia.
Eu não seria a única médica à frente do projeto, assim, não ficaria sobrecarregada com o trabalho dentro do hospital – que explicitei ter vontade de continuar executando – e nem fora dele, na iniciativa da fundação.
Se tudo desse certo, havia ainda uma conversa para que aquele centro fosse ampliado para atender ainda mais pacientes, e isso era música para os meus ouvidos.
Ajudar pessoas.
Muitas.
Esse sempre havia sido o meu maior propósito.
Saí de lá cheia de expectativas e muito satisfeita por estar envolvida em uma iniciativa que tinha tanto a ver comigo.
Em mais algumas semanas, iniciou-se a obra e se tornaram frequentes as reuniões médicas para debater quando seria viável ou não o encaminhamento de determinado paciente para as terapias do ginásio, sem contar as visitas periódicas ao local e, claro, a presença nos eventos para arrecadação de fundos. O primeiro jantar de gala, inclusive, aconteceu pouco tempo após a inauguração, e esteve presente não só como meu acompanhante, mas também como jogador do clube, já que todos marcavam presença em eventos da F.A.M. (Fundación Atlético de Madrid).
Era legal que tivéssemos agora aquela ponte em comum entre nossos trabalhos.
Ponte essa que nos uniu cada vez mais. era um grande apoiador de todos os meus sonhos e projetos e se sentia orgulhoso por me ver conquistando meu espaço na área, como sempre quis.
Com tantas novidades, deixei em segundo plano a ideia de começar logo a segunda residência, que seria em oncologia, pelo menos até que as coisas no projeto ficassem mais tranquilas e eu conseguisse conciliar mais tranquilamente minhas duas funções. Com isso também, o plano de aumentar a família foi sendo adiado, apesar de não ter sido esquecido.
Antes que eu pudesse me tocar, mais um fim de ano se aproximava. Sofia estava prestes a completar sete anos e vinha sendo enfática em seus desejos de aniversário: queria uma festa em casa com as amigas. Um par de tênis de rodinha, um biquíni de sereia e, por fim, nada menos que um gato.
Mais um.
“Para fazer companhia ao Thalamus”, ela dizia.
Como tanto quanto eu tínhamos uma grande dificuldade para dizer não aos pedidos da pequena, o primeiro presente chegou um dia antes do aniversário oficial da menina.
trouxe o filhote de gato-persa em uma caixa, a qual deixou sobre o tapete da sala. Filmou enquanto Sofia a abria, às cegas, sem saber exatamente do que se tratava e, depois de muita comemoração, pulos e choro de alegria, o bichano recebeu o nome de Olaf e foi o primeiro novo membro a ser adicionado à nossa família, além de o primeiro desejo da aniversariante Sofia realizado.
Os seguintes viriam em breve.


Capítulo 35

A casa estava cheia de convidados.
Balões, flores e enfeites em tons de lilás e verde-água decoravam o local.
Sofia aproveitava os últimos dias quentes do ano para comemorar seu aniversário na festa que tanto pediu: com tema de sereia e piscina liberada. Estavam presentes as pessoas da família, seus amiguinhos da escola e alguns amigos do trabalho do pai com suas respectivas famílias.
Pouco tempo depois daquela conversa – um pouco ameaçadora, mas necessária – com Veronica, a rotina de semanas alternadas ficou mais leve. No dia da apresentação de balé, um acordo de civilidade entre os dois lados foi selado e, em mais alguns meses, a própria Veronica começou um relacionamento.
Creio que isso tinha ajudado a preencher os dias da mulher, de forma que não sobrava tempo para se preocupar em nos incomodar. A paz que reinava agora era tão grande que, para a festa de Sofia, ela e o namorado foram convidados, e ambos confirmaram que estariam presentes.
Não éramos amigos, mas uma relação de cordialidade era o mínimo que poderíamos ter, considerando o bem-estar de Sofia. Pensando nisso foi que, ao montarmos a lista de convidados, resolvemos incluí-los.
Jamais iríamos nos arrepender disso, afinal, no aniversário, a pequenina estava simplesmente radiante. Corria de um lado para o outro, com os cabelos – já compridos novamente, porque ela fez a mãe prometer, de dedinho, que nunca mais ia cortar mais do que só as pontas – ao vento e seu biquíni com cauda de sereia, que eu tinha procurado feito louca pelas ruas e shoppings de Madrid, apenas para comprar e atender a mais um dos desejos de aniversariante dela.
– Está tudo bem, corazón? Você parece pálida. – perguntou, passando por mim na cozinha da casa. Eu pegava um copo de água, e ele parecia ter ido buscar um espumante em sua adega, perto dali.
– Tudo. E com você? – Desconversei, não conseguindo evitar de me contorcer um pouco pela dor que senti ao mudar minha posição, num susto ao ouvir sua voz.
– O que está havendo, ?
– Nada, nada. Estou bem, já disse. – Falei mais uma vez, diante do olhar preocupado de .
– É mentira dela, senhor . – Guadalupe me entregou, sem discrição, parecendo preocupada também, enquanto lavava algumas louças na pia da cozinha. – Ela vomitou duas vezes hoje mais cedo enquanto o pessoal montava a decoração. Eu ouvi por trás da porta! E está andando assim, como uma corcunda, porque sente dores. – A senhorinha completou, enfática. – Eu não disse nada ao senhor porque ela não deixou, mas agora vou dizer: isso está com cara de um apêndice inflamado. E vocês deveriam ir ao hospital.
– Lupe! – Repreendi.
Não queria preocupar , muito menos atrapalhar a festinha com a qual Sofia estava tão empolgada. Tinha mesmo dito isso a Lupe.
– É verdade isso, corazón? Você está se sentindo mal? – Ele questionou, deixando o espumante sobre a bancada e passando a mão por trás de minhas costas em ar preocupado.
– Um pouco sim, mi amor. Mas logo vai passar, tá? Pode ficar tranquilo! – Respondi, me encurvando de novo na única posição que encontrei, na qual conseguia não sentir dor.
– Se estiver com apendicite, é melhor ir ao médico logo, . Ficar esperando só vai fazer piorar. Você sabe disso melhor do que ninguém.
– Não é o meu apêndice. Eu saberia se fosse. – Falei.
– Como? – Ele questionou, desconfiado.
– Quando pressiono o local, a dor da descompressão não é maior do que a da compressão. Se fosse um apêndice inflamado, seria. Se chama “Sinal de Blumberg”. Fazemos esse teste nos exames físicos. – Expliquei, rindo um pouco pela expressão confusa em seu rosto, como se eu estivesse falando em árabe. – Isso deve ser só uma cólica intestinal por algo que comi. Vou tomar o remédio para dor agora e logo vou estar bem, prometo! Vá até lá ficar com sua família. Daqui a pouco já é a hora do parabéns.
– Tenho quase certeza de que é altamente não recomendado fazer esse tipo de exame em si mesma. – O jogador resmungou. – Se tomar o remédio e não melhorar, me diga imediatamente e iremos ao médico. Ok?
– Eu vou melhorar! – Afirmei, pegando a água e tomando um gole grande para engolir o remédio. – Viu? Já melhorei. Vá dar atenção à sua família!
negou com a cabeça, inconformado, e disse, fazendo um sinal com dois dedos abaixo dos olhos, encarando Guadalupe e, em seguida, apontando-os em minha direção:
– Fica de olho nela, hein?! Qualquer coisa me chame, por favor.
– Pode deixar, senhor ! – Lupe assentiu, voltando a se aproximar de mim.
Apesar da dor insistente na parte baixa da barriga e nas costas, me esforcei para ficar bem até a hora principal da festa.
Sofi estava exultante por cantar seus parabéns, pela primeira vez em sete anos de vida, com o pai de um lado e a mãe do outro.
Eu, o namorado de Veronica e os demais convidados assistimos do lado de cá da mesa do bolo e, antes que eu pudesse me tocar, estava derramando lágrimas ao ver a cena.
Meu amor por Sofia era mesmo algo surreal. Coloquei-me em seu lugar, e vê-la tão feliz me emocionou.
O bolo foi partido, os primeiros pedaços entregues pela aniversariante e, depois, um mar de crianças avançou rumo à mesa para pegar doces.
– Ai, ai, ai. – Falei quando fui “atropelada” por uma delas.
Foi sem querer, claro. Mas o choque me fez sair da minha posição de conforto e, com isso, voltei a sentir as dores fortes de mais cedo.
Continuei caminhando a passos largos – e tortos – novamente em direção ao interior de casa, distante do tumulto.
– O que foi, querida? As dores de novo? – Guadalupe perguntou, vindo em minha direção.
Ela esticou o braço para que eu me apoiasse em seus ombros e eu assenti, ofegante por conta da dor cada vez mais forte.
Antes que a senhora pudesse dizer algo, nos viu e veio – rápido como um foguete – em minha direção, perguntando, afoito:
– O que houve? Está se sentindo mal de novo? – Não respondi, então ele completou, tirando meu braço dos ombros de Guadalupe e colocando-o em volta dos seus: – Vamos ao médico, está bem? Agora não é uma sugestão.
Assenti, rendida, porém aliviada ao perceber que, agora que o parabéns já fora cantado e os convidados começavam a ir embora, eu não estragaria a festa de Sofia roubando a cena com minha provável cólica intestinal.
– Lupe, por favor, peça à minha mãe para se despedir dos convidados no meu lugar. Vou levar ao hospital.
– Ok, senhor . Mande notícias, por favor. – Guadalupe assentiu, caminhando de volta à área externa, onde acontecia a festa.
Cheguei ao carro com certa dificuldade, ainda apoiada nos ombros de , e não pude conter um gemido de dor ao precisar me encolher para passar pela porta.
– Já vai passar. Eu prometo. Vamos chegar logo e vão cuidar de você. – O goleiro disse, me ajudando a me acomodar e voltando correndo para dentro da casa apenas para pegar minha bolsa de mão com meus documentos.
Tentei olhar para trás e ver se a saída do carro de dentro da garagem havia atraído os olhares dos convidados – porque eu detestaria ter chamado a atenção –, mas, àquela altura, qualquer movimento me fazia sentir uma dor terrível, e eu preferi ficar quieta.
Descemos no Hospital Universitário La Paz, onde eu estaria trabalhando se aquele não fosse meu dia de folga.
Logo na entrada, vieram nos receber com uma cadeira de rodas, e me pegou nos braços para me colocar sobre ela.
Adentramos o hospital, e, após uma rápida anamnese de emergência, fui atendida por um colega clínico geral, que sugeriu uma coleta de sangue e um ultrassom de abdômen total para verificar o estado dos meus órgãos internos.
Enquanto esperávamos a liberação da sala de exame, me ministraram um analgésico venoso e, felizmente, em poucos minutos, eu já estava sentindo um alívio bem grande das dores.
– Você fica linda vestindo camisola de hospital, sabia? – disse, me arrancando uma risadinha.
– Definitivamente não é meu look preferido. Mas agradeço o elogio. – Brinquei, segurando sua mão, que estava mais úmida e fria que o normal, demonstrando preocupação.
– Olá, Dra. Valbuena! Vamos até lá? – A enfermeira Carla perguntou, como sempre simpática, adentrando o box da enfermaria, onde eu esperava tomando meu soro com analgésico.
Assenti, migrando da poltrona para a cadeira de rodas novamente, mais uma vez contando com a ajuda de .
– Posso ir com ela? – Ele perguntou.
– Oh. – A enfermeira lamentou. – Sinto muito, mas infelizmente não, senhor. Na emergência, não permitimos acompanhantes na sala de ultrassom, apenas em caso de crianças e pacientes que precisam ser contidos. Não acho que vai ser o caso da . – Carla brincou, nos fazendo rir. – Eu adoraria abrir uma exceção para vocês, mas não posso. Sinto muito.
– Tudo bem. – assentiu, sorrindo amarelo para Carla. – Vou estar bem aqui te esperando quando acabar, ok? – Ele completou, agora para mim. Sorri amarelo em agradecimento, dando-lhe um beijo na mão que segurava a minha.
Enquanto eu era guiada na cadeira de rodas pelos corredores do hospital, percebi que poderia até arriscar dizer que sofria com iatrofobia – o medo irracional de médicos –, caso não fosse exatamente essa a minha ocupação e eu não passasse a maior parte do meu dia cercada por vários deles.
Mas havia algo sobre a sensação de estar no lugar do paciente que era muito estranha, para dizer o mínimo.
Chegamos à sala e me acomodei na maca de exame. Pouco depois, o médico chegou e deu início à ultrassonografia.
, tenho duas considerações. A primeira é a minha principal suspeita, de que tenha havido uma torção anexial. Há um edema bem grande no seu ovário direito, o que me leva a pensar nessa hipótese, considerando também seus outros sintomas.
Arregalei os olhos pela surpresa na hipótese e, principalmente, por ter subestimado tanto a dor que estava sentindo. Uma torção anexial, em palavras simples, significava que um dos meus ovários havia, literalmente, se torcido em seu próprio ligamento.
Durante o internato, atendi algumas pacientes com aquele quadro que diziam ser a dor mais insuportável que já sentiram na vida.
– A boa notícia é que temos um cirurgião ginecológico disponível e poderemos fazer a cirurgia imediatamente. Você conhece o procedimento, não é?
– Conheço sim. Eu só tenho algumas dúvidas quanto à causa. O que pode ter causado isso? Meus exames de rotina recentes nunca mostraram cistos ou qualquer outra anomalia nos ovários. – Comentei, confusa.
– Então, doutora, essa é a segunda consideração. – Ele disse, limpando o transdutor, que estava coberto de gel e segundos antes deslizava pela minha barriga. – Quando foi a última vez que você fez um exame de Beta HCG? – O médico questionou, checando no computador o resultado dos exames de sangue.
– Eu não me recordo de sequer ter feito um algum dia, doutor. Por quê? – Respondi, com sinceridade.
Ao longo da vida, eu sempre fui tão precavida diante da possibilidade de engravidar que nunca sequer desconfiei estar grávida a ponto de precisar fazer um exame para confirmar.
– Bom, existe alguma possibilidade de que você esteja grávida? – Ele perguntou, e o meu mundo parou por alguns segundos.
Eu sabia que aquela pergunta era sempre retórica. Nunca entendi muito bem o propósito dela, aliás. Apesar de engraçado, é um pouco antiprofissional fazê-la apenas para ver a reação das pacientes quando dizem “não há a menor possibilidade de que eu esteja grávid”", apenas para ouvirem – no segundo seguinte – que têm um bebê na barriga.
– Eu estou, não é? – Devolvi a pergunta, em choque, e o médico assentiu. – Minha nossa! – Exclamei, cobrindo o rosto com as mãos, preocupada. – Mas está tudo bem? Não é uma gravidez ectópica, é?
Bombardeei o médico com perguntas, preocupada com a possibilidade da gravidez ter alguma relação com o diagnóstico inicial de torção anexial.
– Algo não bate sobre a quantidade de hCG no seu exame de sangue e o tamanho do saco gestacional que vi. Não podemos descartar a possibilidade de que haja sim um embrião crescendo no “lugar errado”. – Ele disse, parecendo preocupado.
Perdi o fôlego por alguns segundos e não consegui dizer mais nada. Apenas engoli em seco enquanto ele continuava a dizer:
– Pode ser que tenha algo a ver, ou não. Então não precisa se preocupar tanto, tudo bem? – O rapaz tentou ajudar. – Vamos te acomodar em um quarto e, em breve, irão até lá preparar você para a cirurgia. O cirurgião de plantão hoje é espetacular. Você está em boas mãos.
Eu seguia impactada pela descoberta e muito preocupada ao mesmo tempo.
Se a hipótese de gravidez ectópica se confirmasse, além do fato de que era impossível salvar um bebê nessas condições, havia os riscos à minha saúde, como o risco de hemorragia grave e perda dos órgãos afetados, normalmente as trompas e ovários.
Pensei em esperar o fim da cirurgia para contar a sobre a gravidez apenas quando – e se – tivesse garantia de um final bem sucedido. Mas seria incapaz de vê-lo novamente e não dizer que carregava um filho seu na barriga (e que a melhor das hipóteses era de que ele estivesse sendo carregado no lugar certo).
– O que o médico disse? O que você tem? – O jogador questionou, desesperado, adentrando o quarto depois de ter sido chamado até lá por uma enfermeira, como eu pedi que fizesse.
– Eu tenho duas notícias. – Falei, meio engasgada entre a empolgação e o choro. – E talvez eu não consiga dizer nada direito, desculpe. Nem sei por onde começar.
se sentou ao lado de meus pés na cama, acariciando-os, com ar tenso.
– É algo sério? – Pude ver sua mandíbula contraindo e marcando seu maxilar, o que sempre acontecia quando ele ficava preocupado ou nervoso. – Pode dizer para mim, . O que quer que seja.
, meu amor, eu estou... – Comecei a dizer calmamente, mas logo me emocionei e completei, dizendo entre lágrimas: – Eu estou grávida.
O goleiro cobriu a boca com as mãos, parecendo estar em choque.
– O quê? É sério? Você está falando sério?
– Sim. – Assenti. – No exame de sangue que fiz logo que cheguei, deu positivo.
, meu amor, isso é... – parecia radiante e prestes a dizer que isso era maravilhoso ou incrível, mas me viu chorar e mudou o tom, perguntando preocupado: – Você não está feliz? Pensei que queríamos isso.
Mordi os lábios, tentando prender o choro, que vinha como uma avalanche.
– O que há de errado, mi amor? – O jogador quis saber, preocupado, acariciando meu rosto enquanto lágrimas escorriam pelos nossos olhos.
– Isso não é tudo, . A gravidez por si só não explica essas dores tão fortes. – Contei. – O médico acredita que eu esteja com uma torção anexial. Significa, basicamente, que meu ovário direito se torceu em seu próprio ligamento de suporte. – Expliquei, tentando manter a calma. – E isso pode significar que talvez o bebê esteja se desenvolvendo nas trompas, e não no útero, como deveria.
parecia petrificado mais uma vez, agora com uma face de quase desespero, embora as lágrimas de alegria derramadas segundos antes ainda marcassem seu rosto.
– Como? Por quê?
– A torção é ao acaso, não tem um motivo. Às vezes acontece até com mulheres que não estão grávidas. – Falei. – Porém, as chances aumentam quando existe uma gravidez ectópica. E, como os níveis de hCG no meu exame estão mais altos que o normal, o médico suspeitou disso.
– Ma-mas... Se é ao acaso, pode ser que não tenha nada a ver. Certo? – Ele perguntou, ainda muito tenso. – Pode ser que você apenas esteja grávida, do jeito certo, e o problema com os ligamentos não tenha nada a ver. Não é? – questionou, parecendo se apegar a um único fio de esperança.
– É uma possibilidade. – Respondi, com sinceridade, apesar de pouca esperança. – Vou passar por uma cirurgia agora mesmo para reverter a torção e, esperançosamente, salvar o ovário. Aí o médico saberá se há algo a ver com a gravidez ou não.
– Agora mesmo? Não é arriscado? Você nem sequer está em jejum. Isso é perigoso, não é?
, mantenha a calma! – Pedi, voltando a ficar nervosa por vê-lo nervoso. – A cirurgia precisa acontecer porque quanto mais tempo eu continuar com essa torção aqui, mais tempo o ovário ficará sem receber sangue e nutrientes, aí pode acabar morrendo e não haverá outra opção além de removê-lo. E, nesse caso, se a gravidez for mesmo a causa do problema, com um ovário a menos, ficará mais difícil para tentarmos ter filhos de novo. – Expliquei, pedagogicamente, para que entendesse que, na medicina, algumas vezes precisamos assumir alguns riscos para minimizar outros.
Independentemente dos planos da paciente sobre ter filhos ou não, perder um dos órgãos reprodutores nunca é uma opção, e os médicos buscam o caminho mais conservador, a fim de preservar o sistema completo, sempre que possível. Mas nem sempre é.
– Tudo bem? – Questionei, algum tempo depois, acariciando a cabeça do goleiro, que tinha o olhar sem rumo, perdido pelo quarto de hospital, parecendo incrédulo.
– Aquilo que você disse para mim, sobre um acontecimento ruim sempre premeditar um bom... – Ele comentou. – Deu certo depois do jogo na Suécia porque você logo mudou de ideia sobre ter filhos comigo, e essa foi uma ótima notícia. Mas, agora, a notícia da gravidez era a boa e veio logo antes de toda essa parte sobre os riscos. Acho que dessa vez não funcionou. – lamentou, parecendo refletir.
– Ou ainda vai funcionar. – Dei de ombros. – Talvez venha uma notícia boa sobre outra coisa, ou talvez a notícia de que está tudo bem com a gravidez... Quem sabe?! – Respondi, enxugando suas lágrimas com meu polegar e sorrindo amarelo, tentando disfarçar que também estava preocupada.
se ajeitou na cama, de forma que conseguisse falar, bem perto da minha barriga:
– Oi, bebê. Consegue me ouvir? Aqui é seu pai. – Ele sussurrou. – Será que você poderia, por favor, desfazer esse nó que sua mãe fez? É só puxar alguns fios aí perto.
Eu ri entre as lágrimas.
– Ou apenas se comporte direitinho aí dentro para que os médicos possam fazer isso e ajudar a mamãe, está bem? Eu preciso de vocês aqui comigo. E preciso de todas as coisas que ainda não fizemos juntos, mas faremos quando você chegar. Eu acredito que você vai chegar. – completou, voltando a se emocionar. Fiz mais um carinho em sua cabeça, perguntando, para desviar o assunto e tentar amenizar o clima pesado:
– Você gostaria de ter um menino ou uma menina?
– Honestamente, tanto faz. – Ele riu amarelo. – Quando eu era mais novo, queria que meu primeiro filho fosse um menino. Acho que é assim com todos os homens, ou com quase todos. – contou. – Aí veio Sofia, e eu gostei tanto desse universo que poderia ter mais umas cinco meninas se deixassem. Mas ainda tenho curiosidade sobre como seria ter um “mini eu”. Então, esse bebê pode ser o que quiser e eu estarei muito feliz.
Eu sorri. era simplesmente o pai perfeito para uma garotinha, e eu sabia que ele seria igualmente incrível se tivéssemos um menino.
Não pude deixar de desejar mais uma vez que tudo estivesse bem.
– Quando Veronica me contou que estava grávida, já tinha seis meses de gestação. Já sabia que era uma menina e tinha inclusive escolhido o nome dela sozinha. Acredita? – Ele lamentou. – Não me entenda mal, eu gosto do nome de Sofia, mas queria ter tido a oportunidade de participar da escolha.
– Qual nome você teria sugerido? – Perguntei, ainda lhe fazendo um cafuné.
– Gostaria de homenagear minha mãe. – Ele disse.
– Lucia? – Perguntei.
– Não! Elena. – Ele corrigiu, já explicando: – Com E, que é como mais gosto da escrita.
– Oh, corazón. Que bonito! – Falei, emocionada. – Veja, se tudo der certo, e for uma menina aqui dentro, Elena será. Está bem?
Ele assentiu, sorrindo, já derrubando novas lágrimas, ao mesmo tempo em que ouvimos batidas na porta, seguidas por um enfermeiro, que adentrou para me levar ao centro cirúrgico.
– Podemos ir? – O rapaz perguntou, minutos depois, quando eu já estava novamente acomodada na cadeira de rodas.
tentava disfarçar as lágrimas que escorriam desenfreadamente por seu rosto. Como um bobo, envergonhado por chorar diante de outro homem.
– Vou estar te esperando aqui quando tudo acabar, está bem? – Ele disse, se agachando para beijar meu rosto com carinho.
Assenti, sendo tomada por um medo muito grande e esboçando uma face de choro também.
– Cuide bem da minha mulher e do meu bebê, por favor, amigão. – completou, tocando gentilmente o ombro do enfermeiro, que respondeu, com expressão confusa, tentando buscar na mente de onde o conhecia:
– Com certeza. Não se preocupe!
Essa confusão acontecia com muita frequência e, por vezes, demorava longos minutos até as pessoas associarem o rosto de ao do jogador que viam pela televisão.
– Espera um pouco. – Pedi, quando ele começou a guiar a cadeira em direção à porta. – ! – Chamei, fazendo com que o goleiro voltasse e me olhasse nos olhos.
– Se for menina, será Elena. E se for menino? – Perguntei, buscando um pretexto para adiar a descida ao bloco cirúrgico um pouco mais, mas também curiosa para saber qual nome daria a um menino, se tudo desse certo e tivéssemos um.
– Se for menino, você pode escolher. – respondeu, depois de pensar por alguns segundos. – Justo, não é?
Como nunca antes na vida eu havia me preparado para escolher o nome de um filho, segui a lógica de e pensei em um nome que homenageasse uma pessoa especial.
E essa pessoa era alguém que, dois anos antes, uniu e eu em prol de sua saúde e era graças a quem eu estava agora trabalhando em um projeto muito especial, enquanto ele crescia – contrariando todas as expectativas – em remissão, e bem.
Não tive dúvidas e disse, com toda a certeza, antes de me despedir dele mais uma vez e, enfim, seguir rumo à cirurgia:
– Certo. Então, se for menino, será Mateo!


Epílogo

“When I was younger I saw my daddy cry
And curse at the wind
He broke his own heart and I watched
As he tried to reassemble it

And my momma swore
That she would never let herself forget
And that was the day that I promised
I'd never sing of love if it does not exist

But darling, you are the only exception

Maybe I know somewhere deep in my soul
That love never lasts
And we've got to find other ways to make it alone
Or keep a straight face

And I've always lived like this
Keeping a comfortable distance

And up until now I had sworn to myself
That I'm content with loneliness
Because none of it was ever worth the risk
But you are the only exception”
(The Only Exception – Paramore)


– Pessoal, eu gostaria de dar umas palavrinhas ao , antes de cantarmos os parabéns, se me permitem. – Pedi a palavra em meio à festa na qual comemorava seu aniversário.
Tínhamos muitos motivos para comemorar aquele ano em especial, e os carrinhos de bebê “estacionados” em frente ao pequeno palco onde eu falava, perto de e das crianças, era apenas um – o principal, não vou negar – desses motivos.
– Sei que muitos de vocês que estão aqui não me conhecem, então vou começar contando a vocês um pouco sobre mim. Eu sempre me considerei uma pessoa de personalidade forte. Daquelas que dificilmente muda de ideia depois de colocar algo na cabeça, sabem? – Fiz uma pausa. – Foi assim durante toda a vida. Sempre que eu queria muito algo, não sossegava até juntar quantas mesadas fossem necessárias para comprar. Quando decidi pela minha profissão, também não sosseguei até estar com o diploma em mãos. Para mim, sempre tinha sido muito fácil cumprir metas, eu e ela simplesmente nos dávamos bem. E... digo “dávamos” porque… Bem, vinha sendo assim desde que decidi nunca mais ter um relacionamento também. – Contei, vendo que me observava, já emocionado, e eu mal tinha começado a falar. – E essa decisão eu tomei por um conjunto de fatores. O primeiro foi que eu não nasci em um lar de conto de fadas e, na infância, mesmo o amor verdadeiro me parecia algo que pertencia só aos livros de história e aos filmes. Minha realidade era tão diferente que eu sequer cogitava ser possível viver algo como na ficção. – Eu disse. – O mais engraçado foi que, apesar disso, na primeira vez que o amor bateu à minha porta, já na adolescência, eu o deixei entrar. Só mesmo para confirmar o que eu já tinha em mente. Das duas, uma: ou o amor não existia mesmo, ou simplesmente não corria no meu DNA. E ali eu decidi que nunca mais viveria um romance para descobrir qual era a alternativa. Nunca mais!
Eu ri e ouvi uma tímida risada vindo da plateia, que assistia atentamente ao meu discurso.
A festa estava cheia, mas, por sorte, eu estava sem óculos e, na correria, saí de casa também sem minhas lentes de contato.
Assim sendo, não conseguia ver os rostos de ninguém mais além daqueles que estavam na primeira fileira, ao lado do aniversariante.
Minha família.
Dessa forma, eu tinha a sensação de que estava falando apenas para eles, o que, para mim, era o ideal.
Fiz uma pausa para recuperar o fôlego e aninhar o bebê que dormia recostado em meu colo.
– Passei anos construindo uma armadura para me proteger. Regras e convicções que serviam para evitar reviver a dor de um coração quebrado ou de uma confiança traída, e estava bem assim. Ou, pelo menos, eu dizia. A solidão incomodava um pouco, sim. Mas não valia o risco.
assentia à medida que eu falava, concordando com cada palavra.
– Foi aí que apareceu. – Eu disse. – E tudo o que me lembro depois é de acordar num belo dia e perceber que estava diante de tudo o que sempre quisera na vida, mas nunca tinha percebido. Das pessoas que amo, de um café da manhã servido à mesa... E da felicidade, que um dia pareceu tão distante de mim. – Continuei, também me emocionando. – Eu amo ser médica. Amo muito o que eu faço, mas amo ainda mais ser a pessoa que tem um lar ao qual chegar depois de um dia de trabalho. A pessoa que não precisa mais encarar o próprio trabalho como uma fuga da realidade, porque simplesmente não tem mais do que fugir. – Falei, com alegria. – Quando éramos só nós dois e Sofia, eu já me sentia assim. Mas, agora, com nossa família completa, tenho ainda mais certeza.
Sofi sorriu ao ser mencionada, acariciando as perninhas inquietas da irmã, que estava sendo carregada pelo pai.
– Meu amor, no dia de hoje, celebramos sua vida e suas conquistas; dentro e fora dos gramados. Seus títulos, troféus e prêmios, mas principalmente isso que temos aqui. – Falei, agora diretamente para , apontando para as crianças. – Nosso amor e nossos pequenos: Sofia, Mateo e Elena.
Na primeira conversa mais profunda que tive com sobre nossos objetivos para o futuro, o goleiro mencionou seus planos e eu falei dos meus. Era incrível que, nem tanto tempo depois, estivéssemos realizando cada um deles, juntos, com um toque de divindade especial, que tornava a realidade melhor do que cada um dos nossos sonhos.
Apesar de ter engravidado ainda durante o último ano da residência em pediatria, consegui concluir e me graduar antes da chegada dos gêmeos.
Gêmeos.
Depois que acordei da sedação e voltei da cirurgia para reverter a torção anexial, o médico foi até o quarto para nos dar atualizações e confirmou que a torção fora espontânea e não tinha nada a ver com a gravidez.
Os níveis surpreendentemente altos de hCG no meu sangue tinham uma outra causa – a qual ele confirmou com uma ultrassonografia de maior precisão, ainda durante a cirurgia –, e essa era que, no meu útero, havia não apenas um, mas dois sacos embrionários e um embrião em cada um deles.
– Como assim? São gêmeos? – Perguntei, quando ele mencionou dois embriões.
– Sim. Veja só – O médico disse, sorridente, apontando para o visor do quarto onde projetou as imagens do exame. – Como está bem no comecinho e você apenas tinha feito o ultrassom abdominal, que é mais básico, é normal o primeiro médico não ter percebido. Mas agora conseguimos ver claramente que são dois. Parabéns, papais!
– Fizemos dois bebês ao mesmo tempo? – repetiu, ainda segurando minha mão, parecendo chocado. – Meu amor, eu sou uma máquina! – Ele brincou, arrancando risadas minhas e do médico.
O doutor informou ainda que os gêmeos não eram univitelinos, então havia a possibilidade de que fossem um casal, mas só poderíamos ter certeza por meio de um ultrassom, algumas semanas depois.
Assim foi, e tivemos a confirmação de que Mateo e Elena estavam a caminho. Juntos.
Apesar de ser uma gestação gemelar, passei bem todo o período da gravidez, e os pequenos nasceram com 35 semanas – Mateo primeiro e Elena três minutos depois – saudáveis e lindos, me fazendo conhecer e ter certeza do amor que eu só ouvia as mães dos meus pacientes dizerem ser o maior do mundo.
estava deslumbrado por finalmente ter a oportunidade de acompanhar a gestação dos filhos e ser pai em tempo integral, o que não teve oportunidade de fazer com Sofia, muito menos nos primeiros meses de vida.
O goleiro não media esforços para estar presente e, apesar da rotina de viagens e treinos, de aprender tudo o que precisaria fazer para cuidar dos bebês.
Sofia, por sua vez, desde o começo, foi a melhor e mais carinhosa irmã que meus filhos poderiam ter. Solícita, empolgada, participativa e doce, como sempre.
Por ter sido filha única durante tanto tempo, tanto por parte de pai quanto de mãe, eu e nos preocupamos muito com qual seria sua reação ao fato de receber dois irmãos de uma vez, e contamos com a ajuda da psicóloga dela para intermediar.
Como ela sugeriu, tentamos ao máximo envolver Sofia em todas as etapas da gravidez – da forma mais lúdica e descontraída possível, reafirmando todo o tempo o quanto ela era amada e insubstituível independentemente da chegada dos bebês. As compras de enxoval, montagem do quartinho e ensaios fotográficos foram todos organizados para as datas coincidirem com as semanas da pequena conosco.
No dia do parto, Sofi estava na casa da mãe. Não seria permitido ela estar presente de qualquer forma, por conta da idade, então acompanhou o nascimento dos irmãos por videochamada, junto com Veronica.
se esforçava para filmar as crianças recém-saídas da barriga e enxugar as próprias lágrimas.
– Quando vou poder carregá-los, papai? Eu quero carregá-los! – Ela dizia, empolgada, do outro lado da tela.
– Muito em breve, meu amor. Assim que eles e a forem liberados para ir para casa. – respondeu, filmando os dois bebês que eu amamentava, ainda na sala de parto, enquanto tinha minha barriga costurada. – O papai precisa ir agora, Sofi. Preciso abraçar os dois para ajudá-los a ficarem quentinhos. Mais tarde ligo de novo para você, está bem? – O goleiro disse, simplificando a explicação do processo que faria a seguir com um dos bebês ao mesmo tempo que eu faria com o outro, para mantê-los aquecidos.
– Tchau, papai! Tchau, tia . Tchau, Elena e Mateo. Eu amo vocês! – A pequena exclamou, sorridente.
– Também te amamos, princesa. Até mais! Logo nos veremos. – Respondi, sorrindo de volta.
Três dias depois, quando tivemos alta – felizmente sem que os pequenos precisassem passar pela UTI neonatal –, fomos para casa, e a ansiedade de Sofia era tanta para nos encontrar que Veronica aceitou levá-la até lá ainda no mesmo dia.
Apesar de estar muito cansada, eu estava tão empolgada quanto para apresentar meus dois pequenos amores.
Quando ouvimos o soar do interfone, Guadalupe foi até o portão para buscar Sofia, enquanto eu e organizávamos tudo o que planejamos para a apresentação dos irmãos à irmã mais velha ser o melhor possível.
Posicionamos as duas cestinhas de bebê-conforto alguns passos à frente da porta de entrada por onde Sofi passaria. Ao lado de cada uma, um presente que tanto Elena quanto Mateo tinham “trazido” para ela e, por perto também, um pai e uma mãe/madrasta ansiosos por esse encontro.
Guadalupe carregava a mochila de Sofia nas costas e abriu a porta de vidro para a pequena, que carregava duas grandes sacolas de presente – uma rosa e outra azul –, e deduzi serem para os gêmeos.
Sofi entrou e, ao ver toda a cena montada, levou as mãozinhas ao rosto numa expressão surpresa.
– São seus irmãozinhos, filha! – disse, com carinho, esperando que Sofia se aproximasse para conhecê-los.
– Posso carregá-los? – Ela perguntou, sorrindo, ainda parecendo surpresa ao ver os dois bebês ali.
– Pode, venha se sentar e levaremos eles para você. – completou, pegando Sofia pela mão e levando-a até o sofá, no qual ela poderia carregar os irmãos com mais segurança.
A pequena assentiu, se sentando.
Logo Guadalupe se sentou de um lado carregando Mateo e eu me sentei do outro, carregando Elena. Posicionamos os dois no colo de Sofia e continuamos ali ao lado para dar suporte.
No minuto em que olhamos para a menina novamente, percebemos que sua face de empolgação havia se tornado em uma cara de choro e que lágrimas escorriam por seu pequeno rostinho.
, Lupe e eu nos entreolhamos, assustados, temendo que algo a tivesse chateado e perguntou, preocupado, para entender o que havia passado:
– O que foi, filha? Por que você está chorando?
– Papai... – Sofia disse, tentando secar os olhos. Como tinha as mãos ocupadas carregando os bebês, não conseguiu, e fez isso por ela, que logo explicou: – Esse é o melhor dia da minha vida.
Respiramos aliviados pelo comentário e até rimos juntos, mas logo comecei a chorar também, emocionada com o amor que ela já demonstrava sentir pelos irmãos. fez o mesmo, e até Guadalupe tinha os olhos marejados quando a vi.
– Olha, tia , Mateo está segurando meu dedo. – Sofia disse, sorridente, algum tempo depois.
– Viu só? Ele já ama você. – Falei, mesmo sabendo internamente que o reflexo de preensão palmar era apenas um reflexo primitivo e sinal de que Mateo era um bebê saudável. Eu sabia também que, em alguns anos, tanto Elena quanto ele seriam apaixonados pela irmã mais velha, então tive total segurança para adiantar essa informação.
Sofia assentiu, empolgada, acariciando a mãozinha do irmão.
Mais tarde, abrimos os presentes que Sofia levou para os bebês e também aqueles que os irmãos haviam “levado” para ela. entregou seu celular para que Lupe registrasse nosso primeiro momento como uma família de cinco membros, e foi ali que tudo fez sentido para mim.
A sensação de família que eu demorei tanto para perceber que queria estava finalmente diante de mim. Aquela era minha nova vida agora, e eu não a trocaria por nada nesse mundo.
Apesar de ter mudado minha mente sobre ter ou não filhos, eu seguia defendendo o direito de todas as mulheres de decidirem entre tê-los ou não. Principalmente porque, tendo gêmeos, eu percebi que a maternidade é uma missão para aquelas que realmente estão dispostas a isso. Eu fui imensamente privilegiada por poder contar com a ajuda de Guadalupe – que passou a ficar na nossa casa em tempo integral, auxiliando em tudo o que fosse necessário para os gêmeos – e também de meus sogros e dos cunhados, que, apesar da distância, frequentemente vinham ajudar nos cuidados com os bebês quando não podia estar por perto devido à sua rotina intensa com o futebol.
Agora, seis meses depois do nascimento dos dois, nossa rotina já estava tão mais tranquila que eu, inclusive, pude voltar a trabalhar no hospital com mais maleabilidade de horários, sem ter horas obrigatórias de plantão a cumprir, e também no projeto do ginásio, que já estava funcionando a todo vapor, crescendo cada vez mais e alcançando mais pacientes.
O plano da segunda residência foi adiado mais uma vez por causa da gravidez, mas eu não alimentava qualquer tipo de remorso por isso. Sonhos não envelhecem, e eu percebi que poderia encontrar tempo para fazer tudo o que quisesse.
A vida é, e deve ser, muito mais do que apenas estudar, trabalhar e pagar contas.
– O amor era uma farsa, e eu ainda acreditava nisso. Mas você foi a única exceção, . A única exceção, quebrando todas as minhas regras. – Continuei meu discurso na festa de , ainda segurando o microfone com a mão trêmula. – E agora tudo faz sentido. Hoje em dia não me assusta mais acordar diante da incerteza de um dia novo. Ele vai ser o pior dia da minha vida, apenas mais um dia regular, ou o melhor de todos os que já vivi? – Perguntei, em pausas. – Não sei. Mas não tenho mais medo de descobrir. Na verdade, contando que vocês quatro estejam bem e em segurança, eu já não tenho mais medo de nada. Então, obrigada por tudo isso! – Finalizei, com um sorriso. – Um brinde a você, ao nosso amor, aos nossos derechos e a tudo o que eles nos proporcionaram, meu amor. Feliz aniversário.


Fim



Nota da autora: Chegamos ao fim de mais uma história! Minha primeira aqui no FFOBS.
Fiquei muito feliz com o retorno que tive da história, pelos comentários no Disqus e por tantas leitoras e leitores lindos que ganhei de presente com a publicação de AcD.
Espero que tenham gostado e se envolvido tanto quanto eu.
Carina e Cristián certamente ficarão marcados no meu coração para sempre... Eu amei dar vida aos dois e escrever a história deles, com tantos desafios que foram superados, tanto no cotidiano de ambos como suas próprias limitações emocionais, para que no final eles formassem essa linda família juntos.
A próxima história ainda não tem previsão de publicação, mas já está sendo escrita.
Beijo grande, obrigada por tudo mais uma vez,
Goldie.

PS: Lembrando que a história de Cari e Cris termina aqui hoje, mas vocês podem continuar acompanhando o dia a dia deles pelo Instagram:
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