Capítulo único
O papel de parede em arabesco da sala, podre. Caía aos pedaços e cada pedaço que caía, o cheiro pútrido se enroscava em cada narina e sufocava cada membro daquele grupo desfalcado e maldito que minha réplica costumava chamar de "família".
Éramos idênticos, ele era o meu reflexo: o único espelho que existia em toda a casa, enorme, escura e aos pedaços. Todos os outros foram destruídos e jogados no porão sem dó: não havia necessidade. Nós andávamos nus, pois o pudor não existia ali: não havia necessidade de se reservar perante àqueles do seu próprio sangue, era o que a matriarca dizia. O seu marido, por outro lado, achava que a nudez nos conectava com a natureza e fazia com que o milharal e todo o nosso plantio crescesse mais sadio.
Sempre com a pele avermelhada, éramos reservados quanto aos nossos costumes peculiares. Não havia água naquela fazenda, exceto por aquela da qual bebíamos: um barril enorme cheio de musgo que enchíamos com a água do córrego de vez em vez. Nos banhávamos em sangue, uma banheira de tamanho perfeito e comunitária, cujo líquido escarlate e grosso trocávamos de mês em mês. De acordo com os pais.
A plantação sempre crescia à base da solução de banha, sangue e água, que recriávamos toda vez que um novo indivíduo era jogado vivo no moedor. Não gostávamos de desperdiçar: a carne era cozinhada para o nosso jantar. Quando em falta, tirávamos um pouco do sangue na banheira e podíamos nos alimentar dele por tempos.
Meus irmãos mais velhos diziam que sua parte preferida era ver a humanidade sendo lentamente perdida enquanto as vítimas eram moídas desde os pés até a cabeça, e viam a própria morte, perdendo até o instinto de sobrevivência, que diziam ser a última sensação de todo ser humano. Eu e meu semelhante, por outro lado, não apreciávamos nada além da necessidade. Eu só amava a ele e ele a mim; eu era o único que compreendia os pensamentos abnormais dele, pois sua boca há muito era disfuncional. Ele não falava, não ouvia, não via, não sentia e tampouco se movia. Mamãe dizia que eu fui tão maldito e indesejado que ele tentou de todas as formas se deformar para parecer o menos possível comigo, e ainda assim, éramos gêmeos: nunca um sem o outro. Quase como siameses; Às vezes eu me condenava por desejar tanto ser parte dele, morar nele, poder ser ele. Quando pensava na impossibilidade de um dia enxergar através daqueles celestiais olhos cegos, as lágrimas se apossavam do meu corpo inteiro e eu chovia como um bebê.
Naquela noite, os pensamentos dele que me imploravam para não sair de perto não eram de longe suficientes para me impedir de ir checar a parede. Sempre no escuro: nós não tínhamos nenhuma fonte de luz, e minha visão era a melhor dentre aquele bando de animais selvagens. Eu andava até a parede, minha mente doía, minha cabeça explodia enquanto o meu irmão gritava mentalmente e me implorava para não deixá-lo. Ele me ameaçava, dizia que deixaria de existir, dizia que morreria e me deixaria sozinho para sempre se eu chegasse perto daquilo. Eu não sabia o que o amendrontava tanto naquela específica parede, mas checar era o meu objetivo e eu não deixaria por nada agora que a curiosidade tomara meu corpo por inteiro.
O ritmo de tudo mudou assim como agora, sua leitura se torna uma tragédia. A parede estava pela metade destruída, o resto, apodrecido como sempre. Havia uma enorme fenda. Eu instintivamente peguei o atiçador da lareira e me coloquei a destruir o que restava do papel podre; o patriarca tentava me segurar em vão. Meu irmão gritava mentalmente para mim imóvel, enquanto a matriarca analisava com os olhos vazios de sempre.
Deixei que os corpos caíssem ao chão. As larvas se estrebuchavam procurando refúgio e saíam das bocas, olhos, narinas... De tudo. Ouvi um som agudo com todos os gritos que se reuniam e a calma exasperadora da mãe, e minha mente se concentrou por um instante como se eu vasculhasse antigas memórias.
Os homens se apresentavam para a casa velha e aos pedaços. Eram três, usavam botas de couro e mastigavam um fio de grama; eles carregaram suas espingardas quando uma mulher nua e armada apareceu na porta, parecendo preparada para atirar. Antes que ela pudesse fazer qualquer coisa, o homem a atingiu no canto da cabeça, destruindo metade de suas feições. O pai que vinha logo atrás conseguiu atingir um dos três fazendeiros na perna, mas o terceiro atirou em sua barriga deixando um enorme vão e fazendo com que caísse no chão; os três filhos enfurecidos, selvagens e tomados pela raiva, tentaram agir e morreram todos.
Sobraram então os gêmeos. Um deles, corajoso e bravio, selvagem como os pais e acusado de envenenar a mente de seu reflexo, se atirou sobre o homem por trás esfaqueando-o sete vezes. O outro, um pouco mais covarde, não conseguiu reagir tão rápido. O disparo foi feito, aquele som que ecoava em sua mente há anos: seu irmão, atingido no topo da cabeça. Ele então perdeu a noção de tudo e conseguindo montar-se no homem que sobrava, o esfaqueou uma vez no pescoço e então passou a arrancar os pedaços da carne de seu rosto com os próprios dentes, cuspindo sobre o último homem que apesar de abatido, seguia vivo.
Ele carregou sozinho com os olhos vidrados um por um e os emparedou na sala principal. Os três fazendeiros que sobravam, levou para o seu quarto, junto com o corpo de seu irmão gêmeo morto.
Ele reconstruiu o rosto do irmão como pôde com os corpos que tinha. Então, os moeu no moedor e adquiriu comida para talvez três meses se dividisse bem. Sentou seu irmão gêmeo em uma ponta da mesa e se sentou na outra. Cantarolou uma antiga música country enquanto feliz cozinhava o cérebro de um dos homens, e então ouviu as cadeiras se moverem; se virou para trás: tudo não passava de um sonho, todos estavam vivos!
Seu irmão, indubitavelmente jamais conseguiria se mover novamente, mas era seu irmão e ainda se comunicava com ele mentalmente. Ele precisava carregá-lo por toda parte, mas era parte dele, e ele aceitava assim.
Olhei para trás. Cada cadáver que eu tocava significava um membro que desaparecia. Primeiro o patriarca, sem o estômago, totalmente estripado; depois a matriarca, sem a cabeça. Os três mais velhos, totalmente apodrecidos e quase irreconhecíveis. Mas por sorte, eu não encontrei o corpo do meu semelhante.
Ele era meu siamês e eu não suportaria perdê-lo nem por um segundo sequer. Me senti aliviado e me permiti sorrir, feliz, e até dar algumas gargalhadas em prol da vitória de ter sido capaz de salvar o único membro da família que eu ainda amava.
Eu toquei suas mãos frias e prometi fazer com que ele fosse eterno, assim como eu; prometi fazer com que nos tornássemos apenas um, assim como sempre foi o desejo. Eu nasci para ser ele, e ele para ser eu; somos iguais, e devíamos ser apenas um. O mundo não suporta seres idênticos.
Eu selei meus lábios com os dele, em um gesto de amor supremo. Era totalmente dele: meu coração batia rápido enquanto eu sentia sua cabeça tombar.
Quando o olhei novamente, meu coração parou e o sorriso se alargou ainda mais. Seus ouvidos costurados não podiam ouvir, pois pertenciam à outra pessoa; seus olhos não podiam enxergar, pois eram nada além de dois vazios sem globos. Sua boca nada podia dizer, pois eram secas e tomadas pelas trevas da putridão. Seus braços, pernas, seu corpo não se movia, pois estava completamente morto.
Aquele era ele? Ou era eu? Eu não sabia dizer. O meu irmão estava morto?
Ou eu estava?
O meu coração palpitou por alguns instantes enquanto deitava lentamente seu corpo pelo chão. Eu segurei a faca contra meu pescoço e afundei sem pena alguma.
Nós éramos um só.
Nunca um sem o outro.
Éramos idênticos, ele era o meu reflexo: o único espelho que existia em toda a casa, enorme, escura e aos pedaços. Todos os outros foram destruídos e jogados no porão sem dó: não havia necessidade. Nós andávamos nus, pois o pudor não existia ali: não havia necessidade de se reservar perante àqueles do seu próprio sangue, era o que a matriarca dizia. O seu marido, por outro lado, achava que a nudez nos conectava com a natureza e fazia com que o milharal e todo o nosso plantio crescesse mais sadio.
Sempre com a pele avermelhada, éramos reservados quanto aos nossos costumes peculiares. Não havia água naquela fazenda, exceto por aquela da qual bebíamos: um barril enorme cheio de musgo que enchíamos com a água do córrego de vez em vez. Nos banhávamos em sangue, uma banheira de tamanho perfeito e comunitária, cujo líquido escarlate e grosso trocávamos de mês em mês. De acordo com os pais.
A plantação sempre crescia à base da solução de banha, sangue e água, que recriávamos toda vez que um novo indivíduo era jogado vivo no moedor. Não gostávamos de desperdiçar: a carne era cozinhada para o nosso jantar. Quando em falta, tirávamos um pouco do sangue na banheira e podíamos nos alimentar dele por tempos.
Meus irmãos mais velhos diziam que sua parte preferida era ver a humanidade sendo lentamente perdida enquanto as vítimas eram moídas desde os pés até a cabeça, e viam a própria morte, perdendo até o instinto de sobrevivência, que diziam ser a última sensação de todo ser humano. Eu e meu semelhante, por outro lado, não apreciávamos nada além da necessidade. Eu só amava a ele e ele a mim; eu era o único que compreendia os pensamentos abnormais dele, pois sua boca há muito era disfuncional. Ele não falava, não ouvia, não via, não sentia e tampouco se movia. Mamãe dizia que eu fui tão maldito e indesejado que ele tentou de todas as formas se deformar para parecer o menos possível comigo, e ainda assim, éramos gêmeos: nunca um sem o outro. Quase como siameses; Às vezes eu me condenava por desejar tanto ser parte dele, morar nele, poder ser ele. Quando pensava na impossibilidade de um dia enxergar através daqueles celestiais olhos cegos, as lágrimas se apossavam do meu corpo inteiro e eu chovia como um bebê.
Naquela noite, os pensamentos dele que me imploravam para não sair de perto não eram de longe suficientes para me impedir de ir checar a parede. Sempre no escuro: nós não tínhamos nenhuma fonte de luz, e minha visão era a melhor dentre aquele bando de animais selvagens. Eu andava até a parede, minha mente doía, minha cabeça explodia enquanto o meu irmão gritava mentalmente e me implorava para não deixá-lo. Ele me ameaçava, dizia que deixaria de existir, dizia que morreria e me deixaria sozinho para sempre se eu chegasse perto daquilo. Eu não sabia o que o amendrontava tanto naquela específica parede, mas checar era o meu objetivo e eu não deixaria por nada agora que a curiosidade tomara meu corpo por inteiro.
O ritmo de tudo mudou assim como agora, sua leitura se torna uma tragédia. A parede estava pela metade destruída, o resto, apodrecido como sempre. Havia uma enorme fenda. Eu instintivamente peguei o atiçador da lareira e me coloquei a destruir o que restava do papel podre; o patriarca tentava me segurar em vão. Meu irmão gritava mentalmente para mim imóvel, enquanto a matriarca analisava com os olhos vazios de sempre.
Deixei que os corpos caíssem ao chão. As larvas se estrebuchavam procurando refúgio e saíam das bocas, olhos, narinas... De tudo. Ouvi um som agudo com todos os gritos que se reuniam e a calma exasperadora da mãe, e minha mente se concentrou por um instante como se eu vasculhasse antigas memórias.
Os homens se apresentavam para a casa velha e aos pedaços. Eram três, usavam botas de couro e mastigavam um fio de grama; eles carregaram suas espingardas quando uma mulher nua e armada apareceu na porta, parecendo preparada para atirar. Antes que ela pudesse fazer qualquer coisa, o homem a atingiu no canto da cabeça, destruindo metade de suas feições. O pai que vinha logo atrás conseguiu atingir um dos três fazendeiros na perna, mas o terceiro atirou em sua barriga deixando um enorme vão e fazendo com que caísse no chão; os três filhos enfurecidos, selvagens e tomados pela raiva, tentaram agir e morreram todos.
Sobraram então os gêmeos. Um deles, corajoso e bravio, selvagem como os pais e acusado de envenenar a mente de seu reflexo, se atirou sobre o homem por trás esfaqueando-o sete vezes. O outro, um pouco mais covarde, não conseguiu reagir tão rápido. O disparo foi feito, aquele som que ecoava em sua mente há anos: seu irmão, atingido no topo da cabeça. Ele então perdeu a noção de tudo e conseguindo montar-se no homem que sobrava, o esfaqueou uma vez no pescoço e então passou a arrancar os pedaços da carne de seu rosto com os próprios dentes, cuspindo sobre o último homem que apesar de abatido, seguia vivo.
Ele carregou sozinho com os olhos vidrados um por um e os emparedou na sala principal. Os três fazendeiros que sobravam, levou para o seu quarto, junto com o corpo de seu irmão gêmeo morto.
Ele reconstruiu o rosto do irmão como pôde com os corpos que tinha. Então, os moeu no moedor e adquiriu comida para talvez três meses se dividisse bem. Sentou seu irmão gêmeo em uma ponta da mesa e se sentou na outra. Cantarolou uma antiga música country enquanto feliz cozinhava o cérebro de um dos homens, e então ouviu as cadeiras se moverem; se virou para trás: tudo não passava de um sonho, todos estavam vivos!
Seu irmão, indubitavelmente jamais conseguiria se mover novamente, mas era seu irmão e ainda se comunicava com ele mentalmente. Ele precisava carregá-lo por toda parte, mas era parte dele, e ele aceitava assim.
Olhei para trás. Cada cadáver que eu tocava significava um membro que desaparecia. Primeiro o patriarca, sem o estômago, totalmente estripado; depois a matriarca, sem a cabeça. Os três mais velhos, totalmente apodrecidos e quase irreconhecíveis. Mas por sorte, eu não encontrei o corpo do meu semelhante.
Ele era meu siamês e eu não suportaria perdê-lo nem por um segundo sequer. Me senti aliviado e me permiti sorrir, feliz, e até dar algumas gargalhadas em prol da vitória de ter sido capaz de salvar o único membro da família que eu ainda amava.
Eu toquei suas mãos frias e prometi fazer com que ele fosse eterno, assim como eu; prometi fazer com que nos tornássemos apenas um, assim como sempre foi o desejo. Eu nasci para ser ele, e ele para ser eu; somos iguais, e devíamos ser apenas um. O mundo não suporta seres idênticos.
Eu selei meus lábios com os dele, em um gesto de amor supremo. Era totalmente dele: meu coração batia rápido enquanto eu sentia sua cabeça tombar.
Quando o olhei novamente, meu coração parou e o sorriso se alargou ainda mais. Seus ouvidos costurados não podiam ouvir, pois pertenciam à outra pessoa; seus olhos não podiam enxergar, pois eram nada além de dois vazios sem globos. Sua boca nada podia dizer, pois eram secas e tomadas pelas trevas da putridão. Seus braços, pernas, seu corpo não se movia, pois estava completamente morto.
Aquele era ele? Ou era eu? Eu não sabia dizer. O meu irmão estava morto?
Ou eu estava?
O meu coração palpitou por alguns instantes enquanto deitava lentamente seu corpo pelo chão. Eu segurei a faca contra meu pescoço e afundei sem pena alguma.
Nós éramos um só.
Nunca um sem o outro.
Fim.
Nota da autora: Sem nota.
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