Av. Pelinca, 263

Finalizada em: 07/01/2018

Capítulo Único

Ela fechou a porta atrás de si, deixando o barulho de carros e pessoas do lado de fora. Respirou fundo. Começou a subir as escadas.
O apartamento de um quarto não era grande, mas era o suficiente pra ela. O gato da vizinha de baixo costumava fazer visitas frequentes a noite e o barulho que vinha da rua da sexta-feira até o domingo era meio enlouquecedor. As paredes do quarto tinham uma cor horrorosa e o cheiro característico do Subway localizado no térreo parecia estar impregnado em cada canto.
Mas ela gostava de como, com o tempo, o espaço adquirira características próprias. O sofá vintage, o tapete felpudo, as cortinas que não combinavam com nada, a iluminação intimista. A música ao vivo de quinta a domingo do restaurante na esquina em frente. A estante abarrotada com todos os livros que trouxera da casa dos pais e todos os outros que adquirira desde então. Também gostava da varanda dos fundos, onde ela podia fumar seu cigarro diário no fim da noite sem preocupações, vendo os carros passando na rua ao lado e as pessoas saindo da mercearia com garrafas de bebidas coloridas e baratas.
Naquela quinta-feira, entretanto, nada de cigarros no fim da noite, porque ele viria e não gostava que ela fumasse.
Nunca em sua vida pensara em fazer concessões por outra pessoa, e agora que fazia, não via como concessões. Eram concessões e ela não podia fazer nada pra mudar tal fato, mas pensar de outra forma tornava todo o resto menos real.
Antes de ir tomar banho no banheiro apertado onde na semana passada eles haviam transado e no qual ela não conseguia mais entrar sem lembrar desse fato, abriu a geladeira e checou seu conteúdo. Queijo branco, presunto magro, uma caixa de leite, margarina, geleia de damasco, uma fatia do bolo do aniversário de sua sobrinha cuja festa fora no domingo anterior, um vidro de mostarda. Ovos. Várias garrafas de água, uma garrafa de vodca pela metade, seis cervejas. Não tinha intenção de cozinhar, estava nervosa demais pra comer qualquer coisa. Mas era sempre assim: ele vinha e eles sentavam um na frente do outro no sofá puído e por dez minutos ficavam se encarando pra ver quem falaria primeiro. E era sempre ela quem cansava de esperar e o ajudava a tirar as roupas e tirava as próprias e eles transavam ali mesmo no tapete, às vezes com o gato da vizinha os julgando da porta da varanda. Nunca comiam. Ele nunca ficava.
Mas não naquele dia. Ela estava determinada a esperar o tempo que precisasse para que conseguisse falar as coisas entaladas na própria garganta, sem arrancar roupas ou perder a dignidade pedindo pra que ele ficasse. Passara o dia tentando tomar uma decisão e apesar de já serem quase seis horas da tarde, ainda não tinha cem por cento de certeza, mas parecia o melhor caminho a se tomar.
Abriu uma Stella e tomou um gole. Tinham mais cinco long necks na geladeira e o tempo que ela levasse pra tomar todo o seu conteúdo seria o tempo que teria pra dizer o que vinha guardando há duas semanas e três dias – não que ela estivesse contando.
Terminou a cerveja e foi para o banho.

X

Exatamente às vinte horas e cinquenta e sete minutos – horário de Brasília – ele estacionou o carro, do qual ela ainda não conseguia se lembrar, numa vaga apertada na rua ao lado do apartamento dela. Do ponto em que parou, tinha uma visão privilegiada da varanda dos fundos, onde ela se encontrava sentada na sacada fumando um cigarro.
Franziu a testa. Ela não fumava nos dias em que ele ia. Sabia que era porque ela tinha em mente que ele não gostava de cigarro, mas sempre foi preocupação pela saúde dela acima de qualquer coisa. O gosto também não era muito bom, mas o dela era melhor e se sobrepunha a qualquer outro.
Desceu do carro, travou as portas, acionou o alarme e ligou pra ela. Ficou parado na calçada esperando que ela atendesse, os olhos fixos na imagem dela ainda terminando o cigarro.
“Sempre pontual” – a voz dela, rouca e sempre sarcástica soou pelo ouvido dele através do telefone. Ele sorriu. Um grupo de cinco pessoas passou por ele falando muito alto e bebendo alguma coisa rosa.
“Abre a porta pra mim.”
O tempo que ela levaria para apagar o cigarro, esticar a coluna, percorrer o apartamento e descer as escadas era equivalente ao tempo que ele levaria para virar a esquina e esperá-la abrir a porta. Quando ela o fez, seus cabelos soltos estavam impregnados pelo cheiro de Lucky Strike azul, ele percebeu ao abraçá-la. Sempre se cumprimentavam na porta dessa forma, apenas um abraço.
Já se perguntara várias vezes o motivo, mas nunca expressara sua dúvida. Também não tinha planos pra tal. Mas quando entrou no apartamento e ela trancou a porta atrás de si, percebeu que talvez ela tivesse planos próprios para aquela noite, que certamente o envolviam.
O velho abajur cuja lâmpada variava de cor toda vez que ele voltava estava azul. Azul era a cor favorita dela e poderia ser percebida em pequenos detalhes por todo o apartamento. Ele não se lembrava porque sabia daquele detalhe, mas sabia. Nunca o abajur estivera azul. Mas não era só a luz. A caixinha de som tocava Lana del Rey baixinho e ele se lembrava da vez em que eles estavam no carro dele na rua atrás da faculdade enquanto tocava Young and Beautiful e de como ela ficara surpresa porque ele realmente gostava da música. A janela e as cortinas estavam fechadas, como sempre, e o apartamento tinha uma áurea sufocante, que ele sabia não ser calor.
Ela parecia querer algo dele e também parecia não estar disposta a usar os meios usuais para conseguir. Ele respirou fundo.

“Senta. Quer uma cerveja?”

Ele obedeceu, porque não fora um pedido, mas recusou a cerveja. Era véspera de feriado, mas ele tinha planos de voltar pra casa dirigindo. Os pés descalços dela pararam à sua frente, as unhas pintadas de branco. Ela tinha pernas maravilhosas.

“Tudo bem, eu bebo todas elas por você.”

X

Trinta minutos. Nunca tinham chegado a tanto.
O Born To Die já havia acabado e agora começavam a sair da caixa de som as músicas estranhas do seu Spotify que ela geralmente não mostrava a ninguém. A vocalista de uma banda chamada W.E.T cantava sobre os motivos pelos quais ela estava indo embora em It’s All in Vain.
Ela terminou a quinta cerveja. É tudo em vão, pensou, ao levantar para jogar a long neck no lixo e pegar a última que sobrara na geladeira. Trinta minutos, quatro cervejas e tudo o que haviam dito um ao outro foram cumprimentos instituídos por convenções sociais. Como vão as coisas? ele perguntou, e ela já tinha chegado num ponto da vida em que não ficava mais tentando interpretar tudo o que ele dizia, como se existisse algo nas entrelinhas. Vão bem, e as suas? ela respondeu enquanto abria a segunda cerveja do dia, um impulso extra, coragem líquida. Tudo certo, ele respondeu e ela assentiu e sentou ao lado dele.
Mas nada ia bem dentro dela. E as coisas entre eles também não pareciam ir bem, visto que ela não se sentia confortável de dividir seus problemas. Quando eles se transformaram naquilo? Tanto esforço em vão.

“Você vai ficar bêbada.”
“Com seis cervejas? Você me subestima.”
“Duvido que tenha comido alguma coisa. Então não importa o número de cervejas.”
“E você se importa?”
“Está sendo grossa gratuitamente e nós...”
“Eu transei com outra pessoa.”

Silêncio.
Ela esperava que houvesse silêncio. Esperava que houvesse silêncio e hesitação e ele dizendo sutilmente que não se importava, porque a verdade era aquela: ele não se importava. Ou pelo menos ele dera todos os sinais pra que ela pensasse dessa maneira. Nunca lhe ocorreu perguntar; tinha medo da resposta.

“Com quem?” – pausa – “Não, eu não acho que quero saber isso.”
“Com meu ex” – ela respondeu, porque se ele perguntara, queria saber.

Silêncio.
Último gole da última cerveja. Mãos suando. Lábios secos.

“E foi bom?”

Ela começou a rir. Uma risada sarcástica e desesperada de quem não acredita nos eventos que se sucedem. Ele era inacreditável e ela estava ficando muito puta. Colocou a long neck ao lado do sofá, abaixou a cabeça até os joelhos e puxou a raiz dos cabelos. Ficaria louca daquele jeito.

“O que você quer que eu diga? Quantas vezes eu gozei? Se ele me comeu em pé no box do banheiro, do jeito que você sabe que eu gosto? Se ele marcou minha pele, coisa que eu não deixo você fazer?”
, para...”
“Não, , não paro.” – ela se levantou, andou até a janela e olhou pra fora, por uma fresta nas cortinas. Contou os carros parados no sinal; eram nove, até onde sua vista alcançava. No bar em frente, um casal dançava no meio das mesas, uma música que ela não conseguia ouvir, cantada ao vivo – “Meu corpo manifestou reações involuntárias, que é o que acontece quando a cabeça de alguém está no meio das suas pernas,” – ela o ouviu respirar fundo - “mas eu não senti tesão. Ele me venerou como se eu fosse alguma espécie de relíquia sagrada perdida, e eu não senti nada. Ele não era você. Não consigo sentir mais nada se o catalisador não for você.”

O significado de catalisador apontado pelo Google é aquilo que estimula mudanças e acelera um processo químico. E era isso o que ele era pra ela: um estimulante natural e perfeito que acelerava todos os processos químicos possíveis existentes em seu corpo. O cheiro dele, sentido em qualquer lugar despertava todos os cinco sentidos dela. As mãos dele quando agarravam sua cabeça faziam cada pelo de seu corpo arrepiar. A língua dele traçando desenhos de saliva pela sua barriga a fazia esquecer seu próprio nome. Ele a entorpecia e ela não conseguia mais lidar com aquilo. Não era justo que ele causasse toda aquela confusão nela e seus efeitos sobre ele fossem nulos.
Ele continuava em silêncio. Nenhum comentário sobre a sua sinceridade, nenhuma reação que a fizesse pensar que ele estava sentindo alguma coisa, qualquer coisa, nem que fosse raiva. Nem que fosse pena, sentimento que ela repudiava com todas as forças presentes em seu pequeno corpo. Precisava saber que ele não era um robô.
Como ele não esboçava reação, continuou a falar, mesmo sem saber se ele queria continuar a ouvir.

“Eu sabia que não era boa ideia, mas resolvi tentar, porque estou sufocada de você e tenho saudades de quando eu era inteiramente minha. E eu presumo que você não saiba, mas é uma verdadeira merda se doar pra uma pessoa sem ao menos perceber tal fato e assistir ela não se importando.”
“Eu não...”
“Me deixa terminar. Preciso vomitar tudo agora ou vou sofrer com essa indigestão pra sempre” – do sofá, ele a assistiu prender os cabelos em um coque feito de qualquer maneira e estalar os dedos das mãos, um por um. A cortina fora completamente fechada novamente e ele só conseguia ver sua silhueta contra a luz que vinha da rua – “Eu fui plenamente consciente de que precisava fazer aquilo, e tudo bem usar outra pessoa, porque é isso o que fazemos todos os dias. Mas eu não esperava que fosse dar tão errado. Não esperava que a sensação fosse à de que você estava me julgando do canto do quarto, desaprovando o que eu fazia como se você não fizesse o mesmo comigo. E por eu te sentir me julgando à distância eu não conseguia nem ao menos ler as reações do corpo dele e reagir de acordo. E eu sou boa, sou boa pra caralho, mas com ele eu não consegui ser. Ele não fode mal, mas você me fode muito melhor.”
Normalmente o corpo dele tinha reações padrão às coisas sujas que ela dizia. Respiração profunda, arrepios, ereção. Aplicadas à outra pessoa em uma situação diversa à que eles estavam vivendo, ela esperava que passassem incólumes, ou o desenho que começara a fazer dele em sua mente tomaria contornos piores do que ela imaginava que poderiam tomar.
“No dia seguinte à minha decisão desastrosa eu estava completamente alheia a tudo o que fazia no trabalho. E a Juliana, aquela que apanha do marido, que com certeza tem problemas de relacionamento muito mais sérios do que os meus, me perguntou o que tinha acontecido, e ela sabia que tinha a ver com você. Eu não contei, porque estava muito envergonhada com a minha própria escolha estúpida, e ela presumiu que tínhamos discutido ou qualquer besteira dessas das quais não somos vítimas. Ela falou as exatas palavras vocês têm um namoro estranho. E eu a corrigi na mesma hora dizendo que não tínhamos namoro nenhum. Quando ela me perguntou o porquê, simplesmente disse que você não sentia o suficiente por mim. E eu fui bem legal em dizer o suficiente, porque até onde sei, você não sente nada. Não gosto da naturalidade com que falo das coisas que você não sente por mim. As coisas que eu queria que você sentisse.”
Ele a assistiu sair de perto da janela e voltar pro sofá ao lado dele, um novo tipo de tensão ao redor dos dois. Ela agradeceu pela luz ser suficientemente escura para que ele não conseguisse ver seus olhos vermelhos e o nervosismo em seu semblante. Sentia que ia vomitar no tapete felpudo a qualquer momento. E ele fora lavado naquela semana.
“Então você me pergunta se foi bom e minha única resposta possível é a de que foi horrível. Mas não porque o sexo em si tenha sido ruim. Gozei vezes o suficiente pras três horas que ficamos juntos e tinha marcas de dedos nos quadris até três dias depois. Foi horrível porque ele não conseguiu te tirar da minha pele e era minha última esperança, porque eu não vou conseguir e você não parece querer ir embora sozinho” – ela respirou fundo e passou as mãos no rosto – “Você pode falar agora.”

Ela lhe deu o aval para dizer o que queria, mas as últimas palavras dela comeram as dele e os dois ficaram em silêncio.
Apesar da garrafa de vodca na geladeira estar pela metade e de não ter sido nada barata, ela sentia que não conseguiria beber mais nada agora que já tinha falado todas as coisas que ensaiou jogar na cara dele durante duas semanas. Tudo o que sentia e tudo o que sua razão lhe dizia que devia fazer estavam em conflito na sua cabeça, que gradativamente começava a doer. Impressionava-a o fato de que até calado ele conseguia causar efeitos atordoantes em seu organismo.
Óbvio que também estava um pouco alterada pelo álcool bebido de estômago vazio, mas a dor de cabeça pela cerveja só viria na manhã seguinte.
Decidiu ocupar as mãos e a atenção até que a voz dele voltasse. Levantou do sofá e foi jogar a long neck no lixo, mas parou no meio do caminho quando ele decidiu falar. Que timing horroroso, pensou.

“Você quer que eu vá embora? De vez?”

Respirou fundo, tentando oxigenar o cérebro e não usar todos os palavrões que conhecia com ele. Como uma pessoa conseguia ser tão boca aberta?

“Essa é a única pergunta que você tem pra mim? Se eu quero que você vá embora?”
“Não é a única, mas as outras dependem da resposta dela.”
“Não, , eu não quero que você vá embora, porque você ir embora vai ser a mesma sensação de alguém me esfolar viva pra te tirar da minha pele, e eu vou ter que sorrir enquanto fazem isso. Eu quero que você pegue a porra da informação que eu te dei e faça algo útil com ela. Algo útil que afete nós dois. Se você achar que você partir tem utilidade, tudo bem. Já tentei lidar com isso uma vez, acredito que vá sobreviver. Sempre posso estar errada.”
“Não ajuda você vir com sarcasmo e pedras na mão.”
“Mas são as únicas armas que eu tenho!” – sua voz subiu e ela sabia que dali em diante não conseguiria controlar os próprios nervos – “Eu digo pra você que transei com outra pessoa e que foi horrível e a culpa é sua porque eu não sei sentir por mais ninguém e você não me esboça reação nenhuma! O que quer que eu faça quando eu sei que você passa o pau em quem quiser por aí e volta pra mim porque sabe que eu fico te esperando? Sou só mais uma.”

Ela não ouviu os passos dele atravessando o apartamento, nem quando ele saiu de cima do tapete para pisar no piso escuro. Sentiu as mãos dele na sua barriga, a abraçando de costas e seus olhos se encheram d’água no mesmo minuto. Não teve tempo de sair correndo do abraço e não estava preparada para o contato.

“Você não é só mais uma. Achei que depois de tanto tempo já saberia disso” – ele não era tão mais alto do que ela, a bochecha dele estava encostada no topo de sua cabeça e ela sentiu os músculos se movimentando quando ele falou.
“Como eu saberia se você não demonstra?”

Ele respirou fundo e a apertou um pouco mais contra seu corpo. Ela encostou a testa na superfície fria da geladeira e manteve as mãos paradas ao lado dos quadris. Não esperava que ele fosse ter aquele tipo de reação física. Não se preparara para aquilo.

“Você também não demonstra muitas coisas, , mas nem por isso eu deixo de perceber como te faço sentir.”
“Sou mais transparente do que você porque sinto muito mais do que você. Não é uma lógica muito difícil de alcançar.”
“Você é uma pessoa muito difícil.”
“Sou sim. Entendo se estiver cansado.”

X


Após alguns minutos ele respirou fundo novamente. Tirou os braços e as mãos dela e afastou o próprio corpo. Era mais fácil para ambos tomar decisões enquanto estavam fisicamente distantes, mas tais decisões no fim das contas talvez não correspondessem ao que queriam, por serem baseadas em puro instinto de autopreservação. Correspondiam ao que precisavam.
E ambos sabiam que o que precisavam era manter distância um do outro.
Fazia dois anos que levavam aquele pseudo relacionamento estranho. Ela não era dele, ele não era dela, e os dois seguiam fingindo que aquilo não incomodava a ambos. Seus encontros eram sucessões de palavras não ditas trocadas por sexo desesperado e conversas superficiais sobre suas rotinas.
Ela beijava outras bocas com mais frequência do que gostaria de admitir e ele tinha suas liberdades por morar a uma cidade de distância. Ninguém falava sobre isso, da mesma forma com que não se fala sobre direitos das mulheres na Arábia Saudita. Era um tabu entre os dois as coisas que faziam quando estavam separados. E nenhum deles sabia muito bem porque as coisas eram assim.
pensava que se eles fossem honestos um com o outro sobre isso ela não teria se apaixonado da forma com que se apaixonou. Não teria se deixado enganar pela possibilidade de que o sentimento cresceria dentro dele também. Mas quando tocou no tópico lealdade, fugiu da conversa e automaticamente esse se tornou um assunto a mais no rol de temas tabu.
Claro que os dois sabiam que existiam vidas paralelas àquela que fingiam viver juntos. Eles só não davam importância a isso.
Foi não dando importância aos detalhes que as coisas começaram a dar errado.

“Eu não quero que você vá embora. Mas eu acho que você devia ir. Porque a não ser que mudemos a forma com que levamos isso, não vamos mais funcionar com a mesma simbiose.”

Ela falou e só depois que terminou de falar virou o corpo em direção a ele. Seus braços estavam apoiados na bancada da cozinha, a mão direita próxima à fruteira vazia. Os olhos dele estavam fechados e sua expressão era a de alguém que pedia algo a Deus com todas as forças que possuía. Mas ele não acreditava em Deus. Não acreditava em Deus ou em fidelidade ou em amor a primeira vista ou em coincidências. Ele era um cético e ela era crente de todas as coisas da vida que outrora já usaram como desculpa a possibilidade de ser magia.
Ao olhar a imagem que ele formava, só conseguia pensar que eles já haviam transado na bancada da cozinha numa quinta-feira como aquela. Na verdade, o único local imaculado do apartamento era a varanda dos fundos, por motivos óbvios. Ele se enfiara em todos os poros do corpo dela e em cada canto da casa dela. Parecia querer tornar a manutenção de sua sanidade uma missão impossível.
O que mais a matava era o silêncio. Ele sempre lhe dizia que era administrador e pra ser administrador falar muito não era um pré requisito, aquela era uma característica inata dela, não dele. E justamente por falar muito e falar qualquer coisa que lhe desse na telha, ela não sabia lidar com a falta de comunicação entre eles. Era um entre os vários problemas que ela evitava ao máximo começar a listar, por não saber até onde essa lista iria. Por não saber o que faria com ela uma vez que estivesse pronta.
deu os dois passos que os separavam e passou os braços pelo tronco dele. Levou três segundos para que ele se desse conta e retribuísse o abraço. Beijou a têmpora dela e manteve os lábios ali. Cacete, como aquilo doía.

, eu vou te fazer uma pergunta e você vai ser sincero na sua resposta.”
“Tudo bem.”
“Eu transar com outra pessoa te afeta de alguma maneira?”

Silêncio.
Ela estava farta da porra do silêncio.
Tudo o que queria era uma resposta conclusiva que ajudasse ambos a resolverem o enigma no qual estavam enfiados, e tudo o que recebia era silêncio. No começo da loucura em que se enfiou, antes mesmo de saber que era loucura, que corria algum tipo de perigo, ela perdia horas de seus dias tentando interpretar as coisas que ele dizia, porque ela pensava que não era possível que ele fosse sincero na mediocridade do que dizia.
Depois de dois anos chegara à conclusão de que era sim possível e de que não era nada saudável alimentar suas neuroses daquela forma. Parou de achar que suas conversas eram questões discursivas de vestibular e passou a levar o que ele dizia quase sempre ao pé da letra. Mas tal exercício não tornara sua experiência mais fácil, e chegara à conclusão de que as coisas que ele dizia e o total silêncio que mantinham quando concentrados em arrancar as roupas um do outro, significavam a mesma coisa.
Não era daquela forma que os clássicos romancistas retratavam o amor.

“Queria dizer que sim.”

As palavras dele a pegaram desprevenida. Quando ele se expressava de forma clara era bom, porque não deixava margem para que a imaginação fértil dela voltasse a trabalhar. Mas era um tapa na cara também. Ele falava tanto da sinceridade dela e não tinha noção da dimensão de sua própria, usada com muito mais parcimônia do que a dela.

“Queria dizer que sim, mas não faz efetivamente nada pra que isso aconteça. Ok” - Ela o soltou e, ao perceber que ele não a soltava, tirou ela própria, com algum esforço, as mãos dele de seu corpo. Estava cansada. Deus, como estava cansada!
“O que você espera que eu faça? Não posso me obrigar a sentir!”
“Eu também não posso apertar um botão e deixar de amar você!” – ele fechou os olhos, como sempre fazia quando ela deixava explícito como se sentia sobre ele – “Mas já que eu me vejo obrigada a fazer isso, melhor tentar fazer contigo longe.”

Ela lera numa revista algum tempo atrás uma entrevista com o sociólogo Zygmunt Bauman, de quem nunca ouvira falar até então. Ele dizia na entrevista que vivíamos todos em tempos líquidos, onde nada é pra durar. E que o amor só dura enquanto trouxer satisfação e que, por isso, pode ser facilmente trocado por outro que ofereça mais.
Tinha lá seus receios acerca de conceitos sociológicos modernos, mas ao encarar a fragilidade do relacionamento entre os dois refletida nos olhos escuros dele, cogitou a possibilidade de aquele velho estar certo e de tudo ser mesmo líquido e efêmero.
Ele a assistiu ir até a mesinha ao lado do sofá, a mesma que guardava o abajur de lâmpada azul e um livro qualquer de poesias, e pegar a chave do carro dele, sua carteira e seu celular. Ela os estendeu em sua direção, sem dizer nada.

“Percebe o quão ridículo é você querer terminar porque transou com outra pessoa?”
“Isso não é pela minha transa sem significado nenhum! É pela sua incapacidade de arriscar abandonar suas próprias convicções pra tentar viver algo sólido comigo. Eu nem acho que exigiria demais de você! Conseguiria te dividir, por exemplo, mas acontece que você não é e nem quer ser meu pra dividir.”

Ela colocou os pertences dele ao lado da fruteira vazia, próximos das mãos que ela não mais sentiria tocá-la. Saiu da cozinha, soltou os cabelos e foi andando em direção ao próprio quarto. Não olhou para trás; poderia mudar sua decisão se o olhar dele lhe dissesse algo que a boca não dizia.

“Quero que você vá embora, agora.”





Fim!




Nota da autora: Sem nota.



Nota da beta: Como assim acabou? AAAAA tô chocadaaa, não aceito isso de jeito nenhum, cadê a continuação? Parabéns <3

Lembrando que qualquer erro nessa atualização e reclamações somente no e-mail.




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