Capítulo 1
Quando a respiração começou a lhe faltar, ela insistiu em se manter.
A água inconsciente, invadia cada parte de seu corpo, e a sensação sufocante a fez tossir, submersa. A água que inundava seus olhos era uma mistura, das lágrimas que eram expulsas de seu corpo e a água da banheira.
Era esquisito pensar que a banheira do hotel, de certa forma, havia lhe dado a vida, afinal sua mãe havia dado à luz ali mesmo, naquela banheira pequena e antiga.
Talvez não fosse certo morrer ali, talvez fosse algum tipo de desrespeito. Mas, infelizmente, ela ainda morava no mesmo quarto antiquado, coincidentemente o local onde sua mãe também havia falecido, e quando se desaba, não há muito para pensar ou planejar. Qualquer momento, qualquer lugar, parece perfeito.
E então o desespero tomou seu corpo, e seus instintos de sobrevivência começavam a despertar completamente. Mas ela apertou os olhos, sentindo a dor de cabeça enlouquecedora, a água afogando até seu último fio de cabelo. E se manteve.
De repente, seu tronco se levantou para cima em um movimento extremamente rápido, espirrando uma poça de água no tapete.
Foi inconsciente, aquilo havia sido pura obra de seus sentidos. Mas foi o suficiente para que ela despertasse, recuperando a respiração como se houvesse acabado de ser salva de se afogar no oceano mais profundo existente.
Foi um momento de fraqueza, breves segundos nos quais ela havia se deixado levar pela carga gigantesca de sentimentos. Mas agora, estava consciente, lúcida, como em um passe de mágica.
Em alguns minutos, trocou a roupa encharcada pelo vestido mais fresco que tinha e tirou a mochila velha com estampa do Mickey, de debaixo da cama.
E ali não colocou nada além de 10 peças de roupa, um pequeno suco de caixinha que venceria em 3 dias, 50 reais e um pingente de Nossa Senhora Aparecida. Ela tinha que ir embora, já deveria ter feito aquilo, mas sempre lhe faltara coragem, e naquela noite, ela se sentia a pessoa mais corajosa do mundo, era o momento perfeito.
Olhou pela janela. A maior parte do lugar estava escuro, era quase meia-noite.
Não havia quase nenhuma luz acesa, afinal um hotel de beira de estrada recebe muitos viajantes cansados, que só se preocupam em descansar para o dia seguinte no asfalto.
A porta estava trancada, como de costume. Infelizmente aquele era o combo de se ter um tio apreciador de mulheres mais novas, que não poupava nem mesmo a própria sobrinha, queiram elas algum envolvimento com ele ou não, não havia poder de escolha, as suas "necessidades masculinas" prevaleciam.
Pular a janela era quase suicídio, mas continuar vivendo daquela forma também lhe daria o mesmo caminho, então, não havia nada a perder. Amarrou as cortinas e lençóis ao pé da cama, o lugar mais firme que havia naquele quarto, o mais apertado possível, e começou a descer, como havia visto nos filmes.
Aquilo era assustador. Seu corpo todo tremia, com medo de que os tecidos se soltassem. Mas aos poucos, estava conseguindo, e não demorou estar no segundo andar.
A altura ainda não era muito amigável, mas grande parte do percurso havia sido concluída.
De repente, sentiu o corpo escorregar sem sua permissão, e viu uma infinidade de tecidos amarrados, caindo graciosamente, como se estivessem em um desfile de carnaval. Ela se agarrou aos lençóis e apertou os olhos, tentando ao máximo virar seu corpo de forma que não haveria um estrago tão grande, mas ela não fazia ideia de como se posicionar no ar.
Foi quando sentiu os seios e a barriga chocando-se a algo de forma dolorosa, que percebeu estar no chão.
Ela havia caído sobre o mar de lençóis amarrados a cortina, que acabaram por amortecer a grande queda. Definitivamente, talvez aquele não fosse mesmo o dia de seu fim.
Mas o barulho da queda fez uma luz se acender no escritório. Seu tio estava acordado.
E foi quando ela correu, tão rápido como nunca havia corrido em toda a vida. Os cabelos tão s, permitiam-lhe sentir o vento batendo na nuca, e os tênis de uma marca desconhecida, que lhe apertavam os dedos do pé, pareciam lhe dar ainda mais velocidade.
O asfalto era um lugar perigoso, e á noite era ainda mais. Em um segundo tinha-se a completa visão do breu, e em um piscar de olhos, luzes fortes que poderiam cegar alguém. Logo, imagine uma mulher de estatura média, com o coração mais acelerado do que um piloto de corrida, correndo pelas beiradas do asfalto, a noite. Aquilo tinha tudo para acabar em uma tragédia.
Mas talvez aquele não fosse mesmo o dia de seu fim, porque depois de quase ser atingida por um caminhão que girou na pista, ela continuou correndo. E em cerca de meia hora, conseguiu chegar à rodoviária da cidade vizinha, e ali, se sentou no chão, buscando o fôlego inexistente.
Não fazia ideia de para onde iria, mas pegaria o ônibus para o lugar mais distante que pudesse chegar.
— Com licença? — Ela sinalizou ofegante para chamar a atenção de um homem de gravata, que corria em direção a um ônibus azulado.
— Tudo bem, senhorita? — Ele perguntou sem parar.
Ela se levantou rápido, ainda ofegando, sem limpar a poeira do vestido.
— Para onde vai esse ônibus? — Ela gritou, tentando competir com o barulho dos motores dos outros veículos.
— O que você disse? Desculpe! Estou atrasado! — Ele subiu as escadas do veículo, apressado.
Ela correu para dentro do ônibus. Não interessava para onde ia ou quanto tempo iria demorar para chegar, ela só precisava estar longe dali, o mais longe que pudesse ir. Mudaria de país se fosse possível para não ter de lidar com o tio nunca mais, que certamente, iria persegui-la, isso se já não estava a sua procura.
Pagar o motorista e encaixar o corpo no assento a fez soltar um suspiro pesado de alívio, e um choro entalado na garganta. Havia conseguido.
O ônibus deu partida, mas o coração dela ainda estava acelerado, a adrenalina lhe domava por completo, com medo de que o tio a encontrasse.
— Com licença, para onde vai esse ônibus? — Ela perguntou para uma mulher de cabelos longos, que tinha uma criança no assento ao seu lado.
— Vai pra minha casa. — O garotinho de cabelos pretos respondeu, transbordando inocência na voz.
Junto à mulher que estava com o garoto, ela riu, em meio as lágrimas.
— Tudo bem, querida? — A mulher esboçou preocupação ao notar seu rosto molhado.
— Sim, não se preocupe. — Ela deu um sorriso triste, esfregando o punho nas bochechas molhadas. — Pode me dizer que horas são, por favor?
— É meia noite e quarenta, o ônibus atrasou um pouco hoje, esse é o último. — Ela entregou um tablet colorido para o garotinho. — Esse contorna o bairro da Prata e depois volta pra rodoviária.
— Entendi, muito obrigada.
— Em 20 minutos nós chegamos lá, não se preocupe. Que Deus nos proteja até lá. — A mulher fez a Santíssima Trindade. — Está perdida?
— Não, não, só faz muito tempo desde a última vez que andei de ônibus. — Ela mentiu.
Não sabia sequer o nome daquela cidade, nunca havia ido para aquele lado. Nos últimos 22 anos de vida, havia ido poucas vezes a outra cidade com o tio para comprar comida, nas poucas vezes em que ainda não tinha consciência do que acontecia a ela, nas poucas vezes em que era uma garotinha de 10 anos, calada, começando a entender o mundo. A escola era em uma comunidade perto do hotel, e depois de começar a enfrentar o parente na adolescência, o hotel se tornou quase que uma prisão, um cárcere, e ela não pôde terminar o ensino médio, nem chegou a começar o segundo ano. Mas agora, aquela era uma chance, uma chance de poder mudar sua vida, mesmo que não fizesse ideia do que iria fazer, nem mesmo quando descesse. Mas teria de ser rápida, teria de pensar em algo, pois estar sem rumo em um ponto de ônibus as 1 da manhã, não parecia uma situação muito segura.
Foi então que teve a ideia de procurar um lugar para comer e se esconder, ou pelo menos um local onde poderia se abrigar e se sentir menos exposta.
Ela observava cada prédio e casa pela janela, não fazia ideia de onde parar, e o que fazer. Resolveu esperar alguém descer, e então iria, sem enrolações, já havia chegado até ali, não era hora de abaixar a cabeça.
Então, em alguns minutos, ouviu a campainha tocar, e o veículo se preparar para frear. Uma mulher alta e corpulenta se levantou e iniciou seu trajeto em direção a porta de saída.
Ela se levantou no mesmo momento, se despediu da mulher com o garotinho, e desceu junto à passageira, com o coração ainda desesperado.
E naquela rua vazia e amarelada, devido às luzes dos postes, a vizinhança toda parecia dormir, mesmo com os carros e motos que passavam correndo a todo instante. Com o peito carregado de adrenalina, ela acompanhou os passos da mulher que havia descido na sua frente. Perguntava-se se ela iria para casa ou algum outro lugar, como era a vida dela, o que havia a levado a estar tão tarde nas ruas em um fim de domingo, e se uma hora ou outra, ela olharia para trás.
Ela continuou andando, atrás da corajosa mulher, que mostrava uma postura segura, e não havia olhado para trás em momento algum. Mas talvez, com tanta altura, era difícil ter medo de algo ou alguém, aquela moça facilmente possuía 1 metro e 90, e carregava a bolsa atravessada no pescoço, sem qualquer sinal de medo.
De repente, a mulher parou. Ela ficou entre continuar andando e parar também, seria estranho parar junto à mulher, pareceria suspeito, por mais que ela estivesse a certa distância. Mas ela parou, e esperou para ver o que a mulher faria.
Então, a figura alta abriu a bolsa, e encontrou rápido o que queria. Encaixou a chave em um portão, o abriu, e entrou.
Ela ficou sem chão, agora estava de fato sozinha naquela rua, naquela cidade enorme.
O que ela fez, foi caminhar. Continuou seguindo em frente, passando pela casa onde a mulher havia entrado, passando por um centro espírita, uma mercearia, uma oficina mecânica, ela continuou, sem parar.
Quando passou por uma creche de fachada vermelha, sentiu algo gelado e molhado em seu braço, que pareceu ter grudado em sua pele no mesmo instante. Ela olhou para si, e se deparou com um líquido vermelho, que manchava seus cotovelos e parte de seu vestido. Era tinta.
Suspirou de forma pesada, e continuou a caminhar, tentando limpar aquilo em vão, visto que a tinta já havia grudado em si.
E em meio aquela caminhada, que parecia infinita, de repente, se deparou com um estabelecimento grande, de paredes verdes, com um neon apagado em formato de hambúrguer na porta. Era uma lanchonete.
Ela parou, e se aproximou do vidro, olhando através para se certificar se havia alguém ali, mesmo que nitidamente estivesse fechada. Tudo ali dentro estava escuro, mas ela ainda tinha algum fio de esperança de encontrar algum funcionário que pudesse lhe atender, pois o barulho que seu estômago emitia era quase equivalente a um motor de carro.
Não havia ninguém, nenhum sinal de vida.
Então, ela resolveu parar. Apesar do medo que a dominava, tanto de pessoas mal intencionadas andando pela rua naquele horário, quanto de seu tio, ela parou, porque não aguentava mais andar sem rumo, estava sozinha, não fazia ideia de onde estava, era melhor parar em algum lugar.
E por sorte havia um lugar ali, um estacionamento ao lado da lanchonete parecia o lugar perfeito para se abrigar. Não era tão grande, nem tão pequeno, o tamanho parecia ideal para caber exatamente a quantidade de carros da quantidade limite de pessoas que poderiam preencher o estabelecimento.
Haviam apenas três carros ali, provavelmente de patrões ou funcionários.
Ela se sentou no meio fio de concreto, de frente para um Corsa preto, e fechou os olhos por um instante. Um instante o suficiente para se concentrar no presente. O que ela havia acabado de fazer era semelhante a grande parte dos sonhos que havia tido em toda a vida, mas dessa vez, não era um sonho, ela estava ali, ela estava sozinha, fora do hotel. E ao abrir os olhos e segurar o pingente que havia colocado em sua mochila, ela agradeceu, e rezou para que nunca mais voltasse para aquele lugar.
Sua respiração começava finalmente a se acalmar, pensava que seu tio não poderia lhe encontrar ali, escondida atrás de um carro em um estacionamento.
Furou o lugar onde deveria colocar o canudo, e sentiu o gosto industrializado de uva em sua língua, o suco era a única coisa que lhe restara, na esperança de que pudesse saciar a fome por um tempo.
De súbito, ouviu passos, sua calmaria durou pouco, alguém se aproximava. Aquela pessoa caminhava devagar como um leão, planejando pegar sua presa de surpresa. Rapidamente ela encolheu o corpo, sentindo o coração começar a bater em alta velocidade novamente. Ser mulher, sozinha em um estacionamento de madrugada era aterrorizante.
Pelo canto do olho, pôde ver brevemente a parte inferior de alguém, usando calça jeans rasgadas nos joelhos.
Ela sentiu que a presença era masculina, não precisava nem ao menos ver o rosto ou as costas para ter certeza, e aquilo a deixou ainda mais assustada. Se encolheu ainda mais, abraçando os joelhos e afundando a cabeça, como uma criancinha apavorada.
— Ei, você roubou meu lugar.
Não houve tom de aborrecimento ou ameaça nas palavras que aquela voz grave emitiu. Se não estava louca, ele havia dito aquilo em tom brincalhão, mas não era hora de brincar com alguém, não podia baixar a guarda. Aliás, não havia entendido a frase, o carro na sua frente era dele?
— Esse carro é seu? Você vai tirar ele daqui agora? Me desculpa... — Ela se levantou constrangida, rezando para que o homem fosse embora logo e não quisesse se aproveitar dela.
— Não, não, é que eu sempre me sento aqui. Mas, tudo bem, não se preocupe, pode fic...
— Me desculpa, eu já estava de saída. — Ela passou apressada por ele, não havia olhado para seu rosto por um segundo sequer, e nem queria.
— Para onde você vai? São quase duas da manhã é meio perigoso andar por aí.
Por mais que seu tom parecesse amigável, ela não iria baixar a guarda, tinha de estar atenta, e por isso, continuou andando para fora do estacionamento, preenchida pelo medo de que ele a seguisse e tentasse algo.
Então ela voltou a andar sem rumo. Passava por ruas cada vez menos iluminadas, alguns postes estavam completamente apagados, outros piscavam, como se a qualquer momento, fossem explodir. Olhava para trás a todo momento, com medo de que o homem de calça jeans estivesse seguindo-a, mas não havia nem sinal dele, ela nem ao menos sabia como era seu rosto, só se lembrava de sua voz, profunda como se suas cordas vocais cavassem sua garganta.
E cheia de medo, ela continuou andando. Estava tremendo como se a qualquer momento uma assombração fosse aparecer, mas uma assombração lhe traria menos medo do que encontrar um homem naquelas ruas escuras.
E de repente, o pesadelo se tornou realidade.
Soube que não era o mesmo, pois o ser que surgiu da escuridão correndo, usava bermudas casuais e uma regata preta. Imediatamente ela se virou para voltar pelo caminho de onde havia vindo, com o passo apressado, quase cuspindo o coração para fora.
— Moça! Você pode me emprestar seu celular? Meu amigo foi baleado! — Ele gritou ofegante, tentando alcançá-la.
A água inconsciente, invadia cada parte de seu corpo, e a sensação sufocante a fez tossir, submersa. A água que inundava seus olhos era uma mistura, das lágrimas que eram expulsas de seu corpo e a água da banheira.
Era esquisito pensar que a banheira do hotel, de certa forma, havia lhe dado a vida, afinal sua mãe havia dado à luz ali mesmo, naquela banheira pequena e antiga.
Talvez não fosse certo morrer ali, talvez fosse algum tipo de desrespeito. Mas, infelizmente, ela ainda morava no mesmo quarto antiquado, coincidentemente o local onde sua mãe também havia falecido, e quando se desaba, não há muito para pensar ou planejar. Qualquer momento, qualquer lugar, parece perfeito.
E então o desespero tomou seu corpo, e seus instintos de sobrevivência começavam a despertar completamente. Mas ela apertou os olhos, sentindo a dor de cabeça enlouquecedora, a água afogando até seu último fio de cabelo. E se manteve.
De repente, seu tronco se levantou para cima em um movimento extremamente rápido, espirrando uma poça de água no tapete.
Foi inconsciente, aquilo havia sido pura obra de seus sentidos. Mas foi o suficiente para que ela despertasse, recuperando a respiração como se houvesse acabado de ser salva de se afogar no oceano mais profundo existente.
Foi um momento de fraqueza, breves segundos nos quais ela havia se deixado levar pela carga gigantesca de sentimentos. Mas agora, estava consciente, lúcida, como em um passe de mágica.
Em alguns minutos, trocou a roupa encharcada pelo vestido mais fresco que tinha e tirou a mochila velha com estampa do Mickey, de debaixo da cama.
E ali não colocou nada além de 10 peças de roupa, um pequeno suco de caixinha que venceria em 3 dias, 50 reais e um pingente de Nossa Senhora Aparecida. Ela tinha que ir embora, já deveria ter feito aquilo, mas sempre lhe faltara coragem, e naquela noite, ela se sentia a pessoa mais corajosa do mundo, era o momento perfeito.
Olhou pela janela. A maior parte do lugar estava escuro, era quase meia-noite.
Não havia quase nenhuma luz acesa, afinal um hotel de beira de estrada recebe muitos viajantes cansados, que só se preocupam em descansar para o dia seguinte no asfalto.
A porta estava trancada, como de costume. Infelizmente aquele era o combo de se ter um tio apreciador de mulheres mais novas, que não poupava nem mesmo a própria sobrinha, queiram elas algum envolvimento com ele ou não, não havia poder de escolha, as suas "necessidades masculinas" prevaleciam.
Pular a janela era quase suicídio, mas continuar vivendo daquela forma também lhe daria o mesmo caminho, então, não havia nada a perder. Amarrou as cortinas e lençóis ao pé da cama, o lugar mais firme que havia naquele quarto, o mais apertado possível, e começou a descer, como havia visto nos filmes.
Aquilo era assustador. Seu corpo todo tremia, com medo de que os tecidos se soltassem. Mas aos poucos, estava conseguindo, e não demorou estar no segundo andar.
A altura ainda não era muito amigável, mas grande parte do percurso havia sido concluída.
De repente, sentiu o corpo escorregar sem sua permissão, e viu uma infinidade de tecidos amarrados, caindo graciosamente, como se estivessem em um desfile de carnaval. Ela se agarrou aos lençóis e apertou os olhos, tentando ao máximo virar seu corpo de forma que não haveria um estrago tão grande, mas ela não fazia ideia de como se posicionar no ar.
Foi quando sentiu os seios e a barriga chocando-se a algo de forma dolorosa, que percebeu estar no chão.
Ela havia caído sobre o mar de lençóis amarrados a cortina, que acabaram por amortecer a grande queda. Definitivamente, talvez aquele não fosse mesmo o dia de seu fim.
Mas o barulho da queda fez uma luz se acender no escritório. Seu tio estava acordado.
E foi quando ela correu, tão rápido como nunca havia corrido em toda a vida. Os cabelos tão s, permitiam-lhe sentir o vento batendo na nuca, e os tênis de uma marca desconhecida, que lhe apertavam os dedos do pé, pareciam lhe dar ainda mais velocidade.
O asfalto era um lugar perigoso, e á noite era ainda mais. Em um segundo tinha-se a completa visão do breu, e em um piscar de olhos, luzes fortes que poderiam cegar alguém. Logo, imagine uma mulher de estatura média, com o coração mais acelerado do que um piloto de corrida, correndo pelas beiradas do asfalto, a noite. Aquilo tinha tudo para acabar em uma tragédia.
Mas talvez aquele não fosse mesmo o dia de seu fim, porque depois de quase ser atingida por um caminhão que girou na pista, ela continuou correndo. E em cerca de meia hora, conseguiu chegar à rodoviária da cidade vizinha, e ali, se sentou no chão, buscando o fôlego inexistente.
Não fazia ideia de para onde iria, mas pegaria o ônibus para o lugar mais distante que pudesse chegar.
— Com licença? — Ela sinalizou ofegante para chamar a atenção de um homem de gravata, que corria em direção a um ônibus azulado.
— Tudo bem, senhorita? — Ele perguntou sem parar.
Ela se levantou rápido, ainda ofegando, sem limpar a poeira do vestido.
— Para onde vai esse ônibus? — Ela gritou, tentando competir com o barulho dos motores dos outros veículos.
— O que você disse? Desculpe! Estou atrasado! — Ele subiu as escadas do veículo, apressado.
Ela correu para dentro do ônibus. Não interessava para onde ia ou quanto tempo iria demorar para chegar, ela só precisava estar longe dali, o mais longe que pudesse ir. Mudaria de país se fosse possível para não ter de lidar com o tio nunca mais, que certamente, iria persegui-la, isso se já não estava a sua procura.
Pagar o motorista e encaixar o corpo no assento a fez soltar um suspiro pesado de alívio, e um choro entalado na garganta. Havia conseguido.
O ônibus deu partida, mas o coração dela ainda estava acelerado, a adrenalina lhe domava por completo, com medo de que o tio a encontrasse.
— Com licença, para onde vai esse ônibus? — Ela perguntou para uma mulher de cabelos longos, que tinha uma criança no assento ao seu lado.
— Vai pra minha casa. — O garotinho de cabelos pretos respondeu, transbordando inocência na voz.
Junto à mulher que estava com o garoto, ela riu, em meio as lágrimas.
— Tudo bem, querida? — A mulher esboçou preocupação ao notar seu rosto molhado.
— Sim, não se preocupe. — Ela deu um sorriso triste, esfregando o punho nas bochechas molhadas. — Pode me dizer que horas são, por favor?
— É meia noite e quarenta, o ônibus atrasou um pouco hoje, esse é o último. — Ela entregou um tablet colorido para o garotinho. — Esse contorna o bairro da Prata e depois volta pra rodoviária.
— Entendi, muito obrigada.
— Em 20 minutos nós chegamos lá, não se preocupe. Que Deus nos proteja até lá. — A mulher fez a Santíssima Trindade. — Está perdida?
— Não, não, só faz muito tempo desde a última vez que andei de ônibus. — Ela mentiu.
Não sabia sequer o nome daquela cidade, nunca havia ido para aquele lado. Nos últimos 22 anos de vida, havia ido poucas vezes a outra cidade com o tio para comprar comida, nas poucas vezes em que ainda não tinha consciência do que acontecia a ela, nas poucas vezes em que era uma garotinha de 10 anos, calada, começando a entender o mundo. A escola era em uma comunidade perto do hotel, e depois de começar a enfrentar o parente na adolescência, o hotel se tornou quase que uma prisão, um cárcere, e ela não pôde terminar o ensino médio, nem chegou a começar o segundo ano. Mas agora, aquela era uma chance, uma chance de poder mudar sua vida, mesmo que não fizesse ideia do que iria fazer, nem mesmo quando descesse. Mas teria de ser rápida, teria de pensar em algo, pois estar sem rumo em um ponto de ônibus as 1 da manhã, não parecia uma situação muito segura.
Foi então que teve a ideia de procurar um lugar para comer e se esconder, ou pelo menos um local onde poderia se abrigar e se sentir menos exposta.
Ela observava cada prédio e casa pela janela, não fazia ideia de onde parar, e o que fazer. Resolveu esperar alguém descer, e então iria, sem enrolações, já havia chegado até ali, não era hora de abaixar a cabeça.
Então, em alguns minutos, ouviu a campainha tocar, e o veículo se preparar para frear. Uma mulher alta e corpulenta se levantou e iniciou seu trajeto em direção a porta de saída.
Ela se levantou no mesmo momento, se despediu da mulher com o garotinho, e desceu junto à passageira, com o coração ainda desesperado.
E naquela rua vazia e amarelada, devido às luzes dos postes, a vizinhança toda parecia dormir, mesmo com os carros e motos que passavam correndo a todo instante. Com o peito carregado de adrenalina, ela acompanhou os passos da mulher que havia descido na sua frente. Perguntava-se se ela iria para casa ou algum outro lugar, como era a vida dela, o que havia a levado a estar tão tarde nas ruas em um fim de domingo, e se uma hora ou outra, ela olharia para trás.
Ela continuou andando, atrás da corajosa mulher, que mostrava uma postura segura, e não havia olhado para trás em momento algum. Mas talvez, com tanta altura, era difícil ter medo de algo ou alguém, aquela moça facilmente possuía 1 metro e 90, e carregava a bolsa atravessada no pescoço, sem qualquer sinal de medo.
De repente, a mulher parou. Ela ficou entre continuar andando e parar também, seria estranho parar junto à mulher, pareceria suspeito, por mais que ela estivesse a certa distância. Mas ela parou, e esperou para ver o que a mulher faria.
Então, a figura alta abriu a bolsa, e encontrou rápido o que queria. Encaixou a chave em um portão, o abriu, e entrou.
Ela ficou sem chão, agora estava de fato sozinha naquela rua, naquela cidade enorme.
O que ela fez, foi caminhar. Continuou seguindo em frente, passando pela casa onde a mulher havia entrado, passando por um centro espírita, uma mercearia, uma oficina mecânica, ela continuou, sem parar.
Quando passou por uma creche de fachada vermelha, sentiu algo gelado e molhado em seu braço, que pareceu ter grudado em sua pele no mesmo instante. Ela olhou para si, e se deparou com um líquido vermelho, que manchava seus cotovelos e parte de seu vestido. Era tinta.
Suspirou de forma pesada, e continuou a caminhar, tentando limpar aquilo em vão, visto que a tinta já havia grudado em si.
E em meio aquela caminhada, que parecia infinita, de repente, se deparou com um estabelecimento grande, de paredes verdes, com um neon apagado em formato de hambúrguer na porta. Era uma lanchonete.
Ela parou, e se aproximou do vidro, olhando através para se certificar se havia alguém ali, mesmo que nitidamente estivesse fechada. Tudo ali dentro estava escuro, mas ela ainda tinha algum fio de esperança de encontrar algum funcionário que pudesse lhe atender, pois o barulho que seu estômago emitia era quase equivalente a um motor de carro.
Não havia ninguém, nenhum sinal de vida.
Então, ela resolveu parar. Apesar do medo que a dominava, tanto de pessoas mal intencionadas andando pela rua naquele horário, quanto de seu tio, ela parou, porque não aguentava mais andar sem rumo, estava sozinha, não fazia ideia de onde estava, era melhor parar em algum lugar.
E por sorte havia um lugar ali, um estacionamento ao lado da lanchonete parecia o lugar perfeito para se abrigar. Não era tão grande, nem tão pequeno, o tamanho parecia ideal para caber exatamente a quantidade de carros da quantidade limite de pessoas que poderiam preencher o estabelecimento.
Haviam apenas três carros ali, provavelmente de patrões ou funcionários.
Ela se sentou no meio fio de concreto, de frente para um Corsa preto, e fechou os olhos por um instante. Um instante o suficiente para se concentrar no presente. O que ela havia acabado de fazer era semelhante a grande parte dos sonhos que havia tido em toda a vida, mas dessa vez, não era um sonho, ela estava ali, ela estava sozinha, fora do hotel. E ao abrir os olhos e segurar o pingente que havia colocado em sua mochila, ela agradeceu, e rezou para que nunca mais voltasse para aquele lugar.
Sua respiração começava finalmente a se acalmar, pensava que seu tio não poderia lhe encontrar ali, escondida atrás de um carro em um estacionamento.
Furou o lugar onde deveria colocar o canudo, e sentiu o gosto industrializado de uva em sua língua, o suco era a única coisa que lhe restara, na esperança de que pudesse saciar a fome por um tempo.
De súbito, ouviu passos, sua calmaria durou pouco, alguém se aproximava. Aquela pessoa caminhava devagar como um leão, planejando pegar sua presa de surpresa. Rapidamente ela encolheu o corpo, sentindo o coração começar a bater em alta velocidade novamente. Ser mulher, sozinha em um estacionamento de madrugada era aterrorizante.
Pelo canto do olho, pôde ver brevemente a parte inferior de alguém, usando calça jeans rasgadas nos joelhos.
Ela sentiu que a presença era masculina, não precisava nem ao menos ver o rosto ou as costas para ter certeza, e aquilo a deixou ainda mais assustada. Se encolheu ainda mais, abraçando os joelhos e afundando a cabeça, como uma criancinha apavorada.
— Ei, você roubou meu lugar.
Não houve tom de aborrecimento ou ameaça nas palavras que aquela voz grave emitiu. Se não estava louca, ele havia dito aquilo em tom brincalhão, mas não era hora de brincar com alguém, não podia baixar a guarda. Aliás, não havia entendido a frase, o carro na sua frente era dele?
— Esse carro é seu? Você vai tirar ele daqui agora? Me desculpa... — Ela se levantou constrangida, rezando para que o homem fosse embora logo e não quisesse se aproveitar dela.
— Não, não, é que eu sempre me sento aqui. Mas, tudo bem, não se preocupe, pode fic...
— Me desculpa, eu já estava de saída. — Ela passou apressada por ele, não havia olhado para seu rosto por um segundo sequer, e nem queria.
— Para onde você vai? São quase duas da manhã é meio perigoso andar por aí.
Por mais que seu tom parecesse amigável, ela não iria baixar a guarda, tinha de estar atenta, e por isso, continuou andando para fora do estacionamento, preenchida pelo medo de que ele a seguisse e tentasse algo.
Então ela voltou a andar sem rumo. Passava por ruas cada vez menos iluminadas, alguns postes estavam completamente apagados, outros piscavam, como se a qualquer momento, fossem explodir. Olhava para trás a todo momento, com medo de que o homem de calça jeans estivesse seguindo-a, mas não havia nem sinal dele, ela nem ao menos sabia como era seu rosto, só se lembrava de sua voz, profunda como se suas cordas vocais cavassem sua garganta.
E cheia de medo, ela continuou andando. Estava tremendo como se a qualquer momento uma assombração fosse aparecer, mas uma assombração lhe traria menos medo do que encontrar um homem naquelas ruas escuras.
E de repente, o pesadelo se tornou realidade.
Soube que não era o mesmo, pois o ser que surgiu da escuridão correndo, usava bermudas casuais e uma regata preta. Imediatamente ela se virou para voltar pelo caminho de onde havia vindo, com o passo apressado, quase cuspindo o coração para fora.
— Moça! Você pode me emprestar seu celular? Meu amigo foi baleado! — Ele gritou ofegante, tentando alcançá-la.
Capítulo 2
— Eu não tenho ! — Ela não mentiu, mas mesmo assim estava apavorada.
— Por favor, moça! Ele está morrendo ! — Sua voz parecia desesperada.
— Me desculpe, eu realmente não tenho !
Então seu braço foi agarrado, e sua mochila puxada com agressividade até sair de suas costas.
— Por favor moça, me ajude ! — Ele abriu os dois bolsos da mochila com rapidez e despejou no chão, tudo que havia dentro dela.
— Eu não tenho, eu não tenho! — Ela disse desesperada.
O homem que parecia ter 40 e poucos anos começou a chorar, revistando os bolsos da mochila para ver se o celular havia ficado preso ali.
— Por favor, eu não tenho celular, me deixe em paz! — Ela ergueu as mãos em sinal de rendição.
— Está aí com você, não está? — Ele deslizou com agressividade as mãos em sua cintura, checando se havia bolsos no vestido.
— Não, eu não tenho nada! Por favor, me solte! — Ela gritou tão alto que sentiu a garganta espetar.
Ele se afastou ofegante, com lágrimas nos olhos, e voltou a correr na direção em que vinha.
— Socorro! Socorro! — Ele começou a gritar em desespero. Os gritos se tornando cada vez mais baixos a medida que ele se distanciava.
Ela pousou a mão no coração, recuperando a respiração, e deu um suspiro pesado de alívio. Pegou rápido a bagunça que o homem havia feito e guardou tudo na mochila, aquela rua estava sinistra.
Continuou voltando pelo mesmo caminho, não se aventuraria naquela rua tão escura, a rua do estacionamento pelo menos, tinha um pouco de iluminação, e ela estava prestes a ir para lá, na esperança de que o homem de calça jeans já houvesse ido embora.
Quando finalmente avistou a lanchonete e o estacionamento, ela se aproximou, bem devagar, tentando não fazer barulho, se houvesse alguém ali, não queria sinalizar sua presença.
Ficou na ponta dos pés, tentando identificar se o local atrás do Corsa estava vazio, e estava. Ela se aproximou do local, bem devagar, ainda com a respiração ofegante e os olhos saltados pelo ocorrido de segundos atrás, sentia-se em um jogo de sobrevivência, rezando para que o homem de voz profunda não estivesse ali.
— Tudo bem?
Ela deu um pequeno grito com o susto que levou com a voz já conhecida, dando passos para trás.
— Aconteceu alguma coisa? — Ele se aproximou, com uma expressão supostamente preocupada.
E finalmente ela teve coragem de encarar aquele homem.
Ele não era muito alto e usava uma blusa branca de mangas curtas, tinha lábios rosados e um cabelo descolorido, com a franja bagunçada. Ela o achou bonito por um instante, mas ainda assim, estava morrendo de medo, e continuou se afastando cada vez mais a medida que ele se aproximava.
— Eu não tenho celular, tudo que eu tenho são 50 reais, você pode ver, pode levar. — Ela tirou a mochila das costas devagar e a estendeu, tremendo as mãos. — Pode ver.
— O quê?
— Por favor, pegue, não faça nada comigo por favor... — Todo o seu corpo tremia.
Ele apenas se aproximou, o que a fez se afastar devagar pelo instinto. Então, ele parou, no lugar onde estava.
— Não precisa se afastar, vamos ficar a essa distância se você se sentir mais segura.
— O quê?
— Você quer que eu me afaste mais ?
Ela assentiu devagar com a cabeça. E foi o que ele fez, quando deu cinco passos para trás.
— Assim está bom?
Ela fez um sinal positivo com a cabeça novamente.
— Olha... Não sei o quê você está pensando agora... Mas não sou ladrão e também não sou pervertido. — Ele estendeu as mãos em sinal de paz.
— Então, o quê está fazendo aqui? — Ela colocou devagar a mochila de volta nas costas.
— Bom... Gosto de ficar aqui.
— E por que a essa hora ?
— Porque, eu não tenho lugar pra dormir.
— Não tem uma casa?
— Tenho...
— Então por que, não tem lugar pra dormir?
— É difícil de explicar...
— Eu vou embora... — Ela se virou para sair dali.
— Você tem lugar pra ficar?
Ela parou, e demorou alguns segundos para responder.
— Tenho...
— Tem mesmo ?
Ela ficou em silêncio. Não baixe a guarda, não confie, não baixe a guarda, não confie...
— Tenho.
— Se você quiser, pode ficar onde estava, eu não vou te incomodar, e vou ficar a distância que você quiser. — Ele sabia que ela estava mentindo.
— Não, obrigada, eu tenho um lugar pra ficar.
— Esse bairro não é muito seguro, é pior quando escurece, não é muito recomendável andar por aí sozinha...
Ela se manteve em silêncio. Não sabia o que era pior, ficar ali ou continuar andando aquela hora da madrugada.
— Apesar de não ligarem as luzes do estacionamento, essa rua tem mais iluminação, é por isso que gosto de ficar aqui, sinto que tem menos risco, apesar de tudo.
Ela continuava em silêncio, mas dessa vez, seu estômago a denunciou, fazendo um barulho alto como um motor de carro. Ele deu uma curta risada, mas não foi um riso maldoso, parecia ter sido algo espontâneo.
— Você tem comida ? — Ele perguntou.
Não baixe a guarda, não confie, não baixe a guarda, não confie...
— Eu trouxe biscoitos, não sei se você gosta, mas...
— Estão aí? — Ela o interrompeu. Comida havia sido uma arma poderosa, ela estava com muita fome.
Não baixe a guarda, não confie, não baixe a guarda, não confie, não baixe a guarda, não confie, não baixe a guarda, não confie...
— Ah, estão no meu cantinho, vem, vou te mostrar. — Ele se virou para ir até o local.
— Você... Pode trazer aqui ?
Ele parou, e se virou para trás.
— Claro, claro, vou trazer. — Ele sorriu mostrando seus dentes grandes e se pôs a caminhar em direção ao Corsa preto.
Ela engoliu em seco, a fome estava deixando-a um tanto atordoada, mas consciente o suficiente para não ir em cantinho algum com aquele desconhecido.
Então ele apareceu novamente, trazendo nas mãos três pacotes de biscoito recheado.
— Bom, só temos sabor chocolate e... Morango. — Ele olhou para os pacotes. — Me desculpa por ter só isso, foi o que deu pra comprar na hora... Eu... Posso me aproximar, ou você vai ?
— Você pode... Comer um? — Ela desconfiou de que os biscoitos estivessem batizados.
Ele a encarou por um instante com as sobrancelhas erguidas, tentando entender aquela pergunta. Mas então, raciocinou, e em resposta, abriu o pacote e deu com gosto uma mordida no biscoito de chocolate.
— Você engoliu ?
Ele abriu a boca o máximo que conseguiu, se divertindo com aquela situação, apesar de saber que ela estava com medo.
— Pode comer outro?
— Vamos fazer o seguinte: Vou partir um no meio e nós dois comemos.
Ela pensou por alguns segundos se aquilo seria uma boa ideia. Ele não comeria um biscoito envenenado apenas para envenena-la, comeria? E se ele fosse o único imune ao veneno? E se suas mãos estivessem infectadas com alguma coisa? E se uma parte do biscoito estivesse infectada e ele desse essa parte para ela?
Enquanto ela pensava, ele esperava pacientemente, mastigando devagar cada biscoito que pegava.
— Tá... Tudo bem. — Ele sorriu com a resposta.
— Ok. — Ele dividiu sem demora o biscoito ao meio.
Então o inesperado aconteceu. Ela se aproximou, devagar, ainda em posição de defesa, tentando estar preparada ao máximo para qualquer possível movimento indevido vindo daquele rapaz desconhecido.
Estendeu cautelosamente a mão para pegar o pedaço, enquanto ele abria a palma para que ela não tivesse dificuldades, e segurou a metade do biscoito.
No mesmo instante seu estômago se agitou, desesperado para receber o alimento adocicado, mas ela manteve a consciência.
— Coma primeiro.
Ele obedeceu, enfiando a metade toda na boca, mastigando-a rápido e engolindo de forma exagerada.
— Abra a boca.
Ele riu antes de atender o pedido, e esticou a boca o máximo que conseguiu, levantando a língua.
Então, ela encarou o pedaço de biscoito em seus dedos. Aquilo estava deixando-a maluca, não queria confiar naquele cara, não queria confiar em ninguém, mas estava faminta.
Quando colocou o alimento na boca, o fez de uma vez só, mastigou e engoliu. Se aquela era a hora da morte, que fosse rápido.
— Quer mais?
Aquela era uma pergunta perigosa, considerando o barulho de seu estômago e a pouca distância que existia entre os dois. A fome havia a deixado corajosa até demais, deixando-a perto o suficiente para notar que ele tinha os olhos castanho escuro mais brilhantes que já havia visto em toda a vida, e sardas que cobriam suas bochechas e o nariz de forma charmosa. Ela não podia negar que o achava atraente, mas não poderia se perder naquilo.
— Pode pegar quantos quiser. — Ele disse gentil.
— Podemos... Fazer isso com todos os biscoitos? — Ela não teve receio em perguntar.
— Você não quer confiar em mim mesmo, não é ? — Ele sorriu brincalhão.
— Se fosse eu, você confiaria? — Ela ergueu uma sobrancelha.
— Talvez... Quando estou com fome, nada pode me parar.
Ele ergueu o biscoito, e o partiu novamente, dessa vez, entregando-a o pedaço, mas ainda cauteloso, não queria lhe causar medo. Ele comeu primeiro, e ela em seguida, e assim repetiram o gesto, até chegar ao fim do pacote.
— O que faz tão tarde andando sozinha por aí ?
— Por que, quer saber? — Perguntou de boca cheia. Ele riu apesar da ignorância.
— É só uma situação meio atípica, parece até que está fugindo de alguém.
— Eu deveria estar fugindo de você nesse momento.
— Você acha mesmo melhor andar por aí sozinha a essa hora do que ficar aqui comigo? — Ele amassou o pacote de biscoito. — Tem até câmeras ali. — Ele apontou para as câmeras da lanchonete.
— Câmeras não te impediriam de fazer algo comigo. — Devagar, ela deu três passos para trás.
— É... Você tem razão. — Ele respondeu de forma natural. Ela engoliu em seco. — Mas o quê pensa que eu faria com você ?
Aquela era uma pergunta um tanto sugestiva, e a deixou encabulada. Pensava nas piores coisas possíveis, mas não queria proferi-las com a boca. Estava na hora de cortar aquele cara antes que ele lhe fizesse algum mal.
— Eu vou pra casa. — Não fazia ideia de para onde ia.
— Quer que eu acompanhe?
— Não... Não precisa, obrigada. — Ela se virou para sair do estacionamento.
— Tome cuidado então, fiquei sabendo
que uma pessoa levou um tiro por aí. — Falou alto para que ela o escutasse.
Ela se virou para trás. Não conseguia pensar em absolutamente nada, era como um beco sem saída, ficar ali ou não pareciam as duas piores opções do mundo, qualquer escolha poderia conter riscos graves. Mas ficar parada encarando aquele homem enquanto pensava também não era uma ideia muito boa.
— Você quer mais biscoitos? Pode ficar com esse pacote. — Ele mostrou o pacote de biscoito sabor morango.
— Não, obrigada. — Ela se virou decidida a sair dali.
Ambos mergulharam-se em um profundo silêncio, enquanto ela caminhava até a rua.
Ela não conseguiu ao menos pensar, tudo havia sido muito rápido. De forma breve viu o carro Sedan prateado, idêntico ao de seu tio avançar com faróis altos pela rua, e os poucos segundos foram o suficiente para correr em direção ao homem dos biscoitos o mais rápido possível, deixando-o com uma expressão confusa. Procurava um lugar para se esconder ali, mesmo sem saber se de fato era seu parente, sequer havia prestado atenção na placa com tanto desespero.
Correu para aquele mesmo lugar, e se encolheu sentada no meio fio de concreto atrás do Corsa preto, sem sequer se lembrar de que havia outra pessoa naquele estacionamento. Buscou à respiração e os sentidos, se recuperando do aperto que havia se formado em sua garganta e a ânsia de vômito que sentiu, tudo causado pelo medo que tinha de que a encontrasse, naquele instante o medo de voltar aquela vida a preenchia por inteiro, por mais que não fizessem nem 24 horas que havia escapado daquele lugar.
— Ahn... — A voz grave estava mais perto do que deveria. — Tem algo que eu possa fazer? Eu posso te ajudar de alguma forma ?
Ela levantou a cabeça, e encontrou aquele homem agachado em sua frente, com uma expressão terna, como se falasse com uma criança perdida.
— Tem alguém te seguindo ou algo assim ? Talvez eu possa me livrar dessa pessoa pra você.
— Quem é você? — Perguntou em tom ríspido.
— ... — Ele sorriu paciente. — Posso saber o seu nome?
Ela ficou em silêncio, e pensou por alguns segundos, até finalmente perceber que estava em um beco sem saída, e teria que interagir de alguma forma.
— É . — A voz saiu baixa.
— Por favor, moça! Ele está morrendo ! — Sua voz parecia desesperada.
— Me desculpe, eu realmente não tenho !
Então seu braço foi agarrado, e sua mochila puxada com agressividade até sair de suas costas.
— Por favor moça, me ajude ! — Ele abriu os dois bolsos da mochila com rapidez e despejou no chão, tudo que havia dentro dela.
— Eu não tenho, eu não tenho! — Ela disse desesperada.
O homem que parecia ter 40 e poucos anos começou a chorar, revistando os bolsos da mochila para ver se o celular havia ficado preso ali.
— Por favor, eu não tenho celular, me deixe em paz! — Ela ergueu as mãos em sinal de rendição.
— Está aí com você, não está? — Ele deslizou com agressividade as mãos em sua cintura, checando se havia bolsos no vestido.
— Não, eu não tenho nada! Por favor, me solte! — Ela gritou tão alto que sentiu a garganta espetar.
Ele se afastou ofegante, com lágrimas nos olhos, e voltou a correr na direção em que vinha.
— Socorro! Socorro! — Ele começou a gritar em desespero. Os gritos se tornando cada vez mais baixos a medida que ele se distanciava.
Ela pousou a mão no coração, recuperando a respiração, e deu um suspiro pesado de alívio. Pegou rápido a bagunça que o homem havia feito e guardou tudo na mochila, aquela rua estava sinistra.
Continuou voltando pelo mesmo caminho, não se aventuraria naquela rua tão escura, a rua do estacionamento pelo menos, tinha um pouco de iluminação, e ela estava prestes a ir para lá, na esperança de que o homem de calça jeans já houvesse ido embora.
Quando finalmente avistou a lanchonete e o estacionamento, ela se aproximou, bem devagar, tentando não fazer barulho, se houvesse alguém ali, não queria sinalizar sua presença.
Ficou na ponta dos pés, tentando identificar se o local atrás do Corsa estava vazio, e estava. Ela se aproximou do local, bem devagar, ainda com a respiração ofegante e os olhos saltados pelo ocorrido de segundos atrás, sentia-se em um jogo de sobrevivência, rezando para que o homem de voz profunda não estivesse ali.
— Tudo bem?
Ela deu um pequeno grito com o susto que levou com a voz já conhecida, dando passos para trás.
— Aconteceu alguma coisa? — Ele se aproximou, com uma expressão supostamente preocupada.
E finalmente ela teve coragem de encarar aquele homem.
Ele não era muito alto e usava uma blusa branca de mangas curtas, tinha lábios rosados e um cabelo descolorido, com a franja bagunçada. Ela o achou bonito por um instante, mas ainda assim, estava morrendo de medo, e continuou se afastando cada vez mais a medida que ele se aproximava.
— Eu não tenho celular, tudo que eu tenho são 50 reais, você pode ver, pode levar. — Ela tirou a mochila das costas devagar e a estendeu, tremendo as mãos. — Pode ver.
— O quê?
— Por favor, pegue, não faça nada comigo por favor... — Todo o seu corpo tremia.
Ele apenas se aproximou, o que a fez se afastar devagar pelo instinto. Então, ele parou, no lugar onde estava.
— Não precisa se afastar, vamos ficar a essa distância se você se sentir mais segura.
— O quê?
— Você quer que eu me afaste mais ?
Ela assentiu devagar com a cabeça. E foi o que ele fez, quando deu cinco passos para trás.
— Assim está bom?
Ela fez um sinal positivo com a cabeça novamente.
— Olha... Não sei o quê você está pensando agora... Mas não sou ladrão e também não sou pervertido. — Ele estendeu as mãos em sinal de paz.
— Então, o quê está fazendo aqui? — Ela colocou devagar a mochila de volta nas costas.
— Bom... Gosto de ficar aqui.
— E por que a essa hora ?
— Porque, eu não tenho lugar pra dormir.
— Não tem uma casa?
— Tenho...
— Então por que, não tem lugar pra dormir?
— É difícil de explicar...
— Eu vou embora... — Ela se virou para sair dali.
— Você tem lugar pra ficar?
Ela parou, e demorou alguns segundos para responder.
— Tenho...
— Tem mesmo ?
Ela ficou em silêncio. Não baixe a guarda, não confie, não baixe a guarda, não confie...
— Tenho.
— Se você quiser, pode ficar onde estava, eu não vou te incomodar, e vou ficar a distância que você quiser. — Ele sabia que ela estava mentindo.
— Não, obrigada, eu tenho um lugar pra ficar.
— Esse bairro não é muito seguro, é pior quando escurece, não é muito recomendável andar por aí sozinha...
Ela se manteve em silêncio. Não sabia o que era pior, ficar ali ou continuar andando aquela hora da madrugada.
— Apesar de não ligarem as luzes do estacionamento, essa rua tem mais iluminação, é por isso que gosto de ficar aqui, sinto que tem menos risco, apesar de tudo.
Ela continuava em silêncio, mas dessa vez, seu estômago a denunciou, fazendo um barulho alto como um motor de carro. Ele deu uma curta risada, mas não foi um riso maldoso, parecia ter sido algo espontâneo.
— Você tem comida ? — Ele perguntou.
Não baixe a guarda, não confie, não baixe a guarda, não confie...
— Eu trouxe biscoitos, não sei se você gosta, mas...
— Estão aí? — Ela o interrompeu. Comida havia sido uma arma poderosa, ela estava com muita fome.
Não baixe a guarda, não confie, não baixe a guarda, não confie, não baixe a guarda, não confie, não baixe a guarda, não confie...
— Ah, estão no meu cantinho, vem, vou te mostrar. — Ele se virou para ir até o local.
— Você... Pode trazer aqui ?
Ele parou, e se virou para trás.
— Claro, claro, vou trazer. — Ele sorriu mostrando seus dentes grandes e se pôs a caminhar em direção ao Corsa preto.
Ela engoliu em seco, a fome estava deixando-a um tanto atordoada, mas consciente o suficiente para não ir em cantinho algum com aquele desconhecido.
Então ele apareceu novamente, trazendo nas mãos três pacotes de biscoito recheado.
— Bom, só temos sabor chocolate e... Morango. — Ele olhou para os pacotes. — Me desculpa por ter só isso, foi o que deu pra comprar na hora... Eu... Posso me aproximar, ou você vai ?
— Você pode... Comer um? — Ela desconfiou de que os biscoitos estivessem batizados.
Ele a encarou por um instante com as sobrancelhas erguidas, tentando entender aquela pergunta. Mas então, raciocinou, e em resposta, abriu o pacote e deu com gosto uma mordida no biscoito de chocolate.
— Você engoliu ?
Ele abriu a boca o máximo que conseguiu, se divertindo com aquela situação, apesar de saber que ela estava com medo.
— Pode comer outro?
— Vamos fazer o seguinte: Vou partir um no meio e nós dois comemos.
Ela pensou por alguns segundos se aquilo seria uma boa ideia. Ele não comeria um biscoito envenenado apenas para envenena-la, comeria? E se ele fosse o único imune ao veneno? E se suas mãos estivessem infectadas com alguma coisa? E se uma parte do biscoito estivesse infectada e ele desse essa parte para ela?
Enquanto ela pensava, ele esperava pacientemente, mastigando devagar cada biscoito que pegava.
— Tá... Tudo bem. — Ele sorriu com a resposta.
— Ok. — Ele dividiu sem demora o biscoito ao meio.
Então o inesperado aconteceu. Ela se aproximou, devagar, ainda em posição de defesa, tentando estar preparada ao máximo para qualquer possível movimento indevido vindo daquele rapaz desconhecido.
Estendeu cautelosamente a mão para pegar o pedaço, enquanto ele abria a palma para que ela não tivesse dificuldades, e segurou a metade do biscoito.
No mesmo instante seu estômago se agitou, desesperado para receber o alimento adocicado, mas ela manteve a consciência.
— Coma primeiro.
Ele obedeceu, enfiando a metade toda na boca, mastigando-a rápido e engolindo de forma exagerada.
— Abra a boca.
Ele riu antes de atender o pedido, e esticou a boca o máximo que conseguiu, levantando a língua.
Então, ela encarou o pedaço de biscoito em seus dedos. Aquilo estava deixando-a maluca, não queria confiar naquele cara, não queria confiar em ninguém, mas estava faminta.
Quando colocou o alimento na boca, o fez de uma vez só, mastigou e engoliu. Se aquela era a hora da morte, que fosse rápido.
— Quer mais?
Aquela era uma pergunta perigosa, considerando o barulho de seu estômago e a pouca distância que existia entre os dois. A fome havia a deixado corajosa até demais, deixando-a perto o suficiente para notar que ele tinha os olhos castanho escuro mais brilhantes que já havia visto em toda a vida, e sardas que cobriam suas bochechas e o nariz de forma charmosa. Ela não podia negar que o achava atraente, mas não poderia se perder naquilo.
— Pode pegar quantos quiser. — Ele disse gentil.
— Podemos... Fazer isso com todos os biscoitos? — Ela não teve receio em perguntar.
— Você não quer confiar em mim mesmo, não é ? — Ele sorriu brincalhão.
— Se fosse eu, você confiaria? — Ela ergueu uma sobrancelha.
— Talvez... Quando estou com fome, nada pode me parar.
Ele ergueu o biscoito, e o partiu novamente, dessa vez, entregando-a o pedaço, mas ainda cauteloso, não queria lhe causar medo. Ele comeu primeiro, e ela em seguida, e assim repetiram o gesto, até chegar ao fim do pacote.
— O que faz tão tarde andando sozinha por aí ?
— Por que, quer saber? — Perguntou de boca cheia. Ele riu apesar da ignorância.
— É só uma situação meio atípica, parece até que está fugindo de alguém.
— Eu deveria estar fugindo de você nesse momento.
— Você acha mesmo melhor andar por aí sozinha a essa hora do que ficar aqui comigo? — Ele amassou o pacote de biscoito. — Tem até câmeras ali. — Ele apontou para as câmeras da lanchonete.
— Câmeras não te impediriam de fazer algo comigo. — Devagar, ela deu três passos para trás.
— É... Você tem razão. — Ele respondeu de forma natural. Ela engoliu em seco. — Mas o quê pensa que eu faria com você ?
Aquela era uma pergunta um tanto sugestiva, e a deixou encabulada. Pensava nas piores coisas possíveis, mas não queria proferi-las com a boca. Estava na hora de cortar aquele cara antes que ele lhe fizesse algum mal.
— Eu vou pra casa. — Não fazia ideia de para onde ia.
— Quer que eu acompanhe?
— Não... Não precisa, obrigada. — Ela se virou para sair do estacionamento.
— Tome cuidado então, fiquei sabendo
que uma pessoa levou um tiro por aí. — Falou alto para que ela o escutasse.
Ela se virou para trás. Não conseguia pensar em absolutamente nada, era como um beco sem saída, ficar ali ou não pareciam as duas piores opções do mundo, qualquer escolha poderia conter riscos graves. Mas ficar parada encarando aquele homem enquanto pensava também não era uma ideia muito boa.
— Você quer mais biscoitos? Pode ficar com esse pacote. — Ele mostrou o pacote de biscoito sabor morango.
— Não, obrigada. — Ela se virou decidida a sair dali.
Ambos mergulharam-se em um profundo silêncio, enquanto ela caminhava até a rua.
Ela não conseguiu ao menos pensar, tudo havia sido muito rápido. De forma breve viu o carro Sedan prateado, idêntico ao de seu tio avançar com faróis altos pela rua, e os poucos segundos foram o suficiente para correr em direção ao homem dos biscoitos o mais rápido possível, deixando-o com uma expressão confusa. Procurava um lugar para se esconder ali, mesmo sem saber se de fato era seu parente, sequer havia prestado atenção na placa com tanto desespero.
Correu para aquele mesmo lugar, e se encolheu sentada no meio fio de concreto atrás do Corsa preto, sem sequer se lembrar de que havia outra pessoa naquele estacionamento. Buscou à respiração e os sentidos, se recuperando do aperto que havia se formado em sua garganta e a ânsia de vômito que sentiu, tudo causado pelo medo que tinha de que a encontrasse, naquele instante o medo de voltar aquela vida a preenchia por inteiro, por mais que não fizessem nem 24 horas que havia escapado daquele lugar.
— Ahn... — A voz grave estava mais perto do que deveria. — Tem algo que eu possa fazer? Eu posso te ajudar de alguma forma ?
Ela levantou a cabeça, e encontrou aquele homem agachado em sua frente, com uma expressão terna, como se falasse com uma criança perdida.
— Tem alguém te seguindo ou algo assim ? Talvez eu possa me livrar dessa pessoa pra você.
— Quem é você? — Perguntou em tom ríspido.
— ... — Ele sorriu paciente. — Posso saber o seu nome?
Ela ficou em silêncio, e pensou por alguns segundos, até finalmente perceber que estava em um beco sem saída, e teria que interagir de alguma forma.
— É . — A voz saiu baixa.
Capítulo 3
Ele deu um sorriso suave, mas aberto o suficiente para que ela percebesse o quanto seus dentes eram grandes, e aquilo o dava um charme especial.
— É um prazer te conhecer, . — Ela já estava arrependida de ter dito. — É um nome muito bonito, aliás.
— Obrigada.
— Você é uma mulher de poucas palavras, ou só não fala muito com caras estranhos em estacionamentos? — Ele brincou.
— A segunda opção, inclusive, você pode ficar mais distante por favor?
Ele a obedeceu, se afastando com cinco passos, ainda agachado.
— Você me acha estranho?
— Pessoas que estão a essa hora na rua, sempre podem ser possíveis suspeitas de alguma coisa.
— Acha que estou na rua porque fiz algo ruim?
— Eu não sei...
— Você quer... Que eu converse com você? Ou ficamos em silêncio?
— Sinceramente se você estivesse em silêncio agachado me observando desse jeito, seria muito assustador.
Ele riu.
— Então... Conversamos?
— Porque está insistindo tanto em falar comigo? — Disse alto.
— Acho que... Você está com medo de mim, e eu entendo totalmente. Talvez conversar ajude, talvez te faça ver que não quero lhe fazer mal.
— Se quer tanto que eu confie em você, vá embora, e me deixe, não me sinto confortável com você aqui.
— É, ... Um homem pra lidar com você precisa de paciência... — Ele sorriu fraco, era irritante o quanto sua voz era atraente para ela. — A sua sorte é que eu tenho de sobra.
— Não é questão de paciência... Como você se sentiria se estivesse no meu lugar? Eu não confio em você, se quer provar que não tem intenções ruins então caia fora.
— Eu bem que gostaria, mas a invasora aqui é você.
— Você é dono do estacionamento, é? — Ela debochou.
— Não, mas esse lugar é importante pra mim, não posso deixá-lo por sua causa.
— Um estacionamento é importante pra você?
— Olha... Eu sei lá por que merda você passou na vida pra desconfiar de tudo e todos e se esforçar tanto para não mostrar vulnerabilidade. — Ele se levantou. — Mas da forma que é esperta, deveria saber que ficar sozinha de madrugada em um lugar deserto é burrice.
— Cale a boca, você não sabe nada sobre mim !
— Pode ser grossa o quanto for e me xingar dos piores nomes possíveis. – Ele ajeitou a franja. — Mas vou ficar aqui, vou ser seu segurança até o dia clarear.
— Meu Deus, só me faltava essa... — Murmurou pousando a mão na testa.
— Vou ficar aqui. — Ele se posicionou na frente do Corsa preto. — Já que não se sente confortável com nossa proximidade.
— Que cavalheiro... — Debochou.
— Caras como eu são raros, hoje é seu dia de sorte.
— Como assim "caras como você"? Caras malucos você diz? Já encontrei muitos por aí, mas você de fato supera um pouco todos eles.
— Ana... — Ele apoiou os cotovelos no capô do carro.
— Não diga meu nome como se fôssemos íntimos.
— , posso te fazer uma pergunta? — Ele deu de ombros, rindo.
— Se não for nada safado...
— Tire isso da sua cabeça, já te disse que não sou um pervertido!
— Não consigo, é inevitável.
— Hmm, pensando bem talvez seja uma pergunta meio íntima...
— Oh Deus... Eu sabia que minha intuição estava certa. — Ela suspirou.
— Não, não, não! Não íntima desse tipo!
— O que tanto quer saber ? Diga logo! — Cruzou os braços sem paciência.
— Quem te fez tanto mal... Pra você ser assim ?
— Está insinuando que todas as pessoas que tem a personalidade parecida com a minha, passaram por algum tipo de trauma? — Ela enrugou a testa. — Você é o quê? Um psicólogo formado por coachs da internet?
— Não, não é isso... — Ele riu de sua última frase. — Mas é que... Debaixo de toda essa casca grossa... Acho que consigo ver que alguma coisa te quebrou por dentro e te assombrou pro resto da vida, eu só não sei o quê...
— Você é um daqueles jovens que ainda usa Facebook e segue páginas de citações ? Que cafona!
Ele riu.
— Quantos anos você tem ?
— Por que quer saber? Faz uma média da idade das suas vítimas? — Ela firmou os tênis no chão.
— Eu tenho 21, se quer saber. — Ele ignorou sua fala.
— Certo, obrigada pela informação, com certeza me faz sentir mais segura nesse fim de mundo depois de saber disso.
— ... — Não admitiria de forma alguma, mas o jeito com que ele dizia seu nome com aquela voz a deixava desconcertada. — Por que a Lua?
— Eu lá vou saber? Não fui eu quem escolhi esse nome esquisito.
— Você não sabe nem o porquê de seus pais terem escolhido seu nome... — Ele se afastou da dianteira do carro, contendo um sorriso no canto do lábio, e ficou de frente para ela.
E naquele instante, ele pôde analisá-la com maior clareza, percebendo a mancha vermelha que marcava seu braço e uma parte do vestido.
— Parece que alguém não prestou atenção na placa de tinta fresca da creche. — Ele indicou seu braço manchado de vermelho.
— Você também não. — Ela rebateu, apontando para sua blusa.
— Onde? — Ele puxou o tecido, procurando.
— Não, embaixo! — Ela apontou o local.
— Onde? — Ele continuava procurando.
— Mais pro lado! — Ela disse ao vê-lo quase tocar a mancha. — Não, o outro lado!
— Onde? — Ele não conseguia encontrar nem um respingo sequer.
— Venha aqui vou te mostrar. — Ela suspirou impaciente.
Mas ao vê-lo se aproximando, ela raciocinou rapidamente.
— Espera! — Ele parou no mesmo instante. — Esvazie os bolsos.
Ele a obedeceu, tirando dali um celular de tela rachada, moedas de pequeno valor e um pequeno chaveiro artesanal de lembrança de alguma praia. Colocou os bolsos para fora, mostrando ter tirado tudo o que tinha.
— Levante a barra da calça.
E novamente ele a obedeceu, mostrando que não havia nada ali.
— Levante a blusa.
— Hmm, quer ver meu tanquinho ?
Ela conteve uma risada, tentando
manter a pose séria. E quando ele levantou a blusa branca, fazendo cara de quem estava se divertindo com aquilo, pôde ver que ele não escondia nenhum tipo de arma ali, além do abdômen trincado, bem bonito e trabalhado aliás, mas jamais admitiria aquilo.
— Esse botão da sua calça... É meio suspeito... — Ela estreitou os olhos.
— Caramba vai querer que eu tire as calças também ? E você ainda diz que eu sou o pervertido ? — Ele tocava o botão da calça.
— O que está fazendo?! Não tire ! — Ela tapou os olhos com as mãos. — Só disse que era diferente, não precisa provar que não é uma arma.
— Eu não ia tirar. — Ele riu.
— Tire os sapatos. — Ordenou.
— O quê? Você acha que calço um número tão grande assim para conseguir esconder armas no sapato?
— Realmente você não tem pés tão grandes assim. — Ela analisou. — É o seguinte, se aproxime devagar, e se encostar um dedo em mim, pode apostar que hoje será seu último dia de vida.
— Estou curioso pra saber como você me mataria. — Ele começou a se aproximar, lentamente.
— Não brinque comigo, eu já quebrei o nariz de um cara na escola.
— Que malvada, caramba. — Ele debochou. — Aqui está bom?
— Não alcanço sua blusa, fique mais perto.
— Nunca imaginei que fosse ouvir essas palavras. — Ele se aproximou.
segurou a barra de sua blusa delicadamente, tentando não tremer os dedos. Apesar da postura amigável até então, ela ainda desconfiava de , ainda tinha medo, mas a culpa não era dela, era preciso estar o mais alerta possível em uma situação como aquela. Ela estendeu a barra, tomando cuidado para não revelar a pele de sua barriga. E pousou o polegar ao lado da mancha vermelha, indicando-a.
— Aqui.
— Caramba, eu nem tinha reparado. — Ele finalmente visualizou a mancha pequena. — Passei lá perto hoje, mas nem reparei que encostei.
— É, somos dois distraídos. — Ela levantou as sobrancelhas.
Repentinamente, o vento soprou forte, causando ao mesmo tempo uma sensação de frio e frescor. Era um vento leve e bom, o tipo de vento que causara uma sensação gostosa em ao passar por sua face. Apesar de tudo o que havia passado, a sensação de estar ali, por alguns segundos lhe causou um pico de liberdade, misturado a um leve frio na barriga.
— Você gostou do tecido da minha blusa?
Ela despertou de seus devaneios, se dando conta de que ainda tinha o polegar na barra da camisa de .
— Sim, parece muito bom. — Tentou disfarçar.
Ele riu. Seus olhos quase se fechando por completo ao esbanjar seus dentes grandes em um sorriso genuíno, fizeram-na questionar se de fato era o medo que a atingia naquele momento e não outro tipo de sentimento.
— Ana... — A forma com que o grave de sua voz vibrava era perigosa.
— Sim? — Ela ignorou o fato de ter sido chamada de forma íntima.
— Posso me sentar?
— Claro.
Ela se levantou no mesmo instante, passando rápido pelo homem a sua frente, procurando estar o mais distante possível.
— Eu quis dizer com você... Sei que você entendeu. — Ele se sentou no meio fio de concreto atrás do Corsa preto. — Mas não se preocupe, não vou ficar com raiva, eu já disse, eu te entendo.
— Não me chame só de Ana de novo.
— Tudo bem.
Apesar de estar em uma posição superior agora, ainda era afetada por de certa maneira. Mesmo que ele estivesse sentado no meio fio de concreto, olhando para cima de forma distraída, ainda conseguia lhe causar algo diferente no peito, que felizmente, não era um infarto.
— Você quer mais biscoitos ? — Perguntou.
— Não, obrigada.
— Quer água?
— Não, obrigada.
— Quer um abraço?
Ela ficou em silêncio. Não recebia um abraço há anos, e nunca havia parado para pensar naquilo. Talvez fosse tudo o que ela precisava ter tido nos últimos anos, talvez ter alguém que a abraçasse teria feito com que as coisas tivessem sido menos piores.
— Quer?
— Eu...
Ele pode te imobilizar, pode ser uma armadilha, não caia nessa, não caia nessa...
Talvez fosse tudo o que ela precisava ter tido nos últimos anos. Talvez fosse tudo o que ela precisava ter tido nos últimos anos. Talvez teria feito com que as coisas fossem menos piores. Talvez fosse tudo o que ela precisava ter tido nos últimos anos...
— Está falando sério?
— É claro que estou. — Ele sorriu.
Você não conhece ele, não vá! É uma armadilha!
A garganta dela doía, o choro estava preso, embolado, e ela daria sua vida para não deixá-lo escapar. Fazia tantos anos que não recebia um abraço... Fazia tantos anos que alguém não perguntava se ela gostaria de um...
— Você quer que eu te abrace?
Isso é claramente uma armadilha! Ele vai te agarrar, e não tem ninguém aqui pra te salvar disso! Não seja tola...
— ? Tudo bem? — Seu tom de voz esboçou preocupação.
— Se você tentar fazer alguma coisa, esse vai ser seu último dia de vida. — Ela fungou, tentando espantar o choro.
— Você ainda pensa que sou um pervertido ? Você é resistente ! — Ele riu.
De repente, sem aviso prévio, ela se aproximou rapidamente, e agarrou as costas de . Inclinou o corpo, dobrando levemente os joelhos para que ele permanecesse sentado, e não precisasse se levantar. E em resposta, ele a apertou contra si, mantendo as mãos em suas costas, tomando o máximo de cuidado para não escorrega-las.
— Não diga nada, por favor. — Ela pediu.
— Não vou dizer. — A voz dele tão próxima lhe causou um arrepio.
As mãos dele a seguravam com delicadeza, não frouxas demais ou firmes demais, a abraçava com cuidado, como se tivesse medo de quebrá-la. A bochecha quente dela, roçava a sua a cada pequeno movimento, ela não queria enterrar a cabeça em seu pescoço, já bastava ter quebrado todas as barreiras e adentrado a zona proibida. Tentava arranjar forças para sair dali, mas o cheiro de sabonete de chocolate que ele possuía tornava as coisas difíceis, não queria se esquecer daquele cheiro, queria grava-lo em seus mínimos detalhes para se lembrar dele mais tarde.
Mas por que queria se lembrar? era apenas um desconhecido, um completo estranho de cabelos descoloridos e voz profunda. havia surgido de um nada e podia ser muitas coisas, desde um pescador para o tráfico humano até um assassino em série. Mas estava ali, tentando gravar o cheiro e a sensação de estar nos braços de um homem que há alguns minutos atrás jamais teria estado a menos de um metro de distância. Estar desamparada, deixava-a vulnerável, se era o único amparo que poderia ter, iria aproveitá-lo, fossem suas intenções ruins ou não.
Foi quando se deu conta do quanto era carente de afeto, e o quanto aquilo a havia feito tomar decisões tolas e impulsivas.
Rapidamente, se desvencilhou dos braços de , e mesmo que de imediato sentisse uma sensação vazia, não voltou atrás.
Segurou as duas alças da mochila, e se pôs a caminhar em direção a saída do estacionamento, sem dizer nada, com os olhos carregados, prontos para derramar lágrimas novamente. Não podia chorar, não podia ficar ali, não podia ter abraçado aquele desconhecido. Tudo estava uma bagunça.
— Aonde você vai ?! — A voz dele já estava distante.
Ela não respondeu, apenas continuou andando. E lá estava ela, entrando em uma rua escura novamente.
Mas dessa vez, ela ouviu passos, alguém corria.
— Ei, não vai embora! — Era ele.
— Por que está me perseguindo ?! — Ela começou a correr. — Me deixe em paz!
— Por favor, pare, por favor!
— Vá embora! Me deixe em paz! — Ela continuava correndo, esfregando as lágrimas que já começavam a deslizar por suas bochechas.
E de repente, sentiu seu corpo sendo jogado, e a mochila amortecendo o chocar contra a parede. Quando piscou os olhos novamente, estava encurralada, por um par de braços mais longos que os seus.
A respiração de batendo em seu rosto, ofegante, emanava arrepios por todo o seu corpo, já não sabia mais se pelo medo ou pela atração. Talvez, por mais louco que parecesse, fosse uma mistura dos dois.
— Nós podemos ficar em uma distância segura, podemos ficar da forma que quiser. — Ele ainda recuperava o fôlego. — Mas por favor, não ande sozinha por aqui, eu já te disse, é perigoso.
— Dá pra perceber, devem existir vários malucos como você nesse lugar. — Ela respirou fundo, buscando recuperar o ritmo normal da respiração.
— Volte pro estacionamento.
— Eu não quero ficar lá se você estiver lá. — Suas pernas tremiam.
— Você não entende, que eu preciso estar lá?
— Por quê? — Ela franziu as sobrancelhas. — O que está planejando?
— Caramba, o que se passa na sua cabeça? Já te disse que é perigoso andar sozinha por aqui a essa hora, você não conhece esse bairro? Está no noticiário quase todos os dias!
— Me solte... — Murmurou, com medo de levantar a voz, estava encurralada.
Se arrependeu amargamente de ter feito o pedido. sentiu ânsia de vômito e todo o corpo esquentar de nervosismo, suas pernas já tremiam como se estivesse prestes a cair, quando colou seu tronco ao dela e enfiou a mão no bolso de trás.
Tirou dali o chaveiro, que em um movimento de suas mãos, se abriu, revelando um objeto pontiagudo. Era um canivete.
— ... — Murmurou, imóvel, não conseguia sequer mexer os dedos das mãos, estava congelada de medo.
— É um prazer te conhecer, . — Ela já estava arrependida de ter dito. — É um nome muito bonito, aliás.
— Obrigada.
— Você é uma mulher de poucas palavras, ou só não fala muito com caras estranhos em estacionamentos? — Ele brincou.
— A segunda opção, inclusive, você pode ficar mais distante por favor?
Ele a obedeceu, se afastando com cinco passos, ainda agachado.
— Você me acha estranho?
— Pessoas que estão a essa hora na rua, sempre podem ser possíveis suspeitas de alguma coisa.
— Acha que estou na rua porque fiz algo ruim?
— Eu não sei...
— Você quer... Que eu converse com você? Ou ficamos em silêncio?
— Sinceramente se você estivesse em silêncio agachado me observando desse jeito, seria muito assustador.
Ele riu.
— Então... Conversamos?
— Porque está insistindo tanto em falar comigo? — Disse alto.
— Acho que... Você está com medo de mim, e eu entendo totalmente. Talvez conversar ajude, talvez te faça ver que não quero lhe fazer mal.
— Se quer tanto que eu confie em você, vá embora, e me deixe, não me sinto confortável com você aqui.
— É, ... Um homem pra lidar com você precisa de paciência... — Ele sorriu fraco, era irritante o quanto sua voz era atraente para ela. — A sua sorte é que eu tenho de sobra.
— Não é questão de paciência... Como você se sentiria se estivesse no meu lugar? Eu não confio em você, se quer provar que não tem intenções ruins então caia fora.
— Eu bem que gostaria, mas a invasora aqui é você.
— Você é dono do estacionamento, é? — Ela debochou.
— Não, mas esse lugar é importante pra mim, não posso deixá-lo por sua causa.
— Um estacionamento é importante pra você?
— Olha... Eu sei lá por que merda você passou na vida pra desconfiar de tudo e todos e se esforçar tanto para não mostrar vulnerabilidade. — Ele se levantou. — Mas da forma que é esperta, deveria saber que ficar sozinha de madrugada em um lugar deserto é burrice.
— Cale a boca, você não sabe nada sobre mim !
— Pode ser grossa o quanto for e me xingar dos piores nomes possíveis. – Ele ajeitou a franja. — Mas vou ficar aqui, vou ser seu segurança até o dia clarear.
— Meu Deus, só me faltava essa... — Murmurou pousando a mão na testa.
— Vou ficar aqui. — Ele se posicionou na frente do Corsa preto. — Já que não se sente confortável com nossa proximidade.
— Que cavalheiro... — Debochou.
— Caras como eu são raros, hoje é seu dia de sorte.
— Como assim "caras como você"? Caras malucos você diz? Já encontrei muitos por aí, mas você de fato supera um pouco todos eles.
— Ana... — Ele apoiou os cotovelos no capô do carro.
— Não diga meu nome como se fôssemos íntimos.
— , posso te fazer uma pergunta? — Ele deu de ombros, rindo.
— Se não for nada safado...
— Tire isso da sua cabeça, já te disse que não sou um pervertido!
— Não consigo, é inevitável.
— Hmm, pensando bem talvez seja uma pergunta meio íntima...
— Oh Deus... Eu sabia que minha intuição estava certa. — Ela suspirou.
— Não, não, não! Não íntima desse tipo!
— O que tanto quer saber ? Diga logo! — Cruzou os braços sem paciência.
— Quem te fez tanto mal... Pra você ser assim ?
— Está insinuando que todas as pessoas que tem a personalidade parecida com a minha, passaram por algum tipo de trauma? — Ela enrugou a testa. — Você é o quê? Um psicólogo formado por coachs da internet?
— Não, não é isso... — Ele riu de sua última frase. — Mas é que... Debaixo de toda essa casca grossa... Acho que consigo ver que alguma coisa te quebrou por dentro e te assombrou pro resto da vida, eu só não sei o quê...
— Você é um daqueles jovens que ainda usa Facebook e segue páginas de citações ? Que cafona!
Ele riu.
— Quantos anos você tem ?
— Por que quer saber? Faz uma média da idade das suas vítimas? — Ela firmou os tênis no chão.
— Eu tenho 21, se quer saber. — Ele ignorou sua fala.
— Certo, obrigada pela informação, com certeza me faz sentir mais segura nesse fim de mundo depois de saber disso.
— ... — Não admitiria de forma alguma, mas o jeito com que ele dizia seu nome com aquela voz a deixava desconcertada. — Por que a Lua?
— Eu lá vou saber? Não fui eu quem escolhi esse nome esquisito.
— Você não sabe nem o porquê de seus pais terem escolhido seu nome... — Ele se afastou da dianteira do carro, contendo um sorriso no canto do lábio, e ficou de frente para ela.
E naquele instante, ele pôde analisá-la com maior clareza, percebendo a mancha vermelha que marcava seu braço e uma parte do vestido.
— Parece que alguém não prestou atenção na placa de tinta fresca da creche. — Ele indicou seu braço manchado de vermelho.
— Você também não. — Ela rebateu, apontando para sua blusa.
— Onde? — Ele puxou o tecido, procurando.
— Não, embaixo! — Ela apontou o local.
— Onde? — Ele continuava procurando.
— Mais pro lado! — Ela disse ao vê-lo quase tocar a mancha. — Não, o outro lado!
— Onde? — Ele não conseguia encontrar nem um respingo sequer.
— Venha aqui vou te mostrar. — Ela suspirou impaciente.
Mas ao vê-lo se aproximando, ela raciocinou rapidamente.
— Espera! — Ele parou no mesmo instante. — Esvazie os bolsos.
Ele a obedeceu, tirando dali um celular de tela rachada, moedas de pequeno valor e um pequeno chaveiro artesanal de lembrança de alguma praia. Colocou os bolsos para fora, mostrando ter tirado tudo o que tinha.
— Levante a barra da calça.
E novamente ele a obedeceu, mostrando que não havia nada ali.
— Levante a blusa.
— Hmm, quer ver meu tanquinho ?
Ela conteve uma risada, tentando
manter a pose séria. E quando ele levantou a blusa branca, fazendo cara de quem estava se divertindo com aquilo, pôde ver que ele não escondia nenhum tipo de arma ali, além do abdômen trincado, bem bonito e trabalhado aliás, mas jamais admitiria aquilo.
— Esse botão da sua calça... É meio suspeito... — Ela estreitou os olhos.
— Caramba vai querer que eu tire as calças também ? E você ainda diz que eu sou o pervertido ? — Ele tocava o botão da calça.
— O que está fazendo?! Não tire ! — Ela tapou os olhos com as mãos. — Só disse que era diferente, não precisa provar que não é uma arma.
— Eu não ia tirar. — Ele riu.
— Tire os sapatos. — Ordenou.
— O quê? Você acha que calço um número tão grande assim para conseguir esconder armas no sapato?
— Realmente você não tem pés tão grandes assim. — Ela analisou. — É o seguinte, se aproxime devagar, e se encostar um dedo em mim, pode apostar que hoje será seu último dia de vida.
— Estou curioso pra saber como você me mataria. — Ele começou a se aproximar, lentamente.
— Não brinque comigo, eu já quebrei o nariz de um cara na escola.
— Que malvada, caramba. — Ele debochou. — Aqui está bom?
— Não alcanço sua blusa, fique mais perto.
— Nunca imaginei que fosse ouvir essas palavras. — Ele se aproximou.
segurou a barra de sua blusa delicadamente, tentando não tremer os dedos. Apesar da postura amigável até então, ela ainda desconfiava de , ainda tinha medo, mas a culpa não era dela, era preciso estar o mais alerta possível em uma situação como aquela. Ela estendeu a barra, tomando cuidado para não revelar a pele de sua barriga. E pousou o polegar ao lado da mancha vermelha, indicando-a.
— Aqui.
— Caramba, eu nem tinha reparado. — Ele finalmente visualizou a mancha pequena. — Passei lá perto hoje, mas nem reparei que encostei.
— É, somos dois distraídos. — Ela levantou as sobrancelhas.
Repentinamente, o vento soprou forte, causando ao mesmo tempo uma sensação de frio e frescor. Era um vento leve e bom, o tipo de vento que causara uma sensação gostosa em ao passar por sua face. Apesar de tudo o que havia passado, a sensação de estar ali, por alguns segundos lhe causou um pico de liberdade, misturado a um leve frio na barriga.
— Você gostou do tecido da minha blusa?
Ela despertou de seus devaneios, se dando conta de que ainda tinha o polegar na barra da camisa de .
— Sim, parece muito bom. — Tentou disfarçar.
Ele riu. Seus olhos quase se fechando por completo ao esbanjar seus dentes grandes em um sorriso genuíno, fizeram-na questionar se de fato era o medo que a atingia naquele momento e não outro tipo de sentimento.
— Ana... — A forma com que o grave de sua voz vibrava era perigosa.
— Sim? — Ela ignorou o fato de ter sido chamada de forma íntima.
— Posso me sentar?
— Claro.
Ela se levantou no mesmo instante, passando rápido pelo homem a sua frente, procurando estar o mais distante possível.
— Eu quis dizer com você... Sei que você entendeu. — Ele se sentou no meio fio de concreto atrás do Corsa preto. — Mas não se preocupe, não vou ficar com raiva, eu já disse, eu te entendo.
— Não me chame só de Ana de novo.
— Tudo bem.
Apesar de estar em uma posição superior agora, ainda era afetada por de certa maneira. Mesmo que ele estivesse sentado no meio fio de concreto, olhando para cima de forma distraída, ainda conseguia lhe causar algo diferente no peito, que felizmente, não era um infarto.
— Você quer mais biscoitos ? — Perguntou.
— Não, obrigada.
— Quer água?
— Não, obrigada.
— Quer um abraço?
Ela ficou em silêncio. Não recebia um abraço há anos, e nunca havia parado para pensar naquilo. Talvez fosse tudo o que ela precisava ter tido nos últimos anos, talvez ter alguém que a abraçasse teria feito com que as coisas tivessem sido menos piores.
— Quer?
— Eu...
Ele pode te imobilizar, pode ser uma armadilha, não caia nessa, não caia nessa...
Talvez fosse tudo o que ela precisava ter tido nos últimos anos. Talvez fosse tudo o que ela precisava ter tido nos últimos anos. Talvez teria feito com que as coisas fossem menos piores. Talvez fosse tudo o que ela precisava ter tido nos últimos anos...
— Está falando sério?
— É claro que estou. — Ele sorriu.
Você não conhece ele, não vá! É uma armadilha!
A garganta dela doía, o choro estava preso, embolado, e ela daria sua vida para não deixá-lo escapar. Fazia tantos anos que não recebia um abraço... Fazia tantos anos que alguém não perguntava se ela gostaria de um...
— Você quer que eu te abrace?
Isso é claramente uma armadilha! Ele vai te agarrar, e não tem ninguém aqui pra te salvar disso! Não seja tola...
— ? Tudo bem? — Seu tom de voz esboçou preocupação.
— Se você tentar fazer alguma coisa, esse vai ser seu último dia de vida. — Ela fungou, tentando espantar o choro.
— Você ainda pensa que sou um pervertido ? Você é resistente ! — Ele riu.
De repente, sem aviso prévio, ela se aproximou rapidamente, e agarrou as costas de . Inclinou o corpo, dobrando levemente os joelhos para que ele permanecesse sentado, e não precisasse se levantar. E em resposta, ele a apertou contra si, mantendo as mãos em suas costas, tomando o máximo de cuidado para não escorrega-las.
— Não diga nada, por favor. — Ela pediu.
— Não vou dizer. — A voz dele tão próxima lhe causou um arrepio.
As mãos dele a seguravam com delicadeza, não frouxas demais ou firmes demais, a abraçava com cuidado, como se tivesse medo de quebrá-la. A bochecha quente dela, roçava a sua a cada pequeno movimento, ela não queria enterrar a cabeça em seu pescoço, já bastava ter quebrado todas as barreiras e adentrado a zona proibida. Tentava arranjar forças para sair dali, mas o cheiro de sabonete de chocolate que ele possuía tornava as coisas difíceis, não queria se esquecer daquele cheiro, queria grava-lo em seus mínimos detalhes para se lembrar dele mais tarde.
Mas por que queria se lembrar? era apenas um desconhecido, um completo estranho de cabelos descoloridos e voz profunda. havia surgido de um nada e podia ser muitas coisas, desde um pescador para o tráfico humano até um assassino em série. Mas estava ali, tentando gravar o cheiro e a sensação de estar nos braços de um homem que há alguns minutos atrás jamais teria estado a menos de um metro de distância. Estar desamparada, deixava-a vulnerável, se era o único amparo que poderia ter, iria aproveitá-lo, fossem suas intenções ruins ou não.
Foi quando se deu conta do quanto era carente de afeto, e o quanto aquilo a havia feito tomar decisões tolas e impulsivas.
Rapidamente, se desvencilhou dos braços de , e mesmo que de imediato sentisse uma sensação vazia, não voltou atrás.
Segurou as duas alças da mochila, e se pôs a caminhar em direção a saída do estacionamento, sem dizer nada, com os olhos carregados, prontos para derramar lágrimas novamente. Não podia chorar, não podia ficar ali, não podia ter abraçado aquele desconhecido. Tudo estava uma bagunça.
— Aonde você vai ?! — A voz dele já estava distante.
Ela não respondeu, apenas continuou andando. E lá estava ela, entrando em uma rua escura novamente.
Mas dessa vez, ela ouviu passos, alguém corria.
— Ei, não vai embora! — Era ele.
— Por que está me perseguindo ?! — Ela começou a correr. — Me deixe em paz!
— Por favor, pare, por favor!
— Vá embora! Me deixe em paz! — Ela continuava correndo, esfregando as lágrimas que já começavam a deslizar por suas bochechas.
E de repente, sentiu seu corpo sendo jogado, e a mochila amortecendo o chocar contra a parede. Quando piscou os olhos novamente, estava encurralada, por um par de braços mais longos que os seus.
A respiração de batendo em seu rosto, ofegante, emanava arrepios por todo o seu corpo, já não sabia mais se pelo medo ou pela atração. Talvez, por mais louco que parecesse, fosse uma mistura dos dois.
— Nós podemos ficar em uma distância segura, podemos ficar da forma que quiser. — Ele ainda recuperava o fôlego. — Mas por favor, não ande sozinha por aqui, eu já te disse, é perigoso.
— Dá pra perceber, devem existir vários malucos como você nesse lugar. — Ela respirou fundo, buscando recuperar o ritmo normal da respiração.
— Volte pro estacionamento.
— Eu não quero ficar lá se você estiver lá. — Suas pernas tremiam.
— Você não entende, que eu preciso estar lá?
— Por quê? — Ela franziu as sobrancelhas. — O que está planejando?
— Caramba, o que se passa na sua cabeça? Já te disse que é perigoso andar sozinha por aqui a essa hora, você não conhece esse bairro? Está no noticiário quase todos os dias!
— Me solte... — Murmurou, com medo de levantar a voz, estava encurralada.
Se arrependeu amargamente de ter feito o pedido. sentiu ânsia de vômito e todo o corpo esquentar de nervosismo, suas pernas já tremiam como se estivesse prestes a cair, quando colou seu tronco ao dela e enfiou a mão no bolso de trás.
Tirou dali o chaveiro, que em um movimento de suas mãos, se abriu, revelando um objeto pontiagudo. Era um canivete.
— ... — Murmurou, imóvel, não conseguia sequer mexer os dedos das mãos, estava congelada de medo.
Capítulo 4
Encarando-a, apontou o objeto cortante para sua barriga, fazendo-a apertar os olhos.
— Segure.
— O quê? — Ela abriu os olhos e fitou as mãos dele, estendendo o objeto.
— Segure, logo. — Por incrível que pareça, havia paciência em seu tom de voz.
Ela obedeceu, mesmo sem entender, e pegou o objeto.
— Você pode me furar, fazer o que quiser comigo. — Ela arregalou os olhos ao ouvir aquelas palavras. — Se algo assim fazer você confiar em mim, eu não me importo.
Ela o encarou por um instante, com um ponto de interrogação nos olhos. Não entendeu ao certo, mas segurou firme o canivete em suas mãos, detectando uma certa preocupação nos olhos castanhos daquele desconhecido. Talvez ele estivesse com medo? Medo de que ela realmente o atacasse? E bom, de fato tinha uma pequena vontade de fazer aquilo.
— Vamos... Voltar? — Ele engoliu em seco, se afastando dela aos poucos.
— Quero ver de novo se você não tem mais alguma arma. — Ela respirou fundo, segurando o canivete em posição de defesa, pronta para qualquer golpe inesperado. — Vire pra parede.
Ele obedeceu, e colocou as mãos na cabeça, como se estivesse prestes a ser revistado pela polícia.
Então, , revistou seus bolsos de trás e da frente, checando as poucas coisas que haviam ali, certificando-se de que nada era uma potencial arma. O canivete havia lhe dado coragem, um certo sentimento de domínio diante daquela situação. Checou as barras da calça, o colar prateado que ele usava, os brincos, e até mesmo os cabelos, causando um rastro de fogo na pele arrepiada de ao tocar acidentalmente sua nuca. Ela levantou com cuidado sua blusa, por mais constrangida que se sentisse com aquilo, queria se certificar 100% de que a única portadora de armas no momento era ela. E um leve e breve roçar acidental em sua barriga a fez sentir os músculos de seu abdômen, por curtíssimos segundos. estava completamente consciente de que ele estava arrepiado, conseguia sentir aquilo, tanto ao roçar sem querer a ponta dos dedos nos pelos de seu braço, quanto pela atmosfera. Mas não entendia o motivo, por que ele estava daquela forma?
— Você vai na frente. — Falou baixo, mas alto o suficiente para que ele escutasse bem.
E foi o que ele fez. Em silêncio, se pôs a andar para o lugar de onde vieram, com ela atrás, apontando o canivete como se estivesse fazendo-o andar na prancha de um navio pirata.
Dizer que ela sentia-se mais segura agora não seria verdade, mesmo tendo um objeto cortante em mãos, ainda tinha medo, medo de ser uma emboscada, medo de que ele de repente lhe desse um golpe que lhe arrancaria o canivete das mãos e a imobilizaria, pensava nas piores hipóteses possíveis enquanto caminhavam de volta para aquele estacionamento. , se é que seu nome era mesmo esse, não era muito alto, mas ainda era um pouco mais alto, e por seu físico, talvez mais forte, o que a preocupava de certa forma. Como poderia confiar em alguém que havia "conhecido" em um estacionamento de madrugada? Por mais gentil, e por mais sincera que sua preocupação em não deixá-la andar sozinha por aí parecesse, ele ainda era um estranho. Talvez tudo aquilo fosse besteira, talvez ele apenas possuísse muita lábia para enganar vítimas. Entregar completamente sua confiança a um estranho, era burrice.
E por isso, levantou o canivete, espetando-o levemente no pescoço de . Não tinha intenção de mata-lo naquele momento, queria apenas deixar o aviso.
— Vai mesmo me furar? — Perguntou sem parar de andar.
— Experimente me encostar de novo e você vai ver.
— Estou com medo agora.
Não era mentira, afinal havia uma mulher desconhecida lhe espetando com um canivete. Por mais que fosse alguns centímetros mais baixa, ele não a conhecia, ela também poderia ser perigosa para ele.
E finalmente, quando chegaram ao local, ele parou ali. Parou bem no centro do estacionamento, pois não sabia para que canto ir.
— Continue. — Ordenou.
— Para onde?
— Onde estávamos.
— Você pode desencostar a ponta desse negócio do meu pescoço? É meio incômodo. — Ele se pôs a andar em direção ao Corsa preto.
— Não.
Ele suspirou, e parou na frente do carro.
— Sente-se ali. — Ela indicou o já conhecido meio fio de concreto atrás do carro.
— Tem certeza?
— Vá, logo.
Ele deixou escapar um pesado e cansado suspiro ao se sentar.
— Vai ficar aí em pé? — Ele levantou a cabeça para olhar para ela.
— Aqui estou mais segura.
— Claro. — Ele sorriu, olhando o relógio.
— Que horas são ?
— São quase 2.
— Obrigada. — Murmurou.
— O que vai fazer quando amanhecer?
— Me diga você. — Ela rebateu.
— Sinceramente, não sei ao certo o que vai acontecer. — Ele deu de ombros. — Mas talvez seja minha última noite aqui... Você... Está fugindo de alguém?
— Por que é sua última noite aqui?
— Ei, calma aí, isso não é justo, você também tem que responder as perguntas.
— Como quer ganhar minha confiança se não responder?
— Já te dei meu canivete, mulher. — Ele sorriu brincalhão. — Se nem com isso ganhei sua confiança, estou desistindo nesse momento.
Ela respirou fundo antes de dizer.
— Não estou fugindo.
— Não? — Ele levantou a sobrancelhas. Ela negou com a cabeça em resposta.
— Só estou tentando viver uma vida normal.
— Tem pais muito conservadores?
Ela apenas fez um gesto negativo com a cabeça, não queria revelar que sua mãe era falecida e seu pai havia simplesmente sumido, aquilo a deixaria em posição vulnerável, e não era isso que ela queria, o foco era parecer dominar a situação, por mais que ainda estivesse com medo.
— Sua cidade é muito ruim para viver e você resolveu se mudar pra cá?
— Agora é sua vez, responda por que é sua última noite aqui.
— Vou ser preso amanhã. — Respondeu de forma natural.
A resposta fez com que ela desse um passo para trás e segurasse firme o canivete.
— Pelo quê?
— Não se preocupe, não fiz nada injusto.
— O que aconteceu? — Engoliu em seco. — Por que vai ser preso? Por que amanhã?
— Cansei de fugir, vou me entregar.
— Fugir? Você está fugindo da polícia? Mas o que você fez?! — Ela arregalou os olhos, dando mais passos para trás.
— Você já fez perguntas demais, agora é sua vez de responder. — A voz dele continuou calma. — Quantos anos tem?
— Eu não te disse? — Ele negou com a cabeça em resposta. — Tenho 22.
— Certo, 1 ano mais velha. — Ele se ajeitou no meio fio, sentar ali era desconfortável.
— O que você fez ?
— O quê?
— Responda, o que você fez? Por que vai ser preso?
Ele ficou em silêncio, de cabeça baixa.
— ?
— Eu fui buscar umas drogas com um ex-amigo meu, ele vendia. — Ele ergueu o olhar. — Mas ele não me contou que ia fazer mais que isso.
— Fazer mais que isso?
— O plano dele era pegar tudo e matar o cara, eles tinham uma richa ou algo do tipo, não sei ao certo qual era o problema.
— O seu amigo, era traficante ?
— Ele é, ou era, não sei...
— Como assim? Você não sabe se ele é ou era? — Ela esfregou a testa. — Meu Deus... Só continue.
— Quando ele atirou, saiu correndo na minha frente, entrou no carro e desapareceu...
Ela ouvia atentamente cada palavra.
— Eu fiquei em choque, pensei em ligar pra polícia, mas eu seria preso, afinal eu ajudava ele a vender. — Ele embrenhou as mãos nos cabelos, como se fosse arrancá-los. — E então eu corri dali, e desde então... Eu não parei de me esconder.
— Meu Deus. — Ela soltou um suspiro pesado. — Então está me dizendo... Que esse tempo todo, eu estive conversando com um criminoso foragido?
— Não adianta muita coisa eu mentir pra você, não é? — Ele estalou a língua e respirou fundo. — Não disse antes porque estava com medo de você ir embora.
— Por que está tão preocupado comigo? Você nem me conhece. — Ela cruzou os braços.
— Posso me levantar?
— Por quê? O que vai fazer? — Ela rapidamente apontou o canivete em sua direção.
— Minhas costas estão doendo, quero sentar encostado na parede. — Ele ergueu os braços em sinal de rendição.
— Vá. — Ela revirou os olhos.
se levantou, bem devagar, e caminhou até o fim do estacionamento.
— O que está fazendo?!
Ele não respondeu, apenas voltou andando em sua direção, trazendo nos braços o que parecia ser uma toalha de mesa e um cobertor, empilhados.
— O que é isso?
— Eu costumo dormir aqui, então sempre trago minhas coisas. — Ele ajeitou a toalha no chão e se sentou com o cobertor em seu colo. — É melhor pra não ter de se sentar no chão. — Endireitou o corpo ao colar as costas na parede.
De súbito, um vento frio e fresco atravessou a pele dos braços desnudos de , fazendo-a esfrega-los em vista de se aquecer, abaixando os pelos arrepiados. Podia até ser verão, mas o vento era constantemente presente nas madrugadas daquela região.
— Está fazendo um vento frio, não é? — cobriu as pernas com o cobertor. — Quer se sentar aqui?
— Nem senti.
— Então por que está encolhida?
Quando se deu conta de que ainda se abraçava, rapidamente colocou os braços para baixo, endireitando a coluna e segurando ainda mais firme o canivete.
— Não quero que você passe frio, Ana, sente-se aqui, você deve estar exausta de ficar em pé. — Ele indicou o lugar ao seu lado. — Quer água? — Ela percebeu que ele tinha uma garrafa de água lacrada ao seu lado. Aquilo havia surgido do além?
— Eu já disse pra não me chamar de Ana. — Foram as únicas palavras que saíram de sua boca, enquanto o encarava com um olhar impaciente.
— Não está cansada de ficar aí, parada? Vamos, sente-se.
— ... — Ela respirou fundo.
— Sim?
— Você é um criminoso...
— Você fala como se eu fosse um serial killer.
— Nada descarta essa possibilidade também, eu não te conheço.
— A única arma que eu tinha está em suas mãos, a única potencial matadora nesse lugar agora é você, não acha? — Ele sorriu.
— O seu nome é mesmo ?
— O seu nome é mesmo ? — Ele estreitou os olhos. — E se você for uma criminosa?
— E se eu for? O que vai fazer?
— Implorar para que você me dê uma morte rápida com esse canivete. — Ele pousou as mãos no cobertor. — Seria horrível ficar agonizando até falecer.
— Não sei se posso atender a esse pedido.
I'm a flower, you're my bee
It's much older than you and me
*Eu sou uma flor, você é minha abelha
É muito mais velho que você e eu
Repentinamente, uma música começou a tocar, bem baixo, falhando a cada nota, como se viesse de um rádio com sinal ruim.
— De onde está vindo isso?! — Ela olhou ao redor.
— Ah, finalmente pegou! — Ele sorriu, tirando um rádio de debaixo do cobertor.
— De onde isso veio? — Ela arregalou os olhos. Parecia que as coisas daquele homem apareciam em um passe de mágica.
— We're not animals baby... It's the people who lie... * — Ele cantarolou junto com a música, ajeitando a antena do rádio.
*Nós não somos animais, baby
São as pessoas que mentem
ficou em silêncio por um instante, apenas observando-o cantarolar junto a música a cada verso. Ele deixou o rádio ao seu lado, no chão, e se pôs a olhar para cima, enquanto mostrava que sabia a letra daquela canção de cor. Não podia dizer que seu canto era perfeito, algumas vezes ele saía do ritmo, mas de certa forma, a voz dele era linda, e ficava ainda mais atraente quando cantava.
I want real love baby
Ooh, don't leave me waiting
I've got real love maybe
Wait until you taste me
*Eu quero um amor verdadeiro, baby
Ooh, não me deixe esperando
Talvez eu tenha o verdadeiro amor
Espere até você me provar
gostaria de saber inglês naquelas horas, pois a forma a qual ele cantava, parecia estar totalmente entregue a canção, sentindo cada palavra. E de tudo o que ele havia cantado junto ao cantor, ela só entendia "baby" e "amor". Perguntava-se se ele entendia a música, se era bilíngue, ou apenas havia decorado a canção, sem saber o significado.
Our hearts
Are free
So tell me what's wrong with the feeling
*Nossos corações
São livres
Então me diga o que há de errado com o sentimento
Naquele momento, ele fechou os olhos, e começou a cantar mais baixo, quase sussurrando a canção. E quanto mais baixo cantava, parecia que sua voz se tornava ainda mais profunda. Ela agora perguntava-se se ele sabia o significado completo da letra, e estava xingando-a por meio daquela canção, por mais que a melodia fosse bonita e dançante, e tudo parecesse colaborar para que aquela fosse uma linda música, as aparências poderiam enganar.
I'm in love, I'm alive
I belong to the stars and sky
Let's forget who we are for one night
*Eu estou apaixonado, eu estou vivo
Eu pertenço às estrelas e ao céu
Vamos esquecer o que somos por uma noite
, sentia as pernas doendo, precisava se sentar. Aproveitou o momento em que o estranho estava distraído com a canção, de olhos fechados, e vagarosamente se aproximou, sentando-se no meio fio de concreto. Por mais desconfortável que fosse, era melhor do que se sentar naquela toalha ao lado dele.
A distância entre os dois agora não era tão grande, se esticasse os braços, talvez a ponta de seus dedos conseguisse tocar os sapatos de , mas não fazia ideia do porquê aquele pensamento havia passado por sua mente.
Perguntava-se como ele podia se sentir tão a vontade ali, cantando de olhos fechados, sendo que há uma curta distância, havia uma desconhecida com um canivete em mãos, talvez pronta para atacá-lo.
De forma involuntária, observou o formato pontudo do rosto de e as leves olheiras que lhe marcavam a região embaixo dos olhos, talvez ele precisasse dormir um pouco, quem sabe ele não dormisse há dias, pela forma que vivia ele precisava estar sempre em alerta não é?
Seus lábios estavam um tanto ressecados e avermelhados. Perguntava-se se aquela era sua cor de nascença ou ele usava algum batom, ou talvez tivesse comido algo que havia os deixado daquele tom, que parecia tão natural. Por um instante se pegou pensando se eram macios e o quão suave poderia ser beija-lo. Rapidamente balançou a cabeça, para afastar aqueles pensamentos estranhos.
A música acabou, e o nome da rádio foi anunciada junto a um slogan por um locutor animado, mas não conseguiu prestar atenção, estava vidrada em observar o rosto tranquilo de , que estranhamente parecia muito confortável em sua presença. E estava tão focada na forma com que suas sardas se espalhavam por suas bochechas, que só se deu conta de que outra canção tocava quando o rádio velho aumentou e diminuiu o volume espontaneamente, falhando por alguns segundos em um verso da canção, sem que sequer se mexesse. Ele ainda estava de olhos fechados, talvez tivesse caído no sono.
'Cause we're the masters of our own fate
We're the captains of our own souls
There's no way for us to come away
*Porque nós somos os donos do nosso próprio destino
Somos os capitães de nossas almas
Não há como fugir disso
E agradeceu pelo estranho a sua frente estar supostamente dormindo, pois se aquela música a qual ela não fazia ideia sobre o que falava, estivesse repleta de xingamentos, ele não estava a xingando, pois sequer estava acordado. Tentava pensar no que se passava na cabeça de , se por baixo daquela figura que havia sido tão paciente com ela até aquele ponto, havia uma parte escondida, achando-a insuportável, insultando-a de todas as formas possíveis a cada vez que ela o respondia de forma grosseira ou lhe apontava o próprio canivete.
— Suas costas não estão doendo? — A voz grave a fez dar um pequeno pulo de susto. Ele havia acordado.
— Segure.
— O quê? — Ela abriu os olhos e fitou as mãos dele, estendendo o objeto.
— Segure, logo. — Por incrível que pareça, havia paciência em seu tom de voz.
Ela obedeceu, mesmo sem entender, e pegou o objeto.
— Você pode me furar, fazer o que quiser comigo. — Ela arregalou os olhos ao ouvir aquelas palavras. — Se algo assim fazer você confiar em mim, eu não me importo.
Ela o encarou por um instante, com um ponto de interrogação nos olhos. Não entendeu ao certo, mas segurou firme o canivete em suas mãos, detectando uma certa preocupação nos olhos castanhos daquele desconhecido. Talvez ele estivesse com medo? Medo de que ela realmente o atacasse? E bom, de fato tinha uma pequena vontade de fazer aquilo.
— Vamos... Voltar? — Ele engoliu em seco, se afastando dela aos poucos.
— Quero ver de novo se você não tem mais alguma arma. — Ela respirou fundo, segurando o canivete em posição de defesa, pronta para qualquer golpe inesperado. — Vire pra parede.
Ele obedeceu, e colocou as mãos na cabeça, como se estivesse prestes a ser revistado pela polícia.
Então, , revistou seus bolsos de trás e da frente, checando as poucas coisas que haviam ali, certificando-se de que nada era uma potencial arma. O canivete havia lhe dado coragem, um certo sentimento de domínio diante daquela situação. Checou as barras da calça, o colar prateado que ele usava, os brincos, e até mesmo os cabelos, causando um rastro de fogo na pele arrepiada de ao tocar acidentalmente sua nuca. Ela levantou com cuidado sua blusa, por mais constrangida que se sentisse com aquilo, queria se certificar 100% de que a única portadora de armas no momento era ela. E um leve e breve roçar acidental em sua barriga a fez sentir os músculos de seu abdômen, por curtíssimos segundos. estava completamente consciente de que ele estava arrepiado, conseguia sentir aquilo, tanto ao roçar sem querer a ponta dos dedos nos pelos de seu braço, quanto pela atmosfera. Mas não entendia o motivo, por que ele estava daquela forma?
— Você vai na frente. — Falou baixo, mas alto o suficiente para que ele escutasse bem.
E foi o que ele fez. Em silêncio, se pôs a andar para o lugar de onde vieram, com ela atrás, apontando o canivete como se estivesse fazendo-o andar na prancha de um navio pirata.
Dizer que ela sentia-se mais segura agora não seria verdade, mesmo tendo um objeto cortante em mãos, ainda tinha medo, medo de ser uma emboscada, medo de que ele de repente lhe desse um golpe que lhe arrancaria o canivete das mãos e a imobilizaria, pensava nas piores hipóteses possíveis enquanto caminhavam de volta para aquele estacionamento. , se é que seu nome era mesmo esse, não era muito alto, mas ainda era um pouco mais alto, e por seu físico, talvez mais forte, o que a preocupava de certa forma. Como poderia confiar em alguém que havia "conhecido" em um estacionamento de madrugada? Por mais gentil, e por mais sincera que sua preocupação em não deixá-la andar sozinha por aí parecesse, ele ainda era um estranho. Talvez tudo aquilo fosse besteira, talvez ele apenas possuísse muita lábia para enganar vítimas. Entregar completamente sua confiança a um estranho, era burrice.
E por isso, levantou o canivete, espetando-o levemente no pescoço de . Não tinha intenção de mata-lo naquele momento, queria apenas deixar o aviso.
— Vai mesmo me furar? — Perguntou sem parar de andar.
— Experimente me encostar de novo e você vai ver.
— Estou com medo agora.
Não era mentira, afinal havia uma mulher desconhecida lhe espetando com um canivete. Por mais que fosse alguns centímetros mais baixa, ele não a conhecia, ela também poderia ser perigosa para ele.
E finalmente, quando chegaram ao local, ele parou ali. Parou bem no centro do estacionamento, pois não sabia para que canto ir.
— Continue. — Ordenou.
— Para onde?
— Onde estávamos.
— Você pode desencostar a ponta desse negócio do meu pescoço? É meio incômodo. — Ele se pôs a andar em direção ao Corsa preto.
— Não.
Ele suspirou, e parou na frente do carro.
— Sente-se ali. — Ela indicou o já conhecido meio fio de concreto atrás do carro.
— Tem certeza?
— Vá, logo.
Ele deixou escapar um pesado e cansado suspiro ao se sentar.
— Vai ficar aí em pé? — Ele levantou a cabeça para olhar para ela.
— Aqui estou mais segura.
— Claro. — Ele sorriu, olhando o relógio.
— Que horas são ?
— São quase 2.
— Obrigada. — Murmurou.
— O que vai fazer quando amanhecer?
— Me diga você. — Ela rebateu.
— Sinceramente, não sei ao certo o que vai acontecer. — Ele deu de ombros. — Mas talvez seja minha última noite aqui... Você... Está fugindo de alguém?
— Por que é sua última noite aqui?
— Ei, calma aí, isso não é justo, você também tem que responder as perguntas.
— Como quer ganhar minha confiança se não responder?
— Já te dei meu canivete, mulher. — Ele sorriu brincalhão. — Se nem com isso ganhei sua confiança, estou desistindo nesse momento.
Ela respirou fundo antes de dizer.
— Não estou fugindo.
— Não? — Ele levantou a sobrancelhas. Ela negou com a cabeça em resposta.
— Só estou tentando viver uma vida normal.
— Tem pais muito conservadores?
Ela apenas fez um gesto negativo com a cabeça, não queria revelar que sua mãe era falecida e seu pai havia simplesmente sumido, aquilo a deixaria em posição vulnerável, e não era isso que ela queria, o foco era parecer dominar a situação, por mais que ainda estivesse com medo.
— Sua cidade é muito ruim para viver e você resolveu se mudar pra cá?
— Agora é sua vez, responda por que é sua última noite aqui.
— Vou ser preso amanhã. — Respondeu de forma natural.
A resposta fez com que ela desse um passo para trás e segurasse firme o canivete.
— Pelo quê?
— Não se preocupe, não fiz nada injusto.
— O que aconteceu? — Engoliu em seco. — Por que vai ser preso? Por que amanhã?
— Cansei de fugir, vou me entregar.
— Fugir? Você está fugindo da polícia? Mas o que você fez?! — Ela arregalou os olhos, dando mais passos para trás.
— Você já fez perguntas demais, agora é sua vez de responder. — A voz dele continuou calma. — Quantos anos tem?
— Eu não te disse? — Ele negou com a cabeça em resposta. — Tenho 22.
— Certo, 1 ano mais velha. — Ele se ajeitou no meio fio, sentar ali era desconfortável.
— O que você fez ?
— O quê?
— Responda, o que você fez? Por que vai ser preso?
Ele ficou em silêncio, de cabeça baixa.
— ?
— Eu fui buscar umas drogas com um ex-amigo meu, ele vendia. — Ele ergueu o olhar. — Mas ele não me contou que ia fazer mais que isso.
— Fazer mais que isso?
— O plano dele era pegar tudo e matar o cara, eles tinham uma richa ou algo do tipo, não sei ao certo qual era o problema.
— O seu amigo, era traficante ?
— Ele é, ou era, não sei...
— Como assim? Você não sabe se ele é ou era? — Ela esfregou a testa. — Meu Deus... Só continue.
— Quando ele atirou, saiu correndo na minha frente, entrou no carro e desapareceu...
Ela ouvia atentamente cada palavra.
— Eu fiquei em choque, pensei em ligar pra polícia, mas eu seria preso, afinal eu ajudava ele a vender. — Ele embrenhou as mãos nos cabelos, como se fosse arrancá-los. — E então eu corri dali, e desde então... Eu não parei de me esconder.
— Meu Deus. — Ela soltou um suspiro pesado. — Então está me dizendo... Que esse tempo todo, eu estive conversando com um criminoso foragido?
— Não adianta muita coisa eu mentir pra você, não é? — Ele estalou a língua e respirou fundo. — Não disse antes porque estava com medo de você ir embora.
— Por que está tão preocupado comigo? Você nem me conhece. — Ela cruzou os braços.
— Posso me levantar?
— Por quê? O que vai fazer? — Ela rapidamente apontou o canivete em sua direção.
— Minhas costas estão doendo, quero sentar encostado na parede. — Ele ergueu os braços em sinal de rendição.
— Vá. — Ela revirou os olhos.
se levantou, bem devagar, e caminhou até o fim do estacionamento.
— O que está fazendo?!
Ele não respondeu, apenas voltou andando em sua direção, trazendo nos braços o que parecia ser uma toalha de mesa e um cobertor, empilhados.
— O que é isso?
— Eu costumo dormir aqui, então sempre trago minhas coisas. — Ele ajeitou a toalha no chão e se sentou com o cobertor em seu colo. — É melhor pra não ter de se sentar no chão. — Endireitou o corpo ao colar as costas na parede.
De súbito, um vento frio e fresco atravessou a pele dos braços desnudos de , fazendo-a esfrega-los em vista de se aquecer, abaixando os pelos arrepiados. Podia até ser verão, mas o vento era constantemente presente nas madrugadas daquela região.
— Está fazendo um vento frio, não é? — cobriu as pernas com o cobertor. — Quer se sentar aqui?
— Nem senti.
— Então por que está encolhida?
Quando se deu conta de que ainda se abraçava, rapidamente colocou os braços para baixo, endireitando a coluna e segurando ainda mais firme o canivete.
— Não quero que você passe frio, Ana, sente-se aqui, você deve estar exausta de ficar em pé. — Ele indicou o lugar ao seu lado. — Quer água? — Ela percebeu que ele tinha uma garrafa de água lacrada ao seu lado. Aquilo havia surgido do além?
— Eu já disse pra não me chamar de Ana. — Foram as únicas palavras que saíram de sua boca, enquanto o encarava com um olhar impaciente.
— Não está cansada de ficar aí, parada? Vamos, sente-se.
— ... — Ela respirou fundo.
— Sim?
— Você é um criminoso...
— Você fala como se eu fosse um serial killer.
— Nada descarta essa possibilidade também, eu não te conheço.
— A única arma que eu tinha está em suas mãos, a única potencial matadora nesse lugar agora é você, não acha? — Ele sorriu.
— O seu nome é mesmo ?
— O seu nome é mesmo ? — Ele estreitou os olhos. — E se você for uma criminosa?
— E se eu for? O que vai fazer?
— Implorar para que você me dê uma morte rápida com esse canivete. — Ele pousou as mãos no cobertor. — Seria horrível ficar agonizando até falecer.
— Não sei se posso atender a esse pedido.
I'm a flower, you're my bee
It's much older than you and me
*Eu sou uma flor, você é minha abelha
É muito mais velho que você e eu
Repentinamente, uma música começou a tocar, bem baixo, falhando a cada nota, como se viesse de um rádio com sinal ruim.
— De onde está vindo isso?! — Ela olhou ao redor.
— Ah, finalmente pegou! — Ele sorriu, tirando um rádio de debaixo do cobertor.
— De onde isso veio? — Ela arregalou os olhos. Parecia que as coisas daquele homem apareciam em um passe de mágica.
— We're not animals baby... It's the people who lie... * — Ele cantarolou junto com a música, ajeitando a antena do rádio.
*Nós não somos animais, baby
São as pessoas que mentem
ficou em silêncio por um instante, apenas observando-o cantarolar junto a música a cada verso. Ele deixou o rádio ao seu lado, no chão, e se pôs a olhar para cima, enquanto mostrava que sabia a letra daquela canção de cor. Não podia dizer que seu canto era perfeito, algumas vezes ele saía do ritmo, mas de certa forma, a voz dele era linda, e ficava ainda mais atraente quando cantava.
I want real love baby
Ooh, don't leave me waiting
I've got real love maybe
Wait until you taste me
*Eu quero um amor verdadeiro, baby
Ooh, não me deixe esperando
Talvez eu tenha o verdadeiro amor
Espere até você me provar
gostaria de saber inglês naquelas horas, pois a forma a qual ele cantava, parecia estar totalmente entregue a canção, sentindo cada palavra. E de tudo o que ele havia cantado junto ao cantor, ela só entendia "baby" e "amor". Perguntava-se se ele entendia a música, se era bilíngue, ou apenas havia decorado a canção, sem saber o significado.
Our hearts
Are free
So tell me what's wrong with the feeling
*Nossos corações
São livres
Então me diga o que há de errado com o sentimento
Naquele momento, ele fechou os olhos, e começou a cantar mais baixo, quase sussurrando a canção. E quanto mais baixo cantava, parecia que sua voz se tornava ainda mais profunda. Ela agora perguntava-se se ele sabia o significado completo da letra, e estava xingando-a por meio daquela canção, por mais que a melodia fosse bonita e dançante, e tudo parecesse colaborar para que aquela fosse uma linda música, as aparências poderiam enganar.
I'm in love, I'm alive
I belong to the stars and sky
Let's forget who we are for one night
*Eu estou apaixonado, eu estou vivo
Eu pertenço às estrelas e ao céu
Vamos esquecer o que somos por uma noite
, sentia as pernas doendo, precisava se sentar. Aproveitou o momento em que o estranho estava distraído com a canção, de olhos fechados, e vagarosamente se aproximou, sentando-se no meio fio de concreto. Por mais desconfortável que fosse, era melhor do que se sentar naquela toalha ao lado dele.
A distância entre os dois agora não era tão grande, se esticasse os braços, talvez a ponta de seus dedos conseguisse tocar os sapatos de , mas não fazia ideia do porquê aquele pensamento havia passado por sua mente.
Perguntava-se como ele podia se sentir tão a vontade ali, cantando de olhos fechados, sendo que há uma curta distância, havia uma desconhecida com um canivete em mãos, talvez pronta para atacá-lo.
De forma involuntária, observou o formato pontudo do rosto de e as leves olheiras que lhe marcavam a região embaixo dos olhos, talvez ele precisasse dormir um pouco, quem sabe ele não dormisse há dias, pela forma que vivia ele precisava estar sempre em alerta não é?
Seus lábios estavam um tanto ressecados e avermelhados. Perguntava-se se aquela era sua cor de nascença ou ele usava algum batom, ou talvez tivesse comido algo que havia os deixado daquele tom, que parecia tão natural. Por um instante se pegou pensando se eram macios e o quão suave poderia ser beija-lo. Rapidamente balançou a cabeça, para afastar aqueles pensamentos estranhos.
A música acabou, e o nome da rádio foi anunciada junto a um slogan por um locutor animado, mas não conseguiu prestar atenção, estava vidrada em observar o rosto tranquilo de , que estranhamente parecia muito confortável em sua presença. E estava tão focada na forma com que suas sardas se espalhavam por suas bochechas, que só se deu conta de que outra canção tocava quando o rádio velho aumentou e diminuiu o volume espontaneamente, falhando por alguns segundos em um verso da canção, sem que sequer se mexesse. Ele ainda estava de olhos fechados, talvez tivesse caído no sono.
'Cause we're the masters of our own fate
We're the captains of our own souls
There's no way for us to come away
*Porque nós somos os donos do nosso próprio destino
Somos os capitães de nossas almas
Não há como fugir disso
E agradeceu pelo estranho a sua frente estar supostamente dormindo, pois se aquela música a qual ela não fazia ideia sobre o que falava, estivesse repleta de xingamentos, ele não estava a xingando, pois sequer estava acordado. Tentava pensar no que se passava na cabeça de , se por baixo daquela figura que havia sido tão paciente com ela até aquele ponto, havia uma parte escondida, achando-a insuportável, insultando-a de todas as formas possíveis a cada vez que ela o respondia de forma grosseira ou lhe apontava o próprio canivete.
— Suas costas não estão doendo? — A voz grave a fez dar um pequeno pulo de susto. Ele havia acordado.
Capítulo 5
— Não, estou bem. — Ela mentia tão facilmente.
They say only the good die young
That just ain't right
'Cause we're having too much fun
Too much fun tonight, yeah
And a lust for life
Keeps us alive
*Eles dizem que somente os bons morrem jovens
Isso não está certo
Porque estamos nos divertindo tanto
Nos divertindo tanto essa noite, sim
E uma paixão pela vida
Nos mantém vivos
— Conhece essa música ? — Ele coçou a cabeça.
— Não... — Ana Lua fez um gesto negativo com a cabeça. — Você conhece?
Felix também balançou a cabeça em gesto negativo.
— Até que eu gostei, tem uma vibe meio triste, não é?
Ela milagrosamente deu um sorriso fraco, antes de perguntar.
— Gosta de músicas tristes?
— Sim. — Ele encostou a cabeça na parede. — Você gosta de músicas de que tipo?
— Não escuto muita música.
— Não gosta de música?
— Só... Não tenho onde ouvir.
— Como assim? Não usa nem o YouTube? — Ele levantou as sobrancelhas.
A resposta de Ana Lua foi silenciosa novamente, balançando a cabeça para dizer "não". Não queria dizer que não tinha celular, não queria que ele pensasse que ela era uma pobre coitada.
A música no rádio agora, começava a falhar em cada nota, o objeto aumentava e diminuía o volume sozinho. Felix deu um tapa no aparelho, mas nem aquilo pareceu melhorar a situação, o rádio agora chiava, fazendo um barulho tenebroso.
— Meu Deus, isso está um horror! — Ela exclamou.
— É, é meio velhinho. — Ele deu outro tapa no rádio. E finalmente a música ficou normal novamente. — Eu cochilei por quanto tempo?
— Hm... Talvez uns 5 minutos...
— Ah... Nossa, que bom que foi só isso. — Ele suspirou de alívio. — Não te deu tempo pra pensar em fugir.
— Do quê está falando?! — Ela se levantou em um pulo e deu dois passos para trás.
— Ei! Relaxa! — Ele fez um gesto com as mãos para que ela se acalmasse. — Só fiquei preocupado de você ir andar por essas ruas escuras sozinhas de novo, pelo pouco que te conheci percebi que você é meio maluca.
— Maluco é você!
— Você iria embora enquanto eu cochilava?
— Sem pensar duas vezes!
— Então por que não foi?
Ela ficou em silêncio por um instante, não tinha palavras, não pensou em ir embora porque estava ocupada demais pensando no quanto os lábios de Felix deviam ser macios, não é? Mas ele jamais saberia daquilo.
— Porque... Porque...
— Porque...? — Ele sorriu.
— Porque você estava vulnerável aí, é perigoso ficar sozinho nessas ruas a essa hora, não é ?
— Hmm, então se preocupou comigo? — Ele ajeitou o corpo, os olhos interessados em analisar o rosto mentiroso de Ana Lua.
— Você também, comigo, não é?
— Sim... Inclusive já te disse pra sentar ao meu lado, o vento está muito frio, não sei como você consegue continuar aí com um vestido pequeno desses.
— O meu vestido não é pequeno!
— Ele parece pequeno demais pra você, comprou com o quê? 13 anos ?
— 14...
Ele riu.
— Você está com frio Ana Lua, sente-se logo e dividimos o cobertor. — Ele estendeu a coberta azulada de tecido peludo. — Acha que vou fazer o quê, com você? Você tem um canivete!
Ela respirou fundo, e pensou em silêncio por 3 segundos.
— Se tentar fazer qualquer coisa comigo... Vou cortar sua garganta, não estou brincando.
Ela bufou, e logo Felix pôde sentir os ombros estreitos de Ana Lua pedindo espaço ao seu lado. Rapidamente ele lhe estendeu o cobertor, e ela fez do tecido uma capa, cobrindo seus ombros e o corpo por completo, deixando Felix desabrigado.
— Você não sabe o significado da palavra dividir, não é? — Ele puxou um lado do cobertor, e se cobriu da mesma forma que ela, deixando o espaço um tanto apertado.
— Estamos perto demais. — Ana Lua murmurou olhando para frente, se virasse a cabeça para o lado, daria de cara com os olhos castanhos de Felix, mais perto do que deveriam.
— Te incomoda?
— Muito...
— Que pena, não tem outro jeito.
— Tem, se você sair do cobertor.
— Caso não se lembre o cobertor é meu, e eu ofereci que pudéssemos dividir. — Ele enfatizou a última palavra.
— Certo, então não quero mais. — Ela tirou o cobertor dos ombros.
— Pare com isso. — Ele a cobriu novamente. — Não é bom pegar vento assim.
— Felix... — Ela respirou fundo.
— O que foi?
— Sou só uma desconhecida pra você, por que está com tanto medo de acontecer alguma coisa comigo? — Ela fitava o chão, não conseguia olhar em seus olhos. — Por que não só me deixou andar por aí sozinha e ser morta ou algo assim? Você não me conhece! Que importância eu tenho pra você?
— Quando eu te vi... Eu fiquei com medo de te assustar. Mas daí você foi embora e depois voltou com os olhos arregalados parecendo que tinha corrido de alguém. — Ele comprimiu os lábios. — Achei que alguém tinha tentado fazer algo com você. Então, eu lembrei da minha irmã...
— Eu me pareço com sua irmã ?! — Ela passou os dedos pela lâmina do canivete.
— Não, nem um pouco.
— Então está dizendo que sou como uma irmã pra você?
— De jeito nenhum! — Ele falou em tom desesperado.
— Por que falou desse jeito? Seria tão ruim se eu fosse sua irmã?!
— Seria horrível, uma tragédia, acho que até seria algum tipo de crime!
— O quê? — Seus olhos arregalaram-se. — Quer saber, deixe pra lá, você é muito doido!
— Eu só quis dizer que... Pensei "e se fosse minha irmã?", e pensei em como seus pais ficariam se algo acontecesse com você, pensei que talvez eu pudesse impedir que algo ruim acontecesse com você. — Ele a olhou de soslaio. — Sabe, a essa hora, tem uns caras bem babacas andando por aí, e esse ponto nem é o pior desse bairro, imagine se você acabasse nas ruas sem saídas...
— Então quis bancar uma de herói? Ah, então obrigada por me salvar dos caras babacas do seu bairro, você é meu salvador, meu herói, obrigada. — Disse em tom irônico.
— Não deboche de mim, só tentei te ajudar.
— Então como posso saber se você não tem outras intenções ruins?
— Você ainda tá nessa? — Seu sorriso escorregou. — Mesmo se eu disser que pode cortar minha garganta com esse canivete nesse momento, você ainda vai pensar que eu quero abusar de você ou te matar?
— É claro que vou. — Suas sobrancelhas se juntaram. — Se nunca pude confiar nem mesmo em gente da minha família, que dirá em você!
— Gostei do seu cabelo. — Ele desviou o assunto. — Conheço poucas mulheres com um corte igual ao seu. — Ele passeou os dedos entre suas mechas castanhas.
— Não encoste. — Ela empurrou seu braço.
— É você que corta?
— Uhum...
— Ah então por isso atrás está meio torto. — Ele analisou a parte traseira de seu cabelo.
— Cale a boca! Você não entende nada sobre essas coisas!
— Claro que sei, minha mãe tinha um salão cabeleireiro. — Esbanjou sabedoria.
— Isso não te dá entendimento sobre o assunto.
— Por que cortou o cabelo assim?
— Por que eu quis?
— Tudo bem sua grossa, mas pra uma mulher cortar o cabelo assim, existem coisas que ela gosta que a fazem manter esse corte. — O fato de que ele não parava de olhar em sua direção a incomodava. — O que você gosta sobre ter um corte assim?
— Bom, muitas coisas, eu me sinto mais livre, lavo mais rápido, consigo sentir o vento na nuca...
— É, de fato, isso é bom não é? Mas seu sentimento nunca vai ser igual ao meu já que eu nunca tive um cabelo muito longo pra comparar.
— Já pensou em ter um cabelo mais longo?
— Já... Mas acho que não ficaria muito legal. — Ele ajeitou os cabelos.
— É, talvez não fique mesmo.
— Obrigada pela opinião sincera.
— De nada. — Os dois riram espontaneamente.
Ela apertou os lábios, fitava o canivete a todo instante, não conseguia olhar para o homem ao seu lado, não conseguia lidar com a proximidade.
— Quando amanhecer... Você vai embora... Não é?
— Você quer que eu vá? — A voz dele tão próxima e baixa, lhe causou um arrepio involuntário.
— Quero que você vá embora desde que cheguei aqui. — Ela deu de ombros.
— Você não tem mesmo nenhum medo de machucar as pessoas com palavras. — Ele pousou a mão no coração, como se sentisse o impacto.
— E nem com um canivete. — Ela apontou rapidamente o objeto cortante para sua garganta.
Felix tinha a cabeça erguida, ora olhava para a lâmina espetando seu pescoço, ora encarava seus olhos. O pomo de Adão se mexia a cada engolida em seco, denunciando que ele tinha um certo medo de que aquela desconhecida de fato cortasse sua garganta. Mas uma parte de si, via Ana Lua como um ser que só atacava se fosse atacada, e talvez ele não precisasse se preocupar, mas era difícil se acalmar quando havia uma mulher de olhos castanhos vingativos, espetando sua garganta com uma lâmina.
Ana Lua agora finalmente encarava Felix, era fácil lidar com a proximidade quando se apontava uma arma para um inimigo, era fácil olhar nos olhos de qualquer um quando se tinha o poder de tirar a vida, por mais que nunca se tenha tirado a vida de ninguém. De fato era fácil, mas para ela não era tanto assim, encarar os olhos castanhos e brilhantes de Felix, deixava-a um tanto atordoada. A forma com que ele parecia encarar o mais profundo de sua alma mesmo com um canivete em seu pescoço era curiosa, talvez ele não tivesse medo dela, talvez ele não pensasse que ela seria capaz de matá-lo, e a forma com que ele não desviava os olhos dos seus, lhe incomodava ainda mais. Ela queria provar que era capaz de qualquer coisa, que estava disposta a cortar sua garganta, mas era difícil quando se encarava alguém com olhos tão intensos, lábios avermelhados que aparentavam beijar de forma suave, e uma voz que quanto mais baixa e próxima, mais tinha a capacidade de lhe arrepiar até o último pelo do corpo. A vontade que Ana Lua tinha de ver seu pescoço esguichando sangue, para provar que não brincava em serviço, era assustadoramente grande, mas o desejo por descobrir de que forma ele a seguraria em seus braços, e qual era a sensação de tocar as sardas espalhadas por suas bochechas enquanto provava o gosto de seu beijo, era gigantesca.
Felix umedeceu o lábio inferior. A lâmina espetando seu pescoço era incômoda, mas o fato de ter Ana Lua com os lábios tão próximos dos seus sem poder toca-los, era ainda mais.
Mas não avançaria, tinha de se conter. Ana Lua era a maior causa do ritmo acelerado de seu coração naquele instante, mas dar um fim a sua inquietação talvez o fizesse perdê-la para sempre. Afinal, ela ainda apontava um canivete para seu pescoço, se aquilo significasse que seu sentimento era correspondido, era insano demais. Mas era inevitável imaginar como seria tê-la para si, as fantasias sobre seus lábios selando os seus borbulhavam intensamente em sua imaginação.
De repente, Felix sentiu seu corpo ser forçado para trás, por uma mão pequena, mas grossa. E sentiu aquilo, sentiu os lábios dela. Os lábios de Ana Lua eram quentes e desesperados, e lhe causavam um misto de sensações inigualáveis por todo o corpo, o que neutralizava o canivete espetando seu pescoço, aquela lâmina não lhe incomodava como antes, não se importaria em morrer em seus lábios. Se beijar Ana Lua seria a última ação que faria em seu último dia de vida, morreria com prazer. A língua dela encontrando-se à de Felix, fez seu coração pular, os lábios dele não eram macios como ela imaginava, eram melhores, não conseguia encontrar uma palavra melhor para macios, não existia uma palavra para descrever o beijo dele, a sensação era tão majestosa que parecia estar muito além de uma experiência carnal. Jamais abaixaria a lâmina que apontava em seu pescoço, porque estava de fato entre matá-lo por ser tão atraente para ela ou beija-lo até a morte.
E a forma com que ele embrenhou as mãos em seus cabelos a fez sentir o estômago dançar, seu toque era tão firme e cuidadoso, que pensou em deixa-lo a ter em seus braços pelo resto da vida. Acariciar suas bochechas com a mão vazia, enquanto sentia seu beijo cada vez mais profundo lhe causava agitações em partes proibidas, todo o seu corpo estava em êxtase. E o único indicativo de que ainda havia um fio de consciência em Ana Lua, era a lâmina. Apesar de tudo, não conseguia soltá-la, não iria ceder, não por completo.
"A confiança é uma mulher ingrata,
Que te beija, e te abraça, te rouba e te mata." Se lembrava de ter ouvido aquilo em algum dos raps que sua mãe costumava escutar, e nunca iria esquecer.
Mas mesmo que ele pudesse mata-la, ou rouba-la em seguida, beija-lo era perigosamente bom.
E se aprofundar ainda mais naqueles lábios, a fez forçar a ponta da lâmina em seu pescoço, fazendo-o soltar a respiração quente em seu rosto.
— Você vai me matar. — Murmurou com os lábios há milímetros dos seus, com a voz vibrante que fazia o corpo dela se arrepiar.
E aquilo a fez parar. Há alguns minutos atrás, aquela era a intenção, matar Felix de fato passava pela sua cabeça, porque a forma com que sorria era irritante, o jeito com que as ruguinhas que se formavam no canto de seus olhos o deixavam ainda mais bonito lhe davam nos nervos. E a forma com que ele se preocupava e queria tanto cuidar de Ana Lua era insuportável, como alguém podia ser tão apaixonante?
Como ele conseguia fazer com que ela esquecesse por alguns instantes que ele havia feito trabalhos ilegais? Ele era um criminoso, ele era um desconhecido...
Mas novamente, ela se pegou ali, juntando seus lábios ao de um completo estranho novamente, mas que pelas sensações que lhe causava, parecia conhecer há anos. Beijar Felix era como beijar um amor esquecido há anos, que ao voltar lhe trás sentimentos mais intensos do que há 10 anos atrás. Beijar Felix era como encontrar o perfeito encaixe, e todas aquelas besteiras de amor verdadeiro e almas gêmeas. E tudo que ela queria naquele momento, era ter tido coragem para cortar seu pescoço, não largaria a lâmina, mas também não exerceria sua utilidade, porque estava extasiada demais com os lábios de Felix, para querer parar aquilo. Se o matasse, como poderia sentir suas mãos quentes acariciando seus braços, e o incêndio que se alastrava por seu corpo?
O incômodo do rádio falhando e chiando em alguma música dos anos 80, fez com que Ana Lua descolasse seus lábios do desconhecido, sem quebrar a proximidade. Se prestasse atenção, poderia ouvir seus batimentos cardíacos acelerados, em conjunto aos de Felix.
As respirações ofegantes e quentes, atingiam a lâmina debaixo do pescoço do desconhecido,e naquele instante aquela arma pareceu inútil. Ana Lua havia invadido as profundezas de um lugar completamente proibido, um lugar o qual nunca imaginou que desbravaria, aquilo ia contra todos os princípios de sobrevivência possíveis. E ponderando se continuaria ali, encarando as pupilas dilatadas de Felix ou sairia correndo como uma maluca para se isolar na colina mais próxima, ela tomou a decisão de se levantar. E apenas ficou ali de pé, no concreto, não tão distante dele, mas não tão próximo.
O fato de não estar envergonhada, e muito pelo contrário, querer fazer aquilo de novo, era uma sensação nova, e um tanto estranha para ela. Não entendia como a presença de um mero desconhecido, a afetava daquela maneira.
— Tudo bem?
Não, não estava nada bem.
— Caramba... — Murmurou.
Ele sorriu ao ouvir aquela palavra, mesmo que Ana Lua estivesse de costas para ele.
— Tudo bem? — Ele insistiu.
— Meu Deus, você pode parar de me perguntar isso? Está me desconcentrando! — Ela gesticulou com as mãos de forma confusa.
— Desconcentrando do quê? — Ele riu.
Ela não respondeu, e voltou a tentar recuperar a consciência. Felix conseguia fazer com que seu lado irracional se aflorasse, algo que só lhe acontecia em situações de extremo risco, por algum motivo ele fazia com que ela não se importasse em pensar antes de agir, e aquilo começava a lhe dar nos nervos. Pensou em sair correndo, queria correr novamente, para o mais longe possível, mas ao mesmo tempo queria beija-ló de novo, era irritante o quão intenso era aquele desejo. E o rádio que ainda chiava de forma terrível e muito incômoda, colaborava para aumentar o nervosismo, preenchendo o ambiente, fazendo-a cerrar os punhos com o quão irritante aquilo era.
— Desligue essa coisa! É melhor jogar fora e comprar outro! — Ela se virou de forma bruta.
— Vai funcionar, só espere um pouco. — Ele ajeitou a antena calmamente. — Está estressada? Meus lábios sugaram tanto assim sua energia?
— Caramba, Felix! Não fale sobre isso! — Ela esfregou a mão na testa.
Muito pelo contrário, seus lábios haviam lhe dado energia de sobra. E o rádio que continuava a choramingar, fez a face de Ana Lua se enraivecer, aquele barulho era um horror e estava lhe dando nos nervos há muito tempo.
— Caramba, que merda!
Sem pensar, ela se abaixou para estar na altura do rádio ao lado de Felix, e deu no objeto talvez o tapa mais forte que tenha dado em sua vida. Mas o aparelho continuava a chiar.
— Quanto mais tempo fico aqui com você, mais perto chego da conclusão de que você é meio doidinha e desequilibrada.
— É a sua cabeça que vai se desequilibrar quando eu cortar o seu pescoço! — Ela o ameaçou apontando a lâmina e voltou a dar tapas raivosos no rádio.
— Pode parar de bater no meu rádio?! Vai acabar estragando! — Ele se irritou.
— Essa merda já está estragada há uns 100 anos no mínimo! — Ela continuava a bater no objeto.
— Não, não está! Só tem 30 anos! — Ele franziu as sobrancelhas. — Era do meu avô! Pare!
— Eu não aguento mais esse barulho! — Ela não obedeceu seu pedido.
De repente, ela parou. Mas não porque quis, ou porque o rádio voltou a pegar. Ela parou, porque sentiu o corpo todo estremecer e esquentar, quando duas mãos seguraram seus punhos e os agarraram firmemente, acompanhados de uma voz baixa e firme.
— Já disse que vai funcionar, é só esperar... — Sua capacidade de fazer contato visual só podia ser um dom.
They say only the good die young
That just ain't right
'Cause we're having too much fun
Too much fun tonight, yeah
And a lust for life
Keeps us alive
*Eles dizem que somente os bons morrem jovens
Isso não está certo
Porque estamos nos divertindo tanto
Nos divertindo tanto essa noite, sim
E uma paixão pela vida
Nos mantém vivos
— Conhece essa música ? — Ele coçou a cabeça.
— Não... — Ana Lua fez um gesto negativo com a cabeça. — Você conhece?
Felix também balançou a cabeça em gesto negativo.
— Até que eu gostei, tem uma vibe meio triste, não é?
Ela milagrosamente deu um sorriso fraco, antes de perguntar.
— Gosta de músicas tristes?
— Sim. — Ele encostou a cabeça na parede. — Você gosta de músicas de que tipo?
— Não escuto muita música.
— Não gosta de música?
— Só... Não tenho onde ouvir.
— Como assim? Não usa nem o YouTube? — Ele levantou as sobrancelhas.
A resposta de Ana Lua foi silenciosa novamente, balançando a cabeça para dizer "não". Não queria dizer que não tinha celular, não queria que ele pensasse que ela era uma pobre coitada.
A música no rádio agora, começava a falhar em cada nota, o objeto aumentava e diminuía o volume sozinho. Felix deu um tapa no aparelho, mas nem aquilo pareceu melhorar a situação, o rádio agora chiava, fazendo um barulho tenebroso.
— Meu Deus, isso está um horror! — Ela exclamou.
— É, é meio velhinho. — Ele deu outro tapa no rádio. E finalmente a música ficou normal novamente. — Eu cochilei por quanto tempo?
— Hm... Talvez uns 5 minutos...
— Ah... Nossa, que bom que foi só isso. — Ele suspirou de alívio. — Não te deu tempo pra pensar em fugir.
— Do quê está falando?! — Ela se levantou em um pulo e deu dois passos para trás.
— Ei! Relaxa! — Ele fez um gesto com as mãos para que ela se acalmasse. — Só fiquei preocupado de você ir andar por essas ruas escuras sozinhas de novo, pelo pouco que te conheci percebi que você é meio maluca.
— Maluco é você!
— Você iria embora enquanto eu cochilava?
— Sem pensar duas vezes!
— Então por que não foi?
Ela ficou em silêncio por um instante, não tinha palavras, não pensou em ir embora porque estava ocupada demais pensando no quanto os lábios de Felix deviam ser macios, não é? Mas ele jamais saberia daquilo.
— Porque... Porque...
— Porque...? — Ele sorriu.
— Porque você estava vulnerável aí, é perigoso ficar sozinho nessas ruas a essa hora, não é ?
— Hmm, então se preocupou comigo? — Ele ajeitou o corpo, os olhos interessados em analisar o rosto mentiroso de Ana Lua.
— Você também, comigo, não é?
— Sim... Inclusive já te disse pra sentar ao meu lado, o vento está muito frio, não sei como você consegue continuar aí com um vestido pequeno desses.
— O meu vestido não é pequeno!
— Ele parece pequeno demais pra você, comprou com o quê? 13 anos ?
— 14...
Ele riu.
— Você está com frio Ana Lua, sente-se logo e dividimos o cobertor. — Ele estendeu a coberta azulada de tecido peludo. — Acha que vou fazer o quê, com você? Você tem um canivete!
Ela respirou fundo, e pensou em silêncio por 3 segundos.
— Se tentar fazer qualquer coisa comigo... Vou cortar sua garganta, não estou brincando.
Ela bufou, e logo Felix pôde sentir os ombros estreitos de Ana Lua pedindo espaço ao seu lado. Rapidamente ele lhe estendeu o cobertor, e ela fez do tecido uma capa, cobrindo seus ombros e o corpo por completo, deixando Felix desabrigado.
— Você não sabe o significado da palavra dividir, não é? — Ele puxou um lado do cobertor, e se cobriu da mesma forma que ela, deixando o espaço um tanto apertado.
— Estamos perto demais. — Ana Lua murmurou olhando para frente, se virasse a cabeça para o lado, daria de cara com os olhos castanhos de Felix, mais perto do que deveriam.
— Te incomoda?
— Muito...
— Que pena, não tem outro jeito.
— Tem, se você sair do cobertor.
— Caso não se lembre o cobertor é meu, e eu ofereci que pudéssemos dividir. — Ele enfatizou a última palavra.
— Certo, então não quero mais. — Ela tirou o cobertor dos ombros.
— Pare com isso. — Ele a cobriu novamente. — Não é bom pegar vento assim.
— Felix... — Ela respirou fundo.
— O que foi?
— Sou só uma desconhecida pra você, por que está com tanto medo de acontecer alguma coisa comigo? — Ela fitava o chão, não conseguia olhar em seus olhos. — Por que não só me deixou andar por aí sozinha e ser morta ou algo assim? Você não me conhece! Que importância eu tenho pra você?
— Quando eu te vi... Eu fiquei com medo de te assustar. Mas daí você foi embora e depois voltou com os olhos arregalados parecendo que tinha corrido de alguém. — Ele comprimiu os lábios. — Achei que alguém tinha tentado fazer algo com você. Então, eu lembrei da minha irmã...
— Eu me pareço com sua irmã ?! — Ela passou os dedos pela lâmina do canivete.
— Não, nem um pouco.
— Então está dizendo que sou como uma irmã pra você?
— De jeito nenhum! — Ele falou em tom desesperado.
— Por que falou desse jeito? Seria tão ruim se eu fosse sua irmã?!
— Seria horrível, uma tragédia, acho que até seria algum tipo de crime!
— O quê? — Seus olhos arregalaram-se. — Quer saber, deixe pra lá, você é muito doido!
— Eu só quis dizer que... Pensei "e se fosse minha irmã?", e pensei em como seus pais ficariam se algo acontecesse com você, pensei que talvez eu pudesse impedir que algo ruim acontecesse com você. — Ele a olhou de soslaio. — Sabe, a essa hora, tem uns caras bem babacas andando por aí, e esse ponto nem é o pior desse bairro, imagine se você acabasse nas ruas sem saídas...
— Então quis bancar uma de herói? Ah, então obrigada por me salvar dos caras babacas do seu bairro, você é meu salvador, meu herói, obrigada. — Disse em tom irônico.
— Não deboche de mim, só tentei te ajudar.
— Então como posso saber se você não tem outras intenções ruins?
— Você ainda tá nessa? — Seu sorriso escorregou. — Mesmo se eu disser que pode cortar minha garganta com esse canivete nesse momento, você ainda vai pensar que eu quero abusar de você ou te matar?
— É claro que vou. — Suas sobrancelhas se juntaram. — Se nunca pude confiar nem mesmo em gente da minha família, que dirá em você!
— Gostei do seu cabelo. — Ele desviou o assunto. — Conheço poucas mulheres com um corte igual ao seu. — Ele passeou os dedos entre suas mechas castanhas.
— Não encoste. — Ela empurrou seu braço.
— É você que corta?
— Uhum...
— Ah então por isso atrás está meio torto. — Ele analisou a parte traseira de seu cabelo.
— Cale a boca! Você não entende nada sobre essas coisas!
— Claro que sei, minha mãe tinha um salão cabeleireiro. — Esbanjou sabedoria.
— Isso não te dá entendimento sobre o assunto.
— Por que cortou o cabelo assim?
— Por que eu quis?
— Tudo bem sua grossa, mas pra uma mulher cortar o cabelo assim, existem coisas que ela gosta que a fazem manter esse corte. — O fato de que ele não parava de olhar em sua direção a incomodava. — O que você gosta sobre ter um corte assim?
— Bom, muitas coisas, eu me sinto mais livre, lavo mais rápido, consigo sentir o vento na nuca...
— É, de fato, isso é bom não é? Mas seu sentimento nunca vai ser igual ao meu já que eu nunca tive um cabelo muito longo pra comparar.
— Já pensou em ter um cabelo mais longo?
— Já... Mas acho que não ficaria muito legal. — Ele ajeitou os cabelos.
— É, talvez não fique mesmo.
— Obrigada pela opinião sincera.
— De nada. — Os dois riram espontaneamente.
Ela apertou os lábios, fitava o canivete a todo instante, não conseguia olhar para o homem ao seu lado, não conseguia lidar com a proximidade.
— Quando amanhecer... Você vai embora... Não é?
— Você quer que eu vá? — A voz dele tão próxima e baixa, lhe causou um arrepio involuntário.
— Quero que você vá embora desde que cheguei aqui. — Ela deu de ombros.
— Você não tem mesmo nenhum medo de machucar as pessoas com palavras. — Ele pousou a mão no coração, como se sentisse o impacto.
— E nem com um canivete. — Ela apontou rapidamente o objeto cortante para sua garganta.
Felix tinha a cabeça erguida, ora olhava para a lâmina espetando seu pescoço, ora encarava seus olhos. O pomo de Adão se mexia a cada engolida em seco, denunciando que ele tinha um certo medo de que aquela desconhecida de fato cortasse sua garganta. Mas uma parte de si, via Ana Lua como um ser que só atacava se fosse atacada, e talvez ele não precisasse se preocupar, mas era difícil se acalmar quando havia uma mulher de olhos castanhos vingativos, espetando sua garganta com uma lâmina.
Ana Lua agora finalmente encarava Felix, era fácil lidar com a proximidade quando se apontava uma arma para um inimigo, era fácil olhar nos olhos de qualquer um quando se tinha o poder de tirar a vida, por mais que nunca se tenha tirado a vida de ninguém. De fato era fácil, mas para ela não era tanto assim, encarar os olhos castanhos e brilhantes de Felix, deixava-a um tanto atordoada. A forma com que ele parecia encarar o mais profundo de sua alma mesmo com um canivete em seu pescoço era curiosa, talvez ele não tivesse medo dela, talvez ele não pensasse que ela seria capaz de matá-lo, e a forma com que ele não desviava os olhos dos seus, lhe incomodava ainda mais. Ela queria provar que era capaz de qualquer coisa, que estava disposta a cortar sua garganta, mas era difícil quando se encarava alguém com olhos tão intensos, lábios avermelhados que aparentavam beijar de forma suave, e uma voz que quanto mais baixa e próxima, mais tinha a capacidade de lhe arrepiar até o último pelo do corpo. A vontade que Ana Lua tinha de ver seu pescoço esguichando sangue, para provar que não brincava em serviço, era assustadoramente grande, mas o desejo por descobrir de que forma ele a seguraria em seus braços, e qual era a sensação de tocar as sardas espalhadas por suas bochechas enquanto provava o gosto de seu beijo, era gigantesca.
Felix umedeceu o lábio inferior. A lâmina espetando seu pescoço era incômoda, mas o fato de ter Ana Lua com os lábios tão próximos dos seus sem poder toca-los, era ainda mais.
Mas não avançaria, tinha de se conter. Ana Lua era a maior causa do ritmo acelerado de seu coração naquele instante, mas dar um fim a sua inquietação talvez o fizesse perdê-la para sempre. Afinal, ela ainda apontava um canivete para seu pescoço, se aquilo significasse que seu sentimento era correspondido, era insano demais. Mas era inevitável imaginar como seria tê-la para si, as fantasias sobre seus lábios selando os seus borbulhavam intensamente em sua imaginação.
De repente, Felix sentiu seu corpo ser forçado para trás, por uma mão pequena, mas grossa. E sentiu aquilo, sentiu os lábios dela. Os lábios de Ana Lua eram quentes e desesperados, e lhe causavam um misto de sensações inigualáveis por todo o corpo, o que neutralizava o canivete espetando seu pescoço, aquela lâmina não lhe incomodava como antes, não se importaria em morrer em seus lábios. Se beijar Ana Lua seria a última ação que faria em seu último dia de vida, morreria com prazer. A língua dela encontrando-se à de Felix, fez seu coração pular, os lábios dele não eram macios como ela imaginava, eram melhores, não conseguia encontrar uma palavra melhor para macios, não existia uma palavra para descrever o beijo dele, a sensação era tão majestosa que parecia estar muito além de uma experiência carnal. Jamais abaixaria a lâmina que apontava em seu pescoço, porque estava de fato entre matá-lo por ser tão atraente para ela ou beija-lo até a morte.
E a forma com que ele embrenhou as mãos em seus cabelos a fez sentir o estômago dançar, seu toque era tão firme e cuidadoso, que pensou em deixa-lo a ter em seus braços pelo resto da vida. Acariciar suas bochechas com a mão vazia, enquanto sentia seu beijo cada vez mais profundo lhe causava agitações em partes proibidas, todo o seu corpo estava em êxtase. E o único indicativo de que ainda havia um fio de consciência em Ana Lua, era a lâmina. Apesar de tudo, não conseguia soltá-la, não iria ceder, não por completo.
"A confiança é uma mulher ingrata,
Que te beija, e te abraça, te rouba e te mata." Se lembrava de ter ouvido aquilo em algum dos raps que sua mãe costumava escutar, e nunca iria esquecer.
Mas mesmo que ele pudesse mata-la, ou rouba-la em seguida, beija-lo era perigosamente bom.
E se aprofundar ainda mais naqueles lábios, a fez forçar a ponta da lâmina em seu pescoço, fazendo-o soltar a respiração quente em seu rosto.
— Você vai me matar. — Murmurou com os lábios há milímetros dos seus, com a voz vibrante que fazia o corpo dela se arrepiar.
E aquilo a fez parar. Há alguns minutos atrás, aquela era a intenção, matar Felix de fato passava pela sua cabeça, porque a forma com que sorria era irritante, o jeito com que as ruguinhas que se formavam no canto de seus olhos o deixavam ainda mais bonito lhe davam nos nervos. E a forma com que ele se preocupava e queria tanto cuidar de Ana Lua era insuportável, como alguém podia ser tão apaixonante?
Como ele conseguia fazer com que ela esquecesse por alguns instantes que ele havia feito trabalhos ilegais? Ele era um criminoso, ele era um desconhecido...
Mas novamente, ela se pegou ali, juntando seus lábios ao de um completo estranho novamente, mas que pelas sensações que lhe causava, parecia conhecer há anos. Beijar Felix era como beijar um amor esquecido há anos, que ao voltar lhe trás sentimentos mais intensos do que há 10 anos atrás. Beijar Felix era como encontrar o perfeito encaixe, e todas aquelas besteiras de amor verdadeiro e almas gêmeas. E tudo que ela queria naquele momento, era ter tido coragem para cortar seu pescoço, não largaria a lâmina, mas também não exerceria sua utilidade, porque estava extasiada demais com os lábios de Felix, para querer parar aquilo. Se o matasse, como poderia sentir suas mãos quentes acariciando seus braços, e o incêndio que se alastrava por seu corpo?
O incômodo do rádio falhando e chiando em alguma música dos anos 80, fez com que Ana Lua descolasse seus lábios do desconhecido, sem quebrar a proximidade. Se prestasse atenção, poderia ouvir seus batimentos cardíacos acelerados, em conjunto aos de Felix.
As respirações ofegantes e quentes, atingiam a lâmina debaixo do pescoço do desconhecido,e naquele instante aquela arma pareceu inútil. Ana Lua havia invadido as profundezas de um lugar completamente proibido, um lugar o qual nunca imaginou que desbravaria, aquilo ia contra todos os princípios de sobrevivência possíveis. E ponderando se continuaria ali, encarando as pupilas dilatadas de Felix ou sairia correndo como uma maluca para se isolar na colina mais próxima, ela tomou a decisão de se levantar. E apenas ficou ali de pé, no concreto, não tão distante dele, mas não tão próximo.
O fato de não estar envergonhada, e muito pelo contrário, querer fazer aquilo de novo, era uma sensação nova, e um tanto estranha para ela. Não entendia como a presença de um mero desconhecido, a afetava daquela maneira.
— Tudo bem?
Não, não estava nada bem.
— Caramba... — Murmurou.
Ele sorriu ao ouvir aquela palavra, mesmo que Ana Lua estivesse de costas para ele.
— Tudo bem? — Ele insistiu.
— Meu Deus, você pode parar de me perguntar isso? Está me desconcentrando! — Ela gesticulou com as mãos de forma confusa.
— Desconcentrando do quê? — Ele riu.
Ela não respondeu, e voltou a tentar recuperar a consciência. Felix conseguia fazer com que seu lado irracional se aflorasse, algo que só lhe acontecia em situações de extremo risco, por algum motivo ele fazia com que ela não se importasse em pensar antes de agir, e aquilo começava a lhe dar nos nervos. Pensou em sair correndo, queria correr novamente, para o mais longe possível, mas ao mesmo tempo queria beija-ló de novo, era irritante o quão intenso era aquele desejo. E o rádio que ainda chiava de forma terrível e muito incômoda, colaborava para aumentar o nervosismo, preenchendo o ambiente, fazendo-a cerrar os punhos com o quão irritante aquilo era.
— Desligue essa coisa! É melhor jogar fora e comprar outro! — Ela se virou de forma bruta.
— Vai funcionar, só espere um pouco. — Ele ajeitou a antena calmamente. — Está estressada? Meus lábios sugaram tanto assim sua energia?
— Caramba, Felix! Não fale sobre isso! — Ela esfregou a mão na testa.
Muito pelo contrário, seus lábios haviam lhe dado energia de sobra. E o rádio que continuava a choramingar, fez a face de Ana Lua se enraivecer, aquele barulho era um horror e estava lhe dando nos nervos há muito tempo.
— Caramba, que merda!
Sem pensar, ela se abaixou para estar na altura do rádio ao lado de Felix, e deu no objeto talvez o tapa mais forte que tenha dado em sua vida. Mas o aparelho continuava a chiar.
— Quanto mais tempo fico aqui com você, mais perto chego da conclusão de que você é meio doidinha e desequilibrada.
— É a sua cabeça que vai se desequilibrar quando eu cortar o seu pescoço! — Ela o ameaçou apontando a lâmina e voltou a dar tapas raivosos no rádio.
— Pode parar de bater no meu rádio?! Vai acabar estragando! — Ele se irritou.
— Essa merda já está estragada há uns 100 anos no mínimo! — Ela continuava a bater no objeto.
— Não, não está! Só tem 30 anos! — Ele franziu as sobrancelhas. — Era do meu avô! Pare!
— Eu não aguento mais esse barulho! — Ela não obedeceu seu pedido.
De repente, ela parou. Mas não porque quis, ou porque o rádio voltou a pegar. Ela parou, porque sentiu o corpo todo estremecer e esquentar, quando duas mãos seguraram seus punhos e os agarraram firmemente, acompanhados de uma voz baixa e firme.
— Já disse que vai funcionar, é só esperar... — Sua capacidade de fazer contato visual só podia ser um dom.
Capítulo 6
— Ahh... — Ela suspirou. — Pare de olhar assim pra mim! — Tapou os olhos.
só conseguiu rir.
— Assim como? — Ele colocou uma mecha de seu cabelo atrás da orelha, deixando-a completamente desconcertada.
— Eu te dei permissão? — Ela afastou sua mão de forma bruta, ameaçando-o novamente com o canivete.
— Você não vai me machucar, se fosse, já teria feito isso, não acha?
Em um movimento que fez ao falar, deixando seu pescoço mais exposto, pôde analisar aquela parte de seu corpo com os olhos. E a coloração vermelha, forte, um pouco abaixo da ponta de seu queixo a chamou a atenção.
— Acho que já fiz.
E um arrepio intenso percorreu o corpo de , ao sentir um dedo indicador, quente, deslizando levemente por seu pescoço. havia o tocado ali, bem em cima da ferida, e estendeu o dedo molhado com a pintinha de líquido vermelho. Era seu sangue.
Ele rapidamente passou os dedos ali, não conseguindo nada além de pequenas pintinhas de sangue nos dedos. Aquela ferida era tão superficial que não doía, não ardia, era minúscula e indefesa.
— Eu te perdoo.
— Não pedi perdão.
— Tudo bem.
— Não estou arrependida.
— Certo. — Ele esfregou o dedo no braço dela.
— O que está fazendo? — Ela desviou para trás.
— Deixando pistas pra polícia saber quem me matou.
Ela riu.
— Não vou te matar... — Ela milagrosamente fez contato visual.
— Eu sei que não. — lançou-lhe um olhar tão profundo quanto sua voz, fazendo-a sentir um frio involuntário na barriga.
— O que vai fazer quando amanhecer, ?
— Vou te matar.
— É claro que vai. — Ele aumentou o volume do rádio.
Move around the floor in a Loco-motion.
(Come on baby, do the Loco-motion)
Do it holding hands if you get the notion.
(Come on baby, do the Loco-motion)
There's never been a dance that's so easy to do
* Se movimente pelo chão num loco-motion
(Venha baby, faça o loco-motion)
Faça isso de mãos dadas se quiser
(Venha baby, faça o loco-motion)
Nunca houve uma dança tão fácil de se fazer
— Ei, isso está muito alto! — Ela tentou competir com o volume da música.
— Mais alto?! — Ele brincou.
E de repente, o aparelho diminuiu para o volume mínimo, quando ela girou com brutalidade a rodinha prateada, empurrando as mãos de .
— Você é muito sem graça. — Ele fingiu uma feição triste.
— Isso aqui é um esconderijo, quer chamar a atenção? — Sussurrou.
— É minha última noite aqui. — Ele aumentou o volume novamente.
You got a swing on hips now
Come on, baby.
Jump up. Jump back. Well, now, I think you've got the knack.
* Você tem que movimentar seu quadril agora, vamos baby
Pule pra cima, pule pra trás. Bem, agora acho que você pegou o jeito
— Se continuar aumentando eu vou embora. — Ela ameaçou, se colocando de pé no mesmo instante.
E de repente, um som agudo e escandaloso atingiu seus ouvidos. arregalou os olhos, e pôde sentir seu desespero, quando o barulho de uma sirene de polícia começou a se tornar cada vez mais alto. Ele rapidamente diminuiu o volume do rádio, e se encolheu com o cobertor, deixando ali, de pé, com a boca semiaberta. Ela não entendeu o porquê de o homem de sardas nas bochechas ter reagido daquela forma, ele tinha medo da polícia? Estavam apenas escutando música, aquilo era um crime?
Então ela se lembrou, lhe veio a memória aquilo que sua mente tentara tanto apagar nos últimos minutos: era um criminoso foragido.
Lembrar daquilo lhe fez respirar fundo e pensar por um instante. Aquilo lhe fez retomar a lucidez completa.
A medida que a sirene aumentava e se encolhia ali, começava a raciocinar, e assimilar em que posição estava: ela era uma testemunha.
A polícia estava ali, em algum lugar naquela rua, cada vez mais perto. Era isso. A polícia poderia a ajudar. Iria denunciar.
O tio, é claro. Mas de imediato, pensou que também poderia denunciar outra pessoa.
E se houvesse uma recompensa para aquele que encontrasse ? E se fosse uma boa recompensa? Ela precisava de dinheiro para recomeçar a vida, não precisava?
Olhou para ele, mas no mesmo instante seus olhos exalaram compaixão. Porque tapava os ouvidos, e estava ofegante, encolhido como uma criança que cresce assistindo as brigas dos pais.
Mas ela permaneceu ali, de pé, entre seguir seu coração ou a razão. Mas não importava de qualquer maneira, era um desconhecido, um estranho, que não veria pela manhã, além do mais, ele não havia dito que se entregaria mais tarde? Por que estava daquela forma? Não era melhor acabar com aquilo de uma vez?
E as luzes azuis e vermelhas iluminaram a rua, piscando como uma árvore de natal. O carro da polícia passou pela lanchonete... Passou pelo estacionamento... E seguiu em frente, adentrando a rua escura que havia mais à frente. Não havia visto , e muito menos havia se importado com o estacionamento, talvez havia algo maior com que se importar.
Sim, se lembrou: alguém havia sido baleado por ali.
— Por que não vai lá? — Ela se virou para . — Por que não se entrega de uma vez?
— Porque vou pra prisão. — Ele abraçou os joelhos e olhou para ela com os olhos de uma criança perdida.
— E não é essa a intenção?
— A prisão não é uma colônia de férias. — Ele respirou fundo. — Já estou vendo que fazer isso vai ser mais difícil do que eu imaginava...
— Se quiser eu faço isso, eu vou lá, digo que está aqui. — Ela não conseguiu encara-lo ao dizer aquilo.
— Eu não tô pronto...
— Não é justo se eu não fizer isso. — Ela apertou os lábios. — As coisas tem consequências... E você precisa pagar por elas...
— Eu te disse que vou me entregar amanhã...
— Mas a polícia já está aqui, pra que adiar? — Ela insistiu, mesmo que seu coração brigasse para que ela não fosse até lá.
— Você acha que as coisas são fáceis demais...
— E se não se entregar amanhã? E se estiver mentindo pra mim? — Ela cruzou os braços. — Não esteve fugindo esse tempo todo? E se fugir de novo?
— Caramba, você está me deixando com dor de cabeça. — Ele expirou o ar de forma pesada e segurou os cabelos como se fosse arrancá-los. — Já te disse que vou me entregar amanhã.
— Como posso saber se é verdade?
— Vá comigo.
levantou as sobrancelhas.
— Com você?
— Sim... — Ele ajeitou o cobertor em seus ombros. — Se quiser diga que te assaltei ou algo do tipo, vou pra prisão de qualquer forma, não vai fazer diferença...
— Caramba, que deprimente.
— Obrigado.
— Você é tão jovem... Não tem perspectiva de vida?
— Como assim?
— Deve ter algo que você queira muito fazer, algo que não te faça querer se entregar, não sei...
— Se eu me entregar ou não, uma hora vão me encontrar... Não adianta muita coisa. — Ele umedeceu os lábios.
— Você ajudava seu amigo a vender drogas, cara, não vai ficar na prisão pra sempre. —Ela argumentou. — Dependendo de quão grave for você vai perder uns 5 ou 15 anos da sua vida na prisão, o que de fato é deprimente, mas uma hora você vai sair... E você vai querer fazer algo depois da prisão, sei lá...
— Eu nunca tive muitas motivações pra viver, além da minha família.
— Tá, isso foi meio depressivo, mas até que, bonito... — Ela se aproximou dele. — Eles sabem do que aconteceu?
— Sabem... — Ela respirou fundo. — É outro motivo, não quero que eles continuem me acobertando, por causa disso não os vejo há meses...
— Caramba...
— É...
o clima havia se tornado pesado, como se toda a angústia e tristeza de se liberasse de uma vez só. Devia ser horrível ter que viver a vida daquela forma, se escondendo, vagando pelas madrugadas, dormindo em estacionamentos, não podendo ser visto... Quando parou de encarar a rua e se virou para aquele desconhecido, notou que seus olhos estavam carregados, brilhando ainda mais pelas lágrimas que estavam sendo retidas.
— Ana. — Sua voz foi séria, sem vacilar. Ela não se importou de ter sido chamada daquela forma.
— Sim, ?
— Faça isso agora, sei que é o que quer.
— O quê?
— Me denunciar agora. — Murmurou, alto o suficiente para que ela escutasse.
— Agora? Ahn, mas você d...
— Vai. — Ele a interrompeu.
— Você não disse, amanhã?
— Anda logo! — Ele se tornou agressivo. — Acabe com isso de uma vez!
— Mas ... — Ela estranhou a mudança repentina.
— Por que está hesitando?! Você não queria que eu fosse embora pra você ficar sozinha?! Essa é sua chance de não me ver nunca mais!
— Tá bom! Eu tô indo! Não precisa ser grosso!
Os gritos dela foram abafados por uma sirene escandalosa, um veículo passou por ali em alta velocidade. Era a ambulância.
— Caramba, a ambulância só chegou agora? O cara já deve ter morrido. — Ela pousou a mão na boca.
E de repente, sentiu o corpo mole, e uma imensa vontade de vomitar, quando ouviram o grito doloroso de um homem, tão alto que pareceu ter ecoado por todo o bairro.
— É, ele não tá morto...
se levantou tão rápido, que só se deu conta do que ele estava prestes a fazer quando o viu indo em direção a saída do estacionamento, caminhando a passos firmes e decididos, mesmo com o tremor que tomava suas mãos, e o embrulho no estômago.
— ! — Ela nem pensou sobre o que estava fazendo, quando jogou a mochila e o canivete no chão e correu atrás dele. — !
E quando sem perceber, as mãos de agarraram com força o tecido de sua blusa, parou. Sua respiração estava agitada. observava suas costas, e os ossos que sutilmente se destacavam no tecido branco, contraindo de acordo com sua respiração, que começava a se acalmar.
— Eu não entendo você. — Sem olhar para trás, foi o que ele disse, antes de dar um suspiro pesado. — Por que tá tentando me impedir?
— Você disse que era melhor ir amanhã, e que eu iria com você, e aí diria que você me assaltou.
Ele deu uma pequena risada, o que o fez diminuir um pouco a tensão.
— Foi você mesma que disse: "Pra que adiar"?
Ele voltou a andar, mas foi impedido quando o puxou para trás.
— Eu pensei melhor... — Ela se explicou. — Você mudou de ideia do nada... — Ela apertou os lábios, encarando suas costas. — O que foi? Tá tudo bem?
— Também pensei melhor. — O tom de voz de era frio, bem diferente de alguns minutos atrás. — Você se preocupa?
ficou em silêncio, era como se ao mesmo tempo soubesse mas não soubesse a resposta. Sem se dar conta ela estava ali, puxando pela camisa um homem que havia cometido um crime, impendido-o de se entregar à polícia. Quem era ? Quem era aquela mulher que estava fazendo aquilo? Algo que ia contra todos os seus princípios... era um desconhecido. Talvez não para seus lábios, mas ainda era um desconhecido, ela não sabia sequer se todas as palavras que ele havia dito a ela naquela noite eram verdade...
— ... — A doçura com que seu nome saiu da boca de , o fez quase se virar e abraçá-la, mas ele se conteve. — Você quer se entregar justo em uma cena do crime? Vão te colocar como suspeito de balear o cara também, tudo vai virar uma bagunça, ali já deve estar o puro caos...
Então o som de uma sirene se aproximou, mas ficou ali, imóvel e inexpressivo, encarando o nada, com a cabeça cheia de pensamentos. rapidamente puxou sua camisa.
— Vamos nos esconder! — Sussurrou, mas ficou parado, enquanto a sirene se tornava cada vez mais próxima. — Eles com certeza vão procurar suspeitos por aí!
Mas ele ficou parado.
— ! — Sussurrou com desespero.
De repente, sentiu uma força contra seu abdômen, e seu corpo tombar para trás. o empurrava, e ele finalmente se mexeu, se deixando levar, andando para trás. E assim que conseguiram se agachar atrás do Corsa preto, de forma sincronizada, o veículo passou escandaloso em alta velocidade. Não era a polícia, era a ambulância.
— Espero que esse cara fique bem... — Ela segurou forte seu pingente.
— Eu também. — A voz de soou baixa e rouca.
— O que aconteceu?
— O quê? — Ele ergueu uma sobrancelha.
— Por que ficou maluco de repente? Você é bipolar?! — Ela o empurrou fazendo-o quase se desequilibrar.
— Por que me impediu?! O que você quer de mim?
— Ahn... Eu... — Aquelas eram perguntas difíceis para ela. Mas a segunda fez sua mente viajar para áreas distantes, do subconsciente.
— Te dei biscoitos, te dei meu canivete, e você vem e atrapalha minhas coisas! O que mais você quer de mim? — Ele aumentou o tom de voz.
— Eu não te obriguei a me dar nada dessas coisas!
— Por que não me deixou sumir daqui, ?! Eu ia passar a noite na delegacia e seu maior desejo ia se realizar!
Encarando seus lábios agitados, debatendo com ela, se questionava sobre qual era de fato seu maior desejo naquele momento.
— O que você quer? Por que veio com aquela vozinha fina pra cima de mim, chamando meu nome preocupada? Por quê? — Inevitavelmente ele fitou os lábios dela, sentindo novamente o desejo que tomava seu corpo há alguns minutos atrás.
— Olha , me desculpa então, se quer ir então vá logo, vá em frente! Não vou te impedir! — Ela fez sinal, indicando a saída do estacionamento.
— Agora eu perdi a coragem, e a culpa é sua!
— Aquela não era uma boa hora! Mas se quiser então, vá em frente! Você precisa de coragem? Então estou de encorajando agora! Vai! Não estou te impedindo!
Os sentimentos de raiva e desejo brigavam dentro de . Sua face estava vermelha de fúria, mas o coração acelerado tinha uma motivação bem maior do que sua braveza.
— Anda logo, vai! — Ela empurrou seu peito, mas dessa vez ele manteve o equilíbrio. — O que está esperando?! Estou te encorajando!
— Não é assim que funciona! — De sobrancelhas irritadas, ele umedeceu os lábios.
— Então agora você é covarde?! — Ela gritou, próxima ao seu rosto, já sem saber se ainda se referia a situação de se entregar à polícia.
— Não sou covarde! — Ele estava próximo demais.
— Anda logo, ! Faça o que tem que fazer!
E ele fez. E quando seus lábios desesperados se juntaram ao de , causando um incêndio nos corpos dos dois, ela nem precisou questionar se era aquilo de fato o que ela se referia. Era sim preciso coragem da parte dos dois, de admitir que se desejavam, por mais que mal se conhecessem. E o fato de que ninguém nunca havia causado aquelas sensações tão intensas e inigualáveis em seus corpos que apareciam quando estavam juntos, deixava as coisas mais difíceis. Porque mesmo sem saber nada muito profundo sobre a vida de , ele parecia único para ela, e mesmo que se assemelhasse a uma incógnita, ele conseguia sentir, de acordo com as vibrações que percorriam todas as partes de seu corpo, que nunca na vida encontraria alguém como ela. Não queriam pensar no que estava por vir, no que aconteceria de manhã, ou nos próximos minutos, tudo que importava era o presente, o agora. E quando a deitou sobre a toalha, fazendo-a emitir um pequeno suspiro, enquanto começava a movimentar seus lábios de forma lenta e um tanto torturante, ambos tiveram a certeza, de que poderiam estar nos braços um do outro a noite toda, e até mesmo, talvez, a vida toda. A forma com que agarrava os cabelos de , enquanto sentia pulsações e vibrações por várias partes do corpo, fazia-a a questionar se conseguiria soltá-lo quando o ar começasse a faltar, quando tivessem que desgrudar os lábios um do outro. Não queria que aquele momento chegasse, nunca, porque ele sabia muito bem o que estava fazendo, e com um beijo tão lento e calmo, conseguia acender um fogo onde não devia. agora segurava seu rosto de forma tão carinhosa e branda que sequer se lembrava da existência do tio. Ela pensou mesmo por um tempo, que não conseguiria, que ninguém conseguiria apagar aquela marca. Mas , por mais que ela ainda não soubesse ao certo definir tais sentimentos, agora fazia-a se sentir segura e confortável, mesmo em um estacionamento deserto de madrugada, mesmo que soubesse que ele era um foragido, mesmo sem saber muito sobre ele, inexplicavelmente ele a trazia segurança. De forma involuntária, quase sem perceber, envolveu as costas dele com as pernas, sem intenções perversas, um gesto quase inocente, tomado pela vontade de estar presa a seu corpo, de não deixá-lo parar ou fugir, o que não se passava pela cabeça de , porque, se pudesse, ele ficaria ali a noite toda, nos braços dela, e ao senti-la envolver suas costas, aprofundou aquele beijo, deixando-o ainda mais lento, fazendo com que sentisse uma contração. O rádio tocava tão baixinho, que o que mal dava para escutar eram pequenas frações da bateria da música. O som de suas respirações, e até mesmo dos pequenos estalinhos que seus lábios faziam, era mais alto do que aquilo, mas por um instante quis aumentar o rádio, porque queria se lembrar daquele momento junto a uma música, mas teve medo de que música poderia ser, e acabar arruinando aquele momento. Imediatamente afastou aquele pensamento, e focou apenas nas unhas de fincando em seu pescoço, curtas como as dele, sem algum tipo de parte pontiaguda, mas ainda assim, fazendo-o soltar um pequeno suspiro. Mas a forma com que movimentavam os lábios em sincronia e sentiam vibrações e o êxtase por todo o corpo, fez seus sentidos despertarem outros desejos. Foi quando o botão da calça de esbarrou por acidente em um ponto proibido, fazendo-a emitir um sutil gemido. Aquilo, por meio segundo, lhe deu um bilhão de pensamentos não muito amigáveis, que guiaram suas mãos para a cintura de , segurando-a com firmeza, fazendo uma certa parte seu corpo se aquietar. E foi quando decidiu, por mais doloroso que fosse que era a hora de parar, não queria que aquilo acontecesse, não daquela forma, não ali. Em pouco tempo ela havia se tornado especial demais para . E não resmungou, quando ele interrompeu o movimento, e selou seus lábios demoradamente, acariciando seu rosto de forma que causava arrepios a ambos. Intercalou alguns selinhos curtos, até parar por completo, sem se afastar. E olhar nos olhos brilhantes de , sentindo sua respiração agitada em seu rosto, enquanto a lua testemunhava e iluminava seus cabelos descoloridos naquela pequena escuridão, poderia estar na lista de uma das mais bonitas visões que havia tido em toda a vida, o que se tornou ainda mais bonito, quando ele sorriu, de lábios fechados, de forma tão singela e dócil, que conseguiu apagar o fogo que pairava em seu corpo, inundando-a apenas com o maldito frio na barriga.
sorriu e fechou os olhos, ao deixar um último selinho demorado em seus lábios. E então os abriu novamente, porque admira-lo daquele ângulo, com a luz azulada da lua colorindo seus cabelos e iluminando suas sardas, era uma visão imperdível.
— Ainda está com raiva por eu ter te impedido de ir até lá? — Perguntou provocativa.
— Muita. — Fingiu um tom sério, que não durou muito, devido a pequena risada que veio a seguir.
só conseguiu rir.
— Assim como? — Ele colocou uma mecha de seu cabelo atrás da orelha, deixando-a completamente desconcertada.
— Eu te dei permissão? — Ela afastou sua mão de forma bruta, ameaçando-o novamente com o canivete.
— Você não vai me machucar, se fosse, já teria feito isso, não acha?
Em um movimento que fez ao falar, deixando seu pescoço mais exposto, pôde analisar aquela parte de seu corpo com os olhos. E a coloração vermelha, forte, um pouco abaixo da ponta de seu queixo a chamou a atenção.
— Acho que já fiz.
E um arrepio intenso percorreu o corpo de , ao sentir um dedo indicador, quente, deslizando levemente por seu pescoço. havia o tocado ali, bem em cima da ferida, e estendeu o dedo molhado com a pintinha de líquido vermelho. Era seu sangue.
Ele rapidamente passou os dedos ali, não conseguindo nada além de pequenas pintinhas de sangue nos dedos. Aquela ferida era tão superficial que não doía, não ardia, era minúscula e indefesa.
— Eu te perdoo.
— Não pedi perdão.
— Tudo bem.
— Não estou arrependida.
— Certo. — Ele esfregou o dedo no braço dela.
— O que está fazendo? — Ela desviou para trás.
— Deixando pistas pra polícia saber quem me matou.
Ela riu.
— Não vou te matar... — Ela milagrosamente fez contato visual.
— Eu sei que não. — lançou-lhe um olhar tão profundo quanto sua voz, fazendo-a sentir um frio involuntário na barriga.
— O que vai fazer quando amanhecer, ?
— Vou te matar.
— É claro que vai. — Ele aumentou o volume do rádio.
Move around the floor in a Loco-motion.
(Come on baby, do the Loco-motion)
Do it holding hands if you get the notion.
(Come on baby, do the Loco-motion)
There's never been a dance that's so easy to do
* Se movimente pelo chão num loco-motion
(Venha baby, faça o loco-motion)
Faça isso de mãos dadas se quiser
(Venha baby, faça o loco-motion)
Nunca houve uma dança tão fácil de se fazer
— Ei, isso está muito alto! — Ela tentou competir com o volume da música.
— Mais alto?! — Ele brincou.
E de repente, o aparelho diminuiu para o volume mínimo, quando ela girou com brutalidade a rodinha prateada, empurrando as mãos de .
— Você é muito sem graça. — Ele fingiu uma feição triste.
— Isso aqui é um esconderijo, quer chamar a atenção? — Sussurrou.
— É minha última noite aqui. — Ele aumentou o volume novamente.
You got a swing on hips now
Come on, baby.
Jump up. Jump back. Well, now, I think you've got the knack.
* Você tem que movimentar seu quadril agora, vamos baby
Pule pra cima, pule pra trás. Bem, agora acho que você pegou o jeito
— Se continuar aumentando eu vou embora. — Ela ameaçou, se colocando de pé no mesmo instante.
E de repente, um som agudo e escandaloso atingiu seus ouvidos. arregalou os olhos, e pôde sentir seu desespero, quando o barulho de uma sirene de polícia começou a se tornar cada vez mais alto. Ele rapidamente diminuiu o volume do rádio, e se encolheu com o cobertor, deixando ali, de pé, com a boca semiaberta. Ela não entendeu o porquê de o homem de sardas nas bochechas ter reagido daquela forma, ele tinha medo da polícia? Estavam apenas escutando música, aquilo era um crime?
Então ela se lembrou, lhe veio a memória aquilo que sua mente tentara tanto apagar nos últimos minutos: era um criminoso foragido.
Lembrar daquilo lhe fez respirar fundo e pensar por um instante. Aquilo lhe fez retomar a lucidez completa.
A medida que a sirene aumentava e se encolhia ali, começava a raciocinar, e assimilar em que posição estava: ela era uma testemunha.
A polícia estava ali, em algum lugar naquela rua, cada vez mais perto. Era isso. A polícia poderia a ajudar. Iria denunciar.
O tio, é claro. Mas de imediato, pensou que também poderia denunciar outra pessoa.
E se houvesse uma recompensa para aquele que encontrasse ? E se fosse uma boa recompensa? Ela precisava de dinheiro para recomeçar a vida, não precisava?
Olhou para ele, mas no mesmo instante seus olhos exalaram compaixão. Porque tapava os ouvidos, e estava ofegante, encolhido como uma criança que cresce assistindo as brigas dos pais.
Mas ela permaneceu ali, de pé, entre seguir seu coração ou a razão. Mas não importava de qualquer maneira, era um desconhecido, um estranho, que não veria pela manhã, além do mais, ele não havia dito que se entregaria mais tarde? Por que estava daquela forma? Não era melhor acabar com aquilo de uma vez?
E as luzes azuis e vermelhas iluminaram a rua, piscando como uma árvore de natal. O carro da polícia passou pela lanchonete... Passou pelo estacionamento... E seguiu em frente, adentrando a rua escura que havia mais à frente. Não havia visto , e muito menos havia se importado com o estacionamento, talvez havia algo maior com que se importar.
Sim, se lembrou: alguém havia sido baleado por ali.
— Por que não vai lá? — Ela se virou para . — Por que não se entrega de uma vez?
— Porque vou pra prisão. — Ele abraçou os joelhos e olhou para ela com os olhos de uma criança perdida.
— E não é essa a intenção?
— A prisão não é uma colônia de férias. — Ele respirou fundo. — Já estou vendo que fazer isso vai ser mais difícil do que eu imaginava...
— Se quiser eu faço isso, eu vou lá, digo que está aqui. — Ela não conseguiu encara-lo ao dizer aquilo.
— Eu não tô pronto...
— Não é justo se eu não fizer isso. — Ela apertou os lábios. — As coisas tem consequências... E você precisa pagar por elas...
— Eu te disse que vou me entregar amanhã...
— Mas a polícia já está aqui, pra que adiar? — Ela insistiu, mesmo que seu coração brigasse para que ela não fosse até lá.
— Você acha que as coisas são fáceis demais...
— E se não se entregar amanhã? E se estiver mentindo pra mim? — Ela cruzou os braços. — Não esteve fugindo esse tempo todo? E se fugir de novo?
— Caramba, você está me deixando com dor de cabeça. — Ele expirou o ar de forma pesada e segurou os cabelos como se fosse arrancá-los. — Já te disse que vou me entregar amanhã.
— Como posso saber se é verdade?
— Vá comigo.
levantou as sobrancelhas.
— Com você?
— Sim... — Ele ajeitou o cobertor em seus ombros. — Se quiser diga que te assaltei ou algo do tipo, vou pra prisão de qualquer forma, não vai fazer diferença...
— Caramba, que deprimente.
— Obrigado.
— Você é tão jovem... Não tem perspectiva de vida?
— Como assim?
— Deve ter algo que você queira muito fazer, algo que não te faça querer se entregar, não sei...
— Se eu me entregar ou não, uma hora vão me encontrar... Não adianta muita coisa. — Ele umedeceu os lábios.
— Você ajudava seu amigo a vender drogas, cara, não vai ficar na prisão pra sempre. —Ela argumentou. — Dependendo de quão grave for você vai perder uns 5 ou 15 anos da sua vida na prisão, o que de fato é deprimente, mas uma hora você vai sair... E você vai querer fazer algo depois da prisão, sei lá...
— Eu nunca tive muitas motivações pra viver, além da minha família.
— Tá, isso foi meio depressivo, mas até que, bonito... — Ela se aproximou dele. — Eles sabem do que aconteceu?
— Sabem... — Ela respirou fundo. — É outro motivo, não quero que eles continuem me acobertando, por causa disso não os vejo há meses...
— Caramba...
— É...
o clima havia se tornado pesado, como se toda a angústia e tristeza de se liberasse de uma vez só. Devia ser horrível ter que viver a vida daquela forma, se escondendo, vagando pelas madrugadas, dormindo em estacionamentos, não podendo ser visto... Quando parou de encarar a rua e se virou para aquele desconhecido, notou que seus olhos estavam carregados, brilhando ainda mais pelas lágrimas que estavam sendo retidas.
— Ana. — Sua voz foi séria, sem vacilar. Ela não se importou de ter sido chamada daquela forma.
— Sim, ?
— Faça isso agora, sei que é o que quer.
— O quê?
— Me denunciar agora. — Murmurou, alto o suficiente para que ela escutasse.
— Agora? Ahn, mas você d...
— Vai. — Ele a interrompeu.
— Você não disse, amanhã?
— Anda logo! — Ele se tornou agressivo. — Acabe com isso de uma vez!
— Mas ... — Ela estranhou a mudança repentina.
— Por que está hesitando?! Você não queria que eu fosse embora pra você ficar sozinha?! Essa é sua chance de não me ver nunca mais!
— Tá bom! Eu tô indo! Não precisa ser grosso!
Os gritos dela foram abafados por uma sirene escandalosa, um veículo passou por ali em alta velocidade. Era a ambulância.
— Caramba, a ambulância só chegou agora? O cara já deve ter morrido. — Ela pousou a mão na boca.
E de repente, sentiu o corpo mole, e uma imensa vontade de vomitar, quando ouviram o grito doloroso de um homem, tão alto que pareceu ter ecoado por todo o bairro.
— É, ele não tá morto...
se levantou tão rápido, que só se deu conta do que ele estava prestes a fazer quando o viu indo em direção a saída do estacionamento, caminhando a passos firmes e decididos, mesmo com o tremor que tomava suas mãos, e o embrulho no estômago.
— ! — Ela nem pensou sobre o que estava fazendo, quando jogou a mochila e o canivete no chão e correu atrás dele. — !
E quando sem perceber, as mãos de agarraram com força o tecido de sua blusa, parou. Sua respiração estava agitada. observava suas costas, e os ossos que sutilmente se destacavam no tecido branco, contraindo de acordo com sua respiração, que começava a se acalmar.
— Eu não entendo você. — Sem olhar para trás, foi o que ele disse, antes de dar um suspiro pesado. — Por que tá tentando me impedir?
— Você disse que era melhor ir amanhã, e que eu iria com você, e aí diria que você me assaltou.
Ele deu uma pequena risada, o que o fez diminuir um pouco a tensão.
— Foi você mesma que disse: "Pra que adiar"?
Ele voltou a andar, mas foi impedido quando o puxou para trás.
— Eu pensei melhor... — Ela se explicou. — Você mudou de ideia do nada... — Ela apertou os lábios, encarando suas costas. — O que foi? Tá tudo bem?
— Também pensei melhor. — O tom de voz de era frio, bem diferente de alguns minutos atrás. — Você se preocupa?
ficou em silêncio, era como se ao mesmo tempo soubesse mas não soubesse a resposta. Sem se dar conta ela estava ali, puxando pela camisa um homem que havia cometido um crime, impendido-o de se entregar à polícia. Quem era ? Quem era aquela mulher que estava fazendo aquilo? Algo que ia contra todos os seus princípios... era um desconhecido. Talvez não para seus lábios, mas ainda era um desconhecido, ela não sabia sequer se todas as palavras que ele havia dito a ela naquela noite eram verdade...
— ... — A doçura com que seu nome saiu da boca de , o fez quase se virar e abraçá-la, mas ele se conteve. — Você quer se entregar justo em uma cena do crime? Vão te colocar como suspeito de balear o cara também, tudo vai virar uma bagunça, ali já deve estar o puro caos...
Então o som de uma sirene se aproximou, mas ficou ali, imóvel e inexpressivo, encarando o nada, com a cabeça cheia de pensamentos. rapidamente puxou sua camisa.
— Vamos nos esconder! — Sussurrou, mas ficou parado, enquanto a sirene se tornava cada vez mais próxima. — Eles com certeza vão procurar suspeitos por aí!
Mas ele ficou parado.
— ! — Sussurrou com desespero.
De repente, sentiu uma força contra seu abdômen, e seu corpo tombar para trás. o empurrava, e ele finalmente se mexeu, se deixando levar, andando para trás. E assim que conseguiram se agachar atrás do Corsa preto, de forma sincronizada, o veículo passou escandaloso em alta velocidade. Não era a polícia, era a ambulância.
— Espero que esse cara fique bem... — Ela segurou forte seu pingente.
— Eu também. — A voz de soou baixa e rouca.
— O que aconteceu?
— O quê? — Ele ergueu uma sobrancelha.
— Por que ficou maluco de repente? Você é bipolar?! — Ela o empurrou fazendo-o quase se desequilibrar.
— Por que me impediu?! O que você quer de mim?
— Ahn... Eu... — Aquelas eram perguntas difíceis para ela. Mas a segunda fez sua mente viajar para áreas distantes, do subconsciente.
— Te dei biscoitos, te dei meu canivete, e você vem e atrapalha minhas coisas! O que mais você quer de mim? — Ele aumentou o tom de voz.
— Eu não te obriguei a me dar nada dessas coisas!
— Por que não me deixou sumir daqui, ?! Eu ia passar a noite na delegacia e seu maior desejo ia se realizar!
Encarando seus lábios agitados, debatendo com ela, se questionava sobre qual era de fato seu maior desejo naquele momento.
— O que você quer? Por que veio com aquela vozinha fina pra cima de mim, chamando meu nome preocupada? Por quê? — Inevitavelmente ele fitou os lábios dela, sentindo novamente o desejo que tomava seu corpo há alguns minutos atrás.
— Olha , me desculpa então, se quer ir então vá logo, vá em frente! Não vou te impedir! — Ela fez sinal, indicando a saída do estacionamento.
— Agora eu perdi a coragem, e a culpa é sua!
— Aquela não era uma boa hora! Mas se quiser então, vá em frente! Você precisa de coragem? Então estou de encorajando agora! Vai! Não estou te impedindo!
Os sentimentos de raiva e desejo brigavam dentro de . Sua face estava vermelha de fúria, mas o coração acelerado tinha uma motivação bem maior do que sua braveza.
— Anda logo, vai! — Ela empurrou seu peito, mas dessa vez ele manteve o equilíbrio. — O que está esperando?! Estou te encorajando!
— Não é assim que funciona! — De sobrancelhas irritadas, ele umedeceu os lábios.
— Então agora você é covarde?! — Ela gritou, próxima ao seu rosto, já sem saber se ainda se referia a situação de se entregar à polícia.
— Não sou covarde! — Ele estava próximo demais.
— Anda logo, ! Faça o que tem que fazer!
E ele fez. E quando seus lábios desesperados se juntaram ao de , causando um incêndio nos corpos dos dois, ela nem precisou questionar se era aquilo de fato o que ela se referia. Era sim preciso coragem da parte dos dois, de admitir que se desejavam, por mais que mal se conhecessem. E o fato de que ninguém nunca havia causado aquelas sensações tão intensas e inigualáveis em seus corpos que apareciam quando estavam juntos, deixava as coisas mais difíceis. Porque mesmo sem saber nada muito profundo sobre a vida de , ele parecia único para ela, e mesmo que se assemelhasse a uma incógnita, ele conseguia sentir, de acordo com as vibrações que percorriam todas as partes de seu corpo, que nunca na vida encontraria alguém como ela. Não queriam pensar no que estava por vir, no que aconteceria de manhã, ou nos próximos minutos, tudo que importava era o presente, o agora. E quando a deitou sobre a toalha, fazendo-a emitir um pequeno suspiro, enquanto começava a movimentar seus lábios de forma lenta e um tanto torturante, ambos tiveram a certeza, de que poderiam estar nos braços um do outro a noite toda, e até mesmo, talvez, a vida toda. A forma com que agarrava os cabelos de , enquanto sentia pulsações e vibrações por várias partes do corpo, fazia-a a questionar se conseguiria soltá-lo quando o ar começasse a faltar, quando tivessem que desgrudar os lábios um do outro. Não queria que aquele momento chegasse, nunca, porque ele sabia muito bem o que estava fazendo, e com um beijo tão lento e calmo, conseguia acender um fogo onde não devia. agora segurava seu rosto de forma tão carinhosa e branda que sequer se lembrava da existência do tio. Ela pensou mesmo por um tempo, que não conseguiria, que ninguém conseguiria apagar aquela marca. Mas , por mais que ela ainda não soubesse ao certo definir tais sentimentos, agora fazia-a se sentir segura e confortável, mesmo em um estacionamento deserto de madrugada, mesmo que soubesse que ele era um foragido, mesmo sem saber muito sobre ele, inexplicavelmente ele a trazia segurança. De forma involuntária, quase sem perceber, envolveu as costas dele com as pernas, sem intenções perversas, um gesto quase inocente, tomado pela vontade de estar presa a seu corpo, de não deixá-lo parar ou fugir, o que não se passava pela cabeça de , porque, se pudesse, ele ficaria ali a noite toda, nos braços dela, e ao senti-la envolver suas costas, aprofundou aquele beijo, deixando-o ainda mais lento, fazendo com que sentisse uma contração. O rádio tocava tão baixinho, que o que mal dava para escutar eram pequenas frações da bateria da música. O som de suas respirações, e até mesmo dos pequenos estalinhos que seus lábios faziam, era mais alto do que aquilo, mas por um instante quis aumentar o rádio, porque queria se lembrar daquele momento junto a uma música, mas teve medo de que música poderia ser, e acabar arruinando aquele momento. Imediatamente afastou aquele pensamento, e focou apenas nas unhas de fincando em seu pescoço, curtas como as dele, sem algum tipo de parte pontiaguda, mas ainda assim, fazendo-o soltar um pequeno suspiro. Mas a forma com que movimentavam os lábios em sincronia e sentiam vibrações e o êxtase por todo o corpo, fez seus sentidos despertarem outros desejos. Foi quando o botão da calça de esbarrou por acidente em um ponto proibido, fazendo-a emitir um sutil gemido. Aquilo, por meio segundo, lhe deu um bilhão de pensamentos não muito amigáveis, que guiaram suas mãos para a cintura de , segurando-a com firmeza, fazendo uma certa parte seu corpo se aquietar. E foi quando decidiu, por mais doloroso que fosse que era a hora de parar, não queria que aquilo acontecesse, não daquela forma, não ali. Em pouco tempo ela havia se tornado especial demais para . E não resmungou, quando ele interrompeu o movimento, e selou seus lábios demoradamente, acariciando seu rosto de forma que causava arrepios a ambos. Intercalou alguns selinhos curtos, até parar por completo, sem se afastar. E olhar nos olhos brilhantes de , sentindo sua respiração agitada em seu rosto, enquanto a lua testemunhava e iluminava seus cabelos descoloridos naquela pequena escuridão, poderia estar na lista de uma das mais bonitas visões que havia tido em toda a vida, o que se tornou ainda mais bonito, quando ele sorriu, de lábios fechados, de forma tão singela e dócil, que conseguiu apagar o fogo que pairava em seu corpo, inundando-a apenas com o maldito frio na barriga.
sorriu e fechou os olhos, ao deixar um último selinho demorado em seus lábios. E então os abriu novamente, porque admira-lo daquele ângulo, com a luz azulada da lua colorindo seus cabelos e iluminando suas sardas, era uma visão imperdível.
— Ainda está com raiva por eu ter te impedido de ir até lá? — Perguntou provocativa.
— Muita. — Fingiu um tom sério, que não durou muito, devido a pequena risada que veio a seguir.
Capítulo 7
— Tudo bem, então o que eu digo mesmo? — Ela coçou a cabeça. — Esqueci.
— Eu roubei sua mochila, você reagiu e eu te ameacei com o canivete.
— Certo. — Ela deitou a cabeça no ombro de . — Acha que vou ganhar alguma recompensa por isso? Sabe... Você é meio que um foragido né?
— Não sei... Não sei muito sobre essas coisas... — O rádio ainda tocava bem baixinho.
— Aumenta. — Ela indicou o aparelho. Ele riu.
— Então agora quer que eu aumente?
sentiu a leveza dos dedos de acariciando sua bochecha.
— Sim.
girou a rodinha prateada, atendendo o pedido, e o instrumental suave começou a tocar. E sentindo a bochecha macia de em seu ombro, não resistiu a se virar e se inclinar para beija-la. E no mesmo instante seu coração se acelerou, quando uma lâmina rápida foi apontada para seu rosto, quase fazendo-o perder o nariz.
— O que pensa que está fazendo? — Ela perguntou.
— Eu ia te beijar. — Se explicou de olhos arregalados. — Por que ainda está me ameaçando com esse canivete? Abaixe isso.
— Enquanto eu estiver com você, isso vai ficar comigo.
— O que acha que vou fazer com você? — Ele riu de nervosismo, com medo da lâmina.
— Eu não acho que você vá fazer, mas sempre há a probabilidade.
— Fazer o quê?
— Coisas horríveis. — Ela bocejou.
— Você ainda não confia em mim? — Ele deu ênfase a segunda palavra.
— Não confio em ninguém.
— Mas você estava me engolindo há uns minutos atrás, como pode não confiar em mim? Qual é o sentido disso?
— Eu não posso tirar casquinha do meu assassino, antes de morrer?
deu uma risada alta.
— Você não quer tirar mais? — Falou baixo, próximo a seu ouvido, de forma um tanto sedutora.
— Nem um pouco. — Ela deixou um beijo em seu pescoço, e ajeitou a cabeça ali, para sentir seu cheiro de sabonete de chocolate.
— Então por que está fungando no meu pescoço?
— Fique quieto, quero ouvir a música. — Ele riu.
Why are there so many songs about rainbows
And what's on the other side...
*Porque existem tantas músicas sobre o arco-íris e o que há do outro lado?
A melodia tocava suave, inundando seus ouvidos com a calmaria.
— Queria saber inglês pra saber o que essa música diz. — Ela agarrou seu pescoço. — Parece tão bonita...
— Cuidado com isso aí! — se desesperou quando a ponta do canivete em suas mãos passou perto de seu pescoço.
— Relaxa , só vou te matar quando você dormir. — Ela fechou os olhos.
— Que covardia, me esperar ficar indefeso! — Sorriu brincalhão.
Who said that every wish would be heard and answered when wishedon the morning star?Somebody thought of that and someone believed it
* Quem disse que todos os pedidos seriam escutados e atendidos quando as estrelas aparecessem? Alguém pensou nisso e alguém acreditou
— What's so amazing that keeps us star gazing... — cantarolou junto a música, com a voz baixinha e rouca, vibrando próxima aos ouvidos de . — And what do we think we might see?
— Nossa...
— O que foi? — Ele riu baixo.
— Continua cantando. — Ela bocejou, lutando para manter os olhos abertos.
— Someday we'll find it... The rainbow connection... The lovers, the dreamers and me...
— Essa música xinga em inglês? — A voz dela estava arrastada de sono, já não conseguia manter os olhos abertos. — Está me xingando, ?
— Não... A música diz que vamos encontrar a conexão do arco-íris. — Ele acariciou sua cintura.
— Que bonito... — Ela bocejou novamente. — Espero que seja esse mesmo o significado e você não tenha mentido.
— Não estou mentindo. — Ele deslizou os dedos de forma carinhosa por seus cabelos. — O nome da música é "Rainbow Connection".
— Não faço ideia do que significa. — Murmurou. Ele riu baixinho.
— Conexão do Arco-íris.
— Certo, então essa parte da música diz que vamos encontrar a conexão do Arco-Íris...
— Sim...
— Então é o que a gente vai encontrar? — Ela murmurou, coberta de sono.
— Como assim?
— Quando você sair da prisão e eu tiver arrumado a minha vida.
— Você vai querer me ver depois? — Ele levantou as sobrancelhas, surpreso. — Achei que não quisesse me ver nunca mais depois que fosse comigo a delegacia.
— Acho que vou querer saber como você vai estar...
— É, pensando bem, também vou querer saber se a maluca do estacionamento encontrou a conexão do Arco-Íris.
— Eu não sou maluca, vá se foder. — Sua voz diminuiu gradualmente pelo sono.
Ele riu baixinho e deixou um beijo curto em sua testa.
Have you been half a sleep and have you heard voices?
I've heard them calling my name
Is it the sweet sound that calls the young sailor
The voice might be one and the same
I've heard it too many times to ignore it
It's something that I'm supposed to be
Someday well find it, the rainbow connection
The lovers, the dreamers and me
*Enquanto estava dormindo você já se pegou ouvindo vozes?
Eu escutei vozes chamando meu nome
Um doce som que chama pelo jovem marinheiro
A voz pode ser outra ou a mesma
Já a escutei muitas vezes para ignorar
É algo que eu deveria ser
Algum dia encontraremos a conexão do arco-íris
Os amantes, os sonhadores e eu
— Você...
parou a frase, ao notar que não o escutava. Seus olhos fechados e o rosto tranquilo lhe davam uma expressão angelical, deitada em seu peito. E enquanto isso, os últimos acordes de "Rainbow Connection" tocavam perfeitamente, como se fosse a última vez que performariam.
— Durma bem, Ana. — Sussurrou, acariciando seus cabelos.
E continuou ali, admirando , que ficava ainda mais bonita sob a luz da lua, deitada em seu peito. Ela respirava alto, mas isso não tirava sua beleza, fazia parte do que ela era, e para , tudo sobre ela era lindo, até mesmo a forma com que ela havia abandonado o canivete ao lado de seu pescoço após cair em sono profundo. Ele pegou o objeto cortante, e o guardou no bolso, observando-a a todo momento com medo de que ela abrisse os olhos. E então, voltou a acarinhar seus cabelos, pensando no quanto queria que aquele momento fosse eterno, o quanto queria que pudessem ficar daquela forma, um nos braços do outro, para sempre. Afagando a bochecha direita de , se perguntava se a veria de novo, como ela estaria, se talvez poderiam ficar juntos... Sentiu o peito apertar, só de pensar que talvez não a veria nunca mais... A probabilidade era extremamente mínima...
Uma lágrima escorreu pelo rosto de , e quando se deu por conta, estava chorando em silêncio, deixando apenas as lágrimas deslizarem.
— Cheguei!
Uma voz masculina, familiar para , fez com que ele rapidamente limpasse as lágrimas, e se desenvencilhasse devagar e cuidadosamente de , sentindo um aperto na garganta só por ter de sair dali. Ele se levantou, ainda com os olhos molhados, mas agora vermelhos de raiva, fuzilando o homem de cabelos castanhos que estava ofegante, recuperando a respiração, com as mãos nos joelhos.
— Onde você estava? — A face de se fechou em uma expressão nada amigável.
— Problemas. — Ele disse despreocupado, tirando a bolsa transversal e colocando-a no capô do Corsa preto. — Temos q...
— Como assim, problemas? — o empurrou, deixando transparecer sua insatisfação com aquela resposta. — Nós marcamos um horário, e você com essa de problemas?!
— Ei, calma aí, vai dar tudo certo cara, eu tô aqui agora. — Ele pousou uma mão em seu ombro.
Os olhos de queimavam de raiva, como se pudessem colocar fogo no homem a sua frente. Imediatamente ele tirou com brutalidade aquela mão dali, deixando claro que não estava perto de ficar calmo. E naquele instante, o rapaz de cabelos castanhos direcionou o olhar para trás dos ombros de , e ao encontrar uma cena incomum, sorriu sacana, exibindo os dentes da frente, que se assemelhavam aos de um coelho.
— Eita, parece que você se divertiu bastante enquanto me esperava. — Ele sorriu malicioso. — Quem é a gatinha?
— Aonde você se meteu esse tempo todo? — disse frio, encarando-o de forma agressiva.
— Cara... Eu tive um problema com a minha mãe. — Ele estalou a língua.
— Que porcaria de problema?!
— Estamos perdendo tempo discutindo aqui, já era pra gente ter caído fora. — Ele ignorou e começou a mecher na bolsa em cima do capô.
— A polícia está aqui. — rangeu os dentes.
— Siiim, eu vi eles. — Ele continuou mexendo na bolsa. — Hoje eles não estão pra brincadeira. Por isso temos que ir logo. Já marquei tudo, está tudo certo. — Ele tirou o celular da bolsa e começou a digitar algo. — Temos duas horas pra chegar lá e dentre essas duas horas vamos pegar uma só de estrada.
suspirou de forma pesada e olhou para , perdido. Ela ainda dormia como um anjo, aconchegada em seu cobertor.
— Onde você colocou a... — Seu amigo perguntou.
– O quê?
— A... Piu piu — Ele juntou as mãos, apontando para o alto, de forma discreta.
— A o quê? — franziu a testa.
— A...
— Entendi. — Ele assimilou rapidamente o que ele queria dizer.
, sem precisar de chaves, abriu calmamente a porta de trás do Corsa preto e indicou com a cabeça o chão abaixo do banco de trás. Seu amigo parou ali, ao seu lado, e identificou o objeto pelo qual havia perguntado. O rapaz de cabelos castanhos colocou luvas velhas nas mãos e se abaixou para pega-lo.
— O que tá fazendo? — Ele o barrou com o braço.
— A gente precisa limpar.
— Eu usei a luva. — disse seco. — É melhor não tocar mais nisso.
— Certo, você tem razão.
Ele se afastou, se colocando ao lado de , que olhava fixamente para o objeto.
— Minho... — expirou o ar de forma cansada.
— O que?
ficou em silêncio, encarando o amigo, pensando sobre o que diria.
— Não dá...
— Não dá o quê? — Minho o encarava de sobrancelhas erguidas.
— Eu acho que vou me entregar.
— Você ficou maluco?! — Lee Know segurou seu rosto. — Planejamos tudo por meses! Quem teve a ideia foi você! — Ele deu dois tapinhas em suas bochechas. — O que tá acontecendo?!
não respondeu, não conseguia responder, porque nem ele mesmo sabia ao certo o que estava acontecendo, havia planejado algo por meses, e agora simplesmente estava querendo abrir mão daquilo tudo. Mas Minho notou muito bem, quando o olhar do amigo direcionou-se a mulher, que dormia tranquila atrás dele.
— Quem é ela? — Lee Know comprimiu os lábios. — É por causa dela?
negou com a cabeça em resposta, mesmo sabendo que em partes, a resposta era sim.
— Eu nunca te vi com essa garota, eu nunca vi essa garota na minha vida... Quem é ela?
permaneceu encarando-o em silêncio. E então, Lee Know esboçou um sorriso sacana, olhando fundo nos olhos dos amigos.
— Se apaixonou por uma prostituta?
O estralo do tapa que deu no rosto de Minho foi alto.
— Caramba! — Lee Know acariciava sua bochecha ardida, boquiaberto.
— Se disser alguma coisa assim sobre ela de novo eu mato você. — Seu tom de voz foi sério. Sem perceber, havia colocado a mão direita sobre o bolso onde guardava o canivete.
— Quem é essa mulher, ? Ahn? — Ele o peitou. — Como ela te fez ficar doido da cabeça?
— Ela tava aqui quando eu cheguei... — Ele falou baixo. — Tava meio assustada, acho que tá fugindo de alguém...
— E você se apaixonou por uma mulher que conheceu há menos de 24 horas? — Ele riu debochado.
— Não tô apaixonado, cale a boca. — A voz de soou inexpressiva.
— Você está me dizendo que por causa dessa mulher... — Ele apontou para . — Essa mulher. Que você conheceu pouco tempo atrás. Essa mulher. Essa mulher que você nem deve saber o nome. Essa mulher, te fez simplesmente querer arruinar a sua vida e ir pra prisão?
— Eu arruinei minha vida a partir do momento em que atirei no Hyunjin.
— Não, claro que não! Você se vingou por mim! Isso foi incrível!
— Não foi nada incrível ter que sair correndo com uma arma debaixo da blusa, muito menos ouvir ele gritar. — Os olhos de eram inexpressivos.
— Você acha que o matou?
— Espero que não.
— Onde você acertou?
— Não vi direito. — Ele respirou fundo. — Mas acho que foi nas costas.
— Não se preocupe. — Ele colocou os braços em volta do pescoço do amigo. — Agora nós dois vamos ter uma vida bem melhor. Na Espanha.
— Minho... Isso é loucura... — Ele esfregou as mãos no rosto. — Vamos ter que viver a vida fugindo!
— A sua vida aqui é melhor? Me diga, quanto ganha trabalhando pro seu patrão ali? — Ele apontou para a lanchonete. — Você mora em um quarto, porque só pode pagar isso, acorde! — Ele deu um tapinha em sua cabeça. — Na Espanha nossa vida vai ser bem melhor! Vamos sair desse bairro horrível! Vamos viver!
— Como foragidos...
— Cara... Me desculpa ter que dar esse choque de realidade... Mas...Pessoas como nós, não tem muita escolha quando se trata de ter uma vida melhor...
— Eu prefiro ser preso de uma vez. — se desvencilhou de seu braço.
— Essa mulher mexeu mesmo com a sua cabeça, hein? Caramba... — Minho debochou.
— Eu também tenho minha família aqui.
— Hmm, é mesmo não é? — Lee Know colocou a mão no queixo. — Imagina eles descobrindo por um grupo no WhatsApp, que foi você quem baleou um dos traficantes mais poderosos desse lugar? — Minho ironizou. — Imagine só eles te vendo no julgamento, indo te visitar na prisão... Pense na sua irmã...
— Fugir não vai adiantar muita coisa, não vamos deixar de ser criminosos. — Ele se apoiou no capô do carro.
— Olha... Eu quero provar do mel dessa aí... — Minho umedeceu os lábios ao olhar para . — Não sei o que ela fez com você mas fez muito bem. — Ele ergueu as sobrancelhas. — Ontem de tarde você estava animado como nunca havia estado na vida! Falando sobre como iríamos ter uma vida incrível na Espanha, que iríamos mandar dinheiro pra ajudar nossas famílias, e conseguiríamos um emprego que mudaria nossas vidas e pagaria facilmente nossas fianças...
— Eu estava sonhando alto demais, as coisas não são fáceis assim.
— O que ela fez? Como ela fez? Me conta tudo, eu quero muito saber o que ela faz de tão bom! — Lee Know segurou pelos ombros.
deu um suspiro cansado antes de dizer.
— Você acha que a vida gira em torno de sexo e dinheiro.
— Mas não é isso?
riu com deboche.
— A gente pode ter uma vida melhor, depois que pagarmos por nossos erros, Minho.
— Essa sua inocência... — Minho estalou a língua três vezes.
— O que quer dizer? — Ele sentou no capô.
— Você atirou no Hyunjin, e você sabe a importância dele pro tráfico aqui. — Lee Know mordeu os lábios de nervosismo. — Se o Hyunjin morrer ou não, não importa, um de nós dois vai ser jurado de morte, ou talvez nós dois juntos.
— O que?
— Não vão demorar suspeitar de nós, ... — Ele fez uma pausa. — Pense bem, depois de Hyunjin matar aquele cara e me deixar na cena do crime ele fugiu, e eu fugi também, então fiquei foragido morrendo de raiva do Hyunjin, apenas tendo contato com você porque você é o meu único amigo agora. Então de repente Hyunjin volta a cidade, é visto andando pela rua e é baleado... Eu sou o principal suspeito, óbvio, e depois vem você.
— Sim, e daí nós dois vamos presos e vamos pagar pelos crimes.
— Não... Você não está entendendo...
— O que não estou entendendo? — Ele levantou os sobrancelhas, talvez tivesse entendido, mas não queria admitir, porque era algo obscuro demais.
— Jurados de morte, nós vamos morrer de qualquer maneira...
engoliu em seco.
— Podem nos matar na prisão, ou assim que saírmos... Não importa, vão vingar Hyunjin, ou ele mesmo vai por si só. — Minho lhe lançou um olhar sério. — Está me entendendo agora?
— Merda... — Murmurou.
— Temos que ir logo, , esqueça essa garota, você nem a conhece. — Minho continuou encarando-o com seriedade. — Mas você conhece a hierarquia do bairro, e todos os caras perigosos que vivem aqui, e não vão demorar querer nossas cabeças.
— Minho... — começava a entender a gravidade da situação.
— Se ficarmos aqui, nós vamos morrer. — Ele destacou a última palavra. — Não importa se você for preso e pagar pelos seus erros, você vai ser jurado de qualquer maneira, e eu também.
— Caramba... Que merda...
— Foi incrível o que fez por mim, estou realmente agradecido por isso, de verdade, por mais que a intenção fosse só dar um susto no Hyunjin e agora não sabemos se ele está morto ou vivo. — Minho respirou fundo. — Mas agora você entrou nessa, não tem volta, depois de fazer algo assim com um cara poderoso, ou você morre ou foge. E é por isso que vamos fugir.
estava em silêncio, sentado no capô do carro, sentindo o sangue ferver pelo turbilhão de pensamentos que borbulhavam em sua mente. E olhar para dormindo na mais profunda tranquilidade em meio ao caos de sua cabeça, deixava as coisas mais difíceis.
— Vamos logo, a gente precisa chegar no aeroporto e vazar logo daqui. — Lee Know colocou a bolsa transversal e rapidamente fechou a porta do banco de trás do carro. — Acho melhor você trocar essa camisa. — Ele apontou para a roupa.
— Por que?
— Sangue , sangue.
Minho indicou a manchinha vermelha que havia reparado mais cedo, bem na barra da roupa. A dita tinta da creche, não era nada mais nada menos do que sangue, o sangue de Hyunjin. No mesmo instante tirou a camisa, sem pensar muito sobre o que estava prestes a fazer. Sua cabeça estava uma bagunça, pensar em ir pra Espanha sem passagem de volta, enquanto observava dormindo, doía em seu peito.
— Aqui. — Minho jogou uma camisa azul para que ele vestisse rapidamente. — Deixa eu te perguntar uma coisa, como essa garota caiu nos seus encantos com essa sua cara de pobre e bandido?
— Vá se ferrar. — Ele riu baixo enquanto ajeitava a camisa no corpo.
— O que disse pra ela sobre sua vida? Disse que morava em um muquifo e trabalhava aqui ou mentiu que era o filho perdido de um bilionário?
— Eu contei a sua história de vida.
— A minha história? — Minho riu. — De que Hyunjin me abandonou e fugiu e eu fiquei foragido? Usou minha história de vida? Sério?
apenas fez um gesto positivo com a cabeça enquanto tomava um gole de água em sua garrafa.
— Pelo menos faz jus a sua cara, eu acreditaria. Você tem cara de fora da lei.
— Não mais que você. — Ele chicoteou de forma brincalhona o peito de Minho com a camisa branca.
— Vou sentir falta de passar as noites nesse estacionamento. — Lee Know olhou ao redor, sentindo-se nostálgico, antes de se assentar no banco da frente do carro. — Era meio solitário, mas... Também me dava uma sensação de liberdade...
Mas antes de se assentar no banco do motorista, parou ao lado do carro. Era como se algo invisível bloqueasse sua entrada, como se algo o impedisse de dar continuidade aquilo. ... Como ela ficaria ali? Sozinha? Como ela ficaria quando acordasse e visse que não estava mais ali? Uma ferida começava a se abrir dentro dele, ele não queria deixá-la daquela forma, sozinha, sem explicações.
— Minho, eu... Não posso.
— Aah, meu Deus... Não acredito. — Ele pousou a mão na testa.
— Pode ir, eu não quero ir pra Espanha. — se afastou do carro e foi em direção a .
— Entra aqui agora, anda. — Minho pediu, cansado.
Mas estava ocupado demais para ouvi-lo, pois estava sentado ao lado de , acariciando seu rosto com todo o carinho do mundo. E por dentro, com o coração despedaçado, ponderava sobre o que fazer, não fazia a mínima ideia, mas sabia, que tudo o que queria era poder estar junto a ela. Seu sono lhe dava gosto, ela devia estar muito cansada, parecia estar em um sono tão profundo que talvez nada pudesse acorda-la.
— Eu não posso deixar ela sozinha aqui, e se alguém maldoso aparecer?
— Daqui a pouco amanhece, não vai aparecer ninguém, anda vamos logo! — Minho gritava do carro.
sabia que queria ficar ali, tudo o que queria era ficar ali, mesmo que fosse morto pelos aliados de Hyunjin em breve, queria passar o último tempo que lhe restava com , queria ter tempo para beija-lá e abraçá-la mais, mesmo que estivesse próximo da morte. Por que ele estava sendo tão irracional? Por que estava disposto a morrer jovem só para ter um pouco mais do sentimento que o trazia?
— Anda, a gente vai se atrasar, cara, não quero que você fique acelerando feito louco na estrada depois.
Mas não queria sair dali, não queria. Seus dedos sentindo a maciez das bochechas de faziam parte de um sentimento tão único... Por um instante pensou em pedi-la em casamento quando amanhecesse e fugir pra alguma cidade mais distante. Por um instante imaginou um futuro com ela, uma casa, um carro, cachorros na varanda... Mas aquilo era impossível.
— , por que você não enfia essa mulher dentro desse carro e metemos o pé? Não temos dinheiro pra outra passagem, mas podemos deixar ela no aeroporto e vocês se despedirem sem perder o tempo que estamos perdendo agora!
E a fala de Minho, apesar de errada de várias formas, por alguns segundos não pareceu para , por alguns segundos um sequestro pareceu ser algo pertinente e totalmente cabível. Claro, sequestrar até o aeroporto, acorda-lá e avisar que na verdade ele havia baleado uma pessoa e estava fugindo pra Espanha, e depois entrar no avião e deixá-la lá, desamparada e desorientada, no meio da multidão. Foi quando se deu conta de que era uma ideia péssima. Sabia que iria machucá-la seja qual fosse a decisão que tomasse, mas se fosse desse jeito, então queria machucá-la o mínimo possível.
— Pode ir, eu não vou.
— Ah... Paciência... — Minho escondeu o rosto entre as mãos.
— Vai, pode ir.
— Eu não vou deixar você cometer essa insanidade.
— Então vai perder seu voo.
— Cara, isso é loucura! Você nem conhece essa garota!
fechou os olhos, tentando pensar em uma solução impossível, uma forma de não deixá-la ali, uma forma de poder explicar que havia mentido, que precisava ir embora. Respirou fundo, antes de se levantar e se aproximar do carro.
— Ah, finalmente cara! — Minho disse.
— Tem algum papel e caneta aí? — colocou o rosto na janela. — Eu... Vou deixar meu numero.
— Agora você está sendo burro demais! — Minho suspirou de cansaço. — Você confia mesmo nela? Não acha que ela pode levar o número pra polícia e te rastrear?
— Caramba, Minho. — Ele deu um tapa na testa, atordoado. Não sabia o que fazer.
— O que? Está bravo por eu estar sendo o único racional aqui? — Lee Know ergueu as sobrancelhas. — Você quer desperdiçar sua vida por causa de uma garota desconhecida?
— Você não entende. — esfregou as mãos no rosto.
— Essa garota vai acordar, e viver a vida dela normalmente, já você, se ficar aqui vai morrer de qualquer forma. Você quer mesmo morrer aos 21 anos?
estava a ponto de explodir, sua mente estava um caos, não havia saída, não havia solução, não havia nada que pudesse ser feito, mas mesmo assim sua cabeça continuava maquinando planos falhos. De repente, ele teve vontade de acorda-la, beija-lá como se fosse a última vez, e em seguida dizer que tinha de ir embora, mas voltaria para buscá-la onde ela estivesse. Mas não podia, parecia um pecado grave tirá-la de um sono tão confortável como aquele, era incrível como nem mesmo a discussão com Minho conseguiu acorda-lá, dormia mesmo, profundamente, como a bela adormecida, com uma expressão lindamente angelical.
De forma repentina, sem pensar muito, correu em direção a novamente, não demorou nem um segundo para que Minho resmungasse um palavrão. O garoto de sardas no rosto acariciou os cabelos de , e já com lágrimas nos olhos, traçou o carinho de forma suave por suas bochechas. aumentou um pouco o rádio, deixando a música de melodia tranquila fazê-lo esquecer daquela situação por um instante, e trazer ainda mais calmaria para o sono de . Ele pegou a mochila inseparável da garota e colocou ali dentro o último pacote de biscoitos que tinha, a garrafa de água pela metade... E o último objeto em suas mãos lhe fez hesitar um pouco. abriu a mão para observar melhor a lâmina, queria que fosse possível visualizar as marcas dos dedos de para gravar a imagem em sua mente. E então, deixando um beijo no canivete, ele o colocou onde estava, e onde sempre pareceu pertencer, nas mãos de , de onde ele nunca devia o ter tirado. Afagando a pele de seu rosto macio, deixou um beijo no dorso da mão direita dela e a fechou, fazendo-a segurar o canivete.
— Bons sonhos , vou rezar pra que você encontre logo a sua conexão do Arco-íris. — Ele disse baixinho enquanto afagava os cabelos dela.
— ! Já perdemos 15 minutos! — Minho gritou.
— Eu também vou tentar encontrar a minha. — Ele suspirou. — Por mais que agora eu tenha começado a pensar que... A minha conexão do Arco-íris na verdade foi conhecer você...
se levantou, enxugando as lágrimas, e se direcionou até o carro, sem olhar pra trás em um segundo sequer, se olhasse saberia que não conseguiria fazer aquilo. Abriu a porta do carro, com o coração despedaçado, e sentou no banco do motorista, sentindo um bloqueio na garganta. Quando deu partida, sentiu que uma parte de seu corpo estava sendo deixada para trás, era como se faltasse algo muito importante naquele carro. começou a forçar em sua mente o pensamento e o sentimento intenso de que não iria conseguir, enquanto conduzia o carro em direção a saída do estacionamento, sem dizer uma palavra, sem olhar o retrovisor. Minho não fez perguntas ou disse algo, mas olhou para durante quase todo o trajeto, até saírem da cidade e chegarem na estrada. E naquele instante começou a entender o quanto aquela garota havia mexido com seu coração de forma inexplicável, pois deixava as lágrimas deslizarem por seu rosto em silêncio, mesmo na presença de Lee Know, sem vergonha alguma, com o olhar decidido e fixo na estrada. E quando chegaram no aeroporto, não trocou muitas palavras além de coisas sobre passagens e documentos, não sabia como, mas Minho havia arranjado identidades falsas tão perfeitas, que com pouca análise deixaram com que eles passassem e se direcionassem ao avião.
Os dois amigos conversaram pouco durante o voo, até que em certo momento, Lee Know resolveu abraçá-lo, um abraço sincero e terno como se dissesse, "eu estou aqui, e vou te ajudar a superar isso", o que fez imediatamente os olhos de se encherem de lágrimas. E quando a noite virou dia, enquanto o avião voava sobre o oceano, os passageiros se inquietaram, todos pegando seus celulares, prontos para fotografar o bonito fenômeno que podia ser visto pela janela: Um Arco-Íris. Mas sequer tocou no celular em seu bolso, enquanto observava o Arco-íris que parecia os perseguir, apenas se perguntava o que aconteceria se quebrasse a janela e pulasse, se conseguiria escorregar por aquelas cores como no escorregador de um parquinho, e se ao final da escorregada, encontraria .
— Eu roubei sua mochila, você reagiu e eu te ameacei com o canivete.
— Certo. — Ela deitou a cabeça no ombro de . — Acha que vou ganhar alguma recompensa por isso? Sabe... Você é meio que um foragido né?
— Não sei... Não sei muito sobre essas coisas... — O rádio ainda tocava bem baixinho.
— Aumenta. — Ela indicou o aparelho. Ele riu.
— Então agora quer que eu aumente?
sentiu a leveza dos dedos de acariciando sua bochecha.
— Sim.
girou a rodinha prateada, atendendo o pedido, e o instrumental suave começou a tocar. E sentindo a bochecha macia de em seu ombro, não resistiu a se virar e se inclinar para beija-la. E no mesmo instante seu coração se acelerou, quando uma lâmina rápida foi apontada para seu rosto, quase fazendo-o perder o nariz.
— O que pensa que está fazendo? — Ela perguntou.
— Eu ia te beijar. — Se explicou de olhos arregalados. — Por que ainda está me ameaçando com esse canivete? Abaixe isso.
— Enquanto eu estiver com você, isso vai ficar comigo.
— O que acha que vou fazer com você? — Ele riu de nervosismo, com medo da lâmina.
— Eu não acho que você vá fazer, mas sempre há a probabilidade.
— Fazer o quê?
— Coisas horríveis. — Ela bocejou.
— Você ainda não confia em mim? — Ele deu ênfase a segunda palavra.
— Não confio em ninguém.
— Mas você estava me engolindo há uns minutos atrás, como pode não confiar em mim? Qual é o sentido disso?
— Eu não posso tirar casquinha do meu assassino, antes de morrer?
deu uma risada alta.
— Você não quer tirar mais? — Falou baixo, próximo a seu ouvido, de forma um tanto sedutora.
— Nem um pouco. — Ela deixou um beijo em seu pescoço, e ajeitou a cabeça ali, para sentir seu cheiro de sabonete de chocolate.
— Então por que está fungando no meu pescoço?
— Fique quieto, quero ouvir a música. — Ele riu.
Why are there so many songs about rainbows
And what's on the other side...
*Porque existem tantas músicas sobre o arco-íris e o que há do outro lado?
A melodia tocava suave, inundando seus ouvidos com a calmaria.
— Queria saber inglês pra saber o que essa música diz. — Ela agarrou seu pescoço. — Parece tão bonita...
— Cuidado com isso aí! — se desesperou quando a ponta do canivete em suas mãos passou perto de seu pescoço.
— Relaxa , só vou te matar quando você dormir. — Ela fechou os olhos.
— Que covardia, me esperar ficar indefeso! — Sorriu brincalhão.
Who said that every wish would be heard and answered when wishedon the morning star?Somebody thought of that and someone believed it
* Quem disse que todos os pedidos seriam escutados e atendidos quando as estrelas aparecessem? Alguém pensou nisso e alguém acreditou
— What's so amazing that keeps us star gazing... — cantarolou junto a música, com a voz baixinha e rouca, vibrando próxima aos ouvidos de . — And what do we think we might see?
— Nossa...
— O que foi? — Ele riu baixo.
— Continua cantando. — Ela bocejou, lutando para manter os olhos abertos.
— Someday we'll find it... The rainbow connection... The lovers, the dreamers and me...
— Essa música xinga em inglês? — A voz dela estava arrastada de sono, já não conseguia manter os olhos abertos. — Está me xingando, ?
— Não... A música diz que vamos encontrar a conexão do arco-íris. — Ele acariciou sua cintura.
— Que bonito... — Ela bocejou novamente. — Espero que seja esse mesmo o significado e você não tenha mentido.
— Não estou mentindo. — Ele deslizou os dedos de forma carinhosa por seus cabelos. — O nome da música é "Rainbow Connection".
— Não faço ideia do que significa. — Murmurou. Ele riu baixinho.
— Conexão do Arco-íris.
— Certo, então essa parte da música diz que vamos encontrar a conexão do Arco-Íris...
— Sim...
— Então é o que a gente vai encontrar? — Ela murmurou, coberta de sono.
— Como assim?
— Quando você sair da prisão e eu tiver arrumado a minha vida.
— Você vai querer me ver depois? — Ele levantou as sobrancelhas, surpreso. — Achei que não quisesse me ver nunca mais depois que fosse comigo a delegacia.
— Acho que vou querer saber como você vai estar...
— É, pensando bem, também vou querer saber se a maluca do estacionamento encontrou a conexão do Arco-Íris.
— Eu não sou maluca, vá se foder. — Sua voz diminuiu gradualmente pelo sono.
Ele riu baixinho e deixou um beijo curto em sua testa.
Have you been half a sleep and have you heard voices?
I've heard them calling my name
Is it the sweet sound that calls the young sailor
The voice might be one and the same
I've heard it too many times to ignore it
It's something that I'm supposed to be
Someday well find it, the rainbow connection
The lovers, the dreamers and me
*Enquanto estava dormindo você já se pegou ouvindo vozes?
Eu escutei vozes chamando meu nome
Um doce som que chama pelo jovem marinheiro
A voz pode ser outra ou a mesma
Já a escutei muitas vezes para ignorar
É algo que eu deveria ser
Algum dia encontraremos a conexão do arco-íris
Os amantes, os sonhadores e eu
— Você...
parou a frase, ao notar que não o escutava. Seus olhos fechados e o rosto tranquilo lhe davam uma expressão angelical, deitada em seu peito. E enquanto isso, os últimos acordes de "Rainbow Connection" tocavam perfeitamente, como se fosse a última vez que performariam.
— Durma bem, Ana. — Sussurrou, acariciando seus cabelos.
E continuou ali, admirando , que ficava ainda mais bonita sob a luz da lua, deitada em seu peito. Ela respirava alto, mas isso não tirava sua beleza, fazia parte do que ela era, e para , tudo sobre ela era lindo, até mesmo a forma com que ela havia abandonado o canivete ao lado de seu pescoço após cair em sono profundo. Ele pegou o objeto cortante, e o guardou no bolso, observando-a a todo momento com medo de que ela abrisse os olhos. E então, voltou a acarinhar seus cabelos, pensando no quanto queria que aquele momento fosse eterno, o quanto queria que pudessem ficar daquela forma, um nos braços do outro, para sempre. Afagando a bochecha direita de , se perguntava se a veria de novo, como ela estaria, se talvez poderiam ficar juntos... Sentiu o peito apertar, só de pensar que talvez não a veria nunca mais... A probabilidade era extremamente mínima...
Uma lágrima escorreu pelo rosto de , e quando se deu por conta, estava chorando em silêncio, deixando apenas as lágrimas deslizarem.
— Cheguei!
Uma voz masculina, familiar para , fez com que ele rapidamente limpasse as lágrimas, e se desenvencilhasse devagar e cuidadosamente de , sentindo um aperto na garganta só por ter de sair dali. Ele se levantou, ainda com os olhos molhados, mas agora vermelhos de raiva, fuzilando o homem de cabelos castanhos que estava ofegante, recuperando a respiração, com as mãos nos joelhos.
— Onde você estava? — A face de se fechou em uma expressão nada amigável.
— Problemas. — Ele disse despreocupado, tirando a bolsa transversal e colocando-a no capô do Corsa preto. — Temos q...
— Como assim, problemas? — o empurrou, deixando transparecer sua insatisfação com aquela resposta. — Nós marcamos um horário, e você com essa de problemas?!
— Ei, calma aí, vai dar tudo certo cara, eu tô aqui agora. — Ele pousou uma mão em seu ombro.
Os olhos de queimavam de raiva, como se pudessem colocar fogo no homem a sua frente. Imediatamente ele tirou com brutalidade aquela mão dali, deixando claro que não estava perto de ficar calmo. E naquele instante, o rapaz de cabelos castanhos direcionou o olhar para trás dos ombros de , e ao encontrar uma cena incomum, sorriu sacana, exibindo os dentes da frente, que se assemelhavam aos de um coelho.
— Eita, parece que você se divertiu bastante enquanto me esperava. — Ele sorriu malicioso. — Quem é a gatinha?
— Aonde você se meteu esse tempo todo? — disse frio, encarando-o de forma agressiva.
— Cara... Eu tive um problema com a minha mãe. — Ele estalou a língua.
— Que porcaria de problema?!
— Estamos perdendo tempo discutindo aqui, já era pra gente ter caído fora. — Ele ignorou e começou a mecher na bolsa em cima do capô.
— A polícia está aqui. — rangeu os dentes.
— Siiim, eu vi eles. — Ele continuou mexendo na bolsa. — Hoje eles não estão pra brincadeira. Por isso temos que ir logo. Já marquei tudo, está tudo certo. — Ele tirou o celular da bolsa e começou a digitar algo. — Temos duas horas pra chegar lá e dentre essas duas horas vamos pegar uma só de estrada.
suspirou de forma pesada e olhou para , perdido. Ela ainda dormia como um anjo, aconchegada em seu cobertor.
— Onde você colocou a... — Seu amigo perguntou.
– O quê?
— A... Piu piu — Ele juntou as mãos, apontando para o alto, de forma discreta.
— A o quê? — franziu a testa.
— A...
— Entendi. — Ele assimilou rapidamente o que ele queria dizer.
, sem precisar de chaves, abriu calmamente a porta de trás do Corsa preto e indicou com a cabeça o chão abaixo do banco de trás. Seu amigo parou ali, ao seu lado, e identificou o objeto pelo qual havia perguntado. O rapaz de cabelos castanhos colocou luvas velhas nas mãos e se abaixou para pega-lo.
— O que tá fazendo? — Ele o barrou com o braço.
— A gente precisa limpar.
— Eu usei a luva. — disse seco. — É melhor não tocar mais nisso.
— Certo, você tem razão.
Ele se afastou, se colocando ao lado de , que olhava fixamente para o objeto.
— Minho... — expirou o ar de forma cansada.
— O que?
ficou em silêncio, encarando o amigo, pensando sobre o que diria.
— Não dá...
— Não dá o quê? — Minho o encarava de sobrancelhas erguidas.
— Eu acho que vou me entregar.
— Você ficou maluco?! — Lee Know segurou seu rosto. — Planejamos tudo por meses! Quem teve a ideia foi você! — Ele deu dois tapinhas em suas bochechas. — O que tá acontecendo?!
não respondeu, não conseguia responder, porque nem ele mesmo sabia ao certo o que estava acontecendo, havia planejado algo por meses, e agora simplesmente estava querendo abrir mão daquilo tudo. Mas Minho notou muito bem, quando o olhar do amigo direcionou-se a mulher, que dormia tranquila atrás dele.
— Quem é ela? — Lee Know comprimiu os lábios. — É por causa dela?
negou com a cabeça em resposta, mesmo sabendo que em partes, a resposta era sim.
— Eu nunca te vi com essa garota, eu nunca vi essa garota na minha vida... Quem é ela?
permaneceu encarando-o em silêncio. E então, Lee Know esboçou um sorriso sacana, olhando fundo nos olhos dos amigos.
— Se apaixonou por uma prostituta?
O estralo do tapa que deu no rosto de Minho foi alto.
— Caramba! — Lee Know acariciava sua bochecha ardida, boquiaberto.
— Se disser alguma coisa assim sobre ela de novo eu mato você. — Seu tom de voz foi sério. Sem perceber, havia colocado a mão direita sobre o bolso onde guardava o canivete.
— Quem é essa mulher, ? Ahn? — Ele o peitou. — Como ela te fez ficar doido da cabeça?
— Ela tava aqui quando eu cheguei... — Ele falou baixo. — Tava meio assustada, acho que tá fugindo de alguém...
— E você se apaixonou por uma mulher que conheceu há menos de 24 horas? — Ele riu debochado.
— Não tô apaixonado, cale a boca. — A voz de soou inexpressiva.
— Você está me dizendo que por causa dessa mulher... — Ele apontou para . — Essa mulher. Que você conheceu pouco tempo atrás. Essa mulher. Essa mulher que você nem deve saber o nome. Essa mulher, te fez simplesmente querer arruinar a sua vida e ir pra prisão?
— Eu arruinei minha vida a partir do momento em que atirei no Hyunjin.
— Não, claro que não! Você se vingou por mim! Isso foi incrível!
— Não foi nada incrível ter que sair correndo com uma arma debaixo da blusa, muito menos ouvir ele gritar. — Os olhos de eram inexpressivos.
— Você acha que o matou?
— Espero que não.
— Onde você acertou?
— Não vi direito. — Ele respirou fundo. — Mas acho que foi nas costas.
— Não se preocupe. — Ele colocou os braços em volta do pescoço do amigo. — Agora nós dois vamos ter uma vida bem melhor. Na Espanha.
— Minho... Isso é loucura... — Ele esfregou as mãos no rosto. — Vamos ter que viver a vida fugindo!
— A sua vida aqui é melhor? Me diga, quanto ganha trabalhando pro seu patrão ali? — Ele apontou para a lanchonete. — Você mora em um quarto, porque só pode pagar isso, acorde! — Ele deu um tapinha em sua cabeça. — Na Espanha nossa vida vai ser bem melhor! Vamos sair desse bairro horrível! Vamos viver!
— Como foragidos...
— Cara... Me desculpa ter que dar esse choque de realidade... Mas...Pessoas como nós, não tem muita escolha quando se trata de ter uma vida melhor...
— Eu prefiro ser preso de uma vez. — se desvencilhou de seu braço.
— Essa mulher mexeu mesmo com a sua cabeça, hein? Caramba... — Minho debochou.
— Eu também tenho minha família aqui.
— Hmm, é mesmo não é? — Lee Know colocou a mão no queixo. — Imagina eles descobrindo por um grupo no WhatsApp, que foi você quem baleou um dos traficantes mais poderosos desse lugar? — Minho ironizou. — Imagine só eles te vendo no julgamento, indo te visitar na prisão... Pense na sua irmã...
— Fugir não vai adiantar muita coisa, não vamos deixar de ser criminosos. — Ele se apoiou no capô do carro.
— Olha... Eu quero provar do mel dessa aí... — Minho umedeceu os lábios ao olhar para . — Não sei o que ela fez com você mas fez muito bem. — Ele ergueu as sobrancelhas. — Ontem de tarde você estava animado como nunca havia estado na vida! Falando sobre como iríamos ter uma vida incrível na Espanha, que iríamos mandar dinheiro pra ajudar nossas famílias, e conseguiríamos um emprego que mudaria nossas vidas e pagaria facilmente nossas fianças...
— Eu estava sonhando alto demais, as coisas não são fáceis assim.
— O que ela fez? Como ela fez? Me conta tudo, eu quero muito saber o que ela faz de tão bom! — Lee Know segurou pelos ombros.
deu um suspiro cansado antes de dizer.
— Você acha que a vida gira em torno de sexo e dinheiro.
— Mas não é isso?
riu com deboche.
— A gente pode ter uma vida melhor, depois que pagarmos por nossos erros, Minho.
— Essa sua inocência... — Minho estalou a língua três vezes.
— O que quer dizer? — Ele sentou no capô.
— Você atirou no Hyunjin, e você sabe a importância dele pro tráfico aqui. — Lee Know mordeu os lábios de nervosismo. — Se o Hyunjin morrer ou não, não importa, um de nós dois vai ser jurado de morte, ou talvez nós dois juntos.
— O que?
— Não vão demorar suspeitar de nós, ... — Ele fez uma pausa. — Pense bem, depois de Hyunjin matar aquele cara e me deixar na cena do crime ele fugiu, e eu fugi também, então fiquei foragido morrendo de raiva do Hyunjin, apenas tendo contato com você porque você é o meu único amigo agora. Então de repente Hyunjin volta a cidade, é visto andando pela rua e é baleado... Eu sou o principal suspeito, óbvio, e depois vem você.
— Sim, e daí nós dois vamos presos e vamos pagar pelos crimes.
— Não... Você não está entendendo...
— O que não estou entendendo? — Ele levantou os sobrancelhas, talvez tivesse entendido, mas não queria admitir, porque era algo obscuro demais.
— Jurados de morte, nós vamos morrer de qualquer maneira...
engoliu em seco.
— Podem nos matar na prisão, ou assim que saírmos... Não importa, vão vingar Hyunjin, ou ele mesmo vai por si só. — Minho lhe lançou um olhar sério. — Está me entendendo agora?
— Merda... — Murmurou.
— Temos que ir logo, , esqueça essa garota, você nem a conhece. — Minho continuou encarando-o com seriedade. — Mas você conhece a hierarquia do bairro, e todos os caras perigosos que vivem aqui, e não vão demorar querer nossas cabeças.
— Minho... — começava a entender a gravidade da situação.
— Se ficarmos aqui, nós vamos morrer. — Ele destacou a última palavra. — Não importa se você for preso e pagar pelos seus erros, você vai ser jurado de qualquer maneira, e eu também.
— Caramba... Que merda...
— Foi incrível o que fez por mim, estou realmente agradecido por isso, de verdade, por mais que a intenção fosse só dar um susto no Hyunjin e agora não sabemos se ele está morto ou vivo. — Minho respirou fundo. — Mas agora você entrou nessa, não tem volta, depois de fazer algo assim com um cara poderoso, ou você morre ou foge. E é por isso que vamos fugir.
estava em silêncio, sentado no capô do carro, sentindo o sangue ferver pelo turbilhão de pensamentos que borbulhavam em sua mente. E olhar para dormindo na mais profunda tranquilidade em meio ao caos de sua cabeça, deixava as coisas mais difíceis.
— Vamos logo, a gente precisa chegar no aeroporto e vazar logo daqui. — Lee Know colocou a bolsa transversal e rapidamente fechou a porta do banco de trás do carro. — Acho melhor você trocar essa camisa. — Ele apontou para a roupa.
— Por que?
— Sangue , sangue.
Minho indicou a manchinha vermelha que havia reparado mais cedo, bem na barra da roupa. A dita tinta da creche, não era nada mais nada menos do que sangue, o sangue de Hyunjin. No mesmo instante tirou a camisa, sem pensar muito sobre o que estava prestes a fazer. Sua cabeça estava uma bagunça, pensar em ir pra Espanha sem passagem de volta, enquanto observava dormindo, doía em seu peito.
— Aqui. — Minho jogou uma camisa azul para que ele vestisse rapidamente. — Deixa eu te perguntar uma coisa, como essa garota caiu nos seus encantos com essa sua cara de pobre e bandido?
— Vá se ferrar. — Ele riu baixo enquanto ajeitava a camisa no corpo.
— O que disse pra ela sobre sua vida? Disse que morava em um muquifo e trabalhava aqui ou mentiu que era o filho perdido de um bilionário?
— Eu contei a sua história de vida.
— A minha história? — Minho riu. — De que Hyunjin me abandonou e fugiu e eu fiquei foragido? Usou minha história de vida? Sério?
apenas fez um gesto positivo com a cabeça enquanto tomava um gole de água em sua garrafa.
— Pelo menos faz jus a sua cara, eu acreditaria. Você tem cara de fora da lei.
— Não mais que você. — Ele chicoteou de forma brincalhona o peito de Minho com a camisa branca.
— Vou sentir falta de passar as noites nesse estacionamento. — Lee Know olhou ao redor, sentindo-se nostálgico, antes de se assentar no banco da frente do carro. — Era meio solitário, mas... Também me dava uma sensação de liberdade...
Mas antes de se assentar no banco do motorista, parou ao lado do carro. Era como se algo invisível bloqueasse sua entrada, como se algo o impedisse de dar continuidade aquilo. ... Como ela ficaria ali? Sozinha? Como ela ficaria quando acordasse e visse que não estava mais ali? Uma ferida começava a se abrir dentro dele, ele não queria deixá-la daquela forma, sozinha, sem explicações.
— Minho, eu... Não posso.
— Aah, meu Deus... Não acredito. — Ele pousou a mão na testa.
— Pode ir, eu não quero ir pra Espanha. — se afastou do carro e foi em direção a .
— Entra aqui agora, anda. — Minho pediu, cansado.
Mas estava ocupado demais para ouvi-lo, pois estava sentado ao lado de , acariciando seu rosto com todo o carinho do mundo. E por dentro, com o coração despedaçado, ponderava sobre o que fazer, não fazia a mínima ideia, mas sabia, que tudo o que queria era poder estar junto a ela. Seu sono lhe dava gosto, ela devia estar muito cansada, parecia estar em um sono tão profundo que talvez nada pudesse acorda-la.
— Eu não posso deixar ela sozinha aqui, e se alguém maldoso aparecer?
— Daqui a pouco amanhece, não vai aparecer ninguém, anda vamos logo! — Minho gritava do carro.
sabia que queria ficar ali, tudo o que queria era ficar ali, mesmo que fosse morto pelos aliados de Hyunjin em breve, queria passar o último tempo que lhe restava com , queria ter tempo para beija-lá e abraçá-la mais, mesmo que estivesse próximo da morte. Por que ele estava sendo tão irracional? Por que estava disposto a morrer jovem só para ter um pouco mais do sentimento que o trazia?
— Anda, a gente vai se atrasar, cara, não quero que você fique acelerando feito louco na estrada depois.
Mas não queria sair dali, não queria. Seus dedos sentindo a maciez das bochechas de faziam parte de um sentimento tão único... Por um instante pensou em pedi-la em casamento quando amanhecesse e fugir pra alguma cidade mais distante. Por um instante imaginou um futuro com ela, uma casa, um carro, cachorros na varanda... Mas aquilo era impossível.
— , por que você não enfia essa mulher dentro desse carro e metemos o pé? Não temos dinheiro pra outra passagem, mas podemos deixar ela no aeroporto e vocês se despedirem sem perder o tempo que estamos perdendo agora!
E a fala de Minho, apesar de errada de várias formas, por alguns segundos não pareceu para , por alguns segundos um sequestro pareceu ser algo pertinente e totalmente cabível. Claro, sequestrar até o aeroporto, acorda-lá e avisar que na verdade ele havia baleado uma pessoa e estava fugindo pra Espanha, e depois entrar no avião e deixá-la lá, desamparada e desorientada, no meio da multidão. Foi quando se deu conta de que era uma ideia péssima. Sabia que iria machucá-la seja qual fosse a decisão que tomasse, mas se fosse desse jeito, então queria machucá-la o mínimo possível.
— Pode ir, eu não vou.
— Ah... Paciência... — Minho escondeu o rosto entre as mãos.
— Vai, pode ir.
— Eu não vou deixar você cometer essa insanidade.
— Então vai perder seu voo.
— Cara, isso é loucura! Você nem conhece essa garota!
fechou os olhos, tentando pensar em uma solução impossível, uma forma de não deixá-la ali, uma forma de poder explicar que havia mentido, que precisava ir embora. Respirou fundo, antes de se levantar e se aproximar do carro.
— Ah, finalmente cara! — Minho disse.
— Tem algum papel e caneta aí? — colocou o rosto na janela. — Eu... Vou deixar meu numero.
— Agora você está sendo burro demais! — Minho suspirou de cansaço. — Você confia mesmo nela? Não acha que ela pode levar o número pra polícia e te rastrear?
— Caramba, Minho. — Ele deu um tapa na testa, atordoado. Não sabia o que fazer.
— O que? Está bravo por eu estar sendo o único racional aqui? — Lee Know ergueu as sobrancelhas. — Você quer desperdiçar sua vida por causa de uma garota desconhecida?
— Você não entende. — esfregou as mãos no rosto.
— Essa garota vai acordar, e viver a vida dela normalmente, já você, se ficar aqui vai morrer de qualquer forma. Você quer mesmo morrer aos 21 anos?
estava a ponto de explodir, sua mente estava um caos, não havia saída, não havia solução, não havia nada que pudesse ser feito, mas mesmo assim sua cabeça continuava maquinando planos falhos. De repente, ele teve vontade de acorda-la, beija-lá como se fosse a última vez, e em seguida dizer que tinha de ir embora, mas voltaria para buscá-la onde ela estivesse. Mas não podia, parecia um pecado grave tirá-la de um sono tão confortável como aquele, era incrível como nem mesmo a discussão com Minho conseguiu acorda-lá, dormia mesmo, profundamente, como a bela adormecida, com uma expressão lindamente angelical.
De forma repentina, sem pensar muito, correu em direção a novamente, não demorou nem um segundo para que Minho resmungasse um palavrão. O garoto de sardas no rosto acariciou os cabelos de , e já com lágrimas nos olhos, traçou o carinho de forma suave por suas bochechas. aumentou um pouco o rádio, deixando a música de melodia tranquila fazê-lo esquecer daquela situação por um instante, e trazer ainda mais calmaria para o sono de . Ele pegou a mochila inseparável da garota e colocou ali dentro o último pacote de biscoitos que tinha, a garrafa de água pela metade... E o último objeto em suas mãos lhe fez hesitar um pouco. abriu a mão para observar melhor a lâmina, queria que fosse possível visualizar as marcas dos dedos de para gravar a imagem em sua mente. E então, deixando um beijo no canivete, ele o colocou onde estava, e onde sempre pareceu pertencer, nas mãos de , de onde ele nunca devia o ter tirado. Afagando a pele de seu rosto macio, deixou um beijo no dorso da mão direita dela e a fechou, fazendo-a segurar o canivete.
— Bons sonhos , vou rezar pra que você encontre logo a sua conexão do Arco-íris. — Ele disse baixinho enquanto afagava os cabelos dela.
— ! Já perdemos 15 minutos! — Minho gritou.
— Eu também vou tentar encontrar a minha. — Ele suspirou. — Por mais que agora eu tenha começado a pensar que... A minha conexão do Arco-íris na verdade foi conhecer você...
se levantou, enxugando as lágrimas, e se direcionou até o carro, sem olhar pra trás em um segundo sequer, se olhasse saberia que não conseguiria fazer aquilo. Abriu a porta do carro, com o coração despedaçado, e sentou no banco do motorista, sentindo um bloqueio na garganta. Quando deu partida, sentiu que uma parte de seu corpo estava sendo deixada para trás, era como se faltasse algo muito importante naquele carro. começou a forçar em sua mente o pensamento e o sentimento intenso de que não iria conseguir, enquanto conduzia o carro em direção a saída do estacionamento, sem dizer uma palavra, sem olhar o retrovisor. Minho não fez perguntas ou disse algo, mas olhou para durante quase todo o trajeto, até saírem da cidade e chegarem na estrada. E naquele instante começou a entender o quanto aquela garota havia mexido com seu coração de forma inexplicável, pois deixava as lágrimas deslizarem por seu rosto em silêncio, mesmo na presença de Lee Know, sem vergonha alguma, com o olhar decidido e fixo na estrada. E quando chegaram no aeroporto, não trocou muitas palavras além de coisas sobre passagens e documentos, não sabia como, mas Minho havia arranjado identidades falsas tão perfeitas, que com pouca análise deixaram com que eles passassem e se direcionassem ao avião.
Os dois amigos conversaram pouco durante o voo, até que em certo momento, Lee Know resolveu abraçá-lo, um abraço sincero e terno como se dissesse, "eu estou aqui, e vou te ajudar a superar isso", o que fez imediatamente os olhos de se encherem de lágrimas. E quando a noite virou dia, enquanto o avião voava sobre o oceano, os passageiros se inquietaram, todos pegando seus celulares, prontos para fotografar o bonito fenômeno que podia ser visto pela janela: Um Arco-Íris. Mas sequer tocou no celular em seu bolso, enquanto observava o Arco-íris que parecia os perseguir, apenas se perguntava o que aconteceria se quebrasse a janela e pulasse, se conseguiria escorregar por aquelas cores como no escorregador de um parquinho, e se ao final da escorregada, encontraria .
Epílogo
estava descendo a escada rolante pela terceira vez. Mas já era a sétima vez que o pensamento de voltar para trás passava por sua cabeça.
Porém, dessa vez, ele parecia mesmo decidido, pois pela primeira vez, havia conseguido chegar perto do balcão, onde compraria a passagem de volta. Só chegar perto. Pois bastou que o atendente fizesse contato visual, para que ele desse meia volta e voltasse a andar pelo aeroporto. E foi quando pensou bem: havia viajado infinitas horas, apenas para estar ali por poucas horas e ver sua família. Voltar era burrice.
Então, subiu a escada rolante em disparada, como se estivesse em uma escada comum, e acelerou seus passos em direção a saída. Havia perdido muito tempo com aqueles pensamentos, e sabia que em hipótese alguma poderia ficar naquela cidade por mais horas do que havia planejado. Sua vida estaria em jogo.
— Você é o Arthur?
Uma voz feminina esganiçada fez com que ele parasse de repente.
— Arthur? Arthur Renê?
— Aaah... Sou, sou eu mesmo. — ajeitou os óculos escuros. Quatro anos havia sido o suficiente para se acostumar com aquele nome.
— Companhia Ares, Voô 215, assento 37, classe econômica?
— Sim.
— Primeiro te peço perdão em nome da companhia, mas acabamos de notar que houve um equívoco. — A mulher de terno parecia um pouco tensa.
— Um equívoco? — Ergueu as sobrancelhas, esperando pelo pior.
— Sua mochila é idêntica a de uma passageira — Ela ajeitou o coque baixo. — trocamos as etiquetas devido a um erro de comunicação.
Ele balançou a cabeça em gesto negativo.
— Eu conheço minha mochila, seria impossível não notar a diferença, moça. — Batucava uma mão no quadril. Já havia perdido muito tempo, não podia perder mais. — Deve ter sido engano.
— O senhor chegou a abrir?
— Vocês devem ter se confundido. — Ele se virou. Queria ir logo para a saída. Tinha plena certeza de que
a mochila em suas costas era sua.
— Senhor, por favor. Precisamos checar, preciso te levar para a sala. — Seu tom de voz foi educado.
— Não tenho tempo, preciso ir.
— Senhor! — Ela gritou, fazendo todos ao redor olharem para ela. Mas ele a ignorou.
continuava andando para a saída. Que falta de profissionalismo... Aquela mochila era sua, o peso era o mesmo e tinha até o velho chaveiro de lembrança de praia no fecho do bolso inferior. Obviamente estavam enganados.
— Samuel, por favor, traga a passageira aqui. — A mulher falou tensa com um walkie-talkie.
... Naquele instante, ao ouvir aquele nome, ele não parou de andar. Mas sua mente parou.
— Sim, em direção a primeira saída. — Ela olhava aflita para , que já estava de frente para a porta de vidro. — Venham rápido, não estou conseguindo convencê-lo, ele está com pressa. Senhor!
continuava a ignorando, mesmo que seu coração lhe dissesse para ficar. Não podia ser quem ele pensava. Impossível.
— A passageira está vindo, por favor aguarde um instante. — Ele sentiu o toque da mulher em seus ombros.
Aquilo o fez se virar, e encontrar a funcionária com uma expressão desesperada.
— Será bem rápido, prometo ao senhor, apenas precisamos checar.
— Essa mochila é minha, moça. — Ele respirou fundo, sem paciência.
— Perdão senhor, mas faz parte do nosso trabalho, é rápido.
— Qual é o nome da passageira mesmo? — Ele queria saber se não estava ouvindo coisas.
— , senhor. — Ela sorriu fraco, percebendo que ele havia finalmente parado. — Tivemos sorte de ela ter abrido a mochila aqui, nem teríamos tido a informação do erro se ela não tivesse nos contatado.
— ... — Murmurou mais para si mesmo.
— Sim, Ana... Ah! Que rápido! — A funcionária correu e sentiu sua voz se afastando. — Venha senhor! Ela está aqui!
Ele respirou fundo e coçou os cabelos pretos. Aquilo não era impossível, mas imprevisível, se fosse mesmo ela, seria coincidência demais... Como poderia ser ela? Afinal, existem milhares de s por aí, mesmo que não seja um nome tão popular. Mas algo em impedia que ele se virasse, ele estava com medo de que fosse ela, e só conseguia pensar que era ela.
— Senhor?
— Caramba, que mulher chata. — Sussurrou esfregando a testa.
colocou a mão para trás, buscando sentir se seu chaveiro velho estava ali. E quando seus dedos identificaram o formato retangular, confirmou, que sim, era sua mochila. Aquilo lhe fez respirar fundo de novo, cheio de raiva. Apesar de saber que a mochila era sua, já havia perdido tempo com aquela mulher, não custava perder mais alguns minutos para resolver aquele mal entendido. Não custava perder mais alguns minutos para descobrir se era a , aquela .
se virou de uma só vez. E naquele instante, teve a sensação de que seu coração havia parado de bater. Havia uma garota de cabelos e , de costas, abrindo uma mochila de forma afobada. O frio interno agitou seu estômago. começou a se aproximar, devagar, como se tivesse todo o tempo do mundo. E quando chegou ao lado do outro funcionário do aeroporto, e tirou seus óculos escuros, seu coração ainda estava agitado.
Ela estava de calças jeans e uma blusa lilás de mangas curtas. Usava brincos de flor, e seu cabelo parecia estar ainda mais , deixando sua nuca completamente exposta.
— Ana? — A pergunta escapou inconsciente.
E quando a garota virou-se para ele, revelando seu rosto desesperado, sentiu uma imensa dor no peito. Era o mesmo sentimento horrível que havia sentido na noite em que a deixou naquele estacionamento, era a mesma sensação de que havia perdido algo para sempre. Porque aquela garota de maçãs bem marcadas e olhos azulados, não era ela. Não era aquela .
— Pode abrir a mochila, senhor? — O funcionário baixinho o tirou do transe.
— Claro... — expirou o ar de forma pesada, e tirou a mochila das costas, entregando-a para o funcionário.
Talvez nunca mais fosse mesmo vê-la, talvez havia mesmo a perdido para sempre.
Colocou as mãos nos bolsos da calça, frustrado, enquanto o homem abria sua mochila.
E quando a bolsa foi aberta, arregalou os olhos, ao ver o que havia aparecido a vista de todos. A primeira coisa, por cima de todas as roupas, era uma calcinha rosa de renda. Definitivamente não era de , ou era? Será que alguém havia colocado ali? Mas quem faria isso?
— Ah, meu Deus, que vergonha... — A voz tímida da falsa era aguda e suave. — Me desculpem, que vexame.
— Não se preocupe senhorita. — A mulher riu baixinho. — Pode checar se tudo aqui é seu?
E então a garota se abaixou para checar toda a bolsa, conferindo outras peças íntimas, produtos de higiene, cabelo e maquiagem. olhava aquilo, pasmo, se não houvesse parado ele teria ido embora dali com uma mochila cheia de lingeries e coisas de mulher. Como aquilo era possível? Ele tinha certeza de que aquela mochila era sua.
— Pode ver se essa é mesmo a sua, senhor? — A funcionária o entregou a outra mochila, já aberta.
estava embasbacado, mas conferiu a bolsa. E lá estavam, todas as suas coisas, uma por uma, sem falta.
— Meu Deus...
— Certo, então? — O funcionário perguntou.
apenas balançou a cabeça, ainda em choque.
— Já foi a Ubatuba? — perguntou simpática para ele.
— Faz bastante tempo.
— É, acho que percebi. — Ela sorriu brincalhona, fechando sua mochila.
A falsa mostrou o chaveiro que havia no fecho do bolso inferior. Era idêntico ao que ele tinha, porém bem mais conservado. então olhou para seu chaveiro, e viu mesmo que o objeto estava bem descuidado em comparação ao dela. Eles tinham a mesma mochila e o mesmo chaveiro. Que coincidência.
— Ah, eu tenho que ir rápido. — Ele colocou a mochila nas costas, sem graça. — Obrigado, e... É... Tchau.
Os dois funcionários e a garota agradeceram ao mesmo tempo, enquanto ele já caminhava em direção a saída. E andando rápido, e sem olhar para trás, passou pela porta.
Antes de ir para a Espanha, Minho sempre dizia que não conhecia o inferno, mas sabia que era um lugar terrível, onde ele não gostaria de estar, e que talvez o bairro da Prata fosse algo parecido.
concordava, sempre concordou. E aquela concordância se fazia ainda mais forte, enquanto olhava, do vidro de um táxi de madrugada, a paisagem do bairro onde foi criado.
Aquele taxista parecia ser um pouco lunático, mas ainda era melhor do que andar a pé ali. Mesmo depois daqueles anos o bairro da Prata continuava o mesmo: sujo, pobre e esquecido. Aquilo era muito triste, parecia que depois de sua fuga o lugar havia ficado ainda mais precário. Aquela hora, a movimentação agitada de um cachorro tentando abrir um saco de lixo no passeio, parecia ser a única evidência de que ainda existiam pessoas morando naquele lugar. Por mais que soubesse que muita gente ainda morava ali, porque não havia outra condição, incluindo sua família. E era para onde aquele taxista senhor de idade estava o levando, a velha casinha, onde certo dia passou pela porta pela última vez, e não avisou que seria a última.
— Puta que pariu!
não soube distinguir por aquela frase, se a voz de sua irmã havia alterado devido ao tempo ou ao susto que levou ao vê-lo ali, parado na porta. Tocar a campainha de alguém de madrugada de fato não era algo muito comum.
Ela estava em choque, parada na porta, encarando-o, sem conseguir dizer nada. Até que sentiu a necessidade de saber se aquilo não era uma alucinação.
— ? — Ela tapou a boca. Seus olhos se encheram de lágrimas instantaneamente, tal como os do irmão.
— Posso entrar? — Lágrimas deslizaram por suas bochechas.
A garota fez sinal positivo com a cabeça, enxugando as lágrimas, dando espaço para que o irmão entrasse. Quando fechou a porta, sentiu uma dor no peito, ao notar o que havia perdido. Ela havia crescido muito, já não batia mais na sua barriga, e estava a poucos centímetros de alcançar o seu tamanho. Sua irmã já tinha 19 anos, e ele havia perdido a oportunidade de acompanhar toda a sua adolescência.
— Não consigo acreditar... — Ela agarrou seu corpo de imediato.
chorou junto a ela, deixando suas lágrimas molharem as mechas lisas de Felícia, enquanto a garota molhava sua blusa. E agarrado a seu corpo, notava que a sensação era totalmente diferente. Sua irmã havia emagrecido muito, tanto que ele podia sentir os ossos das costas. Perguntava-se se aquilo havia sido de forma saudável, e se não, se ele havia tido culpa. Era um choro de dor e liberdade ao mesmo tempo, a dor de ter ficado tanto tempo sem ao menos ouvir a voz da irmã, e a liberdade de finalmente poder vê-la, sentir seu cheiro e abraçá-la. E sentindo as lágrimas em sua blusa, sentia-se extremamente culpado, ele era a causa daquelas lágrimas, ele havia a feito chorar.
— ? — A voz de sua mãe não havia mudado, nem um agudo ou grave sequer.
E no instante em que ouviu aquela voz alta, as lágrimas desceram com ainda mais intensidade.
— Mãe! — Ele correu para abraçá-la, em meio a soluços.
Sua mãe também havia emagrecido, e no instante em que também sentiu seus ossos das costas, foi quando percebeu que ele podia ser a causa daquilo. Ele era a causa daquilo.
Ela interrompeu o abraço para olhar para seu rosto, tocou suas sardas, os ombros e o pescoço, certificando-se de que não era uma alucinação, era seu filho, , em carne e osso. Naquele momento, ele percebeu o rosto da mãe, e sentiu-se ainda mais culpado. A mulher que antes tinha o rosto rechonchudo agora dispunha de uma face magra e quase esquelética. Suas olheiras estavam fundas, como se não tivesse dormido um dia sequer durante todos esses anos.
A mãe de tinha 56 anos, mas o assustador, é que ela aparentava ser 10 anos mais velha.
— Me desculpa. — Sua voz saiu dolorosa, espremida na garganta, junto as lágrimas que molhavam sua face. Ele era a causa daquilo.
— Meu filhinho... — Ela soluçou e o abraçou novamente. — Você tá vivo! Obrigada Deus! — Disse entre soluços.
E quando seu pai apareceu na porta, com o rosto já inundado de lágrimas, não disse nada, apenas correu para abraçar o filho junto a esposa.
— Por onde você andou, moleque? — Nunca havia ouvido seu pai dizer aquilo em tom de choro, era a primeira vez.
E naquela madrugada, podia ter certeza: nunca havia chorado tanto na vida. E nunca havia se sentido tão feliz em estar no Bairro da Prata.
...
Explicar tudo talvez fosse mais fácil do que ter de dizer que não ficaria para o almoço. Iria embora antes mesmo de terminar o café, sem data prévia para voltar, sem a certeza de que iria voltar. E mesmo deixando-os abalados com todo o relato, lhes deu a noticia. Não rejeitaram ou proíbiram, porque Felícia contou que roubaram os celulares da família na semana seguinte ao acontecimento, os ameaçaram de morte inúmeras vezes, com uma arma na cabeça da mãe, perguntando onde estava. Bandidos, provavelmente aliados de Hyunjin, haviam invadido a casa, não só a deles, como a da família de Minho. Sim, Hyunjin estava vivo, e queria vingança, estava sedento por vingança.
— Estavam vigiando a casa. — Seu pai informou enquanto fechava as janelas, não só para tapar o sol da manhã, mas também para proteger . — Me lembro de vê-los sempre passando pela rua, olhando aqui pra dentro, tanto de dia quanto de noite.
— Fizeram isso por quase um ano inteiro. — Felícia ajeitou os cabelos. — Mas depois acho que se cansaram. De qualquer forma foi um inferno, mas o pior foi não saber onde você estava, tentávamos nos convencer o tempo todo de que você não estava morto.
— Me desculpa...
fungou, se desculpava pela milésima vez naquela manhã. Sentia tanta culpa, que começava a cogitar se matar, ou ir até Hyunjin e se entregar à morte. Sentia-se a pior pessoa do planeta, como podia ter sido tão egoísta? Como podia não ter pensando o quanto sua família iria sofrer? Sequer pensou que poderiam morrer nas mãos dos bandidos em troca de vingança a ele... Um egoísta, inútil, insensível que havia abandonado a família por 4 anos sem sequer dar notícias. Sentia-se um humano maligno, o pior na face da terra. Deveria ser castigado, não merecia viver. começava a pensar que não era digno de viver, começava a pensar na morte.
— O importante é que está aqui, tá bem? — Seu pai deu dois tapinhas em seu ombro. — Já está feito, aconteceu, não tem como voltar atrás. Claro que rejeito totalmente sua escolha de ter entrado nessa vida, mas como um pai ainda te amo, e te desejo o melhor.
— Que horas é seu voô, mesmo? — Sua mãe perguntou.
sentia aquela culpa corroendo seu ser, o sentimento de que devia muito a eles, precisava arranjar um jeito de se redimir. E a morte parecia a saída.
Mas não, a sua morte acabaria com eles por completo, seria horrivelmente pior. Precisava de outra coisa, algo que mudasse suas vidas... Até que teve uma ideia.
— Venham comigo.
— Hein? — Felícia se ajeitou no sofá.
— Pra Espanha.
— Não, meu filho, não. — Seu pai deixou a xícara de café na mesa de centro. — Sei que você não pode ficar aqui, e me dói muito, mas não podemos ir com você, é loucura.
— Não temos nem passaporte, e também não temos como pagar um.
— Eu dou conta disso, consigo arranjar hoje mesmo.
— Hoje? É rápido assim? — Felícia perguntou.
— Eu vou arranjar de outra forma...
— De jeito nenhum. — Seu pai respondeu. — Não vamos nos meter nessas coisas ilegais, você escolheu isso, filho, nós não.
— Então querem ficar aqui pelo resto da vida? Mal tendo dinheiro pra comer? — suspirou. — O que vocês tem a perder aqui? Me digam?
— Ir pra Espanha não vai nos deixar ricos! — Sua mãe se levantou do sofá. — Está maluco, nem teríamos como pagar a passagem, só uma deve ser mais caro do que o aluguel dessa casa!
— Mãe... Você pode começar a vender comida pra arrecadar, sei lá você cozinha tão bem, por que não usa isso a seu favor?
— Eu costuro o dia todo pra conseguir comprar comida, acha que tenho tempo pra pensar nisso?
— Mamãe, se quiser eu posso te ajudar com isso. — Felícia começava a querer mudar de ideia. — Talvez não seja uma má ideia.
— Me ajudar como? Você também é babá o dia todo!
— Nós somos três, talvez possamos dar um jeito. — Ela suspirou. — Como falou, o que temos a perder aqui? Nada!
— E você ao menos vive bem na Espanha? Tem um emprego bom, uma casa? — Seu pai perguntou.
— Bom... Eu sou garçom. — Colocou as mãos nos bolsos. — Não ganha muito, mas... Eu consigo fazer pelo menos 1 refeição todos os dias, e moro em uma quitinet bem pequena.
— E vivendo assim, você acha que a Espanha vai resolver nossos problemas? — Seu pai bufou. — Já tenho 54 anos, não posso me ficar arriscando assim.
— É uma chance de melhorar, pai, por favor! — Ele gesticulou com as mãos. — E vamos poder ficar juntos! Eu sinto falta de ter vocês perto, muita falta!
— Devia ter pensado nisso antes de andar com más companhias e atirar em um traficante. — O pai se levantou, e saiu do cômodo.
respirou fundo. Estava cansado. Mesmo com Minho na Espanha, sentia-se solitário, angustiado, com saudade das broncas dos pais e as brigas com a irmã. Havia passado todos aqueles anos sem deixar de pensar neles por um dia sequer, e encontrá-los agora em uma situação ainda pior, era ainda mais doloroso. Queria que eles saíssem dali, por mais que ir embora para outro país não garantisse a solução de seus problemas, era uma chance.
— Sabe filho... Eu sinto tanto a sua falta que dói. — Sua mãe pôs fim ao silêncio. — Durante esse tempo que você não deu notícias, eu sentia uma dor tão grande, que achei que iria morrer de tristeza.
— Desculpa, mãe... Eu...
— Eu posso pensar nisso.
Um pequeno sorriso de esperança se formou nos lábios de Felícia.
— Realmente, não temos nada a perder. — Sua mãe continuou. — Posso pensar nisso... Mas não hoje.
— Mas, mãe!
— Não tem como arranjar todo o dinheiro das passagens hoje, não adianta ter pressa. — Ela suspirou. — Há fotos suas e de Minho por toda parte, você tem que ir embora. — Pousou a mão no ombro do filho. — Fico extremamente feliz em ver você, e dói ter que me despedir, mas pelo menos dessa vez posso me despedir, isso já acalma meu coração. Você estar vivo me traz a paz que eu não tinha há muito tempo.
fungou, com os olhos cheios de lágrimas, porque não podia fazer nada a respeito. Não podia levar a família junto a ele, teria de voltar para aquela vida vazia, sem poder ter contato com eles. Bom, mas pensando bem, talvez, eles pudessem ter contato, talvez houvesse algum jeito.
— Vocês conseguiram comprar celulares novos? — Perguntou.
— Só Felícia, eu e seu pai não. — Ela recolheu a xícara deixada na mesa de centro. — As coisas estão meio difíceis.
— Qual é o seu número? — Felícia estava pronta para digitar.
— Não, acho melhor não. — deixou a irmã com uma expressão confusa. — Precisamos de outra forma de nos comunicar. — Ele coçava os cabelos, tentando pensar em algo. — Você ainda tem Pinterest?
— Pinterest? — Ela riu fraco. — Sério?
— Eu não vou te seguir, só mandar mensagens. — Ele pegou seu celular.
— Hm, tá bom, então.
Os dois ditaram seus usuários com rapidez, porque precisava ir embora antes das 10. Teve de se despedir dos três com um abraço rápido e doloroso, com a promessa de que um dia, pudessem viver bem e juntos.
E com lágrimas inundando os olhos e muitas incertezas na mente, deu seu último aceno e entrou no táxi de volta para o aeroporto.
Logo, não demorou perceber que o taxista ao volante não era o mesmo que havia o trazido. Era um homem mais jovem, que aparentava ter sua idade.
— Aconteceu alguma coisa com aquele senhor? — Perguntou.
— Teve um problema pessoal. — O motorista respondeu, de forma fria.
— Ah, sim.
E novamente o silêncio se fez, deixando um pouco desconfortável, enquanto passavam por aquela estrada vazia apesar do horário.
— Você é táxi há muito tempo? — Decidiu perguntar.
— Não muito. — O motorista de cabelos pretos se mantia sério, sem tirar os olhos do volante. — Você trabalha com o quê?
— Sou garçom.
Um silêncio ensurdecedor se fez novamente. E naquele silêncio, começava a estranhar a estrada deserta. Como podia não haver ninguém ali naquele horário? Estava tudo vazio, nem um outro carro a vista...
Até que passaram rapidamente por uma placa azul, que conseguiu ler bem: "Santos da Mata 30 Km". Estavam no caminho errado, estavam indo para um distrito pequeno da região, não para o aeroporto. O motorista havia errado o caminho.
— Acho que você pegou o caminho errado, não? — Imediatamente se aquietou, ao ver o carro virar a esquerda, avançando por uma estrada de terra. Para onde aquele cara estava indo?
— Não, estamos no caminho certo. — Respondeu com a voz inexpressiva.
— Essa estrada não dá no aeroporto.
— É um atalho mais fácil.
— Tem certeza? Não vai sujar seu carro? — tossiu com a poeira que começava a invadir o ar. — Como isso aqui vai dar no aeroporto?
— Pare de perguntar, está me desconcentrando.
— Pare o carro. — começava a se sentir nervoso.
— Como assim?
— Vou descer aqui. — Manteve a voz firme. Era nítido que aquele motorista nem sabia para onde estava indo. — Para.
— Qual o problema senhor? Estou dizendo que é um atalho, se acalme.
sentiu um arrepio desagradável e tirou o cinto de segurança.
— Senhor você precisa usar o cinto.
— Eu vou descer, para. — Já estava impaciente, sua voz havia se tornado mais grave e séria.
— Senhor, por favor se acalme, estamos no caminho certo.
— Não! Não estam...
teve de interromper a frase quando olhou para trás para conferir a estrada, e se deparou com Hyunjin saindo do porta-malas, apontando-o uma arma. E seu instinto ligeiro de se abaixar salvou-o da bala, que atravessou o vidro da frente, fazendo com que alguns pedaços caíssem e cortassem-lhe o rosto.
O motorista não parou o carro. Aquilo estava planejado.
E foi naquele instante que tentou desesperadamente abrir a porta, mas não conseguiu, o maldito havia a trancado. E quando Hyunjin pulou para o banco de trás e disparou novamente, se desviou por um fio, pulando em cima do motorista, que perdeu o controle do carro, conduzindo-os para um matagal.
Completamente tomado pelo desespero, pulou a janela do motorista, quase sendo atingido novamente por outro disparo. E sem perder tempo, começou a correr, já sendo perseguido por Hyunjin.
A fuga afobada de fez com que ele adentrasse o matagal, correndo tão rápido que quase podia flutuar a cada salto. O som do sapato pisoteando as folhas não vinha apenas dele, porque Hyunjin estava atrás dele, correndo como uma onça prestes a capturar sua presa.
De repente, ouviu um disparo e no mesmo segundo sentiu algo rápido e pesado passar raspando seu cotovelo. Ardeu, mas não o atingiu.
Aquele susto fez com que ele corresse ainda mais rápido, chegando a seu limite, pois já arfava ao extremo, quase perdendo o fôlego. Sua corrida o fez chegar a uma estrada de terra novamente, por onde avançava sem medo de ser atingido por um carro. Sentia o suor frio deslizando pela face quente, a boca semiaberta buscando a respiração que já falhava e as pernas doloridas sem parar de fugir, corria contra a morte.
De repente, sentiu uma pancada no rosto, e o corpo chocando-se contra algo duro. Deparava-se com um portão de madeira rústico. No mesmo instante, ouviu Hyunjin lhe xingando em um grito raivoso, não tão distante. não pensou, não tinha tempo, por isso, em um movimento ágil, escalou o portão e passou o corpo pelo local vago acima das madeiras pontudas. Foi ao chão, onde teve a queda amortecida pela grama do pequeno jardim de entrada.
manteve-se ali, deitado, olhando para o céu azul límpido, buscando o máximo de ar possível para respirar, recuperando o fôlego, com o coração ainda acelerado e o corpo pulsando em adrenalina.
E ele poderia ter se acalmado, se não tivesse ouvido a voz de Hyunjin o xingando, perto demais, como se soubesse onde ele estivesse. Mas, de repente, os palavrões começaram a ficar mais distantes, como se ele estivesse andando pela estrada, procurando por seu alvo.
suspirou, não sabia se de alívio ou de cansaço, e se levantou, com a intenção de se esconder ali por um tempo. Aquilo era invasão de propriedade, mas pensando bem, ele já estava condenado a prisão e a morte, invadir uma casa talvez fosse o menor delito que iria cometer na vida, isso se conseguisse ficar vivo por mais tempo.
se surpreendeu ao ficar de pé e virar-se para frente. Havia um arco de pedras, nele uma placa bem grande com os dizeres "bem vindo". Não vendo ninguém ali, resolveu caminhar pelo local. Estava ao ar livre, em um espaço extenso, com vários lagos espalhados pelo local, e quiosques próximos à árvores. Era um pesque e pague. Mas não havia ninguém ali, estava tudo vazio, o estabelecimento estava claramente fechado. Óbvio que estava fechado, ele havia pulado o portão fechado.
estava tomado pela sede, ainda tentando voltar ao ritmo normal da respiração. Caminhou até o bar fechado, buscando inutilmente encontrar água. Tudo ali estava fechado, e até mesmo ao passar pela larga piscina na área de esportes, notou a lona que cobria toda sua extensão. Mas tudo estava impecável, extremamente limpo para estar abandonado, talvez apenas fosse cedo demais para abrir.
Aproveitando a falta de movimentação, tomou liberdade de procurar pelo banheiro e não foi difícil encontrá-lo. Por sorte, era próximo a um bebedouro, que parecia estar esperando ansioso por ele, quase como se tivesse vida. E sentir a água gelada molhando sua língua e descendo pela garganta, por um instante pareceu a sensação mais aliviante e prazerosa do mundo. colocava a boca ali com desespero, sedento, molhando sua blusa.
Quando levantou a cabeça para enxugar com o braço o queixo molhado, deu um pulo para trás. Havia um cartaz ali. E seu rosto estava nele.
"Procurado: Lee ", "Denuncie por este número ou pelo whatsapp", "Anonimato garantido".
— Ah não, deviam ter arrumado uma foto melhor! Que coisa horrível!
encarava o cartaz com uma expressão de desgosto. Seu cabelo na foto estava loiro, a antiga franja estava lá, os dentes da frente sutilmente apareciam no espaço entre os lábios, seus olhos estavam parecendo duas jabuticabas. Era a foto da sua antiga identidade, onde haviam pego aquilo? Talvez fosse de algum banco do governo. De qualquer forma, parecia mesmo um criminoso naquilo. Mas ele era um, não era? As vezes era difícil se lembrar desse fato.
— Que foto horrenda, eu tô feio pra caramba!
— Moço? Nós ainda não estamos abertos. — Pulou para trás ao ouvir uma voz feminina. — Como entrou aqui?
não conseguiu se mover. Engoliu em seco, não sabia o que fazer. E aquela voz? Não era estranha, era muito familiar aliás, e isso lhe deixou ainda mais imóvel.
Bastou um segundo para que ouvisse a figura feminina emitir um som incrédulo, porque fixava o olhar no cartaz, e era o procurado que estava ali colado na parede acima do bebedouro, no estabelecimento onde estava aquela mulher, parada ali de frente para ele. Não podia fazer nada além de correr, era a única saída.
Mas, no instante em que se virou para correr pra valer, seu corpo paralisou. estava mesmo imóvel, não conseguia reagir, porque seus olhos se fixaram naquela moça. Aquela moça de cabelos loiros longos, que levava a mão a boca, com o olhar incrédulo, transmitindo um certo medo. Podia estar com as bochechas cheias, os braços sutilmente mais grossos e a barriga marcada na blusa de elastano, mas ele sabia. Não teve dúvidas. Era ela. Caramba. Era ela. .
— Você... — Ele tentou se aproximar.
— Fica parado. — Ela o impediu
fazendo um gesto com as mãos, trêmulas.
— É você mesmo? — Ele sorriu se aproximando, sentindo uma grande vontade de abraçá-la e beijá-la.
— Parado, eu vou chamar a polícia!
foi interrompido por uma lâmina, pontuda, apontada para seu peito a certa distância. Sentiu vontade de chorar e rir, de alegria e emoção. lhe apontava o canivete, o seu canivete. não conseguia esconder o sorriso em seus lábios.
— Pode me revistar. — Ele ergueu os braços.
— Não sou policial pra revistar vagabundo, pilantra!
Ele riu, mas seu sorriso logo se desfez, ao vê-la tirar o celular do bolso do short e digitar algo.
— O que você tá fazendo?
Ela não respondeu, e colocou o celular no ouvido. Quando percebeu o que ela estava prestes a fazer, correu desesperado e tomou o celular de suas mãos.
— Devolve! — Ela pulou para tentar alcançá-lo, mas era mais alto, e segurava o celular o mais alto que conseguia. — , me dá essa merda!
— Hm, então você lembra meu nome.
— Me dá logo! — Ela pulou.
— Vai mesmo me denunciar?
— Posso te matar antes disso se você quiser. — Ela apontou o canivete para sua barriga.
— Não tem coragem de fazer isso.
não precisou de uma resposta em palavras para se arrepender de ter dito aquela frase, porque no mesmo instante sentiu a lâmina afiada entrar e sair da pele de seu braço, causando uma ardência insuportável e um grande derramamento de sangue, que fez com que ele soltasse o celular no chão para tentar estancar a ferida.
— Maluca! Você é maluca! — Ele fazia caretas de dor.
— Você mentiu pra mim, seu filho da puta!
Ela pegou o celular do chão, limpando a poeira da tela na barra da blusa, e começou a digitar novamente, olhando fixamente para a agonia de , como se tivesse prazer em vê-lo gemendo de dor.
— Você foi embora. — Ela olhou para o canivete em suas mãos, a lâmina pingando sangue. — Me deixou lá sozinha. — O telefone chamava, a delegacia ainda não havia atendido. — E depois? Ficou famoso na cidade! Foi você que atirou naquele cara! — Ela o empurrou com força. — Você mentiu pra mim! Você me enganou! Seu pilantra! Filho da puta! — Ela socou seu peito.
— Calma. — murmurou em um gemido doloroso, tapando a ferida no braço.
— Você sumiu! Você não se entregou porra nenhuma! — Desferiu um soco mais forte em seu peito.
— Ana, por favor, fica calma!
— Não me chame de Ana! — Ela desligou a chamada e discou de novo. — Você me deixou sozinha! Você mentiu pra mim!
— Eu sei, eu sei! — Ele deu um suspiro cansado. — Me desculpa, você não tem ideia do quanto foi difícil! Eu não tinha escolha!
— É... — Ela comprimiu os lábios, colando o telefone ao ouvido. — E agora você também não tem escolha, sinto muito.
respirou fundo, tentando sanar a dor, a tensão e o medo de ser encontrado. Se encostou a parede, ao lado de seu cartaz e apoiou o braço no bebedouro, deixando o curto fio de água molhar a ferida ardente.
— Seu idiota! As pessoas vão beber água aí!
— An?
— Tire o braço daí! Merda!
Em um gesto rápido, ela segurou o braço de com brutalidade e o tirou dali. Mas 1 segundo de seu descuido foi suficiente para que a agarrasse, tentando com todas as forças tirar o celular de suas mãos.
— Me solta! — Ela se debatia, protegendo o aparelho a todo custo.
— Então me dê isso!
— Não!
— Ana?! É você? — Uma voz feminina se aproximava.
— Dona Leíse! Soc... — Sua boca foi tapada por , fazendo-a emitir sons inaudíveis.
— Ana? Onde está você querida?! — A voz se aproximava.
continuava relutando, tentando se soltar. As mãos de não eram muito grandes, mas estavam sufocando-na, tapando o ar que deveria sair pela boca.
Então, de repente, a dona da voz apareceu, uma mulher de meia idade de cabelos tingidos de castanho, com raízes grisalhas. A figura arregalou os olhos de imediato, ao parar ali e se deparar com sua funcionária, lutando contra os braços do criminoso que estava sendo procurado há quatro anos. A mulher ficou paralisada por um instante, e quando ameaçou abrir a boca para pedir socorro, , em um movimento desesperado e irracional, arrancou o canivete da mão esquerda de , e posicionou a ponta afiada em direção ao pescoço de Ana.
— Se gritar, eu corto o pescoço dela. — Suas mãos tremiam, quase deixando o objeto cortante cair.
— ?! — Com a boca livre, Ana começava a temer aquele ato. Ele faria mesmo aquilo com ela?
A mulher mais velha imediatamente fechou a boca, mas quando seus olhos se arregalaram e seu corpo bambeou e foi ao chão, gritou, porque Leíse havia desmaiado de terror.
— Dona Leíse!! — O desespero lhe deu forças para conseguir se desvencilhar de de forma brutal e correr para socorrer a mulher.
— Nossa, desculpa, eu não sabia que ela era sensível assi...
— Que merda é essa ?! Você ia cortar minha garganta?! — checava a respiração de Leíse.
— Eu, nã...
— O que tá fazendo aqui ainda? Não vai aproveitar essa brecha pra fugir? — Ana tentava acordar a mulher.
— Eu, eu levo ela... — Sem jeito, tentou se aproximar da situação.
— , vai embora!
— Me desculpa, eu, me deixa ajudar... — Ele se abaixou ao lado dela.
estava em desespero, tentando fazer com que Leíse demonstrasse consciência. Mas, de repente, seus olhos quase saltaram para fora, ao ouvir o som da caminhonete, adentrando o portão do pesque e pague. Ela conhecia o som do veículo do marido de Leíse muito bem.
— Corre. — Sua voz saiu inexpressiva.
— O quê? — franziu a testa.
— Entra lá. — Apontando para uma pequena casinha não muito distante, começava a respirar de forma agitada.
— An? — De olhos estreitos, ainda tentava entender. O som do veículo começava a se aproximar cada vez mais.
— Entra lá logo, e se esconde, caramba! — Gritou de forma tão tensa que obedeceu de imediato, mesmo sem entender.
tentava conversar com Leíse, mas ela estava mesmo desmaiada, e demonstrando, graças a Deus, vitalidade pelo pulso. Sequer viu se havia entrado ou não na casa, estava mais preocupada em sentir o pulso da mulher. Quando ouviu o freio da caminhonete, soube que o homem estava descendo do veículo às pressas.
— A pressão caiu? — Ele a tomava nos braços, não se importando com as mãos sujas de terra.
— Sim. — Ana respondeu, indo atrás dele.
Ambos foram para o casarão do lugar, entrando pela varanda da frente. não estava tão acostumada com os desmaios de dona Leíse, porque até o momento, haviam acontecido com raridade. Mas tomou todos os cuidados que já sabia bem, e em alguns minutos, a mulher estava acordada novamente, desorientada, mas se recuperando aos poucos.
— Esse deve ter sido um susto dos grandes, hein? — O marido de Leíse tinha uma voz alta, o que o fazia parecer que estava brigando muitas das vezes em que falava.
— Ademar... — A mulher mais velha murmurou, pousando as mãos na cabeça. já esperava o que estava por vir.
— Que foi, mulher?
— O bandido, ele tá aqui! — Ela tocou seu ombro, se levantando da cama.
— Como é? — Ademar baixou as sobrancelhas. sentia o coração pulsar mais rápido no peito.
— O procurado, o perigoso! — Ela apertou o ombro do marido, com os olhos arregalados. — Ele é perigoso, ia matar a Ana!
A respiração de tornou-se agitada e entrecortada, ao ver o patrão, em silêncio, abrir a gaveta do quarto e tirar dali algo que ela já conhecia. O facão que tinha muitas utilidades para ele naquela fazenda.
Ana pousou a mão no peito para tentar aquietar o coração, um gesto inútil, pois se pudesse calcular as batidas do órgão quando a lâmina brilhou ao ser erguida próxima a janela, o resultado seria bem mais do que mil por hora.
— Onde ele estava? — Ademar perguntou em um tom assustador, como um assassino de filme de terror.
— Perto do banheiro. — Leíse denunciou.
E Ademar saiu do quarto de cabeça erguida, disposto a atingir seu alvo.
começava a suar, com o corpo quente de nervosismo, pois sabia do que ele era capaz.
— Eu vou arrumar as mesas, já estamos quase na hora de abrir. — Ela se direcionou para a porta.
— Não querida, fique aqui, aquele homem é perigoso, quase matou você! Deixe o Adê resolver isso primeiro!
— Com certeza ele já fugiu, dona Leíse. — Ela disse antes de passar pela porta. — Não podemos deixar isso nos atrapalhar, daqui a pouco o cantor chega, hoje vamos lotar.
— Oh meu pai... Tome cuidado lá fora. — Leíse pousou a mão na cabeça, tensa, ao ver sair do quarto e fechar a porta.
E naquele instante, ela correu, sentindo o coração na boca, até chegar do lado de fora e abrir a porta de sua casinha, a casa do caseiro antigo, arquitetada apenas com um quarto, um banheiro e uma mini cozinha.
E respirou fundo ao entrar e trancar a porta, quando se deparou com parado no meio do minúsculo corredor, com os olhos assustados, segurando uma ameixa.
— Eu tava com fome, descul...
Ele ameaçou guardar a fruta, mas foi interrompido quando o empurrou para dentro de seu quarto e fechou as cortinas.
— Eu não sei que porcaria você está fazendo aqui, não sei como me encontrou e nem porquê...
— Eu n...
— Mas você vai ter que ficar aqui. — Ela o interrompeu. — Até o fim do meu expediente, porque daqui a pouco eu vou ter clientes pra atender, e se você for visto vai causar um escândalo.
— Eu não vou ficar enfiado aqui, como você vive aqui dentro? É abafado pra cacete, e o ventilador não funciona. — Ele apontou para o objeto.
Então, deu um tapa forte e agressivo no ventilador, e no mesmo instante, as hélices começaram a girar a toda velocidade. abriu a boca em "o", impressionado.
— Tem um cara lá fora, querendo te matar.
— Sei bem disso, já viu o meu rosto? — Ele mostrou com o indicador os cortes nas bochechas, causados pelos cacos de vidro.
— Não sei quem fez isso na sua cara. — Ela se aproximou, fechando sua face em uma expressão séria, sem um pingo de humor. — Mas o que eu sei, é que tem um fazendeiro lá fora, extremamente bravo em saber que tem um criminoso na propriedade dele, e se ele te encontrar, vai cortar o seu pescoço sem dó e jogar sua cabeça pra alimentar os peixes.
— Caramba, que horror, ele já fez isso com alguém?
— ... — Ela respirou fundo. — Sendo sincera, eu não tô nem aí se ele cortar você ao meio, eu só quero evitar transtorno pro lugar! Vamos abrir daqui a pouco, hoje tem forró, vai ter muita gente! Não sei que merda você veio fazer aqui, mas agora vai ter que ficar aí até o último cliente ir embora!
apoiou um braço na parede. Fixou o olhar nas cortinas, pensativo, ponderando sobre o que faria, até chegar a uma conclusão.
— Já perdi o voô mesmo. — Ele suspirou. — É melhor do que perder a vida, não é?
— ?! — A voz repentina de seu patrão veio junto às batidas agressivas na porta, fazendo os dois paralisarem. — Você tá aí?!!
— Sim! Só um minuto! — Ela empurrou os ombros de para baixo. — Se esconde. — Sussurrou tensa, indicando a cama. — Anda logo. — se abaixou com rapidez, se espremendo ali embaixo.
fez um coque nos cabelos, e colocou um avental, logo correndo para a porta. E quando a abriu, se deparou com seu patrão, com um olhar ameaçador e vingativo. O facão brilhava com o sol escaldante.
— Viu o bandido por aí?
— Não vi não. — Ana engoliu em seco.
— Eu ainda não olhei aqui dentro. — Ele ajeitou a camisa suada. — Deixa eu dar uma checada porque ele é bom de esconderijo.
Quando ele ameaçou passar pela porta, Ana o empurrou levemente em reflexo, agindo rápido sem pensar. A ação fez com que o homem franzisse as sobrancelhas, parecendo ter um ponto de interrogação na face.
— Não tem ninguém aqui. — Falou de forma atropelada, nervosa. — Eu já olhei, e... Nossa, desculpa, tenho que ir, deixei o fogo ligado. — Ela ameaçou fechar a porta devagar, até que o homem desse dois passos para trás, ainda confuso. E fechou a porta, de forma um pouco afobada.
Esperou alguns segundos ali atrás da porta, até ouvir os passos do patrão, indicando que ele havia saído dali. E no mesmo momento correu para o quarto.
— ... — Sua respiração estava acelerada.
Quando ouviu seu nome ser chamado, saiu de debaixo da cama como um ser vindo de um buraco negro e se colocou de pé, de frente para ela.
— Hm, parece que eu trouxe um pouco de adrenalina pra sua vida. — Ele sorriu.
— Você vai ficar aqui até eu voltar.
— Sei que talvez não seja o melhor momento, mas sério... — Ele soltou um riso anasalado, sorridente. — É tão bom te ver de novo...
— Pois eu não acho nem um pouco bom te ver de novo. — Ela cruzou os braços. — Agora fica quieto aí. — Colocou uma tiara para prender os fios rebeldes no topo da cabeça. — E faça silêncio.
— E depois que você voltar, o que vai acontecer?
— Você vai ir embora, sumir.
— Nãão, agora que estou aqui porque não podemos passar um tempo conversando? A gente ficou tanto tempo sem se ver!
— Claro que não.
— Por que não? Eu tô aqui, a gente se reencontrou! Foi o destino! Isso não é incrível?
— Eu chamaria de azar...
— An?
— Eu não sei se você entendeu... Mas isso não é um reencontro emocionante. — Ana apoiou um braço na parede.
— Hm? Como assim, você... Você n...
— Eu mal consigo olhar pro seu rosto. — Ela respirou fundo, o peito cheio de mágoa. — Você mentiu pra mim, me abandonou, sumiu, e doeu pra caramba!
— Mas eu não tive escol...
— E aí quando eu finalmente consigo estar em uma fase boa da minha vida, você volta do nada, e causa esse caos!
— Ana...
— Como você me achou? — Ela baixou as sobrancelhas, a mágoa armazenada por anos, começava a inundá-la. — Me seguiu? Me rastreou? Porque está aqui?
— Foi por acaso, eu não sabia que você trabalhava aqui, eu não fazia ideia, de verdade!
— E além disso o portão não estava aberto, isso quer dizer que você pulou, isso é invasão! — Ela pousou a mão na testa para tentar organizar o turbilhão de sentimentos. — Você não sente nem um pouco de peso na consciência pelo que faz? Caramba, eu sei que era o traficante, mas você atirou em uma pessoa, ! Isso é muito grave! Você nunca pensou nisso?
— Eu não quero me lembrar disso. — Sua face ficou séria. Não gostava daquela lembrança, não se orgulhava do que havia feito, e havia o atingido em um ponto delicado. — E ele não morreu.
— Não importa, você ainda é um criminoso!
— Eu sei, e quero me desvencilhar disso, quero deixar isso no passado.
— E vai limpar sua ficha invadindo propriedades? Colocando um canivete em volta do pescoço das pessoas?
— Tudo isso foi por impulso, eu estava fugindo e estava assustado! — levantou o tom de voz, sua face começava a tomar fúria.
— Assustado? Você atirou em um cara, você não é indefeso! — A revolta de podia ser sentida em cada sílaba que pronunciava pela raiva e a mágoa.
— E é desse cara que eu estava fugindo!
— Você vai passar a vida inteira fugindo? A vida inteira mesmo? Como você pode viver assim? Isso não é vida!
— Eu tô jurado de morte, caramba! Ou eu fujo ou eu morro, porra!
Sua voz ecoou nas paredes, saindo mais alta e agressiva do que havia imaginado. Aquilo fez o encarar assustada, em silêncio por alguns instantes, com medo.
— Isso não é problema meu. — Ela murmurou, com os olhos carregados, retendo o máximo possível as lágrimas que ameaçavam cair. — São consequências, uma hora ou outra todo mundo tem que lidar com elas.
observava seu rosto com o sentimento de culpa. Naquele instante, encarando os olhos de , enxergou além dos olhos castanhos que ele tanto admirava. conseguiu enxergar a dor, a mágoa, o sentimento de abandono e rejeição, os sentimentos que Ana vinha tentando dar um fim desde aquela noite no estacionamento. Ele não tinha uma escolha que não fosse ser dolorosa naquela noite, mas tinha culpa, tinha culpa por ter metido Ana em sua vida. Fixar seus olhos marejados, quase inundados de lágrimas, doía, porque ele era a causa daquilo, ele havia feito chorar, e perceber isso naquele instante, doía muito no peito.
— Me desculpa... Me desculpa por tudo...
O silêncio de Ana respondia mais do que o suficiente. Aquelas palavras não iriam adiantar, não iriam curar quatro anos de noites mal dormidas, pensando a todo instante onde aquele homem que ela havia conhecido no estacionamento poderia estar. Por um breve período, ela havia conseguido superar aos poucos o sentimento intenso que havia cultivado. Tudo estava bem, tão bem... E de repente, ele estava ali de novo, com os olhos mais maduros e os cabelos tingidos de preto, mas com o mesmo espírito jovem e o mesmo efeito magnético que lhe causava arrepios e um frio na barriga. Mesmo depois de ter sido enganada, ainda sentia, muito, e vê-lo na sua frente, em carne e osso, só confirmava o fato de que não iria esquecê-lo, mas estava magoada demais para abraçá-lo, beijá-lo e dizer que havia pensado nele todos os dias. Queria ter forças, mas estava quebrada, não conseguia fixar os olhos nele por muito tempo, pois um misto de mágoa, angústia e desejo tomavam conta disso. Ao mesmo tempo em que queria chorar em seu peito dizendo o quanto sentiu saudades, queria lhe encher de tapas e socos, queria beijá-lo, e ao mesmo tempo que ele desaparecesse, que ele caísse de cabeça em uma colmeia cheia de abelhas. Queria uma chance de ama-lo, mesmo com o coração quebrado, mas não valeria a pena, porque ele havia mentido, havia a enganado e sumido, e isso era o suficiente para que sua mágoa fosse maior do que o sentimento romântico. Ana havia sido destruída por ele, e perceber que ainda gostava dele mesmo depois de tudo e tanto tempo, estava a destruindo ainda mais.
— Só... Vá pra bem longe de mim, assim como você já fez uma vez. — Sua voz saiu quase embargada. — Vai ser melhor do que se desculpar.
respirou fundo, com os olhos carregados de lágrimas.
— Tá. — E se pôs a andar em direção a porta do quarto.
E Ana, ainda segurando o choro, o observou saír dali sem olhar para trás. Até se lembrar de algo, e correr desesperadamente atrás dele, antes que chegasse a porta de saída da casinha. E sem pensar muito, segurou o braço de , o puxando para trás.
O gesto fez com que ele se arrepiasse com seu toque e parasse, se virando para ela com um olhar confuso.
— Não, não agora, eu preciso trabalhar. — Ela ajeitou o avental. — Se você passar por essa porta agora, vai causar um caos.
— Quando eu posso ir? — Suspirou cansado, desejando mentalmente que ela dissesse algo do tipo "não vá, fique comigo pra sempre."
— Depois que eu chegar...
De repente, teve um pressentimento estranho, junto a um pensamento que lhe gerou certa dúvida.
— Você, não vai ligar pra polícia, né?
— Não. — Ela rapidamente girou a maçaneta e saiu, fechando a porta, deixando ali dentro. — Agora não. — Murmurou esperando que ele não tivesse escutado.
já havia se deixado levar pela paixão naquela noite e ignorado o fato de que estava se envolvendo com um criminoso e ajudando-o a se acobertar. Mas dessa vez, ela estava lúcida, apesar do turbilhão de sentimentos, queria que sofresse consequências por seus atos. Em partes, talvez, fosse mais um sentimento de vingança, como se pudesse aplicá-lo um castigo por tê-la deixado. Talvez fosse errado fazer isso por essa causa, mas ambos estariam errados em qualquer circunstância. Vingança por ou acobertar . Era uma decisão difícil.
Abriu o portão com certa relutância de seu patrão, que dizia que o criminoso poderia ainda estar ali. Ana fez sua melhor atuação ao responder que com certeza o procurado já havia fugido para longe.
E enquanto ela terminava de arrumar as mesas e já começava a atender os primeiros clientes, estava em seu quarto, pensando sobre cada palavra que ela havia dito. Era doloroso pensar que tudo o que ele queria era abraça-la e ficar com ela pelo resto da vida, enquanto ela só queria que ele desaparecesse dali.
andava pelo quarto em círculos, pensando. O cômodo era pequeno e quase espremia a cama entre as paredes. De repente, em uma pequena mesinha de cabeceira, ele parou, e fixou o olhar nos papéis dispostos em ordem, de forma organizada sob o móvel. Pareciam documentos, mas o que despertou mais a atenção de , foi o pequeno livrinho azul que estava por cima de todas as folhas. Era um passaporte. Então pegou o documento, analisando-o um pouco descrente, porque não parecia ser alguém que viajasse muito para o exterior. Correu os olhos pelas letras impressas, a foto preto e branca de uma garota de cabelos no ombro, ainda , mas um olhar exausto, de quem havia acordado muito cedo para ir tirar aquela foto. O nome, o selo, tudo naquele documento era verdadeiro, era um passaporte de verdade, mas sem viagem alguma registrada. Então ela estava planejando uma viagem para o exterior. "Que interessante", pensou. começava a pensar para onde ela iria e o porquê.
Não havia como saber muito sobre , desde aquela noite, para , ela era um ser difícil de decifrar. Não havia falado muito sobre si mesma, o porquê de ter ido parar no estacionamento, o porquê de estar fugindo... não sabia praticamente nada sobre ela, além de que havia se apaixonado. Como ele podia ter se apaixonado em uma noite? De forma tão crua? Sem ao menos saber sua cidade, o sobrenome, ou talvez sua banda favorita? Como podia ter se apaixonado por alguém que não sabia nada sobre?
Deixou o passaporte no cômodo, começando a se sentir mal por estar mexendo em suas coisas, uma falta de educação tremenda, mas uma boa distração por alguns minutos. O que ficaria fazendo ali a tarde toda, naquela casa minúscula? Sentia-se um pássaro preso, mas com hora para ser libertado.
Após comer a ameixa e limpar pela segunda vez as feridas do rosto e do braço, decidiu vasculhar a casa, por mais que fosse errado, não conseguia ficar parado, e foi quando achou uma pequena Tv velha em cima de um banquinho na cozinha. Era um aparelho bem antigo, com duas antenas grandes, uma raridade nos dias de hoje. Sentou-se no chão, porque era a altura que lhe dava visão para a tela, e ligou. A imagem estava péssima, e o áudio distorcido que transmitia a voz das senhorinhas de touca de cozinha, era intrigante. manteve a atenção nas mulheres que preparavam uma espécie de frango grelhado, rindo entre si, enquanto uma barra aparecia na lateral da tela com os ingredientes listados. "Precisa de tudo isso pra fazer um frango? É muita coisa." Pensou.
Concentrado, ele observava os preparativos, até que um barulho de algo batendo em um ponto da estrutura da casa fez com que ele ficasse em alerta. Quando olhou para o lado, sentiu um calafrio ao dar de cara com uma garotinha de maria chiquinha, acenando através do vidro da janelinha da cozinha, com um sorriso banguela.
Rapidamente correu para o quarto e se escondeu debaixo da cama, ouvindo vozes ao redor da casa.
"O que você tá fazendo aí, menina?" A voz de uma mulher mais velha perguntou.
"Mamãe, tem um moço aqui." A voz aguda disse. se encolheu por mais que não estivesse a vista.
"Deixa o moço, vamos, vamos pegar peixinhos com o papai."
"Tem algum problema aí?" A voz alta de um homem apareceu. se encolheu ainda mais, porque parecia ser o cara de quem falara. Seu coração começava a se acelerar.
"Tem não Adê, só a curiosidade dessas crianças, aiai" A voz se afastava.
"Ela viu alguma coisa diferente?"
começou a tremer, teve medo de que o homem fosse vir checar. Já começava a imaginar o pior, imaginava seu fim.
"Seu Adê! Pode vir me ajudar aqui?!"
Boa, .
Então os sentiu se afastar da casa e soltou a respiração.
Com medo, ficou ali escondido por muito tempo, tanto que acabou dormindo por algumas horas. Era sorte que fosse organizada, o chão estava limpíssimo, e o cheiro de lavanda do produto era aspirado naturalmente pelo nariz de .
Ele só acordou, quando o barulho de alguns instrumentos sincronizados começou a aparecer em seus sonhos. E quando abriu os olhos, acordado, identificou o som da sanfona, do triângulo e um teclado, junto de uma voz grave.
"Vamo lá minha gente!"
"Escrevi seu nome na areia..."
"O sangue que corre em mim sai da tua veia..."
É, a música havia começado. E bom, pelo menos estavam tocando Falamansa.
"Veja só você é a única que não me dá valor..." "Então por que será que esse valor é o que eu ainda quero ter..."
O homem cantava bem, e parecia estar sorrindo a cada sílaba. saiu de debaixo da cama, tentando ouvir melhor a música. Balançava a cabeça sutilmente no ritmo, aquilo era muito bom, o que o fez presumir que haviam pessoas dançando ali fora.
decidiu dar uma olhada, só uma olhada bem rápida, queria ver o movimento, queria ver se as pessoas estavam dançando, quem estava cantando, como estava ? Muito atarefada? Calma? Estressada? Curtindo a canção? nem sabia direito de que tipo de música ela gostava.
Então, se ajoelhou na cama de Ana. Abriu uma pequena fresta da cortina, devagar. E colocou o olho direito ali. E quando teve a vista que queria, sorriu. Um pequeno grupo de pessoas dançava animado em pares, distantes mas ainda nítidos para ele. O cantor e os instrumentistas não estavam em um palco, e sim debaixo da cobertura do bar, sentados em banquinhos de madeira. Então sorriu. Largo. Porque viu ela.
servia as mesas se balançando graciosamente, com a tiara quase caindo na testa. Ela tinha ritmo.
De repente, uma senhora de idade a puxou para dançar, e ela cedeu, dançando risonha com a mulher que também se divertia. Nunca havia esquecido como o sorriso de Ana era bonito. pensava no quanto queria poder vê-la de perto, alegre daquela forma. queria dançar com ela, por mais que não soubesse dançar forró, tomaria todo cuidado do mundo para não pisar nos pequenos pés dela. Era inútil querer, aquilo não aconteceria, então deixou a mente fluir, e apenas imaginou que estava no lugar daquela senhora, imaginava que estava ali, dançando com ela, porque suas fantasias eram a única coisa que poderia ter de .
Observou a situação até ela sumir de cena para pegar um pedido e servir uma mesa. E ela ficava linda de avental. Mesmo com o avental sujo de ketchup, e um coque cheio de frizz, ela estava linda, e estava vidrado.
— Oi!
arregalou os olhos quando uma criança grudou o rosto no vidro da janela, e correu para debaixo da cama novamente.
— Mamãe! O moço tá se escondendo de mim! — A garotinha começou a rir. Era a mesma de antes.
entrou em desespero, e se encolheu como se estivesse em um casulo.
— Minha filha, para com isso! — A voz da mãe apareceu. — É falta de educação ficar olhando a casa dos outros. — Sua voz se afastava.
E ao ouvir a voz da garotinha dizendo "mamãe, foi muito engraçado, ele escondeu de mim", ficando cada vez mais distante, soltou a respiração novamente.
Mas a paz não estava estabelecida, porque logo em seguida ouviu passos, pesados demais para ser da mãe ou da filha. Eram passos diretos, decididos, que pareciam estar próximos à janela. Ele teve o pressentimento de que sabia quem era. E de repente, a porta recebeu duas batidas, violentas.
— Eu sei que você está aí! — Ele bateu na porta novamente, mais forte. — Eu vou matar você, seu vagabundo! — Ele bateu mais duas vezes.
— Eu vou morrer. — murmurou, se encolhendo mais.
— Seu Adê, o que é isso?? — E salva a pátria novamente. — Tá todo mundo olhando pra cá, o que aconteceu? — Sua voz estava do lado de fora, junto a do homem, eles estavam em frente a porta.
— Vou te perguntar uma coisa, e eu quero que você seja sincera.
— Tudo bem. — Ela disfarçou uma engolida em seco. tapou a boca para conter o nervosismo.
— Tem alguém aqui dentro?
prendeu a respiração.
respirou fundo antes de responder.
— Tem.
Ele respirou, arregalando os olhos desesperado.
— Eu prendi o cara aí, a gente não pode assustar os clientes.
estava a ponto de ter um colapso.
— Você deixou um bandido na sua casa???!!!
— Eu vou ligar pra polícia assim que o expediente acabar. — Revelou, deixando perplexo. — Eu tranquei tudo, não tem como ele sair.
— Ah, nem vai precisar, eu vou matar esse invasor antes de ele ir pra cadeia! — A voz do homem estava agressiva.
— Seu Adê, se controle, eu sei que é ruim saber que alguém invadiu aqui, mas a polícia vai fazer o papel, não podemos fazer justiça com as próprias mãos.
— Ah, podemos sim!
— Calma, calma, quer um copo de água?
— Abre essa porta!
— Você vai causar confusão aqui, calma, vai espantar todo mundo... Vem, vou te dar um copo de água.
E as vozes se afastaram.
estava imóvel, em choque, sentindo-se extremamente traído. Não perdeu tempo e se moveu, saindo de debaixo da cama, correndo para a cozinha, onde havia uma janelinha de frente para um barranco, a mesma janela por onde a garotinha havia acenado.
Tentou a todo custo abrir a janela, mas estava emperrada, então em meio ao desespero, pegou o banco de madeira que sustentava a TV, e o jogou na janela, fazendo o vidro se estilhaçar, deixando um buraco perfeito para que ele escapasse.
E subindo o barranco, sem se importar se havia chamado a atenção, se havia causado um caos, se havia sido visto. apenas correu o máximo que conseguiu, sem rumo, sem ideias de para onde ir e desapareceu no meio da mata.
...
preparava seu lanche noturno. Como se não bastasse a exaustão do dia de trabalho, ainda havia tido que dar depoimento a polícia. havia sido visto pelos arredores do lugar. Todos estavam preocupados, assustados, e a polícia fazia muitas buscas pela região.
A própria cena do crime, a fuga de um foragido, mais uma vez era uma testemunha, mas queria esquecer aquilo.
Dona Leíse havia oferecido que ela dormisse no casarão naquela noite, mas ela negou, preferia ficar na casinha mesmo que o espaço fosse pouco, queria ter seu próprio espaço, por mais que estivesse com um buraco no vidro.
A cortina tapava aquilo esteticamente, mas não impedia o vento noturno que adentrava a casa por meio daquele buraco. sentiu frio nos braços, e decidiu vestir seu agasalho de linho.
De repente, enquanto pegava a peça no guarda-roupa, sentiu um calafrio e tremeu. E ao olhar para o lado, ameaçou dar um grito, mas rapidamente teve a boca tapada.
— Você ia me denunciar.
Os murmuros inaudíveis de Ana pareciam dizer "você é louco", mas era difícil discernir.
se debatia, relutando violentamente. Seus movimentos agressivos lhe fizeram cair deitada na cama, e por um instante ela conseguiu se livrar dos braços de , e ameaçou dar outro grito, mas fechou a boca ao vê-lo apontar o canivete em direção a sua barriga. Seus olhos encheram-se de lágrimas, já não conseguia distinguir o que sentia.
— Você é um psicopata. — Desabou em lágrimas, com a voz dolorosa. — Me deixa em paz, por favor, é só isso que eu te peço.
— Eu preciso que você me ouça...
— O que você quer de mim? — Ela soluçava em meio as lágrimas. — Você quer me matar? Então me mate!
— Ana...
Foi quando percebeu no que havia se tornado. Estava com os braços um de cada lado do corpo de , com um canivete na mão direita, apontado para a barriga dela, cercando-a no colchão como se fosse uma presa.
— O que você quer de mim? — Fungou, encarando-o com os olhos inundados.
respirou, se afastando, e se sentou na cama, tentando organizar os pensamentos.
— Desculpa...
não conseguiu sair da mesma posição, pois ainda recuperava a respiração e o batimento normal do coração.
— Eu não sei pra onde ir, eu não sei o que fazer...
Ela não disse nada, apenas enxugava as lágrimas.
— Mas eu não quero ir embora e não te ver nunca mais, eu quero te ver, eu quero ficar com você, me desculpa por ter te apontado a faca, eu não ia, eu só queria que você, eu não sei, eu, não faz sentido sem você, Ana, eu...
— Essa é a declaração mais psicopata que eu já ouvi em toda a minha vida. — Ela o interrompeu, sentando-se ao seu lado.
— Desculpa...
— Eu fico com isso. — Ligeira, ela tomou o canivete de suas mãos. — Por via das dúvidas. — Enxugou o rosto molhado.
— Você ia mesmo me denunciar?
— A justiça tem que ser feita. — Ela deu de ombros, ainda fungando e limpando o rosto.
— É... Eu entendo...
— Quer saber... — Soltou o ar, cansada. — Não quero mais problemas, se quiser viver fugindo, viva. — Ela suspirou. — Mas só me deixe em paz por favor, até agora não entendi porque você veio atrapalhar minha vida.
— Eu nem sabia que você trabalhava aqui.
— Sei. — Franziu a testa.
Ambos se puseram em silêncio, o lugar tão quieto que podiam ouvir a respiração um do outro.
— Por que você tem um passaporte?
— Andou mexendo nas minhas coisas??? — Ela abriu a boca, pasma.
— Pra onde vai viajar?
— Não é da sua conta, enxerido do caramba! — Ela o deu um pequeno empurrão.
Ele riu espontaneamente.
— Tá rindo do quê?
— Pra onde vai viajar? — Ele se ajeitou na cama, insistente.
— Pra bem longe de homens psicopatas que me ameaçam com um canivete.
— Você também me ameaçava com um canivete.
— É... Me pergunto como me deixei me tornar a vítima agora. — Pousou a mão na testa. — Eu era mais alerta sobre as coisas.
— Talvez tenha encontrado um lugar confortável, onde não precisa se preocupar muito. — Deu de ombros. — Você parece bem feliz aqui, te vi dançando hoje, você leva jeito.
Ela soltou um riso anasalado, tímido.
— Não devia estar espiando, deveria estar escondido. — Ela o empurrou com força, fazendo-o cair deitado na cama.
Ele riu, deitando com a cabeça entre as mãos.
— Por que veio trabalhar e morar em um pesque e pague?
ficou em silêncio por alguns segundos, dando poucas esperanças de que responderia aquela pergunta. Havia denunciado o tio no dia seguinte ao da fuga. O homem havia fugido, mas uma semana depois a polícia havia conseguido encontrá-lo em um casarão abandonado na estrada. Porém, mesmo com ele agora atrás da grades, Ana ainda tinha medo.
— Meu tio odeia pescar. — Disse em tom inexpressivo, inesperadamente.
talvez tivesse entendido aquela frase, ou não. Mas captou a atmosfera pesada daquele assunto, e não quis perguntar mais sobre aquilo.
— Preciso ir pra algum lugar bem longe e começar de novo, até conseguir dinheiro pra uma nova passagem. — Ele apertou os olhos, deixando o pensamento escapar.
ficou em silêncio novamente, não sabia o que dizer, e não sabia se queria saber para onde ele iria, ou o que faria da vida. Não entendia o porquê de não ter o expulsado de uma vez da casa. Os sentimentos, os pensamentos... Tudo estava um caos, ao mesmo tempo em que o queria ali, também não o queria, mas ele estava ali, deitado em sua cama de forma relaxada, como se fossem bons amigos há anos.
— Pra onde você vai? Talvez eu possa ir pro mesmo lugar que você.
— De jeito nenhum. — Se virou para ele.
— Você tem Pinterest? — Ele tirou o celular do bolso, com a tela completamente danificada.
— Quê? — Riu com escárnio.
— Eu posso dormir aqui hoje com você?
— A polícia tá te procurando em todo lugar, e eles vão vir aqui de novo amanhã. — Suspirou cansada. — E também vai vir um vidraceiro consertar aquele buraco, você não entende a gravidade das coisas, né?
— Mas se não fosse isso eu poderia dormir aqui com você? — Levantou as sobrancelhas.
— Não seja ingênuo, você não deveria nem estar aqui. — Soltou o ar. — Quando você sumiu naquela noite... Onde esteve esse tempo todo, ?
— Você acha que vou revelar pra alguém que ia me denunciar?
Ela riu fraco. E ambos mergulharam em um profundo silêncio por alguns instantes.
— Naquela noite... Você bem que podia ter deixado pelo menos um bilhete...
— O que você gostaria que eu escrevesse? — Bocejou.
— O que você gostaria de ler no meu lugar? — Rebateu.
— Talvez... Querida Ana, não preciso mais ir até a lua, porque encontrei em você a conexão do arco-íris...
Ela riu alto.
— Que coisa mais brega.
— Talvez eu devesse ter escrito que ia construir o arco-íris primeiro pra depois vir te buscar.
— É? Você não fez nenhum dos dois. — Riu com desdém. — Até veio me mendigar um lugar pra dormir.
— Você é má, nossa...
Ambos ficaram em silêncio novamente, ouvindo apenas o som emitido pelos grilos do lado de fora.
— Você conheceu alguém? — perguntou, sem saber se queria ouvir a resposta.
— Como assim?
— Você entendeu.
— Por que quer saber? — Franziu a testa.
— Você é muito complicada, caramba...
— Você conheceu alguém? — Refez a pergunta com um sorriso de canto.
— Ninguém como você.
Ana ficou em silêncio, suas bochechas queimaram por um momento.
— Não vai mesmo me dizer se conheceu alguém? — Ele insistiu.
— Ninguém que renda uma história interessante pra te contar.
— Entendi... — Ele umedeceu os lábios. Olhava para o teto, suas mãos começavam a ficar dormentes suportando a cabeça. — Você não acha uma coincidência estranha?
— O quê?
— Eu ter vindo parar justo aqui...
— Eu não acredito que você veio parar aqui por acaso, tenho certeza que você me perseguiu, monitorou, ou algo assim.
Ele riu.
— Eu tava correndo do Hyunjin e dei de cara com o portão desse lugar. — Ele sorriu. — Acho que Deus quis cruzar nossos caminhos de novo.
— Como você pode falar em Deus se aponta canivetes para as pessoas?
— Eu não tinha a intenção de matar, só me defender. — Ele riu. — Me diga pra onde vai ... Por favor...
— O mais longe possível de você.
— Mas que coooisa, você é muito difícil. — Choramingou como uma criança. — Eu queria ir com você, independente de onde fosse.
— Você pode sair da minha cama? E da minha casa?
— Eu tenho certeza que nossos caminhos vão se cruzar de novo. — Ele se sentou ao seu lado.
— Claro, porque estou destinada a ter um romance com um foragido da polícia, faz todo sentido. — Ironizou.
Ele riu.
— Vai embora, , preciso dormir, tenho muito trabalho amanhã. — Ela deu-lhe um pequeno impulso nas costas.
— Sabe o que eu tava pensando hoje quando eu te vi dançar?
— Aaah, fala sério. — Ela suspirou. — O quê?
— Eu queria dançar com você.
Ela riu com deboche, empurrando-o para se levantar. Um sorriso se formou nos lábios de . E o silêncio se fez novamente, deixando ambos pensativos.
— Você ainda tá magoada comigo? Por ter te deixado... Você sabe...
— Muito... Muito mesmo.
— Me desculpa... Me desculpa mesmo, eu...
— Eu já te disse que desculpas não vão mudar nada. — Ela respirou fundo. — Só vai embora, e... Me esquece, pelo menos eu sei que você não morreu, eu pensei muito sobre isso e fico feliz de ver que estava errada.
— Sério? Pensou que eu morri?
— Vai embora, anda, anda. — Ela o empurrava pela cozinha.
— Quando eu vou te ver de novo?
— Nunca mais? — Ela sorriu irônica.
— Eu sei que nossos caminhos vão se cruzar de novo. — Ele piscou.
— Ah, vai nessa...
Ela o empurrou até a janela, do buraco por onde ele havia entrado.
— Até nunca mais, .
— Não vai me dar uma despedida digna?
— O que quer dizer com isso? — Ela sabia bem, mas queria ouvir a resposta.
— An... De repente, talvez...
— O quê? — Ela estava fazendo aquilo propositadamente, deixando-o sem jeito.
— Sabe, agora a gente tá tendo a oportunidade de se despedir...
— E?
Sem conseguir se explicar em palavras, ele se aproximou, tirando a mão de Ana de suas costas, e colocando-a delicadamente em seu ombro. Esperava uma reposta por meio daquele gesto. sentiu um frio na barriga esquisito, o tipo que não sentia há um bom tempo. E a memória do sentimento, alterou algo dentro dela, tê-lo tão perto daquela forma, a afetou.
Inesperadamente, Ana não desviou o olhar, nem tirou-a dali, muito pelo contrário, envolveu o pescoço de com os dois braços. Naquele momento ela podia esquecer por alguns minutos do mundo ao redor, não fazia mal fingir só por aquele tempinho de que estava tudo bem, de que ninguém havia abandonado e magoado ninguém. Naquele momento queria aquilo, queria saber se a sensação era a mesma, e se seu corpo a gravaria novamente. E quando ele começou a aproximar o rosto, fazendo-a arrepiar o corpo todo, soube que poderia fantasiar que não estava fugindo da polícia e ela não havia o conhecido em um estacionamento, poderia fingir que eram um casal, comum, que se conheceu em um momento casual do dia a dia. Pelo menos por alguns minutos, poderiam fazer isso, porque não sabiam se se veriam de novo alguma outra vez na vida. Porque para aquele momento era o epílogo, mas para , era o fim de tudo.
Então, com o toque mais terno e singelo, a palma de acariciou a bochecha direita de , sutilmente mais cheia do que há alguns anos atrás, mas bonita, linda, perfeita. Seus dedos quentes, deixavam rastros de fogo pela pele da bochecha, fazendo-a sentir o estômago agitar, o corpo se alertava em sanar a saudade. E quando ele pousou uma mão firme e delicada em sua cintura, o sentimento foi tão intenso, que Ana conseguiu fixar seus olhos no rosto de por mais tempo, transpassando a mágoa e a tristeza, queria agora admirá-lo, gravando novamente cada detalhe em sua mente. Naquele instante notou com carinho os pequenos resquícios de um bigode feito de mal jeito, e as variações de cor rosada que pigmentavam sua boca, as pequenas sardas embaixo do nariz e os dentes grandes mostrados no sorriso genuíno que ele deu em seguida. Estava feliz. estava em seus braços, depois de tanto tempo, ele havia a encontrado de novo.
E então. colou seus lábios aos dela. E sentiu seu interior virar de cabeça para baixo.
Seus lábios eram como duas peças de quebra-cabeça, era como se tivessem nascido para estar juntos, porque a medida em que as línguas começavam a se encontrar, tudo dentro de seus corpos se agitava de forma extremamente eufórica, como se cada tecido, cada pedaço deles, se empolgasse, como se tivessem esperado ansiosamente por aquele momento. E a animação foi tamanha, que agarrou com força a nuca de , afundando os dedos em seus cabelos, fazendo-a tombar a cabeça para trás, entregando-se completamente aquele beijo, lento, suave, mas com um poder que lhe acendia um fogo por todo o corpo, deixando a pele quente e o estômago empolgado. Quantas saudades havia sentido, e quantas vezes jurou não fazer aquilo novamente. Quantas vezes ensaiou todos os insultos que direcionaria a ele, e agora, tudo havia ido por água abaixo. Estava entregue, e começava a pensar que deixa-lo dormir ali não seria uma má ideia. Mas não, tinha que se controlar, estava se deixando levar pela emoção de novo.
E a rapidez com que Ana desgrudou seus lábios fez se assustar.
— O que foi?
a encarava com os olhos brilhantes, como se tivesse recuperado a vitalidade. Ana respirou fundo. Porque a cor preta nos cabelos dele, deixavam-no ainda mais interessante. Constrastava-se com seus olhos radiantes, e o brilho do suor que molhava suas costeletas e alguns fios que caíam de forma charmosa e bagunçada em sua testa. Depois daqueles anos ele estava ainda mais bonito. E depois daquele beijo, ele havia se tornado ainda mais.
E ao fixar aqueles olhos castanhos que pareciam pedir de forma inocente que ela fizesse algo, Ana não pensou duas vezes em atendê-los, e puxou-o pela blusa, atacando seus lábios de forma frenética, desesperada. Já não se reconhecia mais, estava possuída pelo sentimento que aquele homem lhe causava. Não conseguia ser totalmente racional, não conseguia pensar tão perto dele, e teve ainda mais certeza disso quando ele agarrou sua cintura com as duas mãos, como se não fosse solta-la nunca mais, e por um instante, ela desejou que essa fosse a realidade. Só por um milésimo de segundo, quis ficar ali para sempre, presa a ele.
Com tanta rapidez, foi o responsável por acalmar aquele beijo, tornando-o mais lento e torturante, o que deixava as coisas mais difíceis, o que acendia um fogo quase impossível de apagar, não só para ela. Forçando seu corpo para trás, guiou-a daquela forma, até colar suas costas na parede. Começava a sentir inquietações aonde talvez não devesse, seu sentimento era tão terno, que parecia errado desejá-la de forma tão carnal como se sentia naquele momento. Se pudesse, beijaria-lhe a alma, seria mais que o suficiente, seria o necessário, beijaria cada extensão de sua alma, e estaria saciado. A alma invisível da enigmática , era a mais bonita e graciosa que ele já tinha visto.
E percebendo aonde poderiam chegar daquela forma, foi quem parou, colando sua testa a dela, deixando com que as respirações se soltassem e recuperassem seu ritmo natural aos poucos. Não era o momento, não queria aquilo daquela forma, porque seria sofrimento demais fazer aquilo e ir embora, adentra-la em tamanha intimidade e não poder acordar ao lado dela, não poder se casar com ela, era sofrimento demais, tornaria o ato vago demais, e não era aquilo que lhe transmitia. Queria ama-la por completo, além de um ato físico, queria construir o amor de todas as formas, físicas e abstratas, e infelizmente aquilo não era possível, não naquele momento da vida. E por isso ele apenas acariciou seu braço, e beijou-lhe o ombro, com todo o carinho do mundo, deixando-a soltar a respiração em seu rosto.
— Acho melhor você ir embora logo. — Ela ajeitou o cabelo bagunçado, se recompondo sem jeito. Ele riu.
— Ainda dá tempo de me dizer pra onde você vai com aquele passaporte. — Ele acariciou uma mecha de seu cabelo. — Quem sabe a gente não constrói uma vida juntos nesse lugar...
— Você sonha demais. — Ela franziu a testa. — Essa é uma despedida, eu só deixei você me beijar porque sei que não vou te ver de novo.
Ele riu.
E ambos se aprofundaram em um silêncio, uma quietude confortável, não estavam incomodados sem falar um com o outro. deixava acariciar seus cabelos, enquanto estava pensativa, encarando um ponto fixo atrás dele. Até que abriu a boca para fazer uma pergunta.
— Você encontrou sua conexão do arco-íris?
semiabriu a boca, não esperava por aquilo, mas sabia a resposta. A resposta estava ali, o encarando, com os olhos castanhos mais bonitos que já havia visto em toda a vida.
— Sim. — Foi a única coisa que disse.
Ela respirou fundo.
— Eu ainda tô tentando encontrar a minha. — Tirou a mão de de seus cabelos. — É por isso que eu vou viajar, preciso sair daqui.
baixou devagar as sobrancelhas, sem perceber. Se entristecia aos poucos ao ver Ana se desvencilhando de seu toque, ao dizer que não havia encontrado aquilo. Como assim sua conexão do arco-íris não era ele? Como assim ela não sentia aquilo?
— São... — Ela olhou o celular. — Quase meia noite, eu tenho que trabalhar amanhã.
— Tá bem...
Ela se afastou, posicionando-se de frente para o buraco da janela.
— Tenha uma boa vida. — Desejou fixando os olhos no vidro quebrado.
começava a sentir o coração apertar no peito, enquanto se aproximava da janela.
— Não posso dormir aqui, mesmo?
— Não deixe as coisas mais dolorosas, por favor. — disse sem expressão, com a garganta atada em um nó que subia aos poucos pelo pescoço.
— Tchau. — murmurou com a voz vacilante. Seus olhos começavam a marejar, assim como os de Ana.
deu um sorriso triste ao sentir a palma de preenchendo-lhe uma bochecha. E quando ele lhe beijou a testa, uma lágrima fugitiva deslizou, se desfazendo no meio dos dedos dele.
até tentou, mas ao ameaçar formar um sorriso, os cantos de sua boca foram para baixo, e as lágrimas começaram a inundar silenciosamente seu rosto.
E ao vê-lo fungar, Ana agarrou seu corpo, aprofundando-se no abraço mais sincero que poderia dar. Sentia seu corpo sendo apertado firme por , relutante em deixá-la.
— Eu vou te ver de novo. Um dia... — Ele fungou. — Eu sei... Mesmo que eu esteja com 80 anos em uma cadeira de balanço, eu vou te ver de novo.
— Você tem tanta esperança... Admiro isso. — Ela se desvencilhou devagar de . — Tchau.
— Tchau. — Ele respirou fundo, e se virou para passar pelo buraco no vidro.
— Tente não morrer antes dos 80 anos, eu também quero te ver de novo. — Ela brincou. riu, enxugando uma lágrima.
— Boa noite, .
— Boa noite, .
E ele passou pela janela e subiu o barranco, sem olhar para trás, porque se olhasse, não conseguiria continuar. Ana o observou desaparecer na escuridão da noite, e se virou para agradecer pelo alimento e comer o lanche noturno que a esperava.
Naquela noite, fez tudo que sempre fez. Agradeceu pelo dia, beijou seu pingente de Nossa Senhora, e escovou os dentes para ir se deitar. Mas quando chegou ao quarto, um pensamento passou por sua mente. Sentiu a necessidade de checar algo importante.
abriu a gaveta da mesa de cabeceira, e pegou seu celular. Abriu o site da companhia aérea e sorriu ao ver sua passagem com o pagamento confirmado. Não era um sonho, ela iria sair dali. Em 7 meses iria para o país que sempre quis conhecer desde criança, o país que sua falecida avó havia morado e sempre havia falado sobre como era bom e belo, para viver e trabalhar. A Espanha.
...
— Há quanto tempo tu não dá um corte? — O barbeiro perguntou para .
— Alguns meses.
— Alguns? — Ele deu uma risadinha.
— Hmmm, talvez uns 9 meses... — Ele ajeitou a franja. — Mas se puder cortar só a franja e dar só uma aparada no comprimento seria ótimo.
— Cê é rockeiro, meu? — A pergunta veio de um cliente mais velho ao fundo, sentado no sofá, lendo um jornal.
— Não. — riu simpático. — Por quê?
— Meu filho tá com o cabelo batendo na nuca assim também. Ele gosta de umas coisas assim, ele diiiz que é estilo, mas o moleque tá parecendo uma bicha.
Todos na barbearia riram. balançou a cabeça em gesto negativo.
E o barbeiro fez seu trabalho, deixando os cabelos de da exata maneira em que ele queria, algo raro de acontecer. Era uma pena que não poderia voltar mais até aquele estabelecimento, porque em algumas horas, estaria fora de território paulista, ou melhor, fora de território brasileiro.
Se despediu de todos, e traçou seu caminho até o aeroporto a pé. A mochila nas costas não estava muito pesada, porque durante o período no interior de São Paulo não havia acumulado muitos bens. Não havia gasto dinheiro nem mesmo para consertar a tela quebrada do celular. Estava guardando dinheiro para a passagem, o aluguel e para ajudar sua família. Ter contato com Felícia havia se tornado uma das suas maiores alegrias, ter notícias de seus pais e da irmã todos os dias era algo maravilhoso. Por mais que eles tivessem de ter se mudado para uma pequena roça, bem afastada da cidade para se proteger de Hyunjin e seus aliados, vivendo escondidos, mesmo assim a vida parecia finalmente bem.
Durante muito tempo, após fugir de Minas Gerais, havia encontrado seu refúgio no interior de São Paulo. Trabalhando em uma oficina mecânica, fazendo o mínimo de amizades possível, sempre tentando passar despercebido. E em pouco tempo por lá, já havia providenciado a nova identidade.
— Diego Santiago? — O atendente analisava seu documento.
— Sim. — Balançou a cabeça em confirmação.
E ao entrar no avião, a pessoa em quem mais conseguia pensar era Minho. Não o via desde que foi para o Brasil há quase 1 ano atrás, a não ser por vídeo chamada, sentia falta de vê-lo em sua rotina.
Depois, enquanto o avião sobrevoava o mar, pensou em . Por muito tempo, quando chegou em São Paulo abatido, havia pensado com arrependimento em como poderia ter insistido mais em conseguir seu número ou algum contato. Mas depois, já pensava que não fazer isso havia sido a coisa certa. Era apaixonado por Ana, mas ela já havia ameaçado o denunciar uma vez, era arriscado, pelo menos naquele contexto, naquela época, era arriscado. E ele sabia, de alguma forma, que iria encontrá-la de novo, não sabia quando ou como, mas aquela noite não havia sido o fim, ele sabia disso, e esperaria aquele momento, sem pressa ou ansiedade. Pensar em já não era mais motivo de dias de choro e coração apertado, pensar nela era calmaria, tranquilidade, com a certeza de que ela sempre seria a única, mesmo que não ficassem juntos no final. Ter se despedido dela naquela noite, havia aliviado anos de dor e culpa, era como o ato final de um herói, que finalmente poderia descansar em paz.
E ao pisar no aeroporto de Madrid, sorriu. Porque a mensagem de sua irmã que aparecia na tela, dizia que haviam conseguido arrecadar o dinheiro para uma das três passagens.
Reencontrar Minho foi uma alegria imensa, e ver que ele estava bem mesmo depois do término de um relacionamento conturbado com uma italiana, era ainda melhor. Eles estavam se sentindo bem e felizes como há muito tempo não se sentiam.
Bastou 1 mês para que conseguisse um emprego em um restaurante simples, localizado de frente para uma casa de shows. Não ganhava muito, mas era grato por conseguir pagar o aluguel de um pequeno apartamento.
Poder escutar claramente os shows que aconteciam dentro da casa de eventos, era a pior e melhor parte de trabalhar naquele restaurante, porque nem sempre o artista era de seu gosto, e alguns tinham equipamentos de som barulhentos demais.
Mas em um sábado quente de verão, se animou em saber que uma cantora brasileira se apresentaria no local de eventos. Nunca havia escutado a tal da Duda Beat, mas lhe parecia promissor. E de fato, acabou gostando do que conseguiu escutar.
Naquela tarde, seu chefe se preocupou bastante, porque estava tão quente e úmido, que começou a chover, o que significava que após o show, o restaurante teria menos clientes do que de costume, talvez nenhum.
Mas todos se surpreenderam, quando perceberam que a chuva seria passageira, ao se depararem com um grande arco-íris bonito e colorido, se formando atrás da casa de shows. E em pouco tempo, o show já terminava, a chuva se tornara apenas chuviscos finos, e o restaurante foi preenchido, em sua maioria por brasileiros.
Era de se admirar como tudo havia ficado bem em tão pouco tempo. O estabelecimento estava lotado, deixando e os outros dois garçons um tanto tontos, andando para lá e para cá entregando trocos, pedidos e cardápios.
O sol começava a colorir o céu de azul novamente, afastando as nuvens e o cinza, deixando ainda o belo arco-íris que presenteava a visão de todos. Algumas pessoas estavam paradas na rua, apenas para apreciar o fenômeno. ficou tão admirado, que se distraiu por um instante, fazendo o mesmo, porque arco-íris além de bonitos, o lembravam de .
E estava tão distraído que já começava a ver coisas. O tamanho de suas pupilas aumentou tanto, que teve de piscar três vezes para afastar aquela alucinação. Ele estava enxergando ela. Do outro lado da rua, teve a visão de Ana atravessando, em direção ao restaurante. Seu cabelo estava castanho, um pouco ondulado, batendo quase na cintura. Ela usava um vestido azul, bem solto, que se contrastava com sua pele. piscou de novo, mas a maldita visão não desaparecia, não conseguia parar de enxergar aquilo.
De repente, ela estava passando pela porta de entrada do lugar. Pelo tamanho maior das bochechas, havia engordado mais, e estava linda, como sempre, mas naquela visão, parecia ainda mais bela. Ana se sentou em uma mesa vazia de duas cadeiras, e tirou o celular da bolsa. Começou a mecher no aparelho, como se estivesse mandando mensagem para alguém.
Até que um de seus colegas de trabalho chamou-lhe a atenção, perguntando porque ele estava ali parado, e não havia ido atender a moça. Sem jeito, gaguejando, tentou dizer algo, mas foi impedido por um impulso dado em suas costas, que o fez andar até a mesa, ainda tentando entender se não estava tendo uma alucinação.
— Oi.
A palavra escapou de seus lábios em português, fazendo com que ela desse um pequeno pulo de susto e guardasse o celular. E quando a garota se virou para olhar para o garçom que a atendia, parou. Até mesmo seus olhos pararam, não piscava, não se movia, o que o preocupou pensando que ela havia tido um piripaque. começava a pensar que de fato fosse algum tipo de visão, e que alguém poderia ter colocado algum alucinógeno em sua água.
— ?
ficou parado como um bobo, a encarando fixamente, sem conseguir dizer algo. Qual era a probabilidade de ela estar realmente ali?
— A...
— Ah, você conseguiu o lugar! — Um rapaz jovem, de cabelos castanhos, se sentou na cadeira vazia. — Que ótimo! Hoje tá bem cheio aqui, né?
balançou a cabeça de forma travada, sem conseguir desviar o olhar da garota.
— Ei, vai ficar secando minha noiva, na minha cara? Sério isso?
— Desculpa. — colocou o cardápio na mesa e virou o olhar para a porta.
— Deixa de ser idiota. — A garota abriu o cardápio, dando um suspiro cansado.
— Esse tarado não parava de olhar pra você, o que foi? — Ele riu.
batucava os dedos na coxa, nervoso, desesperado para sair dali. estava ali, era verdade, pois mais alucinógeno que aquilo parecesse. E ela estava... Noiva? Caramba...
— Ei, tarado traz a melhor cerveja que tiver aí, tu fala português né?
apenas balançou a cabeça em gesto positivo, e saiu dali.
— Para com essa palhaçada. — Ana estalou a língua como se falasse com um adolescente. — Ele não é tarado.
— Ah, como você sabe disso? Conhece ele por acaso? — Ele riu.
— Sim.
— Hmmm, como?
— Não é da sua conta. — Ela fechou o cardápio. — Vai comer o quê?
— Vou ficar só na cerveja, ignorante.
se aproximava, trazendo a bebida.
— Sem gracinha. — Ela murmurou.
— Já... Decidiram? — deixou a bebida na mesa, com o olhar vago, sem graça.
— Vou querer esse número 15. — Ela apontou a refeição no cardápio.
— Certo. — Ele anotou rapidamente e saiu rápido dali, quase correndo.
— O cara ficou com medo de mim. — Ele riu. — Tá maluco.
— Gustavo...
— Tá, tá, parei. — Ele tomou um gole da cerveja.
— Eu vou no banheiro. — Ela se levantou.
— Tá... — Ele franziu a testa, estranhando a ação rápida de .
Quando deixou o pedido na cozinha, passou pela porta dos fundos, dizendo aos colegas que não estava se sentindo muito bem e precisava pegar um ar. Sentou-se no banco do lado de fora, e respirou fundo.
Contemplava a rua movimentada, cheia de carros passando pela rodovia. Tentava desviar o pensamento, mas sua mente insistente voltava aquele assunto. estava ali, em Madrid, e estava noiva, noiva... como iria esquecer aquilo? Como iria voltar a trabalhar normalmente com aquela informação?
— ?
Sentiu uma concentração de energia no peito ao ouvir aquela voz. E ao olhar para cima, arregalou os olhos. Era ela.
— Ana?
— Não me chame de Ana. — Ela brincou.
— Desculpa. — Ele soltou o ar, não havia captado o tom brincalhão de .
— É... Então veio pra Madrid... — Ela indicou o espaço vazio no banco. — Posso me sentar?
— Uhum...
— Que coincidência... — Ela sorriu, se sentando. — A gente se cruzou mesmo.
— É...
— Tudo bem? — Ela estreitou os olhos.
— Ah... Tá, tá... — Ele comprimiu os lábios, estava cabisbaixo.
Ambos ficaram em silêncio. queria conversar, mas uma barreira de bloqueio parecia envoltar .
— Tem uma coisa que tenho que te devolver... — Ela abriu sua bolsa.
— O quê?
Então direcionou os olhos para a palma aberta de , onde ela expunha um objeto mais que familiar: o canivete.
— Você fica carregando isso? — Ele sorriu surpreso, pegando o objeto.
— Desde que você foi embora.
— Por que? — Ele estava curioso.
— Ué, não foi você quem disse uma vez que a gente ia se encontrar de novo?
Ele riu baixinho.
— Então era pra cá que você ia vir... — coçou o nariz.
— Sim... — Ela sorriu. —Você sabia?
—Não, não fazia ideia.
—Nunca imaginei que fosse te encontrar aqui, nossa... — Ela se ajeitou no banco. — Como veio parar aqui?
—Acho que eu não deveria dizer pra alguém que já quis me denunciar mais de uma vez. —Brincou.
Ela riu.
—Por que a Espanha? — tinha a voz desanimada, como se quisesse conversar mas não tivesse energia para isso.
—Sempre quis vir pra cá desde criança...
— E pelo visto você teve sorte... Conheceu um cara... Vai se casar...
E ao ouvir aquilo, não pôde evitar soltar uma pequena risada espontânea. respirou fundo.
— , vo...
— Eu ainda gosto de você. — As palavras saíram por impulso, interrompendo-a.
Ele se virou para Ana, que tinha a boca semiaberta. Encarava-a fixamente, com um olhar triste.
— Não adianta... — Deu um suspiro cansado. — Vai ser você pra sempre, sempre... Eu, as vezes, acho que é até amor, não sei... Eu nunca me senti dessa forma.
— Feli...
— Vou respeitar sua decisão de casar com aquele babaca. — Ele a interrompeu. — Mas nunca vou esquecer você, nunca! Eu vou gostar de você pra sempre e é isso! Não precisa dizer nada, eu só precisava falar isso, não dava mais pra guardar...
— ... — Um sorriso genuíno se formou nos lábios dela.
— Caramba, pare de falar meu nome assim... — Ele embrenhou a mão nos cabelos como se fosse arrancá-los. — Só deixa as coisas mais difíceis...
— ... ... — Provocou-o, com um sorriso.
— Que merda, ... — Ela riu.
— Calma. — Disse entre risos. — Eu não vou me casar com aquele cara. — Ela segurou seu queixo, fazendo-o erguer o rosto para ela.
— Hm?
— Ele estava só zoando, é meu amigo. — Ela respirou fundo antes de continuar. — Bom, é uma amizade meio desgastada...
abriu a boca para falar algo, mas desistiu, seus olhos começaram a brilhar. Ana sorriu ao perceber sua face tornando-se iluminada aos poucos.
— Eu sempre quis vir pra cá, e eu achei que a Espanha resolveria todos os meus problemas. Mas não foi bem assim...
Ele não conseguia dizer nada, apenas a observava, pensando no quanto estava feliz em vê-la de novo, em como ela era linda tanto no exterior quanto no interior. O quanto gostava dela...
— Deixa pra lá... Não quero te encher com minhas coisas. Só quero dizer que fico muito feliz em poder te ver de novo, muito mesmo, e saber que você está bem...
— Eu também... Mas nunca imaginei que fosse te ver aqui. — Ele sorriu.
— Eu também não. — Ana não podia conter o sorriso no canto dos lábios. — Mas aconteceu.
deixou escapar uma pequena risada de alegria, era tão bom vê-la de novo...
Ambos ficaram em silêncio por um instante. estava diferente, mais radiante, aberta, a mágoa por ter sido deixada por naquela noite no estacionamento não a preenchia mais, porque havia o visto de novo há meses atrás, e percebido o quanto gostava dele, não importava o que acontecesse, e que ela poderia perdoá-lo, aos pouquinhos, até a ferida sarar por completo. também havia mudado, com o coração mais decidido e tranquilo, aceitando com paz na alma que sempre seria única para ele, não importava com quem ela decidisse passar o resto da vida, sempre gostaria dela. E naquele instante, naquele silêncio, ambos estavam com a cabeça cheia de pensamentos, frases, a surpresa de se encontrarem de forma tão inesperada... Haviam vivido tantas coisas após sua última despedida, haviam refletido sobre tanta coisa durante esse período, queriam dizer tanto um ao outro...
— Eu percebi uma coisa, nesse tempo... — tomou coragem para deixar seu pensamento sair em palavras. — Na verdade, eu pensei...
Ela depositou as mãos sobre seu colo, tímida. a ouvia atentamente.
— Eu me toquei que... Como você falou... — Ela riu, nervosa. — Não adianta... Eu acho, que... Não me casaria com alguém que não fosse você, não tem como.
Os dois riram. Estavam tímidos, se estranhando, mas acima de tudo, felizes, alegres por se encontrarem novamente e por conseguirem finalmente falar sobre todos os seus sentimentos da forma mais crua e singela.
— Não estou dizendo que a gente vai se casar ou algo assim, quer dizer... É só um exemplo, sabe, é...
— Eu quero me casar com você. — disse de forma atropelada, interrompendo-a, fazendo os dois rirem.
— Aquela coisa de conexão do arco-íris... — Ela escondeu o rosto entre as mãos por alguns segundos. — Nossa isso é tão adolescente... — Os dois riram. — Mas... Eu acho que... Eu fiquei procurando sabe... Só que... Eu não tinha percebido que já tinha encontrado há muito tempo.
— E qual é a sua conexão do arco-íris?
— Você. — sentiu um frio na barriga com aquela resposta. — Sempre foi você.
O rosto de se iluminou por completo, ele estava radiante, brilhante, com um sorriso de orelha a orelha.
— A minha também é você.
Ana sorriu de alegria, sentiu a boa calmaria no peito, e um frio prazeroso na barriga. Dedilhou cada sarda no rosto de , e beijou sua bochecha com ternura, fazendo-o sorrir automaticamente.
— Você quer casar comigo?
riu com a pergunta repentina.
— Não parece cedo pra isso?
— Isso quer dizer que você tem dúvidas em relação à resposta?
— Calma. — Ela riu.
— Eu não quero perder você.
— Não vai. — Ela selou seus lábios, em um beijo curto e carinhoso.
— Qual é o seu Pinterest? — Ele tirou o celular do bolso.
— Como assim? — Ela riu. — Eu nem tenho Pinterest.
— Impossível. — Abriu a boca incrédulo.
— Você usa Instagram? Ou prefere que eu te mande cartas? — Ela beijou sua testa.
— Eu nunca recebi cartas, isso seria bem romântico. — Disse. Ela riu.
E ele a beijou, um beijo sincero, delicado, e singelo, que selava seus corações e seus destinos.
Mas repentinamente, pararam, ao ouvir alguém limpando a garganta.
olhou para a porta, e se deparou com seu chefe, de pé, parado, com uma expressão furiosa lhe cobrindo a face.
— Desculpa. — sussurrou. Ele sorriu.
Naquele dia, foi demitido. Mas ninguém nunca havia visto alguém demitido sorrir tanto. sorria andando pelas ruas, voltando para seu apartamento. sorriu a semana inteira, até chegar a sexta-feira que encontraria no parque à noite. Sem dinheiro para jantares chiques, fariam um piquenique, o que era mais que suficiente para eles.
E naquela noite, lhe entregou um poema em carta. lhe deu um anel de chocolate, preso ao bilhete "você quer ser minha namorada?".
— Você é tão brega.
Foi o que ela disse antes de beija-lo no gramado, sob a luz das estrelas.
5 meses depois, o apartamento pequeno de já havia se tornado a segunda casa de Ana.
1 ano e meio depois eles estavam na cozinha de um apartamento um pouco maior, só deles, arrumando uma cesta de doces caseiros.
— A que horas eles vem mesmo? — Ela perguntou.
— Às cinco, querida. — E deixou-lhe um beijo na testa.
Às quatro, eles estavam em um trem para Barcelona, fazendo juras de amor.
Às seis, todos estavam em um local isolado da praia, reunidos, e Felícia estava fotografando o irmão, colocando uma aliança de verdade no dedo de .
— Beije a noiva!
O pai de gritou. Foi o que fez, com todo amor do mundo. E mãe, irmã, pai, Minho, noivo e noiva aplaudiram.
distribuiu os doces junto de . Felícia tratou de revelar cada foto no dia seguinte, até mesmo as que deram errado.
2 anos depois, eles tinham uma doceria em Madrid. Não pense em um lugar chique e caro, extremamente sofisticado. Era um lugar simples, que lhes dava sustento, e isso era mais que o suficiente. O doce principal, coberto de glacê colorido e recheado de brigadeiro e leite condensado, se chamaria arco-íris.
— Que clichê.
Ana disse ao ver colocando a plaquinha impressa com o nome, de frente para a guloseima.
— Sim, mas é gostoso.
Ela riu.
4 anos depois, após várias viagens baratas de trem em trem pela Europa, estava grávida.
Há quem diga que a menininha era a cara de Ana, já outros, que era uma cópia de . Eu devo dizer que era a mistura simétrica e perfeita dos dois.
— Ela vai se chamar Íris. — disse ao colocá-la no berço.
— Você não cansa de ser clichê? — Ana riu.
Quando Íris completou 7 anos, era uma garotinha curiosa e amava perguntar sobre tudo. E foi daquela forma que aprendeu mais sobre a história dos pais.
— Mamãe, o que acontece depois que a gente encontra a nossa conexão do arco-íris?
— Não é definitivo, amor, não existe só uma, quando você encontra uma, não vai parar mais de procurar outras. — Ana acariciou-lhe os cabelos. — Eu aprendi com o tempo, que existem várias conexões do arco-íris pra diferentes fases das nossas vidas.
— É verdade. — apareceu de repente no quarto, estava ouvindo atrás da porta, com um sorriso no rosto.
— E qual é a conexão do arco-íris de vocês agora?
sorriu e olhou para , porque ambos já sabiam a resposta.
— Você.
respondeu e beijou a testa da filha.
Porém, dessa vez, ele parecia mesmo decidido, pois pela primeira vez, havia conseguido chegar perto do balcão, onde compraria a passagem de volta. Só chegar perto. Pois bastou que o atendente fizesse contato visual, para que ele desse meia volta e voltasse a andar pelo aeroporto. E foi quando pensou bem: havia viajado infinitas horas, apenas para estar ali por poucas horas e ver sua família. Voltar era burrice.
Então, subiu a escada rolante em disparada, como se estivesse em uma escada comum, e acelerou seus passos em direção a saída. Havia perdido muito tempo com aqueles pensamentos, e sabia que em hipótese alguma poderia ficar naquela cidade por mais horas do que havia planejado. Sua vida estaria em jogo.
— Você é o Arthur?
Uma voz feminina esganiçada fez com que ele parasse de repente.
— Arthur? Arthur Renê?
— Aaah... Sou, sou eu mesmo. — ajeitou os óculos escuros. Quatro anos havia sido o suficiente para se acostumar com aquele nome.
— Companhia Ares, Voô 215, assento 37, classe econômica?
— Sim.
— Primeiro te peço perdão em nome da companhia, mas acabamos de notar que houve um equívoco. — A mulher de terno parecia um pouco tensa.
— Um equívoco? — Ergueu as sobrancelhas, esperando pelo pior.
— Sua mochila é idêntica a de uma passageira — Ela ajeitou o coque baixo. — trocamos as etiquetas devido a um erro de comunicação.
Ele balançou a cabeça em gesto negativo.
— Eu conheço minha mochila, seria impossível não notar a diferença, moça. — Batucava uma mão no quadril. Já havia perdido muito tempo, não podia perder mais. — Deve ter sido engano.
— O senhor chegou a abrir?
— Vocês devem ter se confundido. — Ele se virou. Queria ir logo para a saída. Tinha plena certeza de que
a mochila em suas costas era sua.
— Senhor, por favor. Precisamos checar, preciso te levar para a sala. — Seu tom de voz foi educado.
— Não tenho tempo, preciso ir.
— Senhor! — Ela gritou, fazendo todos ao redor olharem para ela. Mas ele a ignorou.
continuava andando para a saída. Que falta de profissionalismo... Aquela mochila era sua, o peso era o mesmo e tinha até o velho chaveiro de lembrança de praia no fecho do bolso inferior. Obviamente estavam enganados.
— Samuel, por favor, traga a passageira aqui. — A mulher falou tensa com um walkie-talkie.
... Naquele instante, ao ouvir aquele nome, ele não parou de andar. Mas sua mente parou.
— Sim, em direção a primeira saída. — Ela olhava aflita para , que já estava de frente para a porta de vidro. — Venham rápido, não estou conseguindo convencê-lo, ele está com pressa. Senhor!
continuava a ignorando, mesmo que seu coração lhe dissesse para ficar. Não podia ser quem ele pensava. Impossível.
— A passageira está vindo, por favor aguarde um instante. — Ele sentiu o toque da mulher em seus ombros.
Aquilo o fez se virar, e encontrar a funcionária com uma expressão desesperada.
— Será bem rápido, prometo ao senhor, apenas precisamos checar.
— Essa mochila é minha, moça. — Ele respirou fundo, sem paciência.
— Perdão senhor, mas faz parte do nosso trabalho, é rápido.
— Qual é o nome da passageira mesmo? — Ele queria saber se não estava ouvindo coisas.
— , senhor. — Ela sorriu fraco, percebendo que ele havia finalmente parado. — Tivemos sorte de ela ter abrido a mochila aqui, nem teríamos tido a informação do erro se ela não tivesse nos contatado.
— ... — Murmurou mais para si mesmo.
— Sim, Ana... Ah! Que rápido! — A funcionária correu e sentiu sua voz se afastando. — Venha senhor! Ela está aqui!
Ele respirou fundo e coçou os cabelos pretos. Aquilo não era impossível, mas imprevisível, se fosse mesmo ela, seria coincidência demais... Como poderia ser ela? Afinal, existem milhares de s por aí, mesmo que não seja um nome tão popular. Mas algo em impedia que ele se virasse, ele estava com medo de que fosse ela, e só conseguia pensar que era ela.
— Senhor?
— Caramba, que mulher chata. — Sussurrou esfregando a testa.
colocou a mão para trás, buscando sentir se seu chaveiro velho estava ali. E quando seus dedos identificaram o formato retangular, confirmou, que sim, era sua mochila. Aquilo lhe fez respirar fundo de novo, cheio de raiva. Apesar de saber que a mochila era sua, já havia perdido tempo com aquela mulher, não custava perder mais alguns minutos para resolver aquele mal entendido. Não custava perder mais alguns minutos para descobrir se era a , aquela .
se virou de uma só vez. E naquele instante, teve a sensação de que seu coração havia parado de bater. Havia uma garota de cabelos e , de costas, abrindo uma mochila de forma afobada. O frio interno agitou seu estômago. começou a se aproximar, devagar, como se tivesse todo o tempo do mundo. E quando chegou ao lado do outro funcionário do aeroporto, e tirou seus óculos escuros, seu coração ainda estava agitado.
Ela estava de calças jeans e uma blusa lilás de mangas curtas. Usava brincos de flor, e seu cabelo parecia estar ainda mais , deixando sua nuca completamente exposta.
— Ana? — A pergunta escapou inconsciente.
E quando a garota virou-se para ele, revelando seu rosto desesperado, sentiu uma imensa dor no peito. Era o mesmo sentimento horrível que havia sentido na noite em que a deixou naquele estacionamento, era a mesma sensação de que havia perdido algo para sempre. Porque aquela garota de maçãs bem marcadas e olhos azulados, não era ela. Não era aquela .
— Pode abrir a mochila, senhor? — O funcionário baixinho o tirou do transe.
— Claro... — expirou o ar de forma pesada, e tirou a mochila das costas, entregando-a para o funcionário.
Talvez nunca mais fosse mesmo vê-la, talvez havia mesmo a perdido para sempre.
Colocou as mãos nos bolsos da calça, frustrado, enquanto o homem abria sua mochila.
E quando a bolsa foi aberta, arregalou os olhos, ao ver o que havia aparecido a vista de todos. A primeira coisa, por cima de todas as roupas, era uma calcinha rosa de renda. Definitivamente não era de , ou era? Será que alguém havia colocado ali? Mas quem faria isso?
— Ah, meu Deus, que vergonha... — A voz tímida da falsa era aguda e suave. — Me desculpem, que vexame.
— Não se preocupe senhorita. — A mulher riu baixinho. — Pode checar se tudo aqui é seu?
E então a garota se abaixou para checar toda a bolsa, conferindo outras peças íntimas, produtos de higiene, cabelo e maquiagem. olhava aquilo, pasmo, se não houvesse parado ele teria ido embora dali com uma mochila cheia de lingeries e coisas de mulher. Como aquilo era possível? Ele tinha certeza de que aquela mochila era sua.
— Pode ver se essa é mesmo a sua, senhor? — A funcionária o entregou a outra mochila, já aberta.
estava embasbacado, mas conferiu a bolsa. E lá estavam, todas as suas coisas, uma por uma, sem falta.
— Meu Deus...
— Certo, então? — O funcionário perguntou.
apenas balançou a cabeça, ainda em choque.
— Já foi a Ubatuba? — perguntou simpática para ele.
— Faz bastante tempo.
— É, acho que percebi. — Ela sorriu brincalhona, fechando sua mochila.
A falsa mostrou o chaveiro que havia no fecho do bolso inferior. Era idêntico ao que ele tinha, porém bem mais conservado. então olhou para seu chaveiro, e viu mesmo que o objeto estava bem descuidado em comparação ao dela. Eles tinham a mesma mochila e o mesmo chaveiro. Que coincidência.
— Ah, eu tenho que ir rápido. — Ele colocou a mochila nas costas, sem graça. — Obrigado, e... É... Tchau.
Os dois funcionários e a garota agradeceram ao mesmo tempo, enquanto ele já caminhava em direção a saída. E andando rápido, e sem olhar para trás, passou pela porta.
Antes de ir para a Espanha, Minho sempre dizia que não conhecia o inferno, mas sabia que era um lugar terrível, onde ele não gostaria de estar, e que talvez o bairro da Prata fosse algo parecido.
concordava, sempre concordou. E aquela concordância se fazia ainda mais forte, enquanto olhava, do vidro de um táxi de madrugada, a paisagem do bairro onde foi criado.
Aquele taxista parecia ser um pouco lunático, mas ainda era melhor do que andar a pé ali. Mesmo depois daqueles anos o bairro da Prata continuava o mesmo: sujo, pobre e esquecido. Aquilo era muito triste, parecia que depois de sua fuga o lugar havia ficado ainda mais precário. Aquela hora, a movimentação agitada de um cachorro tentando abrir um saco de lixo no passeio, parecia ser a única evidência de que ainda existiam pessoas morando naquele lugar. Por mais que soubesse que muita gente ainda morava ali, porque não havia outra condição, incluindo sua família. E era para onde aquele taxista senhor de idade estava o levando, a velha casinha, onde certo dia passou pela porta pela última vez, e não avisou que seria a última.
— Puta que pariu!
não soube distinguir por aquela frase, se a voz de sua irmã havia alterado devido ao tempo ou ao susto que levou ao vê-lo ali, parado na porta. Tocar a campainha de alguém de madrugada de fato não era algo muito comum.
Ela estava em choque, parada na porta, encarando-o, sem conseguir dizer nada. Até que sentiu a necessidade de saber se aquilo não era uma alucinação.
— ? — Ela tapou a boca. Seus olhos se encheram de lágrimas instantaneamente, tal como os do irmão.
— Posso entrar? — Lágrimas deslizaram por suas bochechas.
A garota fez sinal positivo com a cabeça, enxugando as lágrimas, dando espaço para que o irmão entrasse. Quando fechou a porta, sentiu uma dor no peito, ao notar o que havia perdido. Ela havia crescido muito, já não batia mais na sua barriga, e estava a poucos centímetros de alcançar o seu tamanho. Sua irmã já tinha 19 anos, e ele havia perdido a oportunidade de acompanhar toda a sua adolescência.
— Não consigo acreditar... — Ela agarrou seu corpo de imediato.
chorou junto a ela, deixando suas lágrimas molharem as mechas lisas de Felícia, enquanto a garota molhava sua blusa. E agarrado a seu corpo, notava que a sensação era totalmente diferente. Sua irmã havia emagrecido muito, tanto que ele podia sentir os ossos das costas. Perguntava-se se aquilo havia sido de forma saudável, e se não, se ele havia tido culpa. Era um choro de dor e liberdade ao mesmo tempo, a dor de ter ficado tanto tempo sem ao menos ouvir a voz da irmã, e a liberdade de finalmente poder vê-la, sentir seu cheiro e abraçá-la. E sentindo as lágrimas em sua blusa, sentia-se extremamente culpado, ele era a causa daquelas lágrimas, ele havia a feito chorar.
— ? — A voz de sua mãe não havia mudado, nem um agudo ou grave sequer.
E no instante em que ouviu aquela voz alta, as lágrimas desceram com ainda mais intensidade.
— Mãe! — Ele correu para abraçá-la, em meio a soluços.
Sua mãe também havia emagrecido, e no instante em que também sentiu seus ossos das costas, foi quando percebeu que ele podia ser a causa daquilo. Ele era a causa daquilo.
Ela interrompeu o abraço para olhar para seu rosto, tocou suas sardas, os ombros e o pescoço, certificando-se de que não era uma alucinação, era seu filho, , em carne e osso. Naquele momento, ele percebeu o rosto da mãe, e sentiu-se ainda mais culpado. A mulher que antes tinha o rosto rechonchudo agora dispunha de uma face magra e quase esquelética. Suas olheiras estavam fundas, como se não tivesse dormido um dia sequer durante todos esses anos.
A mãe de tinha 56 anos, mas o assustador, é que ela aparentava ser 10 anos mais velha.
— Me desculpa. — Sua voz saiu dolorosa, espremida na garganta, junto as lágrimas que molhavam sua face. Ele era a causa daquilo.
— Meu filhinho... — Ela soluçou e o abraçou novamente. — Você tá vivo! Obrigada Deus! — Disse entre soluços.
E quando seu pai apareceu na porta, com o rosto já inundado de lágrimas, não disse nada, apenas correu para abraçar o filho junto a esposa.
— Por onde você andou, moleque? — Nunca havia ouvido seu pai dizer aquilo em tom de choro, era a primeira vez.
E naquela madrugada, podia ter certeza: nunca havia chorado tanto na vida. E nunca havia se sentido tão feliz em estar no Bairro da Prata.
...
Explicar tudo talvez fosse mais fácil do que ter de dizer que não ficaria para o almoço. Iria embora antes mesmo de terminar o café, sem data prévia para voltar, sem a certeza de que iria voltar. E mesmo deixando-os abalados com todo o relato, lhes deu a noticia. Não rejeitaram ou proíbiram, porque Felícia contou que roubaram os celulares da família na semana seguinte ao acontecimento, os ameaçaram de morte inúmeras vezes, com uma arma na cabeça da mãe, perguntando onde estava. Bandidos, provavelmente aliados de Hyunjin, haviam invadido a casa, não só a deles, como a da família de Minho. Sim, Hyunjin estava vivo, e queria vingança, estava sedento por vingança.
— Estavam vigiando a casa. — Seu pai informou enquanto fechava as janelas, não só para tapar o sol da manhã, mas também para proteger . — Me lembro de vê-los sempre passando pela rua, olhando aqui pra dentro, tanto de dia quanto de noite.
— Fizeram isso por quase um ano inteiro. — Felícia ajeitou os cabelos. — Mas depois acho que se cansaram. De qualquer forma foi um inferno, mas o pior foi não saber onde você estava, tentávamos nos convencer o tempo todo de que você não estava morto.
— Me desculpa...
fungou, se desculpava pela milésima vez naquela manhã. Sentia tanta culpa, que começava a cogitar se matar, ou ir até Hyunjin e se entregar à morte. Sentia-se a pior pessoa do planeta, como podia ter sido tão egoísta? Como podia não ter pensando o quanto sua família iria sofrer? Sequer pensou que poderiam morrer nas mãos dos bandidos em troca de vingança a ele... Um egoísta, inútil, insensível que havia abandonado a família por 4 anos sem sequer dar notícias. Sentia-se um humano maligno, o pior na face da terra. Deveria ser castigado, não merecia viver. começava a pensar que não era digno de viver, começava a pensar na morte.
— O importante é que está aqui, tá bem? — Seu pai deu dois tapinhas em seu ombro. — Já está feito, aconteceu, não tem como voltar atrás. Claro que rejeito totalmente sua escolha de ter entrado nessa vida, mas como um pai ainda te amo, e te desejo o melhor.
— Que horas é seu voô, mesmo? — Sua mãe perguntou.
sentia aquela culpa corroendo seu ser, o sentimento de que devia muito a eles, precisava arranjar um jeito de se redimir. E a morte parecia a saída.
Mas não, a sua morte acabaria com eles por completo, seria horrivelmente pior. Precisava de outra coisa, algo que mudasse suas vidas... Até que teve uma ideia.
— Venham comigo.
— Hein? — Felícia se ajeitou no sofá.
— Pra Espanha.
— Não, meu filho, não. — Seu pai deixou a xícara de café na mesa de centro. — Sei que você não pode ficar aqui, e me dói muito, mas não podemos ir com você, é loucura.
— Não temos nem passaporte, e também não temos como pagar um.
— Eu dou conta disso, consigo arranjar hoje mesmo.
— Hoje? É rápido assim? — Felícia perguntou.
— Eu vou arranjar de outra forma...
— De jeito nenhum. — Seu pai respondeu. — Não vamos nos meter nessas coisas ilegais, você escolheu isso, filho, nós não.
— Então querem ficar aqui pelo resto da vida? Mal tendo dinheiro pra comer? — suspirou. — O que vocês tem a perder aqui? Me digam?
— Ir pra Espanha não vai nos deixar ricos! — Sua mãe se levantou do sofá. — Está maluco, nem teríamos como pagar a passagem, só uma deve ser mais caro do que o aluguel dessa casa!
— Mãe... Você pode começar a vender comida pra arrecadar, sei lá você cozinha tão bem, por que não usa isso a seu favor?
— Eu costuro o dia todo pra conseguir comprar comida, acha que tenho tempo pra pensar nisso?
— Mamãe, se quiser eu posso te ajudar com isso. — Felícia começava a querer mudar de ideia. — Talvez não seja uma má ideia.
— Me ajudar como? Você também é babá o dia todo!
— Nós somos três, talvez possamos dar um jeito. — Ela suspirou. — Como falou, o que temos a perder aqui? Nada!
— E você ao menos vive bem na Espanha? Tem um emprego bom, uma casa? — Seu pai perguntou.
— Bom... Eu sou garçom. — Colocou as mãos nos bolsos. — Não ganha muito, mas... Eu consigo fazer pelo menos 1 refeição todos os dias, e moro em uma quitinet bem pequena.
— E vivendo assim, você acha que a Espanha vai resolver nossos problemas? — Seu pai bufou. — Já tenho 54 anos, não posso me ficar arriscando assim.
— É uma chance de melhorar, pai, por favor! — Ele gesticulou com as mãos. — E vamos poder ficar juntos! Eu sinto falta de ter vocês perto, muita falta!
— Devia ter pensado nisso antes de andar com más companhias e atirar em um traficante. — O pai se levantou, e saiu do cômodo.
respirou fundo. Estava cansado. Mesmo com Minho na Espanha, sentia-se solitário, angustiado, com saudade das broncas dos pais e as brigas com a irmã. Havia passado todos aqueles anos sem deixar de pensar neles por um dia sequer, e encontrá-los agora em uma situação ainda pior, era ainda mais doloroso. Queria que eles saíssem dali, por mais que ir embora para outro país não garantisse a solução de seus problemas, era uma chance.
— Sabe filho... Eu sinto tanto a sua falta que dói. — Sua mãe pôs fim ao silêncio. — Durante esse tempo que você não deu notícias, eu sentia uma dor tão grande, que achei que iria morrer de tristeza.
— Desculpa, mãe... Eu...
— Eu posso pensar nisso.
Um pequeno sorriso de esperança se formou nos lábios de Felícia.
— Realmente, não temos nada a perder. — Sua mãe continuou. — Posso pensar nisso... Mas não hoje.
— Mas, mãe!
— Não tem como arranjar todo o dinheiro das passagens hoje, não adianta ter pressa. — Ela suspirou. — Há fotos suas e de Minho por toda parte, você tem que ir embora. — Pousou a mão no ombro do filho. — Fico extremamente feliz em ver você, e dói ter que me despedir, mas pelo menos dessa vez posso me despedir, isso já acalma meu coração. Você estar vivo me traz a paz que eu não tinha há muito tempo.
fungou, com os olhos cheios de lágrimas, porque não podia fazer nada a respeito. Não podia levar a família junto a ele, teria de voltar para aquela vida vazia, sem poder ter contato com eles. Bom, mas pensando bem, talvez, eles pudessem ter contato, talvez houvesse algum jeito.
— Vocês conseguiram comprar celulares novos? — Perguntou.
— Só Felícia, eu e seu pai não. — Ela recolheu a xícara deixada na mesa de centro. — As coisas estão meio difíceis.
— Qual é o seu número? — Felícia estava pronta para digitar.
— Não, acho melhor não. — deixou a irmã com uma expressão confusa. — Precisamos de outra forma de nos comunicar. — Ele coçava os cabelos, tentando pensar em algo. — Você ainda tem Pinterest?
— Pinterest? — Ela riu fraco. — Sério?
— Eu não vou te seguir, só mandar mensagens. — Ele pegou seu celular.
— Hm, tá bom, então.
Os dois ditaram seus usuários com rapidez, porque precisava ir embora antes das 10. Teve de se despedir dos três com um abraço rápido e doloroso, com a promessa de que um dia, pudessem viver bem e juntos.
E com lágrimas inundando os olhos e muitas incertezas na mente, deu seu último aceno e entrou no táxi de volta para o aeroporto.
Logo, não demorou perceber que o taxista ao volante não era o mesmo que havia o trazido. Era um homem mais jovem, que aparentava ter sua idade.
— Aconteceu alguma coisa com aquele senhor? — Perguntou.
— Teve um problema pessoal. — O motorista respondeu, de forma fria.
— Ah, sim.
E novamente o silêncio se fez, deixando um pouco desconfortável, enquanto passavam por aquela estrada vazia apesar do horário.
— Você é táxi há muito tempo? — Decidiu perguntar.
— Não muito. — O motorista de cabelos pretos se mantia sério, sem tirar os olhos do volante. — Você trabalha com o quê?
— Sou garçom.
Um silêncio ensurdecedor se fez novamente. E naquele silêncio, começava a estranhar a estrada deserta. Como podia não haver ninguém ali naquele horário? Estava tudo vazio, nem um outro carro a vista...
Até que passaram rapidamente por uma placa azul, que conseguiu ler bem: "Santos da Mata 30 Km". Estavam no caminho errado, estavam indo para um distrito pequeno da região, não para o aeroporto. O motorista havia errado o caminho.
— Acho que você pegou o caminho errado, não? — Imediatamente se aquietou, ao ver o carro virar a esquerda, avançando por uma estrada de terra. Para onde aquele cara estava indo?
— Não, estamos no caminho certo. — Respondeu com a voz inexpressiva.
— Essa estrada não dá no aeroporto.
— É um atalho mais fácil.
— Tem certeza? Não vai sujar seu carro? — tossiu com a poeira que começava a invadir o ar. — Como isso aqui vai dar no aeroporto?
— Pare de perguntar, está me desconcentrando.
— Pare o carro. — começava a se sentir nervoso.
— Como assim?
— Vou descer aqui. — Manteve a voz firme. Era nítido que aquele motorista nem sabia para onde estava indo. — Para.
— Qual o problema senhor? Estou dizendo que é um atalho, se acalme.
sentiu um arrepio desagradável e tirou o cinto de segurança.
— Senhor você precisa usar o cinto.
— Eu vou descer, para. — Já estava impaciente, sua voz havia se tornado mais grave e séria.
— Senhor, por favor se acalme, estamos no caminho certo.
— Não! Não estam...
teve de interromper a frase quando olhou para trás para conferir a estrada, e se deparou com Hyunjin saindo do porta-malas, apontando-o uma arma. E seu instinto ligeiro de se abaixar salvou-o da bala, que atravessou o vidro da frente, fazendo com que alguns pedaços caíssem e cortassem-lhe o rosto.
O motorista não parou o carro. Aquilo estava planejado.
E foi naquele instante que tentou desesperadamente abrir a porta, mas não conseguiu, o maldito havia a trancado. E quando Hyunjin pulou para o banco de trás e disparou novamente, se desviou por um fio, pulando em cima do motorista, que perdeu o controle do carro, conduzindo-os para um matagal.
Completamente tomado pelo desespero, pulou a janela do motorista, quase sendo atingido novamente por outro disparo. E sem perder tempo, começou a correr, já sendo perseguido por Hyunjin.
A fuga afobada de fez com que ele adentrasse o matagal, correndo tão rápido que quase podia flutuar a cada salto. O som do sapato pisoteando as folhas não vinha apenas dele, porque Hyunjin estava atrás dele, correndo como uma onça prestes a capturar sua presa.
De repente, ouviu um disparo e no mesmo segundo sentiu algo rápido e pesado passar raspando seu cotovelo. Ardeu, mas não o atingiu.
Aquele susto fez com que ele corresse ainda mais rápido, chegando a seu limite, pois já arfava ao extremo, quase perdendo o fôlego. Sua corrida o fez chegar a uma estrada de terra novamente, por onde avançava sem medo de ser atingido por um carro. Sentia o suor frio deslizando pela face quente, a boca semiaberta buscando a respiração que já falhava e as pernas doloridas sem parar de fugir, corria contra a morte.
De repente, sentiu uma pancada no rosto, e o corpo chocando-se contra algo duro. Deparava-se com um portão de madeira rústico. No mesmo instante, ouviu Hyunjin lhe xingando em um grito raivoso, não tão distante. não pensou, não tinha tempo, por isso, em um movimento ágil, escalou o portão e passou o corpo pelo local vago acima das madeiras pontudas. Foi ao chão, onde teve a queda amortecida pela grama do pequeno jardim de entrada.
manteve-se ali, deitado, olhando para o céu azul límpido, buscando o máximo de ar possível para respirar, recuperando o fôlego, com o coração ainda acelerado e o corpo pulsando em adrenalina.
E ele poderia ter se acalmado, se não tivesse ouvido a voz de Hyunjin o xingando, perto demais, como se soubesse onde ele estivesse. Mas, de repente, os palavrões começaram a ficar mais distantes, como se ele estivesse andando pela estrada, procurando por seu alvo.
suspirou, não sabia se de alívio ou de cansaço, e se levantou, com a intenção de se esconder ali por um tempo. Aquilo era invasão de propriedade, mas pensando bem, ele já estava condenado a prisão e a morte, invadir uma casa talvez fosse o menor delito que iria cometer na vida, isso se conseguisse ficar vivo por mais tempo.
se surpreendeu ao ficar de pé e virar-se para frente. Havia um arco de pedras, nele uma placa bem grande com os dizeres "bem vindo". Não vendo ninguém ali, resolveu caminhar pelo local. Estava ao ar livre, em um espaço extenso, com vários lagos espalhados pelo local, e quiosques próximos à árvores. Era um pesque e pague. Mas não havia ninguém ali, estava tudo vazio, o estabelecimento estava claramente fechado. Óbvio que estava fechado, ele havia pulado o portão fechado.
estava tomado pela sede, ainda tentando voltar ao ritmo normal da respiração. Caminhou até o bar fechado, buscando inutilmente encontrar água. Tudo ali estava fechado, e até mesmo ao passar pela larga piscina na área de esportes, notou a lona que cobria toda sua extensão. Mas tudo estava impecável, extremamente limpo para estar abandonado, talvez apenas fosse cedo demais para abrir.
Aproveitando a falta de movimentação, tomou liberdade de procurar pelo banheiro e não foi difícil encontrá-lo. Por sorte, era próximo a um bebedouro, que parecia estar esperando ansioso por ele, quase como se tivesse vida. E sentir a água gelada molhando sua língua e descendo pela garganta, por um instante pareceu a sensação mais aliviante e prazerosa do mundo. colocava a boca ali com desespero, sedento, molhando sua blusa.
Quando levantou a cabeça para enxugar com o braço o queixo molhado, deu um pulo para trás. Havia um cartaz ali. E seu rosto estava nele.
"Procurado: Lee ", "Denuncie por este número ou pelo whatsapp", "Anonimato garantido".
— Ah não, deviam ter arrumado uma foto melhor! Que coisa horrível!
encarava o cartaz com uma expressão de desgosto. Seu cabelo na foto estava loiro, a antiga franja estava lá, os dentes da frente sutilmente apareciam no espaço entre os lábios, seus olhos estavam parecendo duas jabuticabas. Era a foto da sua antiga identidade, onde haviam pego aquilo? Talvez fosse de algum banco do governo. De qualquer forma, parecia mesmo um criminoso naquilo. Mas ele era um, não era? As vezes era difícil se lembrar desse fato.
— Que foto horrenda, eu tô feio pra caramba!
— Moço? Nós ainda não estamos abertos. — Pulou para trás ao ouvir uma voz feminina. — Como entrou aqui?
não conseguiu se mover. Engoliu em seco, não sabia o que fazer. E aquela voz? Não era estranha, era muito familiar aliás, e isso lhe deixou ainda mais imóvel.
Bastou um segundo para que ouvisse a figura feminina emitir um som incrédulo, porque fixava o olhar no cartaz, e era o procurado que estava ali colado na parede acima do bebedouro, no estabelecimento onde estava aquela mulher, parada ali de frente para ele. Não podia fazer nada além de correr, era a única saída.
Mas, no instante em que se virou para correr pra valer, seu corpo paralisou. estava mesmo imóvel, não conseguia reagir, porque seus olhos se fixaram naquela moça. Aquela moça de cabelos loiros longos, que levava a mão a boca, com o olhar incrédulo, transmitindo um certo medo. Podia estar com as bochechas cheias, os braços sutilmente mais grossos e a barriga marcada na blusa de elastano, mas ele sabia. Não teve dúvidas. Era ela. Caramba. Era ela. .
— Você... — Ele tentou se aproximar.
— Fica parado. — Ela o impediu
fazendo um gesto com as mãos, trêmulas.
— É você mesmo? — Ele sorriu se aproximando, sentindo uma grande vontade de abraçá-la e beijá-la.
— Parado, eu vou chamar a polícia!
foi interrompido por uma lâmina, pontuda, apontada para seu peito a certa distância. Sentiu vontade de chorar e rir, de alegria e emoção. lhe apontava o canivete, o seu canivete. não conseguia esconder o sorriso em seus lábios.
— Pode me revistar. — Ele ergueu os braços.
— Não sou policial pra revistar vagabundo, pilantra!
Ele riu, mas seu sorriso logo se desfez, ao vê-la tirar o celular do bolso do short e digitar algo.
— O que você tá fazendo?
Ela não respondeu, e colocou o celular no ouvido. Quando percebeu o que ela estava prestes a fazer, correu desesperado e tomou o celular de suas mãos.
— Devolve! — Ela pulou para tentar alcançá-lo, mas era mais alto, e segurava o celular o mais alto que conseguia. — , me dá essa merda!
— Hm, então você lembra meu nome.
— Me dá logo! — Ela pulou.
— Vai mesmo me denunciar?
— Posso te matar antes disso se você quiser. — Ela apontou o canivete para sua barriga.
— Não tem coragem de fazer isso.
não precisou de uma resposta em palavras para se arrepender de ter dito aquela frase, porque no mesmo instante sentiu a lâmina afiada entrar e sair da pele de seu braço, causando uma ardência insuportável e um grande derramamento de sangue, que fez com que ele soltasse o celular no chão para tentar estancar a ferida.
— Maluca! Você é maluca! — Ele fazia caretas de dor.
— Você mentiu pra mim, seu filho da puta!
Ela pegou o celular do chão, limpando a poeira da tela na barra da blusa, e começou a digitar novamente, olhando fixamente para a agonia de , como se tivesse prazer em vê-lo gemendo de dor.
— Você foi embora. — Ela olhou para o canivete em suas mãos, a lâmina pingando sangue. — Me deixou lá sozinha. — O telefone chamava, a delegacia ainda não havia atendido. — E depois? Ficou famoso na cidade! Foi você que atirou naquele cara! — Ela o empurrou com força. — Você mentiu pra mim! Você me enganou! Seu pilantra! Filho da puta! — Ela socou seu peito.
— Calma. — murmurou em um gemido doloroso, tapando a ferida no braço.
— Você sumiu! Você não se entregou porra nenhuma! — Desferiu um soco mais forte em seu peito.
— Ana, por favor, fica calma!
— Não me chame de Ana! — Ela desligou a chamada e discou de novo. — Você me deixou sozinha! Você mentiu pra mim!
— Eu sei, eu sei! — Ele deu um suspiro cansado. — Me desculpa, você não tem ideia do quanto foi difícil! Eu não tinha escolha!
— É... — Ela comprimiu os lábios, colando o telefone ao ouvido. — E agora você também não tem escolha, sinto muito.
respirou fundo, tentando sanar a dor, a tensão e o medo de ser encontrado. Se encostou a parede, ao lado de seu cartaz e apoiou o braço no bebedouro, deixando o curto fio de água molhar a ferida ardente.
— Seu idiota! As pessoas vão beber água aí!
— An?
— Tire o braço daí! Merda!
Em um gesto rápido, ela segurou o braço de com brutalidade e o tirou dali. Mas 1 segundo de seu descuido foi suficiente para que a agarrasse, tentando com todas as forças tirar o celular de suas mãos.
— Me solta! — Ela se debatia, protegendo o aparelho a todo custo.
— Então me dê isso!
— Não!
— Ana?! É você? — Uma voz feminina se aproximava.
— Dona Leíse! Soc... — Sua boca foi tapada por , fazendo-a emitir sons inaudíveis.
— Ana? Onde está você querida?! — A voz se aproximava.
continuava relutando, tentando se soltar. As mãos de não eram muito grandes, mas estavam sufocando-na, tapando o ar que deveria sair pela boca.
Então, de repente, a dona da voz apareceu, uma mulher de meia idade de cabelos tingidos de castanho, com raízes grisalhas. A figura arregalou os olhos de imediato, ao parar ali e se deparar com sua funcionária, lutando contra os braços do criminoso que estava sendo procurado há quatro anos. A mulher ficou paralisada por um instante, e quando ameaçou abrir a boca para pedir socorro, , em um movimento desesperado e irracional, arrancou o canivete da mão esquerda de , e posicionou a ponta afiada em direção ao pescoço de Ana.
— Se gritar, eu corto o pescoço dela. — Suas mãos tremiam, quase deixando o objeto cortante cair.
— ?! — Com a boca livre, Ana começava a temer aquele ato. Ele faria mesmo aquilo com ela?
A mulher mais velha imediatamente fechou a boca, mas quando seus olhos se arregalaram e seu corpo bambeou e foi ao chão, gritou, porque Leíse havia desmaiado de terror.
— Dona Leíse!! — O desespero lhe deu forças para conseguir se desvencilhar de de forma brutal e correr para socorrer a mulher.
— Nossa, desculpa, eu não sabia que ela era sensível assi...
— Que merda é essa ?! Você ia cortar minha garganta?! — checava a respiração de Leíse.
— Eu, nã...
— O que tá fazendo aqui ainda? Não vai aproveitar essa brecha pra fugir? — Ana tentava acordar a mulher.
— Eu, eu levo ela... — Sem jeito, tentou se aproximar da situação.
— , vai embora!
— Me desculpa, eu, me deixa ajudar... — Ele se abaixou ao lado dela.
estava em desespero, tentando fazer com que Leíse demonstrasse consciência. Mas, de repente, seus olhos quase saltaram para fora, ao ouvir o som da caminhonete, adentrando o portão do pesque e pague. Ela conhecia o som do veículo do marido de Leíse muito bem.
— Corre. — Sua voz saiu inexpressiva.
— O quê? — franziu a testa.
— Entra lá. — Apontando para uma pequena casinha não muito distante, começava a respirar de forma agitada.
— An? — De olhos estreitos, ainda tentava entender. O som do veículo começava a se aproximar cada vez mais.
— Entra lá logo, e se esconde, caramba! — Gritou de forma tão tensa que obedeceu de imediato, mesmo sem entender.
tentava conversar com Leíse, mas ela estava mesmo desmaiada, e demonstrando, graças a Deus, vitalidade pelo pulso. Sequer viu se havia entrado ou não na casa, estava mais preocupada em sentir o pulso da mulher. Quando ouviu o freio da caminhonete, soube que o homem estava descendo do veículo às pressas.
— A pressão caiu? — Ele a tomava nos braços, não se importando com as mãos sujas de terra.
— Sim. — Ana respondeu, indo atrás dele.
Ambos foram para o casarão do lugar, entrando pela varanda da frente. não estava tão acostumada com os desmaios de dona Leíse, porque até o momento, haviam acontecido com raridade. Mas tomou todos os cuidados que já sabia bem, e em alguns minutos, a mulher estava acordada novamente, desorientada, mas se recuperando aos poucos.
— Esse deve ter sido um susto dos grandes, hein? — O marido de Leíse tinha uma voz alta, o que o fazia parecer que estava brigando muitas das vezes em que falava.
— Ademar... — A mulher mais velha murmurou, pousando as mãos na cabeça. já esperava o que estava por vir.
— Que foi, mulher?
— O bandido, ele tá aqui! — Ela tocou seu ombro, se levantando da cama.
— Como é? — Ademar baixou as sobrancelhas. sentia o coração pulsar mais rápido no peito.
— O procurado, o perigoso! — Ela apertou o ombro do marido, com os olhos arregalados. — Ele é perigoso, ia matar a Ana!
A respiração de tornou-se agitada e entrecortada, ao ver o patrão, em silêncio, abrir a gaveta do quarto e tirar dali algo que ela já conhecia. O facão que tinha muitas utilidades para ele naquela fazenda.
Ana pousou a mão no peito para tentar aquietar o coração, um gesto inútil, pois se pudesse calcular as batidas do órgão quando a lâmina brilhou ao ser erguida próxima a janela, o resultado seria bem mais do que mil por hora.
— Onde ele estava? — Ademar perguntou em um tom assustador, como um assassino de filme de terror.
— Perto do banheiro. — Leíse denunciou.
E Ademar saiu do quarto de cabeça erguida, disposto a atingir seu alvo.
começava a suar, com o corpo quente de nervosismo, pois sabia do que ele era capaz.
— Eu vou arrumar as mesas, já estamos quase na hora de abrir. — Ela se direcionou para a porta.
— Não querida, fique aqui, aquele homem é perigoso, quase matou você! Deixe o Adê resolver isso primeiro!
— Com certeza ele já fugiu, dona Leíse. — Ela disse antes de passar pela porta. — Não podemos deixar isso nos atrapalhar, daqui a pouco o cantor chega, hoje vamos lotar.
— Oh meu pai... Tome cuidado lá fora. — Leíse pousou a mão na cabeça, tensa, ao ver sair do quarto e fechar a porta.
E naquele instante, ela correu, sentindo o coração na boca, até chegar do lado de fora e abrir a porta de sua casinha, a casa do caseiro antigo, arquitetada apenas com um quarto, um banheiro e uma mini cozinha.
E respirou fundo ao entrar e trancar a porta, quando se deparou com parado no meio do minúsculo corredor, com os olhos assustados, segurando uma ameixa.
— Eu tava com fome, descul...
Ele ameaçou guardar a fruta, mas foi interrompido quando o empurrou para dentro de seu quarto e fechou as cortinas.
— Eu não sei que porcaria você está fazendo aqui, não sei como me encontrou e nem porquê...
— Eu n...
— Mas você vai ter que ficar aqui. — Ela o interrompeu. — Até o fim do meu expediente, porque daqui a pouco eu vou ter clientes pra atender, e se você for visto vai causar um escândalo.
— Eu não vou ficar enfiado aqui, como você vive aqui dentro? É abafado pra cacete, e o ventilador não funciona. — Ele apontou para o objeto.
Então, deu um tapa forte e agressivo no ventilador, e no mesmo instante, as hélices começaram a girar a toda velocidade. abriu a boca em "o", impressionado.
— Tem um cara lá fora, querendo te matar.
— Sei bem disso, já viu o meu rosto? — Ele mostrou com o indicador os cortes nas bochechas, causados pelos cacos de vidro.
— Não sei quem fez isso na sua cara. — Ela se aproximou, fechando sua face em uma expressão séria, sem um pingo de humor. — Mas o que eu sei, é que tem um fazendeiro lá fora, extremamente bravo em saber que tem um criminoso na propriedade dele, e se ele te encontrar, vai cortar o seu pescoço sem dó e jogar sua cabeça pra alimentar os peixes.
— Caramba, que horror, ele já fez isso com alguém?
— ... — Ela respirou fundo. — Sendo sincera, eu não tô nem aí se ele cortar você ao meio, eu só quero evitar transtorno pro lugar! Vamos abrir daqui a pouco, hoje tem forró, vai ter muita gente! Não sei que merda você veio fazer aqui, mas agora vai ter que ficar aí até o último cliente ir embora!
apoiou um braço na parede. Fixou o olhar nas cortinas, pensativo, ponderando sobre o que faria, até chegar a uma conclusão.
— Já perdi o voô mesmo. — Ele suspirou. — É melhor do que perder a vida, não é?
— ?! — A voz repentina de seu patrão veio junto às batidas agressivas na porta, fazendo os dois paralisarem. — Você tá aí?!!
— Sim! Só um minuto! — Ela empurrou os ombros de para baixo. — Se esconde. — Sussurrou tensa, indicando a cama. — Anda logo. — se abaixou com rapidez, se espremendo ali embaixo.
fez um coque nos cabelos, e colocou um avental, logo correndo para a porta. E quando a abriu, se deparou com seu patrão, com um olhar ameaçador e vingativo. O facão brilhava com o sol escaldante.
— Viu o bandido por aí?
— Não vi não. — Ana engoliu em seco.
— Eu ainda não olhei aqui dentro. — Ele ajeitou a camisa suada. — Deixa eu dar uma checada porque ele é bom de esconderijo.
Quando ele ameaçou passar pela porta, Ana o empurrou levemente em reflexo, agindo rápido sem pensar. A ação fez com que o homem franzisse as sobrancelhas, parecendo ter um ponto de interrogação na face.
— Não tem ninguém aqui. — Falou de forma atropelada, nervosa. — Eu já olhei, e... Nossa, desculpa, tenho que ir, deixei o fogo ligado. — Ela ameaçou fechar a porta devagar, até que o homem desse dois passos para trás, ainda confuso. E fechou a porta, de forma um pouco afobada.
Esperou alguns segundos ali atrás da porta, até ouvir os passos do patrão, indicando que ele havia saído dali. E no mesmo momento correu para o quarto.
— ... — Sua respiração estava acelerada.
Quando ouviu seu nome ser chamado, saiu de debaixo da cama como um ser vindo de um buraco negro e se colocou de pé, de frente para ela.
— Hm, parece que eu trouxe um pouco de adrenalina pra sua vida. — Ele sorriu.
— Você vai ficar aqui até eu voltar.
— Sei que talvez não seja o melhor momento, mas sério... — Ele soltou um riso anasalado, sorridente. — É tão bom te ver de novo...
— Pois eu não acho nem um pouco bom te ver de novo. — Ela cruzou os braços. — Agora fica quieto aí. — Colocou uma tiara para prender os fios rebeldes no topo da cabeça. — E faça silêncio.
— E depois que você voltar, o que vai acontecer?
— Você vai ir embora, sumir.
— Nãão, agora que estou aqui porque não podemos passar um tempo conversando? A gente ficou tanto tempo sem se ver!
— Claro que não.
— Por que não? Eu tô aqui, a gente se reencontrou! Foi o destino! Isso não é incrível?
— Eu chamaria de azar...
— An?
— Eu não sei se você entendeu... Mas isso não é um reencontro emocionante. — Ana apoiou um braço na parede.
— Hm? Como assim, você... Você n...
— Eu mal consigo olhar pro seu rosto. — Ela respirou fundo, o peito cheio de mágoa. — Você mentiu pra mim, me abandonou, sumiu, e doeu pra caramba!
— Mas eu não tive escol...
— E aí quando eu finalmente consigo estar em uma fase boa da minha vida, você volta do nada, e causa esse caos!
— Ana...
— Como você me achou? — Ela baixou as sobrancelhas, a mágoa armazenada por anos, começava a inundá-la. — Me seguiu? Me rastreou? Porque está aqui?
— Foi por acaso, eu não sabia que você trabalhava aqui, eu não fazia ideia, de verdade!
— E além disso o portão não estava aberto, isso quer dizer que você pulou, isso é invasão! — Ela pousou a mão na testa para tentar organizar o turbilhão de sentimentos. — Você não sente nem um pouco de peso na consciência pelo que faz? Caramba, eu sei que era o traficante, mas você atirou em uma pessoa, ! Isso é muito grave! Você nunca pensou nisso?
— Eu não quero me lembrar disso. — Sua face ficou séria. Não gostava daquela lembrança, não se orgulhava do que havia feito, e havia o atingido em um ponto delicado. — E ele não morreu.
— Não importa, você ainda é um criminoso!
— Eu sei, e quero me desvencilhar disso, quero deixar isso no passado.
— E vai limpar sua ficha invadindo propriedades? Colocando um canivete em volta do pescoço das pessoas?
— Tudo isso foi por impulso, eu estava fugindo e estava assustado! — levantou o tom de voz, sua face começava a tomar fúria.
— Assustado? Você atirou em um cara, você não é indefeso! — A revolta de podia ser sentida em cada sílaba que pronunciava pela raiva e a mágoa.
— E é desse cara que eu estava fugindo!
— Você vai passar a vida inteira fugindo? A vida inteira mesmo? Como você pode viver assim? Isso não é vida!
— Eu tô jurado de morte, caramba! Ou eu fujo ou eu morro, porra!
Sua voz ecoou nas paredes, saindo mais alta e agressiva do que havia imaginado. Aquilo fez o encarar assustada, em silêncio por alguns instantes, com medo.
— Isso não é problema meu. — Ela murmurou, com os olhos carregados, retendo o máximo possível as lágrimas que ameaçavam cair. — São consequências, uma hora ou outra todo mundo tem que lidar com elas.
observava seu rosto com o sentimento de culpa. Naquele instante, encarando os olhos de , enxergou além dos olhos castanhos que ele tanto admirava. conseguiu enxergar a dor, a mágoa, o sentimento de abandono e rejeição, os sentimentos que Ana vinha tentando dar um fim desde aquela noite no estacionamento. Ele não tinha uma escolha que não fosse ser dolorosa naquela noite, mas tinha culpa, tinha culpa por ter metido Ana em sua vida. Fixar seus olhos marejados, quase inundados de lágrimas, doía, porque ele era a causa daquilo, ele havia feito chorar, e perceber isso naquele instante, doía muito no peito.
— Me desculpa... Me desculpa por tudo...
O silêncio de Ana respondia mais do que o suficiente. Aquelas palavras não iriam adiantar, não iriam curar quatro anos de noites mal dormidas, pensando a todo instante onde aquele homem que ela havia conhecido no estacionamento poderia estar. Por um breve período, ela havia conseguido superar aos poucos o sentimento intenso que havia cultivado. Tudo estava bem, tão bem... E de repente, ele estava ali de novo, com os olhos mais maduros e os cabelos tingidos de preto, mas com o mesmo espírito jovem e o mesmo efeito magnético que lhe causava arrepios e um frio na barriga. Mesmo depois de ter sido enganada, ainda sentia, muito, e vê-lo na sua frente, em carne e osso, só confirmava o fato de que não iria esquecê-lo, mas estava magoada demais para abraçá-lo, beijá-lo e dizer que havia pensado nele todos os dias. Queria ter forças, mas estava quebrada, não conseguia fixar os olhos nele por muito tempo, pois um misto de mágoa, angústia e desejo tomavam conta disso. Ao mesmo tempo em que queria chorar em seu peito dizendo o quanto sentiu saudades, queria lhe encher de tapas e socos, queria beijá-lo, e ao mesmo tempo que ele desaparecesse, que ele caísse de cabeça em uma colmeia cheia de abelhas. Queria uma chance de ama-lo, mesmo com o coração quebrado, mas não valeria a pena, porque ele havia mentido, havia a enganado e sumido, e isso era o suficiente para que sua mágoa fosse maior do que o sentimento romântico. Ana havia sido destruída por ele, e perceber que ainda gostava dele mesmo depois de tudo e tanto tempo, estava a destruindo ainda mais.
— Só... Vá pra bem longe de mim, assim como você já fez uma vez. — Sua voz saiu quase embargada. — Vai ser melhor do que se desculpar.
respirou fundo, com os olhos carregados de lágrimas.
— Tá. — E se pôs a andar em direção a porta do quarto.
E Ana, ainda segurando o choro, o observou saír dali sem olhar para trás. Até se lembrar de algo, e correr desesperadamente atrás dele, antes que chegasse a porta de saída da casinha. E sem pensar muito, segurou o braço de , o puxando para trás.
O gesto fez com que ele se arrepiasse com seu toque e parasse, se virando para ela com um olhar confuso.
— Não, não agora, eu preciso trabalhar. — Ela ajeitou o avental. — Se você passar por essa porta agora, vai causar um caos.
— Quando eu posso ir? — Suspirou cansado, desejando mentalmente que ela dissesse algo do tipo "não vá, fique comigo pra sempre."
— Depois que eu chegar...
De repente, teve um pressentimento estranho, junto a um pensamento que lhe gerou certa dúvida.
— Você, não vai ligar pra polícia, né?
— Não. — Ela rapidamente girou a maçaneta e saiu, fechando a porta, deixando ali dentro. — Agora não. — Murmurou esperando que ele não tivesse escutado.
já havia se deixado levar pela paixão naquela noite e ignorado o fato de que estava se envolvendo com um criminoso e ajudando-o a se acobertar. Mas dessa vez, ela estava lúcida, apesar do turbilhão de sentimentos, queria que sofresse consequências por seus atos. Em partes, talvez, fosse mais um sentimento de vingança, como se pudesse aplicá-lo um castigo por tê-la deixado. Talvez fosse errado fazer isso por essa causa, mas ambos estariam errados em qualquer circunstância. Vingança por ou acobertar . Era uma decisão difícil.
Abriu o portão com certa relutância de seu patrão, que dizia que o criminoso poderia ainda estar ali. Ana fez sua melhor atuação ao responder que com certeza o procurado já havia fugido para longe.
E enquanto ela terminava de arrumar as mesas e já começava a atender os primeiros clientes, estava em seu quarto, pensando sobre cada palavra que ela havia dito. Era doloroso pensar que tudo o que ele queria era abraça-la e ficar com ela pelo resto da vida, enquanto ela só queria que ele desaparecesse dali.
andava pelo quarto em círculos, pensando. O cômodo era pequeno e quase espremia a cama entre as paredes. De repente, em uma pequena mesinha de cabeceira, ele parou, e fixou o olhar nos papéis dispostos em ordem, de forma organizada sob o móvel. Pareciam documentos, mas o que despertou mais a atenção de , foi o pequeno livrinho azul que estava por cima de todas as folhas. Era um passaporte. Então pegou o documento, analisando-o um pouco descrente, porque não parecia ser alguém que viajasse muito para o exterior. Correu os olhos pelas letras impressas, a foto preto e branca de uma garota de cabelos no ombro, ainda , mas um olhar exausto, de quem havia acordado muito cedo para ir tirar aquela foto. O nome, o selo, tudo naquele documento era verdadeiro, era um passaporte de verdade, mas sem viagem alguma registrada. Então ela estava planejando uma viagem para o exterior. "Que interessante", pensou. começava a pensar para onde ela iria e o porquê.
Não havia como saber muito sobre , desde aquela noite, para , ela era um ser difícil de decifrar. Não havia falado muito sobre si mesma, o porquê de ter ido parar no estacionamento, o porquê de estar fugindo... não sabia praticamente nada sobre ela, além de que havia se apaixonado. Como ele podia ter se apaixonado em uma noite? De forma tão crua? Sem ao menos saber sua cidade, o sobrenome, ou talvez sua banda favorita? Como podia ter se apaixonado por alguém que não sabia nada sobre?
Deixou o passaporte no cômodo, começando a se sentir mal por estar mexendo em suas coisas, uma falta de educação tremenda, mas uma boa distração por alguns minutos. O que ficaria fazendo ali a tarde toda, naquela casa minúscula? Sentia-se um pássaro preso, mas com hora para ser libertado.
Após comer a ameixa e limpar pela segunda vez as feridas do rosto e do braço, decidiu vasculhar a casa, por mais que fosse errado, não conseguia ficar parado, e foi quando achou uma pequena Tv velha em cima de um banquinho na cozinha. Era um aparelho bem antigo, com duas antenas grandes, uma raridade nos dias de hoje. Sentou-se no chão, porque era a altura que lhe dava visão para a tela, e ligou. A imagem estava péssima, e o áudio distorcido que transmitia a voz das senhorinhas de touca de cozinha, era intrigante. manteve a atenção nas mulheres que preparavam uma espécie de frango grelhado, rindo entre si, enquanto uma barra aparecia na lateral da tela com os ingredientes listados. "Precisa de tudo isso pra fazer um frango? É muita coisa." Pensou.
Concentrado, ele observava os preparativos, até que um barulho de algo batendo em um ponto da estrutura da casa fez com que ele ficasse em alerta. Quando olhou para o lado, sentiu um calafrio ao dar de cara com uma garotinha de maria chiquinha, acenando através do vidro da janelinha da cozinha, com um sorriso banguela.
Rapidamente correu para o quarto e se escondeu debaixo da cama, ouvindo vozes ao redor da casa.
"O que você tá fazendo aí, menina?" A voz de uma mulher mais velha perguntou.
"Mamãe, tem um moço aqui." A voz aguda disse. se encolheu por mais que não estivesse a vista.
"Deixa o moço, vamos, vamos pegar peixinhos com o papai."
"Tem algum problema aí?" A voz alta de um homem apareceu. se encolheu ainda mais, porque parecia ser o cara de quem falara. Seu coração começava a se acelerar.
"Tem não Adê, só a curiosidade dessas crianças, aiai" A voz se afastava.
"Ela viu alguma coisa diferente?"
começou a tremer, teve medo de que o homem fosse vir checar. Já começava a imaginar o pior, imaginava seu fim.
"Seu Adê! Pode vir me ajudar aqui?!"
Boa, .
Então os sentiu se afastar da casa e soltou a respiração.
Com medo, ficou ali escondido por muito tempo, tanto que acabou dormindo por algumas horas. Era sorte que fosse organizada, o chão estava limpíssimo, e o cheiro de lavanda do produto era aspirado naturalmente pelo nariz de .
Ele só acordou, quando o barulho de alguns instrumentos sincronizados começou a aparecer em seus sonhos. E quando abriu os olhos, acordado, identificou o som da sanfona, do triângulo e um teclado, junto de uma voz grave.
"Vamo lá minha gente!"
"Escrevi seu nome na areia..."
"O sangue que corre em mim sai da tua veia..."
É, a música havia começado. E bom, pelo menos estavam tocando Falamansa.
"Veja só você é a única que não me dá valor..." "Então por que será que esse valor é o que eu ainda quero ter..."
O homem cantava bem, e parecia estar sorrindo a cada sílaba. saiu de debaixo da cama, tentando ouvir melhor a música. Balançava a cabeça sutilmente no ritmo, aquilo era muito bom, o que o fez presumir que haviam pessoas dançando ali fora.
decidiu dar uma olhada, só uma olhada bem rápida, queria ver o movimento, queria ver se as pessoas estavam dançando, quem estava cantando, como estava ? Muito atarefada? Calma? Estressada? Curtindo a canção? nem sabia direito de que tipo de música ela gostava.
Então, se ajoelhou na cama de Ana. Abriu uma pequena fresta da cortina, devagar. E colocou o olho direito ali. E quando teve a vista que queria, sorriu. Um pequeno grupo de pessoas dançava animado em pares, distantes mas ainda nítidos para ele. O cantor e os instrumentistas não estavam em um palco, e sim debaixo da cobertura do bar, sentados em banquinhos de madeira. Então sorriu. Largo. Porque viu ela.
servia as mesas se balançando graciosamente, com a tiara quase caindo na testa. Ela tinha ritmo.
De repente, uma senhora de idade a puxou para dançar, e ela cedeu, dançando risonha com a mulher que também se divertia. Nunca havia esquecido como o sorriso de Ana era bonito. pensava no quanto queria poder vê-la de perto, alegre daquela forma. queria dançar com ela, por mais que não soubesse dançar forró, tomaria todo cuidado do mundo para não pisar nos pequenos pés dela. Era inútil querer, aquilo não aconteceria, então deixou a mente fluir, e apenas imaginou que estava no lugar daquela senhora, imaginava que estava ali, dançando com ela, porque suas fantasias eram a única coisa que poderia ter de .
Observou a situação até ela sumir de cena para pegar um pedido e servir uma mesa. E ela ficava linda de avental. Mesmo com o avental sujo de ketchup, e um coque cheio de frizz, ela estava linda, e estava vidrado.
— Oi!
arregalou os olhos quando uma criança grudou o rosto no vidro da janela, e correu para debaixo da cama novamente.
— Mamãe! O moço tá se escondendo de mim! — A garotinha começou a rir. Era a mesma de antes.
entrou em desespero, e se encolheu como se estivesse em um casulo.
— Minha filha, para com isso! — A voz da mãe apareceu. — É falta de educação ficar olhando a casa dos outros. — Sua voz se afastava.
E ao ouvir a voz da garotinha dizendo "mamãe, foi muito engraçado, ele escondeu de mim", ficando cada vez mais distante, soltou a respiração novamente.
Mas a paz não estava estabelecida, porque logo em seguida ouviu passos, pesados demais para ser da mãe ou da filha. Eram passos diretos, decididos, que pareciam estar próximos à janela. Ele teve o pressentimento de que sabia quem era. E de repente, a porta recebeu duas batidas, violentas.
— Eu sei que você está aí! — Ele bateu na porta novamente, mais forte. — Eu vou matar você, seu vagabundo! — Ele bateu mais duas vezes.
— Eu vou morrer. — murmurou, se encolhendo mais.
— Seu Adê, o que é isso?? — E salva a pátria novamente. — Tá todo mundo olhando pra cá, o que aconteceu? — Sua voz estava do lado de fora, junto a do homem, eles estavam em frente a porta.
— Vou te perguntar uma coisa, e eu quero que você seja sincera.
— Tudo bem. — Ela disfarçou uma engolida em seco. tapou a boca para conter o nervosismo.
— Tem alguém aqui dentro?
prendeu a respiração.
respirou fundo antes de responder.
— Tem.
Ele respirou, arregalando os olhos desesperado.
— Eu prendi o cara aí, a gente não pode assustar os clientes.
estava a ponto de ter um colapso.
— Você deixou um bandido na sua casa???!!!
— Eu vou ligar pra polícia assim que o expediente acabar. — Revelou, deixando perplexo. — Eu tranquei tudo, não tem como ele sair.
— Ah, nem vai precisar, eu vou matar esse invasor antes de ele ir pra cadeia! — A voz do homem estava agressiva.
— Seu Adê, se controle, eu sei que é ruim saber que alguém invadiu aqui, mas a polícia vai fazer o papel, não podemos fazer justiça com as próprias mãos.
— Ah, podemos sim!
— Calma, calma, quer um copo de água?
— Abre essa porta!
— Você vai causar confusão aqui, calma, vai espantar todo mundo... Vem, vou te dar um copo de água.
E as vozes se afastaram.
estava imóvel, em choque, sentindo-se extremamente traído. Não perdeu tempo e se moveu, saindo de debaixo da cama, correndo para a cozinha, onde havia uma janelinha de frente para um barranco, a mesma janela por onde a garotinha havia acenado.
Tentou a todo custo abrir a janela, mas estava emperrada, então em meio ao desespero, pegou o banco de madeira que sustentava a TV, e o jogou na janela, fazendo o vidro se estilhaçar, deixando um buraco perfeito para que ele escapasse.
E subindo o barranco, sem se importar se havia chamado a atenção, se havia causado um caos, se havia sido visto. apenas correu o máximo que conseguiu, sem rumo, sem ideias de para onde ir e desapareceu no meio da mata.
...
preparava seu lanche noturno. Como se não bastasse a exaustão do dia de trabalho, ainda havia tido que dar depoimento a polícia. havia sido visto pelos arredores do lugar. Todos estavam preocupados, assustados, e a polícia fazia muitas buscas pela região.
A própria cena do crime, a fuga de um foragido, mais uma vez era uma testemunha, mas queria esquecer aquilo.
Dona Leíse havia oferecido que ela dormisse no casarão naquela noite, mas ela negou, preferia ficar na casinha mesmo que o espaço fosse pouco, queria ter seu próprio espaço, por mais que estivesse com um buraco no vidro.
A cortina tapava aquilo esteticamente, mas não impedia o vento noturno que adentrava a casa por meio daquele buraco. sentiu frio nos braços, e decidiu vestir seu agasalho de linho.
De repente, enquanto pegava a peça no guarda-roupa, sentiu um calafrio e tremeu. E ao olhar para o lado, ameaçou dar um grito, mas rapidamente teve a boca tapada.
— Você ia me denunciar.
Os murmuros inaudíveis de Ana pareciam dizer "você é louco", mas era difícil discernir.
se debatia, relutando violentamente. Seus movimentos agressivos lhe fizeram cair deitada na cama, e por um instante ela conseguiu se livrar dos braços de , e ameaçou dar outro grito, mas fechou a boca ao vê-lo apontar o canivete em direção a sua barriga. Seus olhos encheram-se de lágrimas, já não conseguia distinguir o que sentia.
— Você é um psicopata. — Desabou em lágrimas, com a voz dolorosa. — Me deixa em paz, por favor, é só isso que eu te peço.
— Eu preciso que você me ouça...
— O que você quer de mim? — Ela soluçava em meio as lágrimas. — Você quer me matar? Então me mate!
— Ana...
Foi quando percebeu no que havia se tornado. Estava com os braços um de cada lado do corpo de , com um canivete na mão direita, apontado para a barriga dela, cercando-a no colchão como se fosse uma presa.
— O que você quer de mim? — Fungou, encarando-o com os olhos inundados.
respirou, se afastando, e se sentou na cama, tentando organizar os pensamentos.
— Desculpa...
não conseguiu sair da mesma posição, pois ainda recuperava a respiração e o batimento normal do coração.
— Eu não sei pra onde ir, eu não sei o que fazer...
Ela não disse nada, apenas enxugava as lágrimas.
— Mas eu não quero ir embora e não te ver nunca mais, eu quero te ver, eu quero ficar com você, me desculpa por ter te apontado a faca, eu não ia, eu só queria que você, eu não sei, eu, não faz sentido sem você, Ana, eu...
— Essa é a declaração mais psicopata que eu já ouvi em toda a minha vida. — Ela o interrompeu, sentando-se ao seu lado.
— Desculpa...
— Eu fico com isso. — Ligeira, ela tomou o canivete de suas mãos. — Por via das dúvidas. — Enxugou o rosto molhado.
— Você ia mesmo me denunciar?
— A justiça tem que ser feita. — Ela deu de ombros, ainda fungando e limpando o rosto.
— É... Eu entendo...
— Quer saber... — Soltou o ar, cansada. — Não quero mais problemas, se quiser viver fugindo, viva. — Ela suspirou. — Mas só me deixe em paz por favor, até agora não entendi porque você veio atrapalhar minha vida.
— Eu nem sabia que você trabalhava aqui.
— Sei. — Franziu a testa.
Ambos se puseram em silêncio, o lugar tão quieto que podiam ouvir a respiração um do outro.
— Por que você tem um passaporte?
— Andou mexendo nas minhas coisas??? — Ela abriu a boca, pasma.
— Pra onde vai viajar?
— Não é da sua conta, enxerido do caramba! — Ela o deu um pequeno empurrão.
Ele riu espontaneamente.
— Tá rindo do quê?
— Pra onde vai viajar? — Ele se ajeitou na cama, insistente.
— Pra bem longe de homens psicopatas que me ameaçam com um canivete.
— Você também me ameaçava com um canivete.
— É... Me pergunto como me deixei me tornar a vítima agora. — Pousou a mão na testa. — Eu era mais alerta sobre as coisas.
— Talvez tenha encontrado um lugar confortável, onde não precisa se preocupar muito. — Deu de ombros. — Você parece bem feliz aqui, te vi dançando hoje, você leva jeito.
Ela soltou um riso anasalado, tímido.
— Não devia estar espiando, deveria estar escondido. — Ela o empurrou com força, fazendo-o cair deitado na cama.
Ele riu, deitando com a cabeça entre as mãos.
— Por que veio trabalhar e morar em um pesque e pague?
ficou em silêncio por alguns segundos, dando poucas esperanças de que responderia aquela pergunta. Havia denunciado o tio no dia seguinte ao da fuga. O homem havia fugido, mas uma semana depois a polícia havia conseguido encontrá-lo em um casarão abandonado na estrada. Porém, mesmo com ele agora atrás da grades, Ana ainda tinha medo.
— Meu tio odeia pescar. — Disse em tom inexpressivo, inesperadamente.
talvez tivesse entendido aquela frase, ou não. Mas captou a atmosfera pesada daquele assunto, e não quis perguntar mais sobre aquilo.
— Preciso ir pra algum lugar bem longe e começar de novo, até conseguir dinheiro pra uma nova passagem. — Ele apertou os olhos, deixando o pensamento escapar.
ficou em silêncio novamente, não sabia o que dizer, e não sabia se queria saber para onde ele iria, ou o que faria da vida. Não entendia o porquê de não ter o expulsado de uma vez da casa. Os sentimentos, os pensamentos... Tudo estava um caos, ao mesmo tempo em que o queria ali, também não o queria, mas ele estava ali, deitado em sua cama de forma relaxada, como se fossem bons amigos há anos.
— Pra onde você vai? Talvez eu possa ir pro mesmo lugar que você.
— De jeito nenhum. — Se virou para ele.
— Você tem Pinterest? — Ele tirou o celular do bolso, com a tela completamente danificada.
— Quê? — Riu com escárnio.
— Eu posso dormir aqui hoje com você?
— A polícia tá te procurando em todo lugar, e eles vão vir aqui de novo amanhã. — Suspirou cansada. — E também vai vir um vidraceiro consertar aquele buraco, você não entende a gravidade das coisas, né?
— Mas se não fosse isso eu poderia dormir aqui com você? — Levantou as sobrancelhas.
— Não seja ingênuo, você não deveria nem estar aqui. — Soltou o ar. — Quando você sumiu naquela noite... Onde esteve esse tempo todo, ?
— Você acha que vou revelar pra alguém que ia me denunciar?
Ela riu fraco. E ambos mergulharam em um profundo silêncio por alguns instantes.
— Naquela noite... Você bem que podia ter deixado pelo menos um bilhete...
— O que você gostaria que eu escrevesse? — Bocejou.
— O que você gostaria de ler no meu lugar? — Rebateu.
— Talvez... Querida Ana, não preciso mais ir até a lua, porque encontrei em você a conexão do arco-íris...
Ela riu alto.
— Que coisa mais brega.
— Talvez eu devesse ter escrito que ia construir o arco-íris primeiro pra depois vir te buscar.
— É? Você não fez nenhum dos dois. — Riu com desdém. — Até veio me mendigar um lugar pra dormir.
— Você é má, nossa...
Ambos ficaram em silêncio novamente, ouvindo apenas o som emitido pelos grilos do lado de fora.
— Você conheceu alguém? — perguntou, sem saber se queria ouvir a resposta.
— Como assim?
— Você entendeu.
— Por que quer saber? — Franziu a testa.
— Você é muito complicada, caramba...
— Você conheceu alguém? — Refez a pergunta com um sorriso de canto.
— Ninguém como você.
Ana ficou em silêncio, suas bochechas queimaram por um momento.
— Não vai mesmo me dizer se conheceu alguém? — Ele insistiu.
— Ninguém que renda uma história interessante pra te contar.
— Entendi... — Ele umedeceu os lábios. Olhava para o teto, suas mãos começavam a ficar dormentes suportando a cabeça. — Você não acha uma coincidência estranha?
— O quê?
— Eu ter vindo parar justo aqui...
— Eu não acredito que você veio parar aqui por acaso, tenho certeza que você me perseguiu, monitorou, ou algo assim.
Ele riu.
— Eu tava correndo do Hyunjin e dei de cara com o portão desse lugar. — Ele sorriu. — Acho que Deus quis cruzar nossos caminhos de novo.
— Como você pode falar em Deus se aponta canivetes para as pessoas?
— Eu não tinha a intenção de matar, só me defender. — Ele riu. — Me diga pra onde vai ... Por favor...
— O mais longe possível de você.
— Mas que coooisa, você é muito difícil. — Choramingou como uma criança. — Eu queria ir com você, independente de onde fosse.
— Você pode sair da minha cama? E da minha casa?
— Eu tenho certeza que nossos caminhos vão se cruzar de novo. — Ele se sentou ao seu lado.
— Claro, porque estou destinada a ter um romance com um foragido da polícia, faz todo sentido. — Ironizou.
Ele riu.
— Vai embora, , preciso dormir, tenho muito trabalho amanhã. — Ela deu-lhe um pequeno impulso nas costas.
— Sabe o que eu tava pensando hoje quando eu te vi dançar?
— Aaah, fala sério. — Ela suspirou. — O quê?
— Eu queria dançar com você.
Ela riu com deboche, empurrando-o para se levantar. Um sorriso se formou nos lábios de . E o silêncio se fez novamente, deixando ambos pensativos.
— Você ainda tá magoada comigo? Por ter te deixado... Você sabe...
— Muito... Muito mesmo.
— Me desculpa... Me desculpa mesmo, eu...
— Eu já te disse que desculpas não vão mudar nada. — Ela respirou fundo. — Só vai embora, e... Me esquece, pelo menos eu sei que você não morreu, eu pensei muito sobre isso e fico feliz de ver que estava errada.
— Sério? Pensou que eu morri?
— Vai embora, anda, anda. — Ela o empurrava pela cozinha.
— Quando eu vou te ver de novo?
— Nunca mais? — Ela sorriu irônica.
— Eu sei que nossos caminhos vão se cruzar de novo. — Ele piscou.
— Ah, vai nessa...
Ela o empurrou até a janela, do buraco por onde ele havia entrado.
— Até nunca mais, .
— Não vai me dar uma despedida digna?
— O que quer dizer com isso? — Ela sabia bem, mas queria ouvir a resposta.
— An... De repente, talvez...
— O quê? — Ela estava fazendo aquilo propositadamente, deixando-o sem jeito.
— Sabe, agora a gente tá tendo a oportunidade de se despedir...
— E?
Sem conseguir se explicar em palavras, ele se aproximou, tirando a mão de Ana de suas costas, e colocando-a delicadamente em seu ombro. Esperava uma reposta por meio daquele gesto. sentiu um frio na barriga esquisito, o tipo que não sentia há um bom tempo. E a memória do sentimento, alterou algo dentro dela, tê-lo tão perto daquela forma, a afetou.
Inesperadamente, Ana não desviou o olhar, nem tirou-a dali, muito pelo contrário, envolveu o pescoço de com os dois braços. Naquele momento ela podia esquecer por alguns minutos do mundo ao redor, não fazia mal fingir só por aquele tempinho de que estava tudo bem, de que ninguém havia abandonado e magoado ninguém. Naquele momento queria aquilo, queria saber se a sensação era a mesma, e se seu corpo a gravaria novamente. E quando ele começou a aproximar o rosto, fazendo-a arrepiar o corpo todo, soube que poderia fantasiar que não estava fugindo da polícia e ela não havia o conhecido em um estacionamento, poderia fingir que eram um casal, comum, que se conheceu em um momento casual do dia a dia. Pelo menos por alguns minutos, poderiam fazer isso, porque não sabiam se se veriam de novo alguma outra vez na vida. Porque para aquele momento era o epílogo, mas para , era o fim de tudo.
Então, com o toque mais terno e singelo, a palma de acariciou a bochecha direita de , sutilmente mais cheia do que há alguns anos atrás, mas bonita, linda, perfeita. Seus dedos quentes, deixavam rastros de fogo pela pele da bochecha, fazendo-a sentir o estômago agitar, o corpo se alertava em sanar a saudade. E quando ele pousou uma mão firme e delicada em sua cintura, o sentimento foi tão intenso, que Ana conseguiu fixar seus olhos no rosto de por mais tempo, transpassando a mágoa e a tristeza, queria agora admirá-lo, gravando novamente cada detalhe em sua mente. Naquele instante notou com carinho os pequenos resquícios de um bigode feito de mal jeito, e as variações de cor rosada que pigmentavam sua boca, as pequenas sardas embaixo do nariz e os dentes grandes mostrados no sorriso genuíno que ele deu em seguida. Estava feliz. estava em seus braços, depois de tanto tempo, ele havia a encontrado de novo.
E então. colou seus lábios aos dela. E sentiu seu interior virar de cabeça para baixo.
Seus lábios eram como duas peças de quebra-cabeça, era como se tivessem nascido para estar juntos, porque a medida em que as línguas começavam a se encontrar, tudo dentro de seus corpos se agitava de forma extremamente eufórica, como se cada tecido, cada pedaço deles, se empolgasse, como se tivessem esperado ansiosamente por aquele momento. E a animação foi tamanha, que agarrou com força a nuca de , afundando os dedos em seus cabelos, fazendo-a tombar a cabeça para trás, entregando-se completamente aquele beijo, lento, suave, mas com um poder que lhe acendia um fogo por todo o corpo, deixando a pele quente e o estômago empolgado. Quantas saudades havia sentido, e quantas vezes jurou não fazer aquilo novamente. Quantas vezes ensaiou todos os insultos que direcionaria a ele, e agora, tudo havia ido por água abaixo. Estava entregue, e começava a pensar que deixa-lo dormir ali não seria uma má ideia. Mas não, tinha que se controlar, estava se deixando levar pela emoção de novo.
E a rapidez com que Ana desgrudou seus lábios fez se assustar.
— O que foi?
a encarava com os olhos brilhantes, como se tivesse recuperado a vitalidade. Ana respirou fundo. Porque a cor preta nos cabelos dele, deixavam-no ainda mais interessante. Constrastava-se com seus olhos radiantes, e o brilho do suor que molhava suas costeletas e alguns fios que caíam de forma charmosa e bagunçada em sua testa. Depois daqueles anos ele estava ainda mais bonito. E depois daquele beijo, ele havia se tornado ainda mais.
E ao fixar aqueles olhos castanhos que pareciam pedir de forma inocente que ela fizesse algo, Ana não pensou duas vezes em atendê-los, e puxou-o pela blusa, atacando seus lábios de forma frenética, desesperada. Já não se reconhecia mais, estava possuída pelo sentimento que aquele homem lhe causava. Não conseguia ser totalmente racional, não conseguia pensar tão perto dele, e teve ainda mais certeza disso quando ele agarrou sua cintura com as duas mãos, como se não fosse solta-la nunca mais, e por um instante, ela desejou que essa fosse a realidade. Só por um milésimo de segundo, quis ficar ali para sempre, presa a ele.
Com tanta rapidez, foi o responsável por acalmar aquele beijo, tornando-o mais lento e torturante, o que deixava as coisas mais difíceis, o que acendia um fogo quase impossível de apagar, não só para ela. Forçando seu corpo para trás, guiou-a daquela forma, até colar suas costas na parede. Começava a sentir inquietações aonde talvez não devesse, seu sentimento era tão terno, que parecia errado desejá-la de forma tão carnal como se sentia naquele momento. Se pudesse, beijaria-lhe a alma, seria mais que o suficiente, seria o necessário, beijaria cada extensão de sua alma, e estaria saciado. A alma invisível da enigmática , era a mais bonita e graciosa que ele já tinha visto.
E percebendo aonde poderiam chegar daquela forma, foi quem parou, colando sua testa a dela, deixando com que as respirações se soltassem e recuperassem seu ritmo natural aos poucos. Não era o momento, não queria aquilo daquela forma, porque seria sofrimento demais fazer aquilo e ir embora, adentra-la em tamanha intimidade e não poder acordar ao lado dela, não poder se casar com ela, era sofrimento demais, tornaria o ato vago demais, e não era aquilo que lhe transmitia. Queria ama-la por completo, além de um ato físico, queria construir o amor de todas as formas, físicas e abstratas, e infelizmente aquilo não era possível, não naquele momento da vida. E por isso ele apenas acariciou seu braço, e beijou-lhe o ombro, com todo o carinho do mundo, deixando-a soltar a respiração em seu rosto.
— Acho melhor você ir embora logo. — Ela ajeitou o cabelo bagunçado, se recompondo sem jeito. Ele riu.
— Ainda dá tempo de me dizer pra onde você vai com aquele passaporte. — Ele acariciou uma mecha de seu cabelo. — Quem sabe a gente não constrói uma vida juntos nesse lugar...
— Você sonha demais. — Ela franziu a testa. — Essa é uma despedida, eu só deixei você me beijar porque sei que não vou te ver de novo.
Ele riu.
E ambos se aprofundaram em um silêncio, uma quietude confortável, não estavam incomodados sem falar um com o outro. deixava acariciar seus cabelos, enquanto estava pensativa, encarando um ponto fixo atrás dele. Até que abriu a boca para fazer uma pergunta.
— Você encontrou sua conexão do arco-íris?
semiabriu a boca, não esperava por aquilo, mas sabia a resposta. A resposta estava ali, o encarando, com os olhos castanhos mais bonitos que já havia visto em toda a vida.
— Sim. — Foi a única coisa que disse.
Ela respirou fundo.
— Eu ainda tô tentando encontrar a minha. — Tirou a mão de de seus cabelos. — É por isso que eu vou viajar, preciso sair daqui.
baixou devagar as sobrancelhas, sem perceber. Se entristecia aos poucos ao ver Ana se desvencilhando de seu toque, ao dizer que não havia encontrado aquilo. Como assim sua conexão do arco-íris não era ele? Como assim ela não sentia aquilo?
— São... — Ela olhou o celular. — Quase meia noite, eu tenho que trabalhar amanhã.
— Tá bem...
Ela se afastou, posicionando-se de frente para o buraco da janela.
— Tenha uma boa vida. — Desejou fixando os olhos no vidro quebrado.
começava a sentir o coração apertar no peito, enquanto se aproximava da janela.
— Não posso dormir aqui, mesmo?
— Não deixe as coisas mais dolorosas, por favor. — disse sem expressão, com a garganta atada em um nó que subia aos poucos pelo pescoço.
— Tchau. — murmurou com a voz vacilante. Seus olhos começavam a marejar, assim como os de Ana.
deu um sorriso triste ao sentir a palma de preenchendo-lhe uma bochecha. E quando ele lhe beijou a testa, uma lágrima fugitiva deslizou, se desfazendo no meio dos dedos dele.
até tentou, mas ao ameaçar formar um sorriso, os cantos de sua boca foram para baixo, e as lágrimas começaram a inundar silenciosamente seu rosto.
E ao vê-lo fungar, Ana agarrou seu corpo, aprofundando-se no abraço mais sincero que poderia dar. Sentia seu corpo sendo apertado firme por , relutante em deixá-la.
— Eu vou te ver de novo. Um dia... — Ele fungou. — Eu sei... Mesmo que eu esteja com 80 anos em uma cadeira de balanço, eu vou te ver de novo.
— Você tem tanta esperança... Admiro isso. — Ela se desvencilhou devagar de . — Tchau.
— Tchau. — Ele respirou fundo, e se virou para passar pelo buraco no vidro.
— Tente não morrer antes dos 80 anos, eu também quero te ver de novo. — Ela brincou. riu, enxugando uma lágrima.
— Boa noite, .
— Boa noite, .
E ele passou pela janela e subiu o barranco, sem olhar para trás, porque se olhasse, não conseguiria continuar. Ana o observou desaparecer na escuridão da noite, e se virou para agradecer pelo alimento e comer o lanche noturno que a esperava.
Naquela noite, fez tudo que sempre fez. Agradeceu pelo dia, beijou seu pingente de Nossa Senhora, e escovou os dentes para ir se deitar. Mas quando chegou ao quarto, um pensamento passou por sua mente. Sentiu a necessidade de checar algo importante.
abriu a gaveta da mesa de cabeceira, e pegou seu celular. Abriu o site da companhia aérea e sorriu ao ver sua passagem com o pagamento confirmado. Não era um sonho, ela iria sair dali. Em 7 meses iria para o país que sempre quis conhecer desde criança, o país que sua falecida avó havia morado e sempre havia falado sobre como era bom e belo, para viver e trabalhar. A Espanha.
...
— Há quanto tempo tu não dá um corte? — O barbeiro perguntou para .
— Alguns meses.
— Alguns? — Ele deu uma risadinha.
— Hmmm, talvez uns 9 meses... — Ele ajeitou a franja. — Mas se puder cortar só a franja e dar só uma aparada no comprimento seria ótimo.
— Cê é rockeiro, meu? — A pergunta veio de um cliente mais velho ao fundo, sentado no sofá, lendo um jornal.
— Não. — riu simpático. — Por quê?
— Meu filho tá com o cabelo batendo na nuca assim também. Ele gosta de umas coisas assim, ele diiiz que é estilo, mas o moleque tá parecendo uma bicha.
Todos na barbearia riram. balançou a cabeça em gesto negativo.
E o barbeiro fez seu trabalho, deixando os cabelos de da exata maneira em que ele queria, algo raro de acontecer. Era uma pena que não poderia voltar mais até aquele estabelecimento, porque em algumas horas, estaria fora de território paulista, ou melhor, fora de território brasileiro.
Se despediu de todos, e traçou seu caminho até o aeroporto a pé. A mochila nas costas não estava muito pesada, porque durante o período no interior de São Paulo não havia acumulado muitos bens. Não havia gasto dinheiro nem mesmo para consertar a tela quebrada do celular. Estava guardando dinheiro para a passagem, o aluguel e para ajudar sua família. Ter contato com Felícia havia se tornado uma das suas maiores alegrias, ter notícias de seus pais e da irmã todos os dias era algo maravilhoso. Por mais que eles tivessem de ter se mudado para uma pequena roça, bem afastada da cidade para se proteger de Hyunjin e seus aliados, vivendo escondidos, mesmo assim a vida parecia finalmente bem.
Durante muito tempo, após fugir de Minas Gerais, havia encontrado seu refúgio no interior de São Paulo. Trabalhando em uma oficina mecânica, fazendo o mínimo de amizades possível, sempre tentando passar despercebido. E em pouco tempo por lá, já havia providenciado a nova identidade.
— Diego Santiago? — O atendente analisava seu documento.
— Sim. — Balançou a cabeça em confirmação.
E ao entrar no avião, a pessoa em quem mais conseguia pensar era Minho. Não o via desde que foi para o Brasil há quase 1 ano atrás, a não ser por vídeo chamada, sentia falta de vê-lo em sua rotina.
Depois, enquanto o avião sobrevoava o mar, pensou em . Por muito tempo, quando chegou em São Paulo abatido, havia pensado com arrependimento em como poderia ter insistido mais em conseguir seu número ou algum contato. Mas depois, já pensava que não fazer isso havia sido a coisa certa. Era apaixonado por Ana, mas ela já havia ameaçado o denunciar uma vez, era arriscado, pelo menos naquele contexto, naquela época, era arriscado. E ele sabia, de alguma forma, que iria encontrá-la de novo, não sabia quando ou como, mas aquela noite não havia sido o fim, ele sabia disso, e esperaria aquele momento, sem pressa ou ansiedade. Pensar em já não era mais motivo de dias de choro e coração apertado, pensar nela era calmaria, tranquilidade, com a certeza de que ela sempre seria a única, mesmo que não ficassem juntos no final. Ter se despedido dela naquela noite, havia aliviado anos de dor e culpa, era como o ato final de um herói, que finalmente poderia descansar em paz.
E ao pisar no aeroporto de Madrid, sorriu. Porque a mensagem de sua irmã que aparecia na tela, dizia que haviam conseguido arrecadar o dinheiro para uma das três passagens.
Reencontrar Minho foi uma alegria imensa, e ver que ele estava bem mesmo depois do término de um relacionamento conturbado com uma italiana, era ainda melhor. Eles estavam se sentindo bem e felizes como há muito tempo não se sentiam.
Bastou 1 mês para que conseguisse um emprego em um restaurante simples, localizado de frente para uma casa de shows. Não ganhava muito, mas era grato por conseguir pagar o aluguel de um pequeno apartamento.
Poder escutar claramente os shows que aconteciam dentro da casa de eventos, era a pior e melhor parte de trabalhar naquele restaurante, porque nem sempre o artista era de seu gosto, e alguns tinham equipamentos de som barulhentos demais.
Mas em um sábado quente de verão, se animou em saber que uma cantora brasileira se apresentaria no local de eventos. Nunca havia escutado a tal da Duda Beat, mas lhe parecia promissor. E de fato, acabou gostando do que conseguiu escutar.
Naquela tarde, seu chefe se preocupou bastante, porque estava tão quente e úmido, que começou a chover, o que significava que após o show, o restaurante teria menos clientes do que de costume, talvez nenhum.
Mas todos se surpreenderam, quando perceberam que a chuva seria passageira, ao se depararem com um grande arco-íris bonito e colorido, se formando atrás da casa de shows. E em pouco tempo, o show já terminava, a chuva se tornara apenas chuviscos finos, e o restaurante foi preenchido, em sua maioria por brasileiros.
Era de se admirar como tudo havia ficado bem em tão pouco tempo. O estabelecimento estava lotado, deixando e os outros dois garçons um tanto tontos, andando para lá e para cá entregando trocos, pedidos e cardápios.
O sol começava a colorir o céu de azul novamente, afastando as nuvens e o cinza, deixando ainda o belo arco-íris que presenteava a visão de todos. Algumas pessoas estavam paradas na rua, apenas para apreciar o fenômeno. ficou tão admirado, que se distraiu por um instante, fazendo o mesmo, porque arco-íris além de bonitos, o lembravam de .
E estava tão distraído que já começava a ver coisas. O tamanho de suas pupilas aumentou tanto, que teve de piscar três vezes para afastar aquela alucinação. Ele estava enxergando ela. Do outro lado da rua, teve a visão de Ana atravessando, em direção ao restaurante. Seu cabelo estava castanho, um pouco ondulado, batendo quase na cintura. Ela usava um vestido azul, bem solto, que se contrastava com sua pele. piscou de novo, mas a maldita visão não desaparecia, não conseguia parar de enxergar aquilo.
De repente, ela estava passando pela porta de entrada do lugar. Pelo tamanho maior das bochechas, havia engordado mais, e estava linda, como sempre, mas naquela visão, parecia ainda mais bela. Ana se sentou em uma mesa vazia de duas cadeiras, e tirou o celular da bolsa. Começou a mecher no aparelho, como se estivesse mandando mensagem para alguém.
Até que um de seus colegas de trabalho chamou-lhe a atenção, perguntando porque ele estava ali parado, e não havia ido atender a moça. Sem jeito, gaguejando, tentou dizer algo, mas foi impedido por um impulso dado em suas costas, que o fez andar até a mesa, ainda tentando entender se não estava tendo uma alucinação.
— Oi.
A palavra escapou de seus lábios em português, fazendo com que ela desse um pequeno pulo de susto e guardasse o celular. E quando a garota se virou para olhar para o garçom que a atendia, parou. Até mesmo seus olhos pararam, não piscava, não se movia, o que o preocupou pensando que ela havia tido um piripaque. começava a pensar que de fato fosse algum tipo de visão, e que alguém poderia ter colocado algum alucinógeno em sua água.
— ?
ficou parado como um bobo, a encarando fixamente, sem conseguir dizer algo. Qual era a probabilidade de ela estar realmente ali?
— A...
— Ah, você conseguiu o lugar! — Um rapaz jovem, de cabelos castanhos, se sentou na cadeira vazia. — Que ótimo! Hoje tá bem cheio aqui, né?
balançou a cabeça de forma travada, sem conseguir desviar o olhar da garota.
— Ei, vai ficar secando minha noiva, na minha cara? Sério isso?
— Desculpa. — colocou o cardápio na mesa e virou o olhar para a porta.
— Deixa de ser idiota. — A garota abriu o cardápio, dando um suspiro cansado.
— Esse tarado não parava de olhar pra você, o que foi? — Ele riu.
batucava os dedos na coxa, nervoso, desesperado para sair dali. estava ali, era verdade, pois mais alucinógeno que aquilo parecesse. E ela estava... Noiva? Caramba...
— Ei, tarado traz a melhor cerveja que tiver aí, tu fala português né?
apenas balançou a cabeça em gesto positivo, e saiu dali.
— Para com essa palhaçada. — Ana estalou a língua como se falasse com um adolescente. — Ele não é tarado.
— Ah, como você sabe disso? Conhece ele por acaso? — Ele riu.
— Sim.
— Hmmm, como?
— Não é da sua conta. — Ela fechou o cardápio. — Vai comer o quê?
— Vou ficar só na cerveja, ignorante.
se aproximava, trazendo a bebida.
— Sem gracinha. — Ela murmurou.
— Já... Decidiram? — deixou a bebida na mesa, com o olhar vago, sem graça.
— Vou querer esse número 15. — Ela apontou a refeição no cardápio.
— Certo. — Ele anotou rapidamente e saiu rápido dali, quase correndo.
— O cara ficou com medo de mim. — Ele riu. — Tá maluco.
— Gustavo...
— Tá, tá, parei. — Ele tomou um gole da cerveja.
— Eu vou no banheiro. — Ela se levantou.
— Tá... — Ele franziu a testa, estranhando a ação rápida de .
Quando deixou o pedido na cozinha, passou pela porta dos fundos, dizendo aos colegas que não estava se sentindo muito bem e precisava pegar um ar. Sentou-se no banco do lado de fora, e respirou fundo.
Contemplava a rua movimentada, cheia de carros passando pela rodovia. Tentava desviar o pensamento, mas sua mente insistente voltava aquele assunto. estava ali, em Madrid, e estava noiva, noiva... como iria esquecer aquilo? Como iria voltar a trabalhar normalmente com aquela informação?
— ?
Sentiu uma concentração de energia no peito ao ouvir aquela voz. E ao olhar para cima, arregalou os olhos. Era ela.
— Ana?
— Não me chame de Ana. — Ela brincou.
— Desculpa. — Ele soltou o ar, não havia captado o tom brincalhão de .
— É... Então veio pra Madrid... — Ela indicou o espaço vazio no banco. — Posso me sentar?
— Uhum...
— Que coincidência... — Ela sorriu, se sentando. — A gente se cruzou mesmo.
— É...
— Tudo bem? — Ela estreitou os olhos.
— Ah... Tá, tá... — Ele comprimiu os lábios, estava cabisbaixo.
Ambos ficaram em silêncio. queria conversar, mas uma barreira de bloqueio parecia envoltar .
— Tem uma coisa que tenho que te devolver... — Ela abriu sua bolsa.
— O quê?
Então direcionou os olhos para a palma aberta de , onde ela expunha um objeto mais que familiar: o canivete.
— Você fica carregando isso? — Ele sorriu surpreso, pegando o objeto.
— Desde que você foi embora.
— Por que? — Ele estava curioso.
— Ué, não foi você quem disse uma vez que a gente ia se encontrar de novo?
Ele riu baixinho.
— Então era pra cá que você ia vir... — coçou o nariz.
— Sim... — Ela sorriu. —Você sabia?
—Não, não fazia ideia.
—Nunca imaginei que fosse te encontrar aqui, nossa... — Ela se ajeitou no banco. — Como veio parar aqui?
—Acho que eu não deveria dizer pra alguém que já quis me denunciar mais de uma vez. —Brincou.
Ela riu.
—Por que a Espanha? — tinha a voz desanimada, como se quisesse conversar mas não tivesse energia para isso.
—Sempre quis vir pra cá desde criança...
— E pelo visto você teve sorte... Conheceu um cara... Vai se casar...
E ao ouvir aquilo, não pôde evitar soltar uma pequena risada espontânea. respirou fundo.
— , vo...
— Eu ainda gosto de você. — As palavras saíram por impulso, interrompendo-a.
Ele se virou para Ana, que tinha a boca semiaberta. Encarava-a fixamente, com um olhar triste.
— Não adianta... — Deu um suspiro cansado. — Vai ser você pra sempre, sempre... Eu, as vezes, acho que é até amor, não sei... Eu nunca me senti dessa forma.
— Feli...
— Vou respeitar sua decisão de casar com aquele babaca. — Ele a interrompeu. — Mas nunca vou esquecer você, nunca! Eu vou gostar de você pra sempre e é isso! Não precisa dizer nada, eu só precisava falar isso, não dava mais pra guardar...
— ... — Um sorriso genuíno se formou nos lábios dela.
— Caramba, pare de falar meu nome assim... — Ele embrenhou a mão nos cabelos como se fosse arrancá-los. — Só deixa as coisas mais difíceis...
— ... ... — Provocou-o, com um sorriso.
— Que merda, ... — Ela riu.
— Calma. — Disse entre risos. — Eu não vou me casar com aquele cara. — Ela segurou seu queixo, fazendo-o erguer o rosto para ela.
— Hm?
— Ele estava só zoando, é meu amigo. — Ela respirou fundo antes de continuar. — Bom, é uma amizade meio desgastada...
abriu a boca para falar algo, mas desistiu, seus olhos começaram a brilhar. Ana sorriu ao perceber sua face tornando-se iluminada aos poucos.
— Eu sempre quis vir pra cá, e eu achei que a Espanha resolveria todos os meus problemas. Mas não foi bem assim...
Ele não conseguia dizer nada, apenas a observava, pensando no quanto estava feliz em vê-la de novo, em como ela era linda tanto no exterior quanto no interior. O quanto gostava dela...
— Deixa pra lá... Não quero te encher com minhas coisas. Só quero dizer que fico muito feliz em poder te ver de novo, muito mesmo, e saber que você está bem...
— Eu também... Mas nunca imaginei que fosse te ver aqui. — Ele sorriu.
— Eu também não. — Ana não podia conter o sorriso no canto dos lábios. — Mas aconteceu.
deixou escapar uma pequena risada de alegria, era tão bom vê-la de novo...
Ambos ficaram em silêncio por um instante. estava diferente, mais radiante, aberta, a mágoa por ter sido deixada por naquela noite no estacionamento não a preenchia mais, porque havia o visto de novo há meses atrás, e percebido o quanto gostava dele, não importava o que acontecesse, e que ela poderia perdoá-lo, aos pouquinhos, até a ferida sarar por completo. também havia mudado, com o coração mais decidido e tranquilo, aceitando com paz na alma que sempre seria única para ele, não importava com quem ela decidisse passar o resto da vida, sempre gostaria dela. E naquele instante, naquele silêncio, ambos estavam com a cabeça cheia de pensamentos, frases, a surpresa de se encontrarem de forma tão inesperada... Haviam vivido tantas coisas após sua última despedida, haviam refletido sobre tanta coisa durante esse período, queriam dizer tanto um ao outro...
— Eu percebi uma coisa, nesse tempo... — tomou coragem para deixar seu pensamento sair em palavras. — Na verdade, eu pensei...
Ela depositou as mãos sobre seu colo, tímida. a ouvia atentamente.
— Eu me toquei que... Como você falou... — Ela riu, nervosa. — Não adianta... Eu acho, que... Não me casaria com alguém que não fosse você, não tem como.
Os dois riram. Estavam tímidos, se estranhando, mas acima de tudo, felizes, alegres por se encontrarem novamente e por conseguirem finalmente falar sobre todos os seus sentimentos da forma mais crua e singela.
— Não estou dizendo que a gente vai se casar ou algo assim, quer dizer... É só um exemplo, sabe, é...
— Eu quero me casar com você. — disse de forma atropelada, interrompendo-a, fazendo os dois rirem.
— Aquela coisa de conexão do arco-íris... — Ela escondeu o rosto entre as mãos por alguns segundos. — Nossa isso é tão adolescente... — Os dois riram. — Mas... Eu acho que... Eu fiquei procurando sabe... Só que... Eu não tinha percebido que já tinha encontrado há muito tempo.
— E qual é a sua conexão do arco-íris?
— Você. — sentiu um frio na barriga com aquela resposta. — Sempre foi você.
O rosto de se iluminou por completo, ele estava radiante, brilhante, com um sorriso de orelha a orelha.
— A minha também é você.
Ana sorriu de alegria, sentiu a boa calmaria no peito, e um frio prazeroso na barriga. Dedilhou cada sarda no rosto de , e beijou sua bochecha com ternura, fazendo-o sorrir automaticamente.
— Você quer casar comigo?
riu com a pergunta repentina.
— Não parece cedo pra isso?
— Isso quer dizer que você tem dúvidas em relação à resposta?
— Calma. — Ela riu.
— Eu não quero perder você.
— Não vai. — Ela selou seus lábios, em um beijo curto e carinhoso.
— Qual é o seu Pinterest? — Ele tirou o celular do bolso.
— Como assim? — Ela riu. — Eu nem tenho Pinterest.
— Impossível. — Abriu a boca incrédulo.
— Você usa Instagram? Ou prefere que eu te mande cartas? — Ela beijou sua testa.
— Eu nunca recebi cartas, isso seria bem romântico. — Disse. Ela riu.
E ele a beijou, um beijo sincero, delicado, e singelo, que selava seus corações e seus destinos.
Mas repentinamente, pararam, ao ouvir alguém limpando a garganta.
olhou para a porta, e se deparou com seu chefe, de pé, parado, com uma expressão furiosa lhe cobrindo a face.
— Desculpa. — sussurrou. Ele sorriu.
Naquele dia, foi demitido. Mas ninguém nunca havia visto alguém demitido sorrir tanto. sorria andando pelas ruas, voltando para seu apartamento. sorriu a semana inteira, até chegar a sexta-feira que encontraria no parque à noite. Sem dinheiro para jantares chiques, fariam um piquenique, o que era mais que suficiente para eles.
E naquela noite, lhe entregou um poema em carta. lhe deu um anel de chocolate, preso ao bilhete "você quer ser minha namorada?".
— Você é tão brega.
Foi o que ela disse antes de beija-lo no gramado, sob a luz das estrelas.
5 meses depois, o apartamento pequeno de já havia se tornado a segunda casa de Ana.
1 ano e meio depois eles estavam na cozinha de um apartamento um pouco maior, só deles, arrumando uma cesta de doces caseiros.
— A que horas eles vem mesmo? — Ela perguntou.
— Às cinco, querida. — E deixou-lhe um beijo na testa.
Às quatro, eles estavam em um trem para Barcelona, fazendo juras de amor.
Às seis, todos estavam em um local isolado da praia, reunidos, e Felícia estava fotografando o irmão, colocando uma aliança de verdade no dedo de .
— Beije a noiva!
O pai de gritou. Foi o que fez, com todo amor do mundo. E mãe, irmã, pai, Minho, noivo e noiva aplaudiram.
distribuiu os doces junto de . Felícia tratou de revelar cada foto no dia seguinte, até mesmo as que deram errado.
2 anos depois, eles tinham uma doceria em Madrid. Não pense em um lugar chique e caro, extremamente sofisticado. Era um lugar simples, que lhes dava sustento, e isso era mais que o suficiente. O doce principal, coberto de glacê colorido e recheado de brigadeiro e leite condensado, se chamaria arco-íris.
— Que clichê.
Ana disse ao ver colocando a plaquinha impressa com o nome, de frente para a guloseima.
— Sim, mas é gostoso.
Ela riu.
4 anos depois, após várias viagens baratas de trem em trem pela Europa, estava grávida.
Há quem diga que a menininha era a cara de Ana, já outros, que era uma cópia de . Eu devo dizer que era a mistura simétrica e perfeita dos dois.
— Ela vai se chamar Íris. — disse ao colocá-la no berço.
— Você não cansa de ser clichê? — Ana riu.
Quando Íris completou 7 anos, era uma garotinha curiosa e amava perguntar sobre tudo. E foi daquela forma que aprendeu mais sobre a história dos pais.
— Mamãe, o que acontece depois que a gente encontra a nossa conexão do arco-íris?
— Não é definitivo, amor, não existe só uma, quando você encontra uma, não vai parar mais de procurar outras. — Ana acariciou-lhe os cabelos. — Eu aprendi com o tempo, que existem várias conexões do arco-íris pra diferentes fases das nossas vidas.
— É verdade. — apareceu de repente no quarto, estava ouvindo atrás da porta, com um sorriso no rosto.
— E qual é a conexão do arco-íris de vocês agora?
sorriu e olhou para , porque ambos já sabiam a resposta.
— Você.
respondeu e beijou a testa da filha.
Fim!!
Nota da autora: Quero agradecer a cada um que acompanhou até aqui 💜 Você é incrível 💜 Sou muito grata por isso!
Espero que essa fic tenha te proporcionado uma montanha russa de emoções e boas memórias, assim como trouxe pra mim💜
Fiquei super apegada a Felix e Ana Lua e assim como vocês que leem, eles ocupam um lugar imenso no meu coração💜
Muito obrigada novamente pelo seu apoio💜 Espero mesmo que essa história tenha te trazido um caminhão de emoções e talvez até se torne inesquecível 💜
Meus mais sinceros agradecimentos novamente, nunca deixem alguém apagar o brilho de vocês, vocês são incríveis, não se esqueçam disso💜
Caso queira ficar mais pertinho de mim, meu Twitter é maygastix, sinta-se a vontade pra falar comigo por lá 💜
Nota da scripter: Oi! O Disqus está um pouco instável ultimamente e, às vezes, a caixinha de comentários pode não aparecer. Então, caso você queira deixar a autora feliz com um comentário, é só clicar AQUI.
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