A Vingança da Bruxa
Província de Massachusetts, 1690
O som dos galhos secos que se quebram por onde passo ressoa em meus ouvidos e é quase uma bênção ter algo a mais em que pensar além do que estou prestes a fazer. Não estou preparada e esta é, de longe, a parte mais assustadora de fazer o que fazemos.
A lua cheia ilumina meus passos, trazendo claridade para o fardo que carrego. Segurar uma vida nas mãos é muito mais do que eu esperava fazer quando decidi seguir os passos de minha mentora.
Os gritos e clamores da mulher parindo dentro da humilde cabana me obrigam a encarar a dura realidade: eu serei responsável por trazer esta criança ao mundo. Eu.
Pronta ou não, tenho que fazer isso.
— Onde está a Faith? — A mulher geme as palavras, tamanha dor e pressão acontecendo de dentro para fora. — Eu confio na Faith. Onde ela está? — Minhas irmãs me olham em busca de respostas também, mas seu paradeiro é outra coisa na qual não quero pensar agora.
— Ela não está aqui. Eu estou — digo confiante, é só o que me resta. — Ela me ensinou tudo o que eu sei. Tem que ser suficiente — Sussurro a última parte, não quero alarmar a mulher ainda mais.
Hannah sorri enquanto seca a testa da mulher, me dizendo sem palavras o quanto confia em mim.
— Do que você precisa? — Leslie organiza uma pilha de trapos limpos sobre a cama improvisada para a futura mãe. Ergue as sobrancelhas, ansiosa por mais instruções.
— Esquente um pouco de água — digo rápido, trançando meus cabelos para trás de qualquer jeito. — Esquente também a lâmina da adaga, mas tenha cuidado. Não vá se queimar, como da última vez — Vejo a mulher rolar os olhos antes completar as tarefas que delego.
— Não estou gostando da cor dela... — Hannah inclina a cabeça para o lado, segurando a mão da mulher com cuidado.
— Isso é hora de julgar a aparência dela, criatura? — Victoria repreende, sorte delas que esta pobre camponesa está ocupada expelindo seu bebê enorme nesse exato momento e faz tanta força que mal ouve a si mesma gritando.
— Vai acabar logo, eu prometo — digo calma, tentando usar o mesmo tom aveludado que Faith costuma usar em seus rituais de nascimento.
Sinto a mente aguçar conforme me aproximo dela.
De tanto fugir da ideia de ser responsável por isso, acabo caindo em uma espiral que me leva a visualizar passo a passo do que tenho que fazer.
Ouço minhas irmãs cantarem, a camponesa gritar em sua dor indelével, o zumbido prático em meu ouvido, sussurrando meus movimentos conforme os faço.
É escorregadio, mas o menino em meu colo está seguro. Leslie me entrega a adaga e eu respiro fundo, sabendo como este momento é crucial.
— Faith vai ficar tão orgulhosa de você! — Hannah deixa escapar a expectativa imensa.
— Ainda não acabou — Interrompo seu próximo elogio, porque ainda tenho que fazer o corte e esta é a parte delicada.
— Anda, ! — Victoria estica o pescoço, tentando um vislumbre da criança calada.
Enrolo o menino recém-nascido em um ou dois trapos, o mantendo quente. Estico um pouco seu cordão umbilical e me posiciono de forma que só tenha de fazer isso uma única vez.
O silêncio dele me assusta, então eu o faço, sem pensar demais.
O corte está feito.
Enrolo o bebê e me levanto com ele, o balançando de um lado para o outro até que ele começa a chorar.
Assim como eu, minhas irmãs respiram profundamente aliviadas por ele ter nascido saudável.
— Oi — digo baixinho, vendo suas mãos e pés inquietos, necessitando de uma boa limpeza e mais importante ainda, do calor de sua mãe. — Todo seu.
Vejo Hannah se movimentar, usando um unguento para estancar o sangramento da mãe e diminuir o inchaço. Ela pode não estar sentindo agora, mas ao amanhecer, ela sentirá como se tivesse sido virada do avesso.
— Precisamos de mais unguento, os ingredientes estão quase acabando — Victoria lembra, mais uma vez, que nosso estoque está em baixa.
— Anda, Hannah! — Leslie apressa, todas as evidências de que estivemos aqui foram apagadas e estamos prontas para ir embora.
— Eu agradeço. Vocês salvaram a vida da minha esposa e meu primogênito nasceu saudável, graças a vocês. Eu gostaria de poder lhes dar mais, mas é só o que temos — diz o marido, que até então estava em pânico no canto da cabana, vigiando as trilhas em volta em busca de curiosos e pronto para afastá-los, se necessário.
— Você acaba de ter um filho, acho que precisa mais do que nós — Sinto as unhas longas de Victoria cutucarem minha costela, mas empurro gentilmente o punhado de moedas de ouro brilhando sob à luz de velas na mão do homem.
— Muito obrigado! — O homem se emociona, ainda hesitante em se aproximar e conhecer o próprio filho.
Eu quero ficar e ver a família criando laços, mas não podemos.
No caminho de volta para casa, sinto meu coração pesado e a conversa alta de minhas irmãs só me deixa mais apreensiva. Não somos um grupo de mulheres que deve ser visto por aí sem levantar perguntas, ainda mais tão tarde da noite.
— Só estou dizendo que entendo as razões dela, mas acho que deveríamos ter pego, pelo menos, algumas daquelas moedas. Digo, nós precisamos comer também! — Leslie resmunga, sem um pingo de delicadeza.
— Acho que teremos de ser criativas. De novo — Hannah tem um tipo peculiar de otimismo.
— Querem dar uma passada no monte? Tirar sarro da raiva daqueles homens — Leslie muda de humor, empolgada de repente.
— Nós temos que voltar para a cabana. A Faith pode ter voltado — A escuridão da noite não esconde o desânimo de minhas irmãs e tento não me deixar levar pela rebeldia delas.
— Vai ser rapidinho! Podemos ir pela margem do rio, dá pra escutá-los de lá — Ela volta a insistir.
— É hilário, você tem que admitir... — Victoria se refere ao ódio que eles sentem por mulheres como nós e como suas falas são baseadas no medo de parecerem absolutamente incompetentes e fracos quando ficam doentes e tudo o que precisam, na maioria dos casos, é de um bom banho e unguento em abundância. Saber disso nos faz sermos hereges, inferiores à eles aos seus olhos.
O que minhas irmãs acham hilário, faz os pelos de minha nuca arrepiarem e minhas entranhas tremerem. Todo esse ódio infundado é perigoso.
— E se a Faith já tiver voltado? — Insisto também, mas não quero admitir que estou com medo e tudo o que quero é deitar em minha própria cama e encarar o céu estrelado até que, finalmente, amanheça.
— Aonde ela foi, afinal? — Victoria para de andar, apoiando as mãos na cintura e me olhando com cara de quem não dará mais um passo a menos que tenha respostas.
— Negociar — digo sem vontade. Não me orgulho da missão de Faith, mas reconheço suas razões e sei melhor do que ninguém que ela não tinha mais escolha.
— Com aqueles homens? — Hannah pula diante de mim, os olhos brilhando e se enchendo de lágrimas. É sempre muito difícil não pensar o pior quando nossa mentora decide fechar um acordo com senhores abastados. Significa vender uma terra que não nos pertence e fazer vista grossa com toda a destruição em massa que acontece na floresta.
Nenhuma de nós concorda com isso, mas os negócios não vão bem e como Leslie disse, nós precisamos comer também.
— Antes ela do que nós — diz seca, amarga. É Victoria quem repete o lema de Faith, que nunca permitiria que uma de nós tomasse seu lugar nessa “negociação”.
— Soa maldoso quando não é ela quem diz — Hannah encara os próprios pés, decepcionada.
— É maldoso de qualquer jeito — Leslie se irrita.
— Venha, vamos voltar pela margem do rio — Pego Hannah pela mão e a guio pelo desvio até lá, seu sorriso de boca fechada já vale a tentativa.
Não precisamos nos aproximar demais para ouvir os gritos mais animados do que nunca. Os homens urram e gritam uns sobre os outros, se gabando pela mais nova captura.
— Isso nunca é bom... — Victoria puxa as barras das saias do vestido para cima, marchando em direção à luz dourada que crepita no cume do monte.
— Não devemos ir! — Tento interferir, impedir que minhas irmãs se enfiem em mais problemas.
— E se pudermos ajudar? — Leslie dá de ombros, acompanhando Victoria e Hannah a segue, me deixando para trás.
— Nós deveríamos ir para casa! — Seguro o impulso de espernear, afinal, a época em que essa atitude poderia ser eficaz já passou há tanto tempo.
A cada passo que dou, sinto o gosto amargo de um mau pressentimento. O peso em meu peito parece triplicar e eu me sinto tão triste conforme subo o monte.
Ao chegarmos em uma distância segura e nos camuflar atrás da vegetação densa, vemos uma verdadeira festa acontecer em volta de uma pira. Há uma mulher amarrada ali.
Faith.
Virada em nossa direção, ela é guiada por nossos gritos mudos. Faith olha fundo na minha alma, ignorando a tocha acesa que se aproxima da palha seca amontoada por todo seu corpo.
— Não! — Victoria grita, tentando se levantar e correr até eles. Leslie a impede, tentando fazê-la ficar em silêncio.
As chamas começam a consumir sua pele, rasgar sua identidade e apagar tudo o que ela foi. Mas Faith sorri, me olhando através do ardor.
Meu corpo para de funcionar, só por um instante. Estou perdendo tudo o que conheço e quem poderia me ensinar tão mais.
O choro contido de minhas irmãs é o que me faz voltar a funcionar. A dor começa primeiro.
Faith sibila algo que não entendo, e então, seu grito de horror é ouvido por um bom tempo.
Até que para. E os deles recomeçam.
Salém, 2023
— Brutal! — Comenta Leslie, concentrada em seu desenho animado violento.
Os saltos finos da bota de cano longo de Hannah tilintam contra o chão de madeira envelhecida que range a cada passo que ela dá em sua agonia e apreensão.
A casa velha parece sussurrar por socorro, ameaçando ir abaixo a qualquer momento. Mas o que podemos fazer? O aluguel dividido por quatro é quase uma pechincha. Ter o teto caindo sobre nossas cabeças é um preço a mais que pagamos conscientemente, pela liberdade de termos quartos separados.
— Eles não atendem. O que faremos? — Seus olhos claros estão escuros de preocupação. Planejar e executar uma festa de Halloween sozinha não tem feito bem à cabeça da mulher, que coloca seus dons como promoter em xeque.
— Joga uns salgadinhos em um bowl, deixe algumas garrafas de bebida sobre a mesa e a festa está feita — Leslie mastiga seu salgadinho, oferecendo um pouco a Hannah, que não recebe bem a sugestão.
— Isso pode te matar — Devolve sem vontade, voltando a discar ferozmente o número do buffet escolhido.
— Se estressar com coisas minúsculas também, e veja, você tem feito isso pelos últimos 15 anos. Quem vai morrer primeiro entre nós? — Leslie coloca mais um triângulo coberto de pó sabor queijo na boca, mastigando tão devagar que irrita Victoria, que mal chega no cômodo e já dá meia volta, se excluindo da longa discussão que virá a seguir.
— Que papo mais fúnebre — digo com desdém, mas na verdade, só estou cansada. Essa coisa de Halloween para todo lado tem mexido com meus pesadelos.
Quando estou dormindo, não consigo descansar completamente e isso tem acabado comigo.
— É Halloween, tudo o que é fúnebre está na moda — Leslie parece ponderar, mas só está limpando os dentes com a língua.
— O que faremos sobre as crianças? — Hannah volta a se desesperar, um suspiro atarefado e muito perdido faz minha amiga olhar diretamente pra mim. Se tem alguém em quem Hannah confia as tarefas que não pode completar, esta pessoa sou eu.
— Eu posso atender à porta. Não é como se eu estivesse super animada para essa festa mesmo — Dou de ombros, elas sabem bem que sou contra a maldita festa desde o primeiro segundo, mas decidiram seguir em frente assim mesmo. Além do mais, se a casa vier a desabar, ficar perto da porta é a melhor estratégia.
— Você é um amor — Hannah me joga um beijo no ar, ao qual eu esquivo e finjo jogar pela janela com meu taco de beisebol invisível. — Vai se fantasiar, não é? — Ela ergue uma das sobrancelhas perfeitas, os olhos azuis penetrantes e uma ligeira tremedeira nos lábios me faz acreditar que é má ideia recusar.
— Preciso mesmo?
— Deve.
— Alguém pode me emprestar uma fantasia? — Ouço a risada rouca de Victoria aumentando e ela desce as escadas, segurando uma porção de tecidos brilhosos, espalhafatosos e minúsculos.
— Eu tenho tudo o que quiser ser: enfermeira safada, diabinha safada, policial safada, viking safada, princesa safada e Freddy Krueger — Ela conta nos dedos, me fazendo rejeitar cada uma das opções firmemente.
— Freddy Krueger? — Leslie lambe os resquícios de queijo dos dedos, interessada.
— É, tem uma sainha detonada. Vai ficar lindo na — Ela olha pra mim, cheia de expectativas.
— Eu aceito as luvas e o chapéu. A saia nós podemos deixar para outra ocasião mais apropriada, tipo, um enterro no verão — Vic ri de leve, balançando a cabeça de um lado para o outro.
Atlética e astuta, Vic parece subir e descer as escadas em pouquíssimos passos, trazendo consigo um saquinho com a fantasia. A roupa em si mais se parece com um biquíni quando se separa dos acessórios.
A camisa de manga longa e calça jeans ligeiramente queimados que o vilão dos pesadelos usa nos filmes foram substituídos por uma camiseta que cobre metade do seio e uma saia, que se resume à um fiapo na cintura, outro no quadril e umas tirinhas com strass nas pontas.
— O maior item é o chapéu? — Pergunto perplexa.
— E vocês? Do que vão se fantasiar? — Hannah abafa o alto falante do celular, me ignorando completamente.
— Eu serei um jogador de futebol zumbi — diz Leslie, um sorriso satisfeito adorna seus lábios alaranjados pelo salgadinho.
— Eu serei uma bruxa...sexy — Vic reitera, fazendo poses sensuais em frente ao espelho da sala.
— Bruxas são sexy sem esforço — diz Leslie, os olhos perdidos em lembranças muito pessoais.
— Até as que tem verrugas no nariz e dedos atrofiados de tanta maldade? — Vic ergue as sobrancelhas, brincalhona.
— Esta é uma representação antiquada, criada por homens medrosos e sem senso de estilo. Mas eu até que gosto das botas com fivelas — Les dá de ombros e eu concordo em silêncio. Bruxas são sexy nos dias de hoje e, algo me diz, que elas sempre foram.
— Certo… — Hannah responde ao telefone e à nós ao mesmo tempo. Ela dá um riso social e desliga o telefone.
— E você? — Vic cruza os braços na frente do corpo, uma sobrancelha erguida em uma leve irritação que é bastante comum e até combina com ela.
— Vocês sabem, Sininho — Hannah fala sorridente, provavelmente pensando em seu Peter Pan.
— Previsível — Vic rola os olhos. — Vocês sabem que a Sininho tem o mesmo tamanho do pau do Peter, não é? Uma transa entre eles seria catastrófica — Aponta ácida, provocando uma reação também bastante típica de Hannah: grunhir e marchar para o próximo cômodo em genuína negação.
— Acho que ela não gostou muito da imagem que você pintou… — Leslie comenta divertida, abrindo uma lata de refrigerante diet.
— Por que não? Uma transa catastrófica é tudo o que eu queria agora. Sabe o que a chance de morrer transando pode fazer com o ser humano? — Vic sorri enquanto se imagina ser rasgada ao meio em nome do prazer. Sua expressão gráfica me faz sentir suja imediatamente.
— Nunca soube porquê somos amigas — Leslie se levanta do banco giratório completamente enojada, se jogando no sofá, aos meus pés.
— Nós moramos juntas. Ou virávamos amigas e resolvíamos nossas diferenças com humor ou, eu te mataria durante o sono na primeira semana — completa Vic, convicta.
— Hmm… — Leslie se põe a pensar. — Acho que a única que emite algum sinal de ameaça aqui é a . Ela nunca diz nada e está sempre observando. Ela conhece nossa agenda, é a única que lembra as nossas senhas de banco… — Ela me olha com certo receio e eu devolvo a encarada com mistério no olhar.
— Acho que ela não tem energia o suficiente pra matar alguém… — Vic comenta, debruçando o corpo sobre o encosto do sofá. — Como ela faria para se livrar dos corpos? — As duas confabulam contra mim.
— Eu estou bem aqui! — Reclamo ofendida, fazendo minhas amigas rirem.
— Sabe quem mais vai estar bem aqui na festa de amanhã à noite? — Vic e suas sobrancelhas grossas e sugestivas se aproximam muito de meu rosto, me deixando desconfortável. Ela acaricia o acolchoado do sofá com tanta malícia.
— Não quero saber — digo quase cantarolando, me levanto de repente e vejo as duas garotas terem dificuldades para equilibrar o sofá.
— Assume, ! Você fica com as pernas moles quando ele está por perto — Leslie ri esganiçado, o que me faria rir também se não fosse a mais cruel e pura verdade.
Elas estão falando de , um cartunista independente, gato e meio mal-humorado com quem estudamos durante o ensino médio e, assim como nós, decidiu se formar por aqui também. Mesmo tendo estudado juntos por boa parte da vida, ele nunca teve coragem de me dizer sequer uma palavra. Bem, eu também nunca consegui libertar o “Oi” engasgado em minha garganta nas aulas de química.
Acontece que a primeira vez que ele me notou, eu surtei. desenha para sobreviver e em uma dessas tardes em que qualquer lugar com grama seca e limpa é o melhor lugar para descansar no campus, eu fui musa de um de seus desenhos. Mas não levei a gentileza como um elogio nos primeiros instantes.
Ele demonstrou sua camaradagem quando ultrapassou o ultraje e me convidou para tomar um café. Eu aceitei e ele me deu o tal desenho.
Um homem de poucas palavras, mas explicou que precisava desenhar algo diferente para variar e eu imaginei que, com o trabalho, uma habilidade divertida pode mesmo ficar maçante com o tempo. Uma breve mudança de ares pode reacender a chama da paixão pelo ofício e eu me senti estranhamente especial por isso. Mesmo sendo algo tão simples como um conjunto de rabiscos perfeitos de minha expressão concentrada com o conteúdo da próxima prova.
Mas depois do café, só o acaso foi responsável por nossos encontros. E, com a sorte que tenho, não aconteceu muitas vezes.
— Nós nos falamos umas duas vezes… — digo o óbvio, sentindo as bochechas esquentarem e o estômago parecer que está doente, mas são só as borboletas lutando por espaço.
— Vocês se conhecem desde sempre! — Leslie imita meu tom, exagerando meus trejeitos.
— Isso não é verdade. O estudou em casa por alguns anos na adolescência. É por isso que ele é tão estranho — Vic aponta, sorrindo de orelha a orelha. — Acho que vocês dois super combinam!
— Eu não gosto dele — minto, pois não tenho alternativa sob os olhares curiosos me avaliando.
— , seus olhos estão brilhando agora mesmo — Vic, sem paciência, faz questão de frisar.
— Que fofinha! — Leslie bate palmas animadas, me fazendo sentir patética.
— Essa comitiva nível líder de torcida acerca de garotos era maneira há alguns anos, agora é só bastante constrangedora — Olho diretamente para Leslie, que bufa entediada.
Cruzo os braços, meio de saco cheio da conversa toda.
Essa tem sido uma semana intensa.
Como se não bastasse ter passado por todos os anos de faculdade estudando biologia como uma lunática, no último dia, onde todo o esforço se simplificaria em uma fotografia alegre com o diploma em minhas mãos, meu cérebro entra em pane.
As garotas tentam me convencer de que foi o nervosismo que me fez parar de andar enquanto subia os degraus do palco montado no centro esportivo da cidade e encarar o céu com uma expressão “serena, bizarra e nostálgica”, segundo Leslie, diante de todos os outros formandos. Inclusive .
A sensação de estar vendo um filme horrível em 3D nunca mais me abandonou desde aquele dia.
— Teve uma terceira vez… — É Vic quem me lembra, toda vez.
Diante de minha pane cerebral, foi o primeiro que teve a ideia de me levar para o hospital e ficou lá comigo enquanto os vídeos de minha maior gafe circulavam pelos grupos de alunos na internet.
— Essa não conta. A estava fora si, babando e tal… — Leslie balança a cabeça, enojada.
— Não é verdade. Eu não cheguei a babar — Me defendo, talvez pela quinta vez na semana. — Eu… Adormeci por alguns minutos — Hannah volta para a sala e ajeita as almofadas, olhando feio para as meninas, que nunca mantém sua faxina intacta por muito tempo.
— Foram muitos minutos, … — Leslie insiste.
— Não o suficiente pra babar… — Reitero, chateada.
— Para de pegar no pé dela! — Vic tem no rosto a expressão de alguém que dirá algo que não vai me agradar. — Se for pra babar, ela vai fazer isso no…
— Tenho que sair. Não temos doces — Corro para a porta da casa, calço os tênis, visto o casaco e agarro minha mochila. Tudo em velocidade máxima, fazendo bastante barulho para não ouvir o restante da frase.
Saio de casa sabendo que serei o assunto da vez, mas sei que elas o fariam mesmo com a minha presença.
— Ela fica tão estranha quando falamos daquilo — Leslie comenta baixo, mas ainda consigo ouvir.
— Aquilo tudo foi estranho. Ela nem parecia estar… lá — É Vic quem grunhe em agonia.
— Sejam mais sensíveis! A estava tão estressada com a formatura que o cérebro dela desligou. Parem de falar disso, ou ela vai querer cancelar a festa de vez! — Hannah me defende, eu acho.
Ah, o Halloween em Salém! Tudo é supostamente assustador, asqueroso, propositalmente bagunçado. Mas acho tudo tão piegas.
Não nasci aqui como minhas amigas, me mudei quando tinha doze anos e elas decidiram me acolher e clamar a mim como uma das suas. Então, toda a diversão proporcionada pelo Halloween da cidade mais assustadora do país, nunca me encheu os olhos.
Mesmo estando no processo de me desassociar de toda a vergonha que passei na frente de meus colegas, acho a ideia de nos fantasiarmos e sermos outras pessoas por uma noite muito atrativa. Além de ser a única forma de ter contato com outras pessoas, concordar com a festa significa deixar minhas amigas felizes. Isso sim é importante pra mim.
Por ter sido adotada já quase adolescente, minha adaptação nesta cidade foi difícil por ser considerada estranha e muito calada, mas só até conhecer Leslie, Victoria e Hannah, e perceber que eu era a mais normal delas. Com o tempo, aprendi a amá-las como partes muito diferentes de mim.
A amizade entre nós quatro é forte o suficiente para superar as dezenas de brigas que temos por dia, pelos motivos mais banais e aleatórios possíveis. É nosso lugar seguro para dizer e sentir qualquer coisa e ter onde se esconder quando algo ruim acontece. E quase sempre acontece algo ruim; como péssimos encontros, brigas com os pais, o peso da responsabilidade constantemente aumentando e sufocando nossas ideias.
Bem, algo ruim aconteceu comigo há algumas semanas atrás e do jeito delas, minhas amigas têm sido o porto seguro do qual preciso.
Ser parte de um quarteto não amaciou as coisas quando a implicância dos outros alunos foi maior que a minha vontade de seguir de cabeça baixa e não desagradar ninguém.
Assim como nunca pude me sentir exatamente confortável nesta cidade, ela também não parece se encher de alegria por minha causa. Nós coexistimos. E eu não falo sobre os prédios e calçadas, vendas e esquinas escuras. Falo das pessoas.
Sempre com seus olhares julgadores e cheios de perguntas cujas respostas não lhe pertencem.
Ainda assim, sem que eu possa explicar, elas têm algum efeito sobre mim, afinal. A senhora Robertson, do outro lado da rua com seu conhecido sorriso condescendente é a prova disso.
Uma vez, eu a cumprimentei enquanto passava por ela e me virei logo depois, dando de cara com a expressão de puro desgosto da senhora polida, de língua afiada.
Mas algo mais forte que eu me faz tirar a mão do bolso e acenar de volta, como minha mãe gostaria que eu fizesse.
Ao passar pela porta da loja de doces, ouço a risada fantasmagórica e os uivos de um lobo já cansado de uivar para todo e cada cliente que entrou ali na última semana.
Algumas crianças correm e gritam assustadas umas com as outras, escondendo os rostos atrás de máscaras sangrentas e outras, com máscaras de personagens de filmes de super-herói os combatem com poderes que, basicamente, envolvem lasers nos dedos.
Eu passo um bom tempo as observando antes de me ocorrer que isso é um pouco estranho, então, decido fazer minhas compras e sair o quanto antes do alcance dos olhos alheios.
— Acho que é ela, sim — Ouço a voz grave, meio abobada e risonha de um conhecido de outro conhecido de minhas amigas. Respiro fundo e penso em qualquer boa resposta para qualquer idiotice que ele possa dizer sobre o meu… episódio.
— Ei, , né? — O mais alto finge seriedade, se aproximando de mim com os músculos rígidos e um olhar que ele acredita ser sensual.
— Ahm… Não — Pego uma máscara qualquer da prateleira mais baixa e a coloco em meu rosto. — Eu sou um gnomo — O encaro por trás da máscara e o vejo trocar um olhar com o outro, que não faço ideia de quem seja, mas transmite a mesma energia babaca de um adulto semi funcional.
— Você é engraçada. Poderia ter colocado essa no seu discurso, você sabe, se não tivesse se engasgado — Ele ri de um jeito tão patético que realmente não me resta alternativa além de sair ilesa da suposta tentativa de ofensa.
O encaro por algum tempo, me livrando da máscara e reparando que anos se passaram e Joshua ficou parado no tempo. Na sétima série, para ser mais exata.
Sinto um misto de pena com uma conformidade tão acolhedora e previsível. Acho que ele percebe quando decide socar o braço de seu amigo e continuar a zanzar pela loja.
— Eu nem era a oradora da classe… — Me ocorre quando os dois babacas se afastam, mas não vale a pena acrescentar.
Encho uma cesta com doces sortidos e tento caminhar de cabeça baixa pela loja até o caixa, não só pela vergonha, mas pelo medo de esbarrar com uma criança e quebrar, sem querer, um dente de leite.
Não posso arcar com mais esse azar. Se é que isso existe.
— ?
Com todas as lojas da cidade disponíveis, cheias de doçuras e travessuras, minha preguiça indomável me faz escolher a loja mais próxima.
A loja da qual o pai de é dono.
— Ei… ! — Forço uma risada que sai mal calculada, soando alta demais. O que me parece como mais um prego em meu caixão social, o faz sorrir de um jeito doce. Aliviado.
— Você está bem? — Ele dá uma breve olhada para o caminho livre onde, daqui há pouco, terá uma fila de mães e suas crianças barulhentas.
Eu penso em agilizar as coisas, colocando tudo da cesta sobre a pequena esteira. Ele não a faz girar, acumulando os sacos de balas e bombons uns sobre os outros.
Não é conversa fiada, é uma conversa real.
— Estou bem. Obrigada por perguntar e por… Bem, você sabe, se tivesse sido algum problema sério mesmo, você teria salvado minha vida — ergue uma das sobrancelhas, uma surpresa muito comedida. Quase esganada em sua tentativa de disfarçar.
— Qualquer um poderia ter feito isso — Ele fica sem jeito, passa o leitor de código de barras muito lentamente na primeira leva de balas.
— Não depois de um vídeo… — Eu rio, encabulada também.
— Malditos millennials — Reclama de um jeito rabugento e engraçado.
— Carregamos o fardo de sermos insuportáveis, mas a mudança está nas nossas mãos — Completo irônica, o fazendo rir com mais força.
— Não era pra você ter ouvido isso — bagunça os cabelos, eu olho o relógio em meu pulso. Não por querer que a conversa acabe, na verdade, essa tem sido a conversa mais longa e leve que tivemos desde o pequeno surto com o desenho.
— Bem, você disse e eu estou prestando atenção em tudo o que você diz — Arregalo os olhos diante de minha confissão. É tão desconfortável ser honesta assim, sem querer.
— Obrigado — Parece uma pergunta então, eu assinto concordando em silêncio.
— Eu estava querendo te perguntar uma coisa… — Troco o peso do corpo de uma perna para outra, me sentindo tão ridícula quanto a pergunta que farei a seguir em um tom de voz muito baixo, torcendo para ele me escutar de primeira. — Eu… babei?
parece igualmente confuso e desconcertado. Ele disfarça tudo com uma leve coçada na ponta do nariz, vejo seu pomo de adão subir e descer e, então, ele balança a cabeça de um lado para o outro.
— Era isso? — Ele ri nervoso, meio incrédulo com minha falta de atitude e curiosidade bizarras.
— Minhas amigas ficam pegando no meu pé e eu precisava de provas... — Tento explicar, mas as palavras vão perdendo força conforme eu as digo. parece meio irritado agora.
É isso. Eu não o conheço o suficiente e mesmo tentando bastante, parece um mistério pra mim.
Não é como se ele morresse de amores por mim, mas também não tenho certeza se ele me odeia.
Um mistério.
— Você está querendo contrair diabetes? — tenta, mudando a direção de seus olhos profundamente verdes de mim para os sacos de balas.
— Não são pra mim… São para as crianças — Ele assente devagar. Agora, mesmo enrolando bastante, já computou minha compra, já fez a soma de tudo e todas as coisas estão empacotadas. Eu seguro meu cartão com tanta força que o plástico parece prestes a ceder.
— Então… É só isso? — Ele ajeita as sacolas de papel, as balançando de um lado para o outro para que os sacos de balas caibam melhor. A irritação que vi antes em seus olhos se dissipou e o que vejo agora é um rapaz esperançoso.
— Não — Tento processar as palavras antes de dizê-las, mas começo a me sentir um empecilho enorme para o funcionamento do estabelecimento conforme uma fila se forma atrás de mim. — Minhas amigas vão dar uma festa amanhã, que tal aparecer? — Que tal aparecer? Que tal aparecer? Jura?
— Ahm... — ajeita melhor a postura, sorrindo de lado. — Sua amiga, a de cabelo curto, ela tinha me convidado, mas eu não sabia se deveria ir… — Ele dá de ombros.
— Vic? Ela te convidou? — A pontada de insegurança me faz querer correr, mesmo que ele ainda tenha meu cartão em sua máquina.
— É, ela — Ele umedece os lábios com a ponta da língua, eu assinto devagar. — Eu vou. Mas que fique claro, você me deve uma por quase salvar a sua vida — A fila começa a aumentar, mas todos estão distraídos demais com os itens miúdos que ficam próximos ao caixa, então eu supero a vozinha em minha cabeça me dizendo pra sair do caminho e fico para flertar.
— Talvez eu deva quase colocar a sua vida em risco para ficarmos quites — Brinco sentindo meus ombros relaxados, apesar do peso das sacolas.
— Eu vou adorar — se debruça sobre o caixa, encarando meus olhos profundamente, tão perto que consigo sentir seu perfume amadeirado e ficar completamente atraída por sua órbita.
— Eu… te vejo amanhã, então — Dou um passo longo para trás, tentando evitar a sensação. Acabo esbarrando em um expositor redondo de chocolates. — Desculpe por isso — Ajeito o expositor no lugar e saio da loja antes de causar mais danos permanentes à minha imagem.
Ótimo, agora sabe que voltei ao meu estado normal de esquisitice.
Acho que tudo bem.
Mais tarde, tento ignorar outra discussão inútil entre Vic e Leslie. Eu poderia estar no sossego do meu quarto, mas escolhi assistir à mais um episódio de “Buffy, a Caçadora de Vampiros” na companhia de minhas amigas. Vez ou outra acaba sendo divertido.
— Podemos dar continuidade ao episódio? — Sugiro cansada, mesmo sabendo que minha voz sem o mesmo entusiasmo para discussão será ignorada de imediato.
— Um minuto — Leslie gesticula com o controle remoto, avidamente. — Você está fora de si!
— Eu te pedi ajuda com essa lista de reprodução há semanas. Ainda era setembro quando você disse “ah, essa música é legal, deveríamos colocar pra tocar na nossa festa de Halloween!”, eu duvido que sequer se lembre da música que você escolheu! — Vic cruza os braços na frente do corpo, irritada com a procrastinação de Leslie.
— A culpa é sua, sabe que eu não lido bem com responsabilidades — Les se defende rapidamente, apontando o controle remoto para todos os lados, chegando a mudar o canal da TV sem perceber.
— Podemos ouvir qualquer coisa — Apresento outra opção, mas como sempre, minhas sugestões simplistas são consideradas ofensas por minhas amigas. — Ou, podemos discutir mais sobre a lista de reprodução…
— Sorte de vocês que eu sou eficiente. Esse lugar não funcionaria sem a minha eficiência! — Vic se senta na poltrona, ao lado do sofá maior. Ela suspira e encara Leslie, até que a outra pare de espumar de raiva por ter sido acusada de cometer seu crime diário.
— Eficiente ou pé no saco? — Coço os olhos entediada, a briga que parecia amornar à caminho de seu fim, tem mais uma fagulha acesa pelo comentário de Les e a gritaria recomeça.
É quando Hannah e seu namorado, Brian, chegam com seus sorrisos e suspiros apaixonados.
— Meninas, temos visita em casa. Se comportem — Hannah sorri polida, mas seus olhos passam a verdadeira mensagem: Brian pensa que somos normais, continuem o teatro.
— Estou acostumado com a Les e a Vic sempre brigando — Ele comenta risonho, me cumprimentando com um aceno breve que eu devolvo com um mini sorriso de boca fechada.
Brian representa tudo o que me parece errado no mundo: herdeiro de uma mega multinacional, rico até na forma como respira e se comporta. Ele até que é legal, tem aquele ar de nobre bondoso que faz suas doações periodicamente, sempre bem vestido e com os olhos perdidos em seus próprios pensamentos, menos quando ele olha para Hannah. Há paixão, vontade, eles inspiram a aventura que é se apaixonar e decidir seguir a vida juntos.
Ainda assim, o cara sustenta uma expressão culpada de quem carrega um fardo multimilionário.
Há a possibilidade de acontecer um pedido de casamento, já que Brian tem dado indícios que querer levar o namoro de um ano para o próximo nível e Hannah mal pode esperar pela oportunidade de dizer “sim”.
Os feriados do final do ano são os preferidos do casal, sendo assim, Hannah espera que o pedido aconteça em breve. Por isso a necessidade de tudo correr perfeitamente bem na festa de amanhã, Brian pode se ajoelhar e dizer as palavras a qualquer momento.
— Estávamos falando da festa — Vic ajeita os fios curtos de seus cabelos em um penteado despojado. — Não deveríamos ter detalhes para acertar na noite anterior, mas é bom saber que estamos todas envolvidas — Ela olha direto para Leslie, que discretamente lhe mostra o dedo do meio.
— A festa vai ser perfeita! A cereja em cima do bolo da formatura, todos da cidade virão! — Hannah se anima e joga os braços no pescoço de Brian, que sorri sem jeito.
— É seguro convidar tanta gente? — Brian faz a pergunta que tenho evitado para não soar negativa. A reação de Hannah é hilária, se fosse qualquer uma de nós, ela viria com um discurso enorme sobre sermos capazes de abrigar somente quem importar de verdade e o restante das pessoas convidadas que se virem. Mas ela sorri abertamente, o olhando com compaixão e paciência.
— A ideia é a festa ser exclusiva mesmo, amorzinho. Nós convidamos todas aquelas pessoas, mas elas sabem que algumas delas não poderão entrar. O mistério por trás de toda a diversão vai fazer com que essa seja a festa de Halloween mais incrível de todos os tempos. Vamos entrar para a história! — A ambição em seus olhos faz com que o rapaz se anime também.
— Tem razão, a massa quer exatamente o que não pode ter. Genial! — Assisto Hannah jogar os longos cachos louros para trás do ombro, satisfeita com o elogio.
— Aprendi com o melhor — Ela pisca um dos olhos e fico feliz por não ser a única olhando a cena com certas ressalvas.
— Estou feliz por ser amiga de vocês quando dominarem o mundo juntos — Vic diz o que todas nós pensamos e eles riem modestos, assustadores.
— Eu posso vender meu posto de distribuir doces? — Penso em voz alta, momentaneamente envolvida pela ideia de obter lucro a qualquer custo.
— Tão em cima da hora? — Brian meneia um pouco a cabeça, pensando no assunto. — Depende, você pode segurar por algumas horas e vender para o mais desesperado — Ele pisca um dos olhos, me fazendo rir com a possibilidade.
— Irei avaliar muito bem essa ideia — Tento me manter séria, vendo um ligeiro desespero franzir o cenho de Hannah.
— Não se atreva! Você não quer ficar na festa, distribuir os doces não tem nada a ver com isso — A última palavra sai do tom calmo que Hannah força na frente do namorado.
— Eu não posso ter mudado de ideia? — Leslie abre a boca, uma expectativa se mistura com a constatação.
— O vem! — Ela dispara, energizada pela ideia de me ver flertando miseravelmente. É parte das muitas coisas que entretém a mulher.
— Quer a sainha detonada agora? — Vic se debruça no braço da poltrona, sorrindo abertamente para mim.
— Não… — digo irritada, mas acabo mudando de ideia. — Sim — Vejo minha amiga saltitar até o quarto e voltar de lá com o restante da fantasia.
— Deve ser quentinho nos sonhos alheios — digo incerta, erguendo o pedaço de tecido retalhado que não vai cobrir nada do que deve ser coberto como uma peça de vestuário. Meus olhos incrédulos buscam por Vic, que junta o polegar com o indicador em um sinal de “ok”.
— Você vai ficar tão gostosa que vai inspirar o a criar uma saga de quadrinhos de sacanagem — Vic tem a melhor das intenções em me assegurar de que vou ficar bem na fantasia inapropriada para receber crianças famintas por açúcar.
— Eu compraria! — Leslie assente muito veemente, me deixando ainda mais constrangida.
— Eu também… — Brian deixa escapar o pensamento, arregalando os olhos de Hannah.
— Meia—calça grossa! — Ela se apressa e retira os retalhos de meus dedos, os jogando sobre meu colo.
— Boa! — Agradeço sorridente, talvez fique mesmo bonito e de bom gosto, afinal.
— Estraga prazeres… — Cantarola Vic.
— E o Carl, vai dar as caras por aqui amanhã? — Hannah lança a pergunta com força contra Victoria, que rola os olhos, mas eu sei bem que é só para tirar o homem da cabeça. Como passar um slide, virar uma página. Ela tenta.
— Aquele traidor desgraçado? Espero que esteja morto em uma vala para indigentes — diz dura, impassível.
— Uau! Isso sim é amor verdadeiro! — Leslie provoca, devorando o restante da pipoca que fizemos para o episódio, que agora nem parece importar mais.
— Cala a boca! — Vic ordena, recebendo um riso esganiçado como resposta.
— Estou indo dormir, pessoal… — Levanto do sofá, ajeitando o pijama e desviando de uma briga de almofadas que se inicia entre Victoria e Leslie, mulheres adultas, formadas em turismo e educação física, respectivamente. Com honrarias, o orgulho de seus pais.
— Sua vaca! Você acertou meu rosto! — Vic resmunga, urrando em seguida e lançando outra almofada em Leslie.
— Boa noite, . — Brian responde educado e eu assinto novamente, nunca sinto que estou vestida adequadamente para termos uma conversa completa.
Recebo o beijo na bochecha de Hannah e subo as escadas segurando a fantasia em minhas mãos.
— Não visto isso nem morta...
Deito a cabeça no travesseiro e luto contra a vontade aguda, bem no fundo de minha alma, de sorrir e criar expectativas para o dia seguinte.
Não é exatamente a melhor ideia de um encontro decente, a música estará alta e a casa estará cheia, mas não consigo deixar de pensar que, talvez, essas circunstâncias nos faça ficar mais próximos. Fisicamente próximos. Então, começo a pensar em formas de me impedir de desviar desse contato, ou esbarrar em alguém na tentativa incontrolável de correr.
Minhas amigas nunca me ouvirão dizer em voz alta, mas gosto sim de .
Gosto de como me sinto quando observo suas pálpebras se mexerem devagar e revelarem as duas esmeraldas brilhantes, tão intensos e curiosos.
Eu não poderia dizer a ninguém, mas quero que ele me olhe sempre. O tempo todo. E isso é incrível, porque normalmente fico desejando ser invisível para o resto mundo.
Gosto de como nos conhecemos. Mesmo morando na mesma cidade por tantos anos, nunca tivemos a chance de apertarmos as mãos e conversarmos sobre qualquer assunto que fosse.
Quando voltou ao colégio, eu já estava saturada pelo bullying e não estava mais tão disposta a esticar meu grupo de amigos.
Fizemos algumas aulas juntos, mas nunca houve razão para nos falarmos. Até o dia em que o peguei me desenhando no campus.
Imaginar que ele buscou por inspiração para desenhar e decidiu passar alguns minutos olhando pra mim e imortalizar aquele momento com tanta dedicação e habilidade, me deixa secretamente arrepiada. É claro que essa concepção veio depois, com a explicação dele. Mesmo assim, ele poderia ter desenhado qualquer folha insignificante que cruzasse seu caminho naquele dia, mas ele escolheu desenhar a mim.
O desenho está dobrado sobre a mesa de cabeceira, me encarando de volta e me fazendo sentir uma completa idiota por ter brigado com ele antes e mais ainda por analisar demais toda essa situação agora.
Me forço a desviar os olhos de seus traços no papel, encarando o teto e tentando acalmar minha mente.
Assisto as sombras dançando no teto de meu quarto, os galhos secos da árvore na calçada criam ali formas diferentes conforme as luzes dos carros lá fora passam por ela. Em alguns momentos, a sombra se parece com uma assustadora mão, sempre se aproximando da cama.
Fecho os olhos e respiro fundo, sentindo o sono caminhar lentamente em minha direção.
Minhas mãos estão amarradas e meus ouvidos são preenchidos por cantos em tons diferentes de medo. São orações, clamores, desespero em níveis arrebatadores.
Mexo um pouco a cabeça e a venda feita de trapos se afrouxa, caindo em meu pescoço.
O celeiro abandonado, cujo teto instável range conforme minhas irmãs empurram as paredes com todas as forças de seus punhos, está repleto de rostos conhecidos, mas busco por três deles com todo o meu coração.
Eu preciso que elas ainda estejam vivas.
Devagar e com dificuldade, me ponho sentada, depois apoio um de meus joelhos no chão, sentindo a terra úmida entrar por entre meus dedos.
Meu vestido está sujo de sangue, mas de alguma forma, sei que não é meu.
Eu lutei. Vou continuar lutando. É uma decisão que trago comigo desde que vi minha mentora encarar sua morte com olhos destemidos e um sorriso vingativo nos lábios um ano atrás.
Enquanto queimava até a morte, ela me deu o último e o maior dos ensinamentos: chegará uma hora para a qual todas nós devemos nos preparar, a hora da vingança.
Eu a sinto se aproximar.
Caminho atordoada pela gritaria e cega pelo meu próprio objetivo. O cheiro de fumaça me deixa tonta e eu sinto que não suportarei muito mais tempo neste Inferno criado pelo homem.
— ! — Ouço o grito sufocado e, como um cachorro do mato, corro em direção ao som e ao chegar no canto mais escuro do celeiro, encontro minhas outras três partes encolhidas e assustadas.
É por elas que preciso continuar lutando, então, me ponho a pensar.
Somos muitas. Uma fuga completa se tornaria em uma nova época de caça, e nós não somos cervos, apesar de estarmos aguardando para o abate em um celeiro.
Não posso deixar que isso aconteça com elas.
Esfrego a corda que prende minhas mãos contra a coluna descascada do celeiro. Me apresso ao ouvir os xingamentos se engrossarem na parte da frente da estrutura, uma luz muito forte os acompanha e eu sinto o cheiro de queimado se intensificar.
Não temos tempo.
Com os punhos ensanguentados, mas livres, me ponho de joelhos novamente, cavando a terra com minhas unhas e arrancando as pedras da fundação com a ajuda de minhas irmãs.
O buraco que fazemos é estreito, mal passam nossas pernas.
Os gritos aumentam, as chamas se espalham por toda a parte e o calor me deixa fraca, mas não posso parar.
Hannah sai primeiro, puxando Leslie e Victoria. Ao perceber que elas estão livres, respiro fundo, aspirando a fumaça no celeiro escuro.
Mergulho na terra, sentindo meu peito ficar molhado e logo uma rajada de vento muito forte parecer levar consigo o medo.
Por um instante, me sinto aliviada por estar viva, mas os gritos agonizantes de minhas irmãs que não conseguiram escapar ressoam em minha alma, rasgando meu peito.
— Temos que ir! — Victoria agarra uma porção de minha saia, me puxando consigo para longe do celeiro em chamas.
— Precisamos de ajuda! — Hannah se desespera, sua respiração está entrecortada e seus olhos inundados.
— Não temos a quem recorrer — Leslie retoma o fôlego. Revoltada com a saia de seu vestido desde cedo, ela o rasga, desmontando as camadas de tecido e pisando sobre eles.
— Eles querem nos matar e você acredita que a melhor ideia é sair por aí correndo somente com a roupa de baixo? — Victoria encara a irmã sem piedade, como se pudesse transformá-la ali mesmo, em algo horrendo e viscoso.
Caminhamos durante toda a noite, buscando as sombras para nos deixar seguras e correndo contra o tempo e os cães farejadores de caçadores sedentos por nosso sangue.
No alto da montanha, montamos um pequeno acampamento. Sem nenhuma fogueira por perto, nos aninhamos umas contra as outras, buscando nos aquecer.
— Aposto que queria aquelas camadas de tecido agora, não é mesmo, Leslie? — provoca Victoria, tirando um riso curto e incerto de nossa irmã. Mesmo amedrontada, ela se recusa a demonstrar alguma tristeza.
Nos abraçamos mais, a luz da lua nos ilumina e por alguns instantes, fico feliz por só isso me bastar. Estamos vivas. Ainda estamos vivas.
Ainda temos uma chance para continuar fugindo e lutando por nossas vidas.
A manhã ameaça chegar e sou a primeira a acordar. O som do rio ao longe parece tranquilo, os pássaros e insetos fazem sua sinfonia, mas não tenho tempo para apreciar seus talentos.
Com a luz do sol, somos alvos fáceis e não estamos tão longe assim do perigo.
É hora de termos um bom plano.
— Leslie, acorde! — Balanço minha irmã, que acorda assustada. Trato de tranquilizá-la como posso e então, acordamos as outras.
Juntas, nos preparamos para deixar a província, o quanto antes.
Caminhamos enfileiradas e em silêncio, seguimos o rio para fora da província e o plano era chegarmos até Lynn, onde um primo distante de Leslie nos emprestaria uma carroça e poderíamos seguir para Revere, onde viveríamos com novas identidades e hábitos mais diurnos.
Na estrada para Lynn, Hannah encontra a carroça de seu amado, um comerciante bem-sucedido que nunca se importou com os boatos sobre ela, pois, com seu trabalho, ele nunca estava por perto para ouvi-los. Sorridente, ela corre até a carroça na esperança de que ele tenha água e comida, um pouco de compaixão e coragem para nos ajudar.
A carroça está bem abastecida, mas o escolhido de Hannah não pode ser encontrado em lugar algum. Preocupada que ele tenha se encrencado por sua causa, Hannah começa a chamar seu nome.
— Hannah! Vão nos descobrir! — Victoria implora que ela pare, mas Hannah cede tarde demais.
Do meio da mata, silenciosamente, uma flecha atravessa as folhas de um arbusto e acerta o manto que cobre a carroça. Somente há poucos centímetros da cabeça dela.
— Este foi um aviso — A voz trêmula e masculina é ouvida do meio da vegetação vasta. — Fique longe de mim — Ele se afasta da árvore em que se esconde, empunhando uma adaga pequena em sua mão trêmula.
Eu reconheço a flecha.
Junto com o comerciante, outros rostos conhecidos surgem do meio da natureza, seus olhos refletem o ódio e a destruição.
Tudo o que ouço antes de uma batalha severa se iniciar, é o trincar dos corações de minhas irmãs.
Uma emboscada nos aguardava no caminho, não só com a intenção de nos capturar como animais, mas, um plano secreto para nos dilacerar antes de enfrentarmos nossos destinos.
Victoria, Leslie, Hannah e eu fomos traídas pela ideia de estarmos apaixonadas.
Capturadas, humilhadas e derrotadas por quem mais confiavam, vejo que minhas irmãs se deram como vencidas.
Mas eu não.
No cavalo atrás de nós, o caçador faz a nossa escolta.
Olho fundo em seus olhos e busco por algum resquício do calor que existia ali. O conforto do amor que compartilhamos em absoluto segredo durante as madrugadas, sob o testemunho da lua na floresta ou à luz de velas em algum celeiro abandonado.
Eu o amei e o caçador me retribuiu com a pior das traições.
O jeito como ele evita me olhar nos olhos agora me faz acreditar que é essa a sua real faceta. A de um homem covarde, solitário, amargurado.
Todo aquele calor não passava do reflexo das velas.
Ele nunca me amou de verdade.
A raiva de ser enganada assim me faz afundar as unhas nas palmas de minhas mãos. Tão fundo que, mesmo lascadas e quebradas pela fuga, ainda estão fortes o suficiente para lacerar a pele e libertar meu sangue junto com ideias que nunca achei que teria.
O vermelho colore minha visão, chegando a me cegar.
— Que uma morte lenta, horrenda e sem misericórdia encontre o coração daquele que cruzar nossos passos. Todo homem traidor...
— Aproveitador… — Hannah completa.
— Mentiroso — Uma lágrima escorre pela bochecha avermelhada de Victoria.
— Que assim seja — Leslie corta a palma da mão no arame solto da cela onde fomos colocadas como animais. Hannah morde a própria língua, Victoria já sangra pela violência em que foi capturada.
— Que assim seja! — Repetimos em uníssono.
Nossas amarras são eficazes, não podemos segurar as mãos uma da outra, mas sinto nossos corações baterem alinhados em profunda desilusão. Toda nossa intenção está jurada a este último pedido.
Com cordas amarradas em nossos pescoços, posso sentir o gosto do fim. Olho para minhas irmãs e sei com todo meu coração que esta não será a última vez que verei os olhos sonhadores de Hannah buscarem o horizonte procurando por amor, ou ouvirei a voz displicente de Victoria usar dos xingamentos mais baixos e constrangedores para despertar também o pior e o melhor em Leslie.
Eu sei que não é a última vez. Não pode ser.
Encaro a madeira abaixo de mim, tão distante de meus pés.
Fico grata por não dar a eles o vislumbre de meu arrependimento, sem derramar uma única lágrima.
Encaro os olhos verdes do homem que achei que amava. Esse sim, eu não quero ver nunca mais.
Com o sol queimando o alto de minha cabeça, volto a encarar a madeira puída e imagino nascer dela, um pequeno ramo de alecrim. Talvez pensar na minha coisa favorita enquanto morro acalme meu coração cheio de feridas.
Respiro fundo e minha imaginação se desfaz com o terror da realidade. O chão se desfaz também, deixando de existir abaixo de mim.
Eu posso adormecer agora, mas sei que minha vingança voltará a despertar.
— Caralho! — Escapa de minha boca conforme me sento bruscamente na tentativa de sair fisicamente do pesadelo mais longo, estranho, aleatório e lúcido que já tive em toda a minha vida.
Assustada, verifico minhas mãos e braços, vendo que o único dano em minhas unhas é proveniente da minha falta de ânimo para trocar o esmalte descascado. — Puta que pariu! — Empurro o cobertor, continuando minha auto perícia. Não há marcas ou machucados em meu corpo, somente suor e a sensação estranha de ter tido a mente invadida por tempo demais.
Estou exausta, rouca. Tento soltar um pigarro, mas minha garganta dói muito, tanto por dentro, como por fora. Me levanto apressada, querendo que os pesadelos fiquem na cama e me deixem em paz, mas ao cruzar o olhar com o reflexo no espelho, o ar some de meus pulmões. Uma marca avermelhada e bem pronunciada em meu pescoço se assemelha ao formato de uma corda.
Eu quero gritar, mas nada sai.
Caminho para fora do quarto atordoada, buscando por qualquer pessoa que possa me dizer que ainda estou dormindo e que tudo isso ainda faz parte do pesadelo.
— O que é isso no seu pescoço? — Les fala alto, chamando a atenção de Vic para o machucado, que agora coça como os diabos.
— Não sabia que mulheres também curtiam asfixia erótica — Vic se aproxima, afasta meu cabelo e toda a expressão brincalhona some. — O que você fez?
— Nada! Eu tive um pesadelo em que éramos bruxas, no auge da inquisição — Enquanto minhas amigas decidem entre rir e se preocupar com minha saúde mental, começo a repassar o pesadelo e percebo que a sensação é exatamente a mesma que senti no dia da formatura.
Eu não me lembro com o que sonhei quando estive “por fora”, mas a sensação é exatamente a mesma.
Tento me lembrar de alguns segundos antes, enquanto subia as escadas prestes a encarar meus professores e receber meu diploma. A memória que tenho não parece minha, propriamente dita.
É o mesmo lugar, são os mesmos pés. Mas subimos por escadas diferentes, para fins diferentes.
— Esta cidade pega pesado nessa coisa de Halloween, você deve ter se impressionado com alguma coisa e… — Leslie tenta dar sentido ao meu desespero, mas meu pescoço dói como se tivesse sido quebrado. É real.
— Toca nisso, Leslie… Não parece ser fruto da imaginação dela — Vic se irrita, puxando as mãos geladas de Leslie para tocar meu pescoço avariado por um sonho.
— Você deve estar zoando. É claro que isso é maquiagem! — Ela tenta puxar minha pele e eu grito em agonia.
— Que gritaria é essa? — Hannah reclama, os cabelos bagunçados e a expressão de poucos amigos logo cedo é parte de nosso cotidiano.
— foi atacada. Estamos tentando decidir se foi um fantasma ou…
— Uma memória — digo assustada, sem me importar com minhas amigas rondando meu pescoço.
— Tá sumindo… — Leslie inclina a cabeça para o lado, um pouco assustada, mas ela é muito descolada pra demonstrar.
— Que bizarro… — Vic toca mais de leve, interessada no que está vendo.
— Que brincadeira é essa? — Hannah me empurra, irritada.
— Não é brincadeira nenhuma! — Estapeio suas mãos sobre mim, me afastando completamente de minhas amigas. — O que está rolando?
— Bruxaria? — Leslie ri do próprio palpite, meio descrente da coisa toda.
— Isso é ridículo! — Hannah comenta, ainda me olhando com desconfiança.
— A não sabe nada do passado dela. E se ela for descendente de bruxas? — Vic se anima, achando a situação empolgante.
— Como é possível descender de alguém que morreu há séculos? — Leslie levanta a possibilidade, ainda risonha, ainda cética.
— Eu queria que vocês tivessem visto o que eu vi. Sentido o que senti — Encaro minhas mãos, as lembranças de vê-las ensanguentadas e sujas de terra molhada me confundem um pouco. A sensação era tão real.
— , respira fundo. Foi só um sonho — Vic fala de modo condescendente, mas seus olhos são carinhosos quando ela se aproxima. A mão quente se apoia em meu ombro e o carinho se estende até minha mão, onde ela entrelaça nossos dedos em cumplicidade.
O toque produz uma carga elétrica que causa pequenos choques em minha mão. Ao levantar meus olhos e buscar os de minha amiga, ela encara o chão, com uma expressão desconectada do momento.
— Vic? — Chamo devagar, percebendo que ela não solta minha mão, pelo contrário, a segura com muita força.
— Vocês estão brincando, não é? — Hannah pula entre nós, estalando os dedos na frente dos olhos de Vic, tentando chamar sua atenção de todo jeito.
— Vocês estão muito envolvidas nessa coisa de doçuras ou travessuras… — Leslie reclama, toda a pompa bacana e descolada vai se desfazendo aos poucos, deixando seu cenho franzido em preocupação.
— Victoria! — Hannah chama com força, chacoalhando os ombros da amiga.
Lentamente, Vic inclina a cabeça para o lado e seus olhos opacos se arregalam enquanto ela cai no chão.
— QUE PORRA É ESSA? — Leslie grita.
— O que você fez? — Hannah me olha com medo e eu não sei o que responder.
— Vocês ouviram isso? — O estalo que o pescoço de Vic produziu ainda ecoa em meus ouvidos. Tão grotesco e assustador. Eu ainda segurava a mão dela quando sua temperatura mudou completamente. Ao toque, Vic estava gelada como um cadáver.
Com um suspiro desesperado por ar, um grito esganiçado e agudo lutando para escapar por entre seus dentes, Vic acorda. E não é como se ela estivesse feliz por ter voltado.
— Caralho, puta que pariu! Caralho! Que porra foi essa? — Vic passa as mãos pelo próprio pescoço, se certificando de que ainda está inteiro e no lugar.
— O que você viu? — Me ajoelho diante dela, amedrontada demais por descobrir que, talvez, não tenha sido só um sonho.
— Eu vi tudo o que eles fizeram — diz chorosa, os olhos dela agora se parecem com uma constelação completa. — O que nós fizemos… — Ela encara as próprias mãos, como eu fiz há pouco. — Nós matamos aqueles homens?
— Espera. O quê? Quem vocês mataram? — Leslie se aproxima, fechando o círculo.
— Eu não matei ninguém! — Hannah se defende rapidamente.
— Você empalou dois homens com um ancinho — Vic explica, fazendo Leslie rir e Hannah cobrir a boca com a mão, completamente escandalizada.
— O que é um ancinho? — Les pergunta baixo, me fazendo dar de ombros.
— EU NÃO SEI, TÁ LEGAL? EU ESTOU ASSUSTADA E MEU PESCOÇO DÓI! — Vic grita de novo, abraçando as próprias pernas em um nervosismo que nunca vi antes.
— Ei, . Deixa eu segurar a sua mão também? — Leslie não tem um pingo de seriedade em seu corpo, o desespero de Vic e minha expressão profundamente perdida não parecem incomodá-la.
— Eu não sei o que fiz… — Escondo as palmas com a camiseta. Não sei se devo compartilhar tanta dor e sofrimento com minhas amigas, se soubesse que ela ficaria aterrorizada desse jeito, não teria deixado Vic se aproximar tanto.
— Ah, pelo amor de Deus! — Victoria se irrita, segura firme nas mãos de Leslie e Hannah, uma de cada lado. Elas me encaram, as mãos estendidas para mim e os olhos cheios de curiosidade, empolgação.
— Vocês não estão com medo? Eu estou tão apavorada. Eu não quero dormir nunca mais! — Elas me olham, ignorando meu receio.
— Lembra quando eu tive aquela candidíase duradoura e você comprou um segundo kit de pomada pra mim, porque eu fiquei com vergonha do farmacêutico? — Vic lembra, absolutamente séria sobre o assunto. — Eu te disse que te ajudaria com qualquer coisa. Isso conclui fantasmas, demônios, bruxas, lobisomens, zumbis… Qualquer coisa! Se você está com problemas, deixa a gente te ajudar — Ela insiste, cutucando as meninas para que elas estiquem mais suas mãos.
— Foi mesmo um avanço em nossa amizade — Comento ao relembrar que nem sabia o que estava comprando, pedi a pomada pelo nome e congelei no lugar quando ele perguntou “vaginal?”.
— Anda, … Eu tô curiosa! — Les se empolga, mexendo o corpo no lugar e se sentando com as plantas dos pés se tocando.
— Estamos juntas. Vamos resolver isso — Hannah assegura, me dando um sorriso pequeno e cheio de medo.
Nós damos as mãos, em um coincidente círculo. Sentimos os choques.
Apagamos em seguida.
— ! — Ouço meu nome ecoar por entre as árvores. Um grito impaciente é filtrado pela natureza, até soar como um sussurro alarmado em meus ouvidos.
Desvio meus olhos dos galhos grossos da árvore que me acolhe do sol forte do meio dia tão lentamente, é quase como se estivesse hipnotizada pelo contraste magnífico entre o verde delas e o azul do céu sem nuvens. Me distraí por tanto tempo que não raparei que a hora se esvaía por entre meus dedos como terra seca. — Anda, você vai nos fazer chegar atrasadas! — Victoria ajeita as rédeas do cavalo, fazendo o pobre animal relinchar incomodado.
Com um longo suspiro, ergo meu corpo do chão. Ajeito as saias do vestido e limpo a poeira delas, descendo o pequeno monte e entrando novamente em nossa cabana.
O lugar tem cheiro de flores, ervas e todo tipo de temperos. As prateleiras cobertas de uma poeira fina, abriga loções, unguentos e elixires que produzimos com qualidade e trocamos por outros produtos e ferramentas na feira dos comerciantes.
Nossas fragrâncias são conhecidas como inesquecíveis e apaixonantes, além de nossos remédios que são eficazes e, mesmo em segredo, ajudou muita gente nesta pequena e preconceituosa província.
Pego alguns frascos, na esperança de trocá-los por algumas moedas de ouro. Olho em volta e a saudade que sinto de Faith é refletida em cada objeto espalhado pela cabana.
Foi ela quem me incentivou a ir adiante e transformar minhas ideias criativas em algo palpável, até útil.
Minhas construções nos ajudam com a extração de óleos essenciais de plantas, pulverização de caules e raízes. Além de facilitarem todo o serviço, eu adoro os sons que o maquinário faz e os cheiros que ficam em nossa cabana por causa dele.
Sinto que poderia passar o resto de meus dias buscando na natureza por combinações que ajudem outras pessoas a se sentirem bem. Sonho com o dia em que nossos negócios serão legítimos como a venda de insumos básicos para sobrevivência.
Toda mercadoria que oferecemos tem muita qualidade e, devo dizer que temos até certa fama.
Apesar de eficazes, não é como se nossos parceiros de negócios tivessem por nós o mesmo respeito que mostram aos nossos produtos.
Estamos indo fazer negócios agora mesmo.
Meu desânimo vem do cansaço das ofensas que estou prestes a receber, dos olhares tortos e dos cochichos cheios de maldade.
— Ânimo, sinto que hoje será um bom dia! — Hannah abre espaço na carroça e eu me sento ao seu lado, no fundo, junto com a mercadoria.
Enquanto nos afastamos, meus olhos se direcionam para a árvore grossa e mais antiga que qualquer outra na floresta.
Desde que Faith foi morta, fico pensando em como será quando chegar a minha hora de encarar a morte nos olhos. Um pensamento insistente e corriqueiro me toma de assalto, me fazendo fantasiar em passar a eternidade descansando sob a sombra daquela árvore.
A calmaria daquele lugar me traria a paz que não tive em vida, eu faria parte de sua melodia quando o vento passasse por entre suas brechas.
Seria a mais bela das canções.
Esticamos um tecido bonito no chão enlameado em um espaço bem pequeno na feira. Sem chamar muita atenção, deixamos os produtos dispostos para que todos vejam com clareza do que cada um se trata. Cosméticos de um lado, remédios de outro.
Um casal tímido se aproxima olhando por cima dos ombros. É Hannah quem os aborda, com um sorriso amigável e o ar polido ao falar.
O homem reclama de dores nas costas, Hannah imediatamente lhe mostra as opções variadas de recursos naturais aos quais ele pode recorrer.
Ela pega uma das pomadas de cânfora, um terpeno extraído de uma árvore na Ásia, mas que aprendi a cultivar graças à Faith, logo após a mulher me trazer para este lugar quando eu ainda era pequena, me apresentando à irmandade de curandeiras da província de Massachusetts. Hannah ensina à mulher uma massagem concentrada, usando a pomada.
É engraçado ver o homem ruborizar com o toque, vejo Leslie e Victoria fazerem comentários maliciosos e não entendo como elas podem sequer pensar em algo assim. Não quando todos que nos cercam nos olham com tanto desdém.
Após a massagem com amostra gratuita do produto, o homem volta a olhar por cima dos ombros, e balança a cabeça dizendo que não.
— Nesse caso, talvez você, minha bela freguesa, queira um produto revolucionário — Hannah usa sua voz de mistério, se aproximando dos cosméticos. — Esta maravilha extraída de uma flor encontrada nos cantos mais obscuros da floresta, promete lábios de cor intensa e hidratação por horas. Também pode ser usado como um recurso quando a fonte de rubor está seca — Hannah pisca um dos olhos, fazendo a garota sorrir sem jeito e olhar de canto de olho para seu acompanhante neste dia bonito de feira.
— Temos que ir — diz ele, a pegando pelo braço e puxando a moça com certa força. Hannah joga o cosmético na direção dela, que o pega ainda no ar. Seu sorriso agradecido se fecha rapidamente, quando ela se vira e tenta acompanhar o homem apressado.
— Ei! — Reclamo, vendo que eles não pagaram por nada daquilo.
— Vocês viram os olhos dela? Ela queria tanto… — Hannah junta as mãos sobre o peito, suspirando alegremente.
— Acho que você deveria deixar a parte obscura da floresta em segredo das próximas vezes. Sabe que essa gente se assusta com o que não conhecem — digo baixo, aconselhando minha irmã a ser menos honesta em suas vendas futuras.
— Se eles soubessem que essa flor é banhada pela água da mais bela cachoeira, não teriam medo de andar pela floresta até lá — complementa, dando de ombros.
— Eca! — Leslie rola os olhos. — Já pensou no cheiro de urina e bebida destilada que ficariam impregnados no lugar? É bom que eles fiquem bem longe, eu tomo banho pelada ali — aponta com sua imensa sabedoria.
Reforçando o ponto de Leslie, um homem completamente bêbado passa por cima do tecido, quebrando e espalhando alguns de nossos produtos mais caros.
— Cuidado, meu senhor! — Corro para tentar salvar alguns dos produtos e ele cospe em minhas mãos. Enojada, levanto os olhos para o homem, que emula o mesmo desdém de todos à nossa volta. Mas tem algo a mais fervilhando em seus olhos, uma coragem líquida e inconveniente que é disparada rápido demais.
— Calada, bruxa suja! — Limpo as mãos nas laterais do vestido e me levanto com um pedaço de vidro de uma das garrafas que quebraram entre os dedos.
— O que foi que você disse? — De canto de olho, vejo Victoria e Leslie se levantarem e começarem a recolher as nossas coisas. Hannah tenta conversar, convencer o bêbado de que eu só estou chateada pela mercadoria estragada.
— Vocês, bruxas, estão sujando a nossa província familiar! Vão embora, bruxas imundas! — Ele grita em plenos pulmões. Minha vontade é de cortar seu pescoço e calá-lo desta forma, eu chego a fantasiar com seu corpo caído no chão, esvaziando. Mas respiro fundo, sentindo o ar queimar todo o caminho por onde passa.
Tenho medo desse sentimento, ele me acompanha em silêncio e temo o que fará quando resolver se pronunciar.
Solto o pedaço de vidro no chão e ajudo minhas irmãs a terminar de abastecer nossa carroça. Estamos indo para casa. Com ainda menos do que saímos.
— Vocês estão bem? — Um comerciante itinerante desce de seu cavalo, correndo em direção a Hannah. Ela prende a respiração, eu posso ver que sua fonte de rubor se encheu novamente.
Eles cruzaram olhares pela estrada uma única vez e, desde então, o homem alto e forte povoa os sonhos dela.
— Sim, estamos de saída — Ela chega a se curvar, indecisa sobre como prosseguir. Ele sorri, revelando na mão escondida atrás do corpo uma rosa ainda por desabrochar.
— Isso é uma boa coisa. Significa que ela ainda tem uma chance — diz galante, colocando a flor entre os dedos de Hannah. Ela a cheira e o encara com os olhos azulados cheios de amor.
— Eu contarei se ela sobreviver — Ele assente devagar.
— Vou esperar pelas boas notícias… — Ele se afasta ainda sorrindo e ela gira nos calcanhares prestes a pular de alegria.
— Ainda não! — Victoria alerta, chamando a garota para andar graciosamente até nós. E ela o faz. Observamos o comerciante subir de volta no cavalo, carregando uma grande e pomposa carroça consigo. — Agora vire-se… — Victoria toca sua cintura e Hannah faz exatamente o que ela diz. — Acene devagar.
Ele suspira e mexe em seu chapéu elegante bem discretamente.
Quando ele vira a esquina, Hannah solta um grito animado e nós rimos de sua paixão imediata.
Mais tarde, energizada pela possibilidade de vê-lo de novo, Hannah nos convence a ir até uma taverna nos limites da província.
Se você está só de passagem pelos arredores, provavelmente vai querer pernoitar por lá, regado à boa bebida e o famoso cozido de veado.
Nos arrumamos com nossos melhores vestidos, usamos as melhores fragrâncias para perfumar os colos fartos e apertados pelo espartilho.
Estamos prontas.
O som de um violino malicioso e divertido pode ser ouvido antes mesmo de entrarmos e quando entramos, parece que uma película para outro mundo se rompe. Somos muito bem recebidas, pelas razões erradas, é claro. Os homens que bebem aqui não estão vendo bruxas, mas mulheres.
Com os olhos certeiros, Hannah encontra seu comerciante e sem nenhuma dúvida, vai até ele para conversarem sobre negócios.
Minhas outras irmãs logo estão entretidas também, Leslie dança com as saias levantadas, agitando uma pequena plateia, que, imediatamente, faz uma fileira de canecas de cerveja para ela, na tentativa de deixá-la completamente embriagada. Eles só não sabem que Leslie tem a resistência alcoólica de um carpinteiro solitário. Victoria se senta no balcão do bar, conversando diretamente com o dono do lugar, que parece gostar de seus truques com as cartas de baralho, tanto quanto gosta que ela se incline ao falar com ele.
Os olhares sobre mim me fazem sentir desconfortável, como se estivesse nua e exposta para aqueles olhares nada discretos. Dou meia volta e decido esperar do lado de fora.
Nada como a floresta e a lua para equilibrar uma mente tão perturbada.
Caminho com destreza, pareço conhecer esta terra mesmo que não tenha passado por aqui antes. Mas todo o meu redor parece me reconhecer e me acolher imediatamente.
Encontro uma clareira e me sento no chão, absorvendo a energia da noite e me sentindo bela, amada, desejada e segura.
Ao longe, escuto passos quebrando galhos e assim como a floresta, me incomodo com o intruso interrompendo o despir de minha alma.
Vou ao seu encontro.
Não sei o quero encontrar, mas quero muito. E quando o vejo, não controlo meus impulsos.
Para minha sorte, ele também não.
Não sei seu nome, não sei de onde ele vem, não sei nem se é real. Mas me entrego sob a luz do luar e sou possuída pela primeira vez com minha melhor amiga e amante de testemunha.
Não conheço sua voz, ou o som do seu riso, mas sei que seu gemido arrepia meus poros e que suas mãos são fortes e tão ágeis que me fazem arfar e me contorcer embaixo dele, sentindo coisas que não sabia que poderia sentir.
Não vi a cor de seus olhos, mas sei que eles brilham e incendeiam minha pele por onde passam.
— Eu vi sua silhueta desenhada nas estrelas. Segui o rastro do teu cheiro, até finalmente te encontrar — diz a voz grave, bem perto de minha orelha mordiscando o lóbulo.
— Estive esperando por você — digo sincera, desorientada pelo desejo e desperta pela verdade.
Somos feitos um para o outro.
Gemo mais alto, afundando meus dedos na terra, aspirando seu cheiro, delirando em pura luxúria.
Eu não sabia, nem poderia imaginar. Mas se soubesse, talvez teria corrido o risco mesmo assim.
Nada como a presa se apaixonando por seu caçador.
Acordo com a boca seca, o coração estremecido, batendo forte dentro do peito.
Um xingamento confuso se prende em minha garganta, apesar do medo e do incômodo latente por estar emprestando minha mente sem concordar exatamente com esta invasão, sinto outro tipo de incômodo esquentar minhas bochechas.
Estou molhada.
Uma excitação estranha me faz suar frio.
A culpa é minha.
— Ai meu Deus! — Hannah acorda antes das outras, tenta se afastar dos corpos desmaiados das amigas e me encara com olhos arregalados. — O que foi isso? Quem era aquele cara? Por que eu sinto que traí o Brian? — Ela dispara seus questionamentos e eu ainda estou lidando com o fato de minhas coxas estarem arrepiadas e meus mamilos entumescidos a ponto de doerem.
— Eu odeio minha mente agora, pensar em qualquer outra coisa diferente disso não é seguro — Hannah me lança um olhar desconfiado e começa a tentar acordar as meninas.
— Jesus Cristo! — Leslie estapeia o ar em volta de si, gritando desesperada.
— O que foi? Você viu algo ruim? — Vou até ela, preocupada.
— Sim! — Les me lança um olhar desesperado. — Eu estava prestes a pagar um boquete! Meu Deus, que pesadelo horrível! — Les cobre o rosto, arrepiada em agonia. Eu escondo um riso com as duas mãos e olho diretamente para Hannah, que ainda está indecisa sobre rir ou se preocupar com sua suposta traição.
— Se aconteceu há séculos atrás, não conta, né? Tipo, literalmente, séculos? — Ela ajuda Vic a se sentar, fazendo a garota olhá-la como se tivesse bebido uma fileira de oito shots de tequila e balançado a cabeça ao som de heavy metal. De novo.
— Chupar pau é um arrependimento que atravessa vidas, aparentemente. Traição também deve ser! — Les abraça as pernas, balançando o corpo para frente e para trás.
— Defina “traição”… — Hannah busca pelas minúcias de sua visão para justificar sua realidade.
— , sua safada! A culpa é sua! — Vic se irrita, ameaçando levantar, mas se sente tão mal que, para minha sorte, tudo o que ela consegue fazer é se sentar no sofá e segurar a própria cabeça com as duas mãos. — Safada, pegou o caçador e colocou a gente em perigo!
— Eu não fiz nada! Foi há séculos atrás! Espera… O que você viu? — Me defendo, vendo Vic bufar irritada.
— Exatamente! — Hannah reitera, mas sei quais são suas motivações aqui. — Coisas feitas séculos atrás não contam!
— Então… O que isso significa? — Leslie pergunta, ela coça os olhos e faz uma careta permanente de puro nojo.
— Nós transamos e fomos mortas por isso? — Hannah abraça as pernas também, nos olhando com uma expressão tristonha.
— Não, a transou e nós fomos mortas por isso — Victoria aponta pra mim.
— É sério, o que você viu, exatamente? — Vic rola os olhos, impaciente.
— Você fugindo pra ficar com ele de madrugada. O dono do bar me contou que ele é um caçador de bruxas… Como pôde? — Vic cruza os braços, me fazendo sentir ainda mais culpada.
— Eu não sabia! — Antes de entrar em uma briga sem sentido, respiro fundo e fecho os olhos por alguns segundos. — Não faz sentido apontar dedos agora. Precisamos entender o que está rolando e resolver isso — Hannah concorda, veemente.
— Podemos deixar essa experiência bizarra pra lá? — Ela sugere, recebendo um pouco do tratamento que costuma ser direcionado a mim.
— Então, nós somos reencarnações dessas bruxas e… temos que matar pessoas agora? — Leslie levanta, ainda um pouco zonza, mas conseguindo se equilibrar até a cozinha.
— O quê?! Não! Eu não vou matar mais ninguém — Hannah engatinha até o sofá, remoendo as próprias memórias.
— Ninguém vai matar ou morrer! — Tento encontrar uma terceira alternativa.
Leslie joga garrafas d’água em nossas direções, na vez de Vic, ela não se mexe pra pegar e a garrafa a acerta bem no seio.
— Qual é o seu problema? — Les pergunta, vendo a garota massagear a área atingida.
— Eu não sei, achei que tivesse poderes telecinéticos, sei lá… Estou tão confusa e exausta. Parece que passaram dias em poucos segundos — Ela abre a garrafa dando um gole como se a água pudesse limpar seu interior das visões de uma vida passada muito violenta.
— Que horas são? — Hannah se levanta em um pulo. — NÃO! — Ela corre para abrir as cortinas, que não chegaram a ser tocadas já que acordamos e entramos em um portal para o passado logo pela manhã. O céu alaranjado de fim de tarde no horizonte faz o queixo da mulher se abrir dramaticamente.
Essa aventura durou o dia inteiro.
— Caralho, a festa! — Les bate a mão na testa, mas se arrepende imediatamente.
— Nós temos que cancelar a festa — digo o óbvio e Vic meneia com a cabeça.
— Não dá tempo! — Hannah começa a correr de um lado para o outro, reorganizando o lugar para receber os convidados que chegarão em pouquíssimo tempo. — Nós vamos nos arrumar, dar essa festa e resolver isso amanhã.
— Nós fizemos um pacto de sangue pedindo para que todos os homens traidores, mentirosos e aproveitadores morram sem misericórdia, de forma horrenda e lentamente. Sabe quantos desses vêm hoje? — Leslie aponta, com razão.
— Boa, ! — Hannah me mostra o polegar virado para baixo, me fazendo rolar os olhos.
— Eu não fiz nada! — Me defendo bravamente.
— Mas fica implícito que são todos os homens que cruzarem nossos caminhos, tipo, o Carl? — Vic sorri maldosa.
— E o Brian… — Hannah suspira cheia de temor.
— E o — digo sentindo um vazio enorme no peito. Pensar em algo acontecendo com ele me deixa triste de forma avassaladora.
— Espera, então, isso significa que eu estou livre da maldição? — Leslie parece fazer algum tipo de conta matemática em sua cabeça.
— Eu… Acho que… Sim? — Hannah olha para mim e eu me abstenho de opinar.
— É uma maldição. Podemos quebrar uma maldição, certo? — Vic inclina a cabeça para o lado, com uma expressão descrente.
— Eu vou ligar para minha taróloga — Hannah corre escada acima, rumo ao seu quarto.
— O que vamos fazer? — Vic pergunta diretamente para mim.
— Vamos lá, cultura pop. Ilumine meus caminhos… — Leslie passa a mão por cima de sua coleção de DVD’s e fecha os olhos, fazendo chacota de nossa situação.
— Vidas estão em jogo Les, não temos tempo para maratonar “Supernatural” — Leslie ergue um dedo em minha direção, me pedindo para esperar.
— É isso! — Ela se levanta, segurando consigo a capa de alguma de suas temporadas preferidas. — Precisamos queimar algo delas. Nosso. Delas. Eu nem sei mais — Leslie sugere, fazendo Vic rolar tanto os olhos que tenho medo de que eles se desloquem e cause mais horror a este Halloween.
— Eu não vou queimar nada meu… — Victoria é a primeira a se recusar a fazer o tal ritual.
— Leslie, podemos, por favor, levar isso a sério? — Peço chateada e minha amiga crispa os lábios, devolvendo o DVD para seu lugar de origem.
— E então? — Vic pergunta, assim que Hannah volta para a sala.
— Ela disse algumas coisas em uma língua estranha e desligou. Acho que temos que resolver isso sozinhas — Hannah suspira, derrotada. — Eu vou começar a me arrumar para a festa e vou torcer para que nada ruim aconteça. Vocês podem se juntar a mim e ignorar essa coisa toda — Ela divide seu plano e gira nos calcanhares, sumindo corredor à dentro.
— Acho que ela tem razão. Não temos intenção de matar ninguém, então… Acho que vamos ficar bem — Leslie vê minha ausência de resposta como incentivo, parece ponderar por um instante, mas decide subir as escadas para começar a se arrumar.
— Eu preciso resolver uma coisinha… — Vic diz de um jeito muito peculiar, deixando uma pulga atrás de minha orelha.
Me sinto sufocada e mesmo que falte pouco tempo para a festa começar, eu saio de casa em busca de algum sossego.
Preciso de ar fresco, de vento bagunçando meus cabelos e o som dos grilos ao longe para me concentrar na pesquisa estranha que faço e tentar encontrar qualquer coisa que me dê alguma pista sobre o que está acontecendo e, principalmente, como parar isso.
— Estou começando a achar que me convidou para uma festa onde você não vai estar — Levanto os olhos da tela do computador e vejo as botas, a calça acinzentada e propositalmente gasta em alguns lugares, um coldre, o colete de couro marrom e a camisa dobrada até os cotovelos. Cruzando seu peito, uma tira de couro prende sua aljava nas costas e eu consigo ver as penas nas pontas de suas flechas.
— … Você é um… Caçador — Engulo em seco, emocionada em vários níveis com esta não fortuita coincidência. — Legal…
— E você é uma… Pesquisadora de bruxas? — Ele inclina a cabeça, fecho a tela do computador tarde demais e ele vê imagens bizarras de representações dos enforcamentos de 1692.
— Não… Eu serei Freddy Krueger, se tiver a chance — Suspiro constrangida e ele sorri mantendo o lábio inferior entre os dentes. Eu odiaria que algo acontecesse àqueles lábios antes que eu tivesse a chance de experimentá-los.
— Você está bem? — pergunta com aquele ar desconfiado e eu rio nervosa.
— Parece que estou tendo pensamentos e lembranças de outra pessoa — Eu rio mais forte, o manipulando a fazer o mesmo.
— Acho que sei o que é isso… — O impulso de negar é mais forte que eu e ele inclina a cabeça para o lado, a desconfiança só aumenta, mas não posso dizer a verdade.
— Só estou estressada com o futuro, sabe como é… Terminamos a faculdade, e agora? — Enceno confusão e me sinto tão ridícula que nem percebo quando se senta ao meu lado.
— Ainda não sabe o que vai fazer? — Ele esbarra seu ombro no meu, bem de leve. Imagino que esse tipo de interação seja desconfortável pra ele também.
— Alguma coisa a ver com biologia? — Ele ri mais forte, totalmente sem barreiras. Eu rio também, gostando do som de nossas risadas juntas. — Eu gosto de plantas, talvez faça alguma coisa com elas… — Dou de ombros. É tão estranho pensar no futuro quando meu extremo passado resolveu me assombrar. — E você?
— Eu quero publicar algumas coisas que tenho trabalhado em paralelo. Fazer quadrinhos é divertido, mas, acho que tenho uma história para contar.
— Isso é legal. Qual é a história? — suspira, parece bastante desconfortável agora. — Tudo bem se não quiser falar. Eu espero a segunda edição, se te fizer sentir melhor — Brinco, devolvendo o esbarrão em seu ombro, mas como ele é mais forte que eu, eu só me encosto nele por alguns segundos. Encarando seus olhos bem de perto.
solta um pigarro e eu me afasto, tamborilando os dedos sobre o computador fechado em meu colo.
— Posso te mostrar uma coisa? — Ele pede incerto, parece ainda se decidir sobre isso.
— Sim — digo rápido, sem dar chance para que ele mude de ideia.
Guardo o computador na bolsa e vejo que ele estende sua mão para me ajudar a levantar. É constrangedor recusar, mas eu o faço, não posso correr o risco de dar a ele um vislumbre bizarro sobre um passado violento em praça pública.
— Eu consigo, obrigada — recolhe sua mão e a guarda no bolso da calça.
— Então, vamos? — Assinto devagar e ele sai andando na frente, um pouco chateado.
Estamos em frente à casa de e eu escolho esperar do lado de fora, todo cuidado ainda é pouco.
Quando ele volta, nos sentamos nos degraus da entrada de sua casa. A decoração sombria que imita um cemitério me deixa ligeiramente desconfortável, mas tento ignorar conforme vejo ter todo tipo de dificuldade para organizar dezenas de folhas de papel em suas mãos.
— Então, eu venho tendo esses sonhos malucos e eu os desenho, quando acordo — me mostra uma porção de imagens aleatórias, de objetos aleatórios que não me dizem nada. Até ver um desenho da cabana em seus perfeitos detalhes. Os cogumelos venenosos se entranhando na madeira da porta antiga, o musgo camuflando o teto e a árvore ao fundo.
— Como você conhece esse lugar? — Pergunto absorvendo cada detalhe do desenho.
— Aí é que fica complicado… — coça a nuca, praticamente mastigando o lábio inferior. — Você me mostrou — puxa do bolso um desenho amassado e de aparência bem antiga. Não tão antiga quanto os últimos fatos que tenho aprendido sobre minha vida passada, mas antigo.
Ele me entrega o desenho ainda um pouco receoso, seus olhos se recusam a me encontrar e eu abro o desenho, ficando constrangida, lisonjeada, surpresa e meio paralisada.
Ao ser desdobrado, o papel está repleto de pequenos desenhos de meu rosto em vários ângulos. Detalhes de meu corpo em perspectivas que só alguém que já chegou perto o suficiente e por muito tempo poderia conhecer.
No desenho maior, é como o pedaço de uma fotografia, estou ajeitando meu vestido com um sorriso satisfeito e apaixonado. Ao fundo, as madeiras de um celeiro e pequenos fiapos de feno adornam o ambiente. Perto de minha coxa, uma vela crepita forte, enquanto levanto a alça do vestido longo.
— Quero que saiba que não penso em você desse jeito — diz o rapaz completamente ruborizado. — Não só desse jeito… Acontece que eu não queria ver nada disso, mas… Enfim, me desculpe. Eu não sou nenhum pervertido, eu só vi essas imagens enquanto crescia e desenhei — Seus olhos são sinceros e ele demonstra estar tão boquiaberto quanto eu. Então, eu dobro novamente o desenho e estendo pra ele, que o nega veemente.
— Dizer que não é pervertido é exatamente o que um pervertido diria — Ergo uma das sobrancelhas, o encarando com uma seriedade mista.
— Estou falando sério. Eu respeito você e o seu corpo, igualmente — me faz prender uma risada.
— São duas coisas diferentes? — Pergunto confusa.
— Não! Não foi isso o que eu quis dizer...
— Bem, esse desenho está meio gasto… — Não resisto em provocar, vendo que ele começa a perder um pouco as estribeiras.
— Eu não desenhei tudo de uma vez… Ah, merda! — Quando eu finalmente rio, um riso baixinho e maldoso, me olha com os olhos cerrados.
— Como sabia que eu estava sendo literal? — Com um suspiro, a seriedade se torna absoluta.
— Aquilo na formatura… Não foi normal. Eu só supus que, já que eu estava vendo essas coisas, talvez você estivesse também — Ele dá de ombros e eu fico entre dividir tudo com ele e pedir sua ajuda, ou contar a parte assustadora e pedir que ele se afaste para o mais longe que puder.
— Você sabe o que acontece? — Pergunto sentindo uma pontada no peito.
— Não. Você sabe? — Os olhos cheios de esperança de chegam a se abrir um pouco mais, prestes a me engolir.
— Não — Minto tão rapidamente que não percebo a tempo de consertar. — Estou com medo de descobrir.
— Eu também. Eles… Eles parecem se gostar bastante — estala a língua na boca, se arrependendo do que disse.
— Então… Esses sonhos… O que mais você vê neles?
conta que seus sonhos são embaralhados e que ele nunca consegue encontrar a ordem dos fatos, por isso desenha tudo o que se lembra deles, tentando buscar alguma cronologia.
Ele fala sobre um pequeno exército, de uma missão complexa e de estar sempre afiando suas flechas. Quando sonha com isso, diz acordar tenso, preocupado e reflexivo. Quando sonha comigo, quer dizer, com a , ele se sente alegre por um tempo, até uma culpa imensa o tomar.
— Conforme nós fomos crescendo e… Bem, você foi ficando cada vez mais parecida com meus desenhos, eu achei que essa culpa toda fosse por causa disso. Eu sentia vergonha de pensar essas coisas e sentir… Enfim, a culpa era grande demais e eu não tinha a consciência necessária para sentir tanta culpa. Foi quando eu cogitei a possibilidade de estar vendo memórias de outra pessoa — explica paciente.
— Pelas datas dos desenhos, eu era criança e não tinha todo esse... corpo. Por que achou que era eu antes de… Você sabe, eu ficar… Assim? — Balanço o desenho entre os meus dedos, distraída com eles. desce um pouco seus olhos, como uma checagem muito rápida em mim.
— Eu não sabia, mas… É que… Ninguém pintava o cabelo antes, você era a única garota ruiva que eu conhecia — se perde em seu raciocínio e eu o encaro com uma sobrancelha erguida.
— É por isso que nunca falou comigo? — Aproveito para esclarecer dúvidas antigas, já que estamos falando de todos os nossos passados.
— Não queria que me achasse maluco por eu te conhecer tão… bem — Ele esfrega as palmas das mãos nas pernas, me olhando um pouco apreensivo.
— Você não conhece — Estranho minha defensiva, mas permaneço nela. — Quer dizer, talvez você a conheça. Mas não temos nada em comum. Eu não sou inventiva, destemida ou vingativa — Rio sem jeito, o fazendo erguer uma sobrancelha. A desconfiança voltou.
— Você tem razão, me desculpe — O silêncio que se estabelece é mais desconfortável do que a apreensão por dizer a coisa errada.
— Desculpe, eu só estou cansada. Não foi uma noite fácil — digo verdadeiramente exausta e perdida.
— Sinto muito. Mas, vamos lá, alguns desses sonhos não são tão ruins… Os passeios noturnos pela floresta parecem divertidos — Ele sugere, me fazendo sentir as bochechas corarem.
Balanço a cabeça, mas acabo rindo de como ele diz esse tipo de coisa sem perceber como mexe comigo.
— É… O último não foi tão horripilante assim — Um silêncio invade a conversa de novo, me olha curioso, quase sorrindo de um jeito muito diferente dos quais estou tentando me acostumar.
Um jeito que bagunça minhas prioridades.
— Com o que você sonhou? — Ele umedece os lábios com a ponta de sua língua, a expectativa é grande e eu sinto vontade de contar a ele.
— Nós… não podemos — ergue uma sobrancelha, contrariado. — Existe uma maldição e você corre perigo — Ele gargalha rouco e eu fico ofendida.
— Existem jeitos menos cruéis de se rejeitar um pobre caçador — soa magoado, mas gosto de como ele traz humor para essa conversa difícil.
— Não quando o caçador enforca a bruxa, depois de trair sua confiança e usar informações de suas irmãs para armar uma emboscada — absorve a mágoa em cada palavra que digo.
— Você disse que não sabia como terminava… — Ele parece um pouco surpreso.
— Você também — O rapaz desvia o olhar, envergonhado. Até ter uma ideia.
— É por isso! — volta para dentro de casa e volta somente alguns segundos depois. — Vem!
Subo as escadas devagar, a porta do quarto dele está aberta e suas paredes são cobertas de desenhos à lápis. Ele vasculha entre uma pilha, em cima de sua mesa.
— Ele é um caçador, ela uma bruxa — reúne seus desenhos sobre a cama, estico o lençol nas pontas, o ajudando com a superfície. — De alguma forma eles se apaixonam, mas o dever se põe diante do amor — Ele parece animado, dispondo os desenhos como um quebra-cabeça. — Chega a hora da verdade, ele sabe que ela é astuta e vai fugir — De repente, ver o outro lado da história me faz começar a entender o tal quebra-cabeça. — Ele reúne seus soldados, cria a oportunidade e então, eles lutam. Ela deixa uma cicatriz nele.
— Eu não vi essa parte… — Me defendo, fazendo-o bufar com desdém e me mostrar a palma da mão com um corte avermelhado nela. Como uma cicatriz inflamada.
— Apareceu hoje cedo — Ele dá de ombros. — Eu não consigo entender. Em que momento ela tem tempo de lançar uma maldição? — questiona, olhando para mim.
— Na cela da carroça. Ela sente seu coração partido e seu instinto de vingança a faz cortar a mão com as unhas, a maldição é um pacto de sangue. Os soldados dele eram… Amantes de suas irmãs — se senta no colchão, arrasado.
— Então, após a morte dela, ele vaga pela floresta remoendo sua culpa. Todas essas lembranças aleatórias e... pornográficas, são parte de seu sofrimento — Me interesso pela continuação deste ponto de vista.
— O que mais acontece? — Pergunto me sentando ao seu lado.
— Não sei dizer direito — Ele coça os olhos, retirando a aljava e a deixando no chão do quarto. — Acho que ele está procurando por algo na floresta — se levanta de novo, buscando por um caderno em sua mochila. — Até encontrar isso.
Ele me mostra o desenho de uma lápide improvisada: uma cruz de madeira, tomada por heras, que se entranham com o ramo de flores arroxeadas, com pontas protuberantes.
— A cachoeira…
— Como sabe disso? Quando tive esse sonho, passei semanas ouvindo o som de água corrente — ri, mas minha expressão assustada o faz se calar.
— Há quanto tempo você tem esses sonhos? — Pergunto receosa, sua resposta imediata é tão tranquila diante de fatos tão catastróficos.
— Acho que eu tinha uns treze anos quando começou — Dá de ombros, se lembrando. — Eu costumava me assustar com esses sonhos a ponto de não querer sair de casa, mas esta manhã, quando a cicatriz apareceu, eu senti como se estivesse próximo de desvendar esse quebra-cabeça. E agora que ele está completo, me sinto vazio — se distrai por um momento e eu sinto sua falta de perspectiva. Agora compreendo melhor o período em que estudou em casa, eu também não conseguiria seguir a vida normalmente se tivesse tido acesso a essas memórias enquanto crescia.
Eu o admiro por ter conseguido superar o medo. Ele é inspirador.
— Você é estranho, . Eu realmente não quero que você morra — Escorrego para fora da cama, evitando seus olhos decepcionados.
— Está tão na cara assim que estou afim de você? — Ele me pega de surpresa, desarmada.
— Estou somente levando a maldição ao pé da letra. Todo homem mentiroso, traidor… aproveitador — Cruzo os braços na frente no corpo, ainda na defensiva.
— Agora estou bastante ofendido — diz entre um riso sarcástico, ele ainda me dá uma chance de reformular, mas é melhor ele se magoar agora do que ser morto depois.
— Espero que possa me agradecer, eventualmente — Mordo o lábio inferior, dividida. rola os olhos e amassa o desenho que segura entre os dedos.
Pego minha mochila, pretendo sair silenciosamente, mas, esqueço o compilado de desenhos. Eles são bem gráficos e eu não me sinto à vontade com o quanto são verossímeis.
— Pode levar tudo isso com você? — Ele pede, meio mal-humorado, como sempre.
— Mas…
— Só leva, — Ele me interrompe, os juntando com certo desprezo. — Faz o que quiser com eles.
— Sinto muito, — digo sincera, me compadecendo de sua decepção. Eu sei que não tem só a ver comigo. Ele passou mais da metade da vida tentando descobrir o final de uma história maluca que se repete todas as noites em sua mente.
— É, tanto faz…
Saio de seu quarto com um nó na garganta, os desenhos amassados na mão e uma vontade imensa de resolver essa bagunça.
As crianças já ocupam as calçadas com seus sacos meio cheios de doces e olhos atentos a qualquer movimento nas casas de jardins bem decorados para a ocasião.
— Doces ou travessuras? — Ouço dizerem em coro, recebendo uma reação exagerada de susto da senhora que mora logo na esquina.
Por ter sido adotada com idade um pouco avançada, nunca fui muito de pedir doces à estranhos e minhas preocupações transcendiam encontrar a melhor fantasia para impressionar. Eu estive ocupada, tentando ser a criança perfeita para ser escolhida. Por anos.
Espero as crianças saírem e entro no jardim, sendo “surpreendida” por um fantasma que cai do teto. Uma armadilha barata e supostamente divertida.
— Sempre mais animada do que as próprias crianças — digo contente, recebendo uma gargalhada gostosa.
— Todos os dias deveriam ser Halloween! — Concordo em discordar em silêncio, a acompanhando para dentro da casa tão conhecida.
Algumas coisas mudaram de lugar, como a posição dos móveis. Tudo está mais espaçado, para que a cadeira de rodas possa transitar sem problemas, mas ainda tem o mesmo cheiro que não consigo classificar de jeito melhor a não ser por chamar de “cheiro de lar”. É uma mistura de limpeza com algo gostoso sendo assado no forno.
— Como estão as coisas, mãe? — Pergunto enquanto procuro o controle remoto, a TV está alta demais, como de costume.
— Você sabe. Uma passada de cada vez, um dia de cada vez — Ela pisca um dos olhos, um riso esperto faz seus ombros balançarem e ela desliza pela sala com destreza. Seu diagnóstico e a falta de mobilização não tiraram nem uma grama de sua alegria de viver, pelo contrário.
— Podemos conversar sobre minha adoção? — Me sento no sofá, esperando ser interrompida pela campainha a qualquer momento.
— Com certeza. O que quer saber? — Minha mãe enche o bowl com mais doces, eles nunca chegam a ficar abaixo da linha da metade.
— Você tem alguma informação sobre o meu local de nascimento? Se eu tive alguma relação com esta cidade, você sabe, antes de nascer — Sei que o que pergunto é absurdo, por isso entro no assunto com cuidado.
— Que pergunta interessante. Mas sinto muito, querida, não tenho como te responder. Quando nos encontramos, eles não tinham nenhum tipo de informação sobre os seus pais biológicos, ou o lugar onde você nasceu. Mas podemos investigar, se quiser — Ela se anima, indo até o computador parcialmente empoeirado sobre a mesa de jantar.
— Não quero te dar esse trabalho — Abano a mão no ar, tentando impedi-la de começar a cavar um buraco sem fim. — Você é a minha mãe, isso é o que importa de verdade — Ela sorri carinhosa. — Você acredita em destino?
— O que seria de mim sem ele? O destino me trouxe você, me mostrando que a vida pode ser muito mais do que os dias nublados nesta velha Salém — Ela ri da própria sorte, agradecida.
— Parece que, mesmo não sendo daqui, eu pertenço a este lugar — Deixo o pensamento escapar, mas tomo cuidado. Não quero preocupá-la com minhas questões, já basta o susto no dia da formatura.
— E você pertence. Gosto de pensar que o mundo é como uma esteira e todo passo que damos, afunda um pouco mais a marca de nossos ancestrais. Deixando pegadas duradouras, significativas. Mesmo que o caminho desvie, elas estão lá — diz misteriosa.
— O que você sabe sobre reencarnação? — Minha mãe cerra os olhos em minha direção, desconfiada.
— Sei que é a maior sorte que um ser humano pode ter. Uma nova chance, para corrigir erros do passado ou simplesmente respirar e deixar a divindade que é existir fluir — Assinto devagar, absorvendo sua sabedoria.
Tudo dentro de mim clama por desfecho.
Um final digno, por elas.
— Obrigada. Por tudo — Vou até ela, lhe dando um abraço apertado.
— Não esqueça seus doces! — Ela enche meus bolsos com balas e barras de chocolate, me fazendo rir.
— Te amo, mãe. Até logo! — Abro a porta, assustando um grupo de meninas vestidas de irmãs Sanderson, o que é adorável e inapropriado na mesma medida. Esvazio meus bolsos em suas abóboras de plástico e aproximo o indicador na frente dos lábios, para que elas ganhem ainda mais doces de minha mãe.
O movimento na calçada em frente à nossa casa é intenso, os carros se enfileiram dos dois lados da rua e a música é alta o suficiente para ser ouvida da esquina. A festa começou.
Sem nenhuma vontade de deixar esse instinto de justiça para depois, me infiltro entre os convidados que bebem no jardim. Discretamente, escondo minha mochila atrás da lata de lixo e continuo andando para longe da movimentação. Peço um Uber com o celular e começo a pensar que tenho o ímpeto de resolver esta situação, mas não faço ideia de como o farei.
Do outro lado da rua, um grupo de garotos bem mais novos que eu formam uma pequena roda, dividindo o que parece ser um baseado. Tenho uma ideia, mas antes de atravessar a rua, ajeito os cabelos e lembro de todos os truques sedutores que Vic me ensinou.
— Olá, meninos — digo com a voz macia, piscando bem devagar.
— E aí, gatinha — Um deles ergue o queixo, me olhando da cabeça aos pés. Reprimo a vontade de rolar os olhos e forço um sorriso sedutor.
— Será que algum de vocês poderia me dar um isqueiro? — Peço sinuosa, sorrindo bastante. Os botões de minha blusa abertos até o centro do vale entre meus seios ajudam também. Imediatamente, recebo uma sorte de isqueiros para escolher.
— Ah, não… Não posso te dar esse… — Um deles recolhe o seu constrangido. De relance posso ver um par de seios desnudos. Estico a mão e pego o de aparência mais barata.
— Obrigada. Fico te devendo uma — Dou uma piscada e giro em meus calcanhares, torcendo para o garoto não cobrar minha dívida nos próximos minutos.
Escuto seu murmurinho malicioso forçando um sorriso convencido, desejando que o carro chegue voando. Penso que uma vassoura voadora cairia bem também, e logo me distraio com a possibilidade da aerodinâmica.
Os faróis altos do carro sedan branco vão diminuindo aos poucos, revelando o motorista grisalho de expressão fechada. Ele me leva até a estrada sem saída, escura e vazia que cerca a floresta. Antes de sair, agradeço a ele e recebo um olhar cheio de estranheza e julgamento. Posso ler em seus olhos a pergunta: o que diabos essa menina vai aprontar na floresta sozinha?
Bem, eu tenho esperanças de encontrar o túmulo de minha ancestral, exumar seu corpo e atear fogo em seu cadáver. Eu com certeza não digo isso a ele.
— Feliz dia das bruxas! — Aceno sem jeito, batendo a porta do carro em seguida.
Espero que ele dê a volta com o carro e se afaste bastante antes de acender a lanterna de meu celular, adentrar a floresta e desbravá-la, até encontrar qualquer coisa que se pareça com uma lápide.
— A floresta é minha amiga. A floresta é minha amiga — Caminho com cuidado, repetindo as palavras como um mantra para afastar o medo que sinto em estar aqui sozinha.
As sombras das árvores as retorcem, deixando tudo muito confuso. Não está tão escuro ainda, mas a densidade das folhas acima impede que a luz da lua ilumine meus passos.
Ouço minha respiração, os galhos se quebrando embaixo de meus pés, os grilos e corujas começando a dar as caras e fazer seus sons. Tudo é estranhamente familiar, mas ainda fico em alerta.
Mais profundamente na mata, o silêncio é estarrecedor. Vejo alguns pontos de luz esverdeada, bem rápido. Vaga-lumes. Eles se apagam por um tempo, enquanto continuo a andar, sou surpreendida com sua luz por toda a minha volta.
Diante dos fatos recentes, não posso ignorar a sensação de que eles estão tentando me dizer alguma coisa. A lanterna começa a falhar e eu percebo que a bateria de meu celular está se esvaindo rapidamente.
— Droga! — Tento poupar a energia de meu celular e sigo tentando me guiar pela iluminação que entra por pequenas brechas entre as árvores e os vaga-lumes que indicam um caminho no qual tenho uma estranha confiança em seguir.
Não demora até eu me perder, me arrepender de ter saído sozinha e sem avisar a alguém aonde estava indo.
Tento parar e respirar, pensar com alguma lógica e achar uma forma de sair dessa floresta. Mas ao longe, escuto o som inconfundível da cachoeira e como se estivesse sendo guiada pela própria água e seus componentes em níveis moleculares, eu a encontro.
E é o lugar mais incrível em que já estive.
A lua é refletida na água calma perto da margem do pequeno lago que se forma aos pés da cachoeira, que não é tão alta quanto imaginei, mas ainda mais bela e hipnotizante.
Tento superar a beleza do local e começo a procurar o túmulo de… . A ideia de a mulher ser exatamente como eu e ter tido um final tão trágico e desiludido é simplesmente avassaladora.
Dentro de mim, sinto que ela tinha tanto potencial para crescer e expandir seus negócios. Ela mesma criava as engenhocas que fazia o trabalho ficar mais fácil, era uma verdadeira cientista. Uma mulher à frente de seu tempo, que não só se deixou ser levada pela paixão, mas também pela desilusão que a acompanhou até seu último segundo.
Meu pé esquerdo enrosca em algo no chão e eu caio para frente, perdendo o celular no lago.
— Merda! — Xingo baixo, sentindo as palmas das mãos machucadas. Minha bochecha arde também, um corte bem no alto da maçã do rosto.
Está escuro, mas consigo ver nitidamente a flor azul e o cheiro inconfundível de alecrim toma minhas narinas.
Eu a encontrei.
Sinto uma espécie de vibração abaixo de mim, atinge minhas mãos e parece sacudir meu cérebro.
Ele caminha por dias agora, as pernas cansadas seguem sob o comando do cérebro domado pelo único pensamento de encontrá-la mais uma vez.
Em seu peito, as honrarias recebidas anos atrás alfinetam a pele inflamada que cobre todo o seu corpo, espalhando a morte certeira segundo a segundo.
Ao longo dos anos, o caçador assistiu a loucura da maldição domar seus companheiros um a um através da doença. As feridas adquiridas na batalha contra as bruxas nunca se fecharam, mas se alastraram por seus corpos, consumindo sua pele, crescendo de dentro para fora e putrificando sua epiderme irremediável.
As feridas os isolaram da mesma sociedade que os condecoraram com títulos por sua suposta coragem após um verdadeiro massacre. Todos eles morreram, pela falta de cuidados com os ferimentos, ou até mesmo a escolha de um ponto final para a agonia que sentiam.
Escolhas afiadas ou impulsionadas por pólvora.
Mas não o caçador.
Conforme assistiu seu corpo viril adoecer e seus títulos como o homem mais corajoso do país se dissiparem com o tempo, o homem entendeu seu destino. O abraçou.
Todas as batalhas em que a vitória ficou ao seu lado não significavam mais nada. O caçador só conseguia se lembrar da primeira vez em que pôs os olhos sobre ela, do que sentiu quando tocou sua pele macia e quente, de como os cabelos cor de fogo da mulher alimentavam sua alma e como seus lábios o envolviam por horas, com tanto entusiasmo e devoção, que nenhuma moeda de ouro jamais pôde pagar.
o amava profundamente e o caçador havia traído este sentimento puro e sincero.
Ele nunca esqueceu o olhar frio e decepcionado da mulher quando descobriu suas intenções cheias de vilania, o caçador fez questão de gravar em si que mereceria toda miséria e solidão que o acompanharia após a morte da mulher que ele amou e traiu.
A culpa o perseguiu por anos, deixando a dor da morte lenta e agonizante em segundo plano.
Conforme o fim chegava, ele podia sentir, era hora de encará-la mais uma vez.
O caçador seguiu floresta adentro, fazendo o caminho que percorreu naquela noite em que roubou o corpo de e fugiu com ele para enterrá-la em um lugar onde só ele saberia.
Ele se recusou a deixar que ela fosse queimada, como as outras.
Cavou um buraco profundo, a deitou sobre a terra e encarou seu semblante triste uma última vez.
A lua testemunha o toque de suas mãos em suas bochechas geladas uma última vez, antes de cobrir seu corpo com um tecido que usavam em seus encontros secretos e cobri-la com metros de terra.
Daquele dia em diante, ele não tinha mais um coração. E logo quando que ele havia se acostumado a senti-lo bater mais forte por causa dela.
Exausto, em seus últimos suspiros, o caçador encontra seu destino. Guiado pela floresta até seu lugar de descanso.
Um ramo de alecrim cheio de flores roxas de cinco pontas envoltos na estrutura destruída pelo tempo de sua lápide exala o cheiro dela e ele sorri.
O homem cai de joelhos diante do túmulo da bruxa, as lágrimas molham suas bochechas e o arrependimento o visita mais uma vez, lhe dando um vislumbre de como teria sido a sua vida se ele tivesse escutado seu coração apaixonado e fugido com ela, para bem longe de suas obrigações.
Diante de sua maior observadora e juíza de seu julgamento final, marcado anos antes, o caçador encara a lua. Seu coração bate forte, parece se chocar contra sua caixa torácica com força e rebeldia.
Ele sorri mais uma vez, banhado pela luz esbranquiçada da verdade, intimidado pela presença de seus sentimentos adormecidos.
O caçador inspira o aroma de ervas, agradecido pelo fragmento de misericórdia da magia tão presente de sua bruxa amada.
Seu coração bate forte uma última vez antes de parar.
Para sempre.
— Bem… Ele sabia onde estava se metendo, mas nossa… Quanto rancor, ! — Grito para a terra embaixo de mim, ainda zonza e bastante desconfortável com os resquícios da lembrança mórbida em meu corpo. Estou exausta, como se cada viagem dessas através do tempo em minha mente estivesse drenando minhas energias. — Espera… Essas não eram memórias suas, nem do caçador… Então… — Me sento diante do túmulo de e olho em volta, encarando a realidade. A cachoeira paralisante sumiu, o lago até parece que nunca existiu de tão seco e domado por ervas daninhas. Nunca houve o som da cachoeira caindo pesada em meus ouvidos, ou o reflexo soturno da lua na água convidativa do lago.
Nada era real.
A floresta estava falando comigo.
— Meia-noite — Ouço o que parecem ser milhares de vozes sussurrando bem perto de meu ouvido, me fazendo sobressaltar no lugar, aterrorizada.
— Uma de cada vez! — Grito sozinha na floresta, irritada. Me sentindo completamente maluca.
Ser um receptáculo da destruição não é nada fácil.
Determinada a buscar minhas amigas para ajudar e ferramentas para cumprir minha tarefa, demoro um bom tempo, mas consigo sair da floresta com somente alguns arranhões. Alguns mais profundos que outros, mas nada que me impeça de continuar dando um passo de cada vez.
Estar suja, descabelada, suada e meio ensanguentada não é estranho. Não hoje. As pessoas me olham com entusiasmo, recebo até um elogio ou outro pela autenticidade de minha fantasia.
— Jesus Cristo! O que aconteceu com você? — Les derruba seu pirulito no chão, ela segura seu capacete do uniforme de quarterback como um bowl e distribui os doces para as crianças em meu lugar.
Exatamente como imaginei que aconteceria, os adultos embriagados se empurrando na entrada da casa não é nada convidativo para os pequenos, que passam longe da aglomeração da festa.
— Onde estão Vic e Hannah? — Devolvo a pergunta e ela dá de ombros, ainda chocada com minha aparência.
Empurro algumas pessoas, procurando por uma Sininho de um 1,60 de altura.
— Ah, oi… Nossa… Que fantasia é essa? — Hannah me olha da cabeça aos pés.
— Final girl! — Brian aponta a referência, me fazendo suspirar, cansada.
— Espera, isso é sangue de verdade? — Hannah tenta abrir espaço no sofá para que eu possa me sentar.
— Precisamos conversar… Sobre aquilo — Passo os olhos dela para Brian, sugestiva.
— Nós já voltamos. Se divirta! — Ela cantarola, me empurrando escada acima.
— Onde está a Vic? — Pergunto apressada, tentando me limpar um pouco com um lenço de papel.
— Eu não sei. Ela saiu antes da festa começar e ainda não voltou — Hannah me ajuda, tirando alguns galhos e folhas que estão presos em meu cabelo. — Onde você estava?
— Eu fui procurar por ela, Hannah. Eu encontrei o lugar onde a foi enterrada e eu acho que podemos acabar com isso — Ela me olha esperançosa, mas ainda bastante confusa. — Eu caí, lutei contra alguns arbustos, tive outra visão, perdi meu celular em algum tipo de dimensão fantástica… — Conto minhas desventuras nos dedos e ela assente devagar.
— Eu quero te dar uma bronca por ter ido sozinha, mas parece que a natureza já se encarregou de fazer isso — Ela me encara de forma sincera e eu acabo rindo. A última coisa que gostaria de ouvir dela agora é uma bronca sobre ter entrado em seu quarto com os sapatos sujos de lama.
— Eu preciso de ajuda — digo devagar, um pedido um tanto óbvio.
— Eu vou achar a Vic, nós vamos com você — Ela sorri determinada.
Ouço batidas na porta e, enquanto Hannah está ocupada no celular, eu a abro, dando de cara com .
— Que fantasia é essa? — Ele pergunta, o cenho franzido em completa confusão.
— Eu não estou fantasiada! — O puxo pela manga do moletom para dentro do quarto.
Tomo um segundo ou dois para apreciar que ele veio sem a fantasia de caçador. Por mais bonito que ele tenha ficado nela, nessas conjunturas, é um pouco ofensiva.
— Você está sangrando? — toma meio segundo para estar em cima de mim, olhando para o corte maior em meu rosto com uma preocupação constrangedora.
— Ei, você tem algo a ver com isso? — Leslie invade o quarto, ocupando o espaço mínimo entre mim e .
— Não! Leslie, para com isso! — Me afasto de todos, os fazendo ficarem em cantos opostos do quarto. Minha amiga o encarando como se estivesse a um comando de arrancar sua cabeça fora com as próprias mãos. — Eu estava na floresta e caí de cara no lugar que acredito ser o túmulo da . Eu quero exumar seu corpo e queimar o que restou dela — Leslie sorri de orelha a orelha.
— Eu amei! Vou buscar as pás no porão — Sua animação chega a ser infantilmente divertida, ela ignora a tensão da coisa toda tão bem. O que equilibra o medo extremo de Hannah, que reza baixinho, repreendendo tudo isso.
— Espera, … — me pega pelos ombros, me fazendo perceber que estou andando de um lado para o outro, em pura adrenalina. Eu paro, respirando fundo e encarando seus olhos.
recolhe a mão direita, grunhindo ao fechá-la em punho.
— A cicatriz — Me aproximo dele, abrindo sua mão. O corte parece ainda pior do que estava mais cedo.
— Eu vim falar sobre isso, também — Ele morde o interior da boca, evitando olhar diretamente para mim. — Vim me desculpar por ter sido um idiota mais cedo. Eu aprecio todo o seu empenho em salvar a minha vida e não deveria me chatear por ter sido rejeitado — é sincero e se aproxima de novo, limpando o sangue escorrendo em minha bochecha com seu polegar.
Seu maxilar trava e ele respira pesado, irritado com um simples corte feito por uma raiz exposta.
O momento é interrompido por um suspiro apaixonado de Hannah, que assiste a tudo há poucos metros de nós.
— Ainda tenho seus desenhos — Ele sorri de lado, parece agradecido. — Quando eu voltar, podemos continuar trabalhando na sua história, talvez mudar o final dela — digo rápido, me referindo ao seu quebra-cabeças também.
bagunça os cabelos, rindo meio sem jeito.
— Eu espero — diz baixinho, se sentando na cama de Hannah.
— A Vic não atende… — Minha amiga diz, preocupada.
— Não temos tempo, temos que fazer isso antes da meia-noite — digo com certeza, seguindo meus instintos e, bem, os sussurros da floresta.
— Espera, o que eu faço com o Brian? — Hannah apoia os punhos na cintura. Com seu vestido curto verde neon e sapatilhas com pompons nas pontas, ninguém faria uma Sininho melhor.
— Eu posso distraí-lo… — sugere, prestativo.
— Você vai desenhá-lo como uma de suas garotas francesas? Espera, na verdade, essa é uma boa ideia! — Hannah sorri com os dentes alinhados aparentes.
— Eu não faço esse tipo de desenho… — olha de soslaio pra mim. — Não mais.
— Eu quero saber o que isso significa? — Hannah olha de mim para , enquanto balançamos a cabeça de um lado para o outro, quase que sincronizadamente. — Ele pode ficar de roupa, relaxa! — Ela sai do quarto correndo, nos deixando sozinhos.
— Elas são legais — tem a voz macia, calma. É um bom contraste para minha mente barulhenta, cheia de pensamentos afiados.
— São sim — Confiante de que voltaremos inteiras, penso em quando o sol nascer amanhã e no resto de nossas vidas. — Será que você poderia manter segredo sobre a nossa missão? Hannah espera se casar com esse cara e, se for pra ele saber, que seja ela a contar — concorda veemente.
— Eu ficarei de bico calado. Eu nunca falo enquanto desenho — Assinto devagar, captando esses detalhes sobre ele que deixa escapar vez ou outra.
— Você precisa de papel? — Vou até a mesa do computador, pegando algumas folhas limpas da impressora e um lápis que encontro por ali, na mesa do computador de Hannah.
— Dou um jeito com isso… — Ele parece apreensivo, ao mesmo tempo que tenta esconder isso de mim.
— E a sua mão? — Pergunto preocupada, a vermelhidão só aumenta.
— Já estive pior — diz entre um sorriso enviesado.
Ele é tão ridiculamente bonito sorrindo desse jeito, eu quase o odeio.
Nossos rostos estão próximos e perto assim, seus olhos não têm escapatória e se fixam nos meus.
Estamos tão perto.
— Esse é o , amigo da . Eu pedi que ele fizesse um retrato seu — Hannah explica para Brian, que me olha com estranheza, mas cumprimenta com cordialidade.
— Nós vamos buscar gelo e já voltamos — Explica com um tom claramente mentiroso. Brian ergue uma das sobrancelhas, prestes a contestar a desculpa esfarrapada da namorada.
— Você pode se sentar naquela cadeira e nós podemos começar — intervém, bloqueando o caminho de Brian e o impedindo de protestar contra a saída abrupta de Hannah de sua própria festa.
Leslie para na porta do quarto, com duas pás apoiadas no ombro, uma mochila aparentemente cheia e um sorriso de orelha a orelha.
— Eu já volto — digo baixo, tão esperançosa que minha voz soa sorridente. mantém a impassividade, tentando conter sua aflição e a seriedade do momento. Mas em uma fração de segundo, ele me dá uma piscadela que me faz sentir confiante de que consigo pôr um ponto final nessa história cheia de ignorância, covardia e vingança, e ainda voltar a tempo de ter meu primeiro encontro desajeitado com ele.
Hannah dirige o carro do namorado, cuidadosa e pessimista sobre o que vamos fazer. Do banco de trás, Leslie continua tentando localizar Vic e eu começo a reconsiderar tudo o que sei sobre a mulher.
— Vocês acham que… — Leslie bufa frustrada, encerrando a ligação e começando outra em seguida. — Ela não faria isso, não é?
— Bem, ela achou que eles estivessem apaixonados, então, uma criança apareceu e tudo mudou. Pra Vic se jogar assim em uma relação e receber esse balde água fria… — Hannah balança a cabeça, descrente. Os lábios crispados e um olhar distante.
— Você está justificando assassinato por maldição agora? — Hannah franze o cenho, se abstendo de responder aos questionamentos filosóficos de Leslie enquanto dirige. — Isso é loucura! Não podemos sair por aí matando as pessoas por causa de suas falhas e erros, ou pelo o que acreditam. Não cabe a nós decidir!
Hannah parece mastigar a própria língua para não fazer comentários.
— Acho que a Vic não está pensando assim… — Hannah encosta o carro no final da estrada sem saída, observando a mata densa por onde vamos passar com receio pintado por todo seu rosto glitterinado.
— Nós precisamos fazer isso rápido e, então, vamos buscar nossa amiga homicida — Desço do carro, já puxando uma das pás do porta-malas. A floresta que me perdoe, mas irei abrir meu caminho por ela na base da porrada.
— Esperem por mim! — A voz de Leslie ecoa por entre as árvores altas de folhas densas e vegetação farta, traiçoeira.
— Alguma coisa raspou na minha perna! — Hannah sussurra em pânico.
— Acho que fui eu — Les confessa, a voz meio trêmula. — Não consigo enxergar nada. Como conseguiu ficar aqui sozinha, ?
— Não tenho mais medo do escuro — digo rápido, sem perder o foco.
A cada passo que dou em sua direção, sinto o ódio dela crescendo. É como se estivéssemos uma na mente da outra, dividindo o mesmo caos. Assim como eu, ela sabe que depois de hoje, pelo menos uma de nós poderá descansar.
— Vocês estão ouvindo alguma coisa? — Pergunto em um sussurro.
— Estou gritando por dentro, então, não — Hannah devolve o cochicho e Leslie solta uma risadinha inapropriada.
— Shh! — Elas voltam a ficar em silêncio e eu tento ouvir o som da cachoeira novamente, tento enxergar os vaga-lumes e encontrar o caminho direto até ela. Sei que estou próxima, eu sinto.
O som que ouço é eletrônico, sensual, de batidas eletrizantes. “Work Bitch”, da Britney Spears. Viro minha cabeça muito lentamente para Hannah, cujo celular toca incessante.
— Nós já estamos voltando, amor! Como vai o desenho? — A voz mentirosa e amedrontada de Hannah pode ser ouvida há quilômetros, então, me afasto delas em minha busca.
Seguro a pá com força na mão, marchando pela terra que começa a ficar fofa onde deveria haver irrigação natural do lago.
Consigo sentir o cheiro forte do alecrim, as memórias começam a se misturar com a realidade e é difícil saber onde e quando estou.
A cada passo, sinto meu corpo vibrar do centro para as extremidades, como se meu sangue fluísse mais rápido. Engulo em seco, ignorando os truques da floresta em minha mente, piscando entre cenários como flashes, tentando me confundir.
Parece um jogo sádico, mas estou disposta a quebrar as regras e jogar sujo também.
Ao encontrar o túmulo, respiro fundo e começo a cavar.
O tempo é crucial e não importa o quanto esteja física e mentalmente cansada, preciso continuar.
A luz da lua cheia ilumina bem o buraco que começa a se formar embaixo de mim. Minhas mãos estão cheias de calos e meus braços parecem querer largar a pá.
— Espera, ! Eu te ajudo — Leslie deixa a pá do lado de fora do buraco, ela pula para dentro e eu percebo o quanto cavei. A cova está na altura de seus joelhos agora, e Leslie é uma mulher alta.
— Temos que fazer isso rápido! O está piorando — Hannah diz apressada, olhando para a nossa situação sem muita vontade de colocar as mãos na massa. Ou na terra.
— Espera, Les… — Interrompo um movimento de Leslie, que paralisa assustada.
— O que é isso? — Hannah se aproxima, agachando perto de mim.
Solto a pá e visto as luvas descartáveis que Les trouxe na mochila, puxo um pouco o tecido da blusa sobre o rosto e me ajoelho sobre a terra, puxando o que acredito ser um graveto mais grosso.
Ao desenterrar um osso de braço humano em estado avançado de decomposição, ouço o grito interrompido de Hannah e segundos depois, sinto o peso de seu corpo desmaiado caindo sobre mim.
— Ela sabia que haveria cadáveres aqui! — Leslie parece chateada, encarando a cena com o cenho franzido.
— Leslie! — Grito impaciente, esperando que ela retire Hannah de cima de mim. — Temos que ter cuidado, não sabemos com o quê o caçador foi infectado — Largo o braço do lado de fora da cova e tento não pensar no fato de que aquele amontoado de ossos sujos de terra um dia fora alguém.
Cavamos um pouco mais, separando os ossos que encontramos no caminho e então, Leslie olha pra mim, esperando que eu dê continuidade.
Encaro o tecido avermelhado e puído, desgastado pelo tempo.
É como se cada fibra daquela antiga manta conhecesse intimamente os momentos que se passaram sobre ele. As noites frias de um amor quente e inesperado, com um fim trágico.
Tenho medo do que vou encontrar por trás dele. Não quero olhar, mas ao mesmo tempo, sinto que preciso.
— ? — Les me apressa, não temos muito tempo.
— A mulher era idêntica a mim, Leslie. Eu preciso de um minuto antes de ver meu cadáver apodrecido — digo o óbvio, fazendo minha amiga ficar apreensiva.
— Esta não é você, — Ela lembra, me fazendo olhá-la um pouco confusa. — Vou pegar a gasolina — Leslie iça o corpo para fora da cova e retira o galão da mochila que preparou antes de sairmos.
Hannah recupera a consciência aos poucos e consigo ouvir seus gemidos confusos conforme ela se situa.
— ? Temos quinze minutos — Les volta para o buraco, tentando chamar a minha atenção, mas não consigo tirar os olhos do tecido.
— ? — Hannah chama, mas mesmo que eu queira, não consigo responder.
Ouço o som da cachoeira e sinto meus pés molhados. Minhas amigas sumiram, mas estranhamente, não estou preocupada.
A água cobre meu corpo, congelante. Meus movimentos causam pequenas ondas contrárias às águas calmas depois do agito da queda, o chão vai se desfazendo entre meus dedos. A água atinge meu pescoço e eu não consigo mais respirar.
— Você está traindo suas irmãs — A voz muito parecida com a minha, só que mais chateada, ecoa como um aviso. — Uma bruxa, queimando outra bruxa. Por um homem? — A vibração aumenta, fazendo meu corpo se contorcer em uma dor generalizada.
Estou sozinha no vazio. Com ela.
— Estou tentando salvar você! — Reclamo, sentindo sua presença, mas sem encontrá-la em lugar algum na imensidão lúgubre.
— Salvar a mim? — A corda que enforcou volta ao meu pescoço, dificultando ainda mais minha respiração. — É um pouco tarde agora… — Ela afrouxa o aperto, deixando o nó solto em volta de meu pescoço. Como um lembrete sarcástico.
— Você não mereceu isso. Nenhuma de vocês mereceu! — Ela ri, a risada debochada e rouca que vivo evitando que escape para não soar maldosa. — Você era boa, eu sei. Eu vi. Você era genial e usava suas ideias brilhantes para ajudar suas irmãs com o trabalho. Você era uma cientista incrível e foi totalmente incompreendida no seu tempo.
— Eles tiraram tudo de mim! — grita, junto ao coro de centenas de outras vozes daquelas que tiveram suas vidas ceifadas antes e depois dela.
— Eu sei, eu sei! Mas eles pagaram por isso — A corda some, a vibração bagunçando meus órgãos se torna mais branda. — O caçador e todos os outros. Eles sofreram. Agonizaram até a morte, como você queria — Tento persuadi-la, sentindo que posso convencê-la de que sua vingança foi cumprida.
— Mas a ganância, o ódio, a mentira e o desprezo deles continuam sendo perpetuados sobre a Terra. A magia morreu por causa deles! — Ela volta a se irritar e eu me pego tentando entender como dissuadi-la.
— Eu concordo. Mas eu estou aqui, não estou? Isso é magia. A sua magia — Insisto.
— Foi a maldição que a trouxe aqui — Ela parece incomodada, constrangida até.
— Eu duvido — Enfrento o medo que cresce dentro de mim, o receio de que tudo acabe sem que eu tenha qualquer controle sobre os fatos. Mas é agora ou nunca. — Eu conheço você. Sei que nunca quis matar ninguém, mas precisou fazer isso para salvar suas irmãs a si mesma. Você sempre trouxe equilíbrio para a magia delas, eu sei. Eu faço a mesma coisa — Rio nervosa, buscando uma forma de fazê-la entender que compreendo suas razões, mas não irei compactuar e levar sua ira adiante. Então apelo pelo ponto que fraco que temos em comum. — Hannah encontrou alguém bom. Bom de verdade. Ele tenta fazer com que o mundo seja um lugar menos cruel, um passo de cada vez. E a Vic, ela não pode matar o que talvez tenha sido seu primeiro amor verdadeiro, você sabe, isso irá acabar com ela. Amor é como um cometa para a Vic, inédito e fantástico. Ela precisa ter uma chance de tentar de novo — O ar volta aos meus pulmões devagar. Sinto meu corpo flutuando, mas não mais comprimido. É quase relaxante.
— E a Leslie?
— Bem, a Leslie… Ela é … muito bem-sucedida e feliz… Saindo com outras mulheres — Acho difícil explicar essa pequena mudança para , mas os vários sons de entendimento que ouço quase me fazem rir.
— E quanto a você? — Ela se interessa, me deixando desconfortável.
— Eu nunca amei alguém — digo rápido, como se estivesse me defendendo de uma acusação.
— Mas você quer, não é? — Ela me conhece, profundamente.
— Eu não sei — Me sinto observada, invadida.
— Mas você quer salvá-lo, para quê, além de amá-lo? — Sinto sua presença mais forte, mais próxima e curiosa. É intimidador, mas já lidei com valentões antes.
— Certo, se eu fosse amar um dia, seria alguém como o . Mas eu não sei o que vai acontecer. Eu quero salvá-lo, sim. Mas não para mantê-lo, só porque não quero que mais ninguém morra pelas mesmas razões vazias — Sinto suas mãos geladas em volta de meu pescoço e arregalo os olhos, encarando o infinito negro de sua vingança. — Não as suas! Mas a sua reação foi desencadeada pela ignorância e medo do desconhecido. Não cometa os mesmos erros que eles cometeram! — Meu corpo começa a se retesar, a falta de oxigênio me faz começar perder também minha inconsciência. — Confie… em mim — Em um último esforço para me manter acordada, vejo meu reflexo diante de mim.
me encara de volta.
A pele pálida, os cabelos rubros esvoaçantes e os olhos revoltados se materializam diante de mim. O medo congela meu interior, me fazendo acreditar que esse é o fim.
Aterrorizante e solitário.
Um quase sorriso surge em seus lábios azulados de morte, um lapso brilhoso surge nos olhos profundos e vidrados dela. Como uma ideia maquiavélica surgindo em sua mente domada pela ira.
Com uma expressão desgostosa e contrariada, afrouxa a força de seus dedos frios e esguios em meu pescoço. Curiosa, ela aproxima seu rosto do meu, estudando minha expressão triste diante da morte.
É quando vejo entre todo o ódio em seu olhar perdido, um vislumbre da garota que ela costumava ser. não acreditava em segundas chances, estava sempre em alerta e desconfiando de todos. Quando deixou sua guarda baixa, levou o pior dos golpes e revidou da forma que podia.
Eu consigo entender isso, mas não consigo concordar.
Deve ter outro jeito de melhorar as coisas.
— Vá — A voz vibra na água do lago, fazendo sua presença sumir conforme o ar sai de pulmões em formato de bolhas.
Eu não sei porquê, mas me deixa ir, mas não antes de enfiar um punhado de flores de alecrim em minha boca, me fazendo engasgar com elas.
— ?! — Hannah chacoalha meus ombros e eu cuspo flores e água em seu vestido de Sininho, fazendo-a gritar de nojo.
— De onde veio tanta água?! — Leslie imprime bem suas prioridades enquanto eu recupero o fôlego.
Estou mesmo cansada de viajar entre dimensões assustadoras.
— Vamos queimar esta bruxa! — Digo determinada.
Com cuidado e muito respeito, despejo a gasolina sobre o cadáver. Decido que tive minha curiosidade mais que sanada e não revelo o que o tecido escondeu através dos anos.
Tiro do bolso o desenho amassado que representa os pensamentos arrependidos do caçador, o acendendo com o isqueiro que consegui mais cedo.
Conforme a folha cai na cova e o fogo se alastra, observo tudo com um sentimento sereno no peito.
Quero acreditar que ela está agradecida por poder descansar, sabendo que sua vingança foi cumprida e que, talvez haja esperança de um futuro melhor, afinal.
— Que horas são? — Leslie pergunta.
— Onze e cinquenta e nove — Hannah é quem responde, olhando a tela do celular apreensiva.
— Victoria! — Dissemos em uníssono, deixando a fogueira para trás. Antes de me afastar completamente, talvez para sempre, dou a volta na cova e empurro os ossos do caçador para queimarem também.
Há uma grande chance de eu estar erradicando uma nova praga antes que ela surja.
— ! — Hannah me apressa, com razão.
— Só mais uma coisa — Me abaixo, pegando um punhado de flores de alecrim, as guardando no bolso. Algo me diz que vou precisar delas.
— Se você tiver matado alguém, eu vou depor contra você! Eu não me importo de cometer perjúrio só pra aumentar a sua pena! Me liga assim que ouvir esse recado, Victoria. Eu não estou brincando! — Hannah desliga o telefone ao mesmo tempo em que passa o cinto de segurança pelo corpo.
— Por que só você tem poderes? — Leslie cutuca meu braço, brincando com a lama endurecida nas pontas de meus cabelos.
— Eu não tenho poderes — Esclareço, fazendo minha amiga crispar os lábios. Estamos paradas no pequeno e inédito trânsito por conta de uma feira assustadora acontecendo nas redondezas.
— Você fala com os mortos, com a floresta… Isso é um poder — Meneio com a cabeça, ela tem um ponto.
— São eles que falam comigo — Explico paciente, observando o sinal vermelho diante de nós demorar uma pequena eternidade para mudar de cor.
— É a mesma coisa — Les insiste.
— Não é como se eu tivesse pedido para falar com eles… — Ela cerra os olhos, pensativa.
— Mas você é a escolhida, digamos assim. Isso te dá algum tipo de poder, nem que seja o de mudar o curso das coisas. E você fez isso, poderosa — Ela volta a me cutucar.
— Até onde sabemos, está morrendo de uma infecção secular desconhecida e nossa melhor amiga será presa por homicídio… — Gesticulo com as mãos, emulando uma balança com elas.
— Não acredito que nunca mais vamos ver a Vic — Hannah lamenta, dirigindo com muita calma e cuidado para quem quer impedir uma tragédia de acontecer.
— Eu escolheria poder voar. E você, Hannah? — Leslie se volta para a loira, a fazendo rolar os olhos.
— Eu escolheria nunca ter entrado nessa situação — Ela sorri de boca fechada, a olhando pelo retrovisor.
— Até se isso significasse nunca ter nos conhecido? — Les apoia o queixo no banco passageiro, vendo Hannah colocar a mão no peito, arrependida pela escolha.
— Estamos chegando? — Interrompo a discussão por começar e Hannah assente, parando o carro diante de um prédio alto e muito bonito.
— Liga pra ela! — Hannah grita com Leslie.
— Já estou fazendo isso! — A outra reclama.
— Vamos lá, Vic… Vingança não é a resposta — Em um murmúrio, concentro minha energia em desejar que Vic ao menos atenda ao telefone.
— Onde você está? — Leslie adota o tom de voz que usa somente quando quer irritar Victoria, o que me deixa aliviada por alguns segundos. — Certo. Estamos indo — Ela desliga o telefone, me olhando com uma expressão nada contente.
— O que foi?
— É o . Precisamos ir! — Leslie é vaga, me empurrando de volta para o carro.
No caminho, tento manter a calma e acreditar na chama acesa dentro de mim. Ainda não acabou, temos que terminar a história.
— Pra onde estamos indo? — Pergunto ao notar que não estamos indo para casa.
— Eles estão no hospital — diz devagar, tomando cuidado para não me perturbar.
— Ele está bem — Ela meneia com a cabeça, trocando um olhar com Hannah. — Eu sei que está.
Ao chegarmos, a emergência do hospital está lotada de vampiros e zumbis de mentira e não demora até vermos Victoria, vestida de bruxa.
— Onde vocês estavam?! — Ela reclama, assim que nos vê.
— Resolvendo aquela bagunça. Onde você estava? — Leslie devolve.
— Em casa… — Dá de ombros. — A festa foi incrível, pena que vocês perderam — Ela lamenta, as sobrancelhas relaxadas em puro deboche.
— Cadê a polícia? Por que você não está presa? — Hannah dispara, fazendo a mulher olhar por cima dos ombros.
— Odeio o quão bem vocês me conhecem. Eu não ia matar o Carl... — diz baixinho, nos empurrando para um círculo mais afastado de Brian, que aguarda por explicações com uma expressão fechada. — Eu me precipitei, certo? Aquela garotinha não é filha do Carl — Ela rola os olhos, claramente envergonhada, mas se esforçando como os diabos para esconder isso. — É a irmãzinha mais nova dele…
— Eu tenho tantos comentários para fazer — Leslie coça os olhos, exausta. — Estão todos entalados. Preciso de uma enfermeira aqui! — Leslie faz uma cena, chamando a atenção de alguns funcionários ocupados do hospital.
Carl entra na sala de espera, segurando dois copos de café e o lábio inferior entre os dentes. Ele conhece bem Victoria, sabe que ela já cavou a cova dele para nós. E é dessa forma que o encaramos.
— Meninas… Boa noite — diz educado, ele entrega o café de Vic e se aproxima bem dela, abraçando-a pela cintura. Só para mostrar que tudo entre eles está bem, do contrário, o café quente estaria esparramado por todo o seu rosto agora.
— Obrigada — Leslie agradece pelo café que não lhe pertence, mas se delicia mesmo é com a expressão contrariada que o rapaz é obrigado a reprimir.
— Eu preciso ver o — digo com certa urgência. É muito bom que tudo esteja bem entre Vic e Carl, mas ainda corre risco de morrer em algum lugar nesse corredor.
— O pai dele proibiu as visitas. Tá achando que ele foi drogado, ou algo assim. Ele ‘tá muito mal — Vic comprime os lábios, me olhando com certa pena.
— Eu sei o que fazer — diz Hannah, sorrindo sapeca. — Qual é o quarto dele? — Ela pergunta, ajustando seu plano por alguns segundos.
A ideia é usar todos os corpos presentes para bloquear a passagem no corredor, assim terei tempo de vê-lo e seguir minha intuição.
— Pronta? — Vic pergunta, eu assinto rapidamente. Tudo precisa acontecer perfeitamente sincronizado.
Em alguns minutos, Vic causará um alvoroço na recepção, chamando atenção dos funcionários. O restante impedirá que o pai de volte da cafeteria antes que eu tenha saído de seu quarto.
Preciso ser rápida.
Ouço o barulho de coisas caindo no chão e os gemidos altos e teatrais de Vic, meus amigos se dividem em dois grupos, barrando a porta do quarto dele dos dois lados. Eu furo a barragem e entro.
— Ei… — digo baixinho ao me aproximar. Não entendo porquê ele está atrelado a tantas máquinas, mas ele parece tão frágil e vulnerável agora. Eu chego a duvidar de minha convicção, ele não parece nada bem.
— Você voltou… — Sua voz soa rouca, gasta. Eu sorrio, assentindo. — Você parece horrível! — Eu rio mais forte, concordando com ele.
— Você também… — Ele tenta rir, mas parece sentir dor.
— Ei, . Qual é o fim da história? — Ele me pergunta aflito, mas é quase como se ele já tivesse aceitado seu destino.
— Ainda não sei, mas nós queimamos a bruxa — Suspiro triste, um pouco confusa sobre como as coisas se parecem na realidade. Mas eu sinto tudo tão diferente.
O que está havendo?
— Preciso dizer, sempre achei que fosse justo que a bruxa matasse o caçador no final — Ele fecha os olhos, bastante cansado.
Preciso fazer alguma coisa. Olho em volta e todo o material hospitalar não parece fazer sentido pra mim, também pudera, eu não sou uma médica.
— Eu sou uma bruxa… Caralho, como não pensei nisso antes?! — volta a me olhar, a confusão toma seus olhos fracos, mas curiosos. — Você confia em mim?
estuda bem meu rosto, passando por todos os arranhões e hematomas espalhados por todo meu corpo. Os cabelos desgrenhados e as roupas parcialmente molhadas e sujas de lama.
Eu passei pelo inferno para salvá-lo, não posso desistir agora.
— Com a minha vida — sorri, esticando o braço cheio de agulhas e fios que o monitoram em minha direção.
Respiro fundo, canalizando a floresta; seus sons e sombras, mistérios e maravilhas. Fecho os olhos e sinto sua magia correr por minhas veias, se misturar com meu sangue. Fazendo-o ferver.
Encho a boca com as flores, mastigando tudo com vigor, projetando em minha mente a força da vontade que tenho de que fique bem.
Toco seu pulso, ele me olha com estranheza e fascínio, desfaço o curativo em sua palma e passo meus dedos quentes sobre a ferida que fora aberta em sonho.
Sinto uma tristeza imensa, tão grande que me faz chorar em silêncio.
É como reviver toda aquela dor, visitar novamente o momento daquela batalha e ouvir os corações se quebrando outra vez.
e seu caçador dariam qualquer coisa para seguir os chamados de seus corações naquele dia. Cada golpe proferido machucava a ambos.
Uma mágoa assim leva centenas de anos para se curar, e no caso deles, foi exatamente o tempo que levou para que enfim eles pudessem se perdoar. Se é que o fizeram.
Cuspo as flores trituradas envoltas em saliva na palma da mão de e a seguro com as minhas duas.
Com toda a força que me restou.
31 de Outubro
Salém, 2024
— Não acredito que você vai se atrasar. Logo hoje! — Hannah grita contra seu telefone, o vestido bem ajustado faz com que seu decote fique vistoso, principalmente quando ela se mexe com tanta aflição. Leslie nota e solta uma risadinha constrangida.
— Você pode abrir a porta?! — A voz de Vic soa duplicada, vindo do alto—falante do celular e de trás da porta também.
— Achei que você tivesse ido embora! — Hannah é quem abre a porta, a saia de múltiplas camadas balançando graciosamente, destoam do cenho franzido e as narinas infladas de raiva.
— A sua chatice não vai me abalar hoje. Eu só fui ao banheiro! — Vic libera a fúria que esteve segurando por todo esse tempo em nome do dia especial.
— Não podemos brigar hoje, meninas — Leslie se aproxima, passando um braço em cada uma das amigas.
— Tem razão, temos que honrar a . Sem ela, nada disso seria possível — Vic gira o anel de noivado no dedo anelar, um sorriso meigo surge em seus lábios e Leslie ainda se assombra toda vez que o vê.
— Bem, por causa dela, quase que nada disso acontece… — digo brincalhona, adorando ver a cena de minhas amigas sorridentes, felizes e realizadas.
— À — Hannah ergue sua taça de vinho rosé em minha direção. As meninas fazem a mesma coisa e eu resisto, mas ergo minha taça também.
— Que aquela vadia descanse em paz — diz Vic, carinhosamente.
— E à nossa heroína, — Leslie dá um bom gole, me fazendo rir sem jeito.
— À todas nós. Sobreviver a esse ano não foi fácil... — digo sorridente, antes de dar um gole também.
— Nós fizemos muito mais do que sobreviver. Nós vivemos o melhor que a vida pôde proporcionar! — Hannah acaricia o véu que acompanha o vestido, encantada pelo próprio reflexo no espelho.
— Ter o governo nos desabrigando não foi exatamente divertido, mas já estava na hora daquela casa ser demolida controladamente — Vic pondera, me fazendo rir.
— Vocês podem me agradecer pelo apartamento novo quando quiserem — Hannah pisca um dos olhos.
— Você só nos colocou em contato com um corretor de imóveis e ele é o seu pai — Vic responde ácida, ignorando o bico contrariado de Hannah.
— Não consigo ficar brava. Sinto falta até das nossas brigas… — Elas se abraçam ligeiramente, tomando cuidado com as emoções para que elas não estraguem suas maquiagens impecáveis.
— Nós sempre teremos um quarto disponível para nossas senhoras casadas. Certo, ? — Les cutuca minha costela, eu assinto veemente. Com a mudança de Hannah e Vic passando mais tempo no apartamento chique de Carl, Leslie e eu descobrimos que a dinâmica entre nós é muito mais fluida. Vic e Hannah nunca saberão disso, mas nossos rituais de maratonas realmente funcionam quando somos somente nós duas.
— Principalmente porque eu ainda pago a minha parte do aluguel… — Vic limpa a sujeira de sob suas unhas, muito debochada.
— É quase como se, depois daquilo, os nossos desejos mais profundos tivessem se realizado. Tipo… mágica e tal — Les termina sua taça, beliscando um canapé ou outro que trouxeram para nossa pequena celebração particular antes da grande celebração de Hannah e Brian.
— Hannah está se casando, eu fiquei noiva, Leslie conseguiu o emprego dos sonhos e a é uma autora best-seller — Vic conta nos dedos, me olhando maliciosa. — Além de, finalmente desencalhar — Minhas amigas concordam veemente, Les chega a erguer a própria taça, mesmo vazia.
— é o autor do livro, eu só fui sua consultora — Corrijo rapidamente, ele merece todos os créditos por transformar nosso maior pesadelo em uma obra cheia de fantasia e ilustrações incríveis.
Mudar o final do casal principal foi um risco muito bem calculado e que nos rendeu os frutos de um bom e intenso romance de terror.
Dedicatórias à parte, o livro ainda é dele.
— Fico imaginando vocês trabalhando até tarde… Como conseguiram não se perder na narrativa? — Vic se aproxima sinuosa, me fazendo a mesma pergunta que me fiz por meses. — Escrevendo sobre noites quentes de sexo selvagem no celeiro… — Rolo os olhos, ignorando sua pergunta.
— Vocês fizeram um bom trabalho. Eu adorei como fui retratada — diz Les, de boca cheia.
Para minha sorte, não tenho que responder como completei a segunda proeza mais inexplicável do último ano. Foram muitas noites juntos, tentando entender sentimentos complexos e dar sentido à atos completamente inusitados em um único conto.
Como e seu caçador, nós colocamos o dever de encontrar o início, meio e fim de uma história terrível como nossa prioridade, e então criar um final completamente diferente pra eles foi algo nosso.
— Eu gostei do livro, mas achei que vocês me fizeram parecer uma megera homicida — Vic reclama.
— Pelo menos o seu nariz não ficou enorme… — Hannah alfineta, me olhando pelo reflexo do espelho.
— Mas, Vic, você é pelo menos uma dessas coisas, certo? — Les finge confusão, despertando a fúria da mulher.
Precisando de ar fresco, deixo minhas amigas ajudarem Hannah com os últimos retoques. Em poucas horas, ela será uma mulher casada com o homem de seus sonhos e tudo tem que ser perfeito.
Observo o lago calmo ao lado do casebre que eles escolheram como palco para o casamento com tema macabro do Halloween, mas explorando o lado cheio de beleza do reino das fadas.
O terreno é amplo, cercado por uma floresta densa que me faz sentir vibrar de dentro para fora.
Sinto a calma da natureza me preencher. A conexão que tivemos há um ano não é tão forte, mas ainda sinto como se ela falasse comigo.
Tem sido difícil, mas tenho tentado canalizar essa sensação de forma positiva. Mudar o rumo do que parece ser um pressentimento horrível para somente algo corriqueiro como estar viva e ter possibilidades todos os dias. Para algumas pessoas isso pode ser assustador, eu venho tentado não ser uma dessas pessoas.
Sorrio com o leve arrepio que sinto na nuca, me virando em expectativa ao perceber que tenho companhia.
— Achei mesmo que fosse você — digo aliviada, recebendo seus olhos felizes por me ver.
— Um passarinho cor-de-rosa me disse que você estaria aqui, mas eu te encontraria mesmo sem essa dica — se aproxima. O terno sob medida o deixa com a aparência ainda mais séria e interessante. Os cabelos têm um desgrenho descolado, que o faz parecer saído da cama.
Eu amo… o cabelo dele. Acho uma grande sorte ser capaz de passar horas com meus dedos passeando pelas ondas castanhas e sedosas em sua cabeça.
— Victoria… — Ele assente devagar, me envolvendo em seus braços.
Ainda sinto como se congelasse de dentro para fora quando ele faz isso. E então, sua pele sempre quente me derrete de fora para dentro.
— Você está bem? Parece nostálgico, não é? — Pergunta preocupado, me olhando do jeito que me faz sentir importante.
— Sim. Gosto mais dessa fantasia que a do ano passado — Mexo a saia do vestido lilás que Hannah me obrigou a usar e combinar com a paleta ultra feminina de seu casamento.
— Você estava fantasiada de quê mesmo? — faz um carinho em minhas costas, pressionando as palmas quentes em minha pele.
— Eu era uma final girl! — Explico entusiasmada, o fazendo rir.
Apesar de não ter ficado nem cinco minutos na festa à fantasia em minha própria casa, após o sol nascer e eu ainda estar viva, apesar de estar sofrendo de desidratação e uma leve infecção respiratória graças à um afogamento na floresta, eu me senti como uma sobrevivente. A que pôs um fim em todo o terror.
— Sidney Prescott tem muito o que aprender com você — Comenta convencido. — Você conseguiu de primeira — Ele beija minha bochecha.
— Dê algum crédito à senhorita Prescott. Ela tem de lidar com malucos por filmes de terror, eu só tive que derrotar minha ancestral mágica e vingativa — Dou de ombros, rindo de minha definição simplista.
— Bem, você salvou a minha vida — Pondera, mordiscando o próprio lábio.
— Eu estava te devendo essa — Rio sem jeito e ele me acompanha.
— Acho que vai começar… — olha por cima do ombro, vendo a movimentação começar a se intensificar um pouco mais adiante.
Antes de irmos testemunhar a cerimônia, entrelaço meus dedos nos dele, o impedindo de continuar a andar. Sinto a cicatriz na palma de sua mão contra a minha e sorrio, indo até ele para um beijo sem pressa.
É um beijo apaixonado, intenso, quente. Quase como se nunca tivéssemos feito isso antes em quase seis meses de namoro.
— Eu… — olha fundo nos meus olhos. Sua hesitação faz o ar ficar denso em meus pulmões.
Ele vai dizer. Finalmente, ele vai dizer.
— ! — Vic grita, irritada. — Vem logo! Nós vamos nos atrasar por sua causa! — aceita que nossa conversa seja interrompida, mas me olha como se dissesse que ainda temos um assunto a tratar quando estivermos à sós.
— Eu... te vejo quando isso terminar — Ele morde o interior da boca, tomando alguns segundos para me olhar assim, de perto.
entrelaça nossos dedos, me acompanhando até o lugar onde devo ficar. Ele beija minha bochecha e se afasta, encontrando seu lugar ao lado de Olívia, a jogadora de vôlei que foi capaz de fazer Leslie sossegar e, claro, Carl.
Corro para meu posto, recebendo um pequeno buquê com variados tons de roxo nas flores.
Entro na fila atrás de Vic e ela pisa no meu pé com seu salto fino, de propósito.
— Eu já estou aqui! — Reclamo, massageando o dedo mindinho do pé.
— Obrigada por estarem aqui. Vocês são a melhor parte desse sonho. Amo vocês! — Hannah se emociona, chacoalhando seu buquê em nossas direções.
O quarteto de cordas inicia a marcha nupcial e nós começamos a entrar enfileiradas.
Os pais dos noivos estão sentados logo na frente, assim como alguns amigos e nossos acompanhantes.
Ficamos ao seu lado, vendo como ela sorri para Brian, que chega a perder um pouco a compostura ao vê-la vestida de noiva.
A cerimônia se inicia e tudo parece ter saído mesmo de um conto de fadas. As pequenas luzes penduradas iluminam a parte de cima do jardim, que parece ter sido encantado com a flora farta e colorida. Na parte de baixo, algumas velas iluminam o pequeno altar, onde fica um arco bonito, adornado com tecido e plantas, além de rosas chamativas, bem posicionadas.
Hannah e Brian se encaram cheios de esperança, a expectativa de viverem a vida inteira juntos.
A visão é aconchegante, aquece nossos corações conforme eles juram amar um ao outro por toda a eternidade.
Procuro por na terceira fileira, ele ergue as sobrancelhas, ainda fica surpreso e ligeiramente corado quando meu olhar encontra o seu com tanta facilidade.
— Eu aceito — diz Hannah, a voz embargada pela emoção.
As meninas e eu nos entreolhamos sorridentes, finalmente aconteceu.
— Eu… — Brian é interrompido por uma tosse, todos os presentes soltam uma risada com o momento inoportuno. Ele solta um pigarro, franzindo o cenho rapidamente. — Eu… — Brian cai de joelhos, assustando a todos com uma tosse intensa.
— O que está acontecendo? — Hannah se põe diante dele, tentando levantá-lo. — Brian!
O homem cospe o que parecem ser bolsas de sangue. Coagulado, escuro.
Ele mancha o vestido de Hannah, que olha diretamente para mim. Seus olhos estão escurecidos de medo.
O pânico se instaura no lugar.
Os gritos aumentam conforme a tosse incontrolável atinge os convidados, que começam a correr em completo desespero.
O padre começa a fazer o sinal da cruz, mas é interrompido por um incômodo em sua garganta. Ele cai de joelhos, apertando o terço na palma da mão.
O pobre homem de Deus morre engasgado com o próprio sangue.
— Que porra é essa? — Leslie desvia de um convidado, que esbarra em uma das velas e se desespera quando um pequeno incêndio se inicia.
— Temos que sair daqui! — Vic diz rápido, tirando os saltos altos e indo até Hannah, que chacoalha Brian gritando em plenos pulmões.
O rapaz não se mexe mais.
— ! — Leslie me puxa pela mão, me afastando do fogo.
Tudo acontece tão rápido, é tão confuso entender o que estou vendo e processar que as pessoas se empilhando nos corredores de cadeiras estão todas mortas.
Ouço o choro de Hannah, os gritos desesperados dos convidados.
A tosse vem de todos os lados, o sangue mancha o chão de madeira, o medo se alastra junto com o fogo.
— ? — A voz rouca de parece alarmada, muito mais alta que o normal.
Ele tosse repetidas vezes e eu vou até ele.
Não entendo o que sinto.
Na verdade, não entendo porquê não consigo sentir nada.
O choro de Hannah diminui, ela levanta o rosto pálido de Brian e beija os lábios ensanguentados do homem.
— Eu aceito, Brian. Nós vamos ficar juntos — Hannah abraça o corpo dele com força, se recusando a sair de perto do fogo que já toma toda a decoração com sua chama potente.
— Nós temos que ir, Les… Temos que ir — diz Victoria, a tosse já bem avançada. Ela puxa a amiga pela mão, que ainda tenta levar Hannah consigo.
se desequilibra e eu o amparo, o deitando no chão e apoiando sua cabeça com minha coxa.
Seu sangue mancha meu vestido, minhas pernas. Está por toda parte.
É tão convidativo e estranhamente satisfatório ver todo aquele vermelho ocupar todo o resto.
— … — ergue sua mão gelada e trêmula, tocando minha bochecha. Ele enxuga uma lágrima e só então, percebo que estou chorando. — Eu amo você, . Eu amo — Sua respiração ruidosa é rápida e descompassada. Eu sei que não posso fazer nada por ele, mas ainda tento fazer com que ele pare de cuspir seu sangue.
Ele escorre por meus dedos, assim como sua vida.
Ouço o último suspiro ruidoso de e tomo algum tempo para compreender que ele está morto. Sua pele ainda é quente, seus olhos ainda brilham tanto.
Coloco minha mão sobre seu peito e não sinto seu coração batendo forte como batia quando estávamos juntos.
Procuro por Vic e Les, quando as encontro, percebo que sou a única ainda respirando.
Minha garganta dói como se eu estivesse gritando desde que todo o horror começou, mas não emiti som algum. Sinto um incômodo no peito, como se meu coração tivesse dobrado de tamanho e pesasse demais.
A estrutura de madeira do arco despedaça, em chamas, e o fogo se alastra por todos os lugares.
Não há saída.
Aos poucos, o silêncio vai se tornando sombrio e absoluto.
Meus pulmões ardem e toda a fumaça deixa difícil respirar.
Eu sabia.
Ela nunca me deixaria em paz.
Se contorcendo dentro de mim, uma risada involuntária escapa por meus lábios, fazendo meus ombros sacudirem. Eu tento contê-la, negando o sentimento de alívio que cresce dentro de mim.
Ele não me pertence.
Começo a tossir e nem a tosse intensa faz a risada satisfeita cessar.
Limpo os cantos da boca com as costas da mão, vendo meu sangue se misturar com o de .
Eu nem pude dizer a ele.
Tento respirar fundo e tudo o que sinto é o cheiro forte de alecrim.
— Maldita bruxa vingativa!
O som dos galhos secos que se quebram por onde passo ressoa em meus ouvidos e é quase uma bênção ter algo a mais em que pensar além do que estou prestes a fazer. Não estou preparada e esta é, de longe, a parte mais assustadora de fazer o que fazemos.
A lua cheia ilumina meus passos, trazendo claridade para o fardo que carrego. Segurar uma vida nas mãos é muito mais do que eu esperava fazer quando decidi seguir os passos de minha mentora.
Os gritos e clamores da mulher parindo dentro da humilde cabana me obrigam a encarar a dura realidade: eu serei responsável por trazer esta criança ao mundo. Eu.
Pronta ou não, tenho que fazer isso.
— Onde está a Faith? — A mulher geme as palavras, tamanha dor e pressão acontecendo de dentro para fora. — Eu confio na Faith. Onde ela está? — Minhas irmãs me olham em busca de respostas também, mas seu paradeiro é outra coisa na qual não quero pensar agora.
— Ela não está aqui. Eu estou — digo confiante, é só o que me resta. — Ela me ensinou tudo o que eu sei. Tem que ser suficiente — Sussurro a última parte, não quero alarmar a mulher ainda mais.
Hannah sorri enquanto seca a testa da mulher, me dizendo sem palavras o quanto confia em mim.
— Do que você precisa? — Leslie organiza uma pilha de trapos limpos sobre a cama improvisada para a futura mãe. Ergue as sobrancelhas, ansiosa por mais instruções.
— Esquente um pouco de água — digo rápido, trançando meus cabelos para trás de qualquer jeito. — Esquente também a lâmina da adaga, mas tenha cuidado. Não vá se queimar, como da última vez — Vejo a mulher rolar os olhos antes completar as tarefas que delego.
— Não estou gostando da cor dela... — Hannah inclina a cabeça para o lado, segurando a mão da mulher com cuidado.
— Isso é hora de julgar a aparência dela, criatura? — Victoria repreende, sorte delas que esta pobre camponesa está ocupada expelindo seu bebê enorme nesse exato momento e faz tanta força que mal ouve a si mesma gritando.
— Vai acabar logo, eu prometo — digo calma, tentando usar o mesmo tom aveludado que Faith costuma usar em seus rituais de nascimento.
Sinto a mente aguçar conforme me aproximo dela.
De tanto fugir da ideia de ser responsável por isso, acabo caindo em uma espiral que me leva a visualizar passo a passo do que tenho que fazer.
Ouço minhas irmãs cantarem, a camponesa gritar em sua dor indelével, o zumbido prático em meu ouvido, sussurrando meus movimentos conforme os faço.
É escorregadio, mas o menino em meu colo está seguro. Leslie me entrega a adaga e eu respiro fundo, sabendo como este momento é crucial.
— Faith vai ficar tão orgulhosa de você! — Hannah deixa escapar a expectativa imensa.
— Ainda não acabou — Interrompo seu próximo elogio, porque ainda tenho que fazer o corte e esta é a parte delicada.
— Anda, ! — Victoria estica o pescoço, tentando um vislumbre da criança calada.
Enrolo o menino recém-nascido em um ou dois trapos, o mantendo quente. Estico um pouco seu cordão umbilical e me posiciono de forma que só tenha de fazer isso uma única vez.
O silêncio dele me assusta, então eu o faço, sem pensar demais.
O corte está feito.
Enrolo o bebê e me levanto com ele, o balançando de um lado para o outro até que ele começa a chorar.
Assim como eu, minhas irmãs respiram profundamente aliviadas por ele ter nascido saudável.
— Oi — digo baixinho, vendo suas mãos e pés inquietos, necessitando de uma boa limpeza e mais importante ainda, do calor de sua mãe. — Todo seu.
Vejo Hannah se movimentar, usando um unguento para estancar o sangramento da mãe e diminuir o inchaço. Ela pode não estar sentindo agora, mas ao amanhecer, ela sentirá como se tivesse sido virada do avesso.
— Precisamos de mais unguento, os ingredientes estão quase acabando — Victoria lembra, mais uma vez, que nosso estoque está em baixa.
— Anda, Hannah! — Leslie apressa, todas as evidências de que estivemos aqui foram apagadas e estamos prontas para ir embora.
— Eu agradeço. Vocês salvaram a vida da minha esposa e meu primogênito nasceu saudável, graças a vocês. Eu gostaria de poder lhes dar mais, mas é só o que temos — diz o marido, que até então estava em pânico no canto da cabana, vigiando as trilhas em volta em busca de curiosos e pronto para afastá-los, se necessário.
— Você acaba de ter um filho, acho que precisa mais do que nós — Sinto as unhas longas de Victoria cutucarem minha costela, mas empurro gentilmente o punhado de moedas de ouro brilhando sob à luz de velas na mão do homem.
— Muito obrigado! — O homem se emociona, ainda hesitante em se aproximar e conhecer o próprio filho.
Eu quero ficar e ver a família criando laços, mas não podemos.
No caminho de volta para casa, sinto meu coração pesado e a conversa alta de minhas irmãs só me deixa mais apreensiva. Não somos um grupo de mulheres que deve ser visto por aí sem levantar perguntas, ainda mais tão tarde da noite.
— Só estou dizendo que entendo as razões dela, mas acho que deveríamos ter pego, pelo menos, algumas daquelas moedas. Digo, nós precisamos comer também! — Leslie resmunga, sem um pingo de delicadeza.
— Acho que teremos de ser criativas. De novo — Hannah tem um tipo peculiar de otimismo.
— Querem dar uma passada no monte? Tirar sarro da raiva daqueles homens — Leslie muda de humor, empolgada de repente.
— Nós temos que voltar para a cabana. A Faith pode ter voltado — A escuridão da noite não esconde o desânimo de minhas irmãs e tento não me deixar levar pela rebeldia delas.
— Vai ser rapidinho! Podemos ir pela margem do rio, dá pra escutá-los de lá — Ela volta a insistir.
— É hilário, você tem que admitir... — Victoria se refere ao ódio que eles sentem por mulheres como nós e como suas falas são baseadas no medo de parecerem absolutamente incompetentes e fracos quando ficam doentes e tudo o que precisam, na maioria dos casos, é de um bom banho e unguento em abundância. Saber disso nos faz sermos hereges, inferiores à eles aos seus olhos.
O que minhas irmãs acham hilário, faz os pelos de minha nuca arrepiarem e minhas entranhas tremerem. Todo esse ódio infundado é perigoso.
— E se a Faith já tiver voltado? — Insisto também, mas não quero admitir que estou com medo e tudo o que quero é deitar em minha própria cama e encarar o céu estrelado até que, finalmente, amanheça.
— Aonde ela foi, afinal? — Victoria para de andar, apoiando as mãos na cintura e me olhando com cara de quem não dará mais um passo a menos que tenha respostas.
— Negociar — digo sem vontade. Não me orgulho da missão de Faith, mas reconheço suas razões e sei melhor do que ninguém que ela não tinha mais escolha.
— Com aqueles homens? — Hannah pula diante de mim, os olhos brilhando e se enchendo de lágrimas. É sempre muito difícil não pensar o pior quando nossa mentora decide fechar um acordo com senhores abastados. Significa vender uma terra que não nos pertence e fazer vista grossa com toda a destruição em massa que acontece na floresta.
Nenhuma de nós concorda com isso, mas os negócios não vão bem e como Leslie disse, nós precisamos comer também.
— Antes ela do que nós — diz seca, amarga. É Victoria quem repete o lema de Faith, que nunca permitiria que uma de nós tomasse seu lugar nessa “negociação”.
— Soa maldoso quando não é ela quem diz — Hannah encara os próprios pés, decepcionada.
— É maldoso de qualquer jeito — Leslie se irrita.
— Venha, vamos voltar pela margem do rio — Pego Hannah pela mão e a guio pelo desvio até lá, seu sorriso de boca fechada já vale a tentativa.
Não precisamos nos aproximar demais para ouvir os gritos mais animados do que nunca. Os homens urram e gritam uns sobre os outros, se gabando pela mais nova captura.
— Isso nunca é bom... — Victoria puxa as barras das saias do vestido para cima, marchando em direção à luz dourada que crepita no cume do monte.
— Não devemos ir! — Tento interferir, impedir que minhas irmãs se enfiem em mais problemas.
— E se pudermos ajudar? — Leslie dá de ombros, acompanhando Victoria e Hannah a segue, me deixando para trás.
— Nós deveríamos ir para casa! — Seguro o impulso de espernear, afinal, a época em que essa atitude poderia ser eficaz já passou há tanto tempo.
A cada passo que dou, sinto o gosto amargo de um mau pressentimento. O peso em meu peito parece triplicar e eu me sinto tão triste conforme subo o monte.
Ao chegarmos em uma distância segura e nos camuflar atrás da vegetação densa, vemos uma verdadeira festa acontecer em volta de uma pira. Há uma mulher amarrada ali.
Faith.
Virada em nossa direção, ela é guiada por nossos gritos mudos. Faith olha fundo na minha alma, ignorando a tocha acesa que se aproxima da palha seca amontoada por todo seu corpo.
— Não! — Victoria grita, tentando se levantar e correr até eles. Leslie a impede, tentando fazê-la ficar em silêncio.
As chamas começam a consumir sua pele, rasgar sua identidade e apagar tudo o que ela foi. Mas Faith sorri, me olhando através do ardor.
Meu corpo para de funcionar, só por um instante. Estou perdendo tudo o que conheço e quem poderia me ensinar tão mais.
O choro contido de minhas irmãs é o que me faz voltar a funcionar. A dor começa primeiro.
Faith sibila algo que não entendo, e então, seu grito de horror é ouvido por um bom tempo.
Até que para. E os deles recomeçam.
Salém, 2023
— Brutal! — Comenta Leslie, concentrada em seu desenho animado violento.
Os saltos finos da bota de cano longo de Hannah tilintam contra o chão de madeira envelhecida que range a cada passo que ela dá em sua agonia e apreensão.
A casa velha parece sussurrar por socorro, ameaçando ir abaixo a qualquer momento. Mas o que podemos fazer? O aluguel dividido por quatro é quase uma pechincha. Ter o teto caindo sobre nossas cabeças é um preço a mais que pagamos conscientemente, pela liberdade de termos quartos separados.
— Eles não atendem. O que faremos? — Seus olhos claros estão escuros de preocupação. Planejar e executar uma festa de Halloween sozinha não tem feito bem à cabeça da mulher, que coloca seus dons como promoter em xeque.
— Joga uns salgadinhos em um bowl, deixe algumas garrafas de bebida sobre a mesa e a festa está feita — Leslie mastiga seu salgadinho, oferecendo um pouco a Hannah, que não recebe bem a sugestão.
— Isso pode te matar — Devolve sem vontade, voltando a discar ferozmente o número do buffet escolhido.
— Se estressar com coisas minúsculas também, e veja, você tem feito isso pelos últimos 15 anos. Quem vai morrer primeiro entre nós? — Leslie coloca mais um triângulo coberto de pó sabor queijo na boca, mastigando tão devagar que irrita Victoria, que mal chega no cômodo e já dá meia volta, se excluindo da longa discussão que virá a seguir.
— Que papo mais fúnebre — digo com desdém, mas na verdade, só estou cansada. Essa coisa de Halloween para todo lado tem mexido com meus pesadelos.
Quando estou dormindo, não consigo descansar completamente e isso tem acabado comigo.
— É Halloween, tudo o que é fúnebre está na moda — Leslie parece ponderar, mas só está limpando os dentes com a língua.
— O que faremos sobre as crianças? — Hannah volta a se desesperar, um suspiro atarefado e muito perdido faz minha amiga olhar diretamente pra mim. Se tem alguém em quem Hannah confia as tarefas que não pode completar, esta pessoa sou eu.
— Eu posso atender à porta. Não é como se eu estivesse super animada para essa festa mesmo — Dou de ombros, elas sabem bem que sou contra a maldita festa desde o primeiro segundo, mas decidiram seguir em frente assim mesmo. Além do mais, se a casa vier a desabar, ficar perto da porta é a melhor estratégia.
— Você é um amor — Hannah me joga um beijo no ar, ao qual eu esquivo e finjo jogar pela janela com meu taco de beisebol invisível. — Vai se fantasiar, não é? — Ela ergue uma das sobrancelhas perfeitas, os olhos azuis penetrantes e uma ligeira tremedeira nos lábios me faz acreditar que é má ideia recusar.
— Preciso mesmo?
— Deve.
— Alguém pode me emprestar uma fantasia? — Ouço a risada rouca de Victoria aumentando e ela desce as escadas, segurando uma porção de tecidos brilhosos, espalhafatosos e minúsculos.
— Eu tenho tudo o que quiser ser: enfermeira safada, diabinha safada, policial safada, viking safada, princesa safada e Freddy Krueger — Ela conta nos dedos, me fazendo rejeitar cada uma das opções firmemente.
— Freddy Krueger? — Leslie lambe os resquícios de queijo dos dedos, interessada.
— É, tem uma sainha detonada. Vai ficar lindo na — Ela olha pra mim, cheia de expectativas.
— Eu aceito as luvas e o chapéu. A saia nós podemos deixar para outra ocasião mais apropriada, tipo, um enterro no verão — Vic ri de leve, balançando a cabeça de um lado para o outro.
Atlética e astuta, Vic parece subir e descer as escadas em pouquíssimos passos, trazendo consigo um saquinho com a fantasia. A roupa em si mais se parece com um biquíni quando se separa dos acessórios.
A camisa de manga longa e calça jeans ligeiramente queimados que o vilão dos pesadelos usa nos filmes foram substituídos por uma camiseta que cobre metade do seio e uma saia, que se resume à um fiapo na cintura, outro no quadril e umas tirinhas com strass nas pontas.
— O maior item é o chapéu? — Pergunto perplexa.
— E vocês? Do que vão se fantasiar? — Hannah abafa o alto falante do celular, me ignorando completamente.
— Eu serei um jogador de futebol zumbi — diz Leslie, um sorriso satisfeito adorna seus lábios alaranjados pelo salgadinho.
— Eu serei uma bruxa...sexy — Vic reitera, fazendo poses sensuais em frente ao espelho da sala.
— Bruxas são sexy sem esforço — diz Leslie, os olhos perdidos em lembranças muito pessoais.
— Até as que tem verrugas no nariz e dedos atrofiados de tanta maldade? — Vic ergue as sobrancelhas, brincalhona.
— Esta é uma representação antiquada, criada por homens medrosos e sem senso de estilo. Mas eu até que gosto das botas com fivelas — Les dá de ombros e eu concordo em silêncio. Bruxas são sexy nos dias de hoje e, algo me diz, que elas sempre foram.
— Certo… — Hannah responde ao telefone e à nós ao mesmo tempo. Ela dá um riso social e desliga o telefone.
— E você? — Vic cruza os braços na frente do corpo, uma sobrancelha erguida em uma leve irritação que é bastante comum e até combina com ela.
— Vocês sabem, Sininho — Hannah fala sorridente, provavelmente pensando em seu Peter Pan.
— Previsível — Vic rola os olhos. — Vocês sabem que a Sininho tem o mesmo tamanho do pau do Peter, não é? Uma transa entre eles seria catastrófica — Aponta ácida, provocando uma reação também bastante típica de Hannah: grunhir e marchar para o próximo cômodo em genuína negação.
— Acho que ela não gostou muito da imagem que você pintou… — Leslie comenta divertida, abrindo uma lata de refrigerante diet.
— Por que não? Uma transa catastrófica é tudo o que eu queria agora. Sabe o que a chance de morrer transando pode fazer com o ser humano? — Vic sorri enquanto se imagina ser rasgada ao meio em nome do prazer. Sua expressão gráfica me faz sentir suja imediatamente.
— Nunca soube porquê somos amigas — Leslie se levanta do banco giratório completamente enojada, se jogando no sofá, aos meus pés.
— Nós moramos juntas. Ou virávamos amigas e resolvíamos nossas diferenças com humor ou, eu te mataria durante o sono na primeira semana — completa Vic, convicta.
— Hmm… — Leslie se põe a pensar. — Acho que a única que emite algum sinal de ameaça aqui é a . Ela nunca diz nada e está sempre observando. Ela conhece nossa agenda, é a única que lembra as nossas senhas de banco… — Ela me olha com certo receio e eu devolvo a encarada com mistério no olhar.
— Acho que ela não tem energia o suficiente pra matar alguém… — Vic comenta, debruçando o corpo sobre o encosto do sofá. — Como ela faria para se livrar dos corpos? — As duas confabulam contra mim.
— Eu estou bem aqui! — Reclamo ofendida, fazendo minhas amigas rirem.
— Sabe quem mais vai estar bem aqui na festa de amanhã à noite? — Vic e suas sobrancelhas grossas e sugestivas se aproximam muito de meu rosto, me deixando desconfortável. Ela acaricia o acolchoado do sofá com tanta malícia.
— Não quero saber — digo quase cantarolando, me levanto de repente e vejo as duas garotas terem dificuldades para equilibrar o sofá.
— Assume, ! Você fica com as pernas moles quando ele está por perto — Leslie ri esganiçado, o que me faria rir também se não fosse a mais cruel e pura verdade.
Elas estão falando de , um cartunista independente, gato e meio mal-humorado com quem estudamos durante o ensino médio e, assim como nós, decidiu se formar por aqui também. Mesmo tendo estudado juntos por boa parte da vida, ele nunca teve coragem de me dizer sequer uma palavra. Bem, eu também nunca consegui libertar o “Oi” engasgado em minha garganta nas aulas de química.
Acontece que a primeira vez que ele me notou, eu surtei. desenha para sobreviver e em uma dessas tardes em que qualquer lugar com grama seca e limpa é o melhor lugar para descansar no campus, eu fui musa de um de seus desenhos. Mas não levei a gentileza como um elogio nos primeiros instantes.
Ele demonstrou sua camaradagem quando ultrapassou o ultraje e me convidou para tomar um café. Eu aceitei e ele me deu o tal desenho.
Um homem de poucas palavras, mas explicou que precisava desenhar algo diferente para variar e eu imaginei que, com o trabalho, uma habilidade divertida pode mesmo ficar maçante com o tempo. Uma breve mudança de ares pode reacender a chama da paixão pelo ofício e eu me senti estranhamente especial por isso. Mesmo sendo algo tão simples como um conjunto de rabiscos perfeitos de minha expressão concentrada com o conteúdo da próxima prova.
Mas depois do café, só o acaso foi responsável por nossos encontros. E, com a sorte que tenho, não aconteceu muitas vezes.
— Nós nos falamos umas duas vezes… — digo o óbvio, sentindo as bochechas esquentarem e o estômago parecer que está doente, mas são só as borboletas lutando por espaço.
— Vocês se conhecem desde sempre! — Leslie imita meu tom, exagerando meus trejeitos.
— Isso não é verdade. O estudou em casa por alguns anos na adolescência. É por isso que ele é tão estranho — Vic aponta, sorrindo de orelha a orelha. — Acho que vocês dois super combinam!
— Eu não gosto dele — minto, pois não tenho alternativa sob os olhares curiosos me avaliando.
— , seus olhos estão brilhando agora mesmo — Vic, sem paciência, faz questão de frisar.
— Que fofinha! — Leslie bate palmas animadas, me fazendo sentir patética.
— Essa comitiva nível líder de torcida acerca de garotos era maneira há alguns anos, agora é só bastante constrangedora — Olho diretamente para Leslie, que bufa entediada.
Cruzo os braços, meio de saco cheio da conversa toda.
Essa tem sido uma semana intensa.
Como se não bastasse ter passado por todos os anos de faculdade estudando biologia como uma lunática, no último dia, onde todo o esforço se simplificaria em uma fotografia alegre com o diploma em minhas mãos, meu cérebro entra em pane.
As garotas tentam me convencer de que foi o nervosismo que me fez parar de andar enquanto subia os degraus do palco montado no centro esportivo da cidade e encarar o céu com uma expressão “serena, bizarra e nostálgica”, segundo Leslie, diante de todos os outros formandos. Inclusive .
A sensação de estar vendo um filme horrível em 3D nunca mais me abandonou desde aquele dia.
— Teve uma terceira vez… — É Vic quem me lembra, toda vez.
Diante de minha pane cerebral, foi o primeiro que teve a ideia de me levar para o hospital e ficou lá comigo enquanto os vídeos de minha maior gafe circulavam pelos grupos de alunos na internet.
— Essa não conta. A estava fora si, babando e tal… — Leslie balança a cabeça, enojada.
— Não é verdade. Eu não cheguei a babar — Me defendo, talvez pela quinta vez na semana. — Eu… Adormeci por alguns minutos — Hannah volta para a sala e ajeita as almofadas, olhando feio para as meninas, que nunca mantém sua faxina intacta por muito tempo.
— Foram muitos minutos, … — Leslie insiste.
— Não o suficiente pra babar… — Reitero, chateada.
— Para de pegar no pé dela! — Vic tem no rosto a expressão de alguém que dirá algo que não vai me agradar. — Se for pra babar, ela vai fazer isso no…
— Tenho que sair. Não temos doces — Corro para a porta da casa, calço os tênis, visto o casaco e agarro minha mochila. Tudo em velocidade máxima, fazendo bastante barulho para não ouvir o restante da frase.
Saio de casa sabendo que serei o assunto da vez, mas sei que elas o fariam mesmo com a minha presença.
— Ela fica tão estranha quando falamos daquilo — Leslie comenta baixo, mas ainda consigo ouvir.
— Aquilo tudo foi estranho. Ela nem parecia estar… lá — É Vic quem grunhe em agonia.
— Sejam mais sensíveis! A estava tão estressada com a formatura que o cérebro dela desligou. Parem de falar disso, ou ela vai querer cancelar a festa de vez! — Hannah me defende, eu acho.
Ah, o Halloween em Salém! Tudo é supostamente assustador, asqueroso, propositalmente bagunçado. Mas acho tudo tão piegas.
Não nasci aqui como minhas amigas, me mudei quando tinha doze anos e elas decidiram me acolher e clamar a mim como uma das suas. Então, toda a diversão proporcionada pelo Halloween da cidade mais assustadora do país, nunca me encheu os olhos.
Mesmo estando no processo de me desassociar de toda a vergonha que passei na frente de meus colegas, acho a ideia de nos fantasiarmos e sermos outras pessoas por uma noite muito atrativa. Além de ser a única forma de ter contato com outras pessoas, concordar com a festa significa deixar minhas amigas felizes. Isso sim é importante pra mim.
Por ter sido adotada já quase adolescente, minha adaptação nesta cidade foi difícil por ser considerada estranha e muito calada, mas só até conhecer Leslie, Victoria e Hannah, e perceber que eu era a mais normal delas. Com o tempo, aprendi a amá-las como partes muito diferentes de mim.
A amizade entre nós quatro é forte o suficiente para superar as dezenas de brigas que temos por dia, pelos motivos mais banais e aleatórios possíveis. É nosso lugar seguro para dizer e sentir qualquer coisa e ter onde se esconder quando algo ruim acontece. E quase sempre acontece algo ruim; como péssimos encontros, brigas com os pais, o peso da responsabilidade constantemente aumentando e sufocando nossas ideias.
Bem, algo ruim aconteceu comigo há algumas semanas atrás e do jeito delas, minhas amigas têm sido o porto seguro do qual preciso.
Ser parte de um quarteto não amaciou as coisas quando a implicância dos outros alunos foi maior que a minha vontade de seguir de cabeça baixa e não desagradar ninguém.
Assim como nunca pude me sentir exatamente confortável nesta cidade, ela também não parece se encher de alegria por minha causa. Nós coexistimos. E eu não falo sobre os prédios e calçadas, vendas e esquinas escuras. Falo das pessoas.
Sempre com seus olhares julgadores e cheios de perguntas cujas respostas não lhe pertencem.
Ainda assim, sem que eu possa explicar, elas têm algum efeito sobre mim, afinal. A senhora Robertson, do outro lado da rua com seu conhecido sorriso condescendente é a prova disso.
Uma vez, eu a cumprimentei enquanto passava por ela e me virei logo depois, dando de cara com a expressão de puro desgosto da senhora polida, de língua afiada.
Mas algo mais forte que eu me faz tirar a mão do bolso e acenar de volta, como minha mãe gostaria que eu fizesse.
Ao passar pela porta da loja de doces, ouço a risada fantasmagórica e os uivos de um lobo já cansado de uivar para todo e cada cliente que entrou ali na última semana.
Algumas crianças correm e gritam assustadas umas com as outras, escondendo os rostos atrás de máscaras sangrentas e outras, com máscaras de personagens de filmes de super-herói os combatem com poderes que, basicamente, envolvem lasers nos dedos.
Eu passo um bom tempo as observando antes de me ocorrer que isso é um pouco estranho, então, decido fazer minhas compras e sair o quanto antes do alcance dos olhos alheios.
— Acho que é ela, sim — Ouço a voz grave, meio abobada e risonha de um conhecido de outro conhecido de minhas amigas. Respiro fundo e penso em qualquer boa resposta para qualquer idiotice que ele possa dizer sobre o meu… episódio.
— Ei, , né? — O mais alto finge seriedade, se aproximando de mim com os músculos rígidos e um olhar que ele acredita ser sensual.
— Ahm… Não — Pego uma máscara qualquer da prateleira mais baixa e a coloco em meu rosto. — Eu sou um gnomo — O encaro por trás da máscara e o vejo trocar um olhar com o outro, que não faço ideia de quem seja, mas transmite a mesma energia babaca de um adulto semi funcional.
— Você é engraçada. Poderia ter colocado essa no seu discurso, você sabe, se não tivesse se engasgado — Ele ri de um jeito tão patético que realmente não me resta alternativa além de sair ilesa da suposta tentativa de ofensa.
O encaro por algum tempo, me livrando da máscara e reparando que anos se passaram e Joshua ficou parado no tempo. Na sétima série, para ser mais exata.
Sinto um misto de pena com uma conformidade tão acolhedora e previsível. Acho que ele percebe quando decide socar o braço de seu amigo e continuar a zanzar pela loja.
— Eu nem era a oradora da classe… — Me ocorre quando os dois babacas se afastam, mas não vale a pena acrescentar.
Encho uma cesta com doces sortidos e tento caminhar de cabeça baixa pela loja até o caixa, não só pela vergonha, mas pelo medo de esbarrar com uma criança e quebrar, sem querer, um dente de leite.
Não posso arcar com mais esse azar. Se é que isso existe.
— ?
Com todas as lojas da cidade disponíveis, cheias de doçuras e travessuras, minha preguiça indomável me faz escolher a loja mais próxima.
A loja da qual o pai de é dono.
— Ei… ! — Forço uma risada que sai mal calculada, soando alta demais. O que me parece como mais um prego em meu caixão social, o faz sorrir de um jeito doce. Aliviado.
— Você está bem? — Ele dá uma breve olhada para o caminho livre onde, daqui há pouco, terá uma fila de mães e suas crianças barulhentas.
Eu penso em agilizar as coisas, colocando tudo da cesta sobre a pequena esteira. Ele não a faz girar, acumulando os sacos de balas e bombons uns sobre os outros.
Não é conversa fiada, é uma conversa real.
— Estou bem. Obrigada por perguntar e por… Bem, você sabe, se tivesse sido algum problema sério mesmo, você teria salvado minha vida — ergue uma das sobrancelhas, uma surpresa muito comedida. Quase esganada em sua tentativa de disfarçar.
— Qualquer um poderia ter feito isso — Ele fica sem jeito, passa o leitor de código de barras muito lentamente na primeira leva de balas.
— Não depois de um vídeo… — Eu rio, encabulada também.
— Malditos millennials — Reclama de um jeito rabugento e engraçado.
— Carregamos o fardo de sermos insuportáveis, mas a mudança está nas nossas mãos — Completo irônica, o fazendo rir com mais força.
— Não era pra você ter ouvido isso — bagunça os cabelos, eu olho o relógio em meu pulso. Não por querer que a conversa acabe, na verdade, essa tem sido a conversa mais longa e leve que tivemos desde o pequeno surto com o desenho.
— Bem, você disse e eu estou prestando atenção em tudo o que você diz — Arregalo os olhos diante de minha confissão. É tão desconfortável ser honesta assim, sem querer.
— Obrigado — Parece uma pergunta então, eu assinto concordando em silêncio.
— Eu estava querendo te perguntar uma coisa… — Troco o peso do corpo de uma perna para outra, me sentindo tão ridícula quanto a pergunta que farei a seguir em um tom de voz muito baixo, torcendo para ele me escutar de primeira. — Eu… babei?
parece igualmente confuso e desconcertado. Ele disfarça tudo com uma leve coçada na ponta do nariz, vejo seu pomo de adão subir e descer e, então, ele balança a cabeça de um lado para o outro.
— Era isso? — Ele ri nervoso, meio incrédulo com minha falta de atitude e curiosidade bizarras.
— Minhas amigas ficam pegando no meu pé e eu precisava de provas... — Tento explicar, mas as palavras vão perdendo força conforme eu as digo. parece meio irritado agora.
É isso. Eu não o conheço o suficiente e mesmo tentando bastante, parece um mistério pra mim.
Não é como se ele morresse de amores por mim, mas também não tenho certeza se ele me odeia.
Um mistério.
— Você está querendo contrair diabetes? — tenta, mudando a direção de seus olhos profundamente verdes de mim para os sacos de balas.
— Não são pra mim… São para as crianças — Ele assente devagar. Agora, mesmo enrolando bastante, já computou minha compra, já fez a soma de tudo e todas as coisas estão empacotadas. Eu seguro meu cartão com tanta força que o plástico parece prestes a ceder.
— Então… É só isso? — Ele ajeita as sacolas de papel, as balançando de um lado para o outro para que os sacos de balas caibam melhor. A irritação que vi antes em seus olhos se dissipou e o que vejo agora é um rapaz esperançoso.
— Não — Tento processar as palavras antes de dizê-las, mas começo a me sentir um empecilho enorme para o funcionamento do estabelecimento conforme uma fila se forma atrás de mim. — Minhas amigas vão dar uma festa amanhã, que tal aparecer? — Que tal aparecer? Que tal aparecer? Jura?
— Ahm... — ajeita melhor a postura, sorrindo de lado. — Sua amiga, a de cabelo curto, ela tinha me convidado, mas eu não sabia se deveria ir… — Ele dá de ombros.
— Vic? Ela te convidou? — A pontada de insegurança me faz querer correr, mesmo que ele ainda tenha meu cartão em sua máquina.
— É, ela — Ele umedece os lábios com a ponta da língua, eu assinto devagar. — Eu vou. Mas que fique claro, você me deve uma por quase salvar a sua vida — A fila começa a aumentar, mas todos estão distraídos demais com os itens miúdos que ficam próximos ao caixa, então eu supero a vozinha em minha cabeça me dizendo pra sair do caminho e fico para flertar.
— Talvez eu deva quase colocar a sua vida em risco para ficarmos quites — Brinco sentindo meus ombros relaxados, apesar do peso das sacolas.
— Eu vou adorar — se debruça sobre o caixa, encarando meus olhos profundamente, tão perto que consigo sentir seu perfume amadeirado e ficar completamente atraída por sua órbita.
— Eu… te vejo amanhã, então — Dou um passo longo para trás, tentando evitar a sensação. Acabo esbarrando em um expositor redondo de chocolates. — Desculpe por isso — Ajeito o expositor no lugar e saio da loja antes de causar mais danos permanentes à minha imagem.
Ótimo, agora sabe que voltei ao meu estado normal de esquisitice.
Acho que tudo bem.
Mais tarde, tento ignorar outra discussão inútil entre Vic e Leslie. Eu poderia estar no sossego do meu quarto, mas escolhi assistir à mais um episódio de “Buffy, a Caçadora de Vampiros” na companhia de minhas amigas. Vez ou outra acaba sendo divertido.
— Podemos dar continuidade ao episódio? — Sugiro cansada, mesmo sabendo que minha voz sem o mesmo entusiasmo para discussão será ignorada de imediato.
— Um minuto — Leslie gesticula com o controle remoto, avidamente. — Você está fora de si!
— Eu te pedi ajuda com essa lista de reprodução há semanas. Ainda era setembro quando você disse “ah, essa música é legal, deveríamos colocar pra tocar na nossa festa de Halloween!”, eu duvido que sequer se lembre da música que você escolheu! — Vic cruza os braços na frente do corpo, irritada com a procrastinação de Leslie.
— A culpa é sua, sabe que eu não lido bem com responsabilidades — Les se defende rapidamente, apontando o controle remoto para todos os lados, chegando a mudar o canal da TV sem perceber.
— Podemos ouvir qualquer coisa — Apresento outra opção, mas como sempre, minhas sugestões simplistas são consideradas ofensas por minhas amigas. — Ou, podemos discutir mais sobre a lista de reprodução…
— Sorte de vocês que eu sou eficiente. Esse lugar não funcionaria sem a minha eficiência! — Vic se senta na poltrona, ao lado do sofá maior. Ela suspira e encara Leslie, até que a outra pare de espumar de raiva por ter sido acusada de cometer seu crime diário.
— Eficiente ou pé no saco? — Coço os olhos entediada, a briga que parecia amornar à caminho de seu fim, tem mais uma fagulha acesa pelo comentário de Les e a gritaria recomeça.
É quando Hannah e seu namorado, Brian, chegam com seus sorrisos e suspiros apaixonados.
— Meninas, temos visita em casa. Se comportem — Hannah sorri polida, mas seus olhos passam a verdadeira mensagem: Brian pensa que somos normais, continuem o teatro.
— Estou acostumado com a Les e a Vic sempre brigando — Ele comenta risonho, me cumprimentando com um aceno breve que eu devolvo com um mini sorriso de boca fechada.
Brian representa tudo o que me parece errado no mundo: herdeiro de uma mega multinacional, rico até na forma como respira e se comporta. Ele até que é legal, tem aquele ar de nobre bondoso que faz suas doações periodicamente, sempre bem vestido e com os olhos perdidos em seus próprios pensamentos, menos quando ele olha para Hannah. Há paixão, vontade, eles inspiram a aventura que é se apaixonar e decidir seguir a vida juntos.
Ainda assim, o cara sustenta uma expressão culpada de quem carrega um fardo multimilionário.
Há a possibilidade de acontecer um pedido de casamento, já que Brian tem dado indícios que querer levar o namoro de um ano para o próximo nível e Hannah mal pode esperar pela oportunidade de dizer “sim”.
Os feriados do final do ano são os preferidos do casal, sendo assim, Hannah espera que o pedido aconteça em breve. Por isso a necessidade de tudo correr perfeitamente bem na festa de amanhã, Brian pode se ajoelhar e dizer as palavras a qualquer momento.
— Estávamos falando da festa — Vic ajeita os fios curtos de seus cabelos em um penteado despojado. — Não deveríamos ter detalhes para acertar na noite anterior, mas é bom saber que estamos todas envolvidas — Ela olha direto para Leslie, que discretamente lhe mostra o dedo do meio.
— A festa vai ser perfeita! A cereja em cima do bolo da formatura, todos da cidade virão! — Hannah se anima e joga os braços no pescoço de Brian, que sorri sem jeito.
— É seguro convidar tanta gente? — Brian faz a pergunta que tenho evitado para não soar negativa. A reação de Hannah é hilária, se fosse qualquer uma de nós, ela viria com um discurso enorme sobre sermos capazes de abrigar somente quem importar de verdade e o restante das pessoas convidadas que se virem. Mas ela sorri abertamente, o olhando com compaixão e paciência.
— A ideia é a festa ser exclusiva mesmo, amorzinho. Nós convidamos todas aquelas pessoas, mas elas sabem que algumas delas não poderão entrar. O mistério por trás de toda a diversão vai fazer com que essa seja a festa de Halloween mais incrível de todos os tempos. Vamos entrar para a história! — A ambição em seus olhos faz com que o rapaz se anime também.
— Tem razão, a massa quer exatamente o que não pode ter. Genial! — Assisto Hannah jogar os longos cachos louros para trás do ombro, satisfeita com o elogio.
— Aprendi com o melhor — Ela pisca um dos olhos e fico feliz por não ser a única olhando a cena com certas ressalvas.
— Estou feliz por ser amiga de vocês quando dominarem o mundo juntos — Vic diz o que todas nós pensamos e eles riem modestos, assustadores.
— Eu posso vender meu posto de distribuir doces? — Penso em voz alta, momentaneamente envolvida pela ideia de obter lucro a qualquer custo.
— Tão em cima da hora? — Brian meneia um pouco a cabeça, pensando no assunto. — Depende, você pode segurar por algumas horas e vender para o mais desesperado — Ele pisca um dos olhos, me fazendo rir com a possibilidade.
— Irei avaliar muito bem essa ideia — Tento me manter séria, vendo um ligeiro desespero franzir o cenho de Hannah.
— Não se atreva! Você não quer ficar na festa, distribuir os doces não tem nada a ver com isso — A última palavra sai do tom calmo que Hannah força na frente do namorado.
— Eu não posso ter mudado de ideia? — Leslie abre a boca, uma expectativa se mistura com a constatação.
— O vem! — Ela dispara, energizada pela ideia de me ver flertando miseravelmente. É parte das muitas coisas que entretém a mulher.
— Quer a sainha detonada agora? — Vic se debruça no braço da poltrona, sorrindo abertamente para mim.
— Não… — digo irritada, mas acabo mudando de ideia. — Sim — Vejo minha amiga saltitar até o quarto e voltar de lá com o restante da fantasia.
— Deve ser quentinho nos sonhos alheios — digo incerta, erguendo o pedaço de tecido retalhado que não vai cobrir nada do que deve ser coberto como uma peça de vestuário. Meus olhos incrédulos buscam por Vic, que junta o polegar com o indicador em um sinal de “ok”.
— Você vai ficar tão gostosa que vai inspirar o a criar uma saga de quadrinhos de sacanagem — Vic tem a melhor das intenções em me assegurar de que vou ficar bem na fantasia inapropriada para receber crianças famintas por açúcar.
— Eu compraria! — Leslie assente muito veemente, me deixando ainda mais constrangida.
— Eu também… — Brian deixa escapar o pensamento, arregalando os olhos de Hannah.
— Meia—calça grossa! — Ela se apressa e retira os retalhos de meus dedos, os jogando sobre meu colo.
— Boa! — Agradeço sorridente, talvez fique mesmo bonito e de bom gosto, afinal.
— Estraga prazeres… — Cantarola Vic.
— E o Carl, vai dar as caras por aqui amanhã? — Hannah lança a pergunta com força contra Victoria, que rola os olhos, mas eu sei bem que é só para tirar o homem da cabeça. Como passar um slide, virar uma página. Ela tenta.
— Aquele traidor desgraçado? Espero que esteja morto em uma vala para indigentes — diz dura, impassível.
— Uau! Isso sim é amor verdadeiro! — Leslie provoca, devorando o restante da pipoca que fizemos para o episódio, que agora nem parece importar mais.
— Cala a boca! — Vic ordena, recebendo um riso esganiçado como resposta.
— Estou indo dormir, pessoal… — Levanto do sofá, ajeitando o pijama e desviando de uma briga de almofadas que se inicia entre Victoria e Leslie, mulheres adultas, formadas em turismo e educação física, respectivamente. Com honrarias, o orgulho de seus pais.
— Sua vaca! Você acertou meu rosto! — Vic resmunga, urrando em seguida e lançando outra almofada em Leslie.
— Boa noite, . — Brian responde educado e eu assinto novamente, nunca sinto que estou vestida adequadamente para termos uma conversa completa.
Recebo o beijo na bochecha de Hannah e subo as escadas segurando a fantasia em minhas mãos.
— Não visto isso nem morta...
Deito a cabeça no travesseiro e luto contra a vontade aguda, bem no fundo de minha alma, de sorrir e criar expectativas para o dia seguinte.
Não é exatamente a melhor ideia de um encontro decente, a música estará alta e a casa estará cheia, mas não consigo deixar de pensar que, talvez, essas circunstâncias nos faça ficar mais próximos. Fisicamente próximos. Então, começo a pensar em formas de me impedir de desviar desse contato, ou esbarrar em alguém na tentativa incontrolável de correr.
Minhas amigas nunca me ouvirão dizer em voz alta, mas gosto sim de .
Gosto de como me sinto quando observo suas pálpebras se mexerem devagar e revelarem as duas esmeraldas brilhantes, tão intensos e curiosos.
Eu não poderia dizer a ninguém, mas quero que ele me olhe sempre. O tempo todo. E isso é incrível, porque normalmente fico desejando ser invisível para o resto mundo.
Gosto de como nos conhecemos. Mesmo morando na mesma cidade por tantos anos, nunca tivemos a chance de apertarmos as mãos e conversarmos sobre qualquer assunto que fosse.
Quando voltou ao colégio, eu já estava saturada pelo bullying e não estava mais tão disposta a esticar meu grupo de amigos.
Fizemos algumas aulas juntos, mas nunca houve razão para nos falarmos. Até o dia em que o peguei me desenhando no campus.
Imaginar que ele buscou por inspiração para desenhar e decidiu passar alguns minutos olhando pra mim e imortalizar aquele momento com tanta dedicação e habilidade, me deixa secretamente arrepiada. É claro que essa concepção veio depois, com a explicação dele. Mesmo assim, ele poderia ter desenhado qualquer folha insignificante que cruzasse seu caminho naquele dia, mas ele escolheu desenhar a mim.
O desenho está dobrado sobre a mesa de cabeceira, me encarando de volta e me fazendo sentir uma completa idiota por ter brigado com ele antes e mais ainda por analisar demais toda essa situação agora.
Me forço a desviar os olhos de seus traços no papel, encarando o teto e tentando acalmar minha mente.
Assisto as sombras dançando no teto de meu quarto, os galhos secos da árvore na calçada criam ali formas diferentes conforme as luzes dos carros lá fora passam por ela. Em alguns momentos, a sombra se parece com uma assustadora mão, sempre se aproximando da cama.
Fecho os olhos e respiro fundo, sentindo o sono caminhar lentamente em minha direção.
Minhas mãos estão amarradas e meus ouvidos são preenchidos por cantos em tons diferentes de medo. São orações, clamores, desespero em níveis arrebatadores.
Mexo um pouco a cabeça e a venda feita de trapos se afrouxa, caindo em meu pescoço.
O celeiro abandonado, cujo teto instável range conforme minhas irmãs empurram as paredes com todas as forças de seus punhos, está repleto de rostos conhecidos, mas busco por três deles com todo o meu coração.
Eu preciso que elas ainda estejam vivas.
Devagar e com dificuldade, me ponho sentada, depois apoio um de meus joelhos no chão, sentindo a terra úmida entrar por entre meus dedos.
Meu vestido está sujo de sangue, mas de alguma forma, sei que não é meu.
Eu lutei. Vou continuar lutando. É uma decisão que trago comigo desde que vi minha mentora encarar sua morte com olhos destemidos e um sorriso vingativo nos lábios um ano atrás.
Enquanto queimava até a morte, ela me deu o último e o maior dos ensinamentos: chegará uma hora para a qual todas nós devemos nos preparar, a hora da vingança.
Eu a sinto se aproximar.
Caminho atordoada pela gritaria e cega pelo meu próprio objetivo. O cheiro de fumaça me deixa tonta e eu sinto que não suportarei muito mais tempo neste Inferno criado pelo homem.
— ! — Ouço o grito sufocado e, como um cachorro do mato, corro em direção ao som e ao chegar no canto mais escuro do celeiro, encontro minhas outras três partes encolhidas e assustadas.
É por elas que preciso continuar lutando, então, me ponho a pensar.
Somos muitas. Uma fuga completa se tornaria em uma nova época de caça, e nós não somos cervos, apesar de estarmos aguardando para o abate em um celeiro.
Não posso deixar que isso aconteça com elas.
Esfrego a corda que prende minhas mãos contra a coluna descascada do celeiro. Me apresso ao ouvir os xingamentos se engrossarem na parte da frente da estrutura, uma luz muito forte os acompanha e eu sinto o cheiro de queimado se intensificar.
Não temos tempo.
Com os punhos ensanguentados, mas livres, me ponho de joelhos novamente, cavando a terra com minhas unhas e arrancando as pedras da fundação com a ajuda de minhas irmãs.
O buraco que fazemos é estreito, mal passam nossas pernas.
Os gritos aumentam, as chamas se espalham por toda a parte e o calor me deixa fraca, mas não posso parar.
Hannah sai primeiro, puxando Leslie e Victoria. Ao perceber que elas estão livres, respiro fundo, aspirando a fumaça no celeiro escuro.
Mergulho na terra, sentindo meu peito ficar molhado e logo uma rajada de vento muito forte parecer levar consigo o medo.
Por um instante, me sinto aliviada por estar viva, mas os gritos agonizantes de minhas irmãs que não conseguiram escapar ressoam em minha alma, rasgando meu peito.
— Temos que ir! — Victoria agarra uma porção de minha saia, me puxando consigo para longe do celeiro em chamas.
— Precisamos de ajuda! — Hannah se desespera, sua respiração está entrecortada e seus olhos inundados.
— Não temos a quem recorrer — Leslie retoma o fôlego. Revoltada com a saia de seu vestido desde cedo, ela o rasga, desmontando as camadas de tecido e pisando sobre eles.
— Eles querem nos matar e você acredita que a melhor ideia é sair por aí correndo somente com a roupa de baixo? — Victoria encara a irmã sem piedade, como se pudesse transformá-la ali mesmo, em algo horrendo e viscoso.
Caminhamos durante toda a noite, buscando as sombras para nos deixar seguras e correndo contra o tempo e os cães farejadores de caçadores sedentos por nosso sangue.
No alto da montanha, montamos um pequeno acampamento. Sem nenhuma fogueira por perto, nos aninhamos umas contra as outras, buscando nos aquecer.
— Aposto que queria aquelas camadas de tecido agora, não é mesmo, Leslie? — provoca Victoria, tirando um riso curto e incerto de nossa irmã. Mesmo amedrontada, ela se recusa a demonstrar alguma tristeza.
Nos abraçamos mais, a luz da lua nos ilumina e por alguns instantes, fico feliz por só isso me bastar. Estamos vivas. Ainda estamos vivas.
Ainda temos uma chance para continuar fugindo e lutando por nossas vidas.
A manhã ameaça chegar e sou a primeira a acordar. O som do rio ao longe parece tranquilo, os pássaros e insetos fazem sua sinfonia, mas não tenho tempo para apreciar seus talentos.
Com a luz do sol, somos alvos fáceis e não estamos tão longe assim do perigo.
É hora de termos um bom plano.
— Leslie, acorde! — Balanço minha irmã, que acorda assustada. Trato de tranquilizá-la como posso e então, acordamos as outras.
Juntas, nos preparamos para deixar a província, o quanto antes.
Caminhamos enfileiradas e em silêncio, seguimos o rio para fora da província e o plano era chegarmos até Lynn, onde um primo distante de Leslie nos emprestaria uma carroça e poderíamos seguir para Revere, onde viveríamos com novas identidades e hábitos mais diurnos.
Na estrada para Lynn, Hannah encontra a carroça de seu amado, um comerciante bem-sucedido que nunca se importou com os boatos sobre ela, pois, com seu trabalho, ele nunca estava por perto para ouvi-los. Sorridente, ela corre até a carroça na esperança de que ele tenha água e comida, um pouco de compaixão e coragem para nos ajudar.
A carroça está bem abastecida, mas o escolhido de Hannah não pode ser encontrado em lugar algum. Preocupada que ele tenha se encrencado por sua causa, Hannah começa a chamar seu nome.
— Hannah! Vão nos descobrir! — Victoria implora que ela pare, mas Hannah cede tarde demais.
Do meio da mata, silenciosamente, uma flecha atravessa as folhas de um arbusto e acerta o manto que cobre a carroça. Somente há poucos centímetros da cabeça dela.
— Este foi um aviso — A voz trêmula e masculina é ouvida do meio da vegetação vasta. — Fique longe de mim — Ele se afasta da árvore em que se esconde, empunhando uma adaga pequena em sua mão trêmula.
Eu reconheço a flecha.
Junto com o comerciante, outros rostos conhecidos surgem do meio da natureza, seus olhos refletem o ódio e a destruição.
Tudo o que ouço antes de uma batalha severa se iniciar, é o trincar dos corações de minhas irmãs.
Uma emboscada nos aguardava no caminho, não só com a intenção de nos capturar como animais, mas, um plano secreto para nos dilacerar antes de enfrentarmos nossos destinos.
Victoria, Leslie, Hannah e eu fomos traídas pela ideia de estarmos apaixonadas.
Capturadas, humilhadas e derrotadas por quem mais confiavam, vejo que minhas irmãs se deram como vencidas.
Mas eu não.
No cavalo atrás de nós, o caçador faz a nossa escolta.
Olho fundo em seus olhos e busco por algum resquício do calor que existia ali. O conforto do amor que compartilhamos em absoluto segredo durante as madrugadas, sob o testemunho da lua na floresta ou à luz de velas em algum celeiro abandonado.
Eu o amei e o caçador me retribuiu com a pior das traições.
O jeito como ele evita me olhar nos olhos agora me faz acreditar que é essa a sua real faceta. A de um homem covarde, solitário, amargurado.
Todo aquele calor não passava do reflexo das velas.
Ele nunca me amou de verdade.
A raiva de ser enganada assim me faz afundar as unhas nas palmas de minhas mãos. Tão fundo que, mesmo lascadas e quebradas pela fuga, ainda estão fortes o suficiente para lacerar a pele e libertar meu sangue junto com ideias que nunca achei que teria.
O vermelho colore minha visão, chegando a me cegar.
— Que uma morte lenta, horrenda e sem misericórdia encontre o coração daquele que cruzar nossos passos. Todo homem traidor...
— Aproveitador… — Hannah completa.
— Mentiroso — Uma lágrima escorre pela bochecha avermelhada de Victoria.
— Que assim seja — Leslie corta a palma da mão no arame solto da cela onde fomos colocadas como animais. Hannah morde a própria língua, Victoria já sangra pela violência em que foi capturada.
— Que assim seja! — Repetimos em uníssono.
Nossas amarras são eficazes, não podemos segurar as mãos uma da outra, mas sinto nossos corações baterem alinhados em profunda desilusão. Toda nossa intenção está jurada a este último pedido.
Com cordas amarradas em nossos pescoços, posso sentir o gosto do fim. Olho para minhas irmãs e sei com todo meu coração que esta não será a última vez que verei os olhos sonhadores de Hannah buscarem o horizonte procurando por amor, ou ouvirei a voz displicente de Victoria usar dos xingamentos mais baixos e constrangedores para despertar também o pior e o melhor em Leslie.
Eu sei que não é a última vez. Não pode ser.
Encaro a madeira abaixo de mim, tão distante de meus pés.
Fico grata por não dar a eles o vislumbre de meu arrependimento, sem derramar uma única lágrima.
Encaro os olhos verdes do homem que achei que amava. Esse sim, eu não quero ver nunca mais.
Com o sol queimando o alto de minha cabeça, volto a encarar a madeira puída e imagino nascer dela, um pequeno ramo de alecrim. Talvez pensar na minha coisa favorita enquanto morro acalme meu coração cheio de feridas.
Respiro fundo e minha imaginação se desfaz com o terror da realidade. O chão se desfaz também, deixando de existir abaixo de mim.
Eu posso adormecer agora, mas sei que minha vingança voltará a despertar.
— Caralho! — Escapa de minha boca conforme me sento bruscamente na tentativa de sair fisicamente do pesadelo mais longo, estranho, aleatório e lúcido que já tive em toda a minha vida.
Assustada, verifico minhas mãos e braços, vendo que o único dano em minhas unhas é proveniente da minha falta de ânimo para trocar o esmalte descascado. — Puta que pariu! — Empurro o cobertor, continuando minha auto perícia. Não há marcas ou machucados em meu corpo, somente suor e a sensação estranha de ter tido a mente invadida por tempo demais.
Estou exausta, rouca. Tento soltar um pigarro, mas minha garganta dói muito, tanto por dentro, como por fora. Me levanto apressada, querendo que os pesadelos fiquem na cama e me deixem em paz, mas ao cruzar o olhar com o reflexo no espelho, o ar some de meus pulmões. Uma marca avermelhada e bem pronunciada em meu pescoço se assemelha ao formato de uma corda.
Eu quero gritar, mas nada sai.
Caminho para fora do quarto atordoada, buscando por qualquer pessoa que possa me dizer que ainda estou dormindo e que tudo isso ainda faz parte do pesadelo.
— O que é isso no seu pescoço? — Les fala alto, chamando a atenção de Vic para o machucado, que agora coça como os diabos.
— Não sabia que mulheres também curtiam asfixia erótica — Vic se aproxima, afasta meu cabelo e toda a expressão brincalhona some. — O que você fez?
— Nada! Eu tive um pesadelo em que éramos bruxas, no auge da inquisição — Enquanto minhas amigas decidem entre rir e se preocupar com minha saúde mental, começo a repassar o pesadelo e percebo que a sensação é exatamente a mesma que senti no dia da formatura.
Eu não me lembro com o que sonhei quando estive “por fora”, mas a sensação é exatamente a mesma.
Tento me lembrar de alguns segundos antes, enquanto subia as escadas prestes a encarar meus professores e receber meu diploma. A memória que tenho não parece minha, propriamente dita.
É o mesmo lugar, são os mesmos pés. Mas subimos por escadas diferentes, para fins diferentes.
— Esta cidade pega pesado nessa coisa de Halloween, você deve ter se impressionado com alguma coisa e… — Leslie tenta dar sentido ao meu desespero, mas meu pescoço dói como se tivesse sido quebrado. É real.
— Toca nisso, Leslie… Não parece ser fruto da imaginação dela — Vic se irrita, puxando as mãos geladas de Leslie para tocar meu pescoço avariado por um sonho.
— Você deve estar zoando. É claro que isso é maquiagem! — Ela tenta puxar minha pele e eu grito em agonia.
— Que gritaria é essa? — Hannah reclama, os cabelos bagunçados e a expressão de poucos amigos logo cedo é parte de nosso cotidiano.
— foi atacada. Estamos tentando decidir se foi um fantasma ou…
— Uma memória — digo assustada, sem me importar com minhas amigas rondando meu pescoço.
— Tá sumindo… — Leslie inclina a cabeça para o lado, um pouco assustada, mas ela é muito descolada pra demonstrar.
— Que bizarro… — Vic toca mais de leve, interessada no que está vendo.
— Que brincadeira é essa? — Hannah me empurra, irritada.
— Não é brincadeira nenhuma! — Estapeio suas mãos sobre mim, me afastando completamente de minhas amigas. — O que está rolando?
— Bruxaria? — Leslie ri do próprio palpite, meio descrente da coisa toda.
— Isso é ridículo! — Hannah comenta, ainda me olhando com desconfiança.
— A não sabe nada do passado dela. E se ela for descendente de bruxas? — Vic se anima, achando a situação empolgante.
— Como é possível descender de alguém que morreu há séculos? — Leslie levanta a possibilidade, ainda risonha, ainda cética.
— Eu queria que vocês tivessem visto o que eu vi. Sentido o que senti — Encaro minhas mãos, as lembranças de vê-las ensanguentadas e sujas de terra molhada me confundem um pouco. A sensação era tão real.
— , respira fundo. Foi só um sonho — Vic fala de modo condescendente, mas seus olhos são carinhosos quando ela se aproxima. A mão quente se apoia em meu ombro e o carinho se estende até minha mão, onde ela entrelaça nossos dedos em cumplicidade.
O toque produz uma carga elétrica que causa pequenos choques em minha mão. Ao levantar meus olhos e buscar os de minha amiga, ela encara o chão, com uma expressão desconectada do momento.
— Vic? — Chamo devagar, percebendo que ela não solta minha mão, pelo contrário, a segura com muita força.
— Vocês estão brincando, não é? — Hannah pula entre nós, estalando os dedos na frente dos olhos de Vic, tentando chamar sua atenção de todo jeito.
— Vocês estão muito envolvidas nessa coisa de doçuras ou travessuras… — Leslie reclama, toda a pompa bacana e descolada vai se desfazendo aos poucos, deixando seu cenho franzido em preocupação.
— Victoria! — Hannah chama com força, chacoalhando os ombros da amiga.
Lentamente, Vic inclina a cabeça para o lado e seus olhos opacos se arregalam enquanto ela cai no chão.
— QUE PORRA É ESSA? — Leslie grita.
— O que você fez? — Hannah me olha com medo e eu não sei o que responder.
— Vocês ouviram isso? — O estalo que o pescoço de Vic produziu ainda ecoa em meus ouvidos. Tão grotesco e assustador. Eu ainda segurava a mão dela quando sua temperatura mudou completamente. Ao toque, Vic estava gelada como um cadáver.
Com um suspiro desesperado por ar, um grito esganiçado e agudo lutando para escapar por entre seus dentes, Vic acorda. E não é como se ela estivesse feliz por ter voltado.
— Caralho, puta que pariu! Caralho! Que porra foi essa? — Vic passa as mãos pelo próprio pescoço, se certificando de que ainda está inteiro e no lugar.
— O que você viu? — Me ajoelho diante dela, amedrontada demais por descobrir que, talvez, não tenha sido só um sonho.
— Eu vi tudo o que eles fizeram — diz chorosa, os olhos dela agora se parecem com uma constelação completa. — O que nós fizemos… — Ela encara as próprias mãos, como eu fiz há pouco. — Nós matamos aqueles homens?
— Espera. O quê? Quem vocês mataram? — Leslie se aproxima, fechando o círculo.
— Eu não matei ninguém! — Hannah se defende rapidamente.
— Você empalou dois homens com um ancinho — Vic explica, fazendo Leslie rir e Hannah cobrir a boca com a mão, completamente escandalizada.
— O que é um ancinho? — Les pergunta baixo, me fazendo dar de ombros.
— EU NÃO SEI, TÁ LEGAL? EU ESTOU ASSUSTADA E MEU PESCOÇO DÓI! — Vic grita de novo, abraçando as próprias pernas em um nervosismo que nunca vi antes.
— Ei, . Deixa eu segurar a sua mão também? — Leslie não tem um pingo de seriedade em seu corpo, o desespero de Vic e minha expressão profundamente perdida não parecem incomodá-la.
— Eu não sei o que fiz… — Escondo as palmas com a camiseta. Não sei se devo compartilhar tanta dor e sofrimento com minhas amigas, se soubesse que ela ficaria aterrorizada desse jeito, não teria deixado Vic se aproximar tanto.
— Ah, pelo amor de Deus! — Victoria se irrita, segura firme nas mãos de Leslie e Hannah, uma de cada lado. Elas me encaram, as mãos estendidas para mim e os olhos cheios de curiosidade, empolgação.
— Vocês não estão com medo? Eu estou tão apavorada. Eu não quero dormir nunca mais! — Elas me olham, ignorando meu receio.
— Lembra quando eu tive aquela candidíase duradoura e você comprou um segundo kit de pomada pra mim, porque eu fiquei com vergonha do farmacêutico? — Vic lembra, absolutamente séria sobre o assunto. — Eu te disse que te ajudaria com qualquer coisa. Isso conclui fantasmas, demônios, bruxas, lobisomens, zumbis… Qualquer coisa! Se você está com problemas, deixa a gente te ajudar — Ela insiste, cutucando as meninas para que elas estiquem mais suas mãos.
— Foi mesmo um avanço em nossa amizade — Comento ao relembrar que nem sabia o que estava comprando, pedi a pomada pelo nome e congelei no lugar quando ele perguntou “vaginal?”.
— Anda, … Eu tô curiosa! — Les se empolga, mexendo o corpo no lugar e se sentando com as plantas dos pés se tocando.
— Estamos juntas. Vamos resolver isso — Hannah assegura, me dando um sorriso pequeno e cheio de medo.
Nós damos as mãos, em um coincidente círculo. Sentimos os choques.
Apagamos em seguida.
— ! — Ouço meu nome ecoar por entre as árvores. Um grito impaciente é filtrado pela natureza, até soar como um sussurro alarmado em meus ouvidos.
Desvio meus olhos dos galhos grossos da árvore que me acolhe do sol forte do meio dia tão lentamente, é quase como se estivesse hipnotizada pelo contraste magnífico entre o verde delas e o azul do céu sem nuvens. Me distraí por tanto tempo que não raparei que a hora se esvaía por entre meus dedos como terra seca. — Anda, você vai nos fazer chegar atrasadas! — Victoria ajeita as rédeas do cavalo, fazendo o pobre animal relinchar incomodado.
Com um longo suspiro, ergo meu corpo do chão. Ajeito as saias do vestido e limpo a poeira delas, descendo o pequeno monte e entrando novamente em nossa cabana.
O lugar tem cheiro de flores, ervas e todo tipo de temperos. As prateleiras cobertas de uma poeira fina, abriga loções, unguentos e elixires que produzimos com qualidade e trocamos por outros produtos e ferramentas na feira dos comerciantes.
Nossas fragrâncias são conhecidas como inesquecíveis e apaixonantes, além de nossos remédios que são eficazes e, mesmo em segredo, ajudou muita gente nesta pequena e preconceituosa província.
Pego alguns frascos, na esperança de trocá-los por algumas moedas de ouro. Olho em volta e a saudade que sinto de Faith é refletida em cada objeto espalhado pela cabana.
Foi ela quem me incentivou a ir adiante e transformar minhas ideias criativas em algo palpável, até útil.
Minhas construções nos ajudam com a extração de óleos essenciais de plantas, pulverização de caules e raízes. Além de facilitarem todo o serviço, eu adoro os sons que o maquinário faz e os cheiros que ficam em nossa cabana por causa dele.
Sinto que poderia passar o resto de meus dias buscando na natureza por combinações que ajudem outras pessoas a se sentirem bem. Sonho com o dia em que nossos negócios serão legítimos como a venda de insumos básicos para sobrevivência.
Toda mercadoria que oferecemos tem muita qualidade e, devo dizer que temos até certa fama.
Apesar de eficazes, não é como se nossos parceiros de negócios tivessem por nós o mesmo respeito que mostram aos nossos produtos.
Estamos indo fazer negócios agora mesmo.
Meu desânimo vem do cansaço das ofensas que estou prestes a receber, dos olhares tortos e dos cochichos cheios de maldade.
— Ânimo, sinto que hoje será um bom dia! — Hannah abre espaço na carroça e eu me sento ao seu lado, no fundo, junto com a mercadoria.
Enquanto nos afastamos, meus olhos se direcionam para a árvore grossa e mais antiga que qualquer outra na floresta.
Desde que Faith foi morta, fico pensando em como será quando chegar a minha hora de encarar a morte nos olhos. Um pensamento insistente e corriqueiro me toma de assalto, me fazendo fantasiar em passar a eternidade descansando sob a sombra daquela árvore.
A calmaria daquele lugar me traria a paz que não tive em vida, eu faria parte de sua melodia quando o vento passasse por entre suas brechas.
Seria a mais bela das canções.
Esticamos um tecido bonito no chão enlameado em um espaço bem pequeno na feira. Sem chamar muita atenção, deixamos os produtos dispostos para que todos vejam com clareza do que cada um se trata. Cosméticos de um lado, remédios de outro.
Um casal tímido se aproxima olhando por cima dos ombros. É Hannah quem os aborda, com um sorriso amigável e o ar polido ao falar.
O homem reclama de dores nas costas, Hannah imediatamente lhe mostra as opções variadas de recursos naturais aos quais ele pode recorrer.
Ela pega uma das pomadas de cânfora, um terpeno extraído de uma árvore na Ásia, mas que aprendi a cultivar graças à Faith, logo após a mulher me trazer para este lugar quando eu ainda era pequena, me apresentando à irmandade de curandeiras da província de Massachusetts. Hannah ensina à mulher uma massagem concentrada, usando a pomada.
É engraçado ver o homem ruborizar com o toque, vejo Leslie e Victoria fazerem comentários maliciosos e não entendo como elas podem sequer pensar em algo assim. Não quando todos que nos cercam nos olham com tanto desdém.
Após a massagem com amostra gratuita do produto, o homem volta a olhar por cima dos ombros, e balança a cabeça dizendo que não.
— Nesse caso, talvez você, minha bela freguesa, queira um produto revolucionário — Hannah usa sua voz de mistério, se aproximando dos cosméticos. — Esta maravilha extraída de uma flor encontrada nos cantos mais obscuros da floresta, promete lábios de cor intensa e hidratação por horas. Também pode ser usado como um recurso quando a fonte de rubor está seca — Hannah pisca um dos olhos, fazendo a garota sorrir sem jeito e olhar de canto de olho para seu acompanhante neste dia bonito de feira.
— Temos que ir — diz ele, a pegando pelo braço e puxando a moça com certa força. Hannah joga o cosmético na direção dela, que o pega ainda no ar. Seu sorriso agradecido se fecha rapidamente, quando ela se vira e tenta acompanhar o homem apressado.
— Ei! — Reclamo, vendo que eles não pagaram por nada daquilo.
— Vocês viram os olhos dela? Ela queria tanto… — Hannah junta as mãos sobre o peito, suspirando alegremente.
— Acho que você deveria deixar a parte obscura da floresta em segredo das próximas vezes. Sabe que essa gente se assusta com o que não conhecem — digo baixo, aconselhando minha irmã a ser menos honesta em suas vendas futuras.
— Se eles soubessem que essa flor é banhada pela água da mais bela cachoeira, não teriam medo de andar pela floresta até lá — complementa, dando de ombros.
— Eca! — Leslie rola os olhos. — Já pensou no cheiro de urina e bebida destilada que ficariam impregnados no lugar? É bom que eles fiquem bem longe, eu tomo banho pelada ali — aponta com sua imensa sabedoria.
Reforçando o ponto de Leslie, um homem completamente bêbado passa por cima do tecido, quebrando e espalhando alguns de nossos produtos mais caros.
— Cuidado, meu senhor! — Corro para tentar salvar alguns dos produtos e ele cospe em minhas mãos. Enojada, levanto os olhos para o homem, que emula o mesmo desdém de todos à nossa volta. Mas tem algo a mais fervilhando em seus olhos, uma coragem líquida e inconveniente que é disparada rápido demais.
— Calada, bruxa suja! — Limpo as mãos nas laterais do vestido e me levanto com um pedaço de vidro de uma das garrafas que quebraram entre os dedos.
— O que foi que você disse? — De canto de olho, vejo Victoria e Leslie se levantarem e começarem a recolher as nossas coisas. Hannah tenta conversar, convencer o bêbado de que eu só estou chateada pela mercadoria estragada.
— Vocês, bruxas, estão sujando a nossa província familiar! Vão embora, bruxas imundas! — Ele grita em plenos pulmões. Minha vontade é de cortar seu pescoço e calá-lo desta forma, eu chego a fantasiar com seu corpo caído no chão, esvaziando. Mas respiro fundo, sentindo o ar queimar todo o caminho por onde passa.
Tenho medo desse sentimento, ele me acompanha em silêncio e temo o que fará quando resolver se pronunciar.
Solto o pedaço de vidro no chão e ajudo minhas irmãs a terminar de abastecer nossa carroça. Estamos indo para casa. Com ainda menos do que saímos.
— Vocês estão bem? — Um comerciante itinerante desce de seu cavalo, correndo em direção a Hannah. Ela prende a respiração, eu posso ver que sua fonte de rubor se encheu novamente.
Eles cruzaram olhares pela estrada uma única vez e, desde então, o homem alto e forte povoa os sonhos dela.
— Sim, estamos de saída — Ela chega a se curvar, indecisa sobre como prosseguir. Ele sorri, revelando na mão escondida atrás do corpo uma rosa ainda por desabrochar.
— Isso é uma boa coisa. Significa que ela ainda tem uma chance — diz galante, colocando a flor entre os dedos de Hannah. Ela a cheira e o encara com os olhos azulados cheios de amor.
— Eu contarei se ela sobreviver — Ele assente devagar.
— Vou esperar pelas boas notícias… — Ele se afasta ainda sorrindo e ela gira nos calcanhares prestes a pular de alegria.
— Ainda não! — Victoria alerta, chamando a garota para andar graciosamente até nós. E ela o faz. Observamos o comerciante subir de volta no cavalo, carregando uma grande e pomposa carroça consigo. — Agora vire-se… — Victoria toca sua cintura e Hannah faz exatamente o que ela diz. — Acene devagar.
Ele suspira e mexe em seu chapéu elegante bem discretamente.
Quando ele vira a esquina, Hannah solta um grito animado e nós rimos de sua paixão imediata.
Mais tarde, energizada pela possibilidade de vê-lo de novo, Hannah nos convence a ir até uma taverna nos limites da província.
Se você está só de passagem pelos arredores, provavelmente vai querer pernoitar por lá, regado à boa bebida e o famoso cozido de veado.
Nos arrumamos com nossos melhores vestidos, usamos as melhores fragrâncias para perfumar os colos fartos e apertados pelo espartilho.
Estamos prontas.
O som de um violino malicioso e divertido pode ser ouvido antes mesmo de entrarmos e quando entramos, parece que uma película para outro mundo se rompe. Somos muito bem recebidas, pelas razões erradas, é claro. Os homens que bebem aqui não estão vendo bruxas, mas mulheres.
Com os olhos certeiros, Hannah encontra seu comerciante e sem nenhuma dúvida, vai até ele para conversarem sobre negócios.
Minhas outras irmãs logo estão entretidas também, Leslie dança com as saias levantadas, agitando uma pequena plateia, que, imediatamente, faz uma fileira de canecas de cerveja para ela, na tentativa de deixá-la completamente embriagada. Eles só não sabem que Leslie tem a resistência alcoólica de um carpinteiro solitário. Victoria se senta no balcão do bar, conversando diretamente com o dono do lugar, que parece gostar de seus truques com as cartas de baralho, tanto quanto gosta que ela se incline ao falar com ele.
Os olhares sobre mim me fazem sentir desconfortável, como se estivesse nua e exposta para aqueles olhares nada discretos. Dou meia volta e decido esperar do lado de fora.
Nada como a floresta e a lua para equilibrar uma mente tão perturbada.
Caminho com destreza, pareço conhecer esta terra mesmo que não tenha passado por aqui antes. Mas todo o meu redor parece me reconhecer e me acolher imediatamente.
Encontro uma clareira e me sento no chão, absorvendo a energia da noite e me sentindo bela, amada, desejada e segura.
Ao longe, escuto passos quebrando galhos e assim como a floresta, me incomodo com o intruso interrompendo o despir de minha alma.
Vou ao seu encontro.
Não sei o quero encontrar, mas quero muito. E quando o vejo, não controlo meus impulsos.
Para minha sorte, ele também não.
Não sei seu nome, não sei de onde ele vem, não sei nem se é real. Mas me entrego sob a luz do luar e sou possuída pela primeira vez com minha melhor amiga e amante de testemunha.
Não conheço sua voz, ou o som do seu riso, mas sei que seu gemido arrepia meus poros e que suas mãos são fortes e tão ágeis que me fazem arfar e me contorcer embaixo dele, sentindo coisas que não sabia que poderia sentir.
Não vi a cor de seus olhos, mas sei que eles brilham e incendeiam minha pele por onde passam.
— Eu vi sua silhueta desenhada nas estrelas. Segui o rastro do teu cheiro, até finalmente te encontrar — diz a voz grave, bem perto de minha orelha mordiscando o lóbulo.
— Estive esperando por você — digo sincera, desorientada pelo desejo e desperta pela verdade.
Somos feitos um para o outro.
Gemo mais alto, afundando meus dedos na terra, aspirando seu cheiro, delirando em pura luxúria.
Eu não sabia, nem poderia imaginar. Mas se soubesse, talvez teria corrido o risco mesmo assim.
Nada como a presa se apaixonando por seu caçador.
Acordo com a boca seca, o coração estremecido, batendo forte dentro do peito.
Um xingamento confuso se prende em minha garganta, apesar do medo e do incômodo latente por estar emprestando minha mente sem concordar exatamente com esta invasão, sinto outro tipo de incômodo esquentar minhas bochechas.
Estou molhada.
Uma excitação estranha me faz suar frio.
A culpa é minha.
— Ai meu Deus! — Hannah acorda antes das outras, tenta se afastar dos corpos desmaiados das amigas e me encara com olhos arregalados. — O que foi isso? Quem era aquele cara? Por que eu sinto que traí o Brian? — Ela dispara seus questionamentos e eu ainda estou lidando com o fato de minhas coxas estarem arrepiadas e meus mamilos entumescidos a ponto de doerem.
— Eu odeio minha mente agora, pensar em qualquer outra coisa diferente disso não é seguro — Hannah me lança um olhar desconfiado e começa a tentar acordar as meninas.
— Jesus Cristo! — Leslie estapeia o ar em volta de si, gritando desesperada.
— O que foi? Você viu algo ruim? — Vou até ela, preocupada.
— Sim! — Les me lança um olhar desesperado. — Eu estava prestes a pagar um boquete! Meu Deus, que pesadelo horrível! — Les cobre o rosto, arrepiada em agonia. Eu escondo um riso com as duas mãos e olho diretamente para Hannah, que ainda está indecisa sobre rir ou se preocupar com sua suposta traição.
— Se aconteceu há séculos atrás, não conta, né? Tipo, literalmente, séculos? — Ela ajuda Vic a se sentar, fazendo a garota olhá-la como se tivesse bebido uma fileira de oito shots de tequila e balançado a cabeça ao som de heavy metal. De novo.
— Chupar pau é um arrependimento que atravessa vidas, aparentemente. Traição também deve ser! — Les abraça as pernas, balançando o corpo para frente e para trás.
— Defina “traição”… — Hannah busca pelas minúcias de sua visão para justificar sua realidade.
— , sua safada! A culpa é sua! — Vic se irrita, ameaçando levantar, mas se sente tão mal que, para minha sorte, tudo o que ela consegue fazer é se sentar no sofá e segurar a própria cabeça com as duas mãos. — Safada, pegou o caçador e colocou a gente em perigo!
— Eu não fiz nada! Foi há séculos atrás! Espera… O que você viu? — Me defendo, vendo Vic bufar irritada.
— Exatamente! — Hannah reitera, mas sei quais são suas motivações aqui. — Coisas feitas séculos atrás não contam!
— Então… O que isso significa? — Leslie pergunta, ela coça os olhos e faz uma careta permanente de puro nojo.
— Nós transamos e fomos mortas por isso? — Hannah abraça as pernas também, nos olhando com uma expressão tristonha.
— Não, a transou e nós fomos mortas por isso — Victoria aponta pra mim.
— É sério, o que você viu, exatamente? — Vic rola os olhos, impaciente.
— Você fugindo pra ficar com ele de madrugada. O dono do bar me contou que ele é um caçador de bruxas… Como pôde? — Vic cruza os braços, me fazendo sentir ainda mais culpada.
— Eu não sabia! — Antes de entrar em uma briga sem sentido, respiro fundo e fecho os olhos por alguns segundos. — Não faz sentido apontar dedos agora. Precisamos entender o que está rolando e resolver isso — Hannah concorda, veemente.
— Podemos deixar essa experiência bizarra pra lá? — Ela sugere, recebendo um pouco do tratamento que costuma ser direcionado a mim.
— Então, nós somos reencarnações dessas bruxas e… temos que matar pessoas agora? — Leslie levanta, ainda um pouco zonza, mas conseguindo se equilibrar até a cozinha.
— O quê?! Não! Eu não vou matar mais ninguém — Hannah engatinha até o sofá, remoendo as próprias memórias.
— Ninguém vai matar ou morrer! — Tento encontrar uma terceira alternativa.
Leslie joga garrafas d’água em nossas direções, na vez de Vic, ela não se mexe pra pegar e a garrafa a acerta bem no seio.
— Qual é o seu problema? — Les pergunta, vendo a garota massagear a área atingida.
— Eu não sei, achei que tivesse poderes telecinéticos, sei lá… Estou tão confusa e exausta. Parece que passaram dias em poucos segundos — Ela abre a garrafa dando um gole como se a água pudesse limpar seu interior das visões de uma vida passada muito violenta.
— Que horas são? — Hannah se levanta em um pulo. — NÃO! — Ela corre para abrir as cortinas, que não chegaram a ser tocadas já que acordamos e entramos em um portal para o passado logo pela manhã. O céu alaranjado de fim de tarde no horizonte faz o queixo da mulher se abrir dramaticamente.
Essa aventura durou o dia inteiro.
— Caralho, a festa! — Les bate a mão na testa, mas se arrepende imediatamente.
— Nós temos que cancelar a festa — digo o óbvio e Vic meneia com a cabeça.
— Não dá tempo! — Hannah começa a correr de um lado para o outro, reorganizando o lugar para receber os convidados que chegarão em pouquíssimo tempo. — Nós vamos nos arrumar, dar essa festa e resolver isso amanhã.
— Nós fizemos um pacto de sangue pedindo para que todos os homens traidores, mentirosos e aproveitadores morram sem misericórdia, de forma horrenda e lentamente. Sabe quantos desses vêm hoje? — Leslie aponta, com razão.
— Boa, ! — Hannah me mostra o polegar virado para baixo, me fazendo rolar os olhos.
— Eu não fiz nada! — Me defendo bravamente.
— Mas fica implícito que são todos os homens que cruzarem nossos caminhos, tipo, o Carl? — Vic sorri maldosa.
— E o Brian… — Hannah suspira cheia de temor.
— E o — digo sentindo um vazio enorme no peito. Pensar em algo acontecendo com ele me deixa triste de forma avassaladora.
— Espera, então, isso significa que eu estou livre da maldição? — Leslie parece fazer algum tipo de conta matemática em sua cabeça.
— Eu… Acho que… Sim? — Hannah olha para mim e eu me abstenho de opinar.
— É uma maldição. Podemos quebrar uma maldição, certo? — Vic inclina a cabeça para o lado, com uma expressão descrente.
— Eu vou ligar para minha taróloga — Hannah corre escada acima, rumo ao seu quarto.
— O que vamos fazer? — Vic pergunta diretamente para mim.
— Vamos lá, cultura pop. Ilumine meus caminhos… — Leslie passa a mão por cima de sua coleção de DVD’s e fecha os olhos, fazendo chacota de nossa situação.
— Vidas estão em jogo Les, não temos tempo para maratonar “Supernatural” — Leslie ergue um dedo em minha direção, me pedindo para esperar.
— É isso! — Ela se levanta, segurando consigo a capa de alguma de suas temporadas preferidas. — Precisamos queimar algo delas. Nosso. Delas. Eu nem sei mais — Leslie sugere, fazendo Vic rolar tanto os olhos que tenho medo de que eles se desloquem e cause mais horror a este Halloween.
— Eu não vou queimar nada meu… — Victoria é a primeira a se recusar a fazer o tal ritual.
— Leslie, podemos, por favor, levar isso a sério? — Peço chateada e minha amiga crispa os lábios, devolvendo o DVD para seu lugar de origem.
— E então? — Vic pergunta, assim que Hannah volta para a sala.
— Ela disse algumas coisas em uma língua estranha e desligou. Acho que temos que resolver isso sozinhas — Hannah suspira, derrotada. — Eu vou começar a me arrumar para a festa e vou torcer para que nada ruim aconteça. Vocês podem se juntar a mim e ignorar essa coisa toda — Ela divide seu plano e gira nos calcanhares, sumindo corredor à dentro.
— Acho que ela tem razão. Não temos intenção de matar ninguém, então… Acho que vamos ficar bem — Leslie vê minha ausência de resposta como incentivo, parece ponderar por um instante, mas decide subir as escadas para começar a se arrumar.
— Eu preciso resolver uma coisinha… — Vic diz de um jeito muito peculiar, deixando uma pulga atrás de minha orelha.
Me sinto sufocada e mesmo que falte pouco tempo para a festa começar, eu saio de casa em busca de algum sossego.
Preciso de ar fresco, de vento bagunçando meus cabelos e o som dos grilos ao longe para me concentrar na pesquisa estranha que faço e tentar encontrar qualquer coisa que me dê alguma pista sobre o que está acontecendo e, principalmente, como parar isso.
— Estou começando a achar que me convidou para uma festa onde você não vai estar — Levanto os olhos da tela do computador e vejo as botas, a calça acinzentada e propositalmente gasta em alguns lugares, um coldre, o colete de couro marrom e a camisa dobrada até os cotovelos. Cruzando seu peito, uma tira de couro prende sua aljava nas costas e eu consigo ver as penas nas pontas de suas flechas.
— … Você é um… Caçador — Engulo em seco, emocionada em vários níveis com esta não fortuita coincidência. — Legal…
— E você é uma… Pesquisadora de bruxas? — Ele inclina a cabeça, fecho a tela do computador tarde demais e ele vê imagens bizarras de representações dos enforcamentos de 1692.
— Não… Eu serei Freddy Krueger, se tiver a chance — Suspiro constrangida e ele sorri mantendo o lábio inferior entre os dentes. Eu odiaria que algo acontecesse àqueles lábios antes que eu tivesse a chance de experimentá-los.
— Você está bem? — pergunta com aquele ar desconfiado e eu rio nervosa.
— Parece que estou tendo pensamentos e lembranças de outra pessoa — Eu rio mais forte, o manipulando a fazer o mesmo.
— Acho que sei o que é isso… — O impulso de negar é mais forte que eu e ele inclina a cabeça para o lado, a desconfiança só aumenta, mas não posso dizer a verdade.
— Só estou estressada com o futuro, sabe como é… Terminamos a faculdade, e agora? — Enceno confusão e me sinto tão ridícula que nem percebo quando se senta ao meu lado.
— Ainda não sabe o que vai fazer? — Ele esbarra seu ombro no meu, bem de leve. Imagino que esse tipo de interação seja desconfortável pra ele também.
— Alguma coisa a ver com biologia? — Ele ri mais forte, totalmente sem barreiras. Eu rio também, gostando do som de nossas risadas juntas. — Eu gosto de plantas, talvez faça alguma coisa com elas… — Dou de ombros. É tão estranho pensar no futuro quando meu extremo passado resolveu me assombrar. — E você?
— Eu quero publicar algumas coisas que tenho trabalhado em paralelo. Fazer quadrinhos é divertido, mas, acho que tenho uma história para contar.
— Isso é legal. Qual é a história? — suspira, parece bastante desconfortável agora. — Tudo bem se não quiser falar. Eu espero a segunda edição, se te fizer sentir melhor — Brinco, devolvendo o esbarrão em seu ombro, mas como ele é mais forte que eu, eu só me encosto nele por alguns segundos. Encarando seus olhos bem de perto.
solta um pigarro e eu me afasto, tamborilando os dedos sobre o computador fechado em meu colo.
— Posso te mostrar uma coisa? — Ele pede incerto, parece ainda se decidir sobre isso.
— Sim — digo rápido, sem dar chance para que ele mude de ideia.
Guardo o computador na bolsa e vejo que ele estende sua mão para me ajudar a levantar. É constrangedor recusar, mas eu o faço, não posso correr o risco de dar a ele um vislumbre bizarro sobre um passado violento em praça pública.
— Eu consigo, obrigada — recolhe sua mão e a guarda no bolso da calça.
— Então, vamos? — Assinto devagar e ele sai andando na frente, um pouco chateado.
Estamos em frente à casa de e eu escolho esperar do lado de fora, todo cuidado ainda é pouco.
Quando ele volta, nos sentamos nos degraus da entrada de sua casa. A decoração sombria que imita um cemitério me deixa ligeiramente desconfortável, mas tento ignorar conforme vejo ter todo tipo de dificuldade para organizar dezenas de folhas de papel em suas mãos.
— Então, eu venho tendo esses sonhos malucos e eu os desenho, quando acordo — me mostra uma porção de imagens aleatórias, de objetos aleatórios que não me dizem nada. Até ver um desenho da cabana em seus perfeitos detalhes. Os cogumelos venenosos se entranhando na madeira da porta antiga, o musgo camuflando o teto e a árvore ao fundo.
— Como você conhece esse lugar? — Pergunto absorvendo cada detalhe do desenho.
— Aí é que fica complicado… — coça a nuca, praticamente mastigando o lábio inferior. — Você me mostrou — puxa do bolso um desenho amassado e de aparência bem antiga. Não tão antiga quanto os últimos fatos que tenho aprendido sobre minha vida passada, mas antigo.
Ele me entrega o desenho ainda um pouco receoso, seus olhos se recusam a me encontrar e eu abro o desenho, ficando constrangida, lisonjeada, surpresa e meio paralisada.
Ao ser desdobrado, o papel está repleto de pequenos desenhos de meu rosto em vários ângulos. Detalhes de meu corpo em perspectivas que só alguém que já chegou perto o suficiente e por muito tempo poderia conhecer.
No desenho maior, é como o pedaço de uma fotografia, estou ajeitando meu vestido com um sorriso satisfeito e apaixonado. Ao fundo, as madeiras de um celeiro e pequenos fiapos de feno adornam o ambiente. Perto de minha coxa, uma vela crepita forte, enquanto levanto a alça do vestido longo.
— Quero que saiba que não penso em você desse jeito — diz o rapaz completamente ruborizado. — Não só desse jeito… Acontece que eu não queria ver nada disso, mas… Enfim, me desculpe. Eu não sou nenhum pervertido, eu só vi essas imagens enquanto crescia e desenhei — Seus olhos são sinceros e ele demonstra estar tão boquiaberto quanto eu. Então, eu dobro novamente o desenho e estendo pra ele, que o nega veemente.
— Dizer que não é pervertido é exatamente o que um pervertido diria — Ergo uma das sobrancelhas, o encarando com uma seriedade mista.
— Estou falando sério. Eu respeito você e o seu corpo, igualmente — me faz prender uma risada.
— São duas coisas diferentes? — Pergunto confusa.
— Não! Não foi isso o que eu quis dizer...
— Bem, esse desenho está meio gasto… — Não resisto em provocar, vendo que ele começa a perder um pouco as estribeiras.
— Eu não desenhei tudo de uma vez… Ah, merda! — Quando eu finalmente rio, um riso baixinho e maldoso, me olha com os olhos cerrados.
— Como sabia que eu estava sendo literal? — Com um suspiro, a seriedade se torna absoluta.
— Aquilo na formatura… Não foi normal. Eu só supus que, já que eu estava vendo essas coisas, talvez você estivesse também — Ele dá de ombros e eu fico entre dividir tudo com ele e pedir sua ajuda, ou contar a parte assustadora e pedir que ele se afaste para o mais longe que puder.
— Você sabe o que acontece? — Pergunto sentindo uma pontada no peito.
— Não. Você sabe? — Os olhos cheios de esperança de chegam a se abrir um pouco mais, prestes a me engolir.
— Não — Minto tão rapidamente que não percebo a tempo de consertar. — Estou com medo de descobrir.
— Eu também. Eles… Eles parecem se gostar bastante — estala a língua na boca, se arrependendo do que disse.
— Então… Esses sonhos… O que mais você vê neles?
conta que seus sonhos são embaralhados e que ele nunca consegue encontrar a ordem dos fatos, por isso desenha tudo o que se lembra deles, tentando buscar alguma cronologia.
Ele fala sobre um pequeno exército, de uma missão complexa e de estar sempre afiando suas flechas. Quando sonha com isso, diz acordar tenso, preocupado e reflexivo. Quando sonha comigo, quer dizer, com a , ele se sente alegre por um tempo, até uma culpa imensa o tomar.
— Conforme nós fomos crescendo e… Bem, você foi ficando cada vez mais parecida com meus desenhos, eu achei que essa culpa toda fosse por causa disso. Eu sentia vergonha de pensar essas coisas e sentir… Enfim, a culpa era grande demais e eu não tinha a consciência necessária para sentir tanta culpa. Foi quando eu cogitei a possibilidade de estar vendo memórias de outra pessoa — explica paciente.
— Pelas datas dos desenhos, eu era criança e não tinha todo esse... corpo. Por que achou que era eu antes de… Você sabe, eu ficar… Assim? — Balanço o desenho entre os meus dedos, distraída com eles. desce um pouco seus olhos, como uma checagem muito rápida em mim.
— Eu não sabia, mas… É que… Ninguém pintava o cabelo antes, você era a única garota ruiva que eu conhecia — se perde em seu raciocínio e eu o encaro com uma sobrancelha erguida.
— É por isso que nunca falou comigo? — Aproveito para esclarecer dúvidas antigas, já que estamos falando de todos os nossos passados.
— Não queria que me achasse maluco por eu te conhecer tão… bem — Ele esfrega as palmas das mãos nas pernas, me olhando um pouco apreensivo.
— Você não conhece — Estranho minha defensiva, mas permaneço nela. — Quer dizer, talvez você a conheça. Mas não temos nada em comum. Eu não sou inventiva, destemida ou vingativa — Rio sem jeito, o fazendo erguer uma sobrancelha. A desconfiança voltou.
— Você tem razão, me desculpe — O silêncio que se estabelece é mais desconfortável do que a apreensão por dizer a coisa errada.
— Desculpe, eu só estou cansada. Não foi uma noite fácil — digo verdadeiramente exausta e perdida.
— Sinto muito. Mas, vamos lá, alguns desses sonhos não são tão ruins… Os passeios noturnos pela floresta parecem divertidos — Ele sugere, me fazendo sentir as bochechas corarem.
Balanço a cabeça, mas acabo rindo de como ele diz esse tipo de coisa sem perceber como mexe comigo.
— É… O último não foi tão horripilante assim — Um silêncio invade a conversa de novo, me olha curioso, quase sorrindo de um jeito muito diferente dos quais estou tentando me acostumar.
Um jeito que bagunça minhas prioridades.
— Com o que você sonhou? — Ele umedece os lábios com a ponta de sua língua, a expectativa é grande e eu sinto vontade de contar a ele.
— Nós… não podemos — ergue uma sobrancelha, contrariado. — Existe uma maldição e você corre perigo — Ele gargalha rouco e eu fico ofendida.
— Existem jeitos menos cruéis de se rejeitar um pobre caçador — soa magoado, mas gosto de como ele traz humor para essa conversa difícil.
— Não quando o caçador enforca a bruxa, depois de trair sua confiança e usar informações de suas irmãs para armar uma emboscada — absorve a mágoa em cada palavra que digo.
— Você disse que não sabia como terminava… — Ele parece um pouco surpreso.
— Você também — O rapaz desvia o olhar, envergonhado. Até ter uma ideia.
— É por isso! — volta para dentro de casa e volta somente alguns segundos depois. — Vem!
Subo as escadas devagar, a porta do quarto dele está aberta e suas paredes são cobertas de desenhos à lápis. Ele vasculha entre uma pilha, em cima de sua mesa.
— Ele é um caçador, ela uma bruxa — reúne seus desenhos sobre a cama, estico o lençol nas pontas, o ajudando com a superfície. — De alguma forma eles se apaixonam, mas o dever se põe diante do amor — Ele parece animado, dispondo os desenhos como um quebra-cabeça. — Chega a hora da verdade, ele sabe que ela é astuta e vai fugir — De repente, ver o outro lado da história me faz começar a entender o tal quebra-cabeça. — Ele reúne seus soldados, cria a oportunidade e então, eles lutam. Ela deixa uma cicatriz nele.
— Eu não vi essa parte… — Me defendo, fazendo-o bufar com desdém e me mostrar a palma da mão com um corte avermelhado nela. Como uma cicatriz inflamada.
— Apareceu hoje cedo — Ele dá de ombros. — Eu não consigo entender. Em que momento ela tem tempo de lançar uma maldição? — questiona, olhando para mim.
— Na cela da carroça. Ela sente seu coração partido e seu instinto de vingança a faz cortar a mão com as unhas, a maldição é um pacto de sangue. Os soldados dele eram… Amantes de suas irmãs — se senta no colchão, arrasado.
— Então, após a morte dela, ele vaga pela floresta remoendo sua culpa. Todas essas lembranças aleatórias e... pornográficas, são parte de seu sofrimento — Me interesso pela continuação deste ponto de vista.
— O que mais acontece? — Pergunto me sentando ao seu lado.
— Não sei dizer direito — Ele coça os olhos, retirando a aljava e a deixando no chão do quarto. — Acho que ele está procurando por algo na floresta — se levanta de novo, buscando por um caderno em sua mochila. — Até encontrar isso.
Ele me mostra o desenho de uma lápide improvisada: uma cruz de madeira, tomada por heras, que se entranham com o ramo de flores arroxeadas, com pontas protuberantes.
— A cachoeira…
— Como sabe disso? Quando tive esse sonho, passei semanas ouvindo o som de água corrente — ri, mas minha expressão assustada o faz se calar.
— Há quanto tempo você tem esses sonhos? — Pergunto receosa, sua resposta imediata é tão tranquila diante de fatos tão catastróficos.
— Acho que eu tinha uns treze anos quando começou — Dá de ombros, se lembrando. — Eu costumava me assustar com esses sonhos a ponto de não querer sair de casa, mas esta manhã, quando a cicatriz apareceu, eu senti como se estivesse próximo de desvendar esse quebra-cabeça. E agora que ele está completo, me sinto vazio — se distrai por um momento e eu sinto sua falta de perspectiva. Agora compreendo melhor o período em que estudou em casa, eu também não conseguiria seguir a vida normalmente se tivesse tido acesso a essas memórias enquanto crescia.
Eu o admiro por ter conseguido superar o medo. Ele é inspirador.
— Você é estranho, . Eu realmente não quero que você morra — Escorrego para fora da cama, evitando seus olhos decepcionados.
— Está tão na cara assim que estou afim de você? — Ele me pega de surpresa, desarmada.
— Estou somente levando a maldição ao pé da letra. Todo homem mentiroso, traidor… aproveitador — Cruzo os braços na frente no corpo, ainda na defensiva.
— Agora estou bastante ofendido — diz entre um riso sarcástico, ele ainda me dá uma chance de reformular, mas é melhor ele se magoar agora do que ser morto depois.
— Espero que possa me agradecer, eventualmente — Mordo o lábio inferior, dividida. rola os olhos e amassa o desenho que segura entre os dedos.
Pego minha mochila, pretendo sair silenciosamente, mas, esqueço o compilado de desenhos. Eles são bem gráficos e eu não me sinto à vontade com o quanto são verossímeis.
— Pode levar tudo isso com você? — Ele pede, meio mal-humorado, como sempre.
— Mas…
— Só leva, — Ele me interrompe, os juntando com certo desprezo. — Faz o que quiser com eles.
— Sinto muito, — digo sincera, me compadecendo de sua decepção. Eu sei que não tem só a ver comigo. Ele passou mais da metade da vida tentando descobrir o final de uma história maluca que se repete todas as noites em sua mente.
— É, tanto faz…
Saio de seu quarto com um nó na garganta, os desenhos amassados na mão e uma vontade imensa de resolver essa bagunça.
As crianças já ocupam as calçadas com seus sacos meio cheios de doces e olhos atentos a qualquer movimento nas casas de jardins bem decorados para a ocasião.
— Doces ou travessuras? — Ouço dizerem em coro, recebendo uma reação exagerada de susto da senhora que mora logo na esquina.
Por ter sido adotada com idade um pouco avançada, nunca fui muito de pedir doces à estranhos e minhas preocupações transcendiam encontrar a melhor fantasia para impressionar. Eu estive ocupada, tentando ser a criança perfeita para ser escolhida. Por anos.
Espero as crianças saírem e entro no jardim, sendo “surpreendida” por um fantasma que cai do teto. Uma armadilha barata e supostamente divertida.
— Sempre mais animada do que as próprias crianças — digo contente, recebendo uma gargalhada gostosa.
— Todos os dias deveriam ser Halloween! — Concordo em discordar em silêncio, a acompanhando para dentro da casa tão conhecida.
Algumas coisas mudaram de lugar, como a posição dos móveis. Tudo está mais espaçado, para que a cadeira de rodas possa transitar sem problemas, mas ainda tem o mesmo cheiro que não consigo classificar de jeito melhor a não ser por chamar de “cheiro de lar”. É uma mistura de limpeza com algo gostoso sendo assado no forno.
— Como estão as coisas, mãe? — Pergunto enquanto procuro o controle remoto, a TV está alta demais, como de costume.
— Você sabe. Uma passada de cada vez, um dia de cada vez — Ela pisca um dos olhos, um riso esperto faz seus ombros balançarem e ela desliza pela sala com destreza. Seu diagnóstico e a falta de mobilização não tiraram nem uma grama de sua alegria de viver, pelo contrário.
— Podemos conversar sobre minha adoção? — Me sento no sofá, esperando ser interrompida pela campainha a qualquer momento.
— Com certeza. O que quer saber? — Minha mãe enche o bowl com mais doces, eles nunca chegam a ficar abaixo da linha da metade.
— Você tem alguma informação sobre o meu local de nascimento? Se eu tive alguma relação com esta cidade, você sabe, antes de nascer — Sei que o que pergunto é absurdo, por isso entro no assunto com cuidado.
— Que pergunta interessante. Mas sinto muito, querida, não tenho como te responder. Quando nos encontramos, eles não tinham nenhum tipo de informação sobre os seus pais biológicos, ou o lugar onde você nasceu. Mas podemos investigar, se quiser — Ela se anima, indo até o computador parcialmente empoeirado sobre a mesa de jantar.
— Não quero te dar esse trabalho — Abano a mão no ar, tentando impedi-la de começar a cavar um buraco sem fim. — Você é a minha mãe, isso é o que importa de verdade — Ela sorri carinhosa. — Você acredita em destino?
— O que seria de mim sem ele? O destino me trouxe você, me mostrando que a vida pode ser muito mais do que os dias nublados nesta velha Salém — Ela ri da própria sorte, agradecida.
— Parece que, mesmo não sendo daqui, eu pertenço a este lugar — Deixo o pensamento escapar, mas tomo cuidado. Não quero preocupá-la com minhas questões, já basta o susto no dia da formatura.
— E você pertence. Gosto de pensar que o mundo é como uma esteira e todo passo que damos, afunda um pouco mais a marca de nossos ancestrais. Deixando pegadas duradouras, significativas. Mesmo que o caminho desvie, elas estão lá — diz misteriosa.
— O que você sabe sobre reencarnação? — Minha mãe cerra os olhos em minha direção, desconfiada.
— Sei que é a maior sorte que um ser humano pode ter. Uma nova chance, para corrigir erros do passado ou simplesmente respirar e deixar a divindade que é existir fluir — Assinto devagar, absorvendo sua sabedoria.
Tudo dentro de mim clama por desfecho.
Um final digno, por elas.
— Obrigada. Por tudo — Vou até ela, lhe dando um abraço apertado.
— Não esqueça seus doces! — Ela enche meus bolsos com balas e barras de chocolate, me fazendo rir.
— Te amo, mãe. Até logo! — Abro a porta, assustando um grupo de meninas vestidas de irmãs Sanderson, o que é adorável e inapropriado na mesma medida. Esvazio meus bolsos em suas abóboras de plástico e aproximo o indicador na frente dos lábios, para que elas ganhem ainda mais doces de minha mãe.
O movimento na calçada em frente à nossa casa é intenso, os carros se enfileiram dos dois lados da rua e a música é alta o suficiente para ser ouvida da esquina. A festa começou.
Sem nenhuma vontade de deixar esse instinto de justiça para depois, me infiltro entre os convidados que bebem no jardim. Discretamente, escondo minha mochila atrás da lata de lixo e continuo andando para longe da movimentação. Peço um Uber com o celular e começo a pensar que tenho o ímpeto de resolver esta situação, mas não faço ideia de como o farei.
Do outro lado da rua, um grupo de garotos bem mais novos que eu formam uma pequena roda, dividindo o que parece ser um baseado. Tenho uma ideia, mas antes de atravessar a rua, ajeito os cabelos e lembro de todos os truques sedutores que Vic me ensinou.
— Olá, meninos — digo com a voz macia, piscando bem devagar.
— E aí, gatinha — Um deles ergue o queixo, me olhando da cabeça aos pés. Reprimo a vontade de rolar os olhos e forço um sorriso sedutor.
— Será que algum de vocês poderia me dar um isqueiro? — Peço sinuosa, sorrindo bastante. Os botões de minha blusa abertos até o centro do vale entre meus seios ajudam também. Imediatamente, recebo uma sorte de isqueiros para escolher.
— Ah, não… Não posso te dar esse… — Um deles recolhe o seu constrangido. De relance posso ver um par de seios desnudos. Estico a mão e pego o de aparência mais barata.
— Obrigada. Fico te devendo uma — Dou uma piscada e giro em meus calcanhares, torcendo para o garoto não cobrar minha dívida nos próximos minutos.
Escuto seu murmurinho malicioso forçando um sorriso convencido, desejando que o carro chegue voando. Penso que uma vassoura voadora cairia bem também, e logo me distraio com a possibilidade da aerodinâmica.
Os faróis altos do carro sedan branco vão diminuindo aos poucos, revelando o motorista grisalho de expressão fechada. Ele me leva até a estrada sem saída, escura e vazia que cerca a floresta. Antes de sair, agradeço a ele e recebo um olhar cheio de estranheza e julgamento. Posso ler em seus olhos a pergunta: o que diabos essa menina vai aprontar na floresta sozinha?
Bem, eu tenho esperanças de encontrar o túmulo de minha ancestral, exumar seu corpo e atear fogo em seu cadáver. Eu com certeza não digo isso a ele.
— Feliz dia das bruxas! — Aceno sem jeito, batendo a porta do carro em seguida.
Espero que ele dê a volta com o carro e se afaste bastante antes de acender a lanterna de meu celular, adentrar a floresta e desbravá-la, até encontrar qualquer coisa que se pareça com uma lápide.
— A floresta é minha amiga. A floresta é minha amiga — Caminho com cuidado, repetindo as palavras como um mantra para afastar o medo que sinto em estar aqui sozinha.
As sombras das árvores as retorcem, deixando tudo muito confuso. Não está tão escuro ainda, mas a densidade das folhas acima impede que a luz da lua ilumine meus passos.
Ouço minha respiração, os galhos se quebrando embaixo de meus pés, os grilos e corujas começando a dar as caras e fazer seus sons. Tudo é estranhamente familiar, mas ainda fico em alerta.
Mais profundamente na mata, o silêncio é estarrecedor. Vejo alguns pontos de luz esverdeada, bem rápido. Vaga-lumes. Eles se apagam por um tempo, enquanto continuo a andar, sou surpreendida com sua luz por toda a minha volta.
Diante dos fatos recentes, não posso ignorar a sensação de que eles estão tentando me dizer alguma coisa. A lanterna começa a falhar e eu percebo que a bateria de meu celular está se esvaindo rapidamente.
— Droga! — Tento poupar a energia de meu celular e sigo tentando me guiar pela iluminação que entra por pequenas brechas entre as árvores e os vaga-lumes que indicam um caminho no qual tenho uma estranha confiança em seguir.
Não demora até eu me perder, me arrepender de ter saído sozinha e sem avisar a alguém aonde estava indo.
Tento parar e respirar, pensar com alguma lógica e achar uma forma de sair dessa floresta. Mas ao longe, escuto o som inconfundível da cachoeira e como se estivesse sendo guiada pela própria água e seus componentes em níveis moleculares, eu a encontro.
E é o lugar mais incrível em que já estive.
A lua é refletida na água calma perto da margem do pequeno lago que se forma aos pés da cachoeira, que não é tão alta quanto imaginei, mas ainda mais bela e hipnotizante.
Tento superar a beleza do local e começo a procurar o túmulo de… . A ideia de a mulher ser exatamente como eu e ter tido um final tão trágico e desiludido é simplesmente avassaladora.
Dentro de mim, sinto que ela tinha tanto potencial para crescer e expandir seus negócios. Ela mesma criava as engenhocas que fazia o trabalho ficar mais fácil, era uma verdadeira cientista. Uma mulher à frente de seu tempo, que não só se deixou ser levada pela paixão, mas também pela desilusão que a acompanhou até seu último segundo.
Meu pé esquerdo enrosca em algo no chão e eu caio para frente, perdendo o celular no lago.
— Merda! — Xingo baixo, sentindo as palmas das mãos machucadas. Minha bochecha arde também, um corte bem no alto da maçã do rosto.
Está escuro, mas consigo ver nitidamente a flor azul e o cheiro inconfundível de alecrim toma minhas narinas.
Eu a encontrei.
Sinto uma espécie de vibração abaixo de mim, atinge minhas mãos e parece sacudir meu cérebro.
Ele caminha por dias agora, as pernas cansadas seguem sob o comando do cérebro domado pelo único pensamento de encontrá-la mais uma vez.
Em seu peito, as honrarias recebidas anos atrás alfinetam a pele inflamada que cobre todo o seu corpo, espalhando a morte certeira segundo a segundo.
Ao longo dos anos, o caçador assistiu a loucura da maldição domar seus companheiros um a um através da doença. As feridas adquiridas na batalha contra as bruxas nunca se fecharam, mas se alastraram por seus corpos, consumindo sua pele, crescendo de dentro para fora e putrificando sua epiderme irremediável.
As feridas os isolaram da mesma sociedade que os condecoraram com títulos por sua suposta coragem após um verdadeiro massacre. Todos eles morreram, pela falta de cuidados com os ferimentos, ou até mesmo a escolha de um ponto final para a agonia que sentiam.
Escolhas afiadas ou impulsionadas por pólvora.
Mas não o caçador.
Conforme assistiu seu corpo viril adoecer e seus títulos como o homem mais corajoso do país se dissiparem com o tempo, o homem entendeu seu destino. O abraçou.
Todas as batalhas em que a vitória ficou ao seu lado não significavam mais nada. O caçador só conseguia se lembrar da primeira vez em que pôs os olhos sobre ela, do que sentiu quando tocou sua pele macia e quente, de como os cabelos cor de fogo da mulher alimentavam sua alma e como seus lábios o envolviam por horas, com tanto entusiasmo e devoção, que nenhuma moeda de ouro jamais pôde pagar.
o amava profundamente e o caçador havia traído este sentimento puro e sincero.
Ele nunca esqueceu o olhar frio e decepcionado da mulher quando descobriu suas intenções cheias de vilania, o caçador fez questão de gravar em si que mereceria toda miséria e solidão que o acompanharia após a morte da mulher que ele amou e traiu.
A culpa o perseguiu por anos, deixando a dor da morte lenta e agonizante em segundo plano.
Conforme o fim chegava, ele podia sentir, era hora de encará-la mais uma vez.
O caçador seguiu floresta adentro, fazendo o caminho que percorreu naquela noite em que roubou o corpo de e fugiu com ele para enterrá-la em um lugar onde só ele saberia.
Ele se recusou a deixar que ela fosse queimada, como as outras.
Cavou um buraco profundo, a deitou sobre a terra e encarou seu semblante triste uma última vez.
A lua testemunha o toque de suas mãos em suas bochechas geladas uma última vez, antes de cobrir seu corpo com um tecido que usavam em seus encontros secretos e cobri-la com metros de terra.
Daquele dia em diante, ele não tinha mais um coração. E logo quando que ele havia se acostumado a senti-lo bater mais forte por causa dela.
Exausto, em seus últimos suspiros, o caçador encontra seu destino. Guiado pela floresta até seu lugar de descanso.
Um ramo de alecrim cheio de flores roxas de cinco pontas envoltos na estrutura destruída pelo tempo de sua lápide exala o cheiro dela e ele sorri.
O homem cai de joelhos diante do túmulo da bruxa, as lágrimas molham suas bochechas e o arrependimento o visita mais uma vez, lhe dando um vislumbre de como teria sido a sua vida se ele tivesse escutado seu coração apaixonado e fugido com ela, para bem longe de suas obrigações.
Diante de sua maior observadora e juíza de seu julgamento final, marcado anos antes, o caçador encara a lua. Seu coração bate forte, parece se chocar contra sua caixa torácica com força e rebeldia.
Ele sorri mais uma vez, banhado pela luz esbranquiçada da verdade, intimidado pela presença de seus sentimentos adormecidos.
O caçador inspira o aroma de ervas, agradecido pelo fragmento de misericórdia da magia tão presente de sua bruxa amada.
Seu coração bate forte uma última vez antes de parar.
Para sempre.
— Bem… Ele sabia onde estava se metendo, mas nossa… Quanto rancor, ! — Grito para a terra embaixo de mim, ainda zonza e bastante desconfortável com os resquícios da lembrança mórbida em meu corpo. Estou exausta, como se cada viagem dessas através do tempo em minha mente estivesse drenando minhas energias. — Espera… Essas não eram memórias suas, nem do caçador… Então… — Me sento diante do túmulo de e olho em volta, encarando a realidade. A cachoeira paralisante sumiu, o lago até parece que nunca existiu de tão seco e domado por ervas daninhas. Nunca houve o som da cachoeira caindo pesada em meus ouvidos, ou o reflexo soturno da lua na água convidativa do lago.
Nada era real.
A floresta estava falando comigo.
— Meia-noite — Ouço o que parecem ser milhares de vozes sussurrando bem perto de meu ouvido, me fazendo sobressaltar no lugar, aterrorizada.
— Uma de cada vez! — Grito sozinha na floresta, irritada. Me sentindo completamente maluca.
Ser um receptáculo da destruição não é nada fácil.
Determinada a buscar minhas amigas para ajudar e ferramentas para cumprir minha tarefa, demoro um bom tempo, mas consigo sair da floresta com somente alguns arranhões. Alguns mais profundos que outros, mas nada que me impeça de continuar dando um passo de cada vez.
Estar suja, descabelada, suada e meio ensanguentada não é estranho. Não hoje. As pessoas me olham com entusiasmo, recebo até um elogio ou outro pela autenticidade de minha fantasia.
— Jesus Cristo! O que aconteceu com você? — Les derruba seu pirulito no chão, ela segura seu capacete do uniforme de quarterback como um bowl e distribui os doces para as crianças em meu lugar.
Exatamente como imaginei que aconteceria, os adultos embriagados se empurrando na entrada da casa não é nada convidativo para os pequenos, que passam longe da aglomeração da festa.
— Onde estão Vic e Hannah? — Devolvo a pergunta e ela dá de ombros, ainda chocada com minha aparência.
Empurro algumas pessoas, procurando por uma Sininho de um 1,60 de altura.
— Ah, oi… Nossa… Que fantasia é essa? — Hannah me olha da cabeça aos pés.
— Final girl! — Brian aponta a referência, me fazendo suspirar, cansada.
— Espera, isso é sangue de verdade? — Hannah tenta abrir espaço no sofá para que eu possa me sentar.
— Precisamos conversar… Sobre aquilo — Passo os olhos dela para Brian, sugestiva.
— Nós já voltamos. Se divirta! — Ela cantarola, me empurrando escada acima.
— Onde está a Vic? — Pergunto apressada, tentando me limpar um pouco com um lenço de papel.
— Eu não sei. Ela saiu antes da festa começar e ainda não voltou — Hannah me ajuda, tirando alguns galhos e folhas que estão presos em meu cabelo. — Onde você estava?
— Eu fui procurar por ela, Hannah. Eu encontrei o lugar onde a foi enterrada e eu acho que podemos acabar com isso — Ela me olha esperançosa, mas ainda bastante confusa. — Eu caí, lutei contra alguns arbustos, tive outra visão, perdi meu celular em algum tipo de dimensão fantástica… — Conto minhas desventuras nos dedos e ela assente devagar.
— Eu quero te dar uma bronca por ter ido sozinha, mas parece que a natureza já se encarregou de fazer isso — Ela me encara de forma sincera e eu acabo rindo. A última coisa que gostaria de ouvir dela agora é uma bronca sobre ter entrado em seu quarto com os sapatos sujos de lama.
— Eu preciso de ajuda — digo devagar, um pedido um tanto óbvio.
— Eu vou achar a Vic, nós vamos com você — Ela sorri determinada.
Ouço batidas na porta e, enquanto Hannah está ocupada no celular, eu a abro, dando de cara com .
— Que fantasia é essa? — Ele pergunta, o cenho franzido em completa confusão.
— Eu não estou fantasiada! — O puxo pela manga do moletom para dentro do quarto.
Tomo um segundo ou dois para apreciar que ele veio sem a fantasia de caçador. Por mais bonito que ele tenha ficado nela, nessas conjunturas, é um pouco ofensiva.
— Você está sangrando? — toma meio segundo para estar em cima de mim, olhando para o corte maior em meu rosto com uma preocupação constrangedora.
— Ei, você tem algo a ver com isso? — Leslie invade o quarto, ocupando o espaço mínimo entre mim e .
— Não! Leslie, para com isso! — Me afasto de todos, os fazendo ficarem em cantos opostos do quarto. Minha amiga o encarando como se estivesse a um comando de arrancar sua cabeça fora com as próprias mãos. — Eu estava na floresta e caí de cara no lugar que acredito ser o túmulo da . Eu quero exumar seu corpo e queimar o que restou dela — Leslie sorri de orelha a orelha.
— Eu amei! Vou buscar as pás no porão — Sua animação chega a ser infantilmente divertida, ela ignora a tensão da coisa toda tão bem. O que equilibra o medo extremo de Hannah, que reza baixinho, repreendendo tudo isso.
— Espera, … — me pega pelos ombros, me fazendo perceber que estou andando de um lado para o outro, em pura adrenalina. Eu paro, respirando fundo e encarando seus olhos.
recolhe a mão direita, grunhindo ao fechá-la em punho.
— A cicatriz — Me aproximo dele, abrindo sua mão. O corte parece ainda pior do que estava mais cedo.
— Eu vim falar sobre isso, também — Ele morde o interior da boca, evitando olhar diretamente para mim. — Vim me desculpar por ter sido um idiota mais cedo. Eu aprecio todo o seu empenho em salvar a minha vida e não deveria me chatear por ter sido rejeitado — é sincero e se aproxima de novo, limpando o sangue escorrendo em minha bochecha com seu polegar.
Seu maxilar trava e ele respira pesado, irritado com um simples corte feito por uma raiz exposta.
O momento é interrompido por um suspiro apaixonado de Hannah, que assiste a tudo há poucos metros de nós.
— Ainda tenho seus desenhos — Ele sorri de lado, parece agradecido. — Quando eu voltar, podemos continuar trabalhando na sua história, talvez mudar o final dela — digo rápido, me referindo ao seu quebra-cabeças também.
bagunça os cabelos, rindo meio sem jeito.
— Eu espero — diz baixinho, se sentando na cama de Hannah.
— A Vic não atende… — Minha amiga diz, preocupada.
— Não temos tempo, temos que fazer isso antes da meia-noite — digo com certeza, seguindo meus instintos e, bem, os sussurros da floresta.
— Espera, o que eu faço com o Brian? — Hannah apoia os punhos na cintura. Com seu vestido curto verde neon e sapatilhas com pompons nas pontas, ninguém faria uma Sininho melhor.
— Eu posso distraí-lo… — sugere, prestativo.
— Você vai desenhá-lo como uma de suas garotas francesas? Espera, na verdade, essa é uma boa ideia! — Hannah sorri com os dentes alinhados aparentes.
— Eu não faço esse tipo de desenho… — olha de soslaio pra mim. — Não mais.
— Eu quero saber o que isso significa? — Hannah olha de mim para , enquanto balançamos a cabeça de um lado para o outro, quase que sincronizadamente. — Ele pode ficar de roupa, relaxa! — Ela sai do quarto correndo, nos deixando sozinhos.
— Elas são legais — tem a voz macia, calma. É um bom contraste para minha mente barulhenta, cheia de pensamentos afiados.
— São sim — Confiante de que voltaremos inteiras, penso em quando o sol nascer amanhã e no resto de nossas vidas. — Será que você poderia manter segredo sobre a nossa missão? Hannah espera se casar com esse cara e, se for pra ele saber, que seja ela a contar — concorda veemente.
— Eu ficarei de bico calado. Eu nunca falo enquanto desenho — Assinto devagar, captando esses detalhes sobre ele que deixa escapar vez ou outra.
— Você precisa de papel? — Vou até a mesa do computador, pegando algumas folhas limpas da impressora e um lápis que encontro por ali, na mesa do computador de Hannah.
— Dou um jeito com isso… — Ele parece apreensivo, ao mesmo tempo que tenta esconder isso de mim.
— E a sua mão? — Pergunto preocupada, a vermelhidão só aumenta.
— Já estive pior — diz entre um sorriso enviesado.
Ele é tão ridiculamente bonito sorrindo desse jeito, eu quase o odeio.
Nossos rostos estão próximos e perto assim, seus olhos não têm escapatória e se fixam nos meus.
Estamos tão perto.
— Esse é o , amigo da . Eu pedi que ele fizesse um retrato seu — Hannah explica para Brian, que me olha com estranheza, mas cumprimenta com cordialidade.
— Nós vamos buscar gelo e já voltamos — Explica com um tom claramente mentiroso. Brian ergue uma das sobrancelhas, prestes a contestar a desculpa esfarrapada da namorada.
— Você pode se sentar naquela cadeira e nós podemos começar — intervém, bloqueando o caminho de Brian e o impedindo de protestar contra a saída abrupta de Hannah de sua própria festa.
Leslie para na porta do quarto, com duas pás apoiadas no ombro, uma mochila aparentemente cheia e um sorriso de orelha a orelha.
— Eu já volto — digo baixo, tão esperançosa que minha voz soa sorridente. mantém a impassividade, tentando conter sua aflição e a seriedade do momento. Mas em uma fração de segundo, ele me dá uma piscadela que me faz sentir confiante de que consigo pôr um ponto final nessa história cheia de ignorância, covardia e vingança, e ainda voltar a tempo de ter meu primeiro encontro desajeitado com ele.
Hannah dirige o carro do namorado, cuidadosa e pessimista sobre o que vamos fazer. Do banco de trás, Leslie continua tentando localizar Vic e eu começo a reconsiderar tudo o que sei sobre a mulher.
— Vocês acham que… — Leslie bufa frustrada, encerrando a ligação e começando outra em seguida. — Ela não faria isso, não é?
— Bem, ela achou que eles estivessem apaixonados, então, uma criança apareceu e tudo mudou. Pra Vic se jogar assim em uma relação e receber esse balde água fria… — Hannah balança a cabeça, descrente. Os lábios crispados e um olhar distante.
— Você está justificando assassinato por maldição agora? — Hannah franze o cenho, se abstendo de responder aos questionamentos filosóficos de Leslie enquanto dirige. — Isso é loucura! Não podemos sair por aí matando as pessoas por causa de suas falhas e erros, ou pelo o que acreditam. Não cabe a nós decidir!
Hannah parece mastigar a própria língua para não fazer comentários.
— Acho que a Vic não está pensando assim… — Hannah encosta o carro no final da estrada sem saída, observando a mata densa por onde vamos passar com receio pintado por todo seu rosto glitterinado.
— Nós precisamos fazer isso rápido e, então, vamos buscar nossa amiga homicida — Desço do carro, já puxando uma das pás do porta-malas. A floresta que me perdoe, mas irei abrir meu caminho por ela na base da porrada.
— Esperem por mim! — A voz de Leslie ecoa por entre as árvores altas de folhas densas e vegetação farta, traiçoeira.
— Alguma coisa raspou na minha perna! — Hannah sussurra em pânico.
— Acho que fui eu — Les confessa, a voz meio trêmula. — Não consigo enxergar nada. Como conseguiu ficar aqui sozinha, ?
— Não tenho mais medo do escuro — digo rápido, sem perder o foco.
A cada passo que dou em sua direção, sinto o ódio dela crescendo. É como se estivéssemos uma na mente da outra, dividindo o mesmo caos. Assim como eu, ela sabe que depois de hoje, pelo menos uma de nós poderá descansar.
— Vocês estão ouvindo alguma coisa? — Pergunto em um sussurro.
— Estou gritando por dentro, então, não — Hannah devolve o cochicho e Leslie solta uma risadinha inapropriada.
— Shh! — Elas voltam a ficar em silêncio e eu tento ouvir o som da cachoeira novamente, tento enxergar os vaga-lumes e encontrar o caminho direto até ela. Sei que estou próxima, eu sinto.
O som que ouço é eletrônico, sensual, de batidas eletrizantes. “Work Bitch”, da Britney Spears. Viro minha cabeça muito lentamente para Hannah, cujo celular toca incessante.
— Nós já estamos voltando, amor! Como vai o desenho? — A voz mentirosa e amedrontada de Hannah pode ser ouvida há quilômetros, então, me afasto delas em minha busca.
Seguro a pá com força na mão, marchando pela terra que começa a ficar fofa onde deveria haver irrigação natural do lago.
Consigo sentir o cheiro forte do alecrim, as memórias começam a se misturar com a realidade e é difícil saber onde e quando estou.
A cada passo, sinto meu corpo vibrar do centro para as extremidades, como se meu sangue fluísse mais rápido. Engulo em seco, ignorando os truques da floresta em minha mente, piscando entre cenários como flashes, tentando me confundir.
Parece um jogo sádico, mas estou disposta a quebrar as regras e jogar sujo também.
Ao encontrar o túmulo, respiro fundo e começo a cavar.
O tempo é crucial e não importa o quanto esteja física e mentalmente cansada, preciso continuar.
A luz da lua cheia ilumina bem o buraco que começa a se formar embaixo de mim. Minhas mãos estão cheias de calos e meus braços parecem querer largar a pá.
— Espera, ! Eu te ajudo — Leslie deixa a pá do lado de fora do buraco, ela pula para dentro e eu percebo o quanto cavei. A cova está na altura de seus joelhos agora, e Leslie é uma mulher alta.
— Temos que fazer isso rápido! O está piorando — Hannah diz apressada, olhando para a nossa situação sem muita vontade de colocar as mãos na massa. Ou na terra.
— Espera, Les… — Interrompo um movimento de Leslie, que paralisa assustada.
— O que é isso? — Hannah se aproxima, agachando perto de mim.
Solto a pá e visto as luvas descartáveis que Les trouxe na mochila, puxo um pouco o tecido da blusa sobre o rosto e me ajoelho sobre a terra, puxando o que acredito ser um graveto mais grosso.
Ao desenterrar um osso de braço humano em estado avançado de decomposição, ouço o grito interrompido de Hannah e segundos depois, sinto o peso de seu corpo desmaiado caindo sobre mim.
— Ela sabia que haveria cadáveres aqui! — Leslie parece chateada, encarando a cena com o cenho franzido.
— Leslie! — Grito impaciente, esperando que ela retire Hannah de cima de mim. — Temos que ter cuidado, não sabemos com o quê o caçador foi infectado — Largo o braço do lado de fora da cova e tento não pensar no fato de que aquele amontoado de ossos sujos de terra um dia fora alguém.
Cavamos um pouco mais, separando os ossos que encontramos no caminho e então, Leslie olha pra mim, esperando que eu dê continuidade.
Encaro o tecido avermelhado e puído, desgastado pelo tempo.
É como se cada fibra daquela antiga manta conhecesse intimamente os momentos que se passaram sobre ele. As noites frias de um amor quente e inesperado, com um fim trágico.
Tenho medo do que vou encontrar por trás dele. Não quero olhar, mas ao mesmo tempo, sinto que preciso.
— ? — Les me apressa, não temos muito tempo.
— A mulher era idêntica a mim, Leslie. Eu preciso de um minuto antes de ver meu cadáver apodrecido — digo o óbvio, fazendo minha amiga ficar apreensiva.
— Esta não é você, — Ela lembra, me fazendo olhá-la um pouco confusa. — Vou pegar a gasolina — Leslie iça o corpo para fora da cova e retira o galão da mochila que preparou antes de sairmos.
Hannah recupera a consciência aos poucos e consigo ouvir seus gemidos confusos conforme ela se situa.
— ? Temos quinze minutos — Les volta para o buraco, tentando chamar a minha atenção, mas não consigo tirar os olhos do tecido.
— ? — Hannah chama, mas mesmo que eu queira, não consigo responder.
Ouço o som da cachoeira e sinto meus pés molhados. Minhas amigas sumiram, mas estranhamente, não estou preocupada.
A água cobre meu corpo, congelante. Meus movimentos causam pequenas ondas contrárias às águas calmas depois do agito da queda, o chão vai se desfazendo entre meus dedos. A água atinge meu pescoço e eu não consigo mais respirar.
— Você está traindo suas irmãs — A voz muito parecida com a minha, só que mais chateada, ecoa como um aviso. — Uma bruxa, queimando outra bruxa. Por um homem? — A vibração aumenta, fazendo meu corpo se contorcer em uma dor generalizada.
Estou sozinha no vazio. Com ela.
— Estou tentando salvar você! — Reclamo, sentindo sua presença, mas sem encontrá-la em lugar algum na imensidão lúgubre.
— Salvar a mim? — A corda que enforcou volta ao meu pescoço, dificultando ainda mais minha respiração. — É um pouco tarde agora… — Ela afrouxa o aperto, deixando o nó solto em volta de meu pescoço. Como um lembrete sarcástico.
— Você não mereceu isso. Nenhuma de vocês mereceu! — Ela ri, a risada debochada e rouca que vivo evitando que escape para não soar maldosa. — Você era boa, eu sei. Eu vi. Você era genial e usava suas ideias brilhantes para ajudar suas irmãs com o trabalho. Você era uma cientista incrível e foi totalmente incompreendida no seu tempo.
— Eles tiraram tudo de mim! — grita, junto ao coro de centenas de outras vozes daquelas que tiveram suas vidas ceifadas antes e depois dela.
— Eu sei, eu sei! Mas eles pagaram por isso — A corda some, a vibração bagunçando meus órgãos se torna mais branda. — O caçador e todos os outros. Eles sofreram. Agonizaram até a morte, como você queria — Tento persuadi-la, sentindo que posso convencê-la de que sua vingança foi cumprida.
— Mas a ganância, o ódio, a mentira e o desprezo deles continuam sendo perpetuados sobre a Terra. A magia morreu por causa deles! — Ela volta a se irritar e eu me pego tentando entender como dissuadi-la.
— Eu concordo. Mas eu estou aqui, não estou? Isso é magia. A sua magia — Insisto.
— Foi a maldição que a trouxe aqui — Ela parece incomodada, constrangida até.
— Eu duvido — Enfrento o medo que cresce dentro de mim, o receio de que tudo acabe sem que eu tenha qualquer controle sobre os fatos. Mas é agora ou nunca. — Eu conheço você. Sei que nunca quis matar ninguém, mas precisou fazer isso para salvar suas irmãs a si mesma. Você sempre trouxe equilíbrio para a magia delas, eu sei. Eu faço a mesma coisa — Rio nervosa, buscando uma forma de fazê-la entender que compreendo suas razões, mas não irei compactuar e levar sua ira adiante. Então apelo pelo ponto que fraco que temos em comum. — Hannah encontrou alguém bom. Bom de verdade. Ele tenta fazer com que o mundo seja um lugar menos cruel, um passo de cada vez. E a Vic, ela não pode matar o que talvez tenha sido seu primeiro amor verdadeiro, você sabe, isso irá acabar com ela. Amor é como um cometa para a Vic, inédito e fantástico. Ela precisa ter uma chance de tentar de novo — O ar volta aos meus pulmões devagar. Sinto meu corpo flutuando, mas não mais comprimido. É quase relaxante.
— E a Leslie?
— Bem, a Leslie… Ela é … muito bem-sucedida e feliz… Saindo com outras mulheres — Acho difícil explicar essa pequena mudança para , mas os vários sons de entendimento que ouço quase me fazem rir.
— E quanto a você? — Ela se interessa, me deixando desconfortável.
— Eu nunca amei alguém — digo rápido, como se estivesse me defendendo de uma acusação.
— Mas você quer, não é? — Ela me conhece, profundamente.
— Eu não sei — Me sinto observada, invadida.
— Mas você quer salvá-lo, para quê, além de amá-lo? — Sinto sua presença mais forte, mais próxima e curiosa. É intimidador, mas já lidei com valentões antes.
— Certo, se eu fosse amar um dia, seria alguém como o . Mas eu não sei o que vai acontecer. Eu quero salvá-lo, sim. Mas não para mantê-lo, só porque não quero que mais ninguém morra pelas mesmas razões vazias — Sinto suas mãos geladas em volta de meu pescoço e arregalo os olhos, encarando o infinito negro de sua vingança. — Não as suas! Mas a sua reação foi desencadeada pela ignorância e medo do desconhecido. Não cometa os mesmos erros que eles cometeram! — Meu corpo começa a se retesar, a falta de oxigênio me faz começar perder também minha inconsciência. — Confie… em mim — Em um último esforço para me manter acordada, vejo meu reflexo diante de mim.
me encara de volta.
A pele pálida, os cabelos rubros esvoaçantes e os olhos revoltados se materializam diante de mim. O medo congela meu interior, me fazendo acreditar que esse é o fim.
Aterrorizante e solitário.
Um quase sorriso surge em seus lábios azulados de morte, um lapso brilhoso surge nos olhos profundos e vidrados dela. Como uma ideia maquiavélica surgindo em sua mente domada pela ira.
Com uma expressão desgostosa e contrariada, afrouxa a força de seus dedos frios e esguios em meu pescoço. Curiosa, ela aproxima seu rosto do meu, estudando minha expressão triste diante da morte.
É quando vejo entre todo o ódio em seu olhar perdido, um vislumbre da garota que ela costumava ser. não acreditava em segundas chances, estava sempre em alerta e desconfiando de todos. Quando deixou sua guarda baixa, levou o pior dos golpes e revidou da forma que podia.
Eu consigo entender isso, mas não consigo concordar.
Deve ter outro jeito de melhorar as coisas.
— Vá — A voz vibra na água do lago, fazendo sua presença sumir conforme o ar sai de pulmões em formato de bolhas.
Eu não sei porquê, mas me deixa ir, mas não antes de enfiar um punhado de flores de alecrim em minha boca, me fazendo engasgar com elas.
— ?! — Hannah chacoalha meus ombros e eu cuspo flores e água em seu vestido de Sininho, fazendo-a gritar de nojo.
— De onde veio tanta água?! — Leslie imprime bem suas prioridades enquanto eu recupero o fôlego.
Estou mesmo cansada de viajar entre dimensões assustadoras.
— Vamos queimar esta bruxa! — Digo determinada.
Com cuidado e muito respeito, despejo a gasolina sobre o cadáver. Decido que tive minha curiosidade mais que sanada e não revelo o que o tecido escondeu através dos anos.
Tiro do bolso o desenho amassado que representa os pensamentos arrependidos do caçador, o acendendo com o isqueiro que consegui mais cedo.
Conforme a folha cai na cova e o fogo se alastra, observo tudo com um sentimento sereno no peito.
Quero acreditar que ela está agradecida por poder descansar, sabendo que sua vingança foi cumprida e que, talvez haja esperança de um futuro melhor, afinal.
— Que horas são? — Leslie pergunta.
— Onze e cinquenta e nove — Hannah é quem responde, olhando a tela do celular apreensiva.
— Victoria! — Dissemos em uníssono, deixando a fogueira para trás. Antes de me afastar completamente, talvez para sempre, dou a volta na cova e empurro os ossos do caçador para queimarem também.
Há uma grande chance de eu estar erradicando uma nova praga antes que ela surja.
— ! — Hannah me apressa, com razão.
— Só mais uma coisa — Me abaixo, pegando um punhado de flores de alecrim, as guardando no bolso. Algo me diz que vou precisar delas.
— Se você tiver matado alguém, eu vou depor contra você! Eu não me importo de cometer perjúrio só pra aumentar a sua pena! Me liga assim que ouvir esse recado, Victoria. Eu não estou brincando! — Hannah desliga o telefone ao mesmo tempo em que passa o cinto de segurança pelo corpo.
— Por que só você tem poderes? — Leslie cutuca meu braço, brincando com a lama endurecida nas pontas de meus cabelos.
— Eu não tenho poderes — Esclareço, fazendo minha amiga crispar os lábios. Estamos paradas no pequeno e inédito trânsito por conta de uma feira assustadora acontecendo nas redondezas.
— Você fala com os mortos, com a floresta… Isso é um poder — Meneio com a cabeça, ela tem um ponto.
— São eles que falam comigo — Explico paciente, observando o sinal vermelho diante de nós demorar uma pequena eternidade para mudar de cor.
— É a mesma coisa — Les insiste.
— Não é como se eu tivesse pedido para falar com eles… — Ela cerra os olhos, pensativa.
— Mas você é a escolhida, digamos assim. Isso te dá algum tipo de poder, nem que seja o de mudar o curso das coisas. E você fez isso, poderosa — Ela volta a me cutucar.
— Até onde sabemos, está morrendo de uma infecção secular desconhecida e nossa melhor amiga será presa por homicídio… — Gesticulo com as mãos, emulando uma balança com elas.
— Não acredito que nunca mais vamos ver a Vic — Hannah lamenta, dirigindo com muita calma e cuidado para quem quer impedir uma tragédia de acontecer.
— Eu escolheria poder voar. E você, Hannah? — Leslie se volta para a loira, a fazendo rolar os olhos.
— Eu escolheria nunca ter entrado nessa situação — Ela sorri de boca fechada, a olhando pelo retrovisor.
— Até se isso significasse nunca ter nos conhecido? — Les apoia o queixo no banco passageiro, vendo Hannah colocar a mão no peito, arrependida pela escolha.
— Estamos chegando? — Interrompo a discussão por começar e Hannah assente, parando o carro diante de um prédio alto e muito bonito.
— Liga pra ela! — Hannah grita com Leslie.
— Já estou fazendo isso! — A outra reclama.
— Vamos lá, Vic… Vingança não é a resposta — Em um murmúrio, concentro minha energia em desejar que Vic ao menos atenda ao telefone.
— Onde você está? — Leslie adota o tom de voz que usa somente quando quer irritar Victoria, o que me deixa aliviada por alguns segundos. — Certo. Estamos indo — Ela desliga o telefone, me olhando com uma expressão nada contente.
— O que foi?
— É o . Precisamos ir! — Leslie é vaga, me empurrando de volta para o carro.
No caminho, tento manter a calma e acreditar na chama acesa dentro de mim. Ainda não acabou, temos que terminar a história.
— Pra onde estamos indo? — Pergunto ao notar que não estamos indo para casa.
— Eles estão no hospital — diz devagar, tomando cuidado para não me perturbar.
— Ele está bem — Ela meneia com a cabeça, trocando um olhar com Hannah. — Eu sei que está.
Ao chegarmos, a emergência do hospital está lotada de vampiros e zumbis de mentira e não demora até vermos Victoria, vestida de bruxa.
— Onde vocês estavam?! — Ela reclama, assim que nos vê.
— Resolvendo aquela bagunça. Onde você estava? — Leslie devolve.
— Em casa… — Dá de ombros. — A festa foi incrível, pena que vocês perderam — Ela lamenta, as sobrancelhas relaxadas em puro deboche.
— Cadê a polícia? Por que você não está presa? — Hannah dispara, fazendo a mulher olhar por cima dos ombros.
— Odeio o quão bem vocês me conhecem. Eu não ia matar o Carl... — diz baixinho, nos empurrando para um círculo mais afastado de Brian, que aguarda por explicações com uma expressão fechada. — Eu me precipitei, certo? Aquela garotinha não é filha do Carl — Ela rola os olhos, claramente envergonhada, mas se esforçando como os diabos para esconder isso. — É a irmãzinha mais nova dele…
— Eu tenho tantos comentários para fazer — Leslie coça os olhos, exausta. — Estão todos entalados. Preciso de uma enfermeira aqui! — Leslie faz uma cena, chamando a atenção de alguns funcionários ocupados do hospital.
Carl entra na sala de espera, segurando dois copos de café e o lábio inferior entre os dentes. Ele conhece bem Victoria, sabe que ela já cavou a cova dele para nós. E é dessa forma que o encaramos.
— Meninas… Boa noite — diz educado, ele entrega o café de Vic e se aproxima bem dela, abraçando-a pela cintura. Só para mostrar que tudo entre eles está bem, do contrário, o café quente estaria esparramado por todo o seu rosto agora.
— Obrigada — Leslie agradece pelo café que não lhe pertence, mas se delicia mesmo é com a expressão contrariada que o rapaz é obrigado a reprimir.
— Eu preciso ver o — digo com certa urgência. É muito bom que tudo esteja bem entre Vic e Carl, mas ainda corre risco de morrer em algum lugar nesse corredor.
— O pai dele proibiu as visitas. Tá achando que ele foi drogado, ou algo assim. Ele ‘tá muito mal — Vic comprime os lábios, me olhando com certa pena.
— Eu sei o que fazer — diz Hannah, sorrindo sapeca. — Qual é o quarto dele? — Ela pergunta, ajustando seu plano por alguns segundos.
A ideia é usar todos os corpos presentes para bloquear a passagem no corredor, assim terei tempo de vê-lo e seguir minha intuição.
— Pronta? — Vic pergunta, eu assinto rapidamente. Tudo precisa acontecer perfeitamente sincronizado.
Em alguns minutos, Vic causará um alvoroço na recepção, chamando atenção dos funcionários. O restante impedirá que o pai de volte da cafeteria antes que eu tenha saído de seu quarto.
Preciso ser rápida.
Ouço o barulho de coisas caindo no chão e os gemidos altos e teatrais de Vic, meus amigos se dividem em dois grupos, barrando a porta do quarto dele dos dois lados. Eu furo a barragem e entro.
— Ei… — digo baixinho ao me aproximar. Não entendo porquê ele está atrelado a tantas máquinas, mas ele parece tão frágil e vulnerável agora. Eu chego a duvidar de minha convicção, ele não parece nada bem.
— Você voltou… — Sua voz soa rouca, gasta. Eu sorrio, assentindo. — Você parece horrível! — Eu rio mais forte, concordando com ele.
— Você também… — Ele tenta rir, mas parece sentir dor.
— Ei, . Qual é o fim da história? — Ele me pergunta aflito, mas é quase como se ele já tivesse aceitado seu destino.
— Ainda não sei, mas nós queimamos a bruxa — Suspiro triste, um pouco confusa sobre como as coisas se parecem na realidade. Mas eu sinto tudo tão diferente.
O que está havendo?
— Preciso dizer, sempre achei que fosse justo que a bruxa matasse o caçador no final — Ele fecha os olhos, bastante cansado.
Preciso fazer alguma coisa. Olho em volta e todo o material hospitalar não parece fazer sentido pra mim, também pudera, eu não sou uma médica.
— Eu sou uma bruxa… Caralho, como não pensei nisso antes?! — volta a me olhar, a confusão toma seus olhos fracos, mas curiosos. — Você confia em mim?
estuda bem meu rosto, passando por todos os arranhões e hematomas espalhados por todo meu corpo. Os cabelos desgrenhados e as roupas parcialmente molhadas e sujas de lama.
Eu passei pelo inferno para salvá-lo, não posso desistir agora.
— Com a minha vida — sorri, esticando o braço cheio de agulhas e fios que o monitoram em minha direção.
Respiro fundo, canalizando a floresta; seus sons e sombras, mistérios e maravilhas. Fecho os olhos e sinto sua magia correr por minhas veias, se misturar com meu sangue. Fazendo-o ferver.
Encho a boca com as flores, mastigando tudo com vigor, projetando em minha mente a força da vontade que tenho de que fique bem.
Toco seu pulso, ele me olha com estranheza e fascínio, desfaço o curativo em sua palma e passo meus dedos quentes sobre a ferida que fora aberta em sonho.
Sinto uma tristeza imensa, tão grande que me faz chorar em silêncio.
É como reviver toda aquela dor, visitar novamente o momento daquela batalha e ouvir os corações se quebrando outra vez.
e seu caçador dariam qualquer coisa para seguir os chamados de seus corações naquele dia. Cada golpe proferido machucava a ambos.
Uma mágoa assim leva centenas de anos para se curar, e no caso deles, foi exatamente o tempo que levou para que enfim eles pudessem se perdoar. Se é que o fizeram.
Cuspo as flores trituradas envoltas em saliva na palma da mão de e a seguro com as minhas duas.
Com toda a força que me restou.
31 de Outubro
Salém, 2024
— Não acredito que você vai se atrasar. Logo hoje! — Hannah grita contra seu telefone, o vestido bem ajustado faz com que seu decote fique vistoso, principalmente quando ela se mexe com tanta aflição. Leslie nota e solta uma risadinha constrangida.
— Você pode abrir a porta?! — A voz de Vic soa duplicada, vindo do alto—falante do celular e de trás da porta também.
— Achei que você tivesse ido embora! — Hannah é quem abre a porta, a saia de múltiplas camadas balançando graciosamente, destoam do cenho franzido e as narinas infladas de raiva.
— A sua chatice não vai me abalar hoje. Eu só fui ao banheiro! — Vic libera a fúria que esteve segurando por todo esse tempo em nome do dia especial.
— Não podemos brigar hoje, meninas — Leslie se aproxima, passando um braço em cada uma das amigas.
— Tem razão, temos que honrar a . Sem ela, nada disso seria possível — Vic gira o anel de noivado no dedo anelar, um sorriso meigo surge em seus lábios e Leslie ainda se assombra toda vez que o vê.
— Bem, por causa dela, quase que nada disso acontece… — digo brincalhona, adorando ver a cena de minhas amigas sorridentes, felizes e realizadas.
— À — Hannah ergue sua taça de vinho rosé em minha direção. As meninas fazem a mesma coisa e eu resisto, mas ergo minha taça também.
— Que aquela vadia descanse em paz — diz Vic, carinhosamente.
— E à nossa heroína, — Leslie dá um bom gole, me fazendo rir sem jeito.
— À todas nós. Sobreviver a esse ano não foi fácil... — digo sorridente, antes de dar um gole também.
— Nós fizemos muito mais do que sobreviver. Nós vivemos o melhor que a vida pôde proporcionar! — Hannah acaricia o véu que acompanha o vestido, encantada pelo próprio reflexo no espelho.
— Ter o governo nos desabrigando não foi exatamente divertido, mas já estava na hora daquela casa ser demolida controladamente — Vic pondera, me fazendo rir.
— Vocês podem me agradecer pelo apartamento novo quando quiserem — Hannah pisca um dos olhos.
— Você só nos colocou em contato com um corretor de imóveis e ele é o seu pai — Vic responde ácida, ignorando o bico contrariado de Hannah.
— Não consigo ficar brava. Sinto falta até das nossas brigas… — Elas se abraçam ligeiramente, tomando cuidado com as emoções para que elas não estraguem suas maquiagens impecáveis.
— Nós sempre teremos um quarto disponível para nossas senhoras casadas. Certo, ? — Les cutuca minha costela, eu assinto veemente. Com a mudança de Hannah e Vic passando mais tempo no apartamento chique de Carl, Leslie e eu descobrimos que a dinâmica entre nós é muito mais fluida. Vic e Hannah nunca saberão disso, mas nossos rituais de maratonas realmente funcionam quando somos somente nós duas.
— Principalmente porque eu ainda pago a minha parte do aluguel… — Vic limpa a sujeira de sob suas unhas, muito debochada.
— É quase como se, depois daquilo, os nossos desejos mais profundos tivessem se realizado. Tipo… mágica e tal — Les termina sua taça, beliscando um canapé ou outro que trouxeram para nossa pequena celebração particular antes da grande celebração de Hannah e Brian.
— Hannah está se casando, eu fiquei noiva, Leslie conseguiu o emprego dos sonhos e a é uma autora best-seller — Vic conta nos dedos, me olhando maliciosa. — Além de, finalmente desencalhar — Minhas amigas concordam veemente, Les chega a erguer a própria taça, mesmo vazia.
— é o autor do livro, eu só fui sua consultora — Corrijo rapidamente, ele merece todos os créditos por transformar nosso maior pesadelo em uma obra cheia de fantasia e ilustrações incríveis.
Mudar o final do casal principal foi um risco muito bem calculado e que nos rendeu os frutos de um bom e intenso romance de terror.
Dedicatórias à parte, o livro ainda é dele.
— Fico imaginando vocês trabalhando até tarde… Como conseguiram não se perder na narrativa? — Vic se aproxima sinuosa, me fazendo a mesma pergunta que me fiz por meses. — Escrevendo sobre noites quentes de sexo selvagem no celeiro… — Rolo os olhos, ignorando sua pergunta.
— Vocês fizeram um bom trabalho. Eu adorei como fui retratada — diz Les, de boca cheia.
Para minha sorte, não tenho que responder como completei a segunda proeza mais inexplicável do último ano. Foram muitas noites juntos, tentando entender sentimentos complexos e dar sentido à atos completamente inusitados em um único conto.
Como e seu caçador, nós colocamos o dever de encontrar o início, meio e fim de uma história terrível como nossa prioridade, e então criar um final completamente diferente pra eles foi algo nosso.
— Eu gostei do livro, mas achei que vocês me fizeram parecer uma megera homicida — Vic reclama.
— Pelo menos o seu nariz não ficou enorme… — Hannah alfineta, me olhando pelo reflexo do espelho.
— Mas, Vic, você é pelo menos uma dessas coisas, certo? — Les finge confusão, despertando a fúria da mulher.
Precisando de ar fresco, deixo minhas amigas ajudarem Hannah com os últimos retoques. Em poucas horas, ela será uma mulher casada com o homem de seus sonhos e tudo tem que ser perfeito.
Observo o lago calmo ao lado do casebre que eles escolheram como palco para o casamento com tema macabro do Halloween, mas explorando o lado cheio de beleza do reino das fadas.
O terreno é amplo, cercado por uma floresta densa que me faz sentir vibrar de dentro para fora.
Sinto a calma da natureza me preencher. A conexão que tivemos há um ano não é tão forte, mas ainda sinto como se ela falasse comigo.
Tem sido difícil, mas tenho tentado canalizar essa sensação de forma positiva. Mudar o rumo do que parece ser um pressentimento horrível para somente algo corriqueiro como estar viva e ter possibilidades todos os dias. Para algumas pessoas isso pode ser assustador, eu venho tentado não ser uma dessas pessoas.
Sorrio com o leve arrepio que sinto na nuca, me virando em expectativa ao perceber que tenho companhia.
— Achei mesmo que fosse você — digo aliviada, recebendo seus olhos felizes por me ver.
— Um passarinho cor-de-rosa me disse que você estaria aqui, mas eu te encontraria mesmo sem essa dica — se aproxima. O terno sob medida o deixa com a aparência ainda mais séria e interessante. Os cabelos têm um desgrenho descolado, que o faz parecer saído da cama.
Eu amo… o cabelo dele. Acho uma grande sorte ser capaz de passar horas com meus dedos passeando pelas ondas castanhas e sedosas em sua cabeça.
— Victoria… — Ele assente devagar, me envolvendo em seus braços.
Ainda sinto como se congelasse de dentro para fora quando ele faz isso. E então, sua pele sempre quente me derrete de fora para dentro.
— Você está bem? Parece nostálgico, não é? — Pergunta preocupado, me olhando do jeito que me faz sentir importante.
— Sim. Gosto mais dessa fantasia que a do ano passado — Mexo a saia do vestido lilás que Hannah me obrigou a usar e combinar com a paleta ultra feminina de seu casamento.
— Você estava fantasiada de quê mesmo? — faz um carinho em minhas costas, pressionando as palmas quentes em minha pele.
— Eu era uma final girl! — Explico entusiasmada, o fazendo rir.
Apesar de não ter ficado nem cinco minutos na festa à fantasia em minha própria casa, após o sol nascer e eu ainda estar viva, apesar de estar sofrendo de desidratação e uma leve infecção respiratória graças à um afogamento na floresta, eu me senti como uma sobrevivente. A que pôs um fim em todo o terror.
— Sidney Prescott tem muito o que aprender com você — Comenta convencido. — Você conseguiu de primeira — Ele beija minha bochecha.
— Dê algum crédito à senhorita Prescott. Ela tem de lidar com malucos por filmes de terror, eu só tive que derrotar minha ancestral mágica e vingativa — Dou de ombros, rindo de minha definição simplista.
— Bem, você salvou a minha vida — Pondera, mordiscando o próprio lábio.
— Eu estava te devendo essa — Rio sem jeito e ele me acompanha.
— Acho que vai começar… — olha por cima do ombro, vendo a movimentação começar a se intensificar um pouco mais adiante.
Antes de irmos testemunhar a cerimônia, entrelaço meus dedos nos dele, o impedindo de continuar a andar. Sinto a cicatriz na palma de sua mão contra a minha e sorrio, indo até ele para um beijo sem pressa.
É um beijo apaixonado, intenso, quente. Quase como se nunca tivéssemos feito isso antes em quase seis meses de namoro.
— Eu… — olha fundo nos meus olhos. Sua hesitação faz o ar ficar denso em meus pulmões.
Ele vai dizer. Finalmente, ele vai dizer.
— ! — Vic grita, irritada. — Vem logo! Nós vamos nos atrasar por sua causa! — aceita que nossa conversa seja interrompida, mas me olha como se dissesse que ainda temos um assunto a tratar quando estivermos à sós.
— Eu... te vejo quando isso terminar — Ele morde o interior da boca, tomando alguns segundos para me olhar assim, de perto.
entrelaça nossos dedos, me acompanhando até o lugar onde devo ficar. Ele beija minha bochecha e se afasta, encontrando seu lugar ao lado de Olívia, a jogadora de vôlei que foi capaz de fazer Leslie sossegar e, claro, Carl.
Corro para meu posto, recebendo um pequeno buquê com variados tons de roxo nas flores.
Entro na fila atrás de Vic e ela pisa no meu pé com seu salto fino, de propósito.
— Eu já estou aqui! — Reclamo, massageando o dedo mindinho do pé.
— Obrigada por estarem aqui. Vocês são a melhor parte desse sonho. Amo vocês! — Hannah se emociona, chacoalhando seu buquê em nossas direções.
O quarteto de cordas inicia a marcha nupcial e nós começamos a entrar enfileiradas.
Os pais dos noivos estão sentados logo na frente, assim como alguns amigos e nossos acompanhantes.
Ficamos ao seu lado, vendo como ela sorri para Brian, que chega a perder um pouco a compostura ao vê-la vestida de noiva.
A cerimônia se inicia e tudo parece ter saído mesmo de um conto de fadas. As pequenas luzes penduradas iluminam a parte de cima do jardim, que parece ter sido encantado com a flora farta e colorida. Na parte de baixo, algumas velas iluminam o pequeno altar, onde fica um arco bonito, adornado com tecido e plantas, além de rosas chamativas, bem posicionadas.
Hannah e Brian se encaram cheios de esperança, a expectativa de viverem a vida inteira juntos.
A visão é aconchegante, aquece nossos corações conforme eles juram amar um ao outro por toda a eternidade.
Procuro por na terceira fileira, ele ergue as sobrancelhas, ainda fica surpreso e ligeiramente corado quando meu olhar encontra o seu com tanta facilidade.
— Eu aceito — diz Hannah, a voz embargada pela emoção.
As meninas e eu nos entreolhamos sorridentes, finalmente aconteceu.
— Eu… — Brian é interrompido por uma tosse, todos os presentes soltam uma risada com o momento inoportuno. Ele solta um pigarro, franzindo o cenho rapidamente. — Eu… — Brian cai de joelhos, assustando a todos com uma tosse intensa.
— O que está acontecendo? — Hannah se põe diante dele, tentando levantá-lo. — Brian!
O homem cospe o que parecem ser bolsas de sangue. Coagulado, escuro.
Ele mancha o vestido de Hannah, que olha diretamente para mim. Seus olhos estão escurecidos de medo.
O pânico se instaura no lugar.
Os gritos aumentam conforme a tosse incontrolável atinge os convidados, que começam a correr em completo desespero.
O padre começa a fazer o sinal da cruz, mas é interrompido por um incômodo em sua garganta. Ele cai de joelhos, apertando o terço na palma da mão.
O pobre homem de Deus morre engasgado com o próprio sangue.
— Que porra é essa? — Leslie desvia de um convidado, que esbarra em uma das velas e se desespera quando um pequeno incêndio se inicia.
— Temos que sair daqui! — Vic diz rápido, tirando os saltos altos e indo até Hannah, que chacoalha Brian gritando em plenos pulmões.
O rapaz não se mexe mais.
— ! — Leslie me puxa pela mão, me afastando do fogo.
Tudo acontece tão rápido, é tão confuso entender o que estou vendo e processar que as pessoas se empilhando nos corredores de cadeiras estão todas mortas.
Ouço o choro de Hannah, os gritos desesperados dos convidados.
A tosse vem de todos os lados, o sangue mancha o chão de madeira, o medo se alastra junto com o fogo.
— ? — A voz rouca de parece alarmada, muito mais alta que o normal.
Ele tosse repetidas vezes e eu vou até ele.
Não entendo o que sinto.
Na verdade, não entendo porquê não consigo sentir nada.
O choro de Hannah diminui, ela levanta o rosto pálido de Brian e beija os lábios ensanguentados do homem.
— Eu aceito, Brian. Nós vamos ficar juntos — Hannah abraça o corpo dele com força, se recusando a sair de perto do fogo que já toma toda a decoração com sua chama potente.
— Nós temos que ir, Les… Temos que ir — diz Victoria, a tosse já bem avançada. Ela puxa a amiga pela mão, que ainda tenta levar Hannah consigo.
se desequilibra e eu o amparo, o deitando no chão e apoiando sua cabeça com minha coxa.
Seu sangue mancha meu vestido, minhas pernas. Está por toda parte.
É tão convidativo e estranhamente satisfatório ver todo aquele vermelho ocupar todo o resto.
— … — ergue sua mão gelada e trêmula, tocando minha bochecha. Ele enxuga uma lágrima e só então, percebo que estou chorando. — Eu amo você, . Eu amo — Sua respiração ruidosa é rápida e descompassada. Eu sei que não posso fazer nada por ele, mas ainda tento fazer com que ele pare de cuspir seu sangue.
Ele escorre por meus dedos, assim como sua vida.
Ouço o último suspiro ruidoso de e tomo algum tempo para compreender que ele está morto. Sua pele ainda é quente, seus olhos ainda brilham tanto.
Coloco minha mão sobre seu peito e não sinto seu coração batendo forte como batia quando estávamos juntos.
Procuro por Vic e Les, quando as encontro, percebo que sou a única ainda respirando.
Minha garganta dói como se eu estivesse gritando desde que todo o horror começou, mas não emiti som algum. Sinto um incômodo no peito, como se meu coração tivesse dobrado de tamanho e pesasse demais.
A estrutura de madeira do arco despedaça, em chamas, e o fogo se alastra por todos os lugares.
Não há saída.
Aos poucos, o silêncio vai se tornando sombrio e absoluto.
Meus pulmões ardem e toda a fumaça deixa difícil respirar.
Eu sabia.
Ela nunca me deixaria em paz.
Se contorcendo dentro de mim, uma risada involuntária escapa por meus lábios, fazendo meus ombros sacudirem. Eu tento contê-la, negando o sentimento de alívio que cresce dentro de mim.
Ele não me pertence.
Começo a tossir e nem a tosse intensa faz a risada satisfeita cessar.
Limpo os cantos da boca com as costas da mão, vendo meu sangue se misturar com o de .
Eu nem pude dizer a ele.
Tento respirar fundo e tudo o que sinto é o cheiro forte de alecrim.
— Maldita bruxa vingativa!