Dias atuais.
apertava o volante da velha caminhonete, passar por aquela estrada já trazia à sua memória em pensamentos desconexos: um toque, um beijo, uma palavra, tudo passava como uma onda por sua mente. Sacudiu a cabeça para tentar espantar aqueles pensamentos que ele sabia que voltariam novamente. Pegou o celular para olhar rapidamente a hora, e o que o chamou atenção foi a data: 11 de dezembro. Como ele amaldiçoava aquela data. Pisou no acelerador, mas o motor 1.0 não o permitia andar mais, “motor maldito”, pensou.
Estava tão absorto em seus pensamentos e memórias que quase perdeu a placa à direita: “Sun Valley”, os dizeres em amarelo na placa de madeira só o deixavam mais nostálgico. Pegou a entrada à direita para Sun Valley e seu subconsciente lutava contra tudo aquilo que ele estava fazendo. Ele sabia que estava se torturando lentamente, que ele já havia deixado pedacinhos dele em cada parte daquele caminho, e passar por ali de novo só o trazia mais dor, mas ele dizia a si mesmo que precisava passar por ali uma última vez, sentir aquela dor uma última vez. Não conseguia convencer a si mesmo de que deveria de fato voltar ali, mas ao mesmo tempo não tinha forças para dar meia volta.
Avistou a casa de madeira, estacionou e relutou em sair do carro, “por que eu estou fazendo isso? Quão estúpido eu sou?”, pensou. Encostou a cabeça no volante e respirou fundo. “Estúpido o bastante”. Abriu a porta do carro, pegou sua mochila no banco de trás e admirou a casa. Aquela que deveria ser o seu lar. Aquela que deveria abrigá-lo juntamente com e os cinco filhos que ele queria ter. Agora seria vendida a um cantor de rock qualquer. Respirou fundo mais uma vez e entrou na casa. Por mais impossível que aquilo pudesse ser ele sentia o cheiro que já o inebriara tantas vezes. O cheiro do perfume dela misturado ao cheiro amadeirado da casa que o traziam à memória cada detalhe daquele dia 11 de dezembro, um ano atrás.
1 ano antes.
Sheets of empty canvas,
Untouched sheets of clay...
Were laid spread out before me
As her body once did
passava a ponta dos dedos pela parede de madeira, seus olhos brilhavam e o sorriso bobo não deixava seus lábios.
- - ela sussurrou - essa casa… É perfeita!
Ele a abraçou por trás e beijou seu pescoço, sentindo o perfume que ele tanto amava, que tanto o hipnotizava.
- Então é essa? - ele perguntou, sussurrando no ouvido dela.
virou-se, olhando-o nos olhos - é essa! - respondeu, sem conseguir conter o sorriso que estampava seu rosto de orelha a orelha. enfiou uma das mãos no bolso da calça e tirou de lá uma chave, brilhante.
- Eu já sabia que era essa. É nossa - entregou a chave a ela, que já não sabia se sorria ou chorava com o misto de felicidade e emoção que sentia.
sem saber muito se o agradecia, se o abraçava, nem o que deveria sentir, apenas o beijou. Beijaram-se talvez como nunca antes, com tamanha paixão e urgência. passeava com as mãos pelas coxas e quadris de , e ela acariciava os cabelos da nuca dele e aprofundava ainda mais o beijo, se é que aquilo era possível. Separaram-se momentaneamente para tirarem suas camisas e sentirem seus corpos cada vez mais unidos.
Naquele chão de madeira, coberto apenas por um lençol branco ligeiramente empoeirado eles se amaram. Foram uma só carne. E se amaram por umas três vezes seguidas até adormecerem. Por volta das cinco da tarde acordou, um pouco atordoado ao ver onde estava, até que se lembrou e admirou o corpo nu de deitado ao seu lado, iluminado pela luz alaranjada do sol se pondo na grande janela à sua frente. Admirou cada contorno daquele corpo, cada curva, até mesmo suas menores imperfeições, para ele, ela era perfeita em cada detalhe.
Dias atuais.
All the pictures have
All been washed in black,
Tattooed everything
posicionou-se frente à grande janela. O sol já estava se pondo e a luz alaranjada iluminava o velho e empoeirado lençol branco no chão de madeira, onde o corpo dela um dia esteve. Segurou um soluço. Ele não queria chorar, não queria porque sabia que se começasse talvez nunca mais seria capaz de parar. Afastou-se da janela em direção ao interior da casa. Admirou cada parede onde uma vez já imaginara pendurar fotos dela, fotos dos dois, e agora, em sua mente, aquelas fotos estavam manchadas de preto. Aquelas memórias eram negras, e nunca mais sairiam da sua mente. Tatuadas. Segurou mais um soluço. Aquelas paredes pareciam cada vez menores, o sufocavam. Decidiu sair dali logo.
I take a walk outside
I'm surrounded by some kids at play
I can feel their laughter so why do I sear?
Vestiu um grande casaco e foi passear pelas ruas de Sun Valley. À luz do pôr do sol e coberto por neve aquele lugar era ainda mais bonito, e ele não conseguia afastar o pensamento de que era o lugar perfeito para se construir uma família. Rumou em direção a um parquinho rústico em uma praça, com brinquedos simples. Um escorregador, uma trepadeira, gangorras. Olhou para os lados e viu que estava cercado por crianças correndo. Fechou os olhos e por poucos segundos naquele dia ele foi feliz, imaginando ao seu lado, e os dois cercados por filhos brincando no parque. Sentia as gargalhadas, mas o momento de paz passou e deu lugar a dor novamente. Tirou um cigarro do bolso e saiu dali para fumar.
Saiu andando sem rumo e quando percebeu já havia fumado três cigarros, estava novamente em frente à velha casa de madeira. Jogou o que ainda restava daquele último cigarro no chão e entrou na casa. Sentou no chão coberto pelo lençol e segurou sua cabeça na tentativa de organizar o turbilhão de pensamentos que o rondavam. Seu rosto, seu cheiro, seus cabelos ao vento quando ela estava ao seu lado na velha caminhonete, voltando de Sun Valley para Idaho City, aquelas memórias o consumiam novamente.
1 ano antes.
(N/A: essa é a música que tocava no carro)
Josh Turner tocava no rádio da caminhonete e deitava a cabeça no banco e cantava junto com a música em uma voz doce, o vento que entrava pela janela balançava seus cabelos castanhos e o cheiro do perfume amadeirado que ela usava invadia o carro. olhava para o lado de tempos em tempos e admirava o quão bela ela era. O cheiro do perfume, a música country, a voz de , tudo só o fazia ter certeza de que comprar a casa em Sun Valley foi a melhor coisa que fizera, e ele só conseguia pensar no quanto queria voltar lá para mudar-se definitivamente para construir uma vida com ela.
Dias atuais.
Oh and twisted thoughts that spin 'round my head
I'm spinning, oh, I'm spinning
How quick the sun can drop away
jurava que conseguia até escutar a voz dela cantando junto com Josh Turner. Outras memórias o invadiam tão rápido quanto essa. Todo o tempo que passaram juntos veio como um flash em sua mente. Cada cena. Cada beijo que foi dado e os que não foram também. Cada abraço. Cada vez em que ele sentiu o cheiro dela. Cada sexo. Cada lingerie que ela já usou com ele. Cada vez em que deram as mãos. Que saíram para comer juntos, para assistir filme juntos. Cada momento que passaram juntos. Cada um deles. Até o último momento em que estiveram juntos invadir sua mente, como uma mancha preta e amarga em todas aquelas lembranças doces. E aquele último momento ainda doía. Ainda era uma ferida aberta que insistia em não cicatrizar. Sua cabeça girava com todos aqueles pensamentos. Naquele momento tudo ao seu redor girava.
And now my bitter hands cradle broken glass
Of what was everything
All the pictures have, all been washed in black,
tattooed everything...
E dessa vez ele não queria lembrar. Não queria reviver aquela dor outra vez. Olhou para a grande janela outra vez e pegou qualquer coisa que estivesse perto dele, no caso a mochila, e a jogou na janela espatifando o vidro em milhares de pedaços. A força com que ele quebrou o vidro não se comparava ao tamanho da dor que ele sentia, o momentâneo prazer de quebrar aquele vidro durou tão míseros segundos que não foi o bastante para aliviar a dor. Pegou do chão um dos cacos do que sobrou da janela e o espremeu nas mãos na tentativa de pelo menos equilibrar um pouco a dor física com a dor que a falta dela fazia. Não chegou nem perto disso. Olhou para suas mãos e observou o sangue vermelho vivo que escorria. Naquele momento foi impossível não reviver aquele passado do dia 11 de dezembro. Um ano atrás.
1 ano antes.
All the love gone bad
Turned my world to black
Tattooed all I see, all that I am and all that I'll be...
- Cansei de country - reclamou.
- Mas a DJ aqui não era você? - retrucou .
fez uma careta e começou a passear pelas estações de rádio, mas naquela parte da estrada o sinal era péssimo, e somente duas frequências sintonizavam: uma rádio country e uma de notícias.
- Deixa no noticiário - pediu.
- Não! Não dá pra curtir a viagem ouvindo o noticiário - ela riu, como se aquela fosse a constatação mais óbvia do mundo - não tem nenhum CD aqui?
- Tem no porta-luvas - ele respondeu, desviando momentaneamente a atenção da estrada para tentar encontrar a caixa com CD’s no porta-luvas, e então tudo aconteceu muito rápido.
Em uma fração de segundos, enquanto procurava os CD’s, avistou um caminhão na contramão que se aproximava rapidamente. Ela logo começou a sacudir o namorado e gritar desesperada para que ele visse o acidente iminente. Como se acontecesse em câmera lenta, ele se levantou e no tempo de seu rosto tomar uma expressão de susto e pavor, antes mesmo que ele tivesse tempo de reagir para tentar evitar a batida, o caminhão colidiu com o carro. O para-choques do caminhão a centímetros do para-brisa foi a última coisa que ele se lembra daquele dia. Tudo ficou preto.
Dias atuais.
Seu celular tocou o acordando do transe em que estava. Ele olhou a tela que piscava “Carl”. Atendeu a contra gosto.
- , cara, cadê você? - Carl perguntou naquele tom de quem tem intimidade com todo mundo, odiava esse jeito dele. Carl era seu corretor de imóveis que estava vendendo a casa para um cantor de rock decadente.
- Sun Valley, cara, não te falei? - Jaremy tentou ao máximo esconder a voz embargada e cheia de dor sem muito sucesso, não que Carl ligasse para isso, ele só queria a parte dele da venda do imóvel.
- Eu estou com o Paul aqui!
- Paul?
- O cantor de rock que vai comprar a casa! Sim, eu disse certo, ele vai realmente comprar o imóvel e estou resolvendo os últimos detalhes com ele aqui. Te liguei para pedir que assim que puder marque comigo e Paul de assinar as últimas papeladas necessárias para a transferência da propriedade.
- Ok, Carl, assim que estiver em Idaho City te ligo para resolvermos isso - desligou.
Então é isso. Ele sentia que, desde que se foi, no dia do acidente, as coisas entre eles ainda não estavam terminadas, ela se foi de um jeito muito inesperado, e ele ainda não conseguia aceitar que ela realmente se foi, mas agora que a casa estava realmente sendo vendida, a casa que era a última coisa que eles tinham juntos, ele podia sentir que ela realmente se foi. E aquilo doía. Todas as memórias se tornavam negras, assim como o presente, e todo o mundo a sua volta. Aquelas memórias tatuadas eram feridas que insistiam em não cicatrizar, mas ele sabia agora que, para ele, ela havia partido de fato, elas se cicatrizariam, e a marca dela estaria para sempre nele. Tatuada.
Ele pegou sua mochila jogada no chão, as chaves do carro e deu uma última olhada naquela sala. Era hora de ir embora. Assinar a maldita papelada da casa e seguir em frente.
I know someday you'll have a beautiful life,
I know you'll be a star,
In somebody else's sky,
But why? why?
Why can't it be, oh can't it be mine?
Antes de pisar fora da casa uma nevasca começou a cair “isso é que é
timing” pensou. Ele instantaneamente se arrependeu de ter quebrado a janela. Buscou abrigo em algum cômodo mais distante da casa, onde encontrou um pequeno objeto reluzindo no chão. Um colar. O colar com o qual ele a havia presenteado anos atrás, quando completaram um ano de namoro. A pedra que era azul como a íris daquela que ele tanto amou. Pegou o pequeno objeto no chão e admirou a joia, se lembrando claramente do dia em que a escolheu na joalheria e soube imediatamente que aquilo valeria cada centavo de suas economias. Lembrou-se da última vez em que vira aqueles olhos, já sem vida e, finalmente, chorou. Liberou toda aquela tristeza que o estava consumindo. Seus soluços inquietantes preenchiam aquele imóvel vazio, e ele chorava como se aquilo fosse trazê-la de volta. Chorava debruçando-se no chão, sobre a joia que um dia pertenceu à sua amada. Chorava perguntando a quem pudesse ouvir “por quê?” “Por que ela se foi?” “Por que ela não pôde mais ser minha?” Gritava entre soluços e lágrimas. Sentia cada célula do seu corpo doer. Uma dor física tão real, como se de fato tivesse levado uma surra. Chorou para aliviar a dor. Chorou e sentia que suas lágrimas fossem secar antes que ele pudesse colocar tudo para fora. Chorou sem se importar com o mundo lá fora. Chorou por um tempo que ele nunca soube medir o quanto durou. Chorou até que aquela dor, antes insuportável, parecesse um pouquinho mais fácil de lidar.
Um pequeno raio de sol esquentava o rosto de , o despertando, ele nem percebeu na noite anterior, mas adormeceu por cima do colar, no chão. Levantou-se sentindo dores em todos os músculos do corpo, “tô velho demais pra dormir no chão”, pensou. A nevasca já havia passado, e o sol iluminava a entrada da casa, pegou as chaves do carro e sua mochila jogada no chão e, finalmente, adentrou a velha caminhonete novamente. Estava pronto para deixar aquela casa para trás. De uma coisa ele tinha certeza: nunca a esqueceria, mas ele também tinha certeza que aprenderia a viver sentindo sua falta, estava pronto para seguir em frente. Deu a partida no carro e, conforme se distanciava fisicamente da casa, sentia que seu coração poderia finalmente se curar daquela ferida, sabendo, entretanto, que a marca dela tatuada nunca sairia dali.