Última atualização: 20/04/2024

ATENÇÃO - AVISO DE GATILHO
Essa fanfic contém cenas com violência física, tortura e tentativa de estupro, que serão indicadas no decorrer da história.
Não prossiga com a leitura, caso não se sinta confortável.

Capítulo I.
This is the starting of my greatest fear.

Após semanas de noites mal dormidas, sentia sua cabeça latejar e dores por todo o corpo. Ficar vinte minutos rastejando por um tubo de ventilação não ajudou em nada sua situação. Naquele lugar estreito e claustrofóbico, a posição exigida aumentou suas dores e o cheiro de mofo, poeira e ferrugem, produziam tonturas. Mas ela ignorava todo o desconforto físico, tinha coisas mais importantes com que se preocupar.
Quando finalmente saiu do sistema de ventilação, respirou fundo por algum tempo, enquanto ajeitava a mochila nas costas e enfiava munição nos bolsos, então passou a caminhar rapidamente por corredores largos empunhando uma pistola e mantendo olhos e ouvidos atentos, pois, qualquer movimento em falso, colocaria toda a operação em risco.
Chegou a um pátio cheio de máquinas há muito desativadas, enferrujadas e cobertas por musgos. Mato saía das fissuras no chão e as paredes tinham partes descascadas e partes sem reboco, que exibiam tijolos manchados e escurecidos. A fábrica aos pedaços era apenas mais um dos resquícios da vida, antes da revolução que havia instaurado a “Nova República.”
Ouviu um chiado do micro comunicador em seu ouvido direito e parou. Escondeu-se atrás de uma das máquinas ouvindo as instruções de Penny. Enquanto , Dax e Selina estavam espalhados em diferentes pontos da fábrica, Penny, uma mulher engenhosa e teimosa, que conseguia aprender a lidar com qualquer tipo de maquinaria, estava no caminhão controlando o sistema de vigilância e direcionando os outros.
Penny informou que Dax e Selina já haviam derrubado os seguranças presentes no local, deixando o caminho livre. Com as instruções de Penny, rapidamente alcançou o corredor que a levaria ao seu objetivo.
Assim que avistou a larga porta de metal, sua respiração ficou pesada e a cada passo que dava, seu coração acelerava cada vez mais. A porta estava apenas encostada e com um chute ela foi aberta.
A mulher teve apenas alguns segundos para avaliar a situação: havia três homens do outro lado da sala marrom mal iluminada. Do lado esquerdo, estava um homem magro de cabelos pretos segurando uma lâmina curva em suas mãos sujas de sangue. Do lado direito, um ruivo um pouco acima do peso tinha uma seringa com um líquido amarelado já bem próximo do terceiro homem — esse, no centro, estava preso a uma estrutura de metal que o mantinha de pé. Os dois homens armados viraram-se assustados, mas não tiveram tempo de tentar se defender, desferiu dois tiros certeiros na cabeça de ambos.
Não eram os primeiros a morrer por suas mãos. Matar havia se tornado uma parte de sua vida. Só matava quando achava extremamente necessário, mas, ainda assim, isso a assustava. Pensar que um dia o ato poderia ser tratado com frieza e indiferença a preocupava.
Então seus olhos focaram no homem à sua frente e a culpa pelas mortes se dissipou. Vê-lo naquele estado, desacordado, com fios, vários hematomas, vergões, cortes e machucados espalhados pelo seu tórax e braços fizeram cada centímetro de seu corpo ser tomado pelo pavor.
Caminhou até ele e notou a mesa de metal do lado esquerdo, com diversos instrumentos de tortura, alguns modernos e outros que vinham sendo usados há séculos.
. — Chamou com a voz falha, assim que o alcançou.
Ele não se moveu e o desespero começou a preencher seu peito.
, por favor. Acorda. — Insistiu, tocando o rosto dele.
Ele tinha a testa coberta por sangue, misturado a suor e um corte profundo no canto direito da boca. A boca rasgada significava uma coisa: ele havia recebido uma visita de Bishop, o sádico torturador que tinha o hábito de “alargar o sorriso” de suas vítimas. Mas o corte na boca de era pequeno. Bishop apenas tinha começado o serviço.
O comunicador voltou a chiar, mas não conseguiu prestar atenção em uma só palavra que Penny dizia. Segurou o rosto de entre suas mãos e chamou novamente, dessa vez um pouco mais alto e logo grandes olhos a encararam.
... — a voz dele era quase um sussurro.
Ela suspirou aliviada e retirou os fios espalhados em seu tórax.
— Você vai ficar bem, vou te tirar daqui. — Cortou as correias que prendiam os pés dele e a mão esquerda. Antes de cortar a da mão direita, colocou seu braço direito em volta dele, sustentando seu peso. — Desculpa ter demorado tanto a te achar. — Ela sussurrou, após colar sua bochecha a dele e então cortou a última correia que o prendia ali.

Estavam no caminhão, indo para casa e isso deveria tranquilizar , mas o aperto em seu peito ainda estava presente. estava deitado em uma cama improvisada feita com duas cobertas dobradas e ela estava sentada ao seu lado, acariciando seus cabelos.
Geralmente, evitava demonstrações de intimidade e qualquer proximidade, mas, naquele momento, nada disso importava, precisava tocá-lo, certificar-se que ele estava bem e que não sairia de perto dela.
Assim que se afastaram da fábrica, caiu em um sono profundo, precisava descansar após tudo que tinha passado e nem mesmo o ambiente abafado ou os sacolejos do velho caminhão seriam capazes de acordá-lo. Caminhão esse, que fora achado em um ferro velho e pelas mãos de Penny foi reformado para parecer com mais um dos veículos de distribuição da República. Com o caminhão e os documentos falsos, podiam transitar por aí livremente.
Selina e Dax, que sempre ficavam na cabine, costumavam se vestir como meros trabalhadores da República e cumpriam bem o seu papel de enganar policiais e oficiais de segurança. Penny sempre ficava no baú, na maioria das vezes estava mexendo com alguma parafernália tecnológica ou então invadindo algum sistema de segurança.
No momento, Penny havia largado o pequeno dispositivo de rastreamento que tentava consertar e apenas observava os amigos recostados do lado oposto do baú. Chamou a amiga após algum tempo:
. — Ao ouvir a voz de Penny, levantou os olhos que antes encaravam .
Até então, não tinha conseguido parar de encarar os machucados e cicatrizes, observando também como ele estava mais magro e debilitado.
— Dorme também. Precisa descansar.
— Não estou com sono. — Seus olhos pesados contradiziam suas palavras.
— Temos algumas horas de viagem e você não dorme direito desde o dia que o foi levado. — Acusou e franziu a testa. — As manchas roxas e as bolsas nos seus olhos confirmam isso.
— Eu estou bem. Sério.
— Você está olhando para ele como se fosse perdê-lo a qualquer momento. — A voz de Penny agora soava não apenas preocupada, mas também cheia de compaixão.
— É só que... — começou a falar, mas se calou, não queria dizer tudo que estava sentindo agora, não quando havia a possibilidade de ouvir algo.
— Ele está bem agora. Está com a gente. Tenta dormir um pouco. Estou aqui para cuidar dele, assim como a Selina e o Dax. — Insistiu, vendo a amiga suspirar. — Dorme um pouco, vai, tente não ser uma mula teimosa. — Completou, sorrindo.
— Ok. — concordou com um pequeno sorriso. — Mas, se me comparar com uma mula novamente, vamos ter problemas. — Ameaçou divertida.
— Só dorme, vai. — Insistiu e viu a amiga se ajeitar, e em menos de dois minutos, ouviu sua respiração calma e profunda.

•••

Poucos minutos antes do amanhecer, eles chegaram ao seu lar: uma casamata situada entre uma cadeia de montanhas. A enorme construção de concreto e aço tinha quase um século e havia sido construída para garantir proteção diante de um conflito nuclear. Agora, abrigava aqueles que decidiram fugir das garras da Nova República. Sua localização garantia a segurança dos dissidentes que ocupavam o local há pouco mais de quinze anos.
Durante noventa e três anos, a nação esteve sob o comando de um regime ditatorial, repressivo e assassino. Vários levantes ocorreram, mas apenas nos últimos oito anos do regime é que uma oposição forte conseguiu se organizar e articular ataques que foram enfraquecendo o governo. Nesse período, muitos foram assassinados e torturados, mas a fagulha da revolução incendiou a nação e o governo foi finalmente derrubado. Um novo regime foi instaurado, chamado Nova República, mas este sofreu desde o início com a instabilidade.
Alguns estados buscavam emancipação e muitas pessoas rejeitavam os ideais dos novos governantes. Diante desse cenário e com a permanência de muitas pessoas do antigo regime no novo sistema político, não demorou muito até que o novo governo traísse os ideais que proclamava. As tensões foram crescendo e a tão sonhada Nova República passou a ser um regime repressivo e assassino. Heróis, soldados e trabalhadores morreram nos conflitos e a situação piorava a cada dia. Muitas pessoas que ainda acreditavam nos ideais da revolução, abandonaram o conforto da vida nas cidades e se juntaram a guerrilhas, agora lutando contra seu velho inimigo travestido de “novo regime”.
No interior da casamata, foi imediatamente levado para enfermaria, ficando sob os cuidados de Ivy, a competente médica da comunidade. Assim que se separou de , ciente de que ele estava em boas mãos, foi em direção à sua cabine.
O pequeno espaço que dividia com Penny, possuía dois quartos minúsculos, um cômodo que era sala e cozinha e um banheiro estreito.
Assim que entrou na cabine, ela estalou as costas e fez um rápido alongamento, antes de se despir e entrar no chuveiro. Ficou alguns minutos ali, enquanto sentia seus músculos relaxarem. Quando tocou sua região lombar ao se ensaboar, sentiu uma dor aguda que provocou uma careta. Tentou ver o que seria a causa da dor, sem sucesso, e então, assim que saiu do chuveiro, posicionou-se em frente ao espelho ao lado da pia.
Diante do espelho, conseguiu ver o enorme hematoma arroxeado, mas não conseguia se lembrar quando e onde havia o adquirido. Além do hematoma, uma enorme e horrenda cicatriz cobria aquela região. Após algum tempo analisando o local, a imagem dos diversos hematomas cobrindo o corpo de tomaram sua mente. A dor de cabeça, até então ignorada, voltou e um nó se formou em sua garganta.
Ela se apoiou à pia, sem conseguir continuar encarando seu reflexo. Sentia-se tão incompetente por não ter encontrado antes. Ele havia passado três semanas sendo golpeado e eletrocutado por causa da sua incapacidade de conseguir rastreá-lo. Por sorte, ele ainda estava vivo e pelo que pôde observar de seus ferimentos, se recuperaria... Bom, se recuperaria fisicamente. Ela não sabia tudo o que ele tinha passado, mas de uma coisa tinha certeza: tortura psicológica podia ser muito pior que a física.
Imaginar as diversas torturas que ele podia ter passado, causavam-lhe uma dor tangível.
Respirou pesadamente por alguns minutos e então sentiu fortes dores nas mãos. Percebeu que apertava a pia com tanta força, que os nós de seus dedos estavam esbranquiçados. Afastou-se da pia, abriu e fechou as mãos algumas vezes e depois jogou água no rosto. Considerou ir visitar , mas logo desistiu da ideia.
Enrolou-se na toalha, foi até seu quarto e se vestiu rapidamente, logo buscando o conforto de sua cama. Queria dormir e não pensar em nada por um tempo. Escapar da culpa e dor que a aprisionavam e ir para um mundo de sonhos, onde todos os problemas podiam ser resolvidos. A verdade era que dormir não significava paz e bons sonhos para ela. Sabia disso, sabia que na maioria das noites tinha pesadelos e costumava acordar ainda mais miserável do que estava quando havia ido dormir, mas ela se iludia. Mentir para si mesma era o que quase sempre a impedia de ter um colapso.
Após vários minutos, ela finalmente conseguiu dormir e por sorte, naquele dia, teve bons sonhos e conseguiu relaxar. Dormiu por quase vinte horas, tirando o atraso de parte das horas de sono perdidas.

•••

Seu sono tranquilo foi interrompido já na madrugada do dia seguinte, quando foi afligida por uma dor de cabeça lancinante. Dessa vez era diferente, não era por causa da privação de sono ou culpa. levou algum tempo para conseguir sair da cama e quando finalmente se levantou, cambaleou até o banheiro.
Com cuidado, retirou o armário do banheiro do lugar, revelando um compartimento secreto. De trás de um cano, retirou uma pequena caixinha metálica que continha algumas ampolas com líquido azulado. De outra caixinha, retirou uma seringa e depois aplicou o líquido azulado em seu braço esquerdo, enquanto fazia careta e trincava os dentes.
Apoiou-se na pia por alguns segundos, sua testa coberta por um suor frio que escorria por todo seu corpo, depois se arrastou de volta ao quarto. Assim que a dor passou, pegou novamente no sono, dessa vez indo de encontro ao usual mundo de pesadelos.

Quando finalmente acordou, procurou se manter ocupada. Além de manter sua mente longe de divagações que iam da culpa ao medo, também era necessário para compensar o dia anterior, desperdiçado na cama.
Enquanto a Nova República primava por membros “felizes” e submissos na sociedade, a comunidade que vivia na casamata precisava de membros livres e úteis. Para garantir o funcionamento, todos deviam ajudar nos diferentes setores necessários para a sobrevivência da comunidade. Estavam engajados em uma luta material e psicológica contra a Nova República e, por isso, precisavam manter a casamata autossuficiente.
No caso de , a negligência com o trabalho significaria, além de outras coisas, aumentar a antipatia de muitos membros da comunidade. Evitar inimizades era sempre a melhor opção.
Ela participava de muitas missões de todo o tipo em cidades, desertos ou florestas, mas, nos momentos em que estava na casamata, precisava ajudar em algum setor. Revezava entre o setor de soldagem, o de energia e o de mecânica. Nesse dia, decidiu ficar no setor de soldagem, onde tinha a companhia de Dax.
O membro mais velho de seu grupo de combate era muito calado, não desperdiçava tempo questionando como ela se sentia ou querendo saber seus pensamentos mais profundos. Apenas trabalhavam, sendo que seus comentários eram limitados a como criar estratégias que facilitariam a atividade e isso era exatamente o que ela precisava.

No caminho de volta à sua cabine, após passar quase o dia todo trabalhando, encontrou Ivy, que lhe deu notícias sobre a situação de . Apesar dos machucados, desidratação e desnutrição, ele ficaria bem. Não tinha ferimentos graves ou internos. Estaria fisicamente recuperado em algumas semanas.
A notícia trouxe alívio, mas também levantou algumas dúvidas.

Após o banho, se sentou no pequeno sofá cinza em sua sala e recostou a cabeça, fechando os olhos. Sua mente estava novamente turbulenta e confusa. Ficou ali, no escuro, refletindo sobre algumas coisas até ser interrompida pela chegada de Penny. A graxa cobria seu macacão e pele, o que contrastava com sua palidez.
abriu os olhos assustada com o barulho, mas fechou novamente com uma careta incomodada pela claridade.
— Boa noite, dorminhoca. — Penny falou animada.
— Boa noite, porquinha. Devia ir direto para o banho.
— Vou daqui a pouco. Achei que fosse passar o dia no setor de mecânica. — Comentou, sentando-se no piso de cimento queimado.
— Mudei de ideia. Dax falou que precisava de ajuda na soldagem. — tocou a sobrancelha esquerda, sinal de que estava mentindo.
Realmente, era dia dela ficar no setor de mecânica, mas ao contrário de Dax, Penny iria passar o tempo todo questionando seus sentimentos e querendo conhecer seus pensamentos mais profundos.
— Foi visitar o ? — Indagou, retirando suas botas pretas.
— Ainda não.
— Devia ir. Ele perguntou por você. — Diante da expressão de confusão de , Penny continuou: — Passei lá hoje de manhã. Agnes está como um cão de guarda em um sofá do lado da cama dele. — Revirou os olhos, jogando as botas no canto da sala.
— Imaginei que estivesse. Mais um motivo para adiar a visita.
— Talvez ela passe a gostar de você agora que salvou o filho dela. — Argumentou, abraçando as pernas.
— Ela deve estar sentindo um pouco de gratidão, mas gostar de mim já é demais.
— Ela não te odeia. Ela só...
— Me odeia sim. — Discordou, afastando-se do encosto do sofá, irritada. — Odeia o que represento e todas as memórias que trago à tona. Sou um constante lembrete de todas as merdas que ela já passou. Não só para ela. — A raiva e a magoa foram aumentando durante o desabafo, mas ao ver a expressão piedosa de Penny, resolveu mudar de assunto.
A considerava a pior pessoa para falar de seus problemas, pois ela sempre tentava resolvê-los.
... — começou com a voz terna.
— Vamos mudar de assunto, vamos falar do . — O modo como falou, deixava claro que não daria continuidade ao assunto anterior, o que fez Penny suspirar.
— Ele está bem. Em algumas semanas estará completamente recuperado. — Afirmou feliz.
— Encontrei com a Ivy e ela falou que ele está bem até demais.
O comentário deixou Penny confusa. Não havia felicidade nele, apenas preocupação.
— Podia ser muito pior, muito pior mesmo e é isso que não sai da minha cabeça.
— Não estou entendendo.
— Ele ficou lá por quase um mês, nas mãos de terríveis forças paramilitares. “Justiceiros” e torturadores manipulados pelo governo. Ele está machucado, mas não parece que ficou lá por tanto tempo. — Explicou, externando suas preocupações.
— Está preocupada que ele não tenha sido torturado o suficiente? — Questionou, não escondendo a incredulidade e horror em sua voz.
— Sim. — Confessou e viu Penny arregalar os olhos. — Estou feliz que ele esteja bem, mas, Penny... Nós conhecemos a ação deles. — Sentou na ponta do sofá, estalando os dedos repousados em seu colo. — Já resgatamos outras pessoas e também já encontramos corpos descartados por eles. Uma semana é suficiente para vários ossos quebrados, lesões internas e amputações. — Falava rápido, enumerando nos dedos. — está machucado, mas inteiro. Isso não faz sentido. Especialmente se eles sabem quem ele é. Ele é filho de uma das líderes da maior guerrilha em atividade. Líder da organização que tem causado muitos transtornos para o governo. Por que tratar ele “bem”? — Argumentou, esperando uma reação da outra que apenas a encarava, ainda digerindo aquelas palavras. — Olha... eu estou muito feliz que ele está bem e inteiro. Só estou confusa e preocupada com os possíveis motivos por trás disso.
— Tem uma outra possibilidade. — Penny começou com uma expressão triste. — Talvez eles não tenham machucado tanto ele fisicamente, porque investiram a maior parte do tempo machucando a sua mente.
— Essa possibilidade é ainda mais assustadora. — Falou baixo, encarando o chão.
Imaginar aquilo causava-lhe calafrios. Haviam várias formas de tortura psicológica: todo tipo de ameaças, simulação de afogamento e de execução, privação sensorial e do sono, entre outras. Algumas levavam a uma vida cheia de noites infestadas por pesadelos. Em outros casos, o dano era muito maior, levando à loucura e até ao suicídio. A intenção era clara: quebrar o espírito, seja para tornar o sujeito mais suscetível a um interrogatório, para aterrorizar ou simplesmente punir.
Imaginar passando por qualquer uma delas era doloroso demais.
— A tortura física é algo horrível, mas a psicológica é muito pior. — Os pensamentos cruzando a mente de , faziam seus olhos arderem. — As cicatrizes que ela deixa são profundas e duradouras. E é muito doloroso pensar nele passando por isso.
— Foi só uma suposição. — Afirmou agitada.
Ver o estado de havia feito ela se arrepender de mencionar aquilo.
— Aposto que ele está bem. Talvez a razão para ele não estar “tão” machucado não seja tão horrorosa quanto pensamos.
— Queria muito que estivesse certa. — Sussurrou, encarando as próprias mãos.
...
— Eu preciso vê-lo. — Num ímpeto, levantou-se do sofá e foi em direção à porta.
— Se quiser, posso dar um jeito de tirar a Agnes de lá. — Penny falou, já firmando a mão direita na parede para se levantar.
— Não precisa. Vai tomar seu banho. No momento, encarar a Agnes é a menor das minhas preocupações. — Completou, fechando a porta em seguida.



Capítulo II.
The past never does go away.

Havia uma relativa distância entre a cabine de e a enfermaria, mas, no momento, essa parecia estar ainda mais longe.
Ela mantinha os olhos no chão ou nas próprias mãos, evitando contato visual com qualquer membro da comunidade. Toda aquela confusão mental envolvendo o medo, a preocupação e a culpa, já estavam deixando-a suficientemente abalada. Não que ela ligasse muito para a opinião alheia, mas estava sobrecarregada com todo o resto.
Caminhar pela comunidade sempre fora algo frustrante. Após dezenove meses morando no local, ela ainda se sentia desconfortável e como se não conseguisse se ajustar. Esse sentimento de não pertencimento, era parcialmente por ela não ter vivido grande parte de sua vida ali, como o resto dos habitantes. Mas havia um denominador complicador: suas origens.
não era apenas uma pessoa em necessidade, que havia sido levada para ser cuidada ali, nem era apenas alguém com um coração revolucionário querendo a derrubada da Nova República. Ela era uma fugitiva. Fugiu do seu próprio sangue e lutava contra o legado presente nele.
O pai de era Hugo Bormann, um importante político do antigo regime, que através de manobras e acordos, havia se tornado muito influente na Nova República. Não era apenas a jornada política de Bormann que o tornava alguém desprezado pela comunidade, ele dedicava suas horas de folga a sua atividade favorita: a tortura. Sentia um especial prazer em ver o desespero e o pânico tomar conta das pessoas, em ver as esperanças indo embora e os olhos se escurecendo diante da morte certa.
Durante muitos anos, trabalhou em parceria com Ernest Bishop, espalhando o terror entre aqueles que se opunham ao governo e até aqueles que apenas estavam no lugar errado e na hora errada.
tinha oito anos quando o antigo regime foi derrubado e durante toda a sua infância, adolescência e início da vida adulta, esteve cercada por uma bolha de mentiras que a impediram de conhecer as atividades bárbaras e desumanas de seu pai. Quando finalmente descobriu, passou a coletar documentos incriminadores, incluindo relatos detalhados de torturas. Enquanto tentava expor o pai e toda a sujeira presente por trás dos panos, ela foi descoberta. Precisou fugir e diante de muitas dificuldades e sofrimento, aprendeu a se virar sozinha.
Enquanto vivia sozinha em uma cabana na floresta, encontrou , Dax e Selina, que após algum tempo conseguiram convencê-la a ir para comunidade com eles. Inicialmente, ela ficou feliz, afinal, estava cansada da solidão, mas logo nos primeiros dias na comunidade, encontrou alguns rostos familiares. Pessoas que estavam nos relatos que ela havia lido, pessoas que haviam sido torturadas pelo seu pai. Todos sabiam quem ela era e a maioria das pessoas a odiava, não só por ter o sangue do sádico Hugo Bormann, mas porque era uma constante lembrança de tudo o que elas haviam sofrido. Parte dela entendia o ódio e o distanciamento daquelas pessoas, mas queria que eles entendessem que ela não era em nada parecida com o pai e que a única coisa que conseguia sentir por ele era repulsa.
Na entrada da enfermaria, Ivy a recebeu com um largo sorriso e apontou para o quarto onde estava internado. Apressou-se até a porta, que foi aberta antes que tivesse a chance de bater. Agnes a encarou com sua usual expressão impassível. Seus olhos analisaram .
— Você. — O desprezo estava presente em sua voz.
— Vim ver como ele está. — Ignorou o tom de voz da outra, tentando manter a civilidade.
— Volto em alguns minutos. — Afastou-se da porta, mas logo virou-se. — Obrigada por ajudar a salvar o . — Apesar das palavras serem de agradecimento, seu tom era desgostoso.
— Só estava fazendo meu trabalho.
— É. Tem razão. — Suspirou e se afastou.
Agnes detestava encarar , seus olhos eram idênticos ao do pai. Era como encarar seu algoz. Todas as vezes que a olhava, lembrava dos choques e das sessões de estupro desempenhadas por Hugo Bormann. Mesmo que nunca tivesse dado sinais de ser parecida com o pai, Agnes não conseguia separar as coisas, olhava para ela e só conseguia pensar em toda a imundície presente no seu sangue. Ter que ver a proximidade entre e a irritava profundamente.
entrou no quarto e avistou de olhos fechados. Após observá-lo por alguns segundos, sorriu ao ver que apesar da perda de peso e machucados, ele aparentava estar bem melhor. Decidiu deixá-lo descansar e voltar outra hora.
Ao abrir a porta, o rangido despertou , que logo se pronunciou:
— Nem pense em fugir. — A voz rouca dele soou divertida.
fechou novamente a porta e se aproximou da cama com um pequeno sorriso.
— Estava me sentindo abandonado, achei que não ia me visitar.
— Eu salvei seu traseiro e ainda me quer de babá? — Questionou com falsa indignação.
Ele riu, mas logo fez uma careta.
— Não me faça rir. — Ordenou e bateu a mão na cama para que ela pudesse se sentar ali.
— Desculpa.
— As pessoas vão fazer piada sobre meu novo sorriso, não é? — Perguntou com uma sobrancelha arqueada, apontando para a cicatriz no canto da boca.
estava sendo o mesmo de sempre, fazendo piada e rindo da própria desgraça. considerou inicialmente que estava errada, ele estava bem, era o mesmo. Mas então pensou que talvez ele apenas estivesse se protegendo, fazendo o que ela sempre fazia: mostrar uma expressão feliz para as pessoas, enquanto sofria sozinha.
— Alguns vão com certeza, mas vão esperar você estar totalmente recuperado. Enquanto isso, vão falar nas suas costas.
Ele riu e novamente fez careta.
— Desculpa.
— O lado bom é que agora eu aparento ser um cara durão. — Comentou, forçando uma voz grave.
— Talvez deva raspar o cabelo e fazer umas tatuagens, para complementar esse visual. — Comentou, mexendo no cabelo dele e ajeitando de forma a parecer um moicano.
— Ótima ideia.
— Como você está? — Questionou após alguns segundos de silêncio.
— Bem. Ainda com dores, mas logo estarei completamente recuperado. — Respondeu com um sorriso que desapareceu ao ver a compaixão nos olhos dela. — Não me olha desse jeito. Você não. Não pode. — Trincou os dentes, aborrecido.
— As pessoas estão preocupadas. Eu estou preocupada. — Afirmou, tocando o braço dele carinhosamente.
— Não tem que se preocupar. Eu estou muito bem. Bem o suficiente para aproveitar sua presença para começarmos a investigar esses caras. — Ele se ajeitou na cama e seus ossos aparentes chamaram a atenção dela.
— Investigar o que, exatamente?
— Enquanto eles me transportavam de uma sala para outra, eu vi alguns baús de metal. Aparentemente, algo que tinham roubado recentemente. Algo importante, mas que, segundo eles, o governo não sentiria falta. — Abaixou o tom de voz durante a explicação.
— O que acha que pode ser? — Questionou, curiosa.
— Não tenho a mínima ideia. Mas temos uma pista. Tinha um desenho gravado neles. Uma mulher com roupa romana e uma árvore do lado. Pega papel e caneta, que eu desenho para você. — Ele apontou para o sofá. Havia um bloco de notas e uma caneta esquecidos ali por Agnes.
os pegou e entregou para . E então, finalmente, reparou em suas mãos. As mãos feridas estavam trêmulas, tão trêmulas, que ele mal conseguia segurar a caneta. Ele não conseguiu desenhar, a tremedeira aumentou de tal forma que só saia rabiscos.
Ele quebrou a caneta e soltou um xingamento com uma expressão de dor e frustração. pegou papel e caneta e jogou no sofá.
Diante da expressão derrotada dele, ela segurou suas mãos e as apertou com delicadeza. Ele até tentou retribuir o gesto, mas suas mãos estavam fracas e ele mal podia controlá-las.
Depois da tentativa falha de desenhar, ele ainda não tinha a encarado.
. — Ela chamou. — Está tudo bem. Ainda é muito recente.
O jeito que ele a encarou, fez seu coração doer.
— As coisas vão melhorar. Vai levar um tempo, mas seus sentidos vão voltar a funcionar.
Ele sustentou o olhar, que misturava angustia e descrença.
— Não tenho certeza disso.
— Confia em mim. Eu sei que vão. — Apertou novamente as mãos dele e depois as soltou, mantendo a proximidade. — Me conta o que aconteceu lá. — Continuou após alguns segundos de silêncio.
— Não quero falar sobre isso... — escondeu as mãos sob o lençol que o cobria e encarou o teto.
— Precisa conversar, desabafar. — Insistiu, tocando seu tórax.
— Não vou.
— Isso vai ajudar. — A insistência de o irritou.
— Como? — Questionou nervoso, finalmente a encarando. — Como isso vai me ajudar? — Ele segurou o braço dela e a afastou. — Como relembrar toda essa porcaria vai me ajudar?
... — suplicou, encarando seus olhos que agora transbordavam fúria.
— E como você vai me ajudar? Justamente você? — Estava vermelho e veias saltavam em sua testa. — Se tem algum dom inato, esse provavelmente é o de provocar sofrimento, não curar. — Rosnou e a viu rapidamente se afastar da cama.
A sentença a atingiu como um soco no estômago. Não conseguiu encará-lo e decidiu fugir dali. Assim que alcançou a porta, ouviu seu nome e se virou.
— Me desculpe. — Ele respirava profundamente, enquanto massageava a nuca. — Eu não quis... Eu não quis te machucar.
— Não somos nossos pais. Você, mais do que ninguém, devia saber disso. — Afirmou, sentindo os olhos arderem.
— Eu sei. Me desculpe. — Ele estendeu a mão, pedindo que ela se aproximasse. — É só que... eu... eu não posso falar sobre o que aconteceu. Todo mundo tem me perguntado, mas já tem sido difícil o suficiente sem me esforçar para relembrar tudo. Só consigo dormir com medicação e mesmo assim meus sonhos são assombrados. Pensar em tudo que aconteceu é muito doloroso. Eu só quero esquecer. — Completou, enquanto uma lágrima rolava por sua bochecha.
— Eu sinto muito. — sentou novamente na cama e colou a bochecha a dele, depois encaixou o rosto na curvatura de seu pescoço e continuou. — Por tudo que teve que passar, por causa da minha incompetência.
— Não é sua culpa. — Passou a acariciar o cabelo dela. — Você só é culpada de uma coisa: me achar e me trazer de volta a salvo.
— Mas eu demorei tanto a te encontrar. — Ela se afastou um pouco, encarando-o.
— Você me achou e eu serei eternamente grato por isso. — Tocou o rosto de , que em seguida pousou a mão sobre a dele.
Afastaram-se quando a porta foi aberta.
— Me desculpe. Não quis interromper. — A enfermeira Martinez entrou no quarto e se aproximou da cama. — Preciso levá-lo para mais alguns exames e testes.
— Estará aqui quando eu voltar? — questionou e viu negar.
— Mas volto amanhã.
— É uma promessa? — Questionou, erguendo a sobrancelha e viu ela assentir com um sorriso.
saiu do quarto se sentindo ainda pior. Além de perceber que os danos deixados pelos dias sob tortura eram muito maiores do que deixava transparecer, também se sentia miserável. Tinha ido até lá para saber mais sobre a situação dele e então tentar ajudá-lo. Mas o que tinha feito era demonstrar suas próprias fraquezas para então ser consolada. Sentia-se egoísta demandando ajuda, enquanto era ele quem precisava de todo o apoio e atenção possíveis.
Seguiu em direção à saída, mas mudou o trajeto quando avistou Ivy. Seguiu a médica até a porta do pequeno consultório, alcançando-a antes de entrar.
— Além dos tremores, quais são os outros sintomas? — Questionou, quase atropelando as palavras.
— Vamos conversar aqui dentro. — Ivy abriu a porta e entrou logo sendo seguida. Assim que as duas sentaram, a médica continuou: — Precisa entender que a tortura faz a pessoa ser reduzida a um extremo estado de angustia e isso deixa marcas. — Explicou com o tom de voz calmo, o que deixou um pouco irritada. Não queria ser poupada.
— Eu sei. E eu quero saber quais as marcas nele. — Exigiu ansiosa e viu Ivy suspirar.
— Além dos tremores, também apresenta desorientação sensorial, sua capacidade normal de percepção está abalada. Ele vê algumas coisas de modo distorcido e apesar de não admitir, acredito que tem sofrido alucinações. — Diante da expressão surpresa de , esclareceu: — Martinez o flagrou falando sozinho algumas vezes. Além disso, também apresenta dificuldades para se concentrar. Distúrbios de humor e do sono.
— Sintomas comuns, certo? — Estalava os dedos pousados em seu colo. — Para toda a pressão insuportável que ele deve ter passado.
— Sim. Essa confusão mental é comum. Sinal de estresse pós-traumático.
— E o que mais os exames contam?
— Tem indícios de afogamento, mas sem sinais de violência sexual.
O rosto de se contorceu, enquanto sua mente formava a imagem de um já machucado tendo seu rosto coberto por um tecido e então água em abundância sendo despejada nele. A experiência de passar por uma simulação de afogamento era desesperadora, ter seus pulmões se enchendo de água sem poder reagir, com pés e mãos amarrados.
— Tem muitos ferimentos e hematomas, mas nenhum deles trouxe complicações.
— E ele vai ficar bem? — Questionou em um sussurro, sentindo um aperto no peito.
— É difícil dizer. — Admitiu, enquanto tentava escolher bem as próximas palavras. — Em alguns casos, os sintomas desaparecem em dias ou semanas...
— E em outros eles não desaparecem e o dano se torna permanente. — Ponderou, sentindo novamente um nó se formar em sua garganta.
— Ele vai superar tudo isso. — Ivy afirmou, buscando os olhos de , que pareciam perdidos.
Talvez se dissesse aquilo com firmeza suficiente, a sentença se tornaria verdadeira.

•••

não conseguiu dormir e mais uma vez o motivo era . Sempre que fechava os olhos, sua mente produzia imagens de sendo torturado de diferentes formas. Uma mais sádica e dolorosa que a anterior. Era desesperador.
Mesmo com corpo e mente cansados, passou o dia seguinte no setor de soldagem. Precisava focar no trabalho e aproveitar o silêncio que a companhia de Dax lhe proporcionava.

No fim do turno, correu até a cabine, tomou um banho rápido e seguiu até a enfermaria. A pressa era para evitar encontrar Penny, que com certeza faria diversas perguntas sobre a visita na noite anterior.
Assim que se afastou da cabine, passou a caminhar lentamente, enquanto respirava fundo e tentava espantar todas as perturbações presentes em sua mente. Quando alcançou o corredor que levava à enfermaria, observou uma movimentação de oficiais de segurança entrando no local. Correu até lá e se deparou com a agitação de enfermeiros e pacientes. A preocupação cresceu dentro de si quando viu um segurança em frente o quarto de afastando curiosos.
Ao chegar à porta, também foi barrada e tentou forçar a entrada. A tentativa falhou, mas lhe permitiu observar o que acontecia lá dentro: uma enfermeira aplicava algo no pescoço de , que estava desacordado e tinha os membros superiores e inferiores cobertos por marcas vermelhas. As marcas e o modo como o ambiente estava bagunçado, indicavam luta. A cena lhe causou angustia e irritação, o que levou a outra tentativa de entrar lá.
Pouco tempo depois, Agnes e Clint Graham, o chefe da segurança, surgiram em seu campo de visão, obrigando que ela se afastasse para permitir a saída deles.
— O que aconteceu? — questionou Agnes, que tinha uma expressão preocupada.
atacou uma das enfermeiras. — Chefe Graham respondeu com sua usual expressão carrancuda.
— O quê? Mas como?
— Ele a empurrou contra uma parede. — Graham berrou, sem se importar com as pessoas que tentavam ouvir a conversa.
— Está machucada? — Virou para Agnes, que se mantinha calada.
— Não. Ele não seria capaz disso. — Agnes se apressou em responder. — Ela só está assustada.
— Não podemos deixar isso se repetir. — O chefe abaixou o tom, mas a irritação e impaciência ainda estavam presentes em sua voz. — Precisamos garantir a segurança dele e dos profissionais de saúde.
— O que isso significa? — questionou, tentando entender o que estava por trás daquelas palavras.
— Graham acredita que é melhor mantê-lo imobilizado. — Agnes sussurrou, ainda ponderando se aquela era a melhor opção.
— Você quer amarrar ele? — gritou, aproximando-se de Graham.
— Essa não é a definição correta. — Respondeu com deboche. — Mas é basicamente isso.
— Não vão fazer isso com ele.
— Essa decisão não é sua.
— Nem sua.
— Você não tem voz aqui. E nesse caso, a contenção é sim necessária. — Graham fez um sinal e o oficial que até então apenas assistia a discussão, segurou o braço de .
— Muitas pessoas daqui foram torturadas em algum nível...
— A maioria pelas mãos do seu pai. — Interrompeu-a irritado.
— Sim, eu sei. E eu acredito que nenhuma delas ia querer ser acorrentada como um animal, enquanto lida com esse evento traumático. — Rosnou para o chefe e então se virou para Agnes. — Não pode fazer isso com ele. — Implorou, sentindo o desespero encher seu peito. — Ficar amarrado vai fazê-lo reviver tudo. Essa porcaria toda já está sendo dura o suficiente. Não pode deixá-lo fazer isso. já sofreu demais.
— Ele é um perigo para si mesmo e para os outros. — Argumentou tristemente. — Que opção eu tenho?
— Me deixa cuidar dele. — Arriscou apresentar a ideia que tinha acabado de cruzar sua mente. — Posso vigiá-lo dia e noite.
— Foram necessários três homens para segurá-lo, o que te faz pensar que consegue fazer isso sozinha? — Graham questionou com desdém.
— Ele confia em mim. — Respondeu raivosa. — E agora preciso que você confie, Agnes. — Encarou a mulher, cujo rosto transparecia a dúvida que tomava seus pensamentos.
— Não acho que isso seja uma boa ideia.
— É melhor do que torturar ele de novo, fazendo ele reviver o cativeiro e todas as merdas de lá. — Afirmou e viu Agnes olhar para o chefe Graham e depois para ela, avaliando qual decisão seria a correta.
— Tudo bem. — Falou após alguns segundos de reflexão. — Você fica responsável por acompanhá-lo. Continuarei vindo todos os dias e vou manter um oficial na enfermaria. — Completou, vendo assentir.
— Isso é um erro. — Graham murmurou.
— Se algo acontecer, a culpa é sua. — Agnes ignorou Graham e apontou o indicador para . — E vai pagar por isso.



Capítulo III.
And I wanna be here when times are hard.

dormia em uma desconfortável cadeira ao lado da cama de . Havia sido vencida pelo cansaço após horas esperando-o acordar. Ele dormiu quase vinte e quatro horas e agora encarava a mulher completamente desajeitada na cadeira de madeira.
Imitou o barulho de um ronco e viu ela acordar sobressaltada.
, você acordou! — Esfregou os olhos e ajeitou a postura, enquanto estalava o pescoço.
— Quer me explicar por que estava roncando toda desajeitada nessa cadeira? — Fez sinal para que ela limpasse o canto da boca.
— Eu não ronco. — Afirmou com uma careta, enquanto limpava a boca.
— É claro que ronca! — Riu diante da expressão de indignação que estampava o rosto dela. — Acordou com o próprio ronco.
— Lógico que não. — Rebateu, enquanto prendia os cabelos em um rabo de cavalo. Sua expressão agora era de dúvida, o que fez rir ainda mais. — Está se sentindo bem?
— Sim, só um pouco tonto. — esfregou a nuca.
— É por causa do excesso de sedativos. — levantou e passou a estalar as costas. — Logo melhora. Está com fome? — Questionou e viu ele negar.
— Que bom que cumpriu a promessa.
— Não comemore muito. Agora vou passar bastante tempo aqui. Vai enjoar da minha cara.
— O que quer dizer? — Ele franziu a testa.
— Vou te fazer companhia. — Ela sentou novamente, aproximando a cadeira da cama.
— As coisas devem estar bem ruins para minha mãe te colocar de babá. — Recebeu um leve tapa no braço. — Não estou reclamando. Aprecio a companhia. É que ela...
— É, eu sei. Não faz parte do meu fã clube. — Rolou os olhos. — Se lembra do que aconteceu ontem? — perguntou após alguns segundos de silêncio.
mordeu o lábio e franziu a testa, confuso, enquanto vasculhava sua memória. Arregalou os olhos quando flashs do dia anterior cruzaram sua mente.
— Como ela está? Eu a machuquei? — Questionou agitado, sentindo seu coração acelerar.
— Ela está bem, só a assustou. — Respondeu com a voz calma, tocando o braço dele.
— É por isso que está aqui. Para me vigiar e se certificar que eu não vou atacar mais ninguém. — A respiração dele havia se tornado ofegante.
— Não.
— Todos devem estar achando que sou maluco e extremamente perigoso.
— Não. Você não é nada disso. — Levantou da cadeira e se aproximou da cama. — Você sofreu uma situação extremamente angustiante e estressante. Agora está lidando com o trauma. É por isso que eu estou aqui. Para te ajudar a lidar com tudo isso. — Sentou na cama, encarando o rosto de , que mantinha uma expressão de preocupação e dor. — ... — chamou em um sussurro. — O que aconteceu ontem? O que te levou a agir daquele jeito?
Ele encarou as mãos trêmulas e então fechou os punhos com força.
— Quando a Martinez se aproximou com a seringa, era... era como... — gaguejou, ainda encarando as próprias mãos. Respirou fundo, tentando clarear os pensamentos que agora estavam turvos e se confundiam com memórias dolorosas. — Era como se eu não estivesse mais aqui. — Continuou, finalmente encarando . — Era como se eu tivesse sido transportado para aquela sala marrom novamente. — Sentiu o suor escorrer por sua testa e umedeceu os lábios antes de continuar. — Por um momento eu olhei para ela e enxerguei Red. O homem ruivo que você matou. Olhei para ela e o que vi foi... foi ele me encarando com aquele sorriso macabro. O mesmo que sempre dava quando me acordava com choques ou quando aplicava aquelas injeções... — engoliu em seco, sentia novamente as dores e angústia.
Sentiu tocando sua mão direita, então a segurou.
— Ele costumava aplicar uma substância que me causava dores intensas. Como se tudo que fizeram já não causasse dores suficientes. — Apertou os lábios com força e encarou a mão que agora era acariciada pelo polegar de . — Juro que não quis machucá-la. Eu olhei para ela e vi ele, e quis afastá-lo. — Falou agitado, soltando a mão de e fechando novamente os punhos. — Depois disso, não me lembro de mais nada.
— Está tudo bem agora. É normal você reviver o que passou. São memórias intensas. Só... me deixa ficar aqui e te ajudar com tudo isso.
Ele assentiu e ela novamente tocou a mão dele.
Para , ouvir tudo aquilo era pior que ser golpeada repetidas vezes. Tentou não expressar toda a dor que aquelas palavras lhe causavam. Era quem precisava de apoio, enquanto passava por tudo aquilo. Ela devia ser a rocha ali.

•••

O silêncio da madrugada foi interrompido pelo ranger da porta. estava novamente sedado e em um sono profundo. Já , além de ter sono leve, estava constantemente em estado de alerta. O ranger da porta fez ela levantar-se silenciosamente, esperando os próximos passos do intruso.
Um homem entrou e apesar da escuridão no quarto, iluminado apenas pelas luzes dos aparelhos, ela pôde ver que este portava uma faca. O homem deu dois passos em direção à cama de , mas parou ao ouvir um assovio. Assustou-se com a presença de mais alguém no quarto e após um momento de hesitação, atacou . A tentativa não teve sucesso, ela segurou seu pulso e acertou um chute em seu estômago. O homem gritou e soltou a faca ao sentir a forte pressão em seu pulso. Tinha certeza que estava quebrado. Não teve tempo de reagir, logo sentindo um soco no maxilar. O soco seguinte em sua garganta fez ele cair desacordado.
abriu a porta e arrastou o homem nocauteado para fora. Sob a iluminação da enfermaria, pôde reconhecê-lo. Era o irmão da enfermeira Martinez. Não lembrava seu nome, mas reconhecia seu rosto. Os dois irmãos eram inseparáveis. Não precisou se esforçar muito para entender os motivos que levaram ele a tentar atacar . Apesar de Martinez não estar machucada, seu irmão enxergava como uma ameaça ao bem-estar dela.
arrastou o homem até o oficial de segurança, que dormia em uma cadeira de plástico. Acordou-o com um leve chute no joelho e ordenou que ele fosse buscar Agnes e chefe Graham.

Assim que Agnes e Graham chegaram, explicou a situação. Agnes não prestou muita atenção às palavras dela. Foi em direção ao quarto de com o coração acelerado. Só queria ficar perto do filho. A possibilidade de perdê-lo a deixava completamente desestabilizada.
O irmão de Martinez ainda estava desacordado no chão da enfermaria. Um oficial de segurança o levou até uma maca para que Ivy pudesse cuidar de seu pulso quebrado. O homem recebeu os cuidados necessários e depois foi levado para uma cela.
Chefe Graham seguiu em direção à saída, mas foi interrompido por .
— O desfecho disso seria bem diferente se o estivesse amarrado.
— Não me teste. — Rosnou diante do olhar dela. — Não vai gostar dos resultados.
— Não me ameace. Eu sei me defender. — Respondeu raivosa e quando viu ele abrir a boca, continuou: — Não, isso eu não aprendi com o meu pai.
não esperou uma resposta. Afastou-se de Graham e foi até o quarto de . Bateu na porta e entrou silenciosamente.
Deparou-se com Agnes sentada na cadeira de madeira ao lado da cama, segurando a mão do filho. Ela envolvia a mão dele com carinho e mantinha um olhar perdido.
— Eu achei que quando ele voltasse, as coisas voltariam a ser como antes. Mas eu estou constantemente com medo de perdê-lo. — Começou sem encarar . — Lembro da época que ele ainda era um bebê. Eu passava as madrugadas acordada ao lado do berço para ter certeza que ele ainda estava respirando. Perdi muitas noites de sono apenas o observando. — Agnes derramou uma lágrima e apertou as mãos dele com mais força. — E quando eu fui presa, ele tinha só seis anos. Ele era apenas uma criança e eu passei meses longe dele. E eu estava sempre com medo não por mim e pelos diferentes tipos de tortura que podia sofrer, mas por ele. Pelo meu garotinho que nem sabia se eu estava viva. Medo que conseguissem encontrá-lo. Que machucassem ele. — Ela afundou o rosto na cama, sem soltar as mãos do filho.
nunca a tinha visto tão vulnerável, mas não achou apropriado ir até lá tocá-la ou abraçá-la.
— E agora, ele é um homem feito e eu continuo assustada o tempo todo. Achei que com a volta dele tudo ia ficar bem. Mas é muito doloroso saber tudo que ele passou, que ele ainda passa e não poder ajudar. — Finalmente encarou , seu rosto já coberto por lágrimas. — Obrigada. — Dessa vez, pôde sentir a sinceridade naquelas palavras. — Você o salvou de novo. Estava certa o tempo todo. Só queria que pudéssemos salvar ele de todas as memórias que continuam o torturando.
— Ele vai ficar bem, Agnes. Vai sim. Ele é um homem incrivelmente forte e eu tenho certeza que vai superar tudo isso. — Afirmou, sentindo os olhos arderem.
— Por favor, não conte para ele o que aconteceu hoje. Ele já está lidando com muita coisa. — Pediu com a voz embargada e balançou a cabeça em concordância. — Pode ir para sua cabine. Descanse. Vou passar o resto da noite aqui. — assentiu e saiu pela porta.

•••

Para , os dias se arrastavam. Ter que continuar naquela enfermaria era um martírio e nem mesmo a companhia de aplacava seu descontentamento. Não lhe faltavam visitas. Agnes visitava o filho todos os dias e passava algumas horas conversando com ele sobre qualquer coisa que pudesse distraí-lo. Também recebia visitas de Penny e Dax, além de outros amigos e conhecidos. A única que nunca o visitava era Selina. Ela havia perdido muitas pessoas importantes naquela enfermaria e não conseguia nem se aproximar do local.
Entediado, estava sentado com as pernas esticadas no sofá, atirando uma pequena bolinha de borracha na parede. Sorriu quando viu entrar com um baralho nas mãos.
— Olha o que o Dax mandou. — deu um tapa nas pernas dele para que pudesse sentar no sofá.
— Ele deveria ter vindo. Não tem graça jogar com você. É péssima em todos os jogos de carta inventados pela humanidade.
— É, mas sou sua única opção, então não reclama. — Jogou as cartas no sofá e ele começou a embaralhá-las. — Na verdade, devia me agradecer. Estou tornando sua estadia aqui bem menos tediosa.
— Eu te agradeceria muito mais se me ajudasse a escapar daqui. — Aproximou-se, sussurrando.
— Isso não vai rolar. — Afastou-o, tomando o baralho da mão dele. — Então, o que quer jogar?
Strip poker. — Disse com um sorriso de lado.
— Não. — Discordou, rolando os olhos.
Strip qualquer coisa. — Insistiu, mantendo o mesmo sorriso e levou um tapa no braço.
— Nada que tenha a palavra strip. — Soltou um bufo diante da expressão canalha que estampava o rosto de .
— Truco com nudez. — Tentou novamente e dessa vez ouviu uma gargalhada.
— Nada que envolva nudez. Especialmente a minha.
— Então a minha tudo bem? — Questionou com uma sobrancelha erguida. Mordeu o lábio pensativo e então novamente o sorriso de lado brotou em seu rosto. — ... você quer o meu corpo?
— Eu só quero que você cale a boca. — Forçou uma expressão séria, enquanto tentava conter a vontade de rir.
— Então vamos jogar algo que possa envolver álcool. — Bateu a mão no sofá, animado com a ideia.
— Nada de bebida.
— Você está tirando toda a diversão. — Acusou, estreitando os olhos.
— Só a sua. — Foi a vez de ela sorrir de lado. — Ver essa sua cara de criança sem doce é muito divertido para mim.
— Eu também te amo. — Disse sem emoção e viu o sorriso dela aumentar. — Antes do jogo que eu vou com toda certeza vencer, você podia fazer minha barba. — Coçou o queixo e depois passou a mão pelas bochechas. — Os tremores diminuíram, mas do jeito que estão, eu ainda faria cortes horrorosos.
— Claro!
saiu para pedir uma navalha para a enfermeira. A situação ainda instável de impedia que qualquer objeto cortante fosse mantido no quarto ou nas mãos dele.

Quando voltou ao quarto, ele já a esperava no banheiro.
— Estou de saco cheio desse quarto. — falou após alguns minutos encarando , que estava concentrada na tarefa.
Ela manteve especial cuidado na área onde estava a cicatriz feita por Bishop.
— Ainda está em período de observação. — Afirmou, limpando a navalha na toalha que estava na pia. — Agora cale a boca ou vou acabar fazendo outro corte.
Ele fez uma careta e ela continuou.
A inquietude de atrapalhava a tarefa e já havia lhe rendido um pequeno corte em seu queixo.
— Ivy falou que vai parar com os sedativos. — Anunciou após pouco tempo de silêncio.
— Ótimo. Eles têm te dado muitas tonturas. Agora fique quieto. — Ordenou entre os dentes. — Prontinho! — Disse após alguns minutos e ele se virou para o espelho.
Riu diante da visão. tinha deixado costeletas enormes, que ainda por cima estavam tortas. O sorriso debochado dela indicavam que aquilo era proposital.
— Conserte isso. Sou eu que estou com tremores. Suas mãos são perfeitas.
— Obrigada! — Falou com um sorriso convencido.
Ele riu e então manteve os olhos no espelho, enquanto ela terminava de barbear. A visão da lâmina em seu rosto surtiu efeito. Lembrou do dia que recebeu a visita de Bishop. O homem magro, careca e de baixa estatura, havia investido um bom tempo torturando psicologicamente, fazendo longas e detalhadas descrições de tudo que faria com ele, enquanto passava a mão no bem desenhado cavanhaque. No fim, ele apenas começou a fazer o corte no canto direito da boca, sendo interrompido por um outro torturador. Todo o medo e agonia o atingiram novamente.
Afastou a navalha de seu rosto bruscamente. O susto causado pela ação impediu uma reação da parte de , que acabou com um corte na bochecha.
Não, não, não. entrou em pânico ao ver o filete de sangue que escorria pela bochecha dela. Levou a mão até seu rosto, mas ela se afastou, o que aumentou ainda mais a sua aflição.
— Está tudo bem. — se apressou em falar ao ver toda a dor nos olhos dele. — Foi um acidente.
— Eu te machuquei. — Pegou a toalha e a pressionou contra a bochecha dela. — Eu... eu... não posso deixar você ficar aqui. Eu sou perigoso e não posso permitir que mais nada aconteça com você.
, para. Eu estou bem. — Colocou a mão sobre a dele e então ele se afastou.
— Por favor, saia. — Suplicou sem encará-la. Apoiou as mãos na pia e engoliu em seco, sentindo o suor descer por sua testa e o tremor nas mãos aumentar.
...
— Por favor. Você não pode ficar aqui. — insistiu, apertando as mãos na pia e se afastou.
Encarou seu reflexo, quando ela deixou o quarto e sentiu raiva de si mesmo. Toda a agonia transformada em raiva fez com que desse um soco no espelho. A dor em sua mão não era maior do que a que assolava o seu interior.
Enfiou a mão sob a torneira e enquanto o sangue escorria pelo ralo, um pensamento cruzou sua mente. Talvez fosse melhor que tivesse morrido durante o cativeiro.

•••

acordou no meio da madrugada suado e com o coração acelerado, após um sonho vívido formado por lembranças misturadas a cenas imaginadas. As lembranças permeadas por dores, sons e cheiros haviam se tornado ainda mais funestas.
A voz de , tão próxima e suave, aumentou a sua agitação.
, você está bem? — Ela estava em pé ao lado da cama. A preocupação estampada em seu rosto.
— O que faz aqui? — Questionou, sentindo a ferida em sua mão latejar. — Não pode ficar.
— Preciso ficar perto de você. — Ela tocou as pontas dos dedos dele.
— Eu... eu não posso deixar você se machucar. — Sussurrou, encarando a mão coberta por um curativo. Sua voz trêmula expressando a dor causada por apenas imaginar aquela possibilidade. Vê-la com um curativo na bochecha fazia seu coração disparar.
— Você não vai me machucar. E eu não posso te abandonar aqui. — Sentou na cama e tocou o rosto dele. Acariciou o local e logo sentiu os olhos dele a analisando. — Me conta o que sonhou.
— Eu estava naquela fábrica de novo. — Começou após algum tempo de hesitação — Em uma pequena sala com os braços presos por uma corrente acima da minha cabeça, que me mantinha suspenso. Red usou um balde para derramar água sobre minha cabeça. E então começaram os choques e a dor intensa foi aumentando até se tornar insuportável. A dor... era como ser atacado por um animal e sentir a carne sendo arrancada e devorada aos poucos. Os espasmos começaram e eu estava a ponto de desmaiar, quando ouvi a sua voz. — Parou de falar por um instante e fechou os olhos, sentindo novamente as dores, relembrando as cenas que assombraram seus sonhos e sentindo os tremores nas mãos aumentando.
Umedeceu os lábios e continuou:
— Você estava lá e eles falavam tudo que fariam com você, e pensar naquilo era muito mais doloroso que qualquer forma de tortura. É mais doloroso. Só de pensar eu... eu...
— Então não pense. — Segurou o rosto dele entre as mãos, acariciando-o com os polegares. — Lembra da nossa primeira missão? Vamos falar sobre isso. — Ela retirou os sapatos e deitou na cama diante do olhar surpreso de . — Eu estava tão distraída, que quase matei um gato.
Relembrar a cena fez um sorriso surgir no rosto dele.
— E depois que o bichano levantou, você estava tão feliz que correu para abraçá-lo. — Ajeitou-se na cama, dando espaço para que ela pudesse ficar confortável.
— Não foi minha ideia mais inteligente. — Riu, encarando o teto. — Aquela coisa arranhou meus braços.
— E eu acho que parte de você quis atirar nele. — Acusou, sorrindo de lado.
Ela o encarou e então tapou o rosto em uma confissão silenciosa.
— Sabe, naquela época eu estava tão acostumada a ficar sozinha... — começou, virando na direção dele. — Depois que eu deixei a cidade, fugindo do meu pai, de todas as porcarias dele e desse maldito governo, eu fiquei sozinha por mais de um ano e me acostumei com isso. E aí, quando encontrei vocês rondando aquela floresta e vocês me convidaram para vir para cá, eu só conseguia pensar em milhões de formas em que isso podia dar errado. Eu não tinha certeza se viver em uma comunidade como essa seria uma boa ideia. Obrigada por me convencer do contrário.
— Obrigado por decidir ficar. — Passou a acariciar o braço de .
Enquanto encarava os olhos dela, por um momento, esqueceu todas as memórias dolorosas e apenas se sentiu feliz pela proximidade. Feliz por ela ter ignorado seus pedidos para que mantivesse distância.
— Quando eu cheguei... era tão difícil andar pelos corredores e sentir todos os olhares de ódio e repulsa. Ainda é. Mas você sempre esteve do meu lado.
— Eu só quero que as pessoas te enxerguem do jeito que eu te enxergo. — Parou o carinho por um momento, mantendo a mão pousada sobre o braço dela. Os olhos dele analisavam atentamente cada parte de seu rosto. — Eu não vejo nenhum rastro de Hugo Bormann em você. Tudo que eu vejo, é alguém que coloca o bem-estar das outras pessoas sempre em primeiro lugar. Que invadiu uma fábrica cheia de seguranças armados para me salvar. E eu sei que faria de novo. E faria o mesmo por qualquer um aqui. Mesmo aqueles que te rejeitam. Você é a pessoa mais forte que eu conheço, em todos os sentidos. E é só isso que importa.
Naquele momento, pareceu que nada mais importava. Apenas eles. Longe de tudo que os machucava e aterrorizava.



Capítulo IV.
Soon, my fears will emerge.

estava acordado há alguns minutos. Estava deitado de barriga para cima com as mãos depositadas sobre o tórax e evitava se mover, não querendo acordar a mulher que dormia profundamente ao seu lado. A distância entre eles era mínima e o cheiro dela preenchia suas narinas.
Viu ela se mexer e mudar um pouco a posição, aproximando-se ainda mais, agora já tinha seu pé direito colado ao dela. Riu ao notar que ela já estava em um estado de semiconsciência, querendo acordar, mas com o corpo cansado demais para abrir os olhos e se levantar.

Quase cinco minutos depois, ela finalmente abriu os olhos, esfregou-os e ainda de bruços, aninhada no travesseiro, encarou o homem que sorria para ela. Ficou paralisada por alguns segundos, tentando entender por que raios estava acordando ao lado de .
— Por que você está na minha cama? — perguntou, ainda com o rosto enfiado no travesseiro.
Apesar da situação lhe causar estranheza, a preguiça era maior.
— Na verdade, você está na minha cama. — Ele sorriu de lado e ela franziu a sobrancelha.
— Certo. — Ela falou, finalmente lembrando o motivo de estar ali.
— Veio de madrugada se jogar em cima de mim.
Viu revirar os olhos e gargalhou da expressão dela, que era uma mistura de falsa indignação, olhos inchados e rosto amassado.
— Conseguiu dormir? — Bocejou, ajeitando o travesseiro.
— Sim, dormi muito bem. Só agora pela manhã que acordei com seu ronco. — Ele afirmou, ajeitando-se na cama, colocando uma das mãos atrás da cabeça e o rosto dela se contorceu em uma careta.
— Eu não ronco. — Ela murmurou com os olhos semicerrados.
— Vou começar a gravar para te mostrar.
— Vou buscar café. — Ela anunciou com os olhos ainda pesados, mas não se moveu.
Estava muito confortável naquela posição, o calor proporcionado pela proximidade e os pés se tocando em um carinho simples. Além disso, havia dormido pouco.
Os dois só se moveram quando ouviram a porta ranger e Agnes apareceu com uma expressão surpresa que logo se tornou desgostosa.
— Bom dia, Agnes. — pulou da cama e calçou os sapatos rapidamente.
Olhou de relance para e notou que ele segurava o riso.
— Eu vou... mais tarde eu volto. — Passou por Agnes sem encará-la, consciente de que estaria sendo fuzilada pelo olhar dela.
Começou a rir logo que saiu da enfermaria, sentindo-se como uma adolescente que tinha sido pega no flagra.
No corredor, encontrou Penny com seu macacão cinza e botas pretas, já vestida para mais um dia de trabalho.
— Do que está rindo? — Penny a encarava com curiosidade.
— Nada importante.
está acordado?
— Está sim, mas a Agnes está lá. Deixa para visitá-lo outra hora. — apertou os lábios, tentando controlar a vontade de rir.
— Ok, pode ir me contando o que aconteceu para estar com essa cara. — Estreitou os olhos, tentando decifrar a amiga.
— Agnes me viu na cama com ele. — Falou rápido, sem se dar conta das interpretações que podiam surgir. — A expressão dela estava hilária, puro horror e descontentamento. — Riu da lembrança, sem notar que Penny levantara as sobrancelhas e abrira a boca.
— Espera, você e o ... — Penny começou com os olhos arregalados.
— Não. — Respondeu calmamente. — Não. — Berrou ao ver olhos acusadores encarando-a. — Ele teve um pesadelo e aí deitei na cama para conversarmos e aí... Não me olha com essa cara. — Naquele momento, arrependeu-se de ter contado aquilo para Penny.
— É bom ver que finalmente vocês estão partindo para a ação. Sempre teve essa tensão entre vocês. — Deu um sorriso largo, enrugando o nariz satisfeita com a situação.
— Tensão? Que tensão? Não tem tensão nenhuma. — Cuspiu as palavras, nervosa com as insinuações.
— É claro que tem. O jeito que vocês se olham, os sorrisos. O jeito que conversam. — Ela gesticulava exageradamente.
— Você é louca. Não tem nada disso. — Cruzou os braços diante da animação da outra.
... você ficou sem dormir quando ele foi levado, moveu meio mundo para encontrá-lo, agora passa os dias e noites cuidando dele e... — começou a enumerar nos dedos, mas foi interrompida.
— Contar isso para você foi um erro gigantesco. — Esfregou a testa, já impaciente com o rumo da conversa.
— Pode negar para mim, mas não pode lutar contra esse sentimento. — Fechou o punho e aproximou do peito, tentando expressar exagerada emoção para aquela sentença.
— Eu vou só... te ignorar. — Deu passos apressados em direção à cabine, deixando Penny para trás.

•••

Dias se passaram e a rotina se manteve. passava dia e noite com , apenas saindo quando ele recebia visitas. Ele estava visivelmente melhor e já havia recuperado o peso perdido. Dormia sem sedativos e aparentemente a fase de crises e mudanças bruscas de humor havia passado.
Diante de sua melhora, ele estava cada vez mais impaciente com as exigências de Ivy e de Agnes para que continuasse na enfermaria. Estava ansioso querendo voltar a sua antiga vida, saindo em missões e se sentia completamente inútil preso naquele quarto. O que lhe acalentava, era saber que desde seu resgate, sua mãe não tinha autorizado nenhuma saída da casamata. Pensar em seu grupo de combate saindo sem ele era angustiante.

Como de costume, saiu para que pudesse passar a manhã com a mãe e então almoçarem juntos. Estava deitada no pequeno sofá de sua cabine, enquanto, do outro lado do cômodo, Penny preparava o almoço.
Levantou em um pulo, quando ouviu batidas na porta e se surpreendeu ao encontrar com um sorriso de lado estampado no rosto.
— O que faz aqui? — Questionou surpresa, cruzando os braços.
— Estou livre. — Escorou no batente com um sorriso vitorioso. — Recebi alta hoje.
— Finalmente. — Puxou ele para dentro. — Temos que comemorar.
— Com álcool? — Um brilho surgiu nos olhos dele.
— Não. Vamos celebrar com o grude da Penny.
— Não é grude. — Penny discordou, indignada. — É uma macarronada deliciosa. Oi, ! — Acenou com a colher de pau que usava para mexer o molho.
— Tenha cuidado, Penny. Tente não incendiar a cabine dessa vez. — aconselhou e recebeu um olhar de desprezo em resposta.
Penny voltou a atenção as panelas e se jogou no sofá ao lado de .
— Já podemos voltar a sair em missões. — Afirmou animado, jogando as pernas em cima da mesinha de centro.
— Não seja apressado. — murmurou. — A Ivy te tirou da enfermaria hoje, não está bem o suficiente para ir em missões e lidar com todo o estresse que elas envolvem.
— Olha... — mostrou as mãos. — Sem tremores. E não aconteceu mais nenhum incidente. — Seus olhos focaram na cicatriz na bochecha dela.
— Pare de encarar.
Ele levou a mão até lá, mas ela o impediu de tocar o local.
— Eu te proíbo de se desculpar de novo.
— Ok.
— Ainda não pode ir lá fora. — Começou quando ele se afastou. — Mas, enquanto isso, podemos tentar descobrir o que as gravuras que viu nos baús lá na fábrica significam. — Pegou caderno e caneta na mesa ao lado do sofá e entregou a , que rapidamente rabiscou um desenho.
— Essa árvore está mais para ramo. — analisou o desenho atentamente. — E tem certeza que as vestes da mulher são romanas?
— Absoluta.
— Deve ser ramo de oliveira. — Penny se intrometeu. Diante das expressões confusas, continuou: — Oliveira. A árvore sagrada do Mediterrâneo. — Notou que os dois ainda não tinham acompanhado o raciocínio. — É um símbolo importante na mitologia grega.
— Mas o desenho não é grego. — discordou, mostrando o desenho para Penny, quando esta se aproximou do sofá. — É romano. Tenho certeza por causa do capacete que a mulher usa.
— A oliveira também faz parte da mitologia romana. — Penny secou as mãos e jogou o pano de prato na pia.
— Ok, então nós temos uma mulher com capacete romano, um ramo de oliveira... — enumerou, tentando entender qual era a ligação.
— É a deusa Minerva. — Penny anunciou e novamente suas palavras geraram interrogações na mente de .
apenas observava a conversa analisando os fatos.
— Quem?
— Minerva, deusa da sabedoria. A versão romana da deusa grega Atenas.
— Ok. E por que ela estaria estampada naqueles baús? — Ele esfregou a nuca.
— A maioria dos líderes do antigo regime eram obcecados com o império romano. — Penny explicou, sentando na mesa de centro.
— Queriam se tornar o próximo grande império. Ideia nenhum pouco original. — comentou, voltando a conversa.
Seus olhos se iluminaram, quando finalmente começou a juntar as peças.
— As academias militares têm estatuas de Marte, o deus da guerra e das armas. Então, se a Minerva está associada ao conhecimento...
— Provavelmente aqueles baús são de algum edifício ou complexo de pesquisa. — acrescentou, satisfeito.
— Não me lembro de nenhum edifício com esse símbolo. — analisou novamente o desenho.
— Pode ser de algum estabelecimento já desativado há muito tempo. Ou então alguma organização secreta. — Penny levantou, voltando ao fogão.
— Devíamos ter pegado aqueles baús quando vocês me resgataram. — comentou, esfregando o queixo.
— Desculpa, mas eu estava meio ocupada te arrastando para fora daquele lugar horroroso. — resmungou.
— Talvez eles ainda estejam lá... — tocou o braço de , que meneou a cabeça lentamente.
— Impossível. Já se passaram muitos dias. Já devem ter feito uma limpeza no local.
— Devíamos ir até lá para ter certeza.
— Você não vai a lugar algum. — Afirmou, cruzando os braços e ele bufou.
— Eu já falei que estou bem. — Ele insistiu.
— Antes de deixar a casamata novamente, você vai ter que provar para mim e para sua mãe que está bem o suficiente. — elevou o tom de voz.
— Vamos deixar a discussão para outra hora. — Penny interrompeu ao notar se ajeitar no sofá aborrecido. — O grude está pronto.

Depois do almoço, Penny voltou ao setor de mecânica. decidiu segui-la, já que não teria mais que acompanhar , precisava voltar ao trabalho. foi junto. Não trabalhava naquele setor e na visão de sua mãe, nem precisava trabalhar por um tempo. Mas ele não queria ficar sozinho encarando as paredes cinzas de sua cabine.
Assim que chegou, começou a trabalhar, mas logo foi interrompido. Tim Sharpe, supervisor do setor, iniciou um discurso enfadonho sobre a necessidade de repouso para que ficasse plenamente recuperado e sobre como o setor de mecânica não era uma ocupação apropriada.
Enquanto tagarelava, Sharpe ergueu a mão esquerda para desligar a máquina que manuseava. O antebraço do supervisor ficou exposto e a tatuagem presente ali chamou atenção. Os olhos de focaram na gravura e de repente, parecia estar novamente diante de um de seus algozes. Ele levou poucos segundos para agir. Segurou Sharpe pela camisa e o atirou em uma parede próxima. O baque fez Sharpe arfar, sentindo dificuldades para respirar devido as dores do impacto. Com uma expressão apavorada, assistiu correr em sua direção e levar as mãos até seu pescoço. O pavor e o desespero tomaram conta de si, enquanto tentava inutilmente se soltar das mãos que o sufocavam. era maior e mais forte, e permanecia imóvel diante de suas tentativas de afastá-lo.
Sharpe começou a perder as forças diante de um vermelho, com veias saltando na testa e dentes trincados, elementos que formavam uma visão assustadora e furiosa. Um outro trabalhador, que passava pelo local, correu até lá e tentou encerrar a agressão, mas levou uma cotovelada no nariz. Tudo ocorreu muito rápido e quando finalmente alcançou , Sharpe já estava quase perdendo a consciência.
! — gritou, mas ele não se moveu.
Ele mantinha o olhar furioso fixo em Sharpe.
! — Repetiu, mas dessa vez mais aflita, posicionando-se ao lado dele e puxando seu braço.
afrouxou o aperto e deu alguns passos para trás, encarando as próprias mãos. Sharpe deslizou pela parede, mas foi amparado por Penny, que chegaou logo depois de .
Desorientado, olhou para Sharpe, sentindo todo o peso de sua ação, mas ao mesmo tempo considerando ir até lá para terminar o serviço. Sentiu a mão de tocando seu braço e foi arrastado para longe, enquanto Penny verificava o estado de Sharpe.
— Olha para mim. — segurou o rosto de , que tinha a visão sem foco. Seu rosto e postura transpareciam fúria e apreensão. — Me conta o que aconteceu.
Ele lançou um olhar para Sharpe e começou a bufar.
puxou e o levou para fora do setor. Ele ainda estava vermelho e suava. No largo e mal iluminado corredor, escorou na parede, sentindo os tremores voltarem.
— A tatuagem do Sharpe. — Ele ofegou, sentindo a cabeça latejar. — Eu nunca tinha notado. — Massageou a nuca, enquanto seus olhos encaravam o chão. — É a mesma que todos os homens na fábrica tinham.
andava de um lado para o outro de braços cruzados, mas parou e o encarou com as sobrancelhas franzidas.
— Tem certeza? — Analisou o rosto dele, que estava vermelho e coberto por alguns arranhões. — Talvez seja só parecida.
— É a mesma. A mesma presente nos braços que me eletrocutaram, surraram e atormentaram. — Murmurou, tentando acalmar sua respiração, mas falhando miseravelmente.
Ver aquela tatuagem e relembrar tudo fizeram ele travar o maxilar. Seu coração acelerou e os tremores aumentaram.
— Eu sei que é difícil de acreditar... principalmente considerando meu estado agora, mas eu tenho certeza. — Encarou com um olhar suplicante e tocou o próprio peito, ainda tentando se tranquilizar.
— Eu acredito em você. — Ela tocou a mão dele, que estava sobre o tórax e depois se aproximou, abraçando-o.

Após uma visita rápida à enfermaria, Sharpe voltou ao trabalho. Estava transtornado com o acontecimento. Ser atacado sem explicação já era uma situação ruim, mas isso se tornava ainda pior quando o agressor era o filho de Agnes . não seria punido e continuaria sendo tratado como alguém que precisa de ajuda e compreensão. Isso irritava Sharpe profundamente. Pensar na possibilidade de reencontrar , ser atacado novamente e talvez até morto, era estressante.
Após o fim de seu turno, entrou em sua cabine amaldiçoando mentalmente a família . Trancou a porta, acendeu a luz e só então percebeu que tinha companhia. estava sentada no pequeno sofá preto com uma arma apontada para a sua cabeça. Analisou a situação, tentando encontrar alguma forma de sair ileso dali, mas a porta estava trancada e não conseguiria nem se esconder, nem ir a lugar algum. Não podia ser mais rápido que uma bala.
— Sente. — ordenou calmamente. — Só estou aqui para conversarmos.
— Não precisa usar uma arma para uma conversa amigável. — Murmurou sem se mover, ainda considerando as suas opções.
— Não vou usá-la se não precisar. Isso depende de você. Inicialmente, a única razão para eu estar armada é tornar essa conversa mais fácil. — Deu um pequeno sorriso, enquanto via o olhar de Sharpe ser tomado pelo pânico. — Sente logo, não tenho a noite toda.
Sharpe deu passos curtos até a poltrona em frente o sofá. Não podia fazer nada além de obedecer. Encarar alguém armado não era uma atitude inteligente, especialmente quando esta pessoa carregava certa fama por não errar disparos.
— Por que está aqui? — Questionou, sentando desconfortavelmente e sentindo o suor escorrer por suas costas. — Está aqui porque quer terminar o serviço que o começou?
— Não estou aqui para te matar. — Ela depositou a arma ao seu lado e notou que o olhar de Sharpe estava focado nela. — Sabe que não preciso dela. Melhor não tentar nada, eu só quero fazer algumas perguntas.
— O que quer? — Espalmou as mãos nos braços da poltrona e os apertou.
— Só quero saber mais sobre você. E eu preciso que responda somente a verdade.
— Eu tenho escolha?
— Não. Me mostre a sua tatuagem. — Ordenou e após alguns segundos de hesitação, o homem obedeceu.
Ele estendeu o braço esquerdo e ali estava o desenho da lateral de um crânio, nele também estavam presentes uma bandana e um enorme brinco no lugar da orelha. Embaixo, um par de ossos cruzados.
— O que significa?
— É só um desenho. — Engoliu em seco quando ela deu um sorriso de lado, que para ele, parecia mais uma sentença de morte. — Não tem que significar nada. — Gaguejou.
— Você tem que ser honesto comigo... se não quer ter problemas. Vamos fazer um trato. Vai funcionar assim: para cada mentira que contar... — passou a estalar os dedos. — Eu quebro um dos seus dedos. Talvez isso te incentive a ser sincero.
O barulho dos ossos estalando fizeram Sharpe arfar.
— Finalmente mostrando suas verdadeiras cores, não é? — Acusou, enquanto tentava controlar a respiração. — Aprendeu essa tática de interrogatório com seu pai?
— Não preciso seguir os passos dele. — Ela se afastou do encosto, sentando-se na ponta do sofá. — Tenho meus próprios métodos. Então... o que vai ser? — Questionou entre os dentes.
— É o símbolo dos piratas. — Gaguejou e viu assentir para que continuasse. — Na verdade, a bandeira de um famoso pirata inglês.
— Certo. Mas o que eu quero saber, é o que isso significa para você. Por que carrega um símbolo pirata no antebraço?
— Eu... — começou, ainda considerando se contar tudo era a melhor opção.
— Omitir é o mesmo que mentir.
— Eu fazia parte de um grupo, antes de vir para cá. Nós... nós roubávamos do antigo regime.
— Por isso o símbolo de pirata? — ela questionou e meneou a cabeça negativamente quando ele assentiu. — O que vocês roubavam?
Ele apertou os braços da poltrona com mais força.
— O que roubavam? — Repetiu impaciente.
— Órgãos sintéticos, medicamentos, todo tipo de coisa.
— E é só isso que faziam? Só contrabandeavam?
— Sim.
— Você está mentindo. — Acusou, aproximando-se ainda mais.
— Eu não estou. — Gaguejou, sentindo o pânico tomar conta.
— Sim, você está. Esse seu grupo de “piratas” além de roubar, também tortura. — Rosnou, irritada.
— Não, nós não fazemos isso.
— Nós? Ainda é um deles? É um desgraçado torturador? — Questionou novamente, pegando a arma e apontando para a cabeça dele.
— Não faço mais parte. — Berrou desesperado, encarando o cano da arma. — Estou aqui, investindo meu tempo e esforço aqui. Eu sou um cidadão da casamata. Mas eles... eles não são torturadores.
— São agora. Os homens que torturaram o tinham essa tatuagem. — Murmurou, fechando os punhos. — Todos eles. Por isso ele te atacou.
— Isso é impossível, eu... eu...
— Minerva. — Interrompeu-o, irritada. — Isso significa algo para você?
Ele hesitou e ela entendeu aquilo como uma confissão.
— Me conte o que sabe.
— É como era chamada uma rede de centros de pesquisas do antigo regime. Vários institutos comandados por um seleto grupo de cientistas.
— Sabe a localização de algum desses centros? Sem mentiras, Sharpe. — Ordenou quando ele abaixou a cabeça por um momento.
— Já invadi dois deles. Mas estão desativados agora. Todos eles.
— Me passe as localizações e eu vou embora. E nós podemos esquecer que estive aqui.
Sharpe pegou um mapa sobre a mira de . Apontou as coordenadas que sabia e depois sentou novamente na poltrona. Após fazer algumas ameaças sobre as consequências de contar daquela visita a alguém, caminhou até a porta. Parou por um instante e se virou para o homem ainda tenso e grudado a poltrona.
— Você era um contrabandista e agora está aqui. Vivendo sem que ninguém saiba do seu passado. — Começou, colocando a arma na cintura. — Eu nunca fiz nada de errado. Não sou o meu pai. Por que acha que é o único que merece uma chance?



Capítulo V.
I will never leave you in the dark.

Após interrogar Sharpe, foi até a cabine tentar dormir um pouco, mas os acontecimentos do dia turbulento pairavam em sua mente, impedindo a chegada do sono.
Levantou após horas encarando o teto e silenciosamente deixou a cabine. Decidiu ir até o local onde tinha passado várias madrugadas insones durante o período em que estava cativo.
Atravessou a casamata até o centro de treinamento, local onde sempre ia para tentar se distrair dos problemas, enquanto focava em suas habilidades, alvos e sacos de pancada.
Ao abrir a pesada porta de metal, pôde identificar um barulho vindo do fundo do enorme salão. Passou pelo ringue que ficava logo na entrada e caminhou entre aparelhos e alvos até a fonte do som. Deparou-se com uma cena que a fez bufar.
— Não devia estar aqui. — Repreendeu , que tinha uma garrafa de whisky na mão esquerda e uma faca na mão direita.
Ele cambaleou assustado com a presença de .
... estou só espairecendo. — Sorriu após beber um gole de whisky.
— Atirando facas bêbado? — Questionou mal-humorada, enquanto se aproximava, e notou que ele tinha os olhos tão vermelhos quanto as marcas feitas por Sharpe.
— É. — Atirou uma faca no alvo, errando por alguns centímetros.
— Roubou isso? — Apontou para garrafa e viu ele assentir.
— É. — Estendeu o whisky na direção dela.
meneou a cabeça e ele bebeu mais um gole.
— Agnes proibiu a sua entrada aqui. — Levantou a voz, cruzando os braços.
— Eu precisava treinar.
— Bêbado?
— Essa é a parte de esfriar a cabeça — Atirou outra faca, dessa vez sem olhar o alvo.
— Beber não vai ajudar. — Estendeu a mão para que lhe entregasse a garrafa, mas ele se afastou.
— Nada pode me ajudar. — Murmurou, sentando na mesa onde estavam depositadas as facas.
...
— Minha mente está tão ferrada, que não tem jeito de consertar. — Fechou os olhos e deu alguns tapas na testa.
— As coisas vão melhorar... — começou com uma voz terna, mas foi interrompida.
— Não, não vão. — Rosnou, pegando uma faca e começou a passar os dedos pela lâmina. — As coisas não vão voltar ao normal. Nada vai ser como era antes.
— Isso é você desistindo? — Ela ficou agitada ao notar o modo como ele falava, expressando derrota e exaustão. — Desistindo de lutar e....
— Eu quase matei um homem hoje. — Interrompeu-a raivoso, atirando a faca e dessa vez acertando o alvo. — Machuquei a Martinez e eu... eu te machuquei. — Abaixou o tom de voz. Lembrar do ocorrido sempre fazia seu coração doer. Sua respiração se tornou pesada e sentia os olhos arderem. — Eu devia estar numa cela. — Concluiu em um sussurro, empurrando a caixa de facas no chão.
O estrondo metálico assustou .
— Não fala isso. — Ela gritou, sentindo um nó se formar em sua garganta.
— Eu pensei que tudo estava bem, mas não está. Dias sem esses surtos e eu já estava acreditando que as coisas estavam voltando ao normal. O que aconteceu hoje me mostrou que é assim que as coisas vão ser agora. — Levantou da mesa e bebeu mais um gole do whisky. — Eu já desisti, você devia fazer isso também. — bebeu mais um gole e viu que os lábios de tremiam.
— Não.
— Eu não valho a pena. — Ele apertou os lábios, sentindo toda a angustia que vinha ignorando, começar a inundar seu ser.
— Para com isso. Isso aí é a bebida falando. — Ela foi até ele, tomou a garrafa e arremessou na parede.
Os olhos dele agora estavam fixos nela, analisando cada pedaço de seu rosto.
— Sim, a sua mente está ferrada no momento e os flashbacks e lembranças do trauma têm feito você agir dessa forma. Mas isso não é você. — Deu um pequeno empurrão no tórax dele. sentia os olhos arderem, mas tentava segurar as lágrimas.
— É agora. — Murmurou amargo, encarando o chão.
— Não é. — Ela berrou e deu alguns passos para trás. — Eu não posso imaginar tudo que tem passado. Eu... — sentiu as lágrimas finalmente rolarem. — Preciso de você. — Cruzou os braços por um momento e depois se abraçou.
a encarava chocado. Era a primeira vez que via ela abaixar todas as suas defesas na frente dele. De repente, toda a merda que vinha passando parecia não ser nada perto da necessidade de ser forte por ela.
— E preciso que lute contra todas essas vozes pessimistas, que continue lutando contra toda essa porcaria e... — suspirou. — Você fala que eu sou forte, mas você é muito mais. Você consegue enfrentar isso. Eu sei que sim. Por favor, . Não entrega os pontos. — Implorou, sentindo mais lagrimas molhando seu rosto e fechou os olhos.
Ficou alguns segundos de olhos fechados. Logo sentiu a envolvendo e desabou nos braços dele.
— Por que não desiste de mim? — questionou após algum tempo. Sua bochecha colada ao topo da cabeça de .
Ela se afastou para encará-lo.
— Por você está errado. Você vale a pena. — Sussurrou, pousando as mãos sobre o tórax dele.
limpou as bochechas de e encostou a testa a dela. Eles se encararam por alguns segundos, sentindo um calor aquecer ambos. Ele umedeceu os lábios e passou a acariciar a bochecha dela. Viu desviar o olhar e logo depois se afastar.
— Eu conversei com o Sharpe. — Ela encostou em uma pilastra afastada de . — Consegui algumas informações.
— Conversou? — Ele questionou com uma sobrancelha erguida e um sorriso de lado.
— Interroguei. — Rolou os olhos, rindo.
— Com uso da força ou ameaças? — Cruzou os braços e novamente se aproximou dela.
— Só ameaças. Posso ser bem persuasiva. — Respirou fundo ao notar ele perigosamente perto.
— E até assustadora. — Brincou, encostando na pilastra ao lado dela. — O que ele contou?
explicou tudo para . Como havia sido o interrogatório e tudo que Sharpe havia revelado.
— Se você já tem as coordenadas para os laboratórios, o que estamos esperando? — Ele questionou, aproximando-se novamente e segurando os ombros dela.
— Então, você não está desistindo? — Ela levantou os ombros e ele deslizou as mãos até seus cotovelos.
— Não. — Ele meneou a cabeça e viu ela sorrir.
— Nós vamos invadir esses laboratórios. Juntos. Quando você estiver bem para sair. — Anunciou, afastando-se. — E já que quer voltar a treinar, vou te ajudar. — Ela pegou a caixa de facas do chão e logo ele apareceu para ajudá-la. — Vamos iniciar correndo para ficar em forma.
Viu ele abrir a boca para reclamar, mas continuou:
— Começamos depois de amanhã bem cedo.

•••

estava sentada na bancada que separava cozinha e sala, tomando seu café entretida com uma pequena aranha que descia de sua teia logo acima de sua cabeça. Lembrava de como costumava ter pavor de aranhas quando criança. Chorava e gritava para que o pai a socorresse. Naquela época, ela o considerava a melhor pessoa do mundo, sempre atencioso e protetor. Em sua mente infantil, ele era pintado como uma espécie de herói.
A morte precoce da mãe, havia feito se aproximar ainda mais do pai e até completar vinte e dois anos, eles eram inseparáveis. Foi então que tudo mudou. Três anos depois ela não tinha medo de aranhas, a vida a havia ensinado que havia coisas e pessoas muito mais assustadoras com que se preocupar. Seu pai era uma dessas pessoas. Ela agora conhecia a verdadeira face do homem antes admirado e amado.
Na maioria das vezes que lembranças da infância cruzavam sua mente, ela se odiava. Sentia que havia sido muito estúpida em acreditar que havia bondade e amor em Hugo Bormann. Especialmente depois de mudar para casamata, passando a conhecer e encarar todos os dias tantas vítimas do vil torturador. Em alguns momentos, os olhares de repulsa de algumas pessoas dali a influenciavam tanto, que seu peito se enchia de temor. Medo de que seu sangue e genética falassem mais alto, que fosse parecida com o pai e tão perversa quanto ele. Cogitava que talvez estivesse mantendo esse lado cruel guardado e que a qualquer momento poderia ser dominada por ele. Pensava nas pessoas que já teve que matar e em todos os golpes que já desferiu. Lembrou como havia brincado que ela podia ser assustadora, quando contou do interrogatório de Sharpe. E admitiu para si, que se Sharpe não tivesse colaborado, ela não teria ficado apenas nas ameaças. Teria o machucado, assim como todas as pessoas que interrogou quando procurava por .
Talvez ela apenas precisasse de motivos para deixar a perversidade e selvageria tomarem conta de seu ser. Constatou que a possibilidade de perder poderia ter desencadeado esse processo de perda de humanidade.
Semanas atrás, quando em uma das missões havia sido capturado, ela perdeu o chão. Fez tudo que podia para encontrá-lo. Machucou e matou muitas pessoas e teria feito coisas piores e até bárbaras, se fosse necessário. era seu ponto fraco. O homem que sempre via o melhor nela. Que sempre enxergou a pessoa que ela queria ser, que se esforçava para ser. Que nunca tinha olhado para ela com desconfiança ou asco. Um homem bom. Mesmo agora, sendo atormentado por lembranças dolorosas, tudo que ela via nele era o homem virtuoso e generoso que conhecera em um dos piores dias de sua vida. E ela sentia que toda a admiração que ele cultivava por ela cairia por terra se ele soubesse de tudo que ela era capaz.
Suas reflexões foram interrompidas por uma batida na porta, olhou o relógio no pulso e viu que ainda nem eram cinco.
Assim que abriu a porta, entrou sem cumprimentá-la e foi direto até a garrafa de café.
— Bom dia. — Ele falou após bebericar o café. Seu rosto ainda tinha marcas feitas pelo lençol. — Está tudo bem? — Questionou diante do silêncio dela, que apenas o encarava.
— Sim. Eu só... estou meio sonolenta ainda. — Coçou a sobrancelha esquerda.
Ele sabia que ela estava mentindo. Algo a perturbava. Decidiu não a confrontar no momento. Teria muito tempo para fazer isso.
— Foi sua ideia ir correr tão cedo. — Largou a xícara na pia e começou a fazer alguns polichinelos. — Vamos?
— Está animado. — Ela terminou de beber seu café e também colocou a xícara na pia.
— Vou te provar que estou bem, para gente ir logo invadir alguns laboratórios. — Começou a se alongar. — E você vai ver como eu estou sarado. — Completou com um sorriso sacana e ela riu.
— Vamos ver quantos quilômetros vai aguentar.
Saíram da casamata e caminharam algum tempo por trilhas tortuosas, até alcançar uma planície. A casamata estava em um local de difícil acesso. Isso era ótimo para evitar qualquer ataque inimigo por terra, mas era um empecilho para saídas e passeios descompromissados.
sorriu, aproveitando o cheiro de terra e mato. Havia ficado preso por tanto tempo, primeiro no cativeiro e depois na enfermaria, e sentia falta de passar manhãs naquele local. Em suas corridas ou passeios para arejar os pensamentos, quase sempre tinha como companhia. Ele aproveitou o local por algum tempo e então começaram a correr.
Logo ficou claro que ainda levaria um bom tempo até estar novamente em plena forma. Ele parou por um instante apoiando as mãos nas coxas, enquanto arfava tentando recuperar o fôlego. Estava suado, a camisa completamente encharcada. Voltou a correr e se esforçou para acompanhar o ritmo de , mas logo mais paradas eram necessárias.
Vendo que, apesar da exaustão, não queria parar, mudou a direção. Entraram na mata e em poucos minutos chegaram a um rio de água cristalina. Ela parou e começou a se alongar. Quando virou, viu tirando a camisa e depois a bermuda.
— Está maluco? A água deve estar gelada. — Comentou, passando rapidamente os olhos pelo corpo dele.
— É, mas nós estávamos correndo. — Largou as roupas no chão e foi até ela.
— Não. Eu estava correndo. — Passou a estalar a as costas e o pescoço. — Você estava se arrastando como um idoso com tuberculose. — Riu debochada e viu ele dar um sorriso maquiavélico.
não teve tempo de reagir ao que veio em seguida: a abraçou, pulando no rio e a levando junto. A ação inesperada a fez engolir água. Emergiu tossindo e passou as mãos pelos cabelos, enquanto o procurava.
Assim que ele apareceu, ela gritou:
— Eu vou te matar!
deu uma risada e ela fez uma careta raivosa. nadou na direção dele, que seguiu na direção contrária. Ficaram algum tempo feito gato e rato, mas logo estavam rindo, brincando e jogando água um no outro.
— Trégua? — Ele perguntou, erguendo as mãos. Tinha as bochechas vermelhas devido a água gelada.
— Trégua. — Ela mergulhou e foi até ele, emergindo a poucos centímetros de distância.
Ele se distraiu observando os traços dela e não notou suas intenções. Ela sorriu antes de pular em cima dele. afundando-o.
Após alguns segundos mantendo submerso, soltou-o e tentou nadar para longe, mas sentiu seu pé direito sendo agarrado e depois puxado. a arrastou para perto e a abraçou.
— Agora está presa.
— Não, não estou. Se eu quiser eu me solto.
— Então você quer ficar colada a mim. Eu sempre soube. Sou completamente irresistível. — Ergueu as sobrancelhas em uma insinuação e sorriu de lado.
Ela rolou os olhos, mas sem intenções de se afastar.
— Só estou preocupada em te machucar no processo.
— Não se preocupe com isso, vai ter outras preocupações.
Ela franziu a sobrancelha e foi a vez de ele forçar a cabeça dela para baixo. Foi apenas por um instante e então ela subiu o empurrando e passou a nadar de costas, afastando-se. a observou por algum tempo com um sorriso largo e logo passou a nadar também.
Os dois passaram um bom tempo nadando despreocupados. Naqueles momentos, esqueceram do passado e das cicatrizes que ele deixara, não havia traumas, medo ou arrependimentos.

Quando já estava com a pele enrugada, saiu da água. Torceu o cabelo e depois as roupas encharcadas, pesadas e grudadas ao seu corpo. ainda estava no rio a analisando, mas quando ela se afastou, saindo de seu campo de visão, ele a seguiu.
— Tire essas roupas encharcadas. — Ordenou, saindo da água. — Vai acabar ficando doente.
— Eu não vou ficar seminua na sua frente. — Cruzou os braços e os esfregou, tentando aplacar o frio.
— Vista as minhas enquanto as suas secam. Eu que te joguei no rio com roupa e tudo.
— Tem razão, você que merece passar frio. Vire-se! — Exigiu e ele acatou. — Nem pense em olhar. Lembre-se que eu posso quebrar todos os ossos do seu corpo. E eu vou fazer isso se me der motivo.
Ee riu, encarando as pedras no leito do rio.
retirou a blusa e o short e os estendeu em uma pedra. Enquanto vestia as roupas de , seus olhos focaram nas costas dele. Em cada cicatriz presente ali. Marcas de vários tamanhos, de queimaduras a cortes profundos, contrastando com a pele branca.
— Já se vestiu? — perguntou, ainda de costas, mas estava distraída demais para ouvir. — ? — Olhou para trás e ela estava vestindo a camisa.
O rosto dela estava tapado, mas tinha a barriga e colo expostos. Notou uma cicatriz que começava do lado esquerdo de sua barriga, passava por sua cintura e parecia ir até suas costas. Analisou a cicatriz curioso com a história por trás dela. Ela tinha outras cicatrizes e ele conhecia cada uma que fora adquirida desde que ela chegou à casamata. Mas apesar da proximidade entre eles, ela não compartilhava muito sobre sua vida antes da tarde em que se conheceram.
voltou a olhar para frente, antes que ela notasse que estava sendo observada.
— Está pronta?
— Pode se virar.
Ele obedeceu e em seguida ela se sentou em uma pedra.
— Provavelmente vou pegar um resfriado depois de horas nessa água gelada. — Ela murmurou. esfregando o nariz.
— Não reclame. Nós dois estávamos precisando disso. — Afirmou, sentando na frente dela. — Uma distração.
— Tem razão. Os dias têm sido bem estressantes. — Ela suspirou e abraçou as pernas. — Mas as coisas vão melhorar. Já estão melhorando. — Sorriu e ele retribuiu.
— Senti falta daqui. Um lugar tranquilo e silencioso. Os sons do rio, do vento e da floresta. A casamata às vezes também é silenciosa. Mas é diferente, sabe, é como se o clima estivesse quase sempre pesado, tomado por uma tensão e problemas eminentes. Essa guerra contra República mantém uma inquietação constante. E parece que as coisas ficam mais angustiantes a cada dia. — Mordeu o lábio, pensativo, e diante da falta de resposta de , notou que o olhar dela passeava por seu tórax analisando as cicatrizes espalhadas ali. — Está encarando meu corpo ou as cicatrizes? — Levantou o tom de voz, chamando a atenção dela. — Se for o corpo, tudo bem, não te culpo. Mas se forem as cicatrizes, pode ir parando. Se eu não posso encarar as suas, você também não pode encarar as minhas.
— Desculpa. É que... — começou, mas se calou, não queria externar seus pensamentos.
— O que foi? — Ele levantou e sentou ao lado dela.
— A última vez que eu vi essas cicatrizes, foi... foi no dia do seu resgate. Você estava amarrado, ensanguentado e cheio de machucados. — Ela falava, ainda encarando as cicatrizes. Tocou uma que antes era um enorme corte entre as costelas dele. — E eu chamei seu nome... mais de uma vez e você... você não se moveu. — Os olhos dela começaram a arder, enquanto tateava outras cicatrizes no tórax dele. — E, por um momento, eu achei que tinha te perdido. — Terminou em um suspiro e sentiu a mão dele sobre a sua. Então, finalmente, encarou seus olhos.
— Não perdeu e nem vai.
— Desculpa por ficar tocando nesse assunto.
— Não se desculpe. — Envolveu a mão dela entre as suas. — Eu que tenho que me desculpar. Eu sei que eu não tenho sido uma companhia agradável.
Viu ela menear a cabeça.
— Tenho revezado momentos depressivos com surtos de fúria. Às vezes até fui agressivo. — Ele umedeceu os lábios, olhando de relance para a cicatriz na bochecha dela. — E mesmo assim, você não se afastou. Não saiu correndo. Está sempre disposta a me ajudar e eu nunca vou poder agradecer o suficiente por tudo que já fez até esse momento. E eu sei que eu ainda vou ter momentos sombrios e...
— E quando esses momentos vierem, eu vou te seguir na escuridão e arrastar o seu traseiro para fora de lá. — Diante da sinceridade presente naquela sentença, sorriu.
Soltou a mão de e passou a acariciar seu rosto. Ele precisava dela. Estar com ela era a única coisa que podia afastar, mesmo que temporariamente, toda a dor que o afligia. Ela era a única que conseguia renovar suas esperanças. Era o motivo dele continuar lutando.
Aquela proximidade fez suspirar. Foi algo involuntário e normalmente ela fugiria de tal situação, não demonstraria como aquilo a afetava, mas não conseguia se afastar. Estar ali, sentindo os olhos dele a analisando, suas mãos a tocando gentilmente, sentindo seu cheiro, observando atentamente cada sarda, cada cicatriz e cada gota que escorria de seus cabelos até seu queixo perfeitamente desenhado, fazia seu coração acelerar. E então ele se aproximou, encarando-a ternamente, enquanto seus polegares acariciavam suas bochechas e acabou com a distância entre as bocas.
Apesar de surpresa com a atitude, rapidamente correspondeu, enquanto sentia seu interior aquecer. Apenas quando ele aprofundou o beijo, é que ela sentiu um alarme soar em sua mente. Todas as razões para se manter afastada piscavam como placas de neon.
Cortou o beijo e se levantou apressada.
! — chamou, também levantando e andando até ela. Seus olhos expressavam a confusão presente em sua mente. Não conseguia entender como em um momento estava desfrutando de um momento de carinho e intimidade, e no outro via ela o encarar com frieza.
— Nós não devíamos... — começou a tirar a roupa e a jogar em cima dele, não se importando se ele a visse.
— Espera.
— Precisamos ir. — Vestiu rapidamente as roupas encharcadas, esquivando das tentativas dele de tocá-la. — Agora.
O silencio reinou no caminho de volta. ainda tentou começar uma conversa, até se desculpar, mas não conseguiu nada além de respostas monossilábicas. Então desistiu. Torceu para que o silêncio organizasse suas ideias.



Capítulo VI.
It feels like there's oceans between you and me.

Apesar dos passos apressados, o caminho até a casamata pareceu mais longo. Ambos estavam agitados e mexidos com o beijo, mas, aparentemente, apenas o encarava como algo positivo.
não dirigiu a palavra a ele até estarem dentro da fortificação. Informou que não poderia treinar no dia seguinte e correu até sua cabine. Assim que fechou a porta, ela tocou os lábios, relembrando o beijo e todas as sensações que ele havia desencadeado. Passou a mão pelos cabelos, perturbada com a confusão de sentimentos e foi até o banheiro. Precisava tirar aquela roupa, tomar um banho e então tentar esquecer do ocorrido. Mas esquecer seria a última coisa que conseguiria fazer.
Debaixo do chuveiro, a todo momento surgiam flashs dos momentos passados com , especialmente o beijo. Então, o medo invadiu seus pensamentos. Medo que as coisas mudassem e que nada voltasse a ser como antes. Talvez tivesse sido só um beijo, parte do calor do momento. Mas poderia carregar sentimentos que arruinariam o melhor relacionamento que já teve.
Uma voz em sua mente sussurrava que ela queria aquilo, queria que tudo mudasse, queria mais do que uma amizade com . Mas então as placas de neon apareciam mostrando que ela não podia ficar com ele. Não podia nem cultivar esperanças.
A inquietação crescia dentro de si, enquanto considerava as várias possibilidades. Talvez só estivesse solitário, tentando lidar com toda a merda que vinha o perturbando e o beijo teria sido apenas um momento de distração para ele. Essa era uma boa possibilidade. Eles poderiam esquecer aquilo e seguir em frente. Mas talvez ele tivesse sentimentos mais profundos por ela, assim como ela tinha por ele, apesar de não admitir, e se esse fosse o caso, tudo mudaria.

Aquela seria mais uma noite de insônia.
Desde que saiu do banho, ela havia se enfiado debaixo da coberta e tentava sem sucesso pegar no sono. Já estava há horas imóvel naquela cama e a cada minuto que passava, ela ficava mais agitada.
Levantou-se impaciente e viu que ainda eram onze horas. Trocou de roupa e saiu da cabine, ainda tentando suprimir de seus pensamentos. Caminhou apressada até a ala oeste da casamata e assim que chegou à porta desejada, deu duas batidas. A porta se abriu, revelando Selina, que a encarou com as sobrancelhas arqueadas e logo deu espaço para ela entrar. A expressão perturbada de preocupou Selina. Ela não era o tipo de pessoa que se abatia facilmente e nem a procurava por qualquer problema. As duas eram parecidas. O tempo havia as endurecido.
No caso de Selina, esse processo havia começado mais cedo. Ainda criança se juntou à guerrilha, empunhando armas e lutando ao lado dos pais na resistência. Sua vida era marcada por lembranças dolorosas e muitas perdas.
Durante os quinze anos morando na casamata, ela havia perdido todos que amava pelas mãos do governo, direta ou indiretamente, em circunstâncias traumáticas. Seus pais haviam dedicado a vida à guerrilha, inicialmente lutando contra o antigo regime e depois contra a Nova República. Empenharam-se na tarefa de desestruturar os vários serviços do país, como: transporte, energia, comunicações e abastecimento, mas sua principal atividade eram ataques surpresa a instalações militares. O envolvimento nessas missões arriscadas levou à prisão de ambos e após meses de torturas e interrogatórios intermináveis, a morte. Quatro anos depois, o irmão de Selina se feriu em um “atentado terrorista” forjado pelo governo, e apesar de ter sido levado a casamata às pressas, não resistiu aos ferimentos.
Os horrores presenciados nos conflitos e a morte de familiares foram suficientes para o início da transformação de sua personalidade, mas foram as perdas seguintes que agravaram esse processo. Seu marido e o filho foram infectados por um vírus letal, uma arma biológica criada pelo governo e disseminada em algumas áreas para espalhar o terror. Com o crescimento dos movimentos de resistência, a Nova República buscou desenvolver novas armas, especialmente vírus e toxinas modificados em laboratórios. Em enormes laboratórios que mais pareciam campos de extermínio, utilizou presos políticos como cobaias de experimentos envolvendo vivissecções, exposição a diferentes temperaturas e a armas químicas e biológicas. Após esses experimentos, foram feitos testes com as novas armas em algumas regiões povoadas. Em poucas semanas, milhares morreram e doenças se espalharam por quase todo o território.
Em um período de oito anos, Selina havia perdido tudo que amava e isso fez crescer nela um desejo por vingança e violência. Passou por um período obscuro, assumindo um comportamento explosivo e frio. Matou e torturou anunciando que era tudo em nome da causa rebelde, mas, na verdade, era apenas uma forma de externar todo ódio que sentia pelo governo. Com o tempo abandonou a violência desnecessária e indiscriminada, mas manteve a frieza. Vivia desprovida de autopiedade e sem precisar de ninguém. A vida havia escolhido um caminho solitário para ela e ela aceitara isso. A única pessoa que conseguiu romper a barreira que havia criado era .
Quando conheceu , Selina a odiou, por quem era e o que representava, mas em pouco tempo de convivência, viu tudo que tinham em comum. Com o passar do tempo, passaram a compartilhar um laço invisível de respeito e honestidade, e apesar de terem apenas onze anos de diferença, Selina sentia um carinho quase maternal.
— O que aconteceu? — Selina perguntou, assim que sentou no sofá.
— Eu preciso de um favor. — estava sentada na ponta do sofá, estalando os dedos sob o olhar atento de Selina.
— Ok. Manda.
— Eu preciso que você cuide do .
— Por quê?
— Ele ainda não está recuperado. Ele atacou o Sharpe e tem tido episódios depressivos e... — começou, encarando as próprias mãos.
— Eu sei. Essa parte eu entendo. Aqueles que foram torturados continuam sendo torturados. — Selina disse com um sorriso fraco, aproximando-se do sofá. — O que eu quero saber, é por que você quer que eu faça isso. Achei que você queria cuidar dele.
— Eu queria, mas as coisas se complicaram. — Gaguejou, ainda inquieta.
— Quão complicadas? — Levantou o tom de voz, chamando a atenção da mais nova.
— Ele me beijou. — Disse em um sussurro e apertou os lábios. — E isso não podia ter acontecido.
— Não estou surpresa. — Sentou no braço do sofá diante do olhar desconcertado de . — Sempre existiu “algo” entre vocês.
— Não fala isso.
— A cumplicidade sempre esteve presente nesse relacionamento. E tudo que aconteceu, fez vocês se aproximarem ainda mais. O beijo não foi totalmente inesperado. — Selina argumentou, observando o comportamento de . — E está claro o quanto isso te afeta.
— Você sabe que não pode acontecer nada. — Murmurou, apertando as mãos.
— Eu sei. — Afirmou com uma expressão impassível.
— Eu só preciso me afastar um pouco. Para as coisas voltarem ao normal.
— Eu sei a resposta, mas vou te perguntar mesmo assim para que possa refletir. — Começou após alguns segundos de silêncio. — O que é tão assustador, saber que ele tem sentimentos por você ou que você corresponde?
— Não tem sentimento nenhum. — Esfregou a testa. — Ele só está confuso. — Afirmou, tentando se convencer. — Só precisamos nos afastar por um tempo. Para acabar com qualquer tipo de confusão.
— Querida... — tocou o ombro dela carinhosamente. — Você pode fugir dele, tentar afastá-lo, mas sabe que não pode controlar como ele se sente, nem como você se sente.
— Nada disso importa. Eu só preciso ignorar isso tudo até passar.
...
— Eu não posso ter isso. Eu não posso tê-lo. Eu... — levantou agitada. Suspirou, passando as mãos pelos cabelos, sentindo-se desnorteada. — Pode fazer isso por mim? — Suplicou, aproximando-se novamente do sofá. — Cuidar dele, treinar junto.
— É lógico que sim.
— Ele quer ficar bem logo para voltarmos às missões.
— Acha que ele tem condições de sair?
— Ainda não. Mas logo vai ficar bem.
— Agnes não concorda. Ela veio me procurar ontem. Disse que está fora do grupo de combate.
— Ela não controla isso. — Cruzou os braços e depois se abraçou. Também não podia impedir que participasse de missões, mas a possibilidade dele se machucar agora a apavorava.
— Ela é a mãe dele. Só está com medo.
— Eu sei e até concordo, mas o é teimoso, até mais que a Penny. Ele vai com a gente na próxima missão e a Agnes não vai conseguir impedi-lo.

entrou em sua cabine silenciosamente, torcendo para não encontrar Penny acordada. Sua mente ainda estava perturbada pelos acontecimentos do dia e não queria dividir isso com mais ninguém. Dividiu suas preocupações com Selina, porque se sentia sufocada e sabia que ela não daria ao assunto uma importância desnecessária. Selina conseguia lidar com as informações sem se agitar ou tentar resolver a situação. Era o oposto de Penny.
A aparência das cabines era um exemplo das muitas diferenças entre elas. Enquanto a cabine de Selina era simples e com poucos moveis em tons sóbrios, a cabine de e Penny tinha almofadas, utensílios coloridos, pinturas emolduradas e móveis estilizados feitos pela mais nova. Penny era dotada de um otimismo e confiança inabaláveis. Seu entusiasmo não havia enfraquecido diante das provações que enfrentara. Era isso que aproximava as colegas de cabine.
considerava Penny como uma irmã mais nova que trazia a leveza que lhe faltava. Geralmente, considerava Penny uma boa companhia, mas quando se tratava de problemas emocionais, principalmente envolvendo , preferia não compartilhar.
Já debaixo das cobertas e aconchegada a seu travesseiro, bufou. Não podia apagar de sua mente as feições de , nem sua voz, nem as sensações que ele provocara. Passou a encarar o teto, sentindo-se dividida entre a necessidade de se afastar e a culpa proveniente dessa decisão. Seria difícil se manter longe e abrir mão de uma relação de carinho e apoio, mas ela não conseguia enxergar outra saída. Sabia que fugir dele era uma atitude infantil, mas precisava evitar que aquele beijo trouxesse maiores complicações. A confusão em sua cabeça era complicação suficiente.
Apenas imaginar o que poderia estar passando na mente dele, já fazia sua cabeça latejar. Não estava preparada para uma conversa sincera. Não estava preparada para ouvir que ele tinha sentimentos profundos por ela e nem para ouvir que aquele beijo não tinha significado nada.

•••

Dias passaram e se manteve firme em sua decisão de manter distância de . Sempre arrumava desculpas para não passar mais que poucos segundos em sua companhia.
Inicialmente, ele ainda tentou romper a barreira que ela havia levantado, mas logo desistiu. Conhecia bem o suficiente para saber que uma insistência da sua parte apenas pioraria as coisas. Então ele focou nos treinos e em retomar a forma para voltar a missões. Dividia seu tempo entre treinos com Selina e momentos de conversa com Ivy, que decidira assumir o papel de sua psicóloga.
Os momentos com Ivy se resumiam em longos silêncios da parte dele, enquanto ela se esforçava para fazê-lo falar. As tentativas dela eram infrutíferas, ele continuaria guardando tudo para si, já que a única pessoa em que confiava plenamente evitava sua companhia. era a única que o deixava confortável para compartilhar as coisas horríveis e humilhantes que havia enfrentado.
conseguia notícias de através de Selina e Penny. A segunda sempre tentava iniciar um interrogatório sobre o que tinha levado a aquele afastamento, situação que deixava ainda mais estressada — estresse que era sempre combatido no salão de treinamento tarde da noite.
Após mais um dia de trabalho e um jantar recheado de perguntas e comentários inconvenientes, entrou no centro de treinamento determinada a descarregar toda a irritação em um saco de areia. Assim que entrou no local, quis dar meia volta, mas sua presença já havia sido notada. e Selina lutavam no ringue e pararam assim que ouviram o barulho na porta.
Os olhos de passaram rapidamente pelo tórax descoberto dele e quando encarou seu rosto, viu-o abrir um largo sorriso.
— Vem lutar comigo. — passou uma toalha pela testa suada. — Selina já está cansada de perder. — Apontou para mulher que havia se abaixado para pegar a garrafa de água.
— Aposto que ela chutou seu traseiro. — comentou, sorrindo.
Sentia falta de passar seus dias na companhia dele.
— Chutei. — Selina afirmou rindo. — Repetidamente. — Foi atingida pela toalha de .
— Vem. — Ele se apoiou em uma das cordas que cercavam o ringue. — Nós não lutamos há meses.
— Melhor não. Preciso bater em algo que aguente a força desses punhos. — Comentou, gerando mais risadas em Selina.
fingiu levar uma facada.
— Bom treino para vocês. — Caminhou rapidamente até o outro lado da sala.
Tentou se concentrar apenas nos golpes que desferia no saco de areia. Após alguns minutos, ouviu barulho de passos, mas não conteve os socos, chutes e joelhadas. parou ao lado do saco, observando-a de braços cruzados. Ele estava suado e ofegante, e ela tentava não se desconcentrar e nem desviar o olhar do alvo de seus golpes.
— Você pode me olhar, sabe. Não é perigoso. — Ele começou com um tom brincalhão. — Sei que tem faísca entre nós e você quer arrancar minhas roupas noventa por cento do tempo em que estamos juntos, mas acho que consegue se controlar por alguns segundos.
Ela ignorou os comentários e continuou golpeando o saco de areia.
— Sério? Nenhuma risada ou olhar de desprezo?
— Eu estou meio ocupada. — Murmurou, desferindo os golpes mais rapidamente.
— É meio irônico você ter me abandonado depois de dizer que não faria isso. — Sorriu amargamente e viu ela franzir a sobrancelha por um momento.
— As coisas se complicaram. — Não parou os golpes, mesmo abalada por aquelas palavras.
— Por causa do beijo, eu sei. E nós precisamos conversar. — Segurou o saco de areia e bufou.
— Não, não precisamos. — Ela foi até sua garrafa de água, ainda evitando contato visual.
— Eu só preciso de dois minutos. — Aproximou-se, massageando a nuca. — Eu quis te dar espaço, mas agora precisamos conversar.
Ela se virou, finalmente o encarando e se arrependeu disso.
— Eu quero te entender. Isso parece certo para mim. — Apontou para si e depois para ela. — Eu só quero saber por que é tão errado para você. — Mordeu o lábio, esperando uma resposta, mas ela apenas esfregou a testa e suspirou. — Talvez seja por eu estar tão ferrado por tudo que aconteceu.
... não tem nada a ver com isso.
— Ou talvez você ache que você é tão ferrada, que não merece ser feliz.
— Para. Não fica tentando me analisar. Você não... — afastou-se e recolheu a garrafa e a toalha, mas foi interrompida.
— Eu gosto de você e nós...
— Não gosta. Você só está confuso. Com tudo que aconteceu e eu estava do seu lado, mas isso não significa que você goste de mim. — Ela ajeitou as faixas em suas mãos. Queria fugir dali.
— Você sempre esteve do meu lado. Bom, não nas últimas semanas. — Suspirou e deu um sorriso fraco. — Eu não vou ser um babaca te pressionando e exigindo qualquer coisa de você. Você me conhece. Eu não sou um cretino. Eu só preciso que você me escute. Tem algumas coisas que eu preciso te falar e você pode, por favor, só me escutar?! — Suplicou, encarando-a, e ela balançou a cabeça assentindo. — Quando eu estava naquela fábrica, minha maior preocupação era você. — Deu dois passos na direção de . — Eu ficava pensando se eles tinham conseguido te capturar, se estava bem e segura. Eu estava preocupado com os outros também. Me importo com eles. Mas... pensar em qualquer coisa acontecendo com você, sempre foi mais doloroso e eu achei que era só por sermos tão próximos e bons amigos, mas é maior que isso. Eu gosto de você e acho que eu já sinto isso há algum tempo.
meneou a cabeça e deu alguns passos para trás, esbarrando em um aparelho.
— E eu acho que você também sente algo por mim e devia refletir sobre isso. — Ele novamente se aproximou. — Mas se não, tudo bem. Está tudo bem se você não sente nada. Você não me deve nada. Não precisa se afastar ou fugir. Nós somos bons juntos, como amigos, parceiros no trabalho e eu preciso de você. Só... pare de fugir. — Completou e então segurou a mão dela por um instante e se afastou.
ficou parada com um olhar perdido e suspirou ao ouvir o barulho da porta. Ajeitou as faixas e voltou a golpear o saco de areia, enquanto tentava administrar tudo que havia falado.
Após alguns minutos, viu Selina se aproximar.
— Você está bem? — Questionou, preocupada.
— Ótima. — Parou a atividade e passou a encarar Selina.
— Conversei com a Agnes mais cedo. Vamos semana que vem.
— Dividiu os dois laboratórios entre os grupos de combate?
— Não. Vamos vasculhar ambos. Ela disse que tem tarefas distintas para os outros.
vai com a gente? — perguntou após alguns segundos de silêncio.
— Sim.
— Acha que ele está pronto?
— Pelo que vi, sim. Não concorda?
— Confio no seu julgamento. — falou, tentando parecer convicta daquela decisão. Não queria que fosse. Mas não queria soar superprotetora ou pior: apaixonada.
— Ok. Vou deixar você treinar.
Assim que Selina se afastou, chutou o saco de areia com força, desejando que as coisas fossem mais fáceis. Queria poder voltar no tempo e evitar a aproximação com . Queria que as coisas não tivessem mudado. Não possuía tal habilidade, tudo que podia fazer agora era tentar conter qualquer dano causado pelo beijo.

•••

Finalmente chegou o dia de voltar à ativa. Estavam no caminhão, indo em direção ao centro de pesquisa indicado por Sharpe.
Tomado pela ansiedade, já tinha limpado, desmontado e remontado suas armas diversas vezes. Penny fez algumas tentativas de iniciar uma conversa, mas permanecia um silêncio constrangedor no baú, então voltou sua atenção a um comunicador que precisava de reparos. estava sentada do lado oposto ao de e o observava, enquanto ele estava distraído com as armas. Notou alguns machucados em suas mãos e braços. Estava tão preocupada em manter distância, que até aquele momento não havia notado aquelas marcas já em processo de cicatrização. Ele ainda lutava contra os traumas e tentava lidar com gatilhos que podiam ativar memórias e alucinações. se sentiu inundada pela culpa, um fardo já bastante familiar. Sentia-se envergonhada pela covardia que a mantinha afastada, enquanto ele lidava com tanta coisa sozinho.
Após alguns momentos de reflexão e depois hesitação, ela se levantou e foi até ele. Sentou ao lado de silenciosamente e começou a limpar as próprias armas. Ele parou de desmontar a pistola e a encarou por alguns segundos. Sorriu antes de continuar sua atividade. Não precisava de um pedido de desculpas e nem nada do tipo. Só precisava daquilo. Ter a certeza de que ela estaria ali ao seu lado.
Já no centro de pesquisa, dividiram-se em dois grupos para vasculhar os três andares. Encontraram salas de arquivos reviradas e laboratórios de botânica e biologia molecular há muito saqueados. Vários equipamentos estavam destruídos e o chão coberto por cacos de vidro e todo tipo de entulho. Uma única sala ainda estava em bom estado, mas continha apenas algumas espécies de plantas imersas em tonéis de líquido viscoso.
permaneceu todo o tempo atenta aos movimentos de , temendo que algo pudesse desencadear alguma reação negativa nele. Após horas examinando o local, aquela parecia ser uma viagem perdida, mas, enquanto vasculhava o sistema, Penny conseguiu a localização de outros centros ligados ao grupo Minerva.

•••

Nos dias que se seguiram, invadiram outros dois centros em locais muito afastados do primeiro. Um possuía laboratórios de microbiologia e o outro laboratórios de química e físico-química. Ambos também já haviam sido saqueados e estavam parcialmente destruídos. Dias depois, alcançaram o quarto centro que estava em um local de difícil acesso e tinha sua fachada deteriorada pelo tempo. Novamente fizeram uma inspeção minuciosa nos três andares, sendo que um andar era administrativo e os outros dois dedicados a biofabricação de tecidos e órgãos. Salas que antes guardavam órgãos sintéticos, agora estavam completamente vazias.
Apesar desse centro estar em uma situação de descaso e degradação parecida com os outros, Penny sentia que havia algo errado. Enquanto vasculhava o sistema, notou que as configurações de segurança eram muito mais reforçadas do que as dos outros prédios. Descobriu que os elevadores possuíam um sistema de segurança independente e aquilo a intrigou. Levou alguns minutos de análise até que descobrisse que um dos elevadores era de alta velocidade. Não havia sentido em ter um elevador de alta velocidade em um edifício com tão poucos andares, o que significava que havia muitos andares no subterrâneo.
Todo o grupo entrou no elevador e Penny destravou os modos de segurança, garantindo acesso à vinte andares subterrâneos. Descobriram diversos andares focados unicamente em engenharia genética. Todos inteiros e quase impecáveis, não fosse pela poeira acumulada nos aparelhos. Muitos laboratórios branquíssimos e bem equipados para a manipulação genética. Salas com aparelhos robóticos desconhecidos por eles. E parecia que a cada nível que desciam, as coisas ficavam mais estranhas.
Uma sala gigantesca com uma esfera prateada enorme ligada por diversos tubos no centro e que parecia emanar uma energia fortíssima. Outra com uma espécie de reator em formato hexagonal, que ocupava uma parede inteira e brilhava oscilando entre um tom ora esverdeado, ora azulado.
No décimo sétimo andar, diversas salas com um tipo de gaiola de vidro no centro, com pequenas turbinas na parede, que apesar de desativadas, emitiam um zunido constante e fantasmagórico. O décimo oitavo tinha um triangulo com vários cabos, cada um se ligando a uma sala e cada sala recheada de esferas de vidro com animais anômalos flutuando em um liquido fluorescente.
No décimo nono, diversos tubos intercalados a tanques de água cercados por grossas grades e aparentemente vazios. Cada nível revelava surpresas e o grupo buscava recolher o que aparentava ser útil e registrar informações sobre tudo o que viam.
Apesar do enorme número de anomalias encontrados, nada poderia prepará-los para o que havia no vigésimo nível. Quando saíram do elevador, depararam-se com uma sala espaçosa. Uma interface cobria o lado esquerdo e outra o lado direito, e na extremidade da sala estava uma pequena caixa com uma luz vermelha ligada a diversos cabos que iam até o teto. Atrás da caixa, uma porta larga que brilhava conforme a luz da caixa piscava.
Atravessaram a sala assim que Penny se certificou que tal ação era segura, desviaram da caixa e atravessaram a porta.
Na sala seguinte, diversos pequenos tubos com substâncias desconhecidas do lado direito e do lado esquerdo havia alguns computadores, mas não prestaram atenção em nada disso. Outra coisa chamava a atenção do grupo: do outro lado da sala, entre diversos braços robóticos, estava um tubo que ia do chão ao teto e dentro dele um homem flutuando em um líquido transparente ligado a diversos fios.
Enquanto observava o homem dentro do tubo, sentiu o coração acelerar. Deu pequenos passos na direção do tubo e sentiu a respiração mais pesada a cada passo. Quando estava perto o suficiente, estendeu a mão direita e a ergueu, quase tocando o tubo, sentindo a mente girar diante da certeza de que conhecia o homem de cabelos pretos na sua frente.



Capítulo VII.
I'm busy erasing voices of the dead.

— Não pode ser ele. — Selina começou, atordoada. — Isso é impossível. — Observou que todos à sua volta carregavam expressões de descrença.
Bom, quase todos.
— Vocês o conhecem? — Penny questionou, aproximando-se do tubo e analisando atentamente o homem que parecia não ter mais que trinta anos. — É bonito.
— Não reconhece? — Dax estava surpreso por Penny não reconhecer o rosto do herói da revolução, que havia derrubado o antigo regime. — Temos um monumento o homenageando na casamata.
A expressão confusa de Penny se converteu em espanto.
— Esse é Charles Kane? — Perguntou, agitada, sentindo sua mente ser preenchida por dúvidas e confusão. — Não faz sentido. Ele deveria estar mais velho.
— Devia estar morto. — murmurou amargamente e ao desviar o olhar do homem no tubo, notou o encarando preocupada.
— Se Charles Kane está morto, então o que é isso? — Penny caminhava em volta do tubo, tentando entender a situação.
O homem não estava morto. Na verdade, ele estava em animação suspensa. Do lado direito uma interface registrava seus sinais vitais.
— Forças obscuras criaram um clone? — Questionou, enquanto analisava os controles nos painéis atrás do tubo.
— Não é possível criar clones humanos. Todas as tentativas falharam. — Selina também se aproximou do tubo, maravilhada.
— Mais da metade do que vimos hoje nós achávamos impossível. — Disse Dax, sentindo calafrios ao lembrar de todas as coisas estranhas que haviam presenciado nos diversos níveis.
— E se ele nunca morreu? E se nós só achamos que ele morreu? — Penny expôs a ideia que não lhe parecia tão absurda.
— Ele está morto há dezesseis anos, Penny. Eu tenho certeza. — ainda estava atônito, encarando o homem.
A sala parecia cada vez mais fria, mas não era isso que lhe gerava um frio na espinha e o tremor nas mãos.
— E mesmo se ele estivesse vivo, devia estar mais velho. — Selina concluiu, observando cada detalhe de cada instrumento presente na sala.
— O que é menos improvável: ele ser um clone ou nunca ter morrido? — Penny passou a mexer nos controles, buscando mais informações.
— Talvez é só alguém parecido com o Charles.
— Um filho, talvez? — Dax sugeriu.
— Todo esse complexo é muito sinistro para esse homem ser só alguém parecido com ele. — Penny afirmou, tocando o tubo.
Após alguns segundos de silêncio, continuou:
— Mas, então, o que vamos fazer? Não podemos deixar ele aqui.
— Por que não? — parecia ter sido tirado de um transe. Logo sua voz adquiriu um tom nervoso. — Até onde sabemos, isso pode ser uma armadilha.
— Esse lugar está abandonado há anos. — Penny argumentou e viu a agitação de aumentar.
Ele suspirou antes de responder.
— Só pode ser uma armadilha. Ele está morto. Devia estar morto. — passou as mãos pelos cabelos, perturbado.
ouvia a conversa ainda encarando o homem no tubo. Queria entender o que estava acontecendo. Também queria ir até e então acalmá-lo, sentia como ele estava alterado através de seu tom de voz, mas não ia fazer isso. Não podia correr até ele e tocá-lo, não podia confundir ainda mais as coisas. Sabia o que Charles Kane significava para , mesmo assim se segurava.
— Nós vamos tirar ele daqui. — Selina ordenou e fez um sinal para que Penny fosse até os painéis novamente.
— Se fizer isso, vai acabar matando todos nós. — rosnou, já sentindo a raiva tomando seu ser.
... — Selina começou, mas foi interrompida.
— Esse não é o Charles. — Ele gritou, recebendo olhares surpresos. — Eu estava lá quando ele morreu. Eu vi ele me encarando ensanguentado e cheio de ferimentos de bala. E aí... eu vi minha mãe se jogando em cima dele numa tentativa inútil de estancar o sangramento. Eu o vi agonizando, se engasgando no próprio sangue... — sua voz estava trêmula, raivosa e a respiração rápida. O rosto vermelho com veias saltadas.
— Eu sei, eu sei... — correu até ele. Aproximou-se com os punhos fechados. Não queria tocá-lo. — E eu sei o quanto isso te afeta. Mas esse sendo o Charles ou não, nós precisamos investigar. Nós precisamos saber por que ele está aqui, escondido em um andar subterrâneo. Levar ele, analisá-lo e interrogá-lo é a decisão certa. — Argumentou, enquanto o observava tentando acalmar a respiração. — Eu preciso que confie em mim dessa vez.
— Eu sempre confio, mas dessa vez não posso. Mas claramente também não posso impedir isso. Todos parecem concordar. — Observou os rostos atentos à sua volta.
Afastou-se de e foi para perto da porta. Assim que a atenção de todos se voltou novamente para o tubo, pegou a arma que estava em sua cintura e começou a passar o indicador lentamente pelo gatilho. Não hesitaria em fazer o necessário para manter todos a salvo.
— Ele vai acordar assim que o tirarmos daí? — Selina perguntou para Penny, que estava concentrada, mexendo nos controles.
— Não. Ele está hibernando. Pode levar horas ou até dias para acordar.
Após alguns minutos analisando as informações armazenadas nos painéis e de se certificar que faria tudo corretamente para não matar o homem enquanto tentava libertá-lo, Penny acionou os controles. O nível da água começou a abaixar, conforme o vidro abaixava lentamente. Selina e Dax se posicionaram para retirar o homem de sua prisão de vidro. Seguraram ele e retiraram os fios espalhados por seu tórax. Quando o último fio foi retirado, um zunido foi ouvido. Logo uma luz vermelha começou a piscar e a temperatura abaixou rapidamente. O local havia entrado em modo de segurança. Dax jogou o homem nas costas e todos pretendiam deixar o local rapidamente.
Um urro de dor chamou a atenção do grupo. Todos voltaram sua atenção para , que caiu de joelhos.
! — correu até ele e se jogou de joelhos na sua frente. — Você está bem? — Tocou seu rosto e tateou seu tronco, procurando ferimentos.
Ele levou as mãos até a cabeça, enquanto grunhia e sussurrava coisas ininteligíveis, o que aumentou a preocupação dela. tentava chamar a atenção dele, que parecia estar em transe. Ela ouviu as reclamações de Dax sobre a necessidade de sair dali, mas não prestou atenção em nada que disse depois disso.
, por favor. Nós precisamos ir. — Puxou o rosto dele, mas seu olhar estava perdido. Era como se ele não estivesse ali. Mais uma vez ele sentia como se ainda estivesse em cativeiro.
Quando o zunido começou e a luz vermelha passou a piscar, ele sentiu um impacto em sua cabeça e ficou atordoado como se tivesse sido golpeado. A dor aguda o jogou no chão e então foi tomado por um medo feroz e desolador. Sentia a dor de ser repetidamente golpeado em várias partes do corpo. Cada local em que sentia um golpe, parecia queimar e em alguns pontos parecia que a pele se abria. O reflexo da luz vermelha era visto por como se fosse seu sangue se esvaindo e se espalhando pelo chão. Travou o maxilar com tanta força, que dores agudas também tomaram o local. Não notava a presença de o chamando desesperadamente, pois as vozes de seus torturadores eram uma presença constante, como fantasmas o assombrando.
! — Ela gritou, puxando novamente o rosto dele. Dessa vez o segurou encostando as testas e depois os narizes em uma tentativa de fazê-lo encará-la. — Eu estou aqui. Você não está sozinho. Você está bem, está aqui comigo. — Pressionava a testa a dele, sentindo a agonia a sufocando. — Por favor. — Implorou em um sussurro. Sentia-se impotente não conseguindo libertá-lo do pesadelo que estava vivenciando.
Diante do insucesso de suas tentativas, puxou novamente o rosto de e o beijou. Após alguns segundos, ele se afastou.
. — Encarou a mulher, sentindo-se aliviado ao perceber que os golpes não eram reais.
— Precisamos sair daqui. — Ela o ajudou a se levantar e ele se apoiou nela, sentindo-se tonto e fraco.
Foram juntos até o elevador. Ele, com um caminhar lento pois não tinha total controle das pernas e ela o suportando, sendo forte pelos dois.

Com a ajuda de Penny, Dax colocou o homem desacordado no baú. e entraram logo depois, o segundo ainda com certa dificuldade motora. Dax desceu, fechou a porta do baú e foi até o banco do carona para que finalmente Selina os guiasse para longe daquele local insólito.
No baú, todas as atenções estavam voltadas para o homem idêntico a Charles Kane. Penny se afastou do homem inquieta, não estava acostumada a ficar no escuro. Os mistérios que envolviam o homem pareciam corroer seu interior. Precisava saber a verdade por trás daquela situação.
Perdida entre um emaranhado de suposições desconexas, ela se assustou ao encarar .
— Abaixa a arma! — Ordenou, aflita.
se virou, deparando-se com apontando uma pistola para o homem desacordado.
— Me entregue a arma. — se aproximou lentamente dele, que ainda fraco, apoiava-se a parede metálica.
— Eu preciso proteger vocês.
— Não queremos um tiro acidental. Acha que no seu estado é seguro estar com uma arma?
Ele engoliu seco e abaixou a arma após alguns segundos de hesitação.
— Se ele acordar e tentar algo, eu vou cuidar dele, ok?
assentiu, enquanto entregava a arma.

As horas até a casamata pareceram ainda mais longas preenchidas pela apreensão de cada um dos integrantes do grupo de combate. O trajeto foi especialmente angustiante para e . Ele, completamente atormentado pela presença de um fantasma do passado, e ela, preocupada com e perturbada com a possibilidade de que uma alucinação pudesse levá-lo a tentar algo de que iria se arrepender.
Assim que chegaram à casamata, Selina ordenou que e Penny descarregassem o caminhão e catalogassem tudo que haviam trazido. Enquanto isso, Selina e Dax levariam o homem até uma cela especial. Depois Dax levaria até a enfermaria e em seguida relataria para Agnes tudo sobre a missão.
Enquanto descarregava o caminhão, Penny apenas a observava. Após algum tempo, a mais nova sentou em uma caixa encarando o nada com a sobrancelha franzida.
!
A mulher apenas resmungou em resposta. Estava ignorando o fato de Penny não estar trabalhando, porque não queria conversar. Queria apenas terminar a tarefa para ir checar .
— Por que o ficou tão perturbado com o Charles?
— Não sabemos se é realmente o Charles. — Analisava o conteúdo de uma caixa sem prestar muita atenção na agitação de Penny.
— Clone, filho, sósia, sei lá. O que quero saber, é por que ele afeta o ?! — Questionou, roendo a unha do polegar.
— Eu moro aqui há uns dois anos e já sei a história. Por onde andou todo esse tempo?
— Muito ocupada no meio de máquinas para me importar com a vida alheia. — Rebateu ácida e riu. — Mas me conta o que sabe. — Exigiu, ansiosa.
— Não. Aparentemente você não gosta de fofocas. — Provocou, entrando no baú para buscar outra caixa.
— Quer que eu implore? — Penny seguiu e fez uma careta quando ela lhe entregou uma caixa pesada. — Eu vou implorar.
— Não precisa. — sentou em uma caixa e logo Penny repetiu o gesto. — Há vinte e dois anos, a Agnes e Leon, o marido dela, se envolveram com a resistência. Eles se uniram a uma guerrilha decididos a lutar contra o antigo regime. Lá eles conheceram o Charles e trabalharam juntos para desestabilizar o governo.
Penny escutava atentamente, enquanto tamborilava os dedos na caixa metálica.
— Pouco tempo depois, a Agnes se apaixonou pelo Charles...
Os olhos de Penny se arregalaram e ela apertou as extremidades da caixa.
— O quê? Como assim? É sério isso?
— É. E todo mundo da casamata sabe.
— Eu não acredito que a Agnes e o Charles... — Penny começou a gesticular exageradamente, atropelando as palavras. — Espera, rolou algo ou só ficou no plano platônico?
— Eles se envolveram enquanto ela ainda estava casada e... — foi interrompida por um grito de Penny.
— Nossa! Ela sempre pareceu tão séria. E o que aconteceu?
— Leon descobriu e... — começou, mas não conseguiu terminar a sentença. Suspirou, sentindo novamente toda a dor que sentira quando lhe contara aquela história.
— Ele com certeza não lidou bem com isso. — Voltou a roer as unhas ansiosa.
— Ele a denunciou. — Sua voz era quase um sussurro. Carregada de dor e rancor. — Ajudou o governo a prendê-la e ela foi parar nas mãos do meu pai. — Sentiu os olhos arderem e encarou o chão. Não se assustou com a reação explosiva de Penny. Havia reagido da mesma forma.
— Como ele pôde fazer isso? — Berrou, indignada, seu interior era uma mistura de ódio e incredulidade. — Todo sofrimento que ela passou foi culpa dele. Ele não pensou nela e nem no . O era só uma criança na época. Eu o odeio. Eu não o conheço, mas já odeio. E aquele desgraçado fez isso pelo quê? Ego ferido? Como alguém pode ser tão horrível assim?
— Meu pai é um torturador. Me pergunto isso todos os dias. — Encarou Penny com um olhar triste e viu que os olhos dela estavam marejados.
— Eu sinto tanto pela Agnes, pelo , por você... — levantou-se e sentou ao lado de , inclinando a cabeça sobre o ombro dela. — Mas se o Leon é o culpado, por que o odeia o Charles? — Questionou após alguns segundos de silêncio.
— Acho que ele associa o Charles ao sofrimento da mãe.
— Ele deve ter sofrido tanto com tudo isso. E agora o Charles está de volta. — Bufou, encarando o nada. — Como será que a Agnes vai receber a notícia?
— Eu não sei. Ela o amava e viu ele ser brutalmente assassinado. Como lidar com algo assim?

A movimentação na área de confinamento era o oposto da discrição exigida por Selina. Ninguém podia saber da presença de alguém idêntico a Charles Kane na casamata. Ele seria considerado uma espécie de "messias ressurreto" e isso causaria balbúrdia e complicações. Selina já havia explicado isso para todos presentes ali, mas Agnes parecia não estar utilizando a razão no momento. Exigia que sua entrada fosse permitida, aumentando cada vez mais o tom de voz. Ela havia entrado na cela minutos antes, mas agora Selina barrava sua entrada. O motivo era que o homem estava sendo examinado por Ivy, enquanto Dax os vigiava.
Selina e tentavam convencer Agnes a esperar, mas esta parecia irredutível, bradando aos quatro ventos sobre seu direito de estar ali. Além de ser a líder do local, estava diante do homem que acreditava ter morrido há dezesseis anos. O homem que amou com todas as suas forças e que continuava amando mesmo após tantos anos. Acreditava que tinha todo o direito de estar lá dentro. Queria ser a primeira pessoa que ele visse, quando acordasse. Mas apesar de sua insistência, Selina não mudou de ideia.
Selina já estava estressada com toda a situação e a cada minuto ficava mais impaciente com a mulher histérica na sua frente. Momentos antes teve que tirar Agnes da cela, porque ela não conseguia se conter. Nos poucos minutos em que viu Agnes ao lado do homem, presenciou um lado completamente desconhecido dela. Entendia seu desespero, mas nem sabiam se aquele era realmente Charles. Além disso, Selina estava preocupada com . Ele havia passado apenas dez minutos na enfermaria e depois correra até a área de confinamento preocupado com o bem-estar de sua mãe. E claramente ele tinha todas as razões para estar, porque no momento Agnes ameaçava Selina.

Após quase duas horas descarregando o caminhão e catalogando tudo, e Penny caminharam apressadas até a área de confinamento. Assim que alcançaram aquele andar, ficaram incomodadas com a iluminação bruxuleante e o ar gelado daquela área da casamata. Passar pela cela de Jordan Martinez aumentou o desconforto de . Lembrou da fatídica noite em que ele tentara atacar . Ela havia cumprido a promessa que fez a Agnes. Não contou para sobre o ocorrido. Aquele era mais um segredo que ela guardava dele com a intenção de protegê-lo. Mais uma omissão que lhe corroía por dentro.
Ao chegarem no setor mais bem protegido daquele andar, depararam-se com Agnes sentada em uma cadeira de plástico com as mãos algemadas. Antes que Penny pudesse perguntar o que havia acontecido, Selina se aproximou com uma expressão nada amigável.
— As coisas estão mais agitadas do que eu esperava.
— Dá para perceber. — Penny comentou, observando Agnes, que respirava rapidamente e apertava os joelhos com força. — Ela não parece bem.
— Cadê o ? — perguntou, preocupada.
— Ele acabou de sair daqui. Disse que precisava tomar um ar. Foi naquela direção. — Apontou para o corredor do lado esquerdo e viu se afastar.
encontrou sentado no chão no fim de um corredor mal iluminado. Sentou ao lado dele em silêncio, pois não sabia o que dizer. As coisas estavam mais confusas do que nunca.
— Eu achei que as coisas não podiam ficar mais ferradas. E aí um fantasma ressurge. — Ele murmurou após um longo silêncio.
— Eu sei. Eu odeio isso. E nós estamos no escuro. Em momentos assim queria ter um superpoder para descobrir tudo. O que acha de telepatia? — Questionou divertida e viu ele sorrir. — Como você está? — Passou a mão pelos cabelos dele.
— Preocupado com a minha mãe.
— Vamos cuidar dela.
— Eu estou com medo, . — Confessou, angustiado, finalmente a encarando. — Por ela, por todos nós.
— Nós vamos lidar com isso. Juntos. — Passou a acariciar seu rosto.
Naquele momento, não permitiu que dúvidas e preocupações preenchessem sua mente. Sabia que ele precisava dela.
— Obrigado. — Sussurrou, aproximando-se lentamente, seu olhar intercalando entre os olhos e a boca dela.
Ela então o puxou para um abraço apertado. Queria tirar todo o peso da angústia que ele carregava.

Voltaram para a companhia dos outros após alguns minutos. Agnes ainda estava na mesma posição, mas agora tinha ao seu lado tentando acalmá-la. A porta da cela rangeu e Ivy foi recebida por olhares ansiosos.
— Ele acordou.
Assim que a sentença foi ouvida, Agnes pulou da cadeira e estendeu os braços para que Selina pudesse abrir as algemas. A contragosto, Selina obedeceu. Agnes e Selina entraram no quarto e decidiu segui-las, mas antes que alcançasse a porta, sentiu segurando seu braço.
— Fica. — Pediu em um sussurro.
— Eu preciso protegê-la.
— Dax e Selina estão lá. Vão cuidar dela.
— É meu dever protegê-la. — Ele afirmou, ainda sem se mover.
— E o meu é proteger você. — deu um pequeno sorriso e logo sentiu a mão de deslizar por seu braço até alcançar a sua.



Capítulo VIII.
But every day I found new ways to hurt you.

Penny correu até a sala, atrapalhando-se na tarefa de abotoar o macacão. Estava atrasada para o trabalho, coisa que não costumava acontecer. Os acontecimentos do dia anterior haviam conseguido tirar seu sono.
Tomou café rapidamente, queimando a língua no processo. Calçou as botas e ao abrir a porta da cabine, deu de cara com que estampava profundas olheiras. Puxou a amiga para dentro e a sentou no sofá.
— Passou a noite com o ?
— Por que está falando engraçado?
— Queimei a língua. — Fez uma careta. — Passou a noite com o ?
— É, dormimos naquelas cadeiras desconfortáveis esperando a Agnes. — Estalou o pescoço e se recostou no sofá. Estava exausta. — Ele não quis sair de lá sem ela.
— Ela passou a madrugada inteira lá? — Sentou ao lado da amiga, não mais se preocupando com seu atraso.
— Sim, só saiu porque a Selina a obrigou. — Fechou os olhos e massageou as têmporas, sentindo os efeitos da noite mal dormida.
— Não dá nem para imaginar o que ela está sentindo. — Comentou, tristemente. — Ela o amava e achou que ele estava morto por tanto tempo. E agora ele está aqui.
— Ainda não sabemos se é mesmo o Charles.
— Para Agnes é o Charles sim. Porque é isso que ela quer. Ele vivo e do lado dela. É a mesma coisa com navegadores e sereias. — Afirmou, gesticulando aflita e a encarou confusa. — Eles tinham tanta certeza que sereias existiam, que eles realmente as viam.
— Achavam que viam. Qualquer golfinho acabava se tornando sereia na visão deles.
— Mas isso não é impossível.
— Golfinhos virarem sereias? — Franziu a testa, confusa pelo cansaço, e Penny riu.
— Não. Charles estar vivo. — Explicou entre risadas.
— Ele foi morto em um atentado. Fuzilado. Um corpo velado com vários furos a bala.
— Talvez tenha mais nessa história. Devíamos exumar o suposto corpo. — A mais nova estava convicta de que havia alguma trama sinistra por trás da situação.
— Não. Selina até pensou nessa possibilidade. Mas Agnes falou que ele foi cremado.
Penny bufou, insatisfeita, mas logo voltou a cogitar novas teorias.
— Podem ter trocado o corpo antes da cremação. — Sugeriu com os olhos arregalados.
— Se ele fosse verdadeiramente o Charles, deveria pelo menos ter as cicatrizes dos tiros. — rebateu, pensativa. — E também deveria estar mais velho. Ele aparenta ter uns trinta, mas devia ter a idade da Agnes.
— Talvez o tratamento que fizeram pra manter ele vivo também retirou as cicatrizes e o manteve jovem. — Insistiu em sua teoria de uma conspiração. — Ele não tem nenhuma marca ou sinal que a Agnes possa reconhecer?
— Não.
— E a Selina já o interrogou? — Questionou e viu assentir.
— Ela falou que ele não se lembra de nada. E que parecia genuinamente assustado.
— Então... ele pode ser o Charles com amnésia. — Sugeriu, absorta em meio as suas hipóteses.
— Ou é um clone que não se lembra de nada, porque não tem memória nenhuma. Nasceu e viveu naquele laboratório até nós o libertamos.
— Tem algum teste que a gente possa fazer?
— Ivy já fez alguns exames e já está no laboratório fazendo testes buscando alguma anomalia no DNA dele. Mas, é possível que não apareça nada nos exames e continuemos na dúvida.
— Talvez a Agnes consiga fazer ele se lembrar de algo.
— Ela está acreditando nisso. — Fechou os olhos por um instante. A esperança inabalável de Agnes a perturbava. A pena que sentia lhe causava estranheza. Aquela mulher forte não deveria ser digna de pena.
— E dá pra culpá-la? Eu nunca me apaixonei, então eu não tenho nem noção do que ela está sentindo agora. Mas tenho certeza que é algo avassalador e... — parou de prestar atenção em Penny e se perdeu em devaneios.
Imaginou se fosse ela no lugar de Agnes naquele cenário. Imaginou como seria assistir morrer violentamente e então passar anos lidando com a dor e o luto. E aí reencontrá-lo anos depois. Sabia que estaria como Agnes.
Repreendeu-se pelos devaneios e percebeu que Penny a encarava.
— O quê?
— Eu perguntei como o está.
— Péssimo. Está muito preocupado com a Agnes e com medo dessa situação. E talvez ele tenha razão. Talvez o nosso “hóspede” seja só uma armadilha deixada lá para nós acharmos e fomos estúpidos o suficiente para cair. — passou a encarar o teto.
— Ou talvez ele seja alguém que estava preso e nós o ajudamos. Charles, possivelmente.
— Eu queria ter o poder de tirar toda a aflição que ele está sentindo. — Confessou após alguns segundos de silêncio.
Penny percebeu imediatamente que ela falava de e suspirou.
— Você já faz muito. É a âncora dele.
— O quê? — Encarou a amiga com as sobrancelhas franzidas.
— Você é o que o mantém são.
— Não. Eu não sou isso. Eu só... não posso. — Levantou-se, agitada. — Eu vou tomar um banho. E você tem que ir. Já está atrasada.
— É... eu tenho que correr. — Foi até a porta, mas antes de abri-la, virou-se novamente para . — Quando é meu turno vigiando nosso "hóspede"?
— Selina e Dax estão revezando a vigia. Ela falou que se for precisar da gente avisa.
— Ok. Bom descanso.
— Até mais tarde.

•••

Uma semana após a chegada do homem misterioso, o grupo ainda não havia tido nenhum avanço em descobrir sua verdadeira identidade. Apesar dos esforços de Agnes, ele parecia não se lembrar dela, nem de qualquer outra coisa. Os interrogatórios feitos por Selina também estavam sendo infrutíferos.
Selina revezava a vigia com Dax e com Mitchell, um oficial de segurança designado pelo chefe Graham. Graham estava extremamente temeroso com as possíveis intenções do "hóspede" e então decidiu colocar alguém de sua confiança para vigiar o sujeito. continuava muito preocupado com a mãe e tinha se preocupando com ele o tempo todo.
Apesar de seu cérebro ordenar que se afastasse de , mantinha a proximidade. Não podia abandoná-lo nesse momento. Não podia fazer isso novamente. Mas o acompanhava com reservas. Não queria que ele confundisse as coisas. Evitava contato físico e se esquivava delicadamente de suas tentativas de tocá-la. Ele não cobrava nada dela, pois temia que isso a afastasse.
Agnes resolveu autorizar que o filho voltasse ao trabalho, ansiando que isso o ajudasse a se distrair. Estava aflita e focada em Charles, e precisava que ficasse bem. Mas trabalhar no setor de energia só estava servindo para irritá-lo ainda mais. Marion, a supervisora do setor, encarava-o com desconfiança e vigiava seus passos. Somente após uma semana de trabalho é que ela relaxou um pouco e voltou sua atenção aos seus próprios afazeres. finalmente poderia trabalhar em paz, mas ficar focado em trabalho não era exatamente o que estava em seus planos.
Quando chegou no setor de energia naquela tarde, imediatamente foi procurar , mas não o encontrou em seu posto. Procurou por ele nas diversas salas e acabou o encontrando escondido entre turbinas desativadas. Ele tinha a companhia de uma garrafa cheia em suas mãos e várias vazias espalhadas pelo chão.
— Você devia estar trabalhando. Não bebendo escondido. — Resmungou e ele deu um sorriso amarelo. — Está parecendo um adolescente irresponsável.
— E você está parecendo a minha mãe. — Rebateu com a fala já arrastada.
— Ivy não te quer bebendo.
— Ela não manda em mim. — Fez uma careta, balançando a cabeça negativamente. — E eu preciso relaxar. — Argumentou, massageando a nuca.
— E isso está ajudando? — Questionou, sentando ao lado dele, após tirar uma garrafa do caminho.
— Muito.
Ela então pegou a garrafa da mão dele e bebeu um gole.
— De onde pegou isso? — Indagou, devolvendo a garrafa.
— Da sala da Marion. — Confessou despreocupado, após um gole e viu arregalar os olhos.
— Você roubou a sua supervisora. Está maluco? — Elevou um pouco o tom de voz e ele fez sinal para que ela falasse mais baixo.
— Ela mereceu. Primeiro: ela é má, segundo: é uma péssima supervisora, terceiro: me trata como um bebê, quarto:... — começou a enumerar nos dedos, mas logo se perdeu. — Eu esqueci o quarto, mas eu tinha uns sete motivos para fazer isso.
— Ela te trata como bebê e você rouba dela? Você realmente fez a coisa mais madura possível. — Afirmou sarcástica, após beber mais um gole.
— Roubei uns charutos também. — Murmurou lentamente entre risos.
— Você não fuma.
— Mas a Selina sim. E preciso adular ela para garantir que ela não vai me expulsar do grupo de combate.
— Marion vai te matar. E eu vou rir.
— Ela não vai saber, porque você não vai contar. É minha cúmplice. Até bebeu junto. Se eu cair, te levo junto. — Sussurrou, gesticulando dramaticamente e ela riu.
— Você é terrível. — Empurrou levemente a testa dele.
— Esse é meu nome das ruas: , o T-E-R-R-R-I-V-I-L.
riu diante dos erros de soletração, mas principalmente do modo como ele falava.
— Você já bebeu demais. — Tomou a garrafa da mão dele e viu ele sorrir. Logo o sorriso sumiu e ele passou a encará-la intensamente, o que gerou certo desconforto. — O que foi?
— Você é uma pessoa incrível. — Acariciou o rosto dela e contornou a fina cicatriz em sua bochecha. — E é por isso que eu estou completamente louco por você. — Ele começou a se aproximar. — É o ser humano mais maravilhoso que eu conheço. E isso é uma grande coisa, porque eu conheço vários seres humanos. — Aproximou-se mais, estampando um sorriso de lado encarando a boca dela.
— Você está bêbado. — Acusou, afastando-o.
— Por que você faz isso? Eu sei como se sente e mesmo assim me afasta. Do que tem medo? — Apertou os lábios, confuso.
— Eu não tenho medo de nada. Eu só não quero isso. É tão difícil assim de entender? Você falou que não ia ser um babaca e nem ia me pressionar. Pode, por favor, cumprir com a sua palavra? — Ela falava rápido e aflita querendo fugir dali.
— Me desculpe. — Ficou subitamente sóbrio. — Eu não quis...
— Está tudo bem. Você só precisa parar de achar que existe algo.
— Por que se importa tanto comigo? — Questionou após algum tempo de reflexão. — É diferente da Penny ou Selina.
— Você é meu amigo e eu sinto que preciso te ajudar e cuidar de você. É isso. — Levantou-se juntando algumas garrafas. — Vai para casa. Consegue se levantar? — Questionou e ele assentiu. — Eu vou trabalhar, nos falamos depois.

Fugindo de mais uma noite rolando na cama sem conseguir dormir, foi até o centro de treinamento. Assim que tocou a porta de metal, ouviu seu nome. Virou-se, avistando Selina caminhando rapidamente em sua direção.
— Sabia que estaria aqui. — Afirmou, ofegante. Havia ido até a cabine de e quando Penny avisou que ela não estava, correu até o centro de treinamento. — Preciso da sua ajuda.
— O que aconteceu? — questionou, preocupada.
— Vamos conversar aqui dentro. — Empurrou a porta e caminhou até o ringue, sentando-se ali.
se aproximou, analisando a mulher. Selina parecia ansiosa.
— Preciso que interrogue o nosso hóspede.
— Claro. Agora?
— Não. E não é realmente um interrogatório. Não do tipo que está acostumada a fazer... — começou e viu franzir as sobrancelhas. — Preciso que faça ele confiar em você. — Completou, já esperando uma reação negativa da outra.
— Quê? Não. Eu não sou boa nisso. — Cruzou os braços, recostando-se a uma pilastra — que é amável e passa confiança.
— E você acha que é uma boa ideia deixá-lo sozinho com o "Charles"?
— Eu sei que nessa situação, não é a pessoa indicada. Que tal a Penny? — Sugeriu e logo viu Selina estreitar os olhos.
— Penny confia demais nas pessoas. Ela não tem malícia suficiente para isso.
Viu abrir a boca para discordar e continuou.
— Sabe que tenho razão. — Levantou-se, suspirando. — Preciso que converse com ele. Seja honesta sobre o que puder, demonstre fraqueza e faça ele pensar que está desvelando sua alma.
— Parece que você sabe o que fazer. Por que não conversa com ele? — Sorriu falsamente. Queria se safar daquela situação.
— Dax e eu não podemos fazer isso, porque para ele nós somos os carrascos que tem mantido ele preso e sujeito a interrogatórios diários.
— Talvez se eu o interrogar consiga arrancar algo e...
— Não, . Essa tática não vai funcionar. Ele está sozinho e confuso, precisa de alguém do lado dele. — Selina poderia simplesmente ordenar que cumprisse tal tarefa, mas precisava que ela percebesse a importância daquilo.
— Mas eu não sei fazer isso. Ser simpática e encantadora. Não sou assim.
— E não precisa ser. Ele só precisa sentir que pode confiar em você.
— Não sou o tipo que as pessoas gostam de cara. — Estalou os dedos, nervosa. Tinha seus próprios motivos para não querer se aproximar de "outro cara que possivelmente se tornaria dependente dela".
— É claro que é. E nesse caso só precisa ser mais acessível e passar um pouco de vulnerabilidade. Precisa gerar empatia.
— E então o quê? Fingir que entendo o que ele está passando, ser amiga dele e aí trançamos o cabelo um do outro. — O sarcasmo irritou Selina.
! — Elevou um pouco o tom de voz. — Você vai fazer isso.
— Quer que eu seja babá dele? É isso que eu sou agora? — Estava irritada com tudo que estava acontecendo em sua vida. Não sabia como lidar com o afeto de e com tudo mais que nublava seus pensamentos. Seu fardo estava pesado demais. — Eu já tenho que ser babá do . E toda essa situação já está sendo difícil o suficiente e eu estou tão cansada de... — desabafou, revelando apenas uma pequena parte daquilo que a afligia, mas parou de falar quando notou que Selina encarava algo a sua direita.
Seguiu seu olhar, encontrando com uma expressão magoada e uma garrafa quase vazia na mão.
— Cansada de ter que cuidar de mim? — Sua voz estava arrastada e seu interior transitava entre a tristeza e a frustração.
... — apertou os lábios com força, quando ele soltou a garrafa no chão.
— Eu não pedi isso. — Acusou ressentido, apontando o dedo para ela. — Não pedi para cuidar de mim e nem para agir como minha babá.
— Com tudo que aconteceu, como eu poderia não ficar do seu lado? — Encolheu os ombros, ciente de como ele receberia aquilo.
A expressão de descrença estampou o rosto dele por alguns segundos, mas logo se transformou em raiva.
— Então a minha situação exige isso de você? A pena que sente. — Sorriu amargamente. — Eu não quero isso. Não quero sua pena. Não quero continuar sendo um peso para você.
— Você precisa entender que... — ela não sabia o que dizer. Sabia como ele reagiria a cada palavra que dissesse e também como reagiria ao seu silêncio. E ela não estava certa de como queria que ele reagisse.
— O quê? Entender o quê? — Berrou, já sentindo a voz embargada. — Aproveite esse momento para falar a verdade. Toda a verdade. De como fica ao meu lado por pena. Porque não quer se sentir uma má pessoa. Porque se sente culpada por seu pai ter estuprado a minha mãe repetidamente por meses. — Rosnou. Seu rosto queimava e veias saltavam em sua testa.
— Você está bêbado e dizendo coisas que não acredita. — Selina finalmente se meteu na conversa, mas foi ignorada.
— Você tem medo de ser tão cruel quanto ele. — se aproximou de e ela engoliu em seco. — E talvez seja. — Murmurou entre os dentes, já sentindo o ar lhe faltar.
Quando bateu a porta de metal, cerrou os punhos e fechou os olhos. Queria socar a pilastra ao seu lado, mas não fez isso.
— Vá atrás dele! — Selina ordenou, aflita.
— Não.
— Precisa consertar isso. Ele só está magoado e...
— Ele acha que está apaixonado por mim. É melhor assim. — Passou as mãos pelos cabelos, tentando controlar sua respiração.
— Não pode se afastar. Assim você está punindo vocês dois.
— Estou fazendo um favor para ele. Não quero falar mais disso. — Murmurou com toda a frieza que conseguiu expressar. — Por favor, Selina.
Ela assentiu ainda um pouco contrariada.
— O que eu faço para o nosso hóspede confiar em mim?

•••

A porta se abriu e entrou na pequena cela. Observou o homem que estava deitado encarando o teto. As paredes impecavelmente brancas e os poucos móveis aumentavam a sensação de isolamento e abandono que ele sentia.
— Interrogatórios vão começar cedo hoje? — Questionou, sem se mover. Estava cansado daquela rotina. Chegou a considerar uma fuga, mas para onde iria desmemoriado? Talvez encontrasse pessoas piores que aquelas que o mantinham cativo.
— Não estou aqui para interrogá-lo. — Ela falou, ainda parada perto da porta e ele a encarou.
Era bonito e não era difícil entender por que Agnes havia se apaixonado por aqueles olhos.
— Então por que está aqui? — Ele se sentou na cama e passou a analisar atentamente.
— Eu estava lá quando você foi encontrado. Queria te conhecer. — Seu tom de voz e o jeito que se portava estavam diferentes. tentava aparentar certa inocência.
— Era fã do Charlie?
— Não o conheci, mas ele provavelmente não é tudo que dizem por aí. — Disse, dando de ombros e ele deu um pequeno sorriso. — Estão te tratando bem?
— Eu estou em uma cela.
— Sinto muito por isso, mas... — cruzou os braços e logo em seguida se abraçou.
— Eles estão sendo cautelosos. Não sabem se sou um ameaça. Nem eu sei se eu sou.
— Espero que consiga se lembrar quem é. Desculpa ter te incomodado. Eu vou embora. — Mexeu no cabelo, tentando demonstrar nervosismo e se virou para porta.
— Espera... acha que deixariam você voltar?
— Eu não sei, mas posso pedir.
Ele assentiu e ela bateu na porta. Quando a porta se abriu e finalmente deixou o local, não pode conter um sorriso. Talvez aquilo fosse ser mais fácil do que imaginava.



Capítulo IX.
I can see, see the pain in your eyes.

Aquela já era a quarta visita e o "hóspede" parecia já estar muito à vontade na presença de — e ela se aproveitava disso. Todo o esforço para encenar a fachada de mulher doce e amável a ajudava a afastar de seus pensamentos. Quando estava ali, ela ficava totalmente focada na tarefa de ganhar a confiança de seu alvo. Seus olhares, sorrisos e cada um de seus movimentos eram calculados.
Assim que entrou na cela, seus olhos focaram no pequeno embrulho em cima da cama. Ao notar o que ela encarava, o homem se apressou em explicar.
— São biscoitos. Agnes trouxe ontem à noite.
— E não gosta de biscoitos? — Sentou-se na cadeira de madeira no canto da cela e logo ele a acompanhou.
Ele a encarou, pensativo por alguns segundos, e suspirou em seguida.
— Eu não sei... — disse finalmente, gerando risadas.
— Por que não experimenta? — franziu a testa ao notar a expressão que surgiu no rosto dele. — O que foi?
— Eu não sei como lidar com isso. — Ele começou a tamborilar os dedos na mesa.
— Agnes?
— É. — Respondeu, ainda prestando atenção no movimento e no som que seus dedos faziam.
— Ela faz muitas visitas? — O tom de voz que utilizava passava dúvida e insegurança.
— Diariamente. E... na última, ela disse que eu não devia confiar em você. — Torceu a boca e finalmente encarou a mulher.
— Isso é bem compreensível. — Baixou o olhar, ciente de que esse era um daqueles momentos em que tinha que revelar um pouco de si para garantir sua credibilidade.
Naquelas visitas, não eram raros os momentos em que ela contava para ele algumas meias-verdades.
— Por quê? Ela está com ciúmes?
— Ela deve estar sim, mas não é por isso que me odeia. — Começou a estalar os dedos, sentindo o olhar dele a analisando. — É por causa do meu pai... quem ele é e o que ele fez. — Respirou profundamente, antes de continuar. — Há vinte anos ele a torturou de todos os piores jeitos possíveis.
— Ele... — a boca dele se abriu e uma expressão de horror tomou seu rosto.
— Ele fez tudo que podia para quebrá-la. Ela me odeia, porque sempre que olha para mim, lembra-se de tudo que passou. — As lágrimas que encheram os olhos de eram reais.
Pensar naquilo a machucava. Especialmente agora que as palavras duras de soavam constantemente em seus pensamentos.
— Essa é a verdade sobre quem eu sou. Filha de um carniceiro, que machucou e matou por diversão. — Sua voz falhou e então sentiu a mão dele sobre a sua.
— Você não é seu pai. Não devia carregar o peso do que ele fez.
deu um pequeno sorriso e logo recolheu sua mão.
— Acho que nós dois somos meio que amaldiçoados. Temos um passado que nos assombra. — Ela comentou, enquanto limpava os rastros deixados pelas lágrimas.
— É um ótimo jeito de descrever isso. É uma maldição.
observava atentamente as reações dele, tentando desvendar a verdade por trás daqueles olhos. Ele parecia realmente frustrado e confuso.
— E ainda tem a Agnes para complicar tudo. Ela vem aqui todos os dias na esperança de que eu me lembre de toda uma vida juntos.
— Ela ama você.
— Ela ama o Charles. — Encarou-a, franzindo a testa.
— Me desculpe...
— Eu nem sei o que é mais assustador... — ele apoiou o cotovelo na mesa e a testa na mão, suspirando antes de continuar. — Ser o Charles ou ser apenas um clone. De qualquer jeito, eu sou só uma sombra do homem que ele era.
— As pessoas vão te definir por quem ele era. Então... elas que se danem. Você pode escolher não ser apenas uma sombra.
— Como se isso fosse fácil.
— Escolha um nome. — Bateu a mão na mesa, agitada com a ideia. — Pare de se tratar como alguém que não devia nem existir. Escolha ser alguém. Se quer ser o Charles, tudo bem, se não, tudo bem também.
— Eu não quero ser o Charles.
— Ótimo. E você não é mesmo. Aquele Charles morreu e... e talvez isso não seja algo ruim.
Ele tocou os dedos dela e lhe lançou um sorriso. Era uma forma singela de agradecimento pelas palavras.
— Então, vamos pensar em um novo nome para você.

Após deixar alguns livros na cela de Charles, voltava a sua cabine sentindo-se frustrada. Fazer o "hóspede" confiar nela foi uma tarefa fácil, mas não havia tirado nenhuma informação útil dele. O homem estava confuso e realmente não se lembrava de nada. Ela sentia que aquilo era perda de tempo. Ia até aquela cela, fingia se importar com todos os problemas dele, enquanto enfrentava seus demônios sozinho. Isso era o que mais a perturbava, a necessidade de ficar longe dele. Tal ação gerava dor e desapontamento, mas ela acreditava que tinha que ser assim.
Ao alcançar seu corredor, avistou Penny beijando um homem na porta da cabine. Esperou o homem sair para continuar seu trajeto e entrou na cabine, deparando-se com a mais nova sentada no sofá encarando o teto.
— Quem era? — questionou, também se jogando no sofá.
— Owen. — Penny respondeu com um grande sorriso e diante da expressão confusa da amiga, completou. — Owen Rodgers.
— Owen é um adolescente magricela.
— Ele tem dezenove. São só três anos de diferença. — Cruzou os braços e em seguida piscou para a amiga. — E ele ganhou alguns músculos nos últimos meses.
— Alguns? Ele era uma vassoura e agora parece um armário. — Comentou, jogando os pés sobre a mesa de centro e Penny gargalhou.
— Um armário muito sexy.
— Há quanto tempo isso está acontecendo?
— Algumas semanas. Ele pediu algumas aulas de carpintaria, mas claramente ele queria mais que isso. — Ela então apontou para o próprio corpo e ergueu as sobrancelhas repetidas vezes. — Ele vai se candidatar para entrar em um grupo de combate e acho que ia se dar muito bem no nosso.
— Nós já temos um brutamontes.
— É, mas o nosso é velho e mal-humorado.
— Dax é um ótimo brutamontes. — deu um leve tapa no braço da amiga.
— Estou no grupo de combate há um ano e meio e não sei nada da vida dele.
— Ele é um cara reservado.
— Além disso, ele já deve estar cansado dessa vida. Tem que abrir vaga para o novo. Um novo musculoso e com pegada. — Gesticulou, estampando um sorriso tarado e recebeu outro tapa.
— Quando ia me contar? — questionou, estreitando os olhos.
— Ia esperar mais um pouco. Para você saber como eu me sinto. Você nunca me conta nada. — Ajeitou-se, ficando de frente para .
— Porque não tem nada para contar. — Recostou a cabeça no sofá e fechou os olhos com força por um instante, já sabia que rumo aquela conversa tomaria.
— Me dá vontade de te bater toda vez que fala isso. — Cerrou os punhos e bateu nas próprias coxas. — Vocês se beijaram várias vezes e...
— Duas vezes. — Interrompeu Penny, que revirou os olhos.
— Vocês estavam bem e agora ele está com raiva e sofrendo, e você diz que não é nada. — Deu um soco no braço de , que imediatamente se ajeitou no sofá, passando a encará-la.
— Falou com ele?
— Na verdade, ele só gritou algumas coisas. A principal foi que ele não quer distância só de você. — O tom de voz de Penny ficou triste. — O que aconteceu?
— Eu disse algo estúpido e ele ouviu. — Apoiou os cotovelos nos joelhos e em seguida o rosto nas mãos.
— Vai precisar ser mais específica.
virou a cabeça para encará-la, ainda mantendo a posição.
— Eu disse que não queria ser babá do "Charles", porque já estava cansada de ter que cuidar dele. — Escondeu novamente o rosto entre as mãos diante da agitação de Penny.
— Isso é ruim... muito ruim. Precisa falar com ele e resolver isso.
— O que quer que eu diga? Eu realmente estou cansada de cuidar dele e...
— Está mentindo. Precisa consertar isso.
— Não. Não posso lidar com isso agora. Não tem ideia do que tenho passado. — Ajeitou a postura e passou as mãos pelos cabelos nervosa.
— Então me conta. Não tem que carregar nenhum fardo sozinha. — Penny apertou o ombro de , que se afastou e levantou do sofá.
— Você não entenderia.
— Me teste. Nós não somos só colegas de trabalho. Você é minha amiga, minha família. Você pode dividir qualquer coisa comigo. — Aumentou o tom de voz, agitada.
Sabia que queria carregar o peso do mundo nas costas e se chateava por ela não dividir esse peso com ela. As duas se tornaram amigas rapidamente e quando a avó de Penny morreu, ela passou a dividir a cabine com . Em todo tempo que se conheciam, ela se esforçava para se mostrar aberta e dar força para a amiga em todos os momentos, mas não conseguia fazer se abrir.
— Eu preciso ir. Preciso trabalhar. — pegou o casaco que estava jogado em uma cadeira e foi em direção à porta, mas antes de sair, ainda ouviu a declaração de Penny.
— Um dia você vai ter que parar de fugir.

— Escolheu um nome? — questionou, tentando demonstrar empolgação assim que entrou na cela.
— Olá. É um prazer conhecê-la. — Caminhou até ela e estendeu a mão. — Meu nome é Jack.
— Jack? — Apertou a mão dele, sorrindo. — É forte... e ao mesmo tempo simples. Gostei.
— Agora preciso de um sobrenome.
— Não precisa de um. Eu abandonei o meu e estou muito bem assim.
— Então.... eu sou Jack. Só Jack. — Começou, estampando um sorriso que se desfez, quando fechou os olhos e levou as mãos à cabeça. — Está tudo bem?
— Sim, eu... — A dor havia voltado e ela se esforçava para não gritar. Precisava sair dali.
Foi capaz de dar apenas dois passos trôpegos, antes de cair no chão. Viu que o homem se jogou na sua frente, mas não conseguia distinguir o que ele dizia. A dor lancinante nublava seus pensamentos e tirava suas forças.
Com dificuldade, puxou o pequeno estojo de metal que estava em seu bolso, mas acabou o derrubando no chão. Ao ver o conteúdo do estojo, o homem se apressou em ajudá-la. Preencheu a seringa com o líquido azul e viu estender o braço. Injetou o conteúdo rapidamente e a puxou para o seu colo.
— Está tudo bem. Você vai ficar bem. — Acariciava os cabelos de , sentindo o desespero tomar seu corpo. Ela suava e tremia. A dor que ela sentia era visível. — Vou pedir ajuda.
— Fica. — Pediu em um sussurro.

Após alguns minutos que pareceram horas, começou a se mexer. Com dificuldade, conseguiu se levantar do colo dele, mas ainda permaneceu sentada no chão.
— Está melhor? — Questionou, ainda a amparando.
— Sim. Só preciso de alguns minutos. — Respirava profundamente, tentando organizar seus pensamentos.
— Você me assustou. — Confessou, acariciando os ombros dela.
— Eu estou bem agora. — Tentou se levantar, mas sentou novamente devido a tontura.
— O que você tem? Está doente?
— Não. Eu... — ela esfregou o rosto. — Eu preciso disso, porque... porque eu sou viciada. Se eu ficar sem injetar... os sinais de abstinência são muito fortes. — Tentou novamente se levantar, mas não conseguiu.
— Por um momento pensei que você ia morrer. — Espalmou as mãos no rosto de , que logo se afastou, inquieta.
— Não é tão grave. Desculpa se te assustei.
— Não tem que se desculpar. — Tocou o braço dela e se aproximou. — Mas preciso que se cuide, ok? Não quero te perder.

•••

estava de olhos fechados, sentindo seus músculos relaxando conforme a água os atingia. Era um dos poucos momentos em que ficava sozinha e consequentemente em que tinha que se esforçar ainda mais para manter seus pensamentos afastados dos problemas que a cercavam. Esquecer tudo havia se tornado ainda mais difícil depois de sua crise na frente do "hóspede". Surpreendentemente, isso os aproximou.
Duas semanas haviam se passado e ele havia se tornado mais atencioso e preocupado com ela. E tal comportamento da parte dele apenas aumentava a sua lista de preocupações. Tentou se concentrar no vapor que preenchia o ambiente, no som que a água fazia ao tocar o seu corpo e o chão, na pressão da água contra a sua pele, mas logo seus sentidos captaram algo mais. Podia sentir dedos apertando sua cintura e tombou a cabeça para o lado, ao sentir beijos sendo depositados em seu pescoço. O momento durou pouco e logo acordou de seus devaneios com os olhos arregalados.
Fechou os olhos com força e enfiou a cabeça embaixo da ducha, esforçando-se para expulsar aqueles pensamentos de sua mente. De olhos fechados, ela não enxergava apenas a escuridão, mas o rosto dele a encarando com ternura. Não importava quanto tempo ficasse sem encontrá-lo ou o quanto tentasse ignorar sua existência, sempre ocuparia seus pensamentos.

•••

Os sons emitidos pelas máquinas e geradores do setor de energia preenchiam o ambiente. A cabeça de latejava e quando o turno acabou, ela se apressou em direção à saída. Decidiu ir até a cela de "Charles", ou "Jack", o "hóspede" — o homem de origem desconhecida que ocupava uma cela no setor D.
Caminhava rapidamente pelos corredores gelados que a levariam a área de confinamento e se assustou com a presença de Mitchell indo na direção contrária.
— Achei que era seu turno vigiando o hóspede. — Abordou o homem, que parecia estar agitado.
— E é. Mas preciso encontrar o senhor Graham.
— Quem está te substituindo?
... — os olhos de se arregalaram e antes que Mitchell conseguisse dizer algo mais, ela correu em direção às celas.
O som que ouviu ao se aproximar da cela a apavorou, mas não mais que a cena que encontrou ao alcançar a porta: estava ajoelhado sobre "Charles", desferindo repetidos socos no homem que parecia estar desacordado. A fúria estava estampada no rosto de e a cada soco, ele parecia empenhar mais e mais força.
correu até lá e tentou puxá-lo. Foi inútil, ele parecia estar em um transe e apenas se livrou rapidamente das mãos dela, jogando-a no chão. A mulher avançou novamente, mas dessa vez conseguiu aplicar um mata-leão, que possibilitou que o imobilizasse. A proximidade permitiu que ela sentisse o cheiro do álcool, que denunciava o quão bêbado ele estava. ficou ainda mais nervoso e sua movimentação derrubou os dois no chão.
— Pare! Eu não quero te machucar. — Ela implorou, ainda o segurando.
ficou mais agressivo e ela apertou o pescoço dele. Diante da falta de ar, ele começou a se acalmar.
Quando parou de se debater, desafrouxou o aperto e o golpe se transformou em um abraço. Ambos respiravam fundo, tentando controlar a respiração e a raiva.
— Ele está morto? — perguntou em um sussurro, quando finalmente se acalmou.
se levantou com cuidado, certificando-se que ele estava lúcido e então caminhou até o homem que tinha o rosto cheio de hematomas.
— Jack... — chamou, ajoelhando-se ao lado do homem e logo sentiu a mão dele sobre a sua.
Ele não conseguia abrir os olhos e nem falar, apenas murmúrios foram ouvidos.
— Nós vamos cuidar de você. — Segurou a mão dele e então ouviu passos.
Viu Mitchell na porta apontando uma arma para , que estava com a cabeça baixa.
— Abaixe a arma! — Ordenou, levantando-se e sentindo a angústia invadir seu peito.
— Ele fez isso. Está fora de controle. — O homem viu levantar a cabeça. Seu olhar parecia dizer que ele estava apenas esperando a dor.
— Se machucar ele, eu vou te matar. — aproximava-se lentamente. — Do pior jeito e da forma mais lenta. Abaixe a arma! — Seu maxilar travado e a expressão de ódio diziam a Mitchell que a mulher estava falando sério, então decidiu obedecer. — Vá buscar ajuda!
Assim que Mitchell saiu, caminhou até , que estava sentado encarando o chão. Ajoelhou-se na frente dele e viu seus punhos machucados. Queria tirar toda a dor e confusão que o assolavam.
Levou a mão até seu rosto, mas viu ele se afastar.
— Seu trabalho agora é cuidar dele. — Murmurou, encarando-a.
... — tentou novamente tocá-lo, mas ele virou o rosto.
— Fique longe de mim. — Rosnou entre os dentes, levantando-se com dificuldade e se apoiando à parede.



Capítulo X.
Truth is like blood underneath your fingernails.

Enquanto Ivy cuidava de Charles sob o olhar atento de Agnes, em outra cela, era interrogada pelo chefe Graham. A teoria de Graham era de que havia planejado aquela agressão e usou para isso. Para arrancar uma confissão que confirmasse sua teoria, o homem usava gritos e toda a violência verbal que conhecia.
A mulher estava tão irritada quanto ele, não por conta das acusações, mas porque aquilo fazia sentido. Alguém tinha planejado a morte de Charles e essa pessoa deixou caminho livre para que a culpa recaísse sobre .
Selina entrou na cela e após alguns insultos contra Graham, tirou a amiga dali. deixou o recinto e correu em direção a Mitchell, segurando-o pela gola da camisa.
— Você o deixou sozinho com o . Me diz o motivo. Quem te mandou fazer isso? — Vociferou diante do olhar dissimulado dele.
— Você está louca!
— Se afaste dele, Bormann. — Ouviu a voz de Graham e se virou.
Viu que ele puxava , que tinha as mãos machucadas presas por um par de algemas.
— O que... — largou Mitchell e foi até o chefe de segurança. — Solte ele! Isso não é necessário.
— Não é você que decide isso. — murmurou, sem encará-la.
— Você ouviu o homem. — Graham puxou seu prisioneiro, mas foi impedido por , que se posicionou na frente deles.
— Eu sei que você me odeia no momento, mas não me importo. Não vou deixá-lo fazer isso com você. Eu... — procurava o olhar de , já sentindo o ar lhe faltar.
está certo. Não é você que decide isso. — Agnes afirmou, saindo da cela de Charles e caminhou em direção à entrada do setor. — Traga a sua protegida, Selina. Temos assuntos a tratar.
— Eu não vou deixar...
— Cuidamos disso depois. — Selina interrompeu a amiga e fez sinal para que ela a seguisse.
De volta a mesma cela em que havia sido interrogada por Graham, respirou fundo, antes de sentar na cadeira apontada por Agnes.
— Por que fez isso? — Agnes questionou, encarando-a. — Por que queria matar o Charles? Bormann te mandou fazer isso? — Aumentou o tom de voz e cerrou os punhos. — Ele queria arrancar o Charles de mim de novo.
— Eu não fiz nada. — Defendeu-se, ciente de que nada que saísse de sua boca convenceria Agnes.
Ela já havia sido julgada e condenada há muito tempo.
— Agnes, não pode culpá-la. Se não estivesse lá para impedir , Charles estaria morto e...
— Ela o usou. — Gritou, interrompendo Selina. — Usou os dois. Se aproximou do e depois do Charles. É por isso que está aqui? — Bateu na mesa com força, assustando . — Quer tirar os dois de mim? É por isso, não é? Bormann quer continuar me torturando e dessa vez usou a filha. — Aproximava-se, rosnando aquelas palavras, mas Selina se posicionou na sua frente.
— Escute o que está dizendo. Isso não faz sentido algum. está do nosso lado. Tudo que ela fez nesses dois anos aqui foi nos ajudar. É por causa dela que o Charles ainda está vivo. É por causa dela que o está vivo. Esqueceu tudo o que ela fez por ele?
— O que ela fez? — Lançou um olhar de desprezo para e se afastou. — Deixou-o ser torturado por semanas e... deixou ele se machucar e machucar outras pessoas. E ainda o enfeitiçou para se apaixonar por ela. Ela é como o pai, só traz dor. É tudo culpa dela. Eu quero ela fora daqui! — Berrou, caminhando em direção à porta.
— Não! Ela não vai. — Selina rebateu elevando o tom de voz.
— Essa é minha decisão final. — Disse Agnes, antes de sair da cela.
sentia todo o peso de todas aquelas palavras, de todos os julgamentos das pessoas daquele lugar, de todas as suas falhas, de toda a dor que já causara e que sentia. O fardo se tornou pesado demais. Sua respiração estava falha e descompassada, e então o ar lhe faltou.
Apoiou os cotovelos nos joelhos e a cabeça entre as mãos e se derramou em lágrimas, logo sendo amparada por Selina.
, sobre a Agnes...
— Eu não me importo com o que ela falou. Me preocupo com o . Me promete que vai cuidar dele. — Pediu entre soluços, sentindo seu peito queimar.
— Você não vai embora. — Ajoelhou-se ao lado da amiga, acariciando suas costas.
— Você a ouviu. — Encarou-a com o rosto já vermelho. — Além disso, já está na hora de...
— Não! Você não vai! — Acariciou o rosto da mulher, segurando-se para não a acompanhar nas lágrimas. — Nós temos um trato. Ok? Vá para a sua cabine. Conte a Penny o que aconteceu e peça a ela para me avisar se precisar de mim. Vou checar o e depois vou te ver. Fique longe de confusão. — Beijou o topo da cabeça dela e a ajudou a se levantar.

estava sozinha na cabine encarando o teto. Penny ainda não havia chegado. Devia estar com Owen. A solidão apenas ajudava a agravar as perturbações que rondavam sua mente.
Ao ouvir a voz de Selina, abriu a porta, ansiosa.
— Como ele está? — Puxou a mulher para dentro e fechou a porta.
— Bem, está descansando em sua cabine. — Selina preferiu não mencionar que tinha a porta vigiada por agentes de segurança.
— E Agnes?
— Mais calma agora que sabe que Charles vai ficar bem. — Selina abraçou ao ver algumas lágrimas rolarem.
Ficaram abraçadas por alguns segundos, mas logo a mais velha separou o abraço.
— Tem um grupo saindo amanhã para buscar suprimentos médicos. Você vai com eles. Algumas semanas distante até as coisas acalmarem.
— Ok. — Assentiu, suspirando.
— Penny e Dax também vão.
— Por quê? — Questionou, elevando um pouco o tom de voz.
— Porque eu sei que você já estava planejando não voltar...
abriu a boca e Selina continuou:
— Eu te conheço, vi nos seus olhos.
— Selina...
— Nós temos um trato. — Tocou o rosto dela, sentindo os olhos arderem.
— Mas...
— Vai voltar e vai trazer a Penny a salvo. Me prometa. — Pediu, já sentindo algumas lágrimas rolarem.
— Eu prometo.

•••

Para , era estranho estar naquele baú sem a companhia de e saber que não era Selina dirigindo o caminhão. As semanas passavam e estar na companhia daquelas pessoas apenas a fazia sentir mais falta de seus amigos.
Penny e Dax estavam ali, mas a ausência de duas pessoas importantes era dolorosa. Especialmente sabendo que qualquer sentimento positivo que cultivava por ela havia sido substituído pelo ódio. Ela dormia e acordava com o rosto dele em seus pensamentos e se preocupava a todo momento. Parte dela queria abandonar tudo e fugir, mas não poderia fazer isso, havia feito uma promessa para Selina. Além disso, não podia deixar Penny sob os cuidados daquelas pessoas. Não confiava em ninguém ali para cuidar de sua irmã mais nova, além de Dax.
Owen estava em sua primeira missão e distraído demais pela presença de Penny, não era capaz nem de cuidar plenamente de si mesmo. Além dele, o grupo era composto por Fisher e Eve.
Fisher, um homem de quarenta e poucos anos, era um bem-humorado brutamontes apaixonado por filosofia e dinamites. Apesar da diferença de idade, era um grande amigo de .
Eve Hart, a competente líder do grupo, mal dirigia a palavra a . Era mais uma cidadã da casamata ressentida com as origens da mulher. Hart usava seus cabelos ruivos presos em um rabo de cavalo, mas mantinha uma mecha solta para ajudar a esconder a enorme cicatriz em sua bochecha, fruto de um encontro com Ernest Bishop. A mulher também carregava marcas do seu encontro com Bormann, mas estas não eram visíveis.

•••

No quadragésimo nono dia em missão, as coisas começaram a desandar. Um acidente resultara em uma torção no pé esquerdo de Penny. Apesar da insistência de em voltar para a casamata, para que a amiga fosse devidamente cuidada por Ivy, Eve Hart decidiu dar prosseguimento a missão.
Ainda tinham duas semanas e três estabelecimentos para revistar, e Hart finalizaria sua tarefa. Alcançaram um dos alvos no fim da tarde.
Do baú, Penny derrubou os sistemas de segurança, permitindo que Dax e entrassem no sistema de ventilação. Protegidos por máscaras, eles acionaram um gás que logo se espalhou pelo prédio, derrubando cientistas e pesquisadores, e então se separaram para vasculhar o local. Logo o resto do grupo invadiu o prédio, enquanto Penny controlava seus passos do baú. Após alguns minutos, um sinal causou interferência nos comunicadores, para o desespero de Penny, que agora estava no escuro, sem poder se comunicar e impossibilitada de ir até lá.
Assim que a nuvem de gás do sono se dissipou, retirou a máscara e passou a vasculhar algumas salas, passando por trabalhadores desacordados e salas bem equipadas e limpas. Parou por um segundo ao ouvir um zumbido agudo vindo do seu comunicador. Apesar da preocupação gerada pela impossibilidade de se comunicar com Penny, decidiu continuar.
Ao alcançar um dos laboratórios do quinto andar, assustou-se com a presença de um homem encarando a janela. Com arma em punho, ela se aproximou lentamente e notou uma máscara de gás na mão dele. O analisava atentamente, sentindo a confusão invadir seus pensamentos.
Quando ele se virou, paralisou.
— Olá, querida! Não está pensando em atirar no seu pai, está? — Hugo Bormann abriu um largo sorriso e viu as bochechas de empalidecerem.
— Vo... você... — não conseguia se mover, estava em choque.
Após três anos de fuga, ela novamente encarava seu pai.
— Eu senti sua falta. — Deu um passo na direção da filha, mas parou quando ela apontou a arma para a sua cabeça.
— Não se aproxime! — Gritou, transtornada.
— Ok. — Ergueu as mãos em sinal de rendição e recuou. — Se isso te deixa desconfortável, eu vou manter distância... por enquanto. — Escorou em uma mesa diante do olhar feroz da mulher e colocou a máscara ali.
— Você parece calmo demais para alguém que tem uma arma apontada para a cabeça.
— Você não vai atirar. Sou seu pai.
— E tem armas apontadas para a minha cabeça nesse momento, certo? — Indagou um pouco ofegante. — Você tem homens daquele lado do prédio. — Apontou para a janela e ele sorriu.
— Eu confio em você, querida. — Sua voz suave irritava a filha.
— O que está fazendo aqui? — Finalmente abaixou a arma, mas manteve a distância.
— Eu estava te esperando. — Um sorriso doce surgiu no rosto dele, enquanto a confusão ficava estampada nos olhos dela.
— O que... o que está dizendo?
— Eu sabia que viria. Então apenas te esperei.
— Como? — Gritou, impaciente.
— Assim que você fugiu, eu coloquei muita gente para te procurar, mas de algum jeito, você conseguiu se manter fora do radar... por muito tempo. Tempo demais. — Abriu um largo sorriso e cruzou os braços. — Eu sentia sua falta e não tinha notícias suas, mas, então, algumas semanas atrás você acendeu o farol. Possibilitando que eu te encontrasse.
— Do que você...
— A rede Minerva, é óbvio. — Bateu na mesa, assustando-a. — Me desculpe. Quando invadiu aquele laboratório e disparou os alarmes de segurança, você acendeu o farol. Eu sabia da existência dos laboratórios, mas não sabia a localização. A sua invasão fez alertas pipocarem no departamento de segurança. Do qual atualmente eu sou o secretário. — Parou por um instante, esperando uma reação dela. — Você deve me parabenizar. Isso é uma grande promoção.
A respiração de se tornou ainda mais ofegante e seus lábios tremiam. Estava cada vez mais atormentada pela presença dele, especialmente pelo modo como ele agia.
— Está sendo rude. Mas não é para se esperar menos. Eu vi quem te acompanhava, devem estar te envenenando. Dizendo coisas horríveis sobre mim. Dax Cromwell, Selina Barnes, e uma outra garota que eu não sei o nome, então eu suponho que ela é nova nessa vida criminosa. Vi todos eles nos vídeos de segurança. Estou desapontado, querida. Não te criei para te ver na companhia de criminosos e...
Foi interrompido por uma risada sarcástica.
— Como se atreve? Você é o criminoso. Eles são muito melhores que você.
— Melhores? — Questionou, exaltado. — Dax Cromwell é um terrorista. Sabia disso? Sabia que ele é responsável pela chacina de Newport? Que ele orquestrou os atentados em Ashima? E Selina? Por onde começo? Ela é uma vadia que matou centenas.
— Diga algo do tipo de novo e eu atiro! — Rosnou entre os dentes, erguendo a arma.
— Eles fizeram a sua cabeça... — afirmou, após um longo suspiro. — Eu vi como é próxima do filho da Agnes. Estou muito desapontado.
— Não me importo. Você é um torturador... um estuprador... um assassino! — Berrou com a voz embargada.
O sorriso macabro que ele deu fez com que sentisse um frio descer por sua espinha. O homem notou o efeito de sua expressão.
— Eu sou seu pai. Não devia ter medo de mim. — A voz terna havia voltado.
— Não tenho. Tudo que eu sinto é desprezo. — Abaixou novamente a arma, dando uns passos para trás.
— Não sei o que essas pessoas têm falado para você, mas eu não sou um monstro...
— Não, você não é. — Interrompeu-o, exasperada. — Também não é uma entidade superior que veio trazer dor e desespero. Não é o deus da morte ou algo do tipo como pensa. É só um homem. Cheio de ódio e coisas que me fazem sentir pena. — Ela sorriu amargamente. — A sua vida é tão frágil quanto qualquer outra e eu poderia esmagá-la se quisesse.
— Não faria isso. — Afastou-se da mesa e deu uma passo na direção dela.
Aquela mulher diante dele era muito diferente da filha que conheceu e isso o perturbava.
— Eu sou seu pai. Te cantava canções de ninar. — Deu mais um passo, mas parou quando ela ergueu a arma novamente.
— É... e depois disso ia para uma sala escura torturar e estuprar mulheres.
— Você não entende... elas... elas precisavam ser punidas. — Cerrou os punhos, irritado.
— Você... — ainda tinha muito a dizer, mas a dor excruciante nublou seus pensamentos. Amaldiçoou aquela dor por vir em momento tão inoportuno.
Um grito ecoou, assustando o homem e em seguida caiu de joelhos. Hugo correu até a filha, mas ela ergueu a arma. Sua mão trêmula revelava o quão difícil aquele simples ato estava sendo diante de tanta dor.
Ela enfiou a mão esquerda no bolso, buscando o estojo prateado. Alcançou-o, mas quando puxou, acabou derrubando. A seringa caiu do seu lado, mas o frasco rolou até perto dos pés de seu pai.
— O que é isso? Está doente? — Questionou, analisando o frasco.
Quando outro grito ecoou, ignorou a arma apontada em sua direção e correu até a filha, que caiu no chão. Pegou a seringa da mão dela e preencheu com o líquido azulado. Aplicou o conteúdo em seu braço e permaneceu ajoelhado ao seu lado.
Quando tirou os cabelos do rosto de , um grito de pavor saiu de seus lábios ao ver sangue saindo dos olhos dela.
— Seu olhos... — sussurrou, puxando a filha para o seu colo.
Ficaram naquela posição por alguns minutos. Bormann tinha os olhos marejados e acariciava os cabelos da filha. Suspirou aliviado quando ela começou a se mover.
— Ótimo. Eu não te encontrei para te ver morrer nos meus braços. — Sussurrou brincalhão e ela se moveu incomodada.
— Então por que me encontrou?
— Porque eu quero a minha filha de volta.
— Sério? — Saiu do colo dele com dificuldade e sentou ainda se sentindo tonta. — Você colocou seus capangas atrás de mim quando eu fugi. — Os olhos dela se encheram de lágrimas e ela se esforçava para não derramá-las. Não queria chorar na frente dele, mas a raiva estava transbordando. — Homens horríveis que me machucaram e... — diante de tais revelações, a expressão dele mudou.
— Quem te machucou? — A expressão macabra voltou e ela percebeu que ele estava genuinamente surpreso.
— Thompson.
— Eu vou encontrá-lo e matá-lo lentamente. — Rosnou entre os dentes. Veias saltavam de sua testa.
— Não é necessário. Eu o matei. — Confessou, encarando o chão.
— E foi doloroso? — Retirou uma mecha de cabelo da frente do rosto dela e ela se afastou mais.
— Foi. Foi doloroso o suficiente para mim. — Ela se levantou com dificuldade. Queria ficar o mais longe possível dele. — A primeira vez que matei. Agora... agora é mais fácil. Acho que estou me tornando parecida com você. — Limpou as lágrimas e ao encarar as mãos, deparou-se com o sangue.
Seu rosto se contorceu em uma expressão de horror. Aquilo tornava tudo ainda mais real. A dor estava pior a cada crise. E agora sangue saiu de seus olhos.
Estava estática, encarando suas mãos e não percebeu a aproximação de seu pai.
— O que você tem?
— Um péssimo pai. — Riu, afastando-se, mas ele segurou seu braço.
... por favor. Eu preciso saber. — Implorou e ela desviou o olhar, suspirando.
— Eu estou infectada... pelo NT3. — Dizer aquilo em voz alta era uma forma de se livrar de parte daquele fardo. E a genuína expressão de dor e confusão de Hugo Bormann deixaram com um pouco de satisfação.
— Não. Não pode ser. É um vírus letal. Se fosse o NT3, essa crise deveria ter te matado. — Ele falava rapidamente e com agitação.
— Sim. Eu devia ter morrido há dois anos. Mas não morri. — Piscou e deu uma risada. — Por causa do soro. Ele abaixa a carga viral. Impede a manifestação de mais sintomas e bom... a minha morte. — Era fácil contar aquilo para ele, pois não se preocupava se tais revelações iriam machucá-lo. — Mas com o tempo, o efeito passa e o vírus volta a se multiplicar. Aí as dores de cabeça voltam.
— Essa é uma solução definitiva? — Indagou, preocupado.
Estava irritado com a forma como ela tratava do assunto.
— Não. Definitivamente não. — Outra risada de . — O tempo entre as crises tem diminuído e logo o soro vai se tornar ineficaz. Hoje, pela primeira vez, os meus olhos sangraram, isso significa que eu tenho pouco tempo. — Ergueu os braços, gesticulando uma comemoração. — Mas você teve a chance de se despedir. — Deu uns tapinhas no ombro dele e se afastou.
— Você não está realmente acreditando que eu vou te deixar morrer, está? — Correu até ela, novamente agarrando seu braço.
— O que mais poderia fazer?
— Conseguir a cura para você.
— Como?
— O NT3 foi criado pelo antigo regime. Eu posso conseguir a cura.
— Ok. Vamos fingir que eu acredito em você. O que quer em troca?
— Você de volta.
— Isso é muito meigo da sua parte. — Deu um sorriso sarcástico, mas logo estampou uma expressão séria. — E o que mais? Vamos, agora é a hora da barganha.
— Eu quero o que você encontrou nos laboratórios subterrâneos do grupo Minerva.
— Aí está. — Bateu nos ombros dele. — É por isso que está aqui. Você o quer. Até me ofereceu uma cura para conseguir isso. — Empurrou-o, afastando-se.
— Você é a prioridade.
— Eu vou embora e não vou ser seguida. — Disse entre os dentes, ignorando-o, e caminhou em direção à saída.
Hugo foi atrás, mas parou diante do cano da arma de .
— Você não vai... — assustou-se com o disparo e esperou a dor.
Para a sorte dele, a bala passara a milímetros da sua cabeça.
— Esse foi de aviso. — Ela rosnou e saiu porta afora.



Capítulo XI.
Do you fear you'll never see the morning?

caminhava rapidamente pelos largos corredores daquela instalação. Ainda estava fraca e abalada pelo inesperado reencontro. O micro comunicador ainda chiava e ela precisava encontrar os amigos rapidamente.
Estava especialmente preocupada com Penny, que estava com o pé machucado e havia sido deixada no baú do caminhão para guiar os passos do resto do grupo.
Ouviu uma voz conhecida chamando seu nome e então parou de andar. Apoiou a mão esquerda à parede, sentindo sua cabeça girar. Seu nome novamente foi ouvido e em seguida passos se aproximando.
Decidiu fugir dali, mas antes que pudesse dar um passo, sentiu uma mão tocando suas costas.
— Você está bem? — levantou os olhos para encarar o homem alto de cabelos castanhos, que a analisava preocupado.
Estava confusa, parecia encarar uma miragem.
— Nate? — Ela chamou com dificuldade.
Os olhos conhecidos tinham uma aparência cansada e triste.
— Estou aqui. O que está sentindo? — Ele a segurou pelos ombros.
— Eu estou bem. — Afastou-se da parede com dificuldade, ainda amparada pelo homem. — Por que está aqui? — Questionou com seus pensamentos ainda desordenados.
— Vim por você. — Nate sussurrou, aproximando-se e a abraçou, enterrando o rosto no pescoço dela.
O toque dos corpos aqueceu o interior de ambos e por alguns segundos se sentiu segura.
— Você ainda trabalha para ele. — Acusou, afastando-se e se soltando dos braços dele, quando seus pensamentos se organizaram. — Você ainda é um dos lacaios.
— Sim. Porque essa era minha melhor chance de te encontrar. — Ele se aproximou novamente, agitado. — Eu te procurei por tanto tempo... — levou as mãos até o pescoço de e encostou a testa à dela. — É tão bom te ver. Eu finalmente te encontrei. — Tocou a cicatriz em sua bochecha e então contornou seus lábios com o polegar.
— Finja que não encontrou. — Afastou-o com delicadeza, sentindo o olhar dele pesar sobre si.
— Não diga isso.
— Eu preciso ir. — Virou-se para ir na direção contrária, mas parou ao ouvir um pesado suspiro.
— Você está diferente. E não é só o cabelo ou as cicatrizes. — Tocou a nuca dela, delineando uma cicatriz presente ali. Ação que gerou um suspiro involuntário em . — Eu posso ver a dor... ela mudou você. — Tentou se aproximar mais, mas ela novamente se afastou. — Quando você partiu... eu fiquei devastado. Eu... Você devia ter me chamado para ir com você.
— Eu não queria ligação com nada relacionado ao meu pai e isso inclui você. — Respondeu sem se virar para encará-lo.
Ver aqueles olhos após tanto tempo e depois de tudo que aconteceu era doloroso demais.
...
Ela podia sentir a dor na voz dele. Não estava preparada para encarar Nate, especialmente logo após encontrar seu pai.
— Eu não tenho tempo para essa conversa. Preciso levar meus amigos para longe daqui.
— Eles estão no pátio. Eu te levo lá. — Passaram a caminhar lado a lado.

Após alguns minutos de caminhada, quebrou o silêncio incômodo.
— Você ainda trabalha para o meu pai, então... isso significa que ele não sabe de nada.
— Não, não sabe. — Nate deu um longo suspiro e parou de andar. — Eu queria poder voltar no tempo. Eu queria...
— Nada vai mudar o que aconteceu. — Cruzou os braços, aborrecida.
Também desejou por muito tempo que as coisas fossem diferentes. Havia tanto que queria mudar. Mas agora tinha uma sentença de morte pairando sobre sua cabeça. Não havia nada a fazer. Só aceitar o futuro que a aguardava.
— Tudo é diferente agora.
— Nem tudo. — Nate se aproximou rapidamente, segurando as bochechas de e a puxando para um beijo.
Apesar da surpresa, ela correspondeu, sentindo a mão direita dele puxando-a pela nuca, enquanto a esquerda a envolvia abraçando sua cintura. O momento durou pouco, mas foi o suficiente para inundar os dois em memórias e em uma saudade que preferia fingir que não existia.

CENA COM GATILHO - DESCRIÇÃO DE ESTUPRO.
As falas estarão entre "***", pule-as em caso de desconforto.

A dor era uma velha conhecida de Eve Hart. De joelhos, ela sentia o sol queimando sua pele e o incômodo das apertadas algemas em seus pulsos. Seu corpo estava dolorido devido à recente luta com o loiro mal-encarado, que agora apontava uma arma para a sua cabeça. Discretamente, ela tentava se livrar das algemas, aproveitando-se da distração de seu algoz, mas não estava sendo bem-sucedida na tarefa.
Alguns minutos depois, viu Fisher se ajoelhando do outro lado do pátio e mais dois homens armados chegando. E em seguida, Owen sendo arrastado, jogado no chão e então, também se ajoelhando sob o cano de uma arma. Agora estavam cercados por cinco homens armados.
A situação se tornou mais complicada, Hart não podia agir impulsivamente, não podia arriscar a vida de Fisher ou Owen. Eles eram sua responsabilidade.
— Isso é obra do Bishop. — Um homem de baixa estatura se aproximou e com o cano da arma, afastou o cabelo ruivo da mulher, analisando a cicatriz em sua bochecha.
Hart sentiu um arrepio na espinha devido ao toque da arma e a lembrança. Ela se lembrava perfeitamente das semanas que passou sendo torturada por Bishop. Em seus pesadelos, era constante o som da voz dele a chamando de querida, enquanto estampava uma expressão macabra.
— É uma linda cicatriz. — O homem acariciou o rosto dela, colocando uma mecha de seu cabelo atrás da orelha.
— Eu conheço você. — O careca, que até então estava fora de seu campo de visão, se pronunciou e ela começou a tremer.
Reconhecia aquela voz. Era um dos capangas de Bormann. Os dias que passou aprisionada por Bishop haviam sido tenebrosos, mas ainda assim nada se comparava a dor infligida por Hugo Bormann e seus capangas quatro anos atrás.
***
— Continua linda. — Ele afirmou, abaixando-se para ficar na altura dela. — Eu tenho preciosas memórias dos dias que passamos juntos.
Hart não conseguia encarar o homem. Sentia um nó se formar em sua garganta, enquanto sua mente era invadida por dolorosas memórias.
— Ela é linda, não? — O careca a mostrou para os colegas, que logo concordaram. — Ela lutou muito e não chorou. É uma ruiva bem durona. Quando Bormann se cansava dela, deixava eu e os garotos nos divertirmos um pouco. Doces memórias. — O homem agarrou os cabelos de Hart, divertindo-se com o pavor estampado nos olhos dela e no tremor de seus lábios.
***
— Fique longe dela. — Fisher ordenou e logo foi golpeado por um dos homens.
— Ou o quê? O que vai fazer? — O careca caminhou até Fisher, encarando-o com um olhar maníaco. — Coloquem ele de pé. — Dois homens colocaram Fisher de pé, apenas para assistir o careca disparar um tiro entre seus olhos.
Hart gritou, assistindo apavorada o velho amigo cair morto, enquanto o careca ria. Lágrimas desciam sem que ela conseguisse impedir e tudo que queria era gritar e então matar cada um daqueles homens com suas próprias mãos.
Owen assistia a cena sem ação. O medo havia tomado seu corpo.
— Nunca atiraria nele de joelhos. Não sou um covarde. — O careca falou, aproximando-se de Hart. — Sou um bom homem.
— Eu vou te matar. — Hart rosnou, cuspindo no homem.
Ele novamente estampou o olhar maníaco, antes de acertá-la com o cabo da arma.
— Gostaria de te ver tentar. — Fez sinal para que os homens a levantassem e eles logo obedeceram.
Ela se levantou com dificuldade e não ouviu mais nenhuma palavra do homem, estava anestesiada e preparada para morrer. Antes que ele pudesse erguer a arma, Hart viu surgir acompanhada de um homem alto de cabelos castanhos. Assistiu correr até Fisher e então contorcer seu rosto em uma expressão que misturava ódio e dor.
Quando ergueu a arma, todos os homens ali apontaram suas armas para ela.
— Abaixem as armas. — O homem alto ordenou. — Eles estão livres para ir.
— Que porra é essa, Nate? — O loiro questionou, ainda com a arma apontada para a cabeça de .
— Ordens do Bormann. Quer questioná-lo? — A ameaça funcionou, as armas baixaram e o homem se afastou.
— Senhorita ? — O careca a reconheceu. — É bom vê-la inteira. — Afirmou, estampando um largo sorriso e tentou se aproximar.
— Eles vão embora e não vão ser seguidos. — O acompanhante de afirmou, abaixando a arma dela e fez um sinal para que o careca se afastasse.
Hart notou que o homem apertou a mão de no que parecia ser uma tentativa de conforto. Então ambos libertaram Owen, logo também livrando Hart do aperto das algemas e os levaram até a saída.

— Aqueles são os homens do seu pai. — Hart acusou assim que estava apenas na companhia de e Owen do lado de fora do prédio
— Sim. — afirmou, tentando segurar as lágrimas.
Mal conhecia Fisher, mas estava arrasada pela perda.
— E é por isso que vamos sair daqui ilesos.
— Não vamos fugir. — Hart rosnou, parando de andar.
— Precisamos ir. — Owen pediu, mas foi ignorado.
— Há homens mirando em cada um de nós nesse momento. — começou, aproximando-se de Hart, que estava transtornada. — E meu pai...
— Você o viu? — A mulher indagou, sentindo sua respiração falhar.
— Sim. Disse que estava me esperando...
— O quê? — Hart e Owen questionaram em uníssono.
— Ele disse que tem rastreado meus passos, em câmeras de segurança e ... — começou, sentindo a cabeça latejar, ainda estava abalada pelo reencontro e tudo mais que se seguiu.
— Por que não o matou? — Hart cuspiu as palavras em um tom acusatório, agarrando o braço de .
— Haviam armas apontadas para a minha cabeça. — se soltou, tentando se justificar.
Sabia que podia ter matado o pai se quisesse, mas não conseguiria. E se envergonhava disso.
— Por favor, Hart. — Owen implorou. — Precisamos ir. Podemos discutir isso a caminho de casa.
— O que o seu pai quer? — A mulher parecia irredutível.
Queria incendiar aquele lugar e matar Bormann e todos os seus lacaios.
— Ele disse que me quer de volta. — passou a mão pelos cabelos, agitada. — E é por isso que precisamos sair daqui. Encontrar algum lugar distante para nos livrarmos do caminhão. Eles devem ter colocado rastreadores nele. Devem ter colocado em todos nós. Precisamos de novas roupas e novos veículos. Ele com certeza está procurando a casamata. Precisamos voltar.
— Eu não vou embora.
— Não posso deixar ninguém mais morrer hoje. — A dor na voz de era quase palpável. — Precisamos achar o Dax e a Penny e sair daqui.
— Não vou até que ele esteja morto. — Hart disse entre os dentes, dirigindo-se à lateral do prédio para entrar em um dos dutos de ventilação, sendo seguida por e Owen.
Ao alcançarem o local, depararam-se com Dax saindo dali com dificuldade. Ele tinha um hematoma na testa e segurava o ombro esquerdo deslocado.
— Precisamos ir. Eles chamaram reforços. — Dax murmurou, sendo amparado por .
— Vocês podem ir. Eu vou ficar.
— Não! Nós vamos juntos. — Dax segurou a mão de Hart, impedindo-a de entrar no duto. — Onde está o Fisher? — Diante dos olhares trocados, nenhuma palavra precisou ser dita. — Eu sinto muito, Hart. Mas precisamos ir, precisamos chegar à casamata. Agnes precisa saber o que aconteceu aqui. Eu estou machucado e Penny também. Owen parece estar em choque. Preciso de você e da . Por favor. — Apertou a mão dela. — Eu juro que vai ter a oportunidade de matá-lo. Farei tudo que puder para ajudá-la nisso. Eu sei o quanto o Fisher significava para você. Mas precisamos ir agora. — Após algum tempo de relutância e ponderação, Hart finalmente aceitou acompanhar o grupo.
Chegaram ao caminhão deparando-se com Penny desesperada. A notícia da morte de Fisher aumentou ainda mais o desespero da mais nova, que passou horas da viagem chorando abraçada à .
Owen dirigiu algumas centenas de quilômetros a leste até encontrarem uma pacata cidadezinha. Livraram-se do caminhão e trocaram de roupa. Facilmente roubaram dois carros e partiram rumo ao norte. Algumas horas depois, precisaram parar para trocar o pneu e após o cumprimento da tarefa, decidiu não voltar ao carro.
— Já estamos relativamente perto da casamata. Estão seguros. Vão ficar bem. — disse, abraçando Penny.
— Onde pensa que vai? — Penny questionou com uma expressão descrente.
— Vou embora... definitivamente. Bormann está procurando por mim. Isso significa que vocês não estão a salvo comigo por perto. Fisher morreu por minha causa e eu não posso carregar mais nenhuma morte. — Argumentou tristemente, afastando-se da amiga.
— Não é sua culpa. — Dax se aproximou, apertando o ombro da mulher.
— É claro que é. Caímos em uma emboscada feita para mim. E...
— É minha culpa. — Hart interrompeu, sorrindo amargamente e logo sentindo as lágrimas molhando seu rosto.
Sentia-se impotente e miserável após presenciar a morte do amigo.
— Ele estava tentando me proteger. É por isso que morreu.
— Parem! — Penny gritou e mancou até Hart. — Não é culpa sua. Não é culpa de nenhuma das duas. A culpa é daqueles homens horríveis. — Sua respiração se tornou superficial e rápida. — Hart, eu não tenho ideia do que passou... do que eles fizeram com você, mas não pode se culpar... nem culpar a . Ela não é o pai dela. — Limpou as lágrimas da mulher e então se virou para sua melhor amiga. — E ... você é a minha pessoa favorita no universo. — Abraçou a amiga, começando a chorar também. — Você precisa parar de carregar o fardo dos pecados dele. Vai voltar com a gente. Não tem discussão. Você me prometeu que iríamos para casa a salvo. Precisa cumprir. — Implorou, apertando o abraço, logo sentindo a mais velha acariciar seus cabelos.

A chegada à casamata foi conturbada. Todos estavam abalados pela morte de Fisher. O fato de nem terem um corpo para enterrar, apenas agravava a culpa que Hart carregava. Nas últimas horas, só conseguia pensar em como seria encarar a esposa de Fisher. Como seria admitir que havia sido culpada pela morte do amigo.
Assim que alcançaram a fortificação, a mulher foi até a própria cabine e se trancou lá, precisava de algum tempo sozinha antes de enfrentar as consequências dos recentes acontecimentos.
Owen ainda estava em estado de choque. Sua primeira missão já havia o traumatizado. Ver Fisher morrer em sua frente assombraria seus sonhos pelo resto de sua vida. Arrependia-se de ter concordado com a ideia de Penny de entrar em um grupo de combate. De agora em diante, queria ficar ali, trabalhar na casamata, longe do perigo e do pavor. E esperava conseguir convencer Penny a fazer o mesmo.
Acompanhados por , Penny e Dax se dirigiram à enfermaria para tratar seus ferimentos. Dax estava agitado e impaciente, mas Ivy não permitiu que ele deixasse o local, pois ainda queria fazer alguns exames.
Já medicada, Penny viu entrar em seu quarto, acompanhada por Ivy.
— Ainda com dor? — indagou, sentando em uma cadeira perto da cama.
— Estou melhor. Já falou com a Selina e a Agnes? — Penny se ajeitou na cama, já se sentindo um pouco zonza pelos analgésicos.
— Selina está fazendo rondas e ainda não chegou. Agnes definitivamente não quer me ver. — Apoiou os cotovelos na cama e começou a estalar os dedos.
Havia muita coisa para digerir. E agora que estava de volta, ainda tinha que lidar com Agnes.
— Ela vai vir conversar com Dax.
— E o Owen?
— Está sentado ali fora, preocupado com você. — Ivy respondeu, analisando o inchaço em seu pé.
— Pode fazer companhia a ele, Ivy? Preciso conversar com a .
— Claro. Se precisar de algo, é só me chamar. — Ivy sorriu e saiu do quarto.
— Quando ia me contar? — Penny questionou, elevando o tom de voz assim que a porta se fechou.
— Do que...
... você vai morrer? — A angústia, misturada a raiva, fez sua voz falhar. — Está infectada pelo NT3?
— Como... — estava em choque.
A última coisa que queria era Penny e cientes de sua situação. Não conseguia entender como ela sabia de seu martírio.
— Os homens do seu pai... eles causaram interferência no sinal dos comunicadores. Eu fiquei desesperada... eu... eu consegui consertar parte da recepção... pude ouvir os microfones. Ouvi toda a sua conversa com seu pai. — Ela falava rápido e com a respiração descompassada. — Agora me diz... é verdade?
— Sim. — falou em um sussurrou, vendo o rosto da amiga se contorcer em dor.
— Quando ia me contar? — Indagou, já sentindo as lágrimas enchendo seus olhos. — Quando? — Repetiu diante do silêncio da outra. — Ia ser cruel o suficiente para me deixar descobrir quando encontrasse seu corpo sem vida?
— Estava planejando ir embora antes disso. — Admitiu, envergonhada.
— Por que não me contou? — Penny questionou, ressentida.
Puxou a mão de para que se sentasse na cama.
— Eu não queria que sofresse. Eu estava tentando te proteger. É a minha irmãzinha. — Acariciou os cabelos da mais nova.
Penny puxou a mulher para um abraço apertado.
— Eu te disse milhares de vezes que não tem que carregar fardo nenhum sozinha. Eu sou sua família. Eu te amo. Tem que me deixar cuidar de você. — Suplicou, afastando-se um pouco e limpando as lágrimas. — Alguém sabe?
— Ivy e Selina. Selina percebeu os sintomas. Os mesmos que ela viu o marido e o filho sofrerem. — Encarava as próprias mãos. Tudo aquilo era muito doloroso. — Ela me levou até a Ivy para alguns exames. Durante o tratamento da família da Selina, a Ivy pesquisou o vírus e conseguiu sintetizar um soro. Era tarde demais para eles, mas o soro funcionou em mim. — Forçou um sorriso.
Sentia-se um pouco culpada. Acreditava que a família de Selina é que merecia estar viva.
— Então... as duas semanas que eu teria, se transformaram em dois anos.
— Eu não vou deixar você morrer. — Afirmou, apertando as mãos da amiga. — Podemos encontrar a cura. Seu pai falou...
— Eram mentiras. — Berrou, recolhendo as mãos. — Ele estava tentando me manipular. Ivy me manteve viva por todo esse tempo. Eu estou grata. Já aceitei meu destino. Você precisa aceitar também. — Acariciou o rosto de Penny e limpou suas bochechas. — Não tenho medo da eternidade.

— Como aconteceu? — Perguntou após alguns minutos de silêncio.
— Quando eu fugi... meu pai colocou muita gente para me procurar. Consegui me manter escondida por muito tempo, mas... Lenny Thompson me encontrou. — Esfregou o rosto, sentindo-se angustiada ao ser atingida pelas lembranças. — Ele me atacou. Me manteve presa por dois dias. As memórias daqueles dias são um pouco turvas. Eu só me lembro da dor. Ele... ele... — sua voz estava embargada.
Ela se abraçou por um instante, logo se levantando da cama.
— Ele fez isso. — Arrancou a blusa e se virou, exibindo uma enorme cicatriz em suas costas.
...
— Ele disse que ia me sangrar como um porco. — As lágrimas finalmente rolaram, enquanto ela se vestia. — Ele tentou me estuprar... mas eu consegui me defender. Eu o matei e o contato com o sangue dele... acho que ele nem sabia que estava infectado. — Sentou na cama e se abraçou, suspirando. — Foi nesse dia que eu conheci o , a Selina e o Dax. Eu estava machucada e coberta pelo sangue daquele cretino. Selina e Dax me reconheceram imediatamente. E, mesmo sabendo quem eu era, me acolheu... ele estava tão preocupado. — Deu um pequeno sorriso. Ele era uma das poucas coisas boas em sua vida. — Desde o primeiro momento ele não me tratou como a filha do Bormann.
— É por isso que o afasta. Por causa do vírus. — Penny inclinou a cabeça, apoiando-a no ombro de .
— Sim.
— Você precisa contar para ele. — Afirmou, começando a roer a unha do polegar.
Tudo aquilo era angustiante.
— Não. E você também não pode contar.
— Não é justo. Ele precisa saber. — Insistiu, erguendo a cabeça para encarar a amiga. — Se o deixasse escolher, ele escolheria estar com você, mesmo que por pouco tempo e...
— Ele não pode saber. Ele não vai me deixar ir se souber. Não pode contar para ele. — Implorou, segurando a mão da amiga. — Me prometa, Penny.
— Eu prometo. — Afirmou, sentindo-se um pouco contrariada, mas ciente que precisava apoiar .



Capítulo XII.
And these fingertips will never run through your skin.

só deixou o quarto de Penny quando não havia mais sinal de choro em seu rosto. Teve que se segurar para não desabar completamente na frente da amiga. Tentava demonstrar força diante da situação, queria mostrar que já havia aceitado seu destino — uma mentira que desejava com toda força que fosse verdade.
Já havia dito à Selina e à Ivy que estava pronta para morrer dezenas de vezes. Costumava utilizar a mesma frase: não tenho medo da eternidade. Esperava que a repetição tornasse aquela sentença uma verdade, mas não era o caso. Ela não admitiria em voz alta, mas estava apavorada. Ela tinha medo da morte. Medo da dor. Medo da vida interrompida já há dois anos.
Saber que ia morrer a tornou um pouco imprudente em suas missões e muito cautelosa em seus relacionamentos. Mas apesar do grande esforço para se isolar, encontrou pessoas que impactaram sua vida de uma forma que nunca imaginara. Na casamata, ela encontrou uma família. E pensar em deixá-la, pensar em vê-la sofrer, era mais do que podia suportar.
Por diversas vezes considerou contar tudo para Penny e , mas desistia. Ela via o quanto sua situação atingia Selina e não queria ver os outros amigos sofrerem. Preferia que a odiasse. Talvez isso amortecesse a dor quando ela partisse.
caminhou em direção à saída da enfermaria, mas foi interrompida por Leslie, uma das enfermeiras. A mulher de olhos amendoados sempre a tratou com simpatia, então, apesar de toda a agonia que sentia, forçou um sorriso ao se virar.
— Onde está a minha esposa? — Leslie perguntou, recebendo um olhar de confusão.
— Sua esposa?
— Eve Hart.
abriu a boca um pouco surpresa, mas logo seu rosto expressou preocupação.
— Ela disse que precisava ficar sozinha.
— Aconteceu alguma coisa? — A enfermeira esfregou as mãos, apreensiva.
— Fisher morreu. — disse em um sussurro e Leslie sentiu o coração apertar.
Era uma grande amiga de Fisher e sua família. Já imaginava como seria para sua esposa e filhos ouvir aquela notícia.
— Hart acha que é culpa dela, mas não é. Ela precisa de você e...
— Vou para lá agora. — Largou a bandeja que carregava em uma mesa e foi em direção à porta.
— Leslie... espere. — gritou, seguindo a mulher. — Sabe como o está? — A expressão da enfermeira mudou.
— Ivy é quem cuida dele. Agora ela é a única com permissão de tratar pessoas na área de confinamento e...
— O quê? está numa cela? — A angústia agora a sufocava.
precisava desesperadamente ver e tirá-lo de seu cativeiro.
— Já tem quase dois meses. Ele agrediu um prisioneiro. — Leslie explicava diante do olhar perdido de .
— Onde está a Ivy? — Respirou fundo, tentando clarear seus pensamentos.
Precisava de explicações.
— Eu não sei.
— Vá cuidar da Hart. Eu preciso ver o . — Antes que Leslie pudesse responder, já saiu correndo dali.
Ao alcançar o andar da área de confinamento, colocou sua mão no painel para que o sistema pudesse reconhecer suas digitais. Após diversas tentativas, a pesada porta de aço permanecia imóvel, aumentando o desespero da mulher. Esmurrou a parede frustrada, logo sentindo dores nas mãos. Deveria ser óbvio. Depois do ataque a Charlie/Jack e as desconfianças de Agnes, sua entrada ali seria proibida. Mas não aceitaria isso. Precisava ver .
Correu novamente em direção à enfermaria. Ivy ou Selina poderiam permitir sua entrada. Precisava encontrar uma das mulheres para abrir a porta e também queria explicações. Havia pedido a ambas para cuidarem de . E o fato dele estar em uma cela significava que haviam falhado na tarefa.
Ao entrar no corredor que daria na enfermaria, deu de cara com Agnes.
— O que faz aqui? Ainda teriam duas semanas em missão. — A mulher indagou com a testa franzida.
— As coisas se complicaram. Dax e Hart te passarão as informações. — respondeu, ofegante.
— Você...
— Por que o está em uma cela? — Interrompeu-a, ainda tentando controlar sua respiração.
A corrida somada a aflição tornou sua respiração pesada.
— Porque ele atacou o Charles. Ele é um perigo para os outros e para si mesmo. Precisa ficar sedado. — Agnes mantinha um tom de voz calmo, quase robótico, o que irritou ainda mais .
— Ele está sedado? O que há de errado com você? — Vociferou, segurando-se para não agredir a mulher. Sorte dela que ainda possuía um pouco de autocontrole. — Ele precisa de ajuda. Não ser trancado e...
— Esse discurso está sendo repetitivo. — Rebateu impaciente, aumentando a ira de .
— Você devia cuidar dele. — Rosnou, cerrando os punhos.
— Quem você pensa que é? — Agnes travou o maxilar, sentindo a ira inundar seu corpo.
— Alguém que se importa com o . — Berrou, sentindo o ar lhe faltar, o que levou Agnes a encará-la incrédula. — Ao contrário de você, que o abandonou e o enjaulou como um animal. Para quê? Ter mais tempo com o velho amor?
Diante da acusação com tom de deboche, Agnes reagiu. A mulher desferiu um tapa na bochecha esquerda de .
Ainda chocada com a reação, tocou o local dolorido e vermelho. Queria revidar, mas se segurou.
— Não vai se aproximar da minha família, está me ouvindo? — Gritou, apontando o indicador para , que estava um pouco desorientada.
Ela estava assustada com a reação de Agnes. Parte dela acreditava que merecera o tapa, mas o ódio ainda estava ali.
— Se chegar perto do , os guardas vão atirar.
— Vai pagar por isso. — Ameaçou, aproximando-se da mulher, que não se intimidou. — Vai pagar por tudo isso. — repetiu, antes de marchar em direção à enfermaria.
Agnes foi na direção contrária, precisava encontrar Graham e garantir que não seria uma ameaça ao bem-estar de seu filho.

Dax estava impaciente naquele quarto da enfermaria. Queria sair dali, pois tinha muito a resolver, mas precisava ser liberado por Ivy, que desapareceu havia algum tempo.
Levantou da cama, decidido a deixar o local, e se assustou quando a porta se abriu, revelando uma agitada e trêmula.
— O que houve? — Perguntou preocupado, analisando a marca na bochecha dela.
— Preciso da sua ajuda. — A mulher pediu, aproximando-se.
Dax puxou-a para sentar na cama e então esperou que ela retomasse o fôlego:
— Preciso que abra a porta da área de confinamento.
— Por quê?
— Minha entrada foi proibida, mas eu preciso ir até lá. A Agnes prendeu o . — Explicou rapidamente, quase atropelando as palavras. — Pode fazer isso por mim?
, eu não... — começou, segurando os ombros da mulher, que meneou a cabeça.
— Eu não achei a Ivy e nem a Selina. Você é a minha última esperança. — Implorou, pousando a mão sobre a de Dax. — Eu preciso ver o . Ele está preso há dois meses. Por favor. — Ela apertou a mão dele ao sentir um nó se formando em sua garganta. — Por favor. — Repetiu com a voz embargada.
— Preciso que se acalme. — Pediu, apertando os ombros dela com carinho. — Não posso abrir para você. — Ao ouvir a sentença, a respiração dela novamente se tornou pesada.
— Por que não?
— Porque... porque eu não posso me comprometer. Assim que Agnes souber que eu te ajudei, ela vai proibir minha entrada também. E aí eu não poderei fazer mais nada para te ajudar. Ou para ajudar o . — Argumentou diante do olhar suplicante da mulher.
— Preciso que me ajude agora.
— Eu não posso abrir a porta para você. — Deu um longo suspiro, antes de continuar. — Mas posso te dizer como abrir.

Novamente diante da porta da área de confinamento, respirou fundo antes de atirar no painel. Enrolou seu casaco no punho e socou o que restou do vidro. Retirou os cacos com cuidado e então, com um alicate, cortou os fios conforme a orientação de Dax. Comemorou quando a porta destravou e entrou no local.
Após a agressão de contra Charlie, tinha certeza que ele havia sido transferido de cela, mas supôs que ele ainda estava sendo mantido no setor D, pois ali ficaria mais bem protegido. O setor A e o B estavam lotados. Isso significava que devia estar no setor C, o que a revoltava ainda mais, pois ali estavam alguns criminosos perigosos.
Na entrada do setor C, foi barrada por um guarda, mas conseguiu imobilizá-lo, logo atingindo seu pescoço com uma seringa e aplicando um tranquilizante, que o derrubou imediatamente. Além de arrombar a porta da área de confinamento, ela também havia roubado a enfermaria e atacado um guarda. Muitos crimes para uma única noite.
Arrastou o guarda até um dos paneis de controle e levou a mão do homem até o local. Com suas digitais, conseguiu acesso ao mapa das celas e rapidamente identificou a cela em que vinha sendo mantido.
chegou à cela 11, mas antes que pudesse alcançar a porta, viu Mitchell surgir à sua esquerda empunhando uma arma.
— Sabia que você viria. Não consegue ficar longe. — Zombou, dando alguns passos em direção à mulher.
— Por favor, Mitchell. Eu preciso vê-lo. — Pediu, aproximando-se com as mãos erguidas e ele riu.
— Está implorando, ? — Indagou, divertindo-se com a cena.
— Sim, eu estou. Quer que eu me ajoelhe? — A mulher perguntou com uma voz embargada, enquanto o sorriso dele se alargava.
Deu mais alguns passos e a satisfação passou a iluminar o rosto do guarda.
— É... isso seria muito bom e você também poderia fazer outras coisas para tentar me convencer, como... — Mitchell começou prepotente, mas viu sua satisfação desaparecer ao ser interrompido pelo chute que acertou em sua mão, desarmando-o.
A arma foi arremessada para longe e antes que ele pudesse sequer pensar em como reagir, ela acertou-lhe um soco, quebrando seu nariz.
— Você vai abrir a porta para mim. — ordenou, segurando o homem pelo colarinho.
Seu nariz jorrava sangue, mas ela não se importava com os gemidos de dor. Ela facilmente havia virado a situação e agora Mitchell temia por sua vida.
arrastou o homem em direção à porta, mas antes que pudesse alcançá-la, ouviu um estouro. Imediatamente sentiu uma dor aguda na coxa direita que lhe tirou as forças. Ela gritou, largando o homem no chão e levou a mão ao ferimento na lateral da perna para tentar estancar o sangue.
Virou-se, encarando Graham, que estampava um sorriso macabro.
Ouviu gritos vindos da cela 11 e ainda tentou se arrastar até lá. Precisava acalmar .
— O próximo vai ser na cabeça. — Graham vociferou e a mulher parou.
— Desgraçado. — rosnou, ainda pressionando o ferimento. Sua respiração estava falha diante da dor lancinante.
— Cuidado com as palavras. — Ameaçou, ainda estampando o sorriso macabro. — Seria muito triste você morrer desse jeito. Imagina como seria para o te ouvir agonizando. Ia ferrar ainda mais a cabecinha dele...
— Seu cretino. Eu vou... — mancou em direção ao chefe da segurança, mas parou diante do cano da arma.
— Te disse para ter cuidado com as palavras. — Aproximou-se, encostando o cano da arma a testa dela.
O toque gelado da arma não a intimidou. o encarou, esperando o disparo, mas o homem se afastou.
— Mitchell! Recomponha-se. — Ordenou o guarda, que se levantou com dificuldade. — Acompanhe a senhorita Bormann até uma cela.
— Sim, senhor. — Mitchell caminhou em direção à mulher, segurando sua arma com uma mão e o nariz quebrado com outra.

Apesar dos cuidados de Ivy e os analgésicos, a dor não ia embora. encarava o teto daquela cela sentindo que ia morrer sufocada. Sufocada pela dor, preocupações, culpa e tudo mais. Sentia que o silêncio e aquelas paredes brancas a levariam à loucura em poucas horas.
Ao ouvir movimentação do lado de fora, levantou-se com dificuldade, colocando-se de pé. A porta se abriu, revelando Selina, cuja expressão demonstrava toda dor e preocupação que sentia.
A mais velha correu até a amiga, abraçando-a apertado.
— Que porra aconteceu, ? — Indagou agitada, logo se afastando para analisar a mais nova.
— Eu perdi o controle. — Admitiu, chorosa.
— O que aquele merda fez com você? — Encarou a perna da mulher.
— Eu estou bem. — Gaguejou, forçando um sorriso. — Você viu o ? Eu pedi para Ivy falar com ele, preciso saber como ele está. Ele deve ter ouvido o tiro e...
— Fica calma. — Pediu, antes de abraçar novamente. — Agora eu preciso saber como você está. Prometo que assim que sair daqui, eu vou vê-lo. — Acariciou seus cabelos carinhosamente.
— Eu estou bem. — Repetiu impaciente, separando o abraço.
— Como pôde ser tão estúpida? — Apertou os ombros de , que suspirou. — Devia ter me esperado.
— Eu não podia. Eu precisava ver ele. — Sua voz estava embargada e fraca. — Você me prometeu que ia cuidar dele. — Murmurou ressentida. — Ele precisava de ajuda. Por que não cuidou?
— Eu tentei. Eu realmente tentei. — Suspirou, sentindo a culpa esmagar seu peito. — Ele que pediu para ser encarcerado. Disse que não confiava em si mesmo. Que tinha medo do que era capaz de fazer. Não consegui convencê-lo. E aí, a Agnes e o Graham apoiaram essa decisão e não havia o que eu pudesse fazer...
— Você devia ter impedido. Você... você... — a dor aumentou e precisou se apoiar a cama.
— Me perdoe por ter falhado com você. — Pediu diante do desapontamento estampado no olhar de .
— Precisa cuidar dele. Você tem que cumprir essa promessa. Você precisa...
— Não vou mais falhar.
— Tá tudo tão ferrado. — soltou um gemido ao sentar na cama com dificuldade. — Selina, eu... eu vi o meu pai.
— O quê? — Selina sentou ao lado da amiga e tocou suas costas. Sabia o quão difícil seria o reencontro com Hugo Bormann.
— Quando encontramos o Charles e aquela instalação entrou em modo de segurança, alertas foram enviados para a secretaria de segurança. Meu pai me viu nas filmagens e começou a me rastrear... ele estava me esperando. — passou a estalar os dedos angustiada, sentindo as memórias a atingindo.
— E como foi... reencontrar ele depois de tanto tempo? — Indagou, preocupada.
— Ainda pior do que imaginei que seria. Eu estava aterrorizada. Ele disse que me quer de volta. E também quer o Charles. — Sua respiração estava rápida e ofegante.
A aflição a sufocava.
— E ele deixou você voltar sem te seguir? Procurou por rastreadores?
— Sim. Me livrei deles e do caminhão. — Deu um longo suspiro, antes de continuar. — Eu tive uma crise na frente dele. Ele sabe que estou infectada. Ele até me ofereceu uma cura em troca do Charles. — Seus lábios formaram um sorriso amargo.
— Você acha que...
— Não. Não é real. Nem crie esperanças. — Sentiu a mão de Selina sobre seu ombro e deixou as lágrimas finalmente rolarem. — A Penny já sabe de tudo e contar os detalhes para ela foi uma das coisas mais difíceis que já fiz. — Limpou o rosto, mas logo sentiu mais lágrimas molhando sua bochecha. — Ela vai precisar de você para lidar com tudo isso.
— Eu sei. Vou cuidar dela.
— Meu pai não foi a única pessoa que eu reencontrei. — Selina arqueou a sobrancelha. — Nate também estava lá.
— O seu Nate? O segurança? — Viu assentir.
— Ele me beijou. — Encarou as próprias mãos, um pouco envergonhada.
— E como foi?
— Confuso. Tem essa parte de mim que sentiu falta dele, apesar de tudo que aconteceu. Mas... tem uma outra parte que... — escondeu o rosto entre as mãos por um instante, finalmente admitindo para si mesma o que sentia.
— Quê?
— Que ama o . Eu o amo, Selina. — Finalmente encarou a amiga.
Admitir aquilo em voz alta trazia alívio e dor ao mesmo tempo.
— E eu preferia não ter percebido, porque isso torna tudo mais difícil. — Sentiu a voz falhar.
— Você devia falar a verdade para ele. — Repetiu mais uma vez aquele conselho.
Perdeu a conta de quantas vezes havia dito aquilo à .
— Não posso. Eu não posso machucá-lo ainda mais.
— Acredite em mim. Ele precisa saber. Vocês têm que aproveitar cada momento juntos.
abriu a boca para interrompê-la, mas Selina a impediu.
— Você deve dar a ele a oportunidade de se despedir propriamente. Ele ia querer isso. É difícil, mas é a melhor opção. Sabe... os últimos dias que passei com meu marido e meu filho... eu não trocaria por nada. Vi eles sucumbirem a esse maldito vírus. Vi todo o sofrimento que ele causou. Mas se pudesse voltar no tempo e reviver tudo aquilo, eu o faria. Mesmo na dor, mesmo nos piores momentos, eu escolheria estar com eles. — As lágrimas molharam o rosto de Selina.
— Eu odeio o fato de você ter que reviver o sofrimento causado por esse vírus. — Apertou a mão da amiga carinhosamente. — Mas as coisas entre mim e o ... são diferentes, nós nem somos mais amigos. Ele me odeia. — se abraçou, sentindo um nó se formar em sua garganta. — E é melhor assim, facilita as coisas. Não importa o quanto eu queira que tudo seja diferente. É assim que as coisas são. — Deu um longo suspiro e fechou os olhos, sentindo uma lágrima rolar. — Eu não vou ter nenhum beijo de despedida. As pontas dos meus dedos não vão passear pela pele dele. Não vou sentir os braços dele me envolvendo. — A dor em sua voz era quase palpável. — Eu não posso ter isso, eu não posso tê-lo. — Permaneceu de olhos fechados.
Às vezes fantasiava sobre uma realidade onde não estava infectada. Uma realidade onde não tinha uma sentença de morte sobre sua cabeça.
— Eu... eu... eu só queria ter mais tempo. — Disse em sussurro, sentindo a dor em seu peito se tornar ainda mais insuportável que a dor do ferimento.
— Se eu pudesse, trocaria de lugar com você.
— Não fala isso. — Pediu com a voz falha.
— Eu perdi toda a minha família e agora vou perder você. Eu não vou conseguir lidar com isso. — Envolveu o rosto dela entre as mãos.
Selina estava devastada. Não podia suportar a ideia de perder . Não depois de tudo que já havia enfrentado.
— É lógico que vai. E vai cuidar da Penny e do por mim. — Abraçou a amiga, mas antes que pudesse dizer mais alguma coisa, viu a porta se abrir repentinamente.
Viu Ivy entrar na cela e separou o abraço, virando-se para a médica, exasperada.
— Como o está? — Passou a mão pelos cabelos, preocupada.
— Mais calmo agora. Ele realmente havia escutado tudo. Estava muito preocupado com você. Precisei sedá-lo.
— Agora essa é a solução para todos os problemas. Sedar ele? — Rosnou, levantando-se com dificuldade.
— Já conversamos sobre isso, . Eu sei que está brava comigo, mas temos problemas maiores.
— Maiores que você descumprindo promessas? — Rebateu ácida e Ivy bufou.
... — Selina foi até a amiga, tocando seu ombro.
— Precisamos te tirar daqui. Não podemos correr o risco de você morrer na casamata. Os riscos de infectar todo mundo são gigantescos. — Ivy explicou e viu suspirar.
— Eu sei. — Esfregou a testa e fechou os olhos, sentindo mais lágrimas rolarem. — Assim que a carga viral aumentar demais, não vai ser só meu sangue que vai transmitir o vírus.
— E considerando o tipo de ambiente que é a casamata, a infecção vai se espalhar muito rápido. Acho que a melhor opção é contar para a Agnes.
— Não. — resmungou, meneando a cabeça.
— Ela vai deixar a gente te tirar daqui. — Selina apoiou a ideia.
— Ela pode expulsar vocês duas por terem mentido para ela, colocando todo mundo em risco mantendo uma doente aqui. — passou a estalar os dedos, nervosa com essa possibilidade. — Eu não quero isso.
— Eu não me importo. — Selina retrucou.
— Mas eu sim. Tem muita gente aqui que precisa de você.
— Ok. — Ivy concordou. — Mas então precisamos de um plano. — Virou-se para Selina.
— Nós vamos tirar a daqui. E Dax vai nos ajudar nisso.
assentiu e virou para Selina, tocando seu braço.
— Depois que eu me for.... — apertou os lábios ao sentir uma pontada no peito. Aquilo tudo era doloroso demais. — Preciso que você pegue a caixinha que está no meu esconderijo no banheiro. Deixei instruções para o que fazer com o conteúdo dela.
— Não se preocupe. Vou cuidar de tudo. — Selina novamente envolveu a amiga em um abraço.



Capítulo XIII.
In these violent days, I only wanna be where you are.

Estar naquela cela fazia as horas parecerem dias. Cada minuto ali aumentava a angústia e a dor, e não podia fazer nada além de esperar o resgate prometido por Selina.
Dormir não parecia ser uma opção, havia muita coisa rondando sua cabeça. Perdeu a noção do tempo deitada naquela cama dura, encarando uma rachadura no teto branco da cela.
Seus devaneios foram interrompidos, quando todas as luzes se apagaram de repente. levantou da cama e mancou em direção à porta. Pouco antes de alcançá-la, ouviu um barulho alto e ela se abriu. O susto logo deu lugar a comemoração. Finalmente sairia dali.
Ao deixar o local, deparou-se com todas as celas do corredor abertas. A única iluminação vinha de lâmpadas de emergência, que emitiam luzes fracas e bruxuleantes.
Mancou em direção à saída e após poucos passos, paralisou com o som de tiros e gritos. Assustada, jogou-se na parede, sentindo o coração acelerar diante da incerteza. Arrastou-se cuidadosamente, tentando não fazer barulho, enquanto analisava o local de onde ouvira os tiros.
Ao longe, viu três prisioneiros mortos e um guarda armado, visivelmente desesperado dando passos lentos na direção do corredor onde ela estava. Ele deu poucos passos, antes de um homem de quase dois metros de altura surgir atrás dele. conhecia aquele criminoso.
Robert Knox por muito tempo pareceu um responsável membro da casamata, isso até assassinar a esposa e mais cinco vizinhos que tentaram intervir na agressão. Knox facilmente subjugou o guarda e após alguns violentos socos, ergueu a cabeça do homem, quebrando seu pescoço.
conteve um grito e se arrastou para a direção contrária. Ouvia gritos e sons de luta. Aparentemente, todas as celas haviam sido abertas. Não acreditava que Selina havia sido tão imprudente em libertar todos os presos. Todos os guardas do setor seriam eliminados facilmente por aquele grupo de criminosos.
Imediatamente se preocupou com , que também estava no setor, provavelmente sedado. Passou a caminhar mais rápido, o que aumentou a dor e fez o ferimento sangrar. Antes que pudesse alcançar o corredor da cela de , ouviu passos se aproximando. Ao virar, deparou-se com Jordan Martinez caminhando em sua direção.
— Eu vou te matar e depois vou matar o . — Vociferou com o maxilar travado. — Estou apodrecendo aqui por culpa de vocês.
— Você que invadiu a enfermaria para matá-lo. — Deu alguns passos para trás, ofegante.
— Você fala como se ele fosse inocente. — Retrucou, cerrando os punhos. — Ele machucou a minha irmã.
— Ele não quis assustá-la. — analisava suas opções e claramente correr não era uma delas. Lutar também seria difícil com a perna machucada. Resolveu tentar acalmá-lo. — Naquela hora ele estava revivendo a tortura. Ele olhou para sua irmã e viu um torturador. — Sua voz estava trêmula diante da proximidade dele. Não conseguia passar a calma que julgava necessária.
— Ele a machucou. E agora eu vou machucar você. — Rosnou, antes de desferir um soco que derrubou .
Encarou a mulher no chão com um sorriso e ao notar a mancha de sangue na lateral da coxa dela, chutou o local, fazendo-a gritar. Ela ainda tentou se arrastar para longe, mas ele novamente a acertou.
Martinez se ajoelhou sobre a mulher, que tentou lutar inutilmente. Ele levou as mãos ao pescoço dela, aumentando seu desespero. tentava afastá-lo, mas a dor somada a falta de ar a enfraqueciam. Seu rosto estava vermelho e os olhos esbugalhados. Braços e pernas continuavam lutando, enquanto ela emitia um som agonizante buscando ar e tentando se livrar de uma morte por asfixia.
Quando sentiu que a morte já era certa e não conseguia mais mover pés ou braços, escutou um barulho metálico e viu seu algoz cair para o lado. Ela tossiu desesperadamente. Ainda ouviu o barulho de impacto algumas vezes, mas estava ofegante e a dor a impedia de se mover.
Com a visão sem foco, notou alguém se aproximar e ajoelhar ao seu lado.
... você está bem? — reconheceu a voz e logo conseguiu discernir a figura de cabelos que a encarava.
tocou seu rosto e a ajudou a sentar. Ainda ofegante, ela apenas assentiu e o observou. Ele estava quase tão trêmulo quanto ela.
— Não posso te perder. — Ele acariciou seu rosto e a abraçou apertado por alguns segundos. — Precisamos sair daqui.
Ela o segurou pelos ombros para se colocar de pé, mas logo sentiu as mãos dele envolvendo suas costas e pernas, erguendo-a no colo.
— Precisamos ir para a sala de vigilância. — Murmurou com dificuldade, recostando a cabeça no ombro dele.
— Certo. Precisamos descobrir o que aconteceu.
Sentindo-se mais segura nos braços de , foi carregada até a entrada da sala de vigilância.
— Como vamos abrir a porta?
— Precisamos de algo para quebrar o painel.
Com cuidado, colocou no chão e buscou um extintor de incêndio que estava em um dos corredores que haviam acabado de cruzar. Assim que o painel foi quebrado, repetiu o processo que aprendeu com Dax e entraram na sala.
Ao encararem os monitores, ficaram aterrorizados com o banho de sangue acontecendo nos corredores. Não havia mais nenhum guarda vivo e alguns criminosos lutavam entre si. Perto da saída do setor, um grupo tentava arrombar a porta inutilmente. A segurança havia reforçado ainda mais as saídas após a invasão de .
— Tire a calça. — ordenou e se virou com uma expressão que ia de confusão à descrença. — Você está sangrando. Preciso dar uma olhada no ferimento.
Ela então baixou as calças e sentou na cadeira perto dos monitores, enquanto vasculhava a sala atrás de um kit de primeiros socorros. encarou os curativos encharcados de sangue. O ferimento parecia pulsar.
se ajoelhou com o kit em mãos.
— Use as luvas. — Ordenou, preocupada.
assentiu, colocando as luvas e então retirou os curativos e começou a limpeza da área.
— Desculpe. — Ele murmurou, após um gemido dela.
Enquanto estava concentrado na tarefa, o analisava. Após tanto tempo separados, finalmente estavam de volta aos antigos hábitos: cuidar um do outro.
— Por que os reforços não estão vindo? — Indagou, tirando a mulher de seus devaneios.
então voltou a atenção para os controles à sua frente.
— Os alarmes de segurança foram desativados. E eu não estou conseguindo ativá-los. — Esmurrou a mesa e sentiu a mente girar diante da imagem de um homem sendo decapitado. — Selina não faria isso. Ela não arriscaria a vida de todo mundo. — Resmungou com o olhar perdido.
— Do que está falando? — Indagou, finalizando o curativo.
então levantou, vestindo novamente as calças.
— Inicialmente eu achei que ela era a responsável por tudo isso... para me tirar daqui. Mas ela não faria isso. — Apontou para a tela, onde um homem arremessava uma cabeça na porta.
— Acha que só está acontecendo aqui? — Questionou preocupado, retirando as luvas.
buscou imagens dos outros setores e o horror estava presente em todos eles.
— Não... — sua respiração ficou pesada e logo sentiu tocando sua mão. — Precisamos parar isso.
— Como?
— Gás do sono. — Sugeriu tão logo a ideia cruzou sua mente. — Deve ter aqui. — Voltou o seu olhar para uma das portas na parede oposta. — Podemos jogar no sistema de ventilação. Bom... você pode jogar. — passou as mãos debaixo da mesa a procura de uma arma que logo foi encontrada.
Entregou para , que disparou dois tiros no painel da sala de armas. Ele a ajudou a chegar à porta e novamente ela conseguiu ser bem-sucedida desativando as trancas. Entraram na sala cheia de prateleiras com armas de diferentes tamanhos, além de tranquilizadores, granadas e bombas de gás do sono.
vasculhou por comunicadores, mas não encontrou.
— Ok. Vou resolver isso. — afirmou, enchendo uma mochila de bombas de gás do sono, algumas armas e munição.
— A entrada mais próxima está no corredor cinco. — entregou uma máscara para , que assentiu.
— Ok.
— Você precisa ser rápido. Não vamos poder nos comunicar. Eu só vou poder te observar pelos monitores. — Alertou-o, preocupada. Não poderia fazer nada para ajudá-lo.
— Não se preocupe. Vai dar certo. — Ele virou para ir em direção à porta, mas foi impedido por segurando seu braço.
— Tome cuidado. — Ela pediu com um olhar terno.
passou a analisá-la. Ela carregava uma expressão preocupada e a dor estava presente em seus olhos. O pescoço ainda tinha as marcas vermelhas feitas pelas mãos de Martinez. Também tinha muitas cicatrizes que revelavam parte do sofrimento que já havia enfrentado. E mesmo com tudo isso, ela ainda era a mulher mais bonita que ele já viu.
Delineou a cicatriz na bochecha dela e logo ela ergueu a mão direita, acariciando a cicatriz presente no canto da boca dele. se aproximou com delicadeza, juntando os lábios aos dela por alguns segundos. Afastou-se por milímetros, antes dela puxar seu rosto aprofundando o beijo.
— Prometo que vai dar certo. — Separou o beijo e encostou a testa à dela por um momento, e então foi em direção à porta.
Assim que deixou a sala, voltou sua atenção para os monitores. Com o coração acelerado, observou-o caminhar pelos corredores e entrar no duto de ar. Os minutos que se passaram foram uma tortura. Não tinha visão dele. Tinha apenas que esperar.
Após incontáveis minutos encarando os monitores, finalmente viu os criminosos caindo desacordados. Suspirou aliviada ao ver saindo do duto. Esperou por ele na porta e o recebeu envolvendo sua cintura em um abraço. Ele estava coberto de poeira.
— Te disse que ia dar certo. — Falou após retirar a máscara e largar a mochila no chão.
— Ainda precisamos descobrir o que aconteceu. — separou o abraço, agitada, e foi até os monitores.
Analisou imagens dos momentos antes das portas se abrirem em todos os setores. Mas foram as imagens do setor D que a deixaram em choque. Viu uma figura conhecida atirar em um guarda e entrar na sala de segurança.
— O que o Dax está fazendo ali? — indagou, surpreso.
— Merda! — berrou ao ver Dax sair da sala para matar outro segurança. Em seguida, viu-o buscar Charles e então levá-lo até a sala de segurança.
Poucos minutos após a entrada de Dax e Charles na sala, as luzes se apagaram e as portas se abriram.
— Não pode ser verdade.
— Ele está levando o Charles para o meu pai. — afirmou, ainda digerindo as imagens que havia acabado de assistir.
— Seu pai? — Os olhos de se arregalaram e tocou o rosto de para que ela pudesse encará-lo.
Precisava de respostas.
— Longa história. — Suspirou, voltando a atenção aos monitores.
— Que você precisa me contar.
— Eu vou te contar tudo. Assim que resolvermos isso. — Começou a estalar os dedos, sentindo-se desorientada.
... Dax não nos trairia assim. — Ponderou, massageando a nuca e viu repetir a cena de Dax atirando friamente na cabeça de um dos guardas.
— Meu pai deve ter oferecido algo irrecusável. — Argumentou, levantando-se da cadeira com dificuldade. — Preciso encontrá-los. — Pegou a arma da cintura de e atirou no painel da porta, que dava para saída do setor.
juntou algumas coisas que julgou necessárias e jogou na mochila. Assim que a porta foi aberta, ele tentou pegá-la no colo novamente, mas foi impedido.
— Consigo andar. — Ela então o sentiu segurando sua cintura, apoiando-a, enquanto caminhavam pelo longo corredor.
Alcançaram o elevador e foram em direção a garagem, passando por corredores ainda mais frios. Ao chegarem na garagem, selou as portas e através de um dos dispositivos de comunicação na parede, contou toda a situação para Selina.
— Cuide do problema no confinamento, eu vou atrás do Dax. — Ordenou e ouviu Selina discordar. — Preciso fazer isso. — Deu um longo suspiro, antes de continuar. — Se cuide, Selina. — Sua voz falhou na última sentença.
Aquilo era um “adeus” e ambas sabiam disso. Havia muito que ainda queria falar, mas não podia se prolongar diante da presença de .
Assim que se afastou do comunicador, deparou-se com o homem a encarando de braços cruzados.
— Você não vai sozinha. — afirmou, aproximando-se e segurando os ombros dela.
abriu a boca para discordar, mas ele continuou
— Você levou um tiro.
— Eu sei me cuidar, vou ficar bem. — Resmungou, afastando-se do toque dele.
— Está louca, se acha que vou te deixar ir sozinha.
, eu não preciso de babá! — Revirou os olhos e foi em direção aos monitores de vigilância.
— Eu vou. Com ou sem você. Então podemos ir em carros separados ou juntos. — Ele novamente se aproximou e ela sentiu a cabeça latejar. — Você decide.
não respondeu. Não via saída para aquela situação. Ele não ia ceder, ela sabia disso. Se ao menos ela tivesse um sedativo para derrubá-lo. Mas não era o caso. Ela apenas precisava pensar em um jeito de fazer voltar sozinho para casamata com Dax e Charles.
Ainda pensativa, voltou a atenção para um dos monitores e logo estava ao seu lado. No vídeo, viram Dax chegando na garagem com Charles. O homem parecia ainda mais confuso sob o cano da arma de Dax e assim que entrou no carro, foi atingido por uma seringa que devia conter algum tipo de sedativo.
Poucos minutos depois, Dax os guiou para fora da garagem.
digitou no painel a placa do veículo e logo a localização surgiu no monitor.
— Dax estava tão apressado, que nem lembrou de se livrar do rastreador. — murmurou, concentrada e em seguida pulou, assustando-se com o som de tiros.
Ao virar, viu com um sorriso satisfeito diante do armário de chaves abertos. pegou um dispositivo de rastreamento e seguiu até um caminhão.
— Precisamos de um carro mais veloz.
— Não sabemos onde é o ponto de encontro. Precisamos de um veículo para trazer o Charles escondido.
— Está certo. — Assentiu, aproximando-se. — Agora me dê as chaves. — Estendeu a mão diante das sobrancelhas arqueadas de — Eu vou dirigir.
— Você levou um tiro. — Repetiu pausadamente a frase dita minutos antes e entrou no caminhão.
mancou em direção ao lado do carona, bufando.

dividia seu olhar entre a tela do rastreador em seu colo e o céu estrelado pensando em como se livraria daquela situação. Precisava garantir que voltaria com Dax e Charles à casamata a salvo. E assim ela poderia seguir seu caminho em direção a morte certa. Mas apesar de muita reflexão, ela ainda não havia conseguido definir como fazer isso. Concentrar-se estava bem difícil. Havia muita coisa rondando seus pensamentos.
Sua mente ficou algum tempo divagando sobre a possibilidade de Dax ser o responsável por deixar sozinho com Charles, o que levou ao espancamento e quase morte do grande amor de Agnes. Mas isso não fazia sentido. Por que Dax ia querer a morte do homem? Era mais provável que ele tivesse sido tentado por alguma oferta feita por Bormann. Aliás, Bormann era apenas mais uma das preocupações.
sentia que a cada dia sua vida se tornava pior e mais confusa. Os últimos meses haviam sido muito turbulentos e as últimas semanas mais ainda. O encontro com Bormann e Nate, a morte de Fisher, em uma cela, sua invasão impensada e o tiro que isso resultou, a traição de Dax, o beijo... e agora ela estava ali. Ao lado de , enquanto ele os guiava em silêncio no meio da noite vigiados por árvores e estrelas.
O silêncio que costumava ser aconchegante agora era incômodo. Havia muita coisa não dita, omissões, segredos e mentiras que aumentavam o caos no qual ela se afogava. Perturbada com tudo aquilo, se moveu no banco, ação que gerou um gemido.
— Você está bem? — lançou um olhar preocupado.
— Sim. — Murmurou, observando-o.
Seu olhar o analisou por algum tempo. Estava mais magro e a barba por fazer e o cabelo sem corte deixavam seu visual desleixado. Notou as mãos machucadas dele apertando o volante e suspirou. O peso da culpa mais uma vez a atingia.
— E você?
— Estou ótimo. — Os olhos dele se mantiveram na estrada, mas sentia que ela ainda o observava.
— Me desculpe. Eu devia estar com você e...
— Não é seu trabalho cuidar de mim. Acho que já esclarecemos isso. — A sentença a atingiu como um soco no estômago.
— Não. — Ela deu um longo suspiro, antes de continuar. — E também não é um fardo. Aquilo que eu disse... só... esquece. — Os dedos dela instintivamente foram até os cabelos dele, ajeitando-os em um carinho simples. — Não é como eu me sinto e...
— Eu sei. — Interrompeu-a, lançando um sorriso de lado. — Não teria levado um tiro invadindo a área de confinamento para me ver se eu fosse apenas um fardo para você.
— Quem...
— Ivy. — Respondeu diante do olhar surpreso dela.
— Ela não devia ter te contado. — resmungou, cruzando os braços.
— Ela só me contou tudo, porque fui muito insistente, mas... — ele apertou os lábios por um instante. — Não poderia manter isso em segredo. Eu ouvi o tiro. Ouvi seu grito e parte da conversa. A Ivy só preencheu algumas lacunas. — Ele engoliu seco, lembrando da dor e desespero que sentiu naquele momento. — Sabe... — tamborilou os dedos no volante, um pouco ansioso. — Você consegue me deixar muito confuso. Você me afasta, mas toma um tiro por mim. Me afasta, mas me beija de volta. Eu sinceramente não consigo te entender. — Confessou, coçando a nuca. — Acho que nem você consegue se entender. — Diante daquelas palavras, ela desviou o olhar e encarou a tela do rastreador.
...
— Está tudo bem. Você é a pessoa mais importante da minha vida e eu vou esperar você organizar tudo aí. — Apontou para a testa dela.
sentiu seu coração despedaçar. tinha esperança de um futuro juntos. Mesmo sem querer, ela alimentava as esperanças dele. Seria muito pior quando ele descobrisse que aqueles eram possivelmente os últimos momentos juntos.
Ela respirou fundo, tentando não pensar nisso. A vontade de chorar havia voltado e ela não podia desabar na frente dele.
— Eu...
— Não precisamos falar disso agora. Me conta do Bormann. Como tem tanta certeza que o Dax está levando o Charlie para ele?
não queria debater seus sentimentos, não queria chorar, não queria contar mais mentiras, então preferiu dar continuidade ao novo assunto. Além disso, ela precisava contar tudo para ele.
Antes de toda aquela confusão envolvendo beijos e sentimentos, ele seria a pessoa que ela procuraria para a ajudar a lidar com todos os problemas envolvendo Hugo Bormann.
— Eu o encontrei. Bom... na verdade, ele me encontrou.
parou o caminhão, abalado com aquela revelação. se abraçou por um momento, encarando estrelas que começavam a ser encobertas por nuvens, enquanto as memórias bombardeavam sua mente.
Respirou fundo, antes de contar tudo para ele — na verdade, quase tudo. Contou da conversa e como se sentiu. Contou da morte de Fisher e do estado em que Penny, Hart e Owen ficaram. Omitiu duas coisas: o reencontro com Nate e a crise na frente do pai.
— Eu devia estar lá. — afirmou, assim que ela terminou o relato.
— Sinto muito pelo Fisher. Eu sei o quanto eram próximos. — Sussurrou, encarando as próprias mãos.
— Eu devia estar lá. — Repetiu, envolvendo as mãos dela. — Sei que possivelmente isso não ia fazer diferença nenhuma, mas eu queria estar lá. Sinto muito que você teve que encarar o Bormann sozinha.
— Hart me perguntou por que eu não o matei e eu menti. — Falou, ainda sem encará-lo. Estava envergonhada. — Eu estava com ele, cara a cara, e não consegui matá-lo.
— O que te impediu? — Ele tocou o rosto dela, fazendo ela finalmente encará-lo.
— Eu senti que se fizesse isso perderia o que me mantem sã. Senti que perderia minha humanidade. — Confessou com a voz falha, sentindo uma lágrima rolar.
— Está tudo bem. Ele é seu pai. — Limpou o rosto dela e viu ela se afastar um pouco.
— Isso não devia importar. Você, mais do que ninguém, quer ver ele morto. Ele estuprou e torturou a sua mãe. Ele... — ela falava rápido, com a voz embargada, passando as mãos pelos cabelos, inquieta.
. — Chamou, tocando o braço dela e então levou a mão até o pescoço dela, acariciando sua bochecha com o polegar. — Se a morte dele significaria você ter sua alma torturada, então não vale a pena.
— Mas, ...
— Vingança não é a prioridade na minha vida. Você é. — se aproximou mais e tocou a testa à dela.
Os dois fecharam os olhos e passaram a respirar fundo. Ficaram naquela posição por algum tempo, suas respirações sincronizadas e acolhidos por um conforto que não encontravam em nenhum outro lugar.
— Precisamos ir. Encontrar o Dax é a prioridade agora. — sussurrou, afastando-se devagar.
assentiu e voltaram ao seu trajeto.
Voltaram ao silêncio. Mas, dessa vez, ele era mais acolhedor.
decidiu ligar o rádio. Queria se distrair. Quando a introdução de Losing My Religion foi ouvida, abriu um largo sorriso. Era uma de suas músicas preferidas. Ele começou a cantar e interpretar com forçada emoção, como se estivesse em um videoclipe, o que gerou risadas da parte de .
— Vamos lá, . Você sabe o refrão. — Ele murmurou, antes de voltar à sua performance e então ela o acompanhou.
Ficaram rindo e cantarolando mais algumas músicas antigas por algum tempo. Um bipe irritante os interrompeu.
— Merda! — berrou, quando a tela do rastreador se apagou.
a encarou, preocupado.
— O que foi?
— Está descarregado. — Bufou, querendo jogar o aparelho pela janela.
— É só colocar para carregar.
— Eu esqueci o cabo. — Resmungou, irritada.
— Merda. — Foi a vez de berrar, parando o caminhão.
buscou na mochila uma lanterna e no porta luvas um mapa. Analisou o trajeto de Dax, tentando localizar onde seria o local de encontro para a entrega de Charles.
— Dax deve estar indo para esse antigo posto de observação. — apontou o local no mapa e viu concordar.

As horas passaram e o céu antes estrelado agora dava lugar a carregadas nuvens. Uma chuva se tornou a companhia pelo resto do trajeto. O clima aumentou a preocupação do casal, que agora tinha que dirigir com mais cautela devido a visibilidade limitada.
Antes que pudessem alcançar o antigo posto de observação, depararam-se com o carro de Dax parado no meio do asfalto.
— Eu vou ver o que houve. Você me espera aqui. — ordenou, mas já havia pegado uma arma e se preparava para descer.
— Você não vai até lá sem cobertura.
!
! — Imitou o tom de voz dele. — Eu te dou cobertura. — Insistiu e ele assentiu.
Desceram do caminhão e logo ficaram encharcados debaixo da forte chuva.
Munido de arma e lanterna, se aproximou do carro vazio. mancou até lá e ambos analisaram o local. Parecia que Dax e Charles haviam simplesmente decidido parar e largaram o veículo, mas isso não fazia sentido.
inclinou o tronco para checar as rodas e sentiu uma picada na nuca. Levou a mão ao local e retirou o dardo que estava ali. Ela encarou o objeto sentindo a mente embaralhar, caindo desacordada segundos depois.



Capítulo XIV.
You're all that I have, so, please, don't die.

CENA COM GATILHO - AMEAÇAS E TORTURA.
As falas estarão entre "***", pule-as em caso de desconforto.

acordou tremendo de frio. Seu rosto estava grudado ao chão gelado e sujo do baú do caminhão, e suas roupas completamente encharcadas. Ao se mover, percebeu que tinha as mãos algemadas e isso gerou desconforto e desespero. Tentou se mexer novamente e sentiu uma dor aguda vinda do ferimento na coxa.
Encarou o local ensanguentado e sentiu a respiração ficar pesada. Travou o maxilar devido a dor e o frio, e arquejando, esforçou-se para levantar. A dor e as mãos presas nas costas atrapalharam a primeira tentativa, mas teve sucesso na segunda.
Sentada no chão gelado, com os cabelos molhados grudados no rosto, ela virou atordoada, procurando por . Viu que ele acabara de se sentar e com dificuldade, aproximou-se dela.
... você está bem? — ele estava ofegante e tinha um hematoma na testa.
— O que aconteceu? — Encarou o hematoma e o olhar dele se tornou confuso.
— Eu não sei ao certo. Mas minha cabeça dói muito. — Franziu o cenho, esforçando-se para lembrar como haviam chegado àquela situação. — Vem. Você está congelando. — Ele sentou, recostado à lateral do baú, e ela o seguiu.
Assim que estavam lado a lado, aproximou o corpo do dela numa tentativa de aquecê-la. Seu corpo inteiro tremia.
— Como está sua perna?
— Estou bem. Não se preocupe. — Lançou um olhar para o ferimento e se aproximou mais dele, recostando a cabeça em seu peito.
— É uma péssima mentirosa.
Ela deu um sorriso amargo. Guardava tantos segredos dele, que mentir era automático.
— Acha que são os homens do Bormann?
— Eu não sei. Talvez. Mas... — suspirou, sentindo o coração dele acelerar diante da incerteza.
— O que foi? — Indagou, preocupado.
— Não acho que me tratariam assim, eu... — foi interrompida por uma freada brusca.
Os dois se desequilibraram e ela não conseguiu conter um gemido alto ao tombar para o lado. Enquanto o resto de seu corpo estava congelando, o ferimento parecia queimar.
Do baú, ouviram gritos e tiros, e apreensivos, aproximaram-se novamente. Ficaram encarando a porta, antecipando a próxima ação de seus raptores. Logo ela se abriu, revelando um homem com uma bem cuidada barba ruiva e uma tatuagem de crânio no pescoço.
— Vocês dois estão bem? — O ruivo perguntou abrindo um largo sorriso, revelando três dentes de ouro.
projetou o corpo para o lado, colocando-se na frente de .
— Um idiota quase nos acertou, mas não se preocupem, meu parceiro já cuidou disso. Ele também é um péssimo motorista, mas não tem paciência para idiotas no trânsito. — O homem riu debochadamente. — Vocês vão chegar inteiros no palacete. Prometo. — Analisou o casal assustado e seus lábios formaram um largo sorriso. — Mas não garanto como ficarão depois. Bishop espera ansiosamente por novos convidados. — Finalizou, fechando a porta, deixando e no silêncio.
O coração de ambos disparou. Sabiam o que aquilo significava. ficou paralisado, preso entre lembranças vívidas dos momentos que passou sendo torturado.
— Ei! Você não está sozinho. Eu estou aqui. — sussurrou para , tentando conter a angústia na voz.
— Isso não torna as coisas melhores. Pelo contrário. Esse é meu pior pesadelo se tornando realidade. Você... nas mãos dele... — os lábios dele tremiam e sua respiração estava superficial e rápida. A agonia esmagava seu peito.
— Nós vamos ficar bem. — Aproximou o rosto do dele, buscando seus olhos e se esforçando para não chorar. — Olha para mim. — Pediu docemente. — Nós vamos ficar bem.
Diante do olhar terno de , algo dentro dele mudou. Ele precisava ser mais forte que tudo aquilo. Por ela.
— Você vai sobreviver, vou me certificar disso. — Prometeu, tocando a testa a dela.
se afastou, abalada. Podia ver nos olhos dele que ele estava disposto a fazer tudo para mantê-la a salvo.
, eu preciso que você me prometa que não vai arriscar sua vida tentando me proteger. — Suplicou com a voz embargada.
Naquele momento, considerou contar tudo para ele. Talvez se ele soubesse que ela tinha poucos dias de vida, ele daria um jeito de sobreviver e fugir sem se preocupar com ela. Mas tão logo o pensamento cruzou sua mente, ela se deu conta que as coisas não seriam assim. Mesmo se soubesse de tudo, ele não a abandonaria.
— Não posso prometer isso. — Meneou a cabeça, umedecendo os lábios.
— Você precisa... — a voz dela falhou.
Ele a encarou por alguns segundos, vendo naqueles traços conhecidos, aquela mulher tão forte que era uma grande parte de sua vida. Então, suspirou, antes de responder:
— Não posso.
então fechou os olhos, angustiada. Palavras não iriam convencê-lo. Nem mesmo a verdade o faria mudar de ideia.
— Não pode me pedir isso. Você é a prioridade, lembra? — depositou um demorado beijo na testa da mulher.
Ela abriu os olhos e se inclinou, colando a bochecha a dele.
— Promete que vai sobreviver? — Ela pediu, sentindo uma lágrima rolar.
— Nós dois vamos. — juntou novamente as testas e ao encarar , seus lábios formaram um pequeno sorriso.
Ele sabia que coisas ruins os esperavam do lado de fora daquele baú. Mas ali, naquele momento, o medo perdeu sua força. Havia algo maior, um laço que o fazia se sentir invencível.
— Eu queria poder parar o tempo. Esse momento com você...
— Estamos molhados, congelando e algemados. — Comentou rindo, sem se mover.
Detalhes... — Ambos abriram largos sorrisos, mas estes desapareceram quando voltaram a se encarar.
roçou o nariz ao dela carinhosamente, sentindo o interior se aquecer ao vê-la suspirar. Queria muito que suas mãos estivessem livres para abraçá-la e então levá-la para bem longe dali. Sua atenção se voltou para a bochecha dela, colou o nariz ali e aspirou, sentindo seu cheiro, queria memorizar cada pedaço dela. Seus lábios depositaram um beijo no local e então traçou uma trilha de beijos até encontrar os lábios dela.
Naquele momento, talvez apenas por segundos, esqueceu de tudo, do frio, da dor, do futuro e apenas se concentrou em , retribuindo e aprofundando o beijo, expressando naquele gesto o que não poderia expressar em palavras. Mas o momento durou pouco. Logo o caminhão parou e eles se afastaram.
— Não tente me salvar. — Ela ordenou com a respiração descompassada.
nem teve tempo de responder. A porta do baú foi aberta em um estrondo e dois homens entraram no local. O ruivo tatuado puxou pelo braço, arrastando-a para fora e ela se esforçou para conter as expressões de dor pela perna machucada. Ela não gritou e seu olhar implorava para que não reagisse.
Estavam em um local isolado. Havia apenas vegetação rasteira, algumas poucas árvores e uma antiga fábrica. Ninguém os ouviria gritar. Ninguém apareceria para salvá-los.
— Ela é minha. — Um homem de cabelos pretos, que até então apenas observava, gritou e se aproximou de . Ele a colocou de pé e segurou seu rosto. — Vamos nos divertir. — Sussurrou no ouvido dela e entrou na fábrica.
No momento em que era arrastada pelo homem ruivo para dentro daquela construção, ela tomou uma decisão. Não ia deixar quebrarem ela. Não importava o que acontecesse. Eles não iam vencer.
Ela travou o maxilar numa tentativa de parar de bater os dentes. O frio era apenas parte do motivo da tremedeira. O medo estava ali. Preenchia seu coração.
Foi arrastada por um corredor mal iluminado. Gritos eram ouvidos e a luz piscava. Em algum lugar daquela instalação, alguém estava sendo submetido a choques elétricos. Sacudiu a cabeça, tentando não focar sua atenção nos gritos. Seus olhos agora estavam vidrados nos tijolos escuros e aparentes, e suas narinas se encheram com o cheiro de mofo que se misturava a sangue, poeira e carne queimada.
Ela precisava encontrar uma forma de escapar. Precisava tirar dali.
Ao chegarem na porta de uma sala coberta por azulejos brancos manchados e quebrados, o ruivo que a arrastava parou. Lá dentro, o homem de cabelos pretos a esperava com um largo e sádico sorriso. Ela foi empurrada porta adentro, indo de encontro ao chão — por sorte, havia caído de joelhos, o que amenizou o impacto de seu rosto contra o piso. A dor na perna agora já era insuportável. Não conseguiria levantar. Então não se moveu. Ficou ali, deitada naquele piso imundo, tentando controlar sua respiração.
Ouviu passos e cerrou os punhos. Ainda estava algemada e não tinha forças para lutar, e isso a apavorava ainda mais.
— Novak! — O homem rosnou com o ruivo. — Não é assim que tratamos nossos convidados. — Ele ergueu , colocando-a de pé, e retirou os cabelos que estavam grudados em seu rosto.
Ela trincou os dentes, evitando emitir qualquer som. Tentava não demonstrar o quão fraca estava.
Com a proximidade, ela sentiu o cheiro de colônia barata misturada a cigarro e desviou o olhar. Analisou a sala. No centro, havia uma cadeira com correias para os braços, pés e testas, e nos cantos, mesas com todo tipo de instrumentos e ferramentas, de navalhas a martelos e serras.
***
— Me chamo Traeger. — Ele apertou o rosto dela, obrigando-a o encarar. — Você é? — Diante do silêncio, ele mordeu o lábio inferior. — Tímida? Podemos resolver isso. — Apertou ainda mais seu rosto e então a soltou. — Tire as algemas! — Gritou e o ruivo prontamente a libertou.
tremia ainda mais, a angústia a corroía por dentro.
— Precisamos tirar essas roupas molhadas, não queremos que pegue uma pneumonia. — As mãos de Traeger tocaram sua cintura e ela se encolheu.
Nudez. O primeiro passo do festival de humilhação.
Enquanto suas roupas eram lentamente arrancadas, ela sentia o pavor enchendo seu peito. Sua mente relembrava trechos dos relatos que havia lido sobre torturas. Os sorrisos estampados nos rostos dos dois homens que a cercavam, levavam-na a imaginar os flagelos que a aguardavam.
— Você é linda. — Traeger afirmou, segurando o queixo de que tentava, em vão, esconder o corpo. — Aposto que consigo tirar isso de você. — Acariciou seu rosto e então seu colo, observando-a.
Seus dedos contornaram suas clavículas e ombro, enquanto seus olhos passeavam pelo corpo dela vendo, ali, machucados e cicatrizes. Analisou o ferimento em sua coxa por algum tempo, o sangue escorria. Ao encarar suas costas, o homem ficou paralisado. Seu olhar agora estava focado na enorme cicatriz presente ali. Tateou o local, sentindo na pele fria e trêmula o desenho da cicatriz.
— Quem te machucou? — Sussurrou no ouvido de , enquanto acariciava a cicatriz.
— Homens como você. — Rosnou, virando o rosto para encará-lo.
— Não há homens como eu. — Traeger abriu um sorriso, exibindo seus dentes amarelados pela nicotina e desferiu um potente soco, que derrubou .
Ele se ajoelhou, desferindo mais socos nela. Via os hematomas se formando e a pele se abrindo. Respirou fundo, antes de acariciar o rosto da mulher.
— Amor... eu quero te ouvir gritar. — A mão esquerda dele alcançou o ferimento na coxa dela e então apertou o local.
Apesar de sua face expressar toda a sua dor, não emitiu som algum, o que pareceu enfurecer ainda mais o homem. Ele desferiu mais um soco e ela começou a rir. Nua e machucada naquele chão frio, deu-se conta que provavelmente não sairia viva daquela sala e então resolveu contra-atacar. Suas gengivas sangravam e antes que o homem pudesse acertar mais um soco, ela cuspiu em seu rosto.
— Meu sangue fica bem em você. — Murmurou, logo sentindo as mãos dele envolvendo seu pescoço.
Seu sangue era a coisa mais perigosa que possuía. Ela morreria pelas mãos dele, mas ele também morreria em poucos dias infectado por aquele vírus. O torturador ainda acertou mais um soco, antes de se levantar e ir até uma das mesas.
— Novak, vou te ensinar a cuidar desse tipo de vadia. — Rosnou, segurando um martelo. Antes que pudesse alcançar , ele foi impedido por uma voz chamando seu nome.
***
Um homem grisalho, de pouco mais de cinquenta anos, surgiu na porta e lançou um olhar para a mulher ensanguentada no chão. Desviou dela e foi até Traeger.
— O que te falei sobre matar prisioneiros? — O homem vociferou. — Não pode matar ninguém sem o aval do Bishop. O segurança tinha informações importantes.
Ao ouvir aquela voz, sentiu seu coração acelerar. Ela conhecia aquele homem.
— Cai fora, Oz. Ela é minha. — Traeger gritou e viu o velho bufar.
Antes que Oz pudesse rebater, ouviu murmúrios vindos da mulher no chão.
— Os... car... — chamou com dificuldade e os homens se encararam confusos.
— Quem é Oscar?
— Deve ser o homem que veio com ela. Cobb está cuidando dele. — Novak respondeu, aproximando-se. — Quer que eu a leve para o caixote? — Indagou e viu Traeger menear a cabeça, irritado.
— Os... car... Di... Diggs... — a falta de ar, somada a dor e aos inchaços dos ferimentos infligidos pelo torturador, faziam se expressar com dificuldade, mas Oz entendeu aquele nome com clareza.
— Esse é o nome verdadeiro do mágico de Oz. Só uma pessoa me chamava assim. — Murmurou pensativo, diante de olhares curiosos. Não era possível. Não poderia ser ela ali nua e machucada. — Quem é ela, Traeger? — Oz indagou, já se ajoelhando ao lado da mulher.
— Novak e Declan a trouxeram hoje mais cedo. Por quê? Você a conhece? — Indagou, preocupado.
Diante do olhar alarmado de Traeger, Oz virou a mulher para que pudesse encarar seu rosto. Retirou com cuidado os cabelos ainda molhados que cobriam sua face e observou os hematomas, cortes e o sangue. Mesmo com todas aquelas marcas, ele ainda reconheceria aquela garota.
Oz havia passado quase toda a sua vida trabalhando para Hugo Bormann. Por muito tempo foi seu braço direito e responsável pela segurança. E havia tido o privilégio de ver a filha do chefe crescer.
Ele estava no hospital quando nasceu. Estava lá quando ela chegou em casa e quando deu os primeiros passos. Estava lá quando ela aprendeu a ler. Quando ela leu O Magico de Oz e decidiu que assim como no livro, Oz era só seu codinome. Ela não admitia que Oz era apenas um apelido vindo de seu sobrenome Oztryker. Em sua mente infantil, ela o pintou como Oscar Diggs, um mágico trambiqueiro, que agora trabalhava para a família Bormann. Não ajudava em nada o fato de Oz ter decidido começar a fazer pequenos truques de ilusionismo para entreter a garota e assim alimentar seu mundo de fantasia. Duas décadas depois desses acontecimentos, ele a encontrava ali, nua e ensanguentada.
? — Oz finalmente chamou em um sussurro e viu a mulher assentir. — O que... o que está fazendo aqui? — Ainda incrédulo com a situação, ele retirou o casaco e a cobriu a ajudando a se sentar. — Vou te tirar daqui, querida. — Tocou os cabelos dela com cuidado.
— Ela é minha. — Traeger rosnou, aproximando-se e apertando o martelo. Ansiava em vê-la desfigurada. Os hematomas e o fato dela não conseguir abrir o olho esquerdo não eram o suficiente para ele.
— Que merda tem de errado com você? Estava torturando a filha do Bormann. — Oz gritou, avançando na direção do homem e o segurando pela camisa.
Traeger largou o martelo no chão atônito e Novak deixou a sala atordoado.
— Eu não sabia quem ela era. Ela... ela... ela nem me disse seu nome. — Traeger se justificava perturbado.
— Bormann vai querer a cabeça de todos nós. — Empurrou o homem e se voltou para no chão.
— Caralho! Eu não sabia. Nós não sabíamos. — Traeger se afastou, levando as mãos à cabeça. O desespero o atingia.
— Eu vou tirar ela daqui. — Oz ajeitou seu casaco sobre a mulher e a pegou no colo.
— Merda! Merda! Merda! — Agora sozinho na sala, o torturador gritava agoniado.
Foi até uma bandeja cheia de bisturis e a arremessou na parede. Estava transtornado. Queria ir lá, terminar o serviço e se livrar logo da mulher e de todos os indícios da existência dela. Bormann nunca saberia.
— Puta merda! — Tinha a respiração ofegante e encarava o local onde minutos atrás estava . Não poderia agir sem o aval de Bishop, seria um homem morto se fizesse isso. Precisava do apoio do chefe. — Bishop vai me ajudar a resolver isso. Ele pode e ele vai. — Passou a murmurar repetidamente aquelas palavras para si mesmo.

Do outro lado da fábrica, tinha seus ferimentos limpos cuidadosamente por Oz. Ela apertava a cama de ferro com cada vez mais força diante da dor e agonia. Seu corpo inteiro doía. Os locais em que a carne se abriu com a força dos socos de Traeger ardiam tanto, que ela se esforçava para não lacrimejar. E isso apenas com o espancamento. Era angustiante imaginar que naquele momento podia estar passando por coisas muito piores. Queria conseguir ignorar todas as mazelas físicas e ir até lá resgatá-lo. Mas ela mal conseguia ficar de pé sozinha. Não conseguia nem enxergar direito com as pálpebras inchadas. Mas pior que a dor física, era o medo. Medo de perdê-lo.
Estava perdida num mar de agonia e pavor que inundavam seus pensamentos e não escutou Oz falando com ela. Apenas quando ele tocou seu ombro, é que ela voltou a atenção para ele.
— Fique aqui. Vou procurar roupas para você.
Ela assentiu e ele foi em direção ao corredor.
Assim que o homem saiu pela porta, ela olhou em volta procurando por algo que pudesse usar como arma. Viu que do outro lado daquele quarto havia uma janela quebrada. Cacos de vidro. A única coisa disponível no momento para enfrentar cinco torturadores, bom, ela ansiava que fossem apenas cinco.
Havia Oz, seu velho conhecido, Traeger, o homem de dentes amarelados que sentira enorme prazer em espancá-la, e Novak, o ruivo de dentes de ouro que sentira prazer em vê-la sendo espancada. Além deles, ainda havia o motorista do caminhão e o maldito que estava com . E ainda havia Bishop, o chefe de todos ali. Ela não sabia se ele estava em algum lugar daquele prédio. e cacos de vidro contra seis torturadores. Aquilo não lhe soava como altas probabilidades de sucesso, mas ela tinha que tentar.
Infelizmente, seu corpo não ajudava, não conseguia se colocar de pé, então decidiu se arrastar até lá. Sua tentativa foi logo frustrada por Oz.
! — Ele largou a sacola que carregava e correu até ela. — Você está bem?
Ela apenas encarou a janela, enquanto era colocada de volta na cama.
— Consegui algumas roupas. — Ele foi buscar a sacola e a ajudou a se vestir.
Ela encarava a janela alheia a tudo. Sentia-se derrotada e frustrada. Traída pelo próprio corpo, que agora lhe parecia fraco demais. O ódio a consumia e nada podia fazer.
— Você está bem? — Oz repetiu a pergunta, ajeitando-a na cama e ela bufou.
— Como eu posso estar bem? — Cerrou os punhos, sentindo um nó se formar em sua garganta. — Eu tenho um ferimento de bala na minha coxa. — Rosnou, sentindo pontadas no local. — Eu não posso ficar de pé ou enxergar direito, porque um desgraçado me espancou. E ele provavelmente está planejando... fazer coisas piores. — Terminou em um sussurro. Pensar naquilo doía demais. — Eu conheço aquele olhar. — Fechou os olhos por um instante, lembrando dos momentos terríveis que passara nas mãos de Thompson dois anos atrás.
— Ele não vai mais tocar em você. — Oz sentou na cama, interrompendo os devaneios dela. — Seu pai... eu vou contatar ele e você vai ficar bem.
— Você é a única pessoa que pode achar que nas mãos de Hugo Bormann eu vou ficar bem. — Encarou o teto por um instante, mas logo encarou o homem despejando sua aflição. — Eu estou sofrendo... apenas uma pequena parte do tipo de coisa que meu pai faz por diversão. Talvez eu mereça isso...
— Não fala isso. Você vai ficar bem. Eu prometo. Precisa confiar em mim! — Ele tentou tocá-la, mas ela se afastou.
— Por que eu devia confiar em você?
— Por que não confiar? — Rebateu a pergunta, sentindo-se frustrado. — Eu sou o Oz, lembra? Eu te vi crescer... eu cuidei de você. — Sua voz era terna, assim como seu olhar.
— Você ameaçou mulheres sob a mira de uma arma, enquanto meu pai as estuprava. — O olhar terno de Oz se converteu em surpresa e depois em indignação.
— Isso não tem nada a ver com o fato de eu me importar com você.
— Você é um homem mau, Oz... assim como o meu pai, como o Bishop, como o Traeger... — acusou, ressentida.
Lembrava de cada detalhe de cada relato de tortura. Lembrava das fotos que havia visto e dos vídeos. Ela não podia fingir que as coisas estavam bem. Não podia fingir que sentia algo além de asco.
— O Nate também? — Questionou com uma sobrancelha arqueada.
— Sim. — Assentiu, sentindo o nó na garganta voltar.
— Eu sabia sobre vocês dois. Eu sempre soube. — O homem começou se afastando da cama.
Aquilo era novidade para . Oz nunca agiu como se soubesse de algo.
— E seu pai nunca descobriu. Porque eu fiz tudo que podia para proteger vocês. Porque eu sabia que ele te fazia feliz. — Deu um longo suspiro, antes de continuar. — Por que você tem vinte e cinco anos, mas eu olho para você e lembro daquele bebê que eu jurei proteger. Da garotinha tagarela que adorava ir para sala de controle para ficar contando histórias e que sempre me pedia para fazer truques de mágica. Talvez eu realmente seja esse homem mau . — Ponderou, encarando o chão por um instante. — Mas independente disso... eu vou te manter a salvo. Vou manter a minha promessa.
— Então prove. — Pediu em um sussurro. — Oz, se o que está dizendo é verdade, eu preciso que faça algo por mim.
— Qualquer coisa. — Ele novamente se aproximou da cama e se apoiou em um joelho para ficar da altura dela.
— O homem que veio comigo... tire ele daqui. Ele precisa sobreviver. — Pediu, sentindo a voz embargada. — Salve ele.
— Eu farei isso. Por você.



Capítulo XV.
Hold on, this will hurt more than anything has before.

Apesar da exaustão, não conseguiria dormir. Ainda estava no mesmo quarto sujo.
Da cama enferrujada, ela encarava a janela quebrada. Não sabia ao certo quanto tempo fazia que estava sozinha naquele quarto. O remédio dado por Oz havia lhe tirado parte das dores, mas também o que lhe restava de suas forças. Sentia o corpo mole e a cabeça girar. Esforçava-se para não fechar os olhos, inebriada pela incerteza que esmagava seu coração.
Não sabia se Oz realmente cumpriria sua promessa de ajudar . Não sabia o tipo de coisa que ele poderia estar sofrendo. Não sabia se os gritos agonizantes que ecoavam pelos corredores eram dele. Mesmo se fossem, ela não conseguiria ajudá-lo. Nem conseguia se mover. Sentia-se fraca e incapaz, traída pela fragilidade do próprio corpo.
Ainda encarando a janela, viu o dia escurecer e a noite tomar seu lugar. Ouvia gritos ao longe, sem conseguir se mexer. Algumas lágrimas solitárias rolavam por sua bochecha, quando a luz do quarto foi subitamente acesa. Ouviu passos se aproximando e logo um homem de cabelos pretos a pegou no colo. Não conseguiu distinguir seu rosto, mas o cheiro de colônia e nicotina foram reconhecidos.
Seu coração disparou. Não havia mais esperança, estava nas mãos dele e sem possibilidade de defesa.
— Sua suíte te espera... — Traeger sussurrou e sentiu um calafrio na espinha.
Entraram numa pequena sala e o homem a colocou deitada no chão. Ele saiu sem dizer mais nenhuma palavra e a deixou ali, no chão daquela sala fria e escura.
O cheiro de mofo e podridão entraram nas suas narinas. Havia algo morto ali e ela não conseguia enxergar um palmo a sua frente. Tateou o chão, quando finalmente conseguiu se mover e sentiu a poucos centímetros de si um líquido viscoso e gosmento. Sangue. sentiu os pelos do braço arrepiarem e se encolheu. Estava trêmula e se esforçando para não chorar. Cercada pela escuridão, a dor, o cheiro de morte, o medo, o som de gritos, tudo aquilo que sobrecarregava seus sentidos. A pior parte era não saber o que viria a seguir. A porta poderia ser aberta a qualquer momento, ela poderia encontrar o corpo sem vida de , poderia sofrer flagelos maiores do que jamais imaginou.
Morrer talvez fosse a melhor das possibilidades, na verdade, era algo inevitável, considerando sua condição. Mas não podia morrer antes de se certificar que estava a salvo.
Através das paredes finas, ouviu o estrondo da porta da sala ao lado sendo aberta, passos e então um baque surdo de um corpo sendo jogado no chão. Assim que a porta foi novamente fechada, com dificuldade, ela se ergueu e sentou escorada à parede. Aproximou os ouvidos, esperando ouvir algum movimento ali.
? É você? — Chamou aflita, batendo na parede. — Por favor... Acorda. — Esmurrou a parede, sentindo as lágrimas rolarem. — Acorda! Eu preciso de você. — Calou-se ao ouvir a pessoa do outro lado se movendo.
Escutou batidas e colou o rosto à parede fria.
... — ao ouvir a voz de , ela sentiu mais lágrimas rolarem. — Eu... achei que... tinha te perdido. — Ele falava com dificuldade, era como se a dor, medo e exaustão dele, pudessem atravessar aquela parede.
— Eu estou aqui... — falou chorosa, desejando que aquela parede não estivesse entre eles. — Me perdoa. Eu devia ter te impedido... Você está nessa situação de novo por minha culpa. — Havia ressentimento em sua voz. Ela não se perdoaria por ter que ver ele novamente passando pela tortura.
— Não... isso não é verdade. — colou o rosto à parede, exasperado. Queria retirar toda a dor que ela sentia.
— Eu devia ter te impedido. — Repetiu a sentença, sentindo-se assolada pela culpa.
— Você não conseguiria me impedir. Não conseguiria. E isso não é sua culpa. — Suspirou, ansiando abraçá-la e levá-la para longe dali.
— Eu devia ter feito tudo a meu alcance... — começou, sentindo a voz falhar. Respirou fundo, antes de continuar: — Se tiver a oportunidade, fuja. Eu te imploro. — Suplicou com a voz embargada.
— Não posso te abandonar.
... — ela novamente bateu na parede.
— Não pode me pedir isso.
As lágrimas escorriam do rosto de ambos.
— Talvez... talvez a gente ache um jeito de escapar... talvez a Selina apareça em um cavalo branco para nos resgatar. — Ele imaginou, sorrindo entre as lágrimas, arrancando um sorriso de . — Aquela mulher é foda. Ela é tipo... uma guerreira... uma heroína da vida real. E ela faria de tudo para salvar a família dela. Por que é isso que você é. A família dela... e a minha também. — Em meio a dor e sofrimento, aquelas sentenças foram capazes de acalentar .
— Eu sei. Eu tenho uma família incrível. — Tateou a parede, chorosa, ansiando tocá-lo.
— E talvez a gente morra aqui, mas... se essa é a minha última noite na Terra, a última vez que conversamos.... Eu não quero que a gente passe se desculpando. — apertou os lábios por um instante, suspirando em seguida. — Quero imaginar que a gente ainda está naquele carro, conversando e cantando Losing My Religion sob um céu de estrelas... e você finalmente percebe que eu sou o homem da sua vida. — Finalizou sorrindo e esperou uma reação que não veio. — Essa é a hora que você ri ou me xinga. — Comentou rindo, mas não teve resposta. — ?
— Eu... — ela começou, sendo novamente inundada pelas lágrimas. — Sabe... dois anos atrás eu estava vivendo o pior momento da minha vida e você me encontrou... — arquejou.
Falar daquele dia ainda era muito difícil. Todas as vezes que ela tocava no assunto, era como se revivesse cada momento. Revivia o medo, sentia novamente suas roupas encharcadas pelo sangue de Thompson e os tremores que por muito tempo a inquietaram.
— Eu estava tão assustada... e mesmo sabendo quem eu era, você quis me ajudar, quis cuidar de mim e me salvar... — mesmo cercada pela escuridão, ela fechou os olhos, imaginando estar ao lado dele. — E foi isso que fez em todo tempo que pude conviver com você, esteve comigo, me salvando de tudo, algumas vezes até de mim mesma...
...
— Eu preciso falar tudo ou vou perder a coragem. — Pediu, sentindo que aquela seria sua última conversa.
Sentia que morreria ali. Além da bomba relógio que era o vírus em seu sangue, ainda havia horrores à espreita em cada canto daquela fábrica.
— Você é a melhor pessoa que eu conheço e me ajudou no pior momento. Você me fez rir e me deu forças e esperanças em momentos que eu me via encurralada...
— Eu te amo tanto. — a interrompeu, sentindo que aquelas palavras não poderiam ser mais contidas.
Sentia que elas precisavam transbordar. Ansiava que suas palavras atravessassem a barreira física que os separava e a abraçassem gentilmente.
encostou a testa à parede, desejando possuir superpoderes para transpor aquele obstáculo e derrubar cada um dos seus algozes, para então sair dali a salvo, junto ao .
— Eu também te amo. — Falou, sentindo a voz falhar. — Me dói saber que nós não temos tempo. — Finalizou suspirando e pensando como o tempo era algo que sempre escapava de suas mãos.
Eles nunca tiveram chance.
— Eu daria qualquer coisa por mais tempo com você. — mordeu o lábio e encostou a testa parede. — Eu tenho muitos arrependimentos que assombram meus pensamentos, mas o maior deles foi não ter aproveitado cada segundo do seu lado. — Naquelas palavras, ele expressou sentimentos compartilhados por , mas, agora, não importava o quão fortes aqueles sentimentos eram.
Não havia muito o que fazer.

•••

CENA COM GATILHOS - DESCRIÇÕES DE TORTURAS E LESÕES

despertou assustada. Dormiu encostada à parede gelada, o que aumentou as dores em seu corpo. A posição, o frio, as feridas abertas e o medo faziam a realidade ainda mais pavorosa que os pesadelos que a assombraram nas poucas horas de sono.
Sua perna esquerda estava dormente e o ferimento na perna direita coçava. Pensou em esticar as pernas, mas lembrou do sangue a poucos centímetros de si. Suspirou, voltando-se para a parede e após repetidas batidas e gritos, desistiu. não estava ali.
Seu coração acelerou e a respiração ficou pesada. Medo por ela e por ele. Apoiando-se à parede gelada, colocou-se de pé com dificuldade e então se arrastou no escuro até alcançar a porta. Tateou a porta de metal, buscando uma forma de escapar, mas não encontrou nenhum jeito de abrir por dentro. Considerou tatear o chão em busca de alguma ferramenta que pudesse usar, mas desistiu. Havia algo morto ali. Sentiu o sangue e sua cabeça doía devido ao cheiro forte de podridão.
Recostada à parede, escorregou até novamente sentar-se no chão. Não conseguia parar de pensar em , não conseguia parar de se preocupar. Com a cabeça encostada à parede, ela chorou. Chorou mais do que nunca. Seu coração doía. Queria gritar, externar tudo o que estava sentindo. Mas não faria isso. Não daria essa satisfação para seus captores. Guardaria seu sofrimento, sua dor e seus gritos.
Não sabia dizer quanto tempo ficou ali. Sozinha, cercada pelo silêncio e pela escuridão. De olhos fechados, ela suspirou. Não conseguia encontrar uma saída. Via-se encurralada e com a sentença de morte cada vez mais perto. As dores físicas, o frio, a boca seca, a fome e tudo mais, pareciam anunciar a chegada do fim.
Embalada em seus pensamentos mórbidos, ela se assustou com o som de passos. Endireitou a postura e delicadamente tentou limpar as lágrimas do rosto machucado, esperando o que viria a seguir. Logo ouviu um estrondo e a porta se abriu. Fechou os olhos, já desacostumados a claridade e instintivamente se encolheu.
Assim que conseguiu distinguir as duas figuras masculinas à sua frente, deparou-se com expressões sinistras e sorrisos macabros. Traeger e Bishop a analisavam, como predadores analisam sua presa.
desviou o olhar e pôde finalmente enxergar de onde vinha o cheiro de putrefação: o corpo nu e machucado de Dax era sua companhia. Ele tinha hematomas, um corte profundo no abdômen, os dois braços quebrados e a cabeça parcialmente esmagada.
Observando o cadáver do antigo companheiro de missões, se esforçou para conter um grito de horror. Aquela cena assombraria seus pesadelos no pouco tempo de vida que lhe restava.
— Contemplando o que pode ser seu futuro? — Bishop indagou, abaixando-se para ficar na altura do campo de visão dela.
— Ela não é muito de conversa. — Traeger comentou, cruzando os braços.
Da porta, ele analisava cuidadosamente cada sinal do sofrimento da mulher. As calças sujas do sangue do ferimento na perna, as olheiras escuras envolvendo olhos vermelhos inchados e cansados, o cabelo impregnado de suor e sangue seco, e os hematomas e inchaço que cobriam seu rosto temporariamente desfigurado pelas mãos dele.
— Ela vai conversar comigo. — Bishop rebateu. — Já nos conhecemos. — O homem se colocou de pé. — Você lembra? — Virou para , que se mantinha em silêncio, apenas o encarando. — Eu costumava frequentar a casa dos Bormann. Na verdade, eu frequentava mais o porão que seu pai usava para torturas. — travou o maxilar e ele notou. — Não consigo imaginar o quão difícil foi para você descobrir os hobbies do Hugo... — forçou uma voz terna. — E agora está aqui, nas minhas mãos. — Aproximou-se, tocando os cabelos dela, ato que fez ela se encolher mais. — Mas você é sortuda. Sou melhor que o seu pai. Está nas mãos de um verdadeiro artista. — Terminou a sentença de forma prepotente e riu.
Bishop então agarrou seus cabelos.
— O que é tão engraçado querida?
— Você não é um artista. É só mais um carniceiro. — Rosnou, afastando-se das mãos dele.
— Está errada. Veja bem... a vida humana... é uma coisa frágil. — Ele retirou uma luva de látex do bolso e foi até o cadáver. — Um carniceiro teria apenas esmagado a cabeça dele. Afinal, é possível matar com apenas uma tacada. — Virou a cabeça de Dax para que pudesse enxergar com clareza o tamanho do dano. Em seguida, mostrou outros ferimentos espalhados pelo corpo.
Era muito doloroso vê-lo naquele estado, imaginar o que sofreu nas mãos dos vis torturadores. Independente de seus recentes crimes, aquele era o homem que a acompanhou e ajudou em diversas missões. Uma das pessoas a quem devotou toda a sua confiança e proteção. Imaginava o que teria acontecido com Charles.
— É muito fácil matar alguém. É fácil usar força bruta para gerar cortes e hematomas, quebrar ossos... Isso é serviço de brutos. — Bishop levantou, retirando as luvas e novamente se aproximou da mulher. — Mas é preciso prática e precisão, para trazer um sofrimento demorado e doloroso... um sofrimento que faça com que alguém deseje estar morto. — Estampou um sorriso macabro, tocando o rosto machucado dela. — E é isso que eu vim fazer aqui... te fazer desejar estar morta. — Bishop apertou o rosto da mulher com força.
Ela conteve um gemido de dor. Não podia ser fraca, não diante dele.
Antes que pudesse rebatê-lo, paralisou ao ouvir uma voz masculina. Gritos de agonia ecoavam pelos corredores. Mas o mais apavorante não foi o som dos gritos, foi quando eles pararam.
— Está feito! — Traeger exclamou, abrindo um sorriso satisfeito após encarar algo no fim do corredor. Voltou os olhos para a mulher, que apesar de tentar, não conseguia conter o tremor nas próprias mãos.
— Sabe... as paredes têm ouvidos. Eu sei tudo que acontece aqui. — Bishop sussurrou, como se confidenciasse um segredo e sentiu o coração disparar.
Estava apavorada.
Imediatamente recordou da conversa com e de como haviam revelado o quão importantes eram um para o outro.
— Eu sei de tudo. — Repetiu, acariciando o bem desenhado cavanhaque. — À primeira vista, esse lugar parece estar caindo aos pedaços, mas o sistema de vigilância é de primeira. Tenho câmeras para todos os lados. E quando as pessoas pensam que estão sozinhas... é aí que mostram suas fraquezas. E todo mundo tem uma. Algo... ou alguém... capaz de quebrar o espírito. E o sofrimento é tão grande, que a pessoa prefere estar morta. — Fez um sinal para Traeger, que prontamente agarrou os braços de e a colocou de pé.
Ela estava ainda mais fraca. Imaginando todas as possibilidades macabras que a aguardavam.
— Mas, sabe... para causar o impacto necessário, às vezes é preciso usar força bruta. Certo, Novak? — O torturador ruivo tatuado apareceu na porta.
Ele tinha os braços besuntados de sangue e vísceras, e em sua mão direita segurava um saco de estopa pingando sangue.
— Tenho um presente para você. — Bishop deu alguns passos para trás.
Na sua frente, a mulher arquejava. Ele então pegou o saco das mãos de Novak e puxou algo lá de dentro.
Ao ver que os dedos de Bishop seguravam cabelos, sentiu as pernas fraquejarem e caiu de joelhos, não conseguindo conter as lágrimas. Abriu a boca, tentando puxar o ar que lhe faltava. Tudo estava terminado. Perdeu . Perdeu seu Norte. Todo o esforço para protegê-lo havia sido em vão.
Encarou o chão com a vista já embaçada pelas lágrimas. A sensação de sufocamento, de ter o peito esmagado a fizeram prostrar. O torturador, então, arremessou a cabeça decepada em sua direção e ela gritou. Um grito profundo e gutural.
Ela baixou os olhos, encarando a cabeça ensanguentada e chorou mais. Estava dividida entre alívio e remorso. Alívio por não ser e remorso por estar feliz que a cabeça ali era de Oz. Não desejava a morte dele. Nunca o fez. Mas não podia negar que perder seria muito mais que poderia suportar.
Soltou a cabeça e encarou as mãos ensanguentadas. As lágrimas molhavam seu rosto e não conseguia contê-las.
— Traeger falou que não havia conseguido te fazer gritar, mas eu sou mais criativo. — Bishop exclamou em um tom debochado.
Analisou-a em silêncio por alguns segundos e então continuou:
— Posso ver que está dividida sobre como se sentir sobre isso. Mas não precisa ficar de luto. Oz era mais leal a você do que a mim e pagou por isso. — Fez uma pausa e então abriu um sorriso. — Analisando bem essa situação... você deve sim ficar de luto. Ele só está morto por sua causa. Agora, vamos. — Saiu da sala e logo Traeger colocou de pé e a carregou porta afora. — Vou te levar para vê-lo.
mal tinha controle das pernas. Fraca, com dores e muito abalada por tudo que aconteceu até então. Estava nas mãos de sádicos liderados por um homem que se considerava júri, juiz e carrasco violento.
Enquanto era arrastada por corredores sujos e escuros, ela observava diversas portas fechadas. Podia ouvir nitidamente o suplício dos condenados ocupando cada uma daquelas salas. Ouvia gritos agonizantes, ruído de chicotes e martelos, além de sons de desespero e mutilação. E a cada porta, seu coração acelerava.
Foi arrastada até uma área até então desconhecida. Lá, a luz piscava incessantemente e o cheiro de carne queimada preenchia os corredores.
Bishop parou em frente à terceira porta daquele corredor e bateu duas vezes. Após alguns segundos, a porta foi escancarada e um homem de meia idade, com cabelos pretos desgrenhados, surgiu exasperado.
— Bishop? — O homem juntou as sobrancelhas ao encarar o chefe. — Achei que ia ficar fora a semana toda.
— Precisei voltar para resolver algumas coisas. Não vai nos convidar para entrar, Cobb? — Indagou em tom ofendido. — Trouxe uma expectadora. — Completou, puxando para mais perto da porta.
— Pombinhos? — Cobb tinha um sorriso perverso estampado no rosto suado.
— Exato. Ela o ama. — O jeito que Bishop falou aquilo, fez travar o maxilar. — Como está nosso convidado ilustre? — Perguntou com os olhos na mulher. Ver as reações dela o satisfazia.
— Desmaiou há alguns minutos. — Cobb entrou na sala, logo sendo seguido por todos ali.
era arrastada por Traeger e ao entrar na sala, sentiu o que restava de suas forças ir embora. A sala cinza e suja tinha correntes presas ao teto. E nessas correntes, estava . Desacordado e dependurado a um metro do chão, ele tinha os pulsos machucados atados a correntes. Diversos fios espalhados por seu corpo, dos dedos dos pés aos ouvidos. Os fios estavam ligados a um pequeno, mas potente gerador elétrico à manivela.
— Acorda ele. — Bishop ordenou com uma frieza estarrecedora. — Sabe, eu já comprei geradores novos, mas Cobb prefere o método antigo. — Murmurou para , arrastando-a para mais perto.
analisava a cena com o coração palpitando e um suor frio brotando em sua pele. O corpo seminu e machucado de aumentava ainda mais o seu martírio. Aumentava suas dores, o pavor, o sentimento de impotência e principalmente a culpa. Havia falhado em mantê-lo a salvo. Era culpa dela ele estar ali, ferido e ensanguentado, novamente nas mãos de Bishop. E, nesse momento, não havia nada que pudesse fazer. Não tinha forças para lutar. Mesmo se estivesse com plenas condições físicas, ainda assim não daria conta de três homens armados, além dos incontáveis lacaios ocupando aquela fábrica. Qualquer movimento em falso e eles aumentariam a tortura contra ele, qualquer movimento e eles o matariam.
Viu Cobb encher um balde numa torneira de água turva no canto da sala. A água seria usada para acordar e para aumentar o efeito da tortura.
Cobb arremessou a água fria e despertou, desorientado. Sua visão estava completamente embaçada e ao percorrer a sala com o olhar, não conseguiu distinguir a mulher o encarando angustiada. Tudo que sabia, era que em poucos segundos sentiria novamente aquelas dores já conhecidas. Aquela sensação de que seu corpo iria se decompor a cada descarga. Que ficaria paralisado ou com convulsões pelo resto dos seus dias. Então começaram os choques e tudo que ele desejava, era perder novamente os sentidos, desmaiar e dar adeus à dor.
A cada descarga, os choques se tornavam mais violentos. via o corpo de estremecer e convulsionar e cada grito a fazia sentir que seu coração era despedaçado. Eram gritos de dor tão intensos, que parecia que conseguiriam derrubar aquelas paredes.
Quando os choques paravam, os músculos continuavam a contrair violentamente. E então, após alguns minutos, Cobb novamente girava a manivela, dessa vez com descargas ainda mais potentes.
Diante dos gritos, do cheiro de carne queimada e do corpo convulsionado de , desviou o olhar. Lágrimas brotaram em seus olhos e escorreram por suas bochechas, sem que conseguisse impedir. Era insuportável vê-lo passar por tudo aquilo sem poder fazer nada.
Imediatamente, sentiu Traeger agarrar e virar o seu rosto.
— Te trouxemos aqui para vê-lo. Precisa olhar para ele. — Traeger murmurou, obrigando-a encarar àquela cena excruciante.
, que já tinha os punhos cerrados, apertou-os ainda mais, sentindo a dor das unhas perfurando as palmas de suas mãos. Teve que presenciar mais duas descargas elétricas e então desfaleceu. O corpo, já quase sem sentidos, sofria espasmos involuntários. A mulher sentia o próprio corpo fraquejar. Sentia o ar faltar, além de tremores e uma forte dor no peito. A única razão para ainda estar de pé, eram os braços de Traeger ainda a segurando.
— Muito obrigada por trazer ele de volta para mim. — Bishop falou, aproximando-se. — Da outra vez eu não pude terminar o serviço. Tive que dividi-lo com seu pai.
juntou as sobrancelhas, confusa.
— Não sabia? Seu pai impediu minha arte. Ele estava tão focado em privação sensorial, simulações de execução e afogamento... queria enlouquecer ele.
Ela encarava Bishop sem qualquer reação. Bormann havia torturado . Todo o sofrimento que ela presenciara meses atrás, eram culpa de Bishop e Bormann. Seu pai havia torturado . E ele nunca havia contado.
Ela sentiu o aperto no peito crescer. Ele havia omitido tal fato para protegê-la. No auge dos sofrimentos causados pela tortura, a maior preocupação dele era cuidar dela. Isso tornava ainda mais doloroso ela ter falhado com ele.
— O problema do seu pai, é que ele estava mais preocupado em manter vivo e louco para torturar a Agnes. — Finalizou, encarando a mulher que tinha o olhar perdido.
Ela não conseguiu evitar que mais lágrimas rolassem por sua bochecha.
— Quer que eu o acorde de novo? — Cobb gritou, já enchendo o balde.
— Não é necessário. Mas gire a manivela novamente. — Bishop ordenou com os olhos em .
Era como se a corrente elétrica também passasse pelo corpo dela. Era visível a dor e o desespero que ela sentia.
— É muito prazeroso te ver assim... sofrendo por ele. — Aproximou-se, acariciando os cabelos dela. — Mas também é algo tão inesperado. Você e o filho da Agnes. Quem poderia imaginar? Quase uma merda de Romeu e Julieta. — Comentou, debochado. — Ele sabe que seu pai estuprou a mãe dele por meses? — Indagou, prestando atenção em cada pequena mudança na fisionomia dela.
Ela se esforçava em manter uma expressão impassível e aquilo o divertia.
— Vocês dois são meu tipo favorito de casal. Ele daria qualquer coisa para te ver livre e você também daria qualquer coisa para salvá-lo. Mas você é esperta. Sabe que barganha não vai funcionar aqui. Já deve ter pensando em dezenas de formas diferentes de me matar. Mas não vai fazer nada. Porque ele é a prioridade. — Apontou para , enquanto seus lábios formavam um sorriso de escárnio. — Tire ela daqui, Traeger. Prepare-a para a sala vermelha. — Ordenou, afastando-se.



Capítulo XVI.
We were born without a name and that’s the way we'll die.

CENAS COM GATILHOS - DESCRIÇÕES DE ABUSOS, TORTURAS E LESÕES
As falas estarão entre "***", pule-as em caso de desconforto.

Traeger prontamente arrastou para fora da sala. Ela queria lutar, se livrar dos braços do torturador e então matar todos eles, para então libertar . Mas Bishop estava certo, ela não faria nada. Não quando a consequência de seus atos poderia ser a morte daquele que sempre tentou proteger.
Passou novamente pelos corredores barulhentos, mas dessa vez foi levada até um pequeno banheiro de porcelanato amarelado.
— Pode começar a se limpar. — O homem apontou a pia e foi até uma prateleira do lado aposto.
Apoiada à pia, abriu a torneira com dificuldade e ao sentir o toque da água fria, sentiu um alívio temporário. Esfregou as mãos com força, vendo o sangue de Oz descer pelo ralo. Flashes do momento que a cabeça dele foi arremessada em sua direção a fizeram arfar.
Esfregava as mãos ansiando que tal ação retirasse não apenas o sangue seco, mas também a culpa. Encarou as mãos limpas e então as apoiou na pia, finalmente voltando os olhos para o espelho à sua frente. Arquejou analisando seu reflexo. Ainda não tinha visto o estrago causado por Traeger.
Seu rosto e pescoço estavam cheios de cortes e hematomas. Em poucas regiões, conseguia enxergar a cor real de sua pele. A maior parte dela estava entre tons que iam do roxo escuro ao amarelo. O inchaço estava pior do lado esquerdo, o olho ligeiramente fechado e lacrimejando.
Abriu novamente a torneira e se prostrou jogando água no rosto, tentando limpar delicadamente a pele ferida. Ao sentir a aproximação do torturador, ergueu o corpo, assumindo uma postura defensiva.
— Fica bem em você... — o homem comentou, ajeitando a blusa no corpo dela.
Ela olhou para baixo, prestando atenção no que vestia: uma calça de moletom preta e uma blusa mostarda com marcas de sangue.
— June. O nome da dona das roupas. Ela era linda... assim como você. — Ele se posicionou atrás de , encarando seu reflexo. — E eu tirei isso dela. Tirei a beleza, a esperança, tirei tudo até sobrar apenas uma casca vazia... machucada e violada. — Acariciou os braços da mulher e depois os ombros, sem tirar os olhos do espelho. — Mas sabe... coisas piores te aguardam. — Finalizou, sussurrando.
paralisou. Aquelas palavras, o hálito quente atingindo sua nuca, os toques que lhe geravam asco... tudo remetia aos momentos que passara com Thompson. De repente, ela estava de volta à sala daquela cabana. Dois anos atrás. Mais jovem e fragilizada, usando todas as forças para lutar contra um homem duas vezes maior que ela.
Sacudiu a cabeça, expulsando as memórias. Precisava focar no presente. Precisava achar uma saída. ainda estava vivo. Por isso ela se recusava a desistir.
Traeger virou para encará-lo e ajeitou seus cabelos. Buscava uma reação. O silêncio o incomodava. A queria lutando e tentando resistir a ele. Segurou os cabelos dela e soprou:
— Não fraqueje agora. — Contornou o rosto machucado com cautela, como se ele não tivesse sido responsável por cada um daqueles ferimentos. — A imagem de mulher forte é excitante. E vai precisar dela para o que te espera. — Puxou a toalha que estava depositada em seu ombro e secou as mãos dela. Em seguida, arrastou-a porta afora.
Adentrando ainda mais na fábrica, caminharam até uma enorme sala recentemente pintada de vermelho. O cheiro forte de tinta preenchia o ambiente. A sala, ocupada apenas por uma mesa no centro, aparentava estar mais limpa e bem cuidada que as outras. A luz não piscava e gritos já não eram ouvidos.
— Gostou? — Bishop questionou, entrando na sala alguns minutos depois. Novak entrou em seguida. — Mandei pintar em sua homenagem. Seu pai tem uma sala assim no porão dele. E imagino que saiba para que ela é usada.
sabia do que ele falava. Havia visto fotos e em relatos, diversas mulheres citavam a sala vermelha. Era o local dos estupros. Local que Agnes ocupou por muitos meses.
— Vamos nos divertir tanto... — Traeger a puxou para mais perto, ao mesmo tempo em que adentrava a sala, arrastado por Cobb.
e trocaram olhares e mantiveram o foco um no outro, alheios às barbaridades faladas pelos torturadores. Ele, ainda atordoado pela tortura, tinha um caminhar lento, quase arrastado. A visão da face desfigurada da mulher aumentou sua aflição. Ansiava em vê-la. Ouvir a sua voz na noite anterior não era o suficiente para acalmá-lo. E agora que estava face a face com ela, só queria abraçá-la. Queria arrancá-la das mãos daqueles homens para, então, saírem a salvo dali.
Em um breve momento de desespero, tentou se soltar de Cobb para, então, alcançar , mas parou no momento que Bishop apontou uma arma para a cabeça dela.
***
— Nossa brincadeira tem regras. — Bishop rosnou ainda com a arma apontada para a mulher. — Os dois vão ficar quietos e imóveis. Cobb vai manter uma arma apontada para o tempo todo. E Novak vai apontar uma para minha querida . — Fez um sinal para o ruivo, que prontamente se aproximou com a arma em punho. — Traeger fica responsável pelo estupro. Ele te quer desde que te viu pela primeira vez. — Sussurrou tocando o rosto dela. — E eu vou assistir. Se tentar se defender, morre. Assim também, se tentar algo, morre. Regras bem simples.
***
Enquanto era arrastada para mesa no centro da sala, manteve os olhos fixos em . Sob a mira de Cobb, ele foi obrigado a se ajoelhar a poucos metros dela, posicionado como plateia para o espetáculo vil e desmoralizante que viria a seguir.
Ambos tremiam e suavam. Partilhavam a angústia, o medo, a humilhação e o estresse. Estavam machucados, tontos e fracos, vivenciando um pesadelo do qual não conseguiam escapar.
ainda lidava com espasmos e tremores involuntários, que aumentavam a cada segundo diante daquela situação. Teria que ficar ali, inerte, vendo ser encurralada entre a mesa e o torturador. Teria que assistir cada toque e ver a dor e horror nos olhos dela.
***
— Traeger vai te estuprar repetidamente. — Bishop ameaçou, aproximando-se da mulher. — E aí você vai ver ser torturado por muitos dias. Vou alargar esse sorriso... — voltou os olhos para , satisfazendo-se com o estado dele.
O torturador tirou uma longa faca que estava em seu cinto e desenhou um sorriso no ar.
— Então eu vou quebrar cada um dos ossos no corpo dele e vou mandar cada pedacinho para a Agnes. — Riu com desdém e se virou para . — E depois que você já tiver sofrido bastante, eu vou fazer o mesmo com você. — Agarrou o rosto dela e apertou. Delineou os lábios dela delicadamente com a faca. — Faça tudo bem devagar, Traeger. — Finalizou, afastando-se com um sorriso macabro.
— Vai ser doloroso... muito doloroso. — Traeger tocou os pulsos de e então subiu as mãos lentamente, acariciando seus braços. Colou o corpo ao dela, sentindo-a estremecer.
O cheiro de colônia e a proximidade a deixavam nauseada.
— Mas você vai sentir prazer também. Vou fazer coisas que ele nem sonhou em tentar. — Lançou um olhar para , enquanto a tocava por baixo da blusa. — E vou saborear cada momento. — Sussurrou lentamente, afastando os cabelos dela.
Depositou um demorado beijo na nuca desnuda e com facilidade, começou a rasgar a blusa a partir da gola. O barulho do tecido esgarçando fez buscar os olhos de . Ambos ofegavam e tremiam.
— Amor... quero te ouvir gritar. — O torturar cravou os dentes no ombro dela, esperando uma reação que não veio.
Subitamente, levou a mão esquerda até sua nuca e empurrou seu tronco em direção à mesa de madeira. O baque surdo gerou gargalhadas nos torturadores. Bishop assistia a cena com uma expressão de contentamento, enquanto brincava com a longa lâmina entalhada.
agora estava de pé, com o tronco sobre a mesa e o rosto virado para . Ela o encarava com olhos suplicantes. Não para ser salva ou para que tudo aquilo parasse, mas para que ele não reagisse, que não tentasse salvá-la.
Traeger soltou a nuca dela e levou as mãos até sua cintura, lentamente começou a erguer a blusa, deixando as costas expostas.
— Essa cicatriz é linda... — comentou, mordiscando a boca.
Delineou a cicatriz com os dedos e depois com os lábios. fechou os olhos por um instante, tentando não chorar. Além dos toques indesejados, pensamentos intrusos a atingiam. Ouvia nitidamente a voz de Thompson tagarelando sobre as barbaridades que faria, afirmando que a sangraria feito um porco.
***
O olhar distante e perdido de , e o prazer estampado no rosto de Traeger aumentaram o desespero de . Com o maxilar travado, veias aparentes na testa e pescoço e o rosto muito vermelhos, ele se forçava a ficar ali parado. Sentia o ódio e a desesperança consumi-lo. Lágrimas molhavam seu rosto, enquanto ele assistia impotente àquela cena.
O torturador levou as mãos ao cós da calça da mulher e começou a baixá-la lentamente, gerando angústia e horror. O lento movimento foi interrompido pelo som agudo de um alarme. Em seguida, tiros foram ouvidos.
saiu de seu transe e os homens exibiram expressões alarmadas.
— Vá! — Bishop ordenou Novak, que prontamente saiu da sala.
O som de tiros continuou e antecipando possibilidades nefastas, afastou Traeger e puxou pelos cabelos. Colocou a longa faca no pescoço dela, esperando o que viria a seguir.
A porta foi aberta em um estrondo e figuras conhecidas entraram na sala. se deparou com o pai, Nate e outros três homens. Hugo Bormann encarava a cena com cólera em seus olhos. Sua filha machucada, com a blusa parcialmente rasgada e a ponto de ser estuprada.
— Notícias voam. — Bormann rosnou com os olhos em Bishop. — Você realmente achou que ia machucar a minha filha e ficar impune? — Deu um pequeno passo à frente.
Tinha a arma apontada para a cabeça de Bishop.
— Se eu morrer, ela também morre. — Bishop rebateu, apertando a lâmina gélida contra o pescoço de sua refém.
arfava. De um lado, Bishop a aprisionando, acompanhado de Traeger e Cobb armados. Traeger apontando sua arma para os homens de Bormann e Cobb ainda com a arma na cabeça de . Do lado oposto, Bormann, Nate e mais três lacaios, todos com armas punho. Estavam em um impasse.
O casal permanecia imóvel, com a respiração rápida e superficial, um temendo pela vida do outro. sentia o coração palpitar. O prédio devia estar cercado. Logo Bishop estaria morto e aqueles torturadores também. Precisava garantir que estaria à salvo.
Alheia às vozes e ameaças, voltou os olhos para Nate, que a observava aflito. Com os olhos apontou . Era um pedido silencioso. Pedia pela vida dele. Diante da inércia de Nate, ela moveu os lábios, expressando um “por favor” inaudível. Após alguns segundos de hesitação, o homem deu um discreto aceno.
Diante daquele sinal, juntou o que restava de suas forças. Ao primeiro som de tiros, ela nem precisou se virar para ter certeza de que Nate havia acertado o alvo. Em um movimento brusco, ela agarrou o antebraço de Bishop e o puxou para baixo. Afastando a faca de si, em um golpe rápido e certeiro, puxou o pulso dele com força e se inclinou, recuou alguns centímetros e atingiu as costelas dele com a faca. Esfaqueou o torturador mais cinco vezes, antes de se afastar cambaleante.
Apoiou a mão direita na mesa, sentindo que a sala girava e que iria cair a qualquer momento. Aflita, ela tocou o pescoço com a mão esquerda, certificando-se que não havia sangue ali. Respirou fundo e ao ouvir passos, soltou a mesa. Nate vinha em sua direção, mas ela desviou. Alcançou , que ainda estava de joelhos e lançou os braços ao redor do pescoço dele. Ele envolveu seu corpo com cuidado e afundou o rosto nos cabelos dela.
— Precisamos ir. — sussurrou, afastando-se.
Puxou a arma caída ao lado do cadáver do Cobb e se ergueu, ajudando a também se colocar de pé.
— Isso é muito comovente, mas precisamos ir. Eu vim te buscar. — Bormann falou, aproximando-se.
ergueu a arma e apontou para a cabeça do pai. Estavam cercados.
— Eu vim te buscar. — Repetiu impaciente. — Não vou a lugar nenhum sem você.
ofegava. Apoiava com o braço esquerdo e era suportada por ele. Com a mão direita, ela apontava a arma para o pai. Estava trêmula, fraca e cercada. Nate estava há poucos passos de si e logo atrás dele, um homem algemava Bishop e o outro algemava Traeger. Estavam feridos, mas vivos. Seriam cuidados para, então, sofrerem todos tipos de torturas nas mãos de Bormann.
puxou e então deram dois passos em direção à porta. Ele juntando todas as forças para conseguir se manter de pé. Ela ainda com a arma apontada para o pai. Logo sentindo duas armas sobre si.
— Você está fraca e machucada. Eu vou cuidar de você. — Bormann deu mais passos na direção da filha. — Eu posso te curar. — Parou na frente dela e sentiu o cano da arma em sua testa.
— Abaixem as armas. — Nate ordenou para os homens atrás de si, que logo acataram.
Hugo Bormann apenas esboçou um sorriso.
— Se afaste ou juro que te mato. — Ela gritou ofegante.
— Você não tem coragem. — Sussurrou, estampando um sorriso de lado.
— Talvez não. — Recolheu a arma e a posicionou embaixo do próprio queixo. — A escolha é sua. — Seu coração parecia que ia sair pela boca.
Ao seu lado, estava desesperado. Mal se mantinha de pé e ainda presenciando tudo aquilo. Mas ele tinha certeza de que aquilo era um blefe. Não acreditava que ela seria capaz de se matar.
— Pode levar meu cadáver para a sua mansão... ou pode me deixar sair daqui andando com o .
Bormann meneou a cabeça e sorriu.
— Você sabe que eu sou sua única esperança.
1... 2... — contou diante de olhares surpresos e apreensivos.
Diante da postura inabalável da mulher, Bormann deu dois passos para trás.
e saíram da sala. Os dois com um caminhar lento e trôpego, um apoiando o outro. A dor era insuportável, mas eles se forçavam a manter o ritmo. Precisavam sair dali. E fariam isso, nem que tivessem que se arrastar.
Do corredor começaram a ouvir gritos. Sabiam que o som vinha de Bishop e Traeger. Sofreriam nas mãos de Bormann. Seriam punidos com crueldade.
— Ele vai nos seguir. — falou com dificuldade diante das dores e a respiração descompassada. Parou por um instante, sentindo as pernas falharem.
— Eu vou explodir isso tudo se for preciso. — Afirmou, determinada. Ela empenhava todas as suas forças em cada passo. — Eu vou te levar para casa.
Passaram pelos corredores antes barulhentos e agora só ouviam o silêncio. Esgueiravam-se, preocupados em encontrar mais homens de Bormann. Ouviram o som de passos e entraram na primeira porta que encontraram.
Depararam-se com um banho de sangue. Quatro corpos fuzilados, três torturadores e uma vítima ainda dependurada no teto. O casal se apoiou na parede por um instante, pensando em seu próximo passo. foi até os corpos e pegou as armas dos torturadores. Entregou uma das armas para e então o puxou até o outro lado da sala. Posicionaram-se atrás de um velho freezer e esperaram. Ainda podiam ouvir uma movimentação lá fora.
Sentados no chão gelado, eles se encararam por alguns segundos. tocou a mão de com cuidado e então entrelaçou os dedos aos dela. Ele sussurrou um “te amo” e beijou a mão quente dela com delicadeza. Antes que pudesse fazer qualquer coisa, a porta rangeu.
Eles se afastaram, cada um com arma em punho, preparados para qualquer coisa que tivessem que enfrentar. Morreriam lutando, juntos.
A imagem da mulher diante da porta os surpreendeu e os deixou atordoados. Aquilo mais parecia uma miragem. sentiu lágrimas rolarem quando Selina correu em sua direção, seguida por Owen e Eve.
— Ela realmente veio num cavalo branco. — falou, abraçando a amiga e sorriu. — Mas como...
— O rastreador no carro. — Selina se soltou do abraço e se voltou para , também o abraçando.
— Você é nossa super-heroína. — arfou, apertando os ombros da mulher — Vocês três são. — Completou, encarando Owen e Eve.
— Tem mais alguns super-heróis lá fora. Montamos uma super equipe de resgate. — Owen comentou, sorrindo, ajudando a se levantar.
— Achei que o lugar estaria cercado. Cheio de homens do Bormann. — arquejava, sendo erguida por Selina.
— Estava. Mas já derrubamos todo mundo. — Selina explicou, envolvendo a cintura da amiga, ajudando-a a se manter de pé. — Agnes mandou quatro grupos de combate. Nos dividimos e atacamos os torturadores.
— Você é incrível. — murmurou chorosa.
— Claro que eu sou. Esperei os homens do Bormann acabarem com os do Bishop. E aí atacamos eles. — Rebateu convencida, gerando sorrisos. — Vamos. Precisamos tirar vocês daqui.
Eve saiu na frente. Conversava com alguém pelo comunicador. Owen foi atrás amparando e logo depois Selina com .
— E meu pai e os homens dele? — perguntou após alguns passos.
Olhou para trás, encarando o corredor atrás de si, receosa.
— Não se preocupe com isso. Você está a salvo. Isso que importa. — Selina tirou os fios de cabelo grudados nas bochechas pálida e suadas da amiga, e imediatamente seu rosto expressou preocupação.
— O que foi? — Indagou, abaixando o tom de voz.
— Sua pele está queimando. Está febril. — Selina tentou, mas não conseguia esconder sua inquietação.
— Você acha que... — nem conseguiu terminar a frase.
Seu rosto se contorceu em uma careta, quando ela sentiu uma pontada na cabeça. Com dificuldade, ela levou a mão à testa. Respirou fundo, tentando clarear os pensamentos, mas então a dor aumentou. Tentou respirar, puxou o oxigênio primeiro pela boca e depois pelo nariz.
? — Selina amparou a amiga que desfalecia em seus braços.
arquejava. A cada pontada o corpo dela, curvava-se mais. A dor era muito mais forte que nas outras crises. Ela se esforçava em conter os gritos, mas não podia evitar as forças lhe escapando. Seu corpo parecia desmanchar, enquanto sua cabeça explodia. Não podia mais andar. Seu corpo inteiro tremia e suava.
— Vá... embora... — juntou todas as suas forças para dizer aquelas palavras.
— Eu não vou te deixar! — Rebateu, ainda segurando a amiga.
— Vo... você... pro... meteu... — gaguejou, sentindo o corpo inteiro queimar e as lágrimas escorrerem. — Vá... — implorou, chorando.
Diante daquilo, Selina também começou a chorar. Não tinha forças para abandoná-la. Quando finalmente a reencontrou, precisava deixá-la ir de encontro à morte.
— Por favor... — o choro de aumentou juntamente com suas dores. Seu corpo inteiro tremia e suava.
Selina também chorava copiosamente. Amaldiçoava o universo por fazê-la passar por aquilo de novo. Perdeu o marido e o filho para o mesmo maldito vírus. Os dois sucumbiram da mesma forma. Ela sabia o quão dolorosa e feia aquela morte seria. Em poucos minutos, a situação pioraria muito. E mesmo que aquilo partisse seu coração, ela precisava deixar . Havia feito uma promessa. Não podia abrir mão disso. Prometeu cuidar de e de Penny.
— Eu te amo. — Selina falou entre as lágrimas, ajudando a sentar no chão.
Acariciou os cabelos daquela que considerava tanto, que amava como uma filha, e depositou um beijo em sua testa. O corpo fraco e febril da mulher tombou e ela apoiou os antebraços no chão.
— Vá... — pediu em um sussurro, sentindo a dor excruciante que se espalhava pelo seu corpo inteiro.
Selina obedeceu.
Sem conseguir olhar para trás, ela deu passos firmes. Ao alcançar os outros, viu Eve e Owen assentirem com expressões tristes.
— Selina? — questionou sem entender nada. Viu no chão agonizando. — ? — Gritou exasperado. — O que você... — tentou se soltar de Owen para alcançar a mulher, mas foi impedido. — ME LARGA, OWEN! — Berrou, aflito. — SELINA? O QUE VOCÊ ‘TÁ FAZENDO? — Gritou mais alto, ainda tentando se soltar.
— Precisamos ir. — Selina ordenou e Owen passou a arrastar .
Mesmo fraco e machucado, ele tentava lutar. Confuso e tomado pelo pânico, ele gritava mantendo os olhos em . Ela se contorcia, a dor estampada no rosto. conseguiu se soltar por um momento e tentou correr em direção à mulher, mas logo foi imobilizado por Owen em um mata-leão e caiu de joelhos. O ar faltou. Com o rosto vermelho e as veias saltadas, ele tentava desesperadamente se soltar dos braços do homem. A última coisa que viu antes de perder a consciência foi sangue. Escorrendo dos olhos, nariz, boca e ouvidos de .



Capítulo XVII.
I don't know what I'm supposed to do, haunted by the ghost of you.

despertou, confuso. O chão gelado e o sacolejo do caminhão pareciam familiares. Lembrava de acordar num caminhão com . Ficou parado por um tempo. O frio e as dores em todo o corpo o impediam de se mover. Sentia-se fraco e tonto. Tentou juntar forças para se levantar, mas não conseguia ter sucesso. Em meio as tentativas, as memórias o atingiram: lembrou dos choques, das dores, da voz de através de uma parede fina, lembrou dos olhos dela implorando para ele não reagir. Por fim, lembrou do corpo frágil se retorcendo em dores, enquanto Selina se afastava.
Apertou os olhos com força, sentindo seu desespero aumentar ao recordar do sangue saindo dos olhos da mulher. De punhos cerrados, ele empurrou o chão do caminhão, finalmente conseguindo se sentar. Firmou as mãos na parede e se colocou de pé, diante de um par de olhos o encarando com compaixão.
... — Selina começou, aproximando-se.
— Pare esse caminhão! — Ele ordenou.
Tinha a respiração rápida e descompassada. Ainda sentia o ar faltar. Agora lembrava com clareza de Owen o sufocando.
— Precisamos conversar sobre o que aconteceu. — Tentou se aproximar, mas viu a expressão dele endurecer.
— Você a deixou lá... deixou a para morrer. — Acusou, avançando em direção a Selina. Sua voz trêmula e raivosa.
— Não tinha nada que a gente pudesse fazer. — Ela suspirou.
Precisava contar tudo para ele e sabia o quão duro aquilo seria.
— É claro que tinha. A gente podia cuidar dela. — Começou, apoiando-se novamente às paredes do caminhão ao sentir o corpo fraco. — Por que me trouxe de volta? Eu também fui torturado. Por que não me deixou para morrer? — Ele elevou o tom de voz.
O ódio o consumia. Começou a bater nas paredes. Precisava voltar.
— A não estava daquele jeito por causa da tortura... ela estava doente.
imediatamente parou de bater na parede metálica.
— Do que...
— Ela estava infectada com o NT3. — Selina explicou, aproximando-se com cautela.
A expressão no rosto de passou da surpresa a incredulidade.
— Não. Não estava. Ela estava bem.
— Ela lidava com esse maldito vírus há dois anos. Quando a conhecemos, ela já estava infectada.
— Quê? Não. Você está mentindo.
— Acha que eu mentiria sobre isso? Com que intenção? Te machucar? Você realmente acha que eu faria isso?
— Isso não é possível. O vírus mata rápido. Ela não estava infectada. — se afastou, impaciente.
Nada que Selina falava fazia sentido para ele. Só queria que aquele maldito caminhão parasse. Precisava voltar para buscar . Um salvava o outro, esse era o trato.
— Ela estava. — Selina novamente tentou se aproximar. — Ivy desenvolveu um soro.... quando estava cuidando da minha família. Não funcionou para eles. Mas ela conseguiu aperfeiçoar. Ele abaixava a carga viral. Mas com o tempo foi perdendo a eficácia. — Tentava ser cuidadosa e escolher bem as palavras, mas nada poderia amenizar toda a tragédia que os cercava.
— Não... — ofegou, ainda sem acreditar naquilo tudo.
— Ela... ela está morta e... — Selina tocou o ombro dele, ansiando que pudesse tirar um pouco da dor que ele sentia, mas sabia que isso não era possível. Mal conseguia dar a notícia. Não conseguiria encontrar palavras para consolá-lo. — Não há nada que possamos fazer. — Terminou, sentindo a respiração pesada.
— Pare esse caminhão! — Rosnou, soltando-se das mãos dela.
— Não podemos trazer o corpo. Seriamos infectados e... — Selina tentava impedir as lágrimas de rolarem, mas sua voz expressava toda a sua dor.
— PARE ESSE CAMINHÃO! — Gritou, socando a parede e sentindo o que restava de suas forças se esvaírem. — PARE ESSE MALDITO CAMINHÃO! — Repetiu, sentindo as pernas fraquejarem.
Num ímpeto de fúria, arremessou o próprio corpo contra as portas de metal. Desabou, sentindo a mente e sentidos sobrecarregados pelas palavras de Selina.
...
— Fique longe! — Interrompeu-a, raivoso.
Juntou todas as forças que lhe restavam e novamente se colocou de pé. Voltou a socar o metal. Estava exausto e com dores em cada parte do seu corpo, mas precisava dela. Precisava voltar.
— Esse caminhão só vai parar quando chegarmos à casamata. — Selina elevou a voz, chamando a atenção dele. — Eu prometi para que ia te manter a salvo. — Sua voz falhou.
As lágrimas finalmente rolaram pelas bochechas dela.
— Eu vou cumprir essa promessa. Eu devo isso a ela. — Afastou-se, limpando o rosto.
Naquele momento, a realidade finalmente o atingiu. estava morta. Ele não havia sido capaz de salvá-la.
Socou a parede mais algumas vezes e então caiu de joelhos. A dor que sentia era muito maior do que qualquer tortura que já sofreu. Preferia lidar com choques elétricos ou simulações de afogamento, a ter que enfrentar uma realidade sem ela.
De joelhos, revivia o momento em que a viu no chão, com dor e sangrando. Levou as mãos ao pescoço sentindo novamente o ar faltar. Ofegante e com o coração despedaçado, ele conseguia visualizar com clareza a dor nos olhos dela.
Um grito de profunda dor saiu de sua garganta.
Manteve-se na posição durante o resto da viagem. Em silêncio, com os olhos nublados pelas lágrimas, ele encarava as paredes enferrujadas, revivendo continuamente os últimos momentos com .

•••

Chegaram na casamata de manhã. Todos exaustos e abalados. Na garagem, Agnes e Graham os aguardavam. A porta do caminhão se abriu e Graham ajudou a descer. Agnes foi até o filho e com cuidado envolveu o rosto dele com as mãos. Ele estava abatido e muito machucado.
— Eu estava com tanto medo de te perder. — Agnes acariciou o rosto de , mas ele não esboçou nenhuma reação.
Permaneceu com o olhar perdido.
— Você está bem? — Diante da inércia do filho, voltou-se para Selina. — O que aconteceu?
— Ele está em choque. Perdemos muita coisa hoje. — Selina apertou os lábios, não se permitiria chorar naquele momento.
— Você vai ficar bem. — Agnes envolveu o tronco de , abraçando-o com cuidado. — Está em casa.
— Onde estão os outros? — Graham indagou, preocupado.
Quatro grupos de combate haviam sido enviados para a missão. Apenas três haviam voltado. Sua apreensão aumentava a cada minuto. O grupo liderado por Elliott Walker não retornou e não tinha ideia do que havia acontecido. Uma falha na comunicação o deixou no escuro.
— E o Charles? — Agnes perguntou ansiosa e viu Selina apenas menear a cabeça.
— Agnes, você deve levar o para enfermaria. Owen pode ajudar. — Graham fez sinal para Owen, que imediatamente se colocou ao lado de , suportando-o.
Agnes não conseguiu esconder a dor que sentia por perder Charles novamente. Mas sabia que agora não era o momento para luto. precisava dela. Com passos lentos, ela saiu abraçada ao filho.
— Cadê os outros? — O chefe de segurança se virou para Selina, repetindo a pergunta.
— Eu não sei. Nós nos dividimos quando chegamos lá. O grupo do Hal ficou do lado de fora para garantir que nenhum torturador saísse vivo. Eu, Knox e o Walker entramos na fábrica. Assim que eu encontrei o e a , tirei eles de lá.
— E onde está a ?
— Morta. — Aquela palavra amarga saiu de sua boca com dificuldade. Esforçava-se em não chorar.
— Sinto muito. — O homem murmurou e Selina pensou em rebater. Sabia o quanto ele a odiava e que devia estar até feliz com a notícia. Mas decidiu que não gastaria suas forças nisso. — Charles também está morto?
— Não o encontramos.
— E Dax?
— Morto. — Disse Madeline Knox, aproximando-se.
A mulher era líder do mais antigo grupo de combate da casamata.
— Encontrei ele em uma sala. Corpo destroçado pela tortura e... — ela parou no meio da sentença ao notar a expressão de dor estampada no rosto de Selina. — Sinto muito.
— Ele nos traiu. Teve o que merecia. — Graham rosnou. — Mataram o Bishop e o Bormann?
— Minha equipe não encontrou os dois. — Knox respondeu. — Matamos muitos torturadores, mas nem sinal deles.
— Como? Hal me disse que os dois estavam lá dentro.
— Vamos ter que esperar o Walker voltar para saber. Talvez ele e a equipe tenham matado os dois.

Após uma longa conversa com Graham, explicando e repassando cada detalhe da missão, Selina finalmente caminhava em direção ao seu pequeno alojamento. Sentia o peito sendo esmagado. Assim que entrou em sua sala, ela recostou na porta e deslizou, sentando-se no chão. Ali, longe dos olhos de todos, ela chorou. Um choro engasgado e sonoro.
Mais uma vez havia presenciado a ação do maldito vírus. Perdeu mais uma pessoa amada para aquela maldita doença. Desejava com todas as forças que as coisas tivessem sido diferentes. Queria trocar de lugar com . Queria tanto que ela vivesse.
Selina chorou por um bom tempo e então limpou o rosto e se colocou de pé. Tomou um banho e se vestiu. Saiu do alojamento decidida a ser forte, decidida a cumprir a promessa que havia feito. Foi até a cabine de Penny e , bateu na porta algumas vezes, sem resposta. Pegou a chave do bolso e entrou no recinto vazio.
Imediatamente, sentiu a dor no peito aumentar. Em cada canto daquele apartamento ela podia ver um pedaço da amiga. Ali, do lado da porta, ainda estavam as botas pretas surradas que a mulher adorava. Em um suporte na pia, uma xícara azul com um lascado na borda. Apesar do defeito, aquela era a xícara favorita de e ela se recusava em se desfazer do objeto.
Sentindo as lágrimas novamente brotando em seus olhos, foi até o banheiro.
Seguindo as instruções dadas pela amiga, retirou o pequeno armário do lugar. No compartimento secreto havia três caixinhas metálicas. Uma com seringas, outra com ampolas que continham o soro azulado e a terceira mais leve que as outras, tinha alguns papéis dentro. Selina foi até o sofá e remexeu nos papeis da caixinha. Havia quatro envelopes: um endereçado à Selina, um à Penny, outro à Agnes e o último, o mais pesado, endereçado ao .
Abriu o envelope que deixou para si e depois de três sentenças, já estava novamente chorando. Assim que terminou de ler, chorou ainda mais abraçada à carta. Ali, expressava todo o amor que sentia por Selina, a mulher que havia se tornado sua família, a figura maternal que sempre ansiou.
Quando conseguiu se acalmar, recolheu os outros três envelopes e colocou a caixinha e o armário no lugar. Do envelope endereçado ao , caiu um colar com um pingente, no mínimo estranho, uma bala. Intrigada, encarou o projetil por alguns segundos. Não lembrava de tê-lo visto. Colocou o objeto novamente dentro do envelope e saiu.
Com passos apressados, foi até a cabine de Owen. O homem atendeu à porta e imediatamente deu espaço para ela entrar. No pequeno sofá marrom, estava Penny abraçada a uma almofada e chorando copiosamente. Selina se sentou no sofá ao lado da mulher e a abraçou.
— Ela sofreu? — Penny perguntou entre soluços.
— Não. — Selina mentiu. — Ela está bem agora. — Acariciou os cabelos da mais nova e em seguida apertou o abraço.
Ficaram naquela posição por um bom tempo.
— Nós precisamos cuidar do . — Penny afirmou, afastando-se um pouco.
— Nós vamos. E eu vou cuidar de você.
— Por favor, me deixa cuidar de você também. Eu sei que você é bem cabeça dura e não gosta de depender de outras pessoas, mas... — soltou-se do abraço e encarou Selina. — Por favor, me deixa te ajudar.
— Ok. Estamos juntas nessa. — Limpou as lágrimas de Penny e estendeu um envelope para ela. — Aqui.
— O que é isso?
deixou para você.
Ao encarar aquele envelope com a letra da amiga rabiscada, Penny voltou a chorar. Sentia seu coração afundando. Por todas as palavras não ditas, por cada momento que viveria sem a partir de agora.

•••

Quando Selina alcançou seu apartamento, já era manhã. Dormiu recostada ao sofá de Owen com Penny deitada em seu colo. Tão logo entrou na cabine e já ouviu batidas na porta. Ao abrir, deparou-se com Agnes, que apertava as próprias mãos e tinha uma postura apreensiva.
— Agnes, você está bem?
— O que aconteceu lá? Ele não disse uma palavra. — Entrou apressadamente e cruzou os braços, apertando-os contra o corpo com força. — Ele está só encarando o nada. Eu não sei o que fazer. Eu estou com medo... medo dele estar quebrado de vez. — Fechou os olhos por um momento, sentindo a dor daquela possibilidade. Não suportaria perdê-lo. — Ele é tudo que eu tenho. — Terminou com a voz falhando.
— Vai ser difícil, mas ele vai conseguir sair dessa. Ele vai ficar bem, eu sei que vai. — Disse com convicção.
Realmente acreditava naquilo.
— Eu olho para ele e... eu só vejo uma casca. Tanta dor, tantos traumas. — Deu passos lentos e sentou no sofá.
Apoiou o cotovelo nos joelhos, a cabeça nas mãos e segurou o cabelo com força. Lembranças do filho machucado e com o olhar vazio a sufocavam.
— Ele estava de novo nas mãos do Bishop. E ele viu a morrer. — Selina deu alguns passos em direção ao sofá.
Observou com atenção a mulher que agora parecia tão vulnerável.
— Sei que não gostava dela e entendo todo o trauma de olhá-la e lembrar do Bormann, mas...
Agnes ajeitou a postura e a encarou, esperando o fim daquela sentença.
— O sempre a viu por quem ela era. E ele a amava.
— Não escolhemos quem amamos. — Com ombros e costas curvados, Agnes se abraçou.
Naquele momento, tentou não desviar seus pensamentos para sua própria história de amor trágica.
— E o sempre viu o melhor nas pessoas.
— Ela era incrível. Havia tanto ali para amar. E, sabe, era difícil para ela também. Te ver. Ela sempre se culpou pelos pecados do pai. — A vontade de chorar havia voltado.
A perda era dolorosa e ainda mais doloroso era saber que sempre esteve em conflito, sofrendo, se culpando, com uma sentença sobre a cabeça, cercada por ódio de todos os lados, incapaz de desfrutar de qualquer felicidade plenamente. E Agnes não era a única a destilar ódio contra . Até Selina teve seus momentos de desconfiança e rancor direcionados à filha de Bormann. A verdade era que a única pessoa que nunca a enxergou daquela forma era . O único que sempre a viu para além de sua família.
Perdida em pensamentos, Selina deu um longo suspiro e então voltou a atenção para Agnes.
— Ela te admirava. A sua força, o tipo de mulher que você é, como criou o . E ela deixou algo para você. — Foi até o balcão e alcançou um envelope.
Entregou nas mãos de Agnes e então se sentou na ponta do sofá esperando pacientemente a leitura da carta.
A mulher encarou o envelope por alguns minutos. Não sabia o que esperar. Sua relação com havia sido conturbada em todo o tempo que conviveram. Lembrava-se com clareza do dia que ela chegou à casamata, odiou Selina por levar a filha de seu algoz para dentro do seu lar. Por algum tempo chegou a odiar por se aproximar dela. Agora estava morta. e Selina estavam de coração partido. E ela não sabia como se sentir.
Ainda perdida em seus próprios pensamentos, começou a ler a carta:
— É um pedido de desculpas. Ela escreveu se desculpando por ser um tormento na minha vida. — Agnes murmurou, finalmente encarando Selina. — Ela diz que queria não ter os olhos dele. — Uma teimosa lágrima rolou por sua bochecha e se apressou em limpá-la. — Sinto muito, Selina. De verdade. Sei o quanto a amava.
— Ela era minha família.
— Eu sinto muito mesmo. — Alcançou a mão de Selina e a apertou por alguns segundos. — Eu preciso ir.
— Agnes... — chamou e a mulher parou perto da porta. — O vai ficar bem. Ele é muito forte. E não está sozinho.

despertou com o som persistente do zunido de uma máquina. Abriu os olhos, deparando-se com paredes tão brancas, que precisou de algum tempo para acostumá-los a claridade. Com atenção, observou os arredores e se deu conta que estava no mesmo quarto de enfermaria onde passou muito tempo se recuperando.
Sentindo-se zonzo e fraco, mexeu-se na cama, imediatamente sendo tomado por dores em todo o corpo. Junto com as dores, as lembranças também iam voltando em fragmentos. Apenas quando seus olhos focaram na cadeira de madeira vazia ao lado da cama, é que a realidade o atingiu. não estava ali. Ela estava morta. Aquela certeza despedaçava seu interior.
Tentou recordar dos dias que passaram ali, juntos, de sua risada, de cada momento de carinho compartilhado. Mas uma única memória intrusa persistia ocupando seus pensamentos. A visão da mulher agonizando e do sangue saindo de seus olhos, nariz, boca e ouvidos.
Fechou os olhos e sacudiu a cabeça, tentando se livrar daquela imagem, mas não conseguia. Ela se repetia como uma canção irritante em um disco arranhado.
Seus olhos arderam e lágrimas brotaram ali. Precisava sair daquele quarto, daquela enfermaria, da casamata. Precisava voltar para a fábrica. Pouco importava se poderia se infectar. Precisava enterrá-la. Não podia deixá-la lá, à mercê de vis torturadores.
Não sabia quanto tempo havia dormido, mas sabia que não poderia perder mais nenhum segundo.
Sem qualquer cuidado, arrancou o acesso do braço esquerdo, sentindo uma ardência e a dor no corpo aumentar devido o esforço. Imediatamente os aparelhos que o cercavam começaram a apitar em um bipe estridente. Sabia que logo alguém ia aparecer, então tentou se apressar. O que no momento parecia impossível, diante da fragilidade de seu corpo ferido.
Irritado com o barulho constante, esfregou o braço com força. Parou por um momento quando seus olhos focaram nos curativos que cobriam os pulsos machucados. Tocou o local com cuidado, imaginando o tamanho dos cortes feitos pelas correntes que o mantiveram longe do chão, enquanto seu corpo era eletrocutado. Logo precisou cerrar os punhos para tentar conter os tremores que o atingiram. Sentia que ia convulsionar a qualquer momento.
Tomado pelo desespero, ergueu um pouco a cabeça e então a jogou para trás, acertando o travesseiro com força. De olhos fechados, ele se esforçava em acalmar a respiração.
Abriu os olhos, determinado e com muita dificuldade, conseguiu se sentar. Com as mãos, empurrou as pernas para fora da cama e imediatamente curvou as costas, dobrando-se em uma onda de dor. Conforme a dor aumentava, mais vividas ficavam suas lembranças. De olhos fechados, sentiu que ainda estava na fábrica e com uma arma apontada para sua cabeça, tendo que assistir ao sofrimento de , sem poder reagir.
Os tremores pioraram. Precisava se concentrar no presente. Precisava sair dali.
Travou o maxilar e escorado à cama, deu curtos passos até a porta. Ao alcançar a maçaneta, seu nervosismo aumentou ao perceber que estava trancada. Tentou forçar a porta sem sucesso e então bateu algumas vezes.
Ao ouvir um barulho do outro lado, afastou-se.
— Está tudo bem, ? — O enfermeiro Mason entrou na sala de forma cautelosa. — Precisa se deitar. Vem, eu te ajudo. — Tentou se aproximar, mas recuou.
— Eu preciso ir. — Deu passos trôpegos em direção à porta, mas o enfermeiro se posicionou, impedindo sua passagem.
— Não pode sair daqui. Precisa se recuperar. Mal consegue se manter de pé.
— Saia da minha frente. — Rosnou entre os dentes.
Mesmo sem forças, estava disposto a enfrentar o homem muito maior que ele.
— Não me faça te sedar de novo. — Era mais um pedido do que uma ameaça.
— Nem pense em fazer isso! — Penny surgiu, intrometendo-se na conversa. — Ele não precisa de remédios. Só precisa de companhia. — Deu um sorriso cúmplice para e fez um sinal para Mason se afastar.
Apoiada a muletas, entrou e se sentou na cama. Quando o enfermeiro deixou o quarto, se voltou para a amiga, preocupado:
— Você está bem? Como se machucou?
— Foi um acidente idiota. Torci o pé saltando do caminhão. — Deu dois tapinhas no lençol, convidando-o para se sentar ali.
Após alguns segundos de hesitação, ele obedeceu. Imediatamente, Penny o envolveu em um abraço apertado.
— Desculpa não ter vindo antes. A Agnes não estava permitindo visitas.
— Está tudo bem. — Disse sem emoção.
— Não, não está. — Murmurou, tentando conter as lágrimas. — Eu sinto tanto. E imagino o quanto está doendo. Está doendo muito aqui também. — Tocou o próprio peito encarando o nada. — E você nem teve a chance de se despedir...
— Ela devia ter me contado. Ela... — parou ao sentir um nó se formando em sua garganta.
Tudo aquilo era doloroso demais. Queria odiá-la. Por ter mentido, por ter se afastado. Talvez o ódio tornasse tudo mais fácil.
— Eu sei. Eu implorei para ela te contar. — Penny disse com a voz embargada, encarando as próprias mãos.
Não percebeu a expressão de surpresa e depois descrença estampada no rosto de .
— Espera... você sabia? — Indagou, encarando fixamente a mulher. — Você sabia do vírus? — Seu tom acusatório fez Penny encolher os ombros.
— Sim, eu...
— Quem mais sabia?
— Acho que só eu, a Selina e a Ivy.
— E nenhuma de vocês se importou em me contar. — Sua voz era baixa, mas cheia de ressentimento.
— Eu queria, mas... Eu... eu... — ela estagnou, não estava conseguindo lidar com todo o peso da situação.
— Por favor, vá embora. — Levantou-se bruscamente, afastando-se da cama.
... — pediu com uma voz terna, mas recebeu um olhar frio em resposta.
— Saia!
— Por favor... você precisa me escutar...
— Eu não quero você aqui! Está surda? — Gritou.
Diante da inércia de Penny, a raiva aumentou, espalhando-se por seu peito, percorrendo todo seu corpo.
— Saia! — Com toda a força que a raiva lhe conferia, agarrou o suporte de soro e o arremessou contra a parede.
Penny empalideceu. Com dificuldade, apoiou-se desajeitadamente às muletas. Ainda atordoada, tentou caminhar e perdeu o equilíbrio, acertando o batente da porta. Em poucos segundos, Selina chegou junto com o enfermeiro.
— Você está bem? — Selina amparou a amiga, enquanto Mason tentava imobilizar .
Ele, ainda debilitado, mas lutando, energizado pelo ódio e frustração.
— Estou. Não deixe sedarem ele.
— Precisa ir. Eu vou cuidar disso. — Retirou Penny do quarto e então caminhou até , que mais parecia um animal, resistindo e atirando tudo o que via em cima do enfermeiro. — Eu sei que você está sofrendo. — Elevou a voz, aproximando-se e fazendo sinal para Mason se afastar. — Mas precisa parar.
— Vocês sabiam e não me contaram. — Acusou, ressentido.
Estava ofegante e seu rosto transparecia fúria.
— Você pode ficar bravo. Tem todo direito. Até furioso, depois do que aconteceu. Eu também estou.
A verdade era que tudo o que Selina queria era expressar com ações o ódio que estava sentido. Queria destruir cada maldito torturador, cada pessoa responsável pelo sofrimento das pessoas de seu país. Queria vingar sua família e cada inocente morto pelas mãos do antigo regime e da Nova República. Entendia muito bem a fúria de e partilhava dela.
— Fique furioso, mas não direcione o seu ódio para a Penny. Ela só ficou sabendo recentemente e ela quis que a te contasse. — Pediu, abaixando o tom de voz. — Me xingue. Grite, lute comigo. Mas deixe a Penny em paz.
a encarou por um longo momento. Ele estava pálido, magro e mal conseguia se manter de pé. Confuso e revoltado demais com o peso da perda sobre seus ombros, ele desviou o olhar e falou baixinho:
— Eu quero ficar sozinho.
— Ok. Mas eu estarei aqui quando precisar. — Selina disse somente e deixou o quarto decidida a entregar a carta em outro momento.
No estado que ele estava, possivelmente apenas rasgaria o objeto, o que levaria a mais sofrimento.
Agora sozinho no quarto, deu passos trôpegos até a cadeira de madeira. Fechou os olhos, tentando imaginar ali, mas não conseguia. Não conseguia pensar em momentos felizes com ela. Aquela vida parecia tão distante.
Entorpecido pela dor, agarrou a cadeira e arremessou na parede com o que restava de suas forças. Mesmo diante do corpo machucado e trêmulo, ele se manteve de pé. Ofegava, enquanto sentia o mundo desabar ao seu redor.

•••

Os dias pareciam se arrastar. Havia passado três semanas desde a morte de e cada um lidava como podia. Penny e Selina se apegavam uma à outra. A dor de perder aquela que consideravam sua própria família as unia a cada dia mais — e elas tentavam se aproximar de . Sabiam que precisavam estar juntos, era uma necessidade e o desejo de , mas ele não queria, havia se isolado completamente. Não conversava com ninguém e nem aceitava visitas. A única pessoa que conseguia entrar, além da equipe médica, era Agnes, mas nem ela conseguia mais que poucas sílabas e acenos do filho.
Mas mesmo com o ar totalmente intoxicado pelo luto e a desesperança, a casamata não podia parar. Havia muito trabalho a fazer e um governo para derrubar. Selina havia se transferido para o setor de mecânica para passar mais tempo com Penny, que agora parecia apenas uma sombra da mulher alegre e animada que todos estavam acostumados.
Em uma tarde de trabalho, a mais nova largou as ferramentas de lado e foi até a amiga.
— Selina? — Chamou, apoiando-se a uma bancada.
— Está tudo bem? — Indagou preocupada, limpando a graxa das mãos.
— Sim. É que... eu estava pensando. Eu acho que precisamos de um funeral. — Sua voz baixa e incerta. — Sabe... precisamos honrar a memória da . — Justificou, tentando decifrar a expressão de Selina.
Sabia o quanto a mulher odiava esse tipo de coisa.
— Acha que podemos fazer isso?
— É uma ótima ideia. — Disse somente.
— Eu vou preparar tudo. Pode falar com a Agnes? Eu queria muito que o fosse.
— Ele ainda não quer receber ninguém, mas eu vou tentar. — As duas trocaram olhares tristes.
Penny alcançou a mão da amiga em agradecimento e se apressou em direção à porta.

•••

O dia da cerimônia havia chegado. Na floresta que cercava a casamata, perto de um rio de água cristalina, um pequeno grupo se reunia para honrar a memória de Bormann. Selina, Penny, Owen, Agnes, Eve e sua esposa Leslie compartilhavam homenagens, lembranças e lágrimas. Até Agnes decidiu dizer algumas palavras. Diferente de Penny, seu discurso não estava recheado de memorias bonitas e lágrimas abundantes. Tudo o que tinha para oferecer era seu respeito e uma fagulha de admiração que, até recentemente, ela nem sabia que existia. Mas mal havia começado, quando foi interrompida pelo som de aplausos.
— Bravo! — se aproximou, aplaudindo.
Sua presença surpreendeu todos ali. Todos os convites para o evento haviam sido recebidos com desprezo. E agora, ali estava ele, equilibrando uma garrafa de uísque debaixo do braço e com um sorriso irônico estampando seu rosto.
— Esse é um show muito pitoresco. — Sem qualquer cuidado, pegou a garrafa e derramou um pouco de bebida no chão. — É suficiente? Para homenagear pedras?
— Você está bêbado. — Penny murmurou, chorosa.
— É isso que estão fazendo. Prestando homenagem a pedras, porque o corpo dela vocês abandonaram naquela fábrica. — Rosnou. Sua voz cheia de dor e rancor.
— Querido, nós precisamos ir. — Agnes pediu, aproximando-se.
Quando tocou seu braço, ele se afastou bruscamente.
— Eu não vou a lugar nenhum. Eu fui convidado. — Disse, afastando-se da mãe.
Mas após um momento de reflexão, parou e se voltou para ela.
— E eu te devo elogios, Agnes. Não sabia que era tão boa atriz. Dizendo coisas bonitas, até derramando algumas lágrimas... — suas palavras fizeram a mulher se encolher, sabia o que estava por vir. — Mas você a odiava. Deve até ter comemorado a morte dela.
... — pediu baixinho.
— É a verdade. Você sempre quis vê-la morta. Seu desejo foi realizado, não vai mais precisar ver os olhos dela. — Diante dos olhos marejados da mãe, sua voz endureceu ainda mais. — Aposto que essas lágrimas são pelo Charles.
— Chega! — Selina gritou e foi até ele. — Nós dois precisamos conversar. — Agarrou o braço de e o arrastou para longe, ignorando as reclamações e xingamentos.
Quando já estavam distantes do grupo, soltou-o. Ela deu um longo suspiro e então falou:
— Eu sei o quanto está doendo. Eu sei o quão difícil é passar por isso.
— Não faz ideia do que eu estou sentindo. — Murmurou após tomar um gole da bebida.
— É sério? Vai dizer isso para mim? — Foi até ele, agarrou a garrafa e arremessou em uma pedra. — Eu amava a ! — Gritou, sentindo toda a dor que estava tentando manter sob controle, explodir junto com aquelas palavras. — A considerava uma filha. E eu a perdi. E o pior de tudo é que já passei por isso antes. — Lágrimas brotaram em seus olhos e ela não tentou contê-las. — Esqueceu? Eu perdi meu marido... meu filho... para esse maldito vírus. Eu nem pude segurar a mão deles. Não pude enterrar os corpos. Eles foram incinerados. Você estava lá. Você me consolou. — Agora o ódio estava presente em sua voz.
Ela entendia a dor de e não admitiria que ele agisse como se fosse o único sofrendo ali.
— Não tem ideia da minha dor. Ou da dor da Penny. Sabia que ela tem dormido no meu apartamento? Porque não consegue voltar para o dela. Não entrou lá nenhuma vez desde... — parou por um instante, não queria dizer aquelas palavras. — Ela chora toda noite.
— Mas vocês sabiam. E você pôde estar com eles. Você pôde estar com ela. — A postura endurecida dele agora havia finalmente desabado. A dor transparecia em sua voz. — Eu... eu nem tive a chance de me despedir. — Uma lágrima rolou por sua bochecha. — Por que não me contou? Achei que éramos amigos.
— Nós somos. — Afirmou, dando alguns passos na direção dele. — Eu nunca concordei em guardar segredo. Mas eu respeitei a vontade da .
— Você devia ter me contado. — encarou o chão por um instante.
Finalmente notou onde estavam. Reconhecia aquele lugar. Meses atrás estava ali com . Ensopados e com frio, sentados naquelas pedras conversando. Ali, haviam trocado aquele primeiro beijo. Um momento confuso e que mudou tudo entre eles.
— Eu a vejo o tempo todo. Nos meus sonhos e quando eu estou acordado. — Os tremores voltaram, enquanto memórias passeavam por sua mente. — Eu não tive a chance de me despedir. De dizer tudo o que precisava. Tudo que eu tive foram umas poucas palavras através de uma parede fina, em meio ao frio e a sombra da morte certa. Eu a odeio.
— Não, não odeia. Você ama a . Por isso dói tanto.
— Eu a odeio por não ter me contado e não posso perdoá-la por ter me afastado, a gente devia ter passado por isso juntos. Não é justo. Ela devia estar aqui. Ela me salvou... tantas vezes... e... Eu não consegui salvá-la. — Sua voz falhou. — Ela morreu de um jeito horrível e doloroso e eu não fiz nada. Eu apenas assisti. Eu fico repetindo na minha mente aqueles últimos momentos. Eu... — ele não conseguiu terminar.
A dor e a tristeza o inundaram de tal forma, que precisaram transbordar em lágrimas.
— Entendo seu ódio. Eu conheço a dor, a fúria. O único jeito das coisas melhorarem é deixando as pessoas que te amam te ajudarem. A Agnes te ama. Eu e a Penny te amamos. E nós duas prometemos para que nós três ficaríamos juntos. Um ajudando ao outro.
— Eu não sei se consigo fazer isso agora. — Deu passos em direção ao rio.
Permaneceu ali, em silêncio por algum tempo. Em sua mente, ainda conseguia ouvir as risadas dela enquanto brincavam ali.
— A primeira vez que a vi ela estava parada perto de um rio. A primeira vez que eu a beijei, nós estávamos aqui. — Limpou as lágrimas das bochechas, já sentindo o rosto quente e inchado.— Eu só consigo pensar nela. Em tudo o que não vivemos. Eu tenho tantos arrependimentos. Coisas que eu disse e fiz, coisas que eu devia ter dito e feito... — naquele momento, uma das coisas que mais doíam em era recordar das vezes que disse a que ela parecia com Bormann. Sabia o quanto aquelas palavras amargas a machucaram. Desejava com todas as suas forças apagá-las. — Eu a amava tanto.
— E ela também te amava. E tudo que ela mais ansiava era por mais tempo. Ainda havia tanto a te dizer. O tempo sempre foi um recurso que escapou de suas mãos, mas ela achou um jeito de te dizer tudo o que precisava. — Selina retirou a carta do bolso interno da jaqueta e estendeu para ele.
encarou a mulher e depois o envelope por um momento. Com cuidado, retirou um projetil dali. Analisou o objeto preso a uma corrente e então disse entre as lágrimas:
— Eu não sabia que ela ainda tinha isso.
— O que é isso? Por que tem um colar com uma bala amassada como pingente?
— É um amuleto. Para proteção. — suspirou.
Aquela era a bala que quase o matou, um souvenir do dia em que um atentado assassinou Charles e quase o levou junto. Ele tinha só dez anos quando isso aconteceu. Ainda aterrorizado com tudo, havia enfiado a bala no bolso e dias depois arranjou uma corrente. Por catorze anos ele a carregou consigo, escondida da vista de todos. Até que decidiu que alguém precisava mais dela.
— Dei para a na primeira semana dela aqui, mas achei que ela tinha jogado fora.
— Ela não faria isso. Você foi a primeira pessoa que mostrou bondade para ela. — Disse Selina, dessa vez contendo as lágrimas.
Não gostava de recordar dos momentos em que havia sido cruel com . Não fosse pela insistência de , a mulher nem teria sido levado à casamata.
— Quer ficar sozinho para ler? — Perguntou, quando viu o homem guardar a bala no bolso e em seguida pegar a carta.
Ele apenas meneou a cabeça e se concentrou nas palavras no papel.
Ao ler a primeira frase da carta, o choro de aumentou. Naquelas palavras, ela expressava sentimentos partilhados por ele: o amor, a dor, o arrependimento, a angústia, a tristeza e, também, a apreciação por cada momento que puderam desfrutar juntos. Mas foi com o último parágrafo que ele sentiu o aperto no peito aumentar:

É você a razão para eu ter ficado na casamata. Você me fez escolher ficar naquele dia e é o motivo de eu ter ficado tanto tempo. É o responsável por cada momento feliz que passei aqui. Você me deu uma família e a segurança que tanto ansiei. Obrigada por cada segundo. Queria muito ter mais tempo, mas como isso não é possível, vou passar o resto dos meus dias apreciando cada segundo que você me permitiu viver aqui. Eu sei que não vai ser fácil, mas, por favor, tente fazer o mesmo. Lembre-se dos bons momentos. Lembre-se que eu te amo. Mesmo que eu tenho sido medrosa demais para dizer isso em voz alta.

Diante daquela realidade profundamente cruel, aquela carta conseguia penetrar a dor sufocante que o cercava e de alguma forma acalentar seu coração. Por mais doloroso que aquilo fosse, havia uma parte dele que se alegrava. Por ter a encontrado naquela tarde, por ter a convencido de ir até a casamata, por ter escolhido visitá-la e pacientemente ajudá-la a se adaptar àquela nova vida. Ele se alegrava em cada piada idiota que pôde partilhar com ela. Cada momento de carinho, amor e apoio. Mas ele queria mais. Não era suficiente. Ele precisava de . E não considerava ser possível conseguir viver com a dor de tamanha perda.
— O que eu vou fazer, Selina? Como se supera algo assim? — Disse com urgência. Sua voz embargada e trêmula.
— Você não supera. Só continua vivendo para honrar ela.



Capítulo XVIII.
And only part of you survives

abriu os olhos. Estava naquela maldita cabana. Encarou o teto, a madeira gasta e caindo aos pedaços. Tentou se mexer. Ofegava e seu corpo inteiro doía. Com dificuldade, empurrou o homem de cima de si. Estava morto. Morto pelas mãos dela. Ela ainda segurava a faca firmemente na mão direita, mesmo com um profundo corte na palma. A mesma faca que ele havia utilizado para retalhar suas costas na noite anterior. Tremendo e arfando, conseguiu se sentar. Seus olhos percorreram a sala. Móveis quebrados e objetos espalhados, resultado da luta que ocorrera minutos antes. Sua atenção então se voltou para o cadáver ao seu lado. Um nó se formou em sua garganta. Encarou as próprias mãos, trêmulas e ensanguentadas. Apesar de todas as dificuldades que havia vivido nos últimos meses, ela nunca havia matado. Ao ver as marcas do sangue em sua roupa e em suas mãos, só conseguia pensar em como nunca conseguiria de fato escapar de sua família. Ela tirou uma vida e aquilo a tornava mais parecida com seu pai. Talvez estivesse em seu DNA ser tão cruel quanto ele. Sentindo o ar escapar de seus pulmões e ainda muito fraca, se forçou a se colocar de pé.
Deu passos trôpegos até o pequeno banheiro. Enfiou as mãos debaixo do jato de água com os olhos fixos no sangue que escorria pelo ralo. Analisou o corte profundo na mão. As feridas em suas costas eram ainda maiores. Mas estas estavam limpas e com curativos feitos pelo mesmo homem que as infligira. Encarou o espelho, arquejando, e então enxaguou a boca repetidamente. Ainda podia sentir o gosto metálico do sangue dele.
Enrolou uma toalha na mão e foi até a sala. Encarou novamente o corpo no chão. Lenny Thompson. Havia o conhecido alguns anos atrás. Foi contratado para trabalhar para Hugo Bormann, mas demitido após uma semana, considerado inapto para o trabalho. Essa memória parecia de um tempo tão distante. Sentia que sua vida podia ser dividida em duas partes. Antes e depois de descobrir a verdade sobre seu pai.
Trezentos e setenta e três dias. Esse foi o tempo que ela conseguiu se manter escondida. Longe das garras de Hugo Bormann e dos homens que ele enviou para encontrá-la. Trezentos e setenta e três dias vivendo como uma criminosa, escondida de tudo e de todos, tentando estar o todo momento preparada para lidar com o perigo iminente. Mas toda a preparação não valeu de nada. Não notou a presença de Thompson. Não percebeu que ele havia a seguido de volta até a cabana. Quando sua presença foi descoberta, já era tarde demais.
Quando encontrou os registros das pessoas torturadas pelo pai, seu interior foi tomado por pavor e desespero. Agora, ela novamente vivenciava esses sentimentos. A dor dos cortes, das ameaças, do medo da morte e de tudo aquilo que Thompson poderia fazer. Nunca se sentira tão pequena e frágil. No dia anterior ele havia retalhado suas costas, brandando ameaças e ódio. E depois de tudo, cuidou dos ferimentos, os limpou e fez curativos. Naquela manhã, o homem recomeçaria aquele ritual sádico. Mas conseguiu reagir. Em um ato de desespero, ela mordeu o pescoço dele, com tanta força que arrancou um pedaço, conseguindo atordoá-lo, e finalmente se libertar. Mas ao invés de correr, decidiu lutar. Apesar de muito machucada, conseguiu derrotar o homem muito maior que ela. Estava a salvo. Pelo menos por enquanto.
olhou para baixo. Seu estado era deplorável. Sua blusa imunda, coberta com o sangue dele. Vasculhou uma das gavetas em busca de material para cuidar de seus ferimentos e então voltou ao banheiro. Tentou se limpar rapidamente e então fez alguns curativos. Juntou seus pertences, vestiu um casaco pesado e deixou a cabana. Não era mais segura.
Com passos lentos, sentindo o peso do mundo sobre seus ombros, ela caminhou por horas floresta adentro. Estava tão cansada e com dores que ainda nem tinha conseguido realmente parar para refletir sobre tudo que havia acontecido nos dois últimos dias. Uma imagem se repetia em sua mente. O corpo estirado no piso de madeira. Ela havia matado um homem.
Estava exausta e seus músculos queimavam. Ao ouvir o som de água corrente, caminhou por alguns minutos, encontrando um rio. Encheu seu cantil e sentou-se ali. Seus olhos encaravam a água, mas tudo que conseguia ver era sangue. Sentou na grama decidida a descansar por um instante. O momento durou pouco, o barulho de gravetos se quebrando fez ela se virar. Um homem de cabelos a encarava mantendo certa
distância.
— Você está bem? — ele perguntou, preocupado. não respondeu. Apoiou as mãos em uma árvore e então se colocou de pé. — Não parece bem.
— Fique longe de mim — elevou a voz, dando alguns passos para trás.
— Eu não vou te machucar — disse, erguendo as mãos. — Você está sangrando. Posso cuidar disso. — Seus olhos a analisavam.
— Não preciso de ajuda. — Enfiou uma mão no bolso do casaco e tirou uma faca dali. Apontou para o homem, que ainda estava parado no mesmo lugar. — Só preciso que me deixe em paz.
— Estamos no meio do nada. Não vai conseguir ir longe a pé. Precisa de cuidados. Olha... — Ele colocou a mochila no chão e então se abaixou lentamente. Retirou dali uma maletinha. — Tenho um kit de primeiros socorros. Posso cuidar do seu ferimento. Te arranjo um pouco de comida, e então te deixo em paz.
— Vá embora — disse, tentando manter a voz firme apertando firmemente a faca. Deu mais alguns passos para trás e então teve que se apoiar a um tronco. Estava fraca e sua mente começou a girar. — Eu... — arquejou, sentindo suas forças indo embora. Um suor frio descia por sua testa e a floresta parecia girar. Viu o homem de cabelos se aproximando rapidamente. Então, suas pernas fraquejaram e o mundo ao seu redor escureceu.
abriu os olhos. Encarou a copa das árvores acima de si. Estava deitada no chão da floresta, mas sua cabeça estava apoiada sobre algo macio. Se sentindo desorientada, girou o pescoço, tentando se localizar. Se deparou com o homem desconhecido ajoelhado ao seu lado, segurando sua mão. Ele derramou algo sobre sua palma. A dor aumentou. O ferimento parecia em chamas e isso pareceu despertá-la. Juntando o que restava de suas forças, se soltou dele, apoiou as mãos no chão, ergueu o tronco e se arrastou para longe.
— O que você fez comigo? — disse em um tom acusatório. Tinha a respiração superficial e rápida. Estava tomada pelo desespero.
— Limpei seu ferimento — respondeu, sem se aproximar. — Mas você acabou de encher ele de terra, então vou ter que fazer isso de novo — a voz rouca dele soou divertida. Diante do semblante apavorado da mulher, tratou de explicar melhor a situação. — Você desmaiou, por sorte consegui te pegar antes de cair no rio.
— Cadê minha faca? — rosnou, tateando os bolsos.
— Aqui. — Ele pegou o objeto do chão e estendeu na direção dela. — Posso me aproximar? — assentiu com um movimento mínimo de cabeça. O olhar dela alternava entre o homem e a lâmina. Quando ele estava perto o suficiente, arrancou o objeto da mão dele.
— Eu vou embora. E não vou ser seguida — as palavras saíram duras e ríspidas. Com dificuldade, conseguiu se colocar de pé, mas quando tentou andar, suas pernas novamente fraquejaram. Ele a alcançou antes que pudesse atingir o chão.
— Ainda está fraca. — Com delicadeza, a ajudou a se sentar. Tentou tocar seu rosto, mas a mão de se fechou sobre o seu punho.
— Tire suas mãos de mim — disse, friamente. Tentava inutilmente disfarçar seu desespero. Estava enfraquecida e vulnerável.
— Me desculpe. Só queria ver se está com febre — sua voz era suave e tinha um olhar gentil. — Você não está nada bem. Precisa de cuidados. Me deixa fazer o curativo. É o mínimo que posso fazer por você.
— Ok — se deu por vencida e se sentou recostada a uma árvore. O homem foi até a mochila. Buscou o kit de primeiros socorros e então novamente começou a cuidar do corte na mão dela. — Por que está me ajudando?
— Porque precisa de ajuda — disse somente e se concentrou em sua tarefa. Ela passou a observá-lo atentamente. Não entendia porque ele a tratava daquela forma. Eles nem se conheciam. Aquilo não fazia sentindo. Ou então o problema não era ele. Talvez o problema era que, depois de tudo o que ela tinha visto e vivido, não conseguia realmente acreditar que existiam pessoas boas por aí. — Você vai ficar bem. Só precisa manter isso limpo — finalizou, ajeitando as ataduras.
— Obrigada.
— Meu nome é .
— Obrigada, .
— Agora é a hora que você me diz seu nome — disse, esboçando um pequeno sorriso.
— Não quero fazer isso. — Preocupada com a possibilidade de ele reconhecê-la, recolheu as mãos, passando a encarar o curativo.
— Você tem para onde ir? — perguntou ele, cauteloso.
— Sim.
— Não pareceu muito segura disso. — Ele apertou os lábios por um instante. — Você devia vir comigo. — Viu abrir a boca para discordar e continuou. — Eu moro em um lugar que acolhe pessoas que estão fugindo e perdidas.
— Não estou fugindo... nem perdida.
— Nós todos estamos. Acho que é parte do que nos faz humanos. — Mordeu o lábio, pensativo.
— E que o você faz lá? É algum tipo de filosofo? — Ele franziu as sobrancelhas. — Definitivamente não é um profissional de saúde, porque esse é um curativo bem meia boca — murmurou finalmente, suavizando suas expressões. deu uma risada alta.
— Parece bem melhor. Já está até debochando das minhas habilidades. — A examinou por um longo momento antes de dizer: — É um bom lugar para se viver. Bem longe das garras da República. Protegida de tudo, inclusive do Bormann. — Os olhos de se arregalaram e então se encolheu. Ele sabia quem ela era.
— Eu...
— Estou falando sério, . A gente pode te proteger. Sei que toda essa história da mídia de que você foi sequestrada é balela. Você fugiu. E quem poderia te culpar? — Ela podia ver a compaixão nos olhos dele.
— Você nem me conhece — murmurou, novamente se fechando.
— Na verdade... conheço sim. Também tenho um pai merda.
— Não pode ser tão ruim quanto o meu.
— Chega bem perto. — Ele tinha uma expressão triste. Ouviram passos e então rapidamente se colocou de pé. — São meus amigos. Eu vou explicar sua situação para eles, nós vamos te ajudar — disse, se afastando.
Novamente sozinha, recostou a cabeça na árvore. Estava dividida entre fugir, tentar lutar ou então aceitar ajuda. Sem saber o que fazer, fechou os olhos.


•••

abriu os olhos. Os fechou novamente diante da claridade incômoda. As paredes e luz muito brancas a deixaram tonta. Tentou se mexer e percebeu que estava presa. Correias seguravam seus pulsos e tornozelos. Fios ligavam seu corpo frágil a máquinas que faziam um barulho contínuo. Se desesperou. Forçou a correia tentando se libertar. O desespero foi aumentando e junto aumentou o som dos aparelhos. O barulho se tornou estridente. A porta se abriu e ouviu passos.
Uma figura familiar surgiu a sua direita estampando um largo sorriso.
— Bem vinda de volta, querida — disse Hugo Bormann, se aproximando da cama.


Capítulo XIX.
His voice brought back memories of dark rooms and broken bones

Quando os dedos de Bormann se aproximaram do rosto da filha, ela se encolheu. estava tomada pelo medo. Seu coração acelerado e o corpo inteiro tremia. Se sentia como uma presa. Completamente indefesa diante do predador. Seu pai tinha uma expressão gentil, mas agora ela conseguia enxergar toda frieza por detrás daqueles olhos.
— Não tem motivos para ter medo de mim. Devia me agradecer. — Ele puxou uma cadeira e a posicionou ao lado da cama. — Eu te salvei. — Sentou-se com um sorriso de satisfação.
— Á...gua — disse somente. Sentia a garganta seca. Bormann foi até a bancada e encheu um copo com água. Com um canudinho, auxiliou a filha a beber. — Quan... quanto... tempo? — completou com dificuldade.
— Alguns dias. Precisei te manter em coma induzido para garantir que seu corpo ia se recuperar completamente.
— Eu... devia estar morta — murmurou desviando o olhar.
— Eu nunca deixaria isso acontecer.
— Eu devia estar morta — repetiu, dessa vez com a voz mais firme.
— Não — disse, com ternura, alcançando a mão da filha. — Você tem uma vida longa e linda pela frente. Aqui, do meu lado.
— Eu não quero essa vida — rosnou, cerrando os punhos. Impaciente, tentou forçar novamente as correias em seus pulsos e pés.
— Pare! Vai se machucar.
— Isso é mesmo necessário? — Ela ainda tentava forçar as correias.
— Sim. Por enquanto. — Ele novamente se aproximou, dessa vez tentou acariciar os cabelos dela, mas foi recebido com um olhar frio. — Estamos em casa e eu vou cuidar de você. — então analisou o ambiente a sua volta. Aquele era um dos quartos de hospedes da gigantesca mansão da família Bormann. — Todos esses anos... foi tão difícil. Cada pedacinho dessa casa está recheado de lembranças. Você quebrou aquela vidraça duas vezes — comentou, nostálgico, apontando para a janela. — Adorava esportes, mas tinha uma péssima mira — completou com um sorriso.
— Conversamos sobre o passado depois que me soltar.
— Sinto muito, mas preciso te manter assim. Para sua própria segurança.
— O único jeito de eu ficar a salvo é bem longe de você.
— Eu te salvei! — elevou a voz, já um tanto irritado. — Não seja ingrata. Eu sou o motivo de estar viva.
— Como? Como me salvou? Como isso é possível? — ela cuspiu as palavras em um tom acusatório.
— Eu te disse que conseguia a cura. Quem criou a doença, criou a cura.
— Se ela existe, por que deixar milhares morrerem?
— Controle populacional... se livrar dos rebeldes. — O jeito que ele falou aquilo a enfureceu.
— Você costumava ser meu mundo e agora... não consigo expressar em palavras o quanto te odeio. — A raiva fazia o rosto dela queimar. Queria ter forças o suficiente para levantar daquela cama e destruir tudo em seu caminho. — Eu te odeio tanto. Eu te odeio. — Agora tomada pela fúria, voltou a sacudir braços e pernas tentando se libertar.
Bormann se apressou até uma bancada, preparou um sedativo e injetou na filha. Ela sentiu os efeitos do medicamento imediatamente. As palavras sumiram da sua boca e da sua mente. Parecia não ter mais controle dos braços e das pernas. Sem conseguir fazer nada para impedir, adormeceu.

•••

Foi o som da chuva forte que despertou . Devagar, ela se mexeu na cama e abriu os olhos. Girou o pescoço, observando o cômodo. Se sentia zonza e confusa. Tinha a garganta ressecada e um gosto amargo na boca. Ao tentar levar a mão direita até o pescoço, sentiu as amarras que a prendiam àquela cama. Tentou forçar os braços e as pernas, mas foi inútil. Memórias então a atingiram, lembrou da conversa com o pai e de todo o resto. Fechou os olhos com força e lágrimas quentes escorreram por suas bochechas.
— Você está viva! — Uma voz conhecida ecoou no escuro. Parado perto da janela, iluminado pela lua e pelos aparelhos, estava Nate. — Como você está? — perguntou se aproximando da cama. Ele queria abraçá-la. Envolver seu corpo e nunca mais soltar. Mas não fez isso. estava tão abatida e vulnerável, não queria assustá-la ainda mais. — Me desculpe. Essa é uma pergunta estúpida. Sei que está com medo e com raiva.
— Eu estou furiosa.
— Eu sei. E tem todos os motivos para estar. Mas está viva. E para mim é isso que importa. — Ele pegou um copo de água e a ajudou a beber. Agora bem perto dela, se atentou as marcas vermelhas em seus pulsos. — Está machucada. — Rapidamente a livrou das correias e ajudou a se sentar.
— Eles escaparam? — perguntou, receosa, enquanto massageava o pulso direito.
— Sim. Quando te encontrei não havia sinal da Selina e do . Estão a salvo.
— Tem certeza? — A angustia que sentia era sufocante.
— Tenho. — Diante da afirmativa, ela suspirou aliviada. Nate puxou a cadeira e se sentou. A analisou atentamente por algum tempo e então continuou: — Eu te encontrei. — Havia uma dor muito profunda estampada nos olhos dele. — Achei que... não havia mais esperança. Havia tanto sangue... Foi tão assustador te ver daquele jeito. Eu te peguei no colo e levei até o carro rezando para todos os deuses e qualquer entidade superior que exista para te salvar.
— Você foi infectado? — Ele assentiu com a cabeça. — Não teve medo do meu pai não te dar a cura?
— Isso nunca foi uma preocupação. Eu só precisava te salvar.
— Obrigada. Por isso... e por ter atirado naquele torturador.
— Eu estou aqui por você. Sempre. O tempo todo. Não vou mais te deixar sozinha. — Ele alcançou a mão dela, mas se afastou.
— Acho que o Bormann não vai gostar disso.
— Ele me designou como seu guarda costas de novo. Ele confia em mim. Eu vou cuidar de você — disse com firmeza, sem perceber que a expressão dela havia mudado.
— Isso não é uma coisa boa. Na verdade, isso significa que nos últimos anos você tem sido o fiel cão de guarda. Como sempre foi — rosnou, desviando o olhar. — Você é igualzinho a ele.

•••

Assim que foi liberada dos cuidados médicos, foi acompanhada até seu quarto. Era a primeira vez em três anos que ela caminhava por aqueles corredores. Notou as mudanças na estrutura, na decoração e no aumento de capangas trabalhando. Quando alcançou o segundo andar, a porta de seu quarto de infância foi aberta e ela entrou. Ficou parada perto da entrada por alguns instantes. O quarto estava exatamente como havia deixado. Os móveis, quadros nas paredes e cada objeto espalhado em cada canto. Aparentemente, Bormann havia mantido aquele lugar como um memorial. Talvez ele acreditasse que a encontraria muito rápido, ou que ela simplesmente desistiria de fugir e voltaria para casa. Observou a penteadeira com alguns itens de maquiagem e esmaltes, seus desenhos emoldurados nas paredes, livros desgastados em uma pequena estante ornamentada, papéis e cadernos espalhados sobre uma escrivaninha. Sobre o papel de parede, que imitava um céu, pequenos rabiscos que se assemelhavam a pássaros feitos por ela em momentos de tédio. Analisando o ambiente, foi tomada por memórias. Não eram memórias positivas sobre sua infância e adolescência. Eram sobre momentos que ela soterrara bem dentro de sua mente e agora pareciam querer se libertar. Lembrou de cada vez que apanhou ali. Qualquer deslize recebia uma reação muito violenta de Hugo Bormann. Até mesmo um olhar de descontentamento era revidado com um tapa na cara e palavras duras. Quando ainda morava naquela casa, nunca se atentara à crueldade do pai, mas agora estava tudo claro como água. Tantas vezes precisou cobrir marcas e hematomas em seu corpo com roupas compridas e pesadas. Tantas vezes foi dormir chorando e com dores. E depois ele aparecia. Com um olhar arrependido e uma fala carinhosa, se dizendo arrasado por ter machucado a “pessoa que mais amava no mundo”. Aquilo não era amor. Agora ela enxergava isso.
Na casamata, por muito tempo se sentiu dividida, lembrava-se de um pai amoroso que, de repente, se tornara um torturador assassino. Agora, novamente naquele quarto, se deu conta que a violência que ele direcionava aos outros, também era direcionada a ela. Com um nó se formando em sua garganta, se aproximou da mesinha de cabeceira. Pegou a caixinha de música e abriu. Uma pequenina bailarina surgiu, girando ao som de Für Elise. Se lembrava com clareza do dia que ganhou aquele presente. Era seu aniversário de sete anos. O pai sumiu o dia todo e não houve nenhuma comemoração. Ela foi dormir triste por ter sido esquecida. Acordou no dia seguinte com aquela caixinha ao seu lado na cama. E a tratou como seu maior tesouro por muito tempo. Agora, refletia sobre o motivo do sumiço. Enquanto sua mente infantil estava preocupada e sentindo falta do pai, ele devia estar por aí torturando e violentando mulheres. Perturbada com esses pensamentos e com tudo que havia acontecido até então, arremessou o objeto na parede. Se sentindo sufocada, se apressou até a porta de vidro que dava para sacada. Encontrou grossas grades de ferro impedindo sua passagem. Era uma prisioneira. E não teria direito nem a um banho de sol.

•••

novamente caminhava pelos corredores da imensa mansão. Estava acompanhada de um homem mal encarado. Uma tatuagem tribal cobria todo o lado esquerdo de seu rosto. Ele a direcionou até a sala de jantar. Com um sorriso de satisfação, Bormann a esperava sentado diante da mesa arrumada.
— É bom te ver de pé. Logo vai estar completamente recuperada.
— Talvez fisicamente — resmungou, se sentando. — Psicologicamente, você me garantiu traumas para gerações.
— Eu sei que os jovens adoram culpar os pais por tudo. Mas isso já está ficando enfadonho — comentou, entediado, bebericando o vinho. — Precisamos focar na sua recuperação para que possa voltar a sua rotina.
— Que rotina seria essa?
— Seus estudos na universidade, as aulas de piano e de pintura, eventos de caridade...
— Você vai me deixar sair? — Com as mãos repousadas no colo, ela estalava cada um dos dedos.
— É claro! Não é uma prisioneira aqui — respondeu com um largo sorriso. — No momento, vamos focar em cuidar de você e também em recuperar a relação de confiança que nós partilhávamos.
— Então... seu plano é simplesmente ignorar tudo? — Suas bochechas empalideceram. O ódio esmagava seu peito. — Voltar ao que era antes de eu ir embora.
— Exatamente. Eu acredito no poder curativo do tempo. Vai demorar, mas vamos ficar bem. — Ergueu a taça no ar, simulando um brinde.
Aquela fala, e a expressão no rosto dele, deixaram paralisada. Era inacreditável. Ele agia como se esse passado a ser superado fosse algo simples. Era um torturador, um assassino, um homem violento, que tinha plena convicção de que todos os seus atos eram justificáveis.
— Vou ter que ir aí fazer aviãozinho com a colher? — disse, após algum tempo observando a filha imóvel.
— Não sou criança.
— Está agindo como uma. Coma! Precisa nutrir seu corpo — ordenou com uma voz terna. — Saco vazio não para em pé.
cedeu. Diante do olhar atento dele, ela deu algumas garfadas. Enquanto mastigava, decidiu usar toda aquela situação ao seu favor. Havia muitas dúvidas rondando sua mente. Precisava de respostas.
— Se você realmente quer superar tudo isso, nós precisamos conversar. Eu preciso entender tudo. Preciso dar sentido a todos esses acontecimentos que estão me assombrando.
— O que quer saber? — Largou o garfo e a faca disposto a responder os questionamentos dela.
— O que aconteceu com o Dax?
— Ele foi morto pelo Bishop. Encontrei o corpo em uma das salas.
— Eu sei dessa parte. — Apertou os lábios por um instante tentando não chorar. As lembranças tão recentes pareciam adagas ferindo seu corpo. — Fui mantida naquele mesmo quartinho com o corpo dele se decompondo ao meu lado e eu... — Se assustou com a pancada que Bormann deu na mesa.
— Sinto muito que teve que passar por tudo isso. — O ódio transparecia na voz e nas expressões dele. — Bishop e os homens dele já estão pagando.
— Estão aqui? No porão? — perguntou, exasperada, e viu o pai abrir um sorriso perverso.
— Sim, estou cuidando deles. Já te expliquei. Faço o que é necessário. Existem pessoas que precisam ser punidas.
— Sim, existem — concordou, travando o maxilar. Memórias dos momentos passados naquela fábrica a assombravam. Podia ouvir a voz de seus algozes com clareza. Traeger, Bishop e Thompson pareciam fantasmas a atormentando. Sentia que estava presa em um loop, revivendo cada momento. Sentia que ainda estava lá, à mercê de homens cruéis. Perturbada com tudo aquilo, meneou a cabeça tentando ordenar seus pensamentos. — Mas vamos voltar ao Dax. Quero saber o que aconteceu antes. Ele sequestrou o Charles. Por quê? Naquele dia... o dia que nos reencontramos. Você falou com ele? O que ofereceu? O que valeria trair tudo pelo que ele lutava?
— A filha dele.
— Achei que ele não tinha mais família. — Franziu o cenho confusa. Então seus olhos se arregalaram diante das possibilidades. — O que fez com ela?
— Nada. Ele fez. Dax Cromwell é um terrorista. Responsável pelos atentados em Ashima, as mortes em Newport. É um homem procurado pela justiça. Era, na verdade. — Se corrigiu com satisfação. — Eu ofereci limpar o nome dele, para que pudesse ter sua vida de volta. Sua filha de volta. Ela odeia o pai, por todos os crimes que cometeu.
— A vida dele em troca do Charles?
— Exatamente.
— E cadê ele?
— Você vai ter essa resposta logo — respondeu de forma enigmática, bebendo o vinho.
— Ele é realmente o Charles?
— É claro que sim. Quem mais poderia ser?

•••

rolava na cama sem conseguir dormir. Além de todas as coisas que a assombravam, aquele colchão era macio demais. Exausta, se levantou. Dobrou o edredom ao meio e o ajeitou no chão. Deitou ali, rapidamente pegando no sono. Foi uma noite difícil, povoada por pesadelos e memórias dolorosas. Ela acordava a todo momento, assustada com tudo aquilo que rondava sua mente. As faces dos torturadores eram uma presença constante. E os gritos de pareciam ecoar no cômodo. Despertou de seus devaneios ao ouvir batidas na porta. O dia amanheceu e ela nem notou. Ao abrir a porta, se deparou com Nate.
— Bom dia.
— Precisa de algo? — ela resmungou, esfregando os olhos.
— Vim te buscar para o café.
— Não estou com fome.
— Que tal uma caminhada? Você adorava ficar no jardim. Ouvir os pássaros, ver as flores... de brinde ainda ganha vitamina D.
— Ok. — Suspirando, ela começou a juntar o travesseiro e o edredom para jogar de volta na cama.
— Por que dormiu no chão?
— A cama é macia demais.
— Vou solicitar a troca do colchão. Precisa de mais alguma coisa para te deixar mais confortável?
— Que tal cianureto? — sugeriu, se virando para encará-lo.
— Isso não é engraçado.
— É sim — rebateu, caminhando até o banheiro.
desceu as escadas acompanhada por Nate. Dessa vez, prestou mais atenção nos sistemas de segurança. Cartões de acesso, senhas e homens armados eram as barreiras presentes em todos os pontos de acesso. Precisava entender como tudo funcionava para levar seus planos a diante.
— Eu sei que já deve estar planejando sua próxima fuga, mas... — disse Nate assim que alcançaram o jardim.
— Não vou tentar fugir.
— Não?
— Bormann tem o que queria. Eu estou aqui. — Deu de ombros, apertando o passo. Foi até a área leste dos jardins. Ali, além das arvores e canteiros de flores, estavam algumas casinhas de passarinhos decoradas por ela. Passara muito tempo desenhando e pintando cada uma delas. Em sua infância e adolescência, era como a princesa no castelo. Precisou achar jeitos de se distrair e passar o tempo dentro daqueles muros. — Pode me arrumar uma caixa de lápis? — pediu quando Nate a alcançou.
— Seu pai proibiu objetos pontiagudos.
— Ele acha que vou machucar alguém? Eu sozinha contra vários guardas? — zombou da possibilidade.
— Tem medo de você se machucar.
— Suicídio? Ele acha que vou me matar? — continuou em tom de deboche, mas parou a notar a expressão séria estampada no rosto dele. — Você também.
— Você me pediu cianureto.
— Foi só uma piada ruim. Eu não vou me matar. E também não pretendo fugir. — Seus olhos passearam pelos muros altos e postos de vigilância. Aquela agora era a sua casa. Não podia partir. Não quando havia tanto a ser feito. — Já que lápis é proibido, me arranja algo para passar o tempo. — Ele a analisou por alguns instantes e então assentiu. Diante de seu olhar atento, se afastou e se sentou na grama.
— Você está bem? — ele perguntou, preocupado, também se sentando.
— Sim. Eu só... preciso ficar aqui por um tempo — murmurou, se deitando. Passou a encarar o céu e as nuvens em diferentes formatos. Nate a acompanhou, mas se manteve em silêncio. Ficaram naquela posição por algum tempo. Ela foi a primeira a falar. — Faz muito tempo desde a última vez que tive a chance de ficar assim. Quietinha encarando o céu. Passei as últimas semanas em prisões. O formato mudou. Mas continuo prisioneira.
...
— Eu sou. Não tente negar isso. — Virou o rosto para encará-lo. Estavam muito perto um do outro.
— Você está a salvo aqui.
— Ele também disse isso — murmurou, triste, se referindo ao pai. — Me dói ver tanto dele em você.
— Eu sou o mesmo cara que você amou um dia.
— Não é. Também não sou a mesma. A gente mudou tanto. Tanta merda aconteceu. — Sentiu os olhos arderem. Desviou o olhar, se esforçando em não chorar. — Sabe... quando eu descobri tudo sobre o meu pai... antes de fugir... eu tive acesso a alguns relatos, depoimentos de mulheres torturadas por ele. E eu senti tanta dor imaginando as coisas que elas tinham passado. E então... lá estava eu, nas mãos de homens tão cruéis quanto Hugo Bormann. — Uma lágrima desceu por sua bochecha, e Nate se apressou em limpá-la, aproveitando para acariciar seu rosto. — Talvez seja o karma. Por tudo que ele fez tantas mulheres passarem. — O aperto no peito deixava sua voz embargada.
— Eu sinto muito. Por não ter te encontrado antes. Eu nunca iria me perdoar se ele...
— Mas você me encontrou. — Ela alcançou a mão dele e a apertou com delicadeza.
— Antes do Bishop... o que aconteceu com você? — Ela juntou as sobrancelhas, confusa com a pergunta. — Você tem uma cicatriz enorme nas costas.
— O Thompson fez isso. — A dor na voz dela era palpável. Todas as vezes que citava aquele nome, parecia que era transportada novamente para aquele dia, naquela cabana.
— Lenny Thompson? Que trabalhou aqui? — Ele se agitou, sentindo a fúria inundar seu corpo.
— Sim. Alguns meses depois que eu fugi, ele me encontrou e me machucou. — Apesar do ferimento já estar muito bem cicatrizado, a dor ainda era muito real. — Eu matei ele. Foi tão difícil. Eu me sentia um monstro. Mesmo ele sendo quem era. Mesmo ele tendo me machucado. — Sua voz falhou. Aquelas eram memórias muito dolorosas. — Ele foi o primeiro. Agora eu não sinto mais nada. E isso é assustador.
— Você estava se defendendo.
— Mesmo assim. Eu sinto que isso é inevitável. — A vontade de chorar havia aumentado. Queria gritar e colocar toda a dor para fora. A angústia a corroía por dentro.
— O que é inevitável?
— Me tornar como ele.
— Você não é como o Bormann, nem nunca vai ser.
— Não tenho tanta certeza disso. — Ela se sentou. Observou os homens ao longe. Lacaios de seu pai. Seguranças e capangas. Queria matar cada um deles da forma mais dolorosa possível.

•••

Após mais um jantar na companhia de Bormann, subiu as escadas acompanhada pelo homem tatuado mal encarado. Quando alcançaram o corredor, avistou Nate parado na porta do seu quarto.
— Está dispensado, Ross — ele ordenou e o homem obedeceu. — Eu trouxe algo para você — disse para quando ela o alcançou. Estendeu uma caixinha embrulhada para presente que ela rapidamente rasgou.
— Giz de cera?
— São seguros para crianças acima de um ano, então acho que estamos bem — comentou com um sorriso que foi retribuído. — Deixei algumas folhas na sua mesa. E assim que possível vou contrabandear alguns lápis. Os passarinhos nas suas paredes precisam de companhia. — Ele tinha um tom de voz carinhoso que só utilizava com . Sentia tanta falta dela. Queria tanto tocá-la. Mas percebia o quão machucada e traumatizada ela estava. A amava mais do que qualquer coisa no mundo, e por isso, esperaria o tempo que fosse necessário
— Obrigada — sussurrou abraçando a caixinha e então entrou no quarto. Nate ainda ficou ali parado encarando a porta por alguns minutos.
Apesar da troca do colchão, ela ainda não conseguia se sentir confortável naquela cama, então, decidiu dormir no chão. Foi mais uma noite difícil em que dormiu muito pouco e acordou ainda mais cansada. Ao ouvir batidas na porta, pulou da cama e foi até lá. Se deparou com o mesmo homem mal encarado que a acompanhava no jantar.
— Cadê o Nate?
— Bormann precisou dele. Eu vou te acompanhar hoje. Meu nome é Ross.
— Eu não quero tomar café. Podemos ir para o jardim?
— É claro que sim. Vou te esperar aqui, enquanto se arruma.
Naquela manhã, começou a reparar mais em cada capanga. Fingindo simpatia, se aproximou e cumprimentou cada um em seu caminho. Se aproveitando para analisá-los atentamente. Observando que tipo de armamento carregavam e se tinham fraquezas aparentes. Novamente sentada na grama, seus olhos agora focavam nos postos de vigilância. Precisava ter acesso a sala de controle, precisava saber onde estava cada câmera e quantos homens trabalhavam por turno. Concentrada fazendo anotações mentais, não notou o homem que se aproximava.
— Bom dia, senhorita . — Ela reconheceu aquela voz. Virou, se deparando com um homem careca de olhos fundos e lábios muito finos. –—Meu nome é Sullivan. Se lembra de mim? — Ele se referia ao fato de ser um dos mais antigos funcionários de Bormann. Mas ela se lembrava do corpo de Fisher estirado no chão. Morto pelas mãos dele. — Você costumava me chamar de Sulli. — Paralisou, olhando para ele. Parecia presa naquela lembrança dolorosa. Seus amigos de joelhos diante das ameaças daquele verme. Eve gritando sob o cano da arma dele, tomada pelo medo e também pelo sofrimento diante do cadáver de seu amigo mais antigo, executado com um furo no meio dos olhos. — Você está bem?
— Sim. Me desculpa. Minha mente está um pouco confusa. Dormi mal — se explicou, fingindo simpatia. Fazia um enorme esforço em não demonstrar toda a fúria que a consumia. — Eu me lembro de você, Sulli. É bom te ver.
— Tenha um bom dia — ele disse com um sorriso e se afastou.
rapidamente se levantou do chão. Perdeu o equilíbrio propositalmente e foi amparada por Ross.
— O que houve? — perguntou, preocupado, ainda a segurando.
— Acho que levantei rápido demais. Minha pressão deve ter caído — se explicava, tentando aparentar fraqueza. Enquanto isso, suas mãos ágeis pegaram a arma dele, sem que notasse. Endireitou a postura quando conseguiu esconder a pistola na lateral do cós da calça.
— Quer entrar?
— Sim, em um minuto. Antes preciso fazer uma coisa — caminhou por alguns metros na direção de Sullivan e então o chamou. Ele se virou sorrindo e se aproximou.
— Do que precisa senhorita?
— Eu preciso... ouvir você gritar. — Ele arregalou os olhos, mas antes que pudesse ter qualquer chance de reagir, pegou a arma e deu dois tiros certeiros, um em cada joelho. Aos gritos, ele caiu no chão. Ela deu dois passos com a arma em punho, mas parou ao notar a movimentação de Ross. — Mais um passo e vai ser o próximo agonizando no chão — vociferou para o tatuado que se afastou com as mãos erguidas. — Sulli... sua hora finalmente chegou. É o dia do julgamento.
— Sua vadiazinha! — ele gritou, agarrando a própria arma e apontando na direção dela.
— Atira em mim! — rebateu de forma desafiadora. — Atira! — repetiu, elevando a voz. O homem ponderou suas opções e baixou a arma. — Perdeu sua oportunidade — disse antes de disparar mais um tiro, dessa vez no abdômen dele.
Sullivan gritava, xingava e chorava tentando conter o sangramento. parecia cega, tomada pelo ódio que no momento a consumia. Outros capangas haviam se aproximado, mas ninguém se atrevia a intervir. Machucar a filha de Bormann, mesmo que de forma acidental, levaria a punições muito severas.
— É hora de pagar pelos seus pecados. Isso é pelo Fisher... pela Eve... por cada uma das pessoas que machucou. — Seus lábios tremiam e tinha a respiração superficial e rápida. Na sua frente, ela não enxergava a face de Sullivan. Vislumbrava o rosto de cada carniceiro que já havia cruzado o seu caminho. Recordou de experiências dolorosas e humilhantes. Recordou de cada relato, de cada mulher e homem vítima de canalhas violentos. Então, sem uma gota de hesitação ou arrependimento, atirou na cabeça dele. Sentiu sua respiração acelerar de tal forma que parecia que sufocaria a qualquer momento. Largou a arma no chão e correu em direção a casa.


Continua...



Nota da autora: Sem nota.

Outra fanfic:
Ecos e Silêncio (Originais/Em Andamento)

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