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Última atualização: 16/05/2024

#16

Eu sei que tenho este preço a pagar, mas, às vezes, eu preferia morrer
(Habits - outsideOUTSIDE)



Por mais que não estivesse nos meus planos me envolver com alguém, aconteceu. Angela estava lá, quando e onde eu menos esperava. Seus olhos sempre pareciam ao alcance dos meus e acompanhados de um sorriso pronto para me receber.
A verdade é que não sabia explicar o que havia acontecido. Foi como ser atingido por um tiro que não vi de onde veio.
No começo, senti que era muito mais para preencher um vazio que havia deixado em mim. Ainda mais ao perceber a semelhança em alguns trejeitos e na personalidade de ambas. O jeito de Angela não me deixava esquecer . Tanto que, aos poucos, fui me apaixonando por Angela também, mesmo que não quisesse admitir isso.
No entanto, por dentro, Angela e eu, sabíamos que ali era como um romance de verão. Tão logo recebemos alta, voltaríamos às nossas vidas normais e as pessoas que havíamos deixado para trás.
Enquanto isso não acontecia, vivíamos o que havia entre nós intensamente. Por mais que houvesse vista grossa por parte dos enfermeiros e auxiliares, quase sempre conseguíamos escapar quando ninguém estava olhando e, para minha surpresa, nunca havíamos sido pegos com as calças na mão. Literalmente com as calças na mão…
Diferente de mim que apreciava um bom oral desde… sempre ― devia ser um apego emocional já que minha primeira vez havia sido assim ―, Angela gostava muito de penetração. Muito. O que não facilitava em nada as coisas.
Perdi as contas de quantas vezes preparei uma parte do estábulo com mais feno para podermos nos encontrar com o mínimo de conforto, já que os quartos não eram uma opção.
Algumas vezes tentamos perto dos arbustos, porém não foi uma boa ideia, pois eram aparados com frequência e acabamos nos machucando ao bater em alguns galhos pontudos.
E, por fim, nossa última tentativa foi em um dos banheiros externos, cujo uso é autorizado somente durante os expedientes de trabalho dos pacientes.
Eram 11 horas da noite e ninguém iria nos procurar tão cedo, uma vez que a visita de inspeção nos quartos para saber se estavam todos prontos para dormir havia acontecido há menos de uma hora e a próxima aconteceria meia noite e trinta mais ou menos.
Angela havia encostado o quadril desnudo na pia enquanto me livrava do preservativo. Em seguida, pondo as mãos na minha nuca, acariciando as pontas dos meus cabelos, a mulher selou nossos lábios demoradamente, voltando a me olhar nos olhos.
― O que foi? ― Pus as mãos em sua cintura.
Angela balançou a cabeça, desviando os olhos.
― Aconteceu alguma coisa? ― Busquei seu olhar inclinando a cabeça. A mulher suspirou.
― Eu quero que você saiba por mim antes que isso vire assunto na terapia e tudo o mais. ― Esperei até que continuasse. ― Minha alta foi assinada e… vou embora na semana que vem.
― E isso é ruim? ― Franzi a testa.
― É… maravilhoso, mas eu não sabia qual seria sua reação.
Tirei suas mãos da minha nuca, segurando-as entre as minhas e depositando beijos em cada uma.
― Eu quero o que é melhor para você, Angela. Não nego que você foi uma das melhores coisas que me aconteceu enquanto eu estava aqui, mas também não esqueci qual era o nosso propósito neste lugar. ― Seus olhos se marejaram.
Angela me abraçou forte e eu retribui.
Eu, mais do que ninguém, sabia o quanto ela esperava por aquela notícia, como uma criança que esperava pela manhã de Natal para abrir todos os seus presentes.
Por mais que, aos poucos, aquela se tornasse nossa casa pelo tempo que precisássemos ficar, retornar para nossos lares, para nossas famílias e para as nossas vidas era o que mais almejávamos depois de uma boa recuperação.
Após alguns momentos agarrados, Angela me deu um último beijo, vestiu-se e saiu do banheiro rapidamente, rumo ao seu quarto antes que desse o horário da próxima vistoria.

- x x x -


Os dias que se passaram foram agitados. Até onde fiquei sabendo, era assim que todos ficavam quando alguém estava para ir embora: em clima de festa. Porém, isso não nos impedia de continuar nosso trabalho do dia a dia.
Como sempre, minhas tarefas giravam em torno do cuidado com os cavalos. Alimentação, banho, escovação do pelo, água, ficar de olho enquanto pastam e, em seguida, recolhê-los em seus devidos espaços no estábulo. Geralmente, eu as fazia sozinho, então, eu aproveitava para cantar um pouco e, até mesmo, para compor algumas coisas durante a pastagem dos animais.
Sentado na cerca, com uma caderneta e um lápis em mãos, comecei a escrever alguns trechos de algo que só foi começar a tomar forma horas mais tarde, sob a luz do luar no silêncio do meu quarto.
Era sobre Angela. Sobre tê-la conhecido. Sobre finalmente ter alguém que conhecia a minha dor por experiência própria.
Talvez era daí que vinha minha conexão tão profunda com ela. Nós falávamos do mesmo lugar. Nossas dores se pareciam muito, vinham de um local muito obscuro e, diante dos olhos de outras pessoas, pareciam pequenas, sem razão de ser.
Mas, no fundo, estávamos tentando sobreviver. Entre mortos e feridos, ainda estávamos de pé, mesmo que isso estivesse nos matando aos poucos.
Estávamos cercados por corpos e cabeças de nossos próprios problemas.
Distraído, olhei ao meu redor e meus olhos recaíram sobre a capa do livro que estava lendo nos últimos dias. Infinite Jest, de David Foster Wallace. E, de repente, já tinha o título perfeito para a música. Surrounded by Heads and Bodies.
Tão logo terminei de escrever, deitei-me na cama e fiquei pensando no quanto gostaria de ter acesso ao meu celular naquele horário para mandar uma mensagem para George com uma foto da letra para que trabalhasse em algo.

- x x x -


Ao final da semana, Angela começou a passar suas funções dentro da clínica para outros internos, instruindo-os como faziam algumas coisas e com quem precisariam falar caso desse algo errado. Também começou a ajeitar suas malas, evitando usar muitas roupas diferentes para não ter que lavá-las antes de partir.
Em uma tarde, após tomar banho, passei pelo seu quarto. Lá estava ela, dobrando algumas roupas, separando o que não queria mais e iria presentear algumas de suas amigas da clínica.
― Espero não estar te atrapalhando. ― Sentei-me em sua cama.
― Você nunca atrapalha. ― Lançou-me um olhar e um sorrisinho.
― Bom saber. ― Ri. ― Ansiosa? ― Assentiu.
― Mas, ao mesmo tempo, me pergunto quanto tempo até eu retornar.
― Você está olhando pelo ângulo errado. ― Procurei pelo seu olhar. ― Eu também já me internei mais de uma vez, mas sinto que encarei as coisas pelo ângulo errado desde o início. Primeiro porque eu estava fazendo isso por outras pessoas, não por mim. E, segundo, não estava encarando como se fosse um dia de cada vez. Estava vivendo como se precisasse estar curado hoje e não fosse sentir mais nada. Mas não é assim que as coisas funcionam, certo?
Sentou-se ao meu lado, respirando fundo.
― Eu não posso mais continuar na vida que estava levando.
― Nem eu. Mas só de termos consciência disso já faz muita diferença, você não acha? ― Olhou-me, com um dos cantos dos lábios se erguendo em um sorriso tímido.
Passei um braço por sobre seus ombros, trazendo-a para perto.
― Eu nem fui embora ainda e já sinto sua falta. ― Trocamos um sorriso.
Angela recostou a cabeça no peito.
Pensei sobre o que rondava minha mente desde que havíamos nos encontrado pela primeira vez e se deveria dizer a ela. Diga! Não perca a chance como você sempre faz.
― Tem uma coisa que eu preciso te dizer e não vou conseguir parar de pensar sobre se te deixar ir sem falar. ― Suspirei. ― Quando te vi pela primeira vez, tive a sensação de você se parecia com alguém que eu conhecia. Ou talvez fosse alguém que já tinha visto em algum lugar. Não me pergunte de onde isso veio, eu só… senti, sabe? ― Assentiu. ― E aí nós conversamos e eu… eu me apaixonei por você. ― Deu um meio sorriso, acariciando meu rosto. ― Mas, hoje, entendo que é porque você realmente se parece com alguém que eu conheço.
Pegando sua mão, entrelacei nossos dedos, pondo-as juntas sobre meu colo.
― É o mesmo jeito firme, engraçado e maduro dela.
― A sua ex? ― Assenti ― Você ainda é apaixonado por ela, né?
― O tempo da paixão já se esgotou. Eu a amo. ― Senti minhas retinas começarem a arder. Mas, como eu já disse, não vim pra cá por causa dela. Vim porque estava cansado de perder tanto, inclusive, me perder.
― Você acha que não tem a menor chance de ela estar te esperando? ― Dei de ombros.
― Nós já… nós não estamos mais juntos há algum tempo. ― Concordou com a cabeça em silêncio, olhando para seu guarda-roupa vazio.
― Você deveria procurá-la. Sabe, quando… sair daqui.
― Tenho medo, porque eu não sei como está a vida dela. E se ela estiver melhor sem mim? Eu não posso tirar isso dela de novo.
― Mas e se ela não estiver?
― Você vai procurá-lo? O seu ex-marido?
― É, eu vou.
Como , seu marido não quis ficar para vê-la se destruir, não quis ser destruído e consumido por sua dor. E, no fundo, esperava que ela tivesse mais sorte do que tive com minha ex.
Nem ele nem estavam errados em fugir enquanto ainda era tempo.
― Você devia fazer o mesmo.
― Por quê?
― Você não é a mesma pessoa de quando chegou aqui.
― Mas eu ainda não quero arrastá-la pra dentro dessa bagunça. Ela já tem os próprios problemas para lidar.
― Todos temos problemas, mas, com apoio, é mais fácil superá-los, não? ― Dei um meio sorriso.
― Eu vou sentir sua falta. ― Abraçamo-nos.
― Obrigada por tudo ― sussurrou ao pé do meu ouvido.
Desvencilhei-me dela para olhá-la nos olhos enquanto segurava seu rosto entre minhas mãos. Trocamos um sorriso e eu depositei um beijo entre suas sobrancelhas.
Quando saí do seu quarto, fui atrás de Joseph, pois ainda não tinha utilizado meus minutos de internet naquele dia. E aquele era um dos dias mais importantes para se ter acesso ao celular. George havia me prometido que mandaria uma primeira versão de como ele imaginava a canção que havia composto para Angela.
Nosso álbum estava quase finalizado quando me internei, porém as ideias não paravam de pipocar em minha cabeça. Talvez a sobriedade tivesse feito algo por mim, afinal. Mas aquela tinha sido a primeira vez que Daniel demorou tanto para me responder quando disse que precisava lhe mostrar algo. Por isso, fiquei completamente inquieto enquanto não passei meus olhos por sua mensagem que dizia “ok, vamos fazer!”
Joseph estava em seu horário de pausa, entretanto, acho que, no fundo, ele gostava de mim, já que não titubeou nem resmungou quando perguntei se poderia dar uma olhada em meu celular. Ele apenas se levantou e foi até a sala onde guardavam os pertences confiscados de todos os pacientes.
― Você não precisa nem fechar a porta, quero só ver uma coisa. ― Arqueou as sobrancelhas, surpreso.
Checando minhas mensagens recentes, George era o primeiro da lista.

“Ouve e me diz o que acha” Logo abaixo, havia um arquivo de mídia.

Cliquei em cima e uma base simples começou a soar. Após dez ou 15 segundos, concluí que não era o que eu esperava, mas estava no caminho certo. Talvez, precisássemos urgentemente nos trancar em estúdio juntos novamente para que o trem voltasse aos trilhos.

“Acho que quando eu voltar, teremos algumas coisas para trabalhar” Foi tudo o que respondi antes de entregar o celular nas mãos do enfermeiro.

― Você mudou bastante, né? ― disse ao trancar a porta.
― Por que você acha isso?
― Nos primeiros dias, você só faltava se ajoelhar para ficar mais dois minutos que fosse. E, hoje, você só respondeu uma mensagem e me devolveu.
― Acho que eu descobri que não morro sem mais uma extensão do meu corpo. ― Dei um meio sorriso.
― É importante que até você tenha percepção dessas pequenas coisas. No fim do dia, faz toda a diferença entre quem você era e quem você se tornou. ― Pôs a mão sobre meu ombro como um tapinha, seguido de um meio sorriso.
Assim, Joseph voltou para sua pausa, deixando-me para trás, pensativo.
É, eu não estava percebendo nada do que ele havia me dito. Sim, conseguia perceber que minhas mãos já não tremiam tanto, meus olhos já não lacrimejavam mais, a diarreia estava diminuindo dia após dia. Já não estava mais tendo febre nem calafrios, no entanto, ainda não tinha apetite. Pelo menos, não o suficiente para comer uma refeição completa. Às vezes, preferia me alimentar apenas de sopa ou com frutas, pois não pesavam tanto no meu estômago enjoado.
Mais tarde, era hora de ir para a terapia, o que eu não queria. Não naquele dia. Havia um milhão de coisas das quais queria falar a respeito. A ida de Angela e, consequentemente, a saudade que sentiria dela, o quanto isso me fazia querer dar um tapa que fosse em uma carreira de pó, beber até esquecer o caminho de casa ou o meu próprio nome.
Também queria falar sobre como olhar para Angela me fazia sentir como se estivesse olhando para e como isso chegava às vezes a me causar dor física. Como duas pessoas podiam se parecer tanto sem nem ao menos serem parentes ou terem semelhanças físicas?
Isso sem falar que boa parte da minha agonia era proveniente do fato de que eu não sabia separar o que sentia por do que sentia por Angela.
Caminhando para a sala onde as terapias conjuntas aconteciam, fiquei pensando sobre o que deveria falar. Não queria falar, mas sentia que deveria. Na frente de todo? Não! Ou sim? Será que os outros poderiam ter opiniões a respeito de como estava me sentindo? Será que mais alguém estaria sentindo o mesmo que eu?
Sentado de frente para todos, não vi o tempo passar nem ouvi o que os outros diziam, só soube que era hora de me retirar porque Rico tocou meu ombro. Sobressaltei, acordando do meu transe.
― Tá tudo bem com você? ― Olhando-o, dei de ombros. ― Você não quis falar sobre durante a sessão?
― Não achei que tinha muito a ver com o que os outros estavam falando ― menti.
― Quer falar sobre isso agora? ― Puxou uma cadeira para a minha frente, sentando-se.
― Você deve saber sobre mim e Angela, certo?
― Prefiro que você me conte a respeito.
― Nós dois nos aproximamos muito desde a minha chegada e eu gosto muito dela, mas não tenho certeza se é pelos motivos certos.
― E quais seriam os motivos certos?
― Gostar dela porque é uma pessoa maravilhosa, engajada, afetuosa, bonita…
― E por que você acha que gosta dela?
― Porque ela me lembra uma pessoa que eu amo.
― Sua ex-namorada? ― Assenti.
― Agora Angela está indo embora e é como se eu estivesse sendo deixado de novo. Estou muito feliz que ela tenha conseguido sobreviver até este estágio e vai voltar para a vida dela, poder se refazer e reconstruir os laços que perdeu, mas e eu?
― Como isso faz você se sentir?
― Péssimo. Eu poderia cheirar uma quantidade absurda de pó, beber e festejar a noite inteira pra minimamente tentar esquecer isso.
― E você acha que isso resolveria?
― Na verdade, só pioraria as coisas. De novo, eu só conseguiria afastar as pessoas mais ainda de mim. Mas parece que é a única forma que sei me consolar. ― Umedeci os lábios com a língua. ― Vim para cá porque estava cansado de perder pessoas, mas parece que nunca parei de perdê-las, nem mesmo quando estou me esforçando tanto.
― Matthew, você já parou para pensar que talvez você nunca tenha sido abandonado por ninguém a não ser você mesmo? ― Franzi as sobrancelhas sem compreender onde Rico queria chegar. ― Em todas as vezes que conversamos, você sempre pontuou que sua ex-namorada e seus amigos foram essenciais para que você decidisse melhorar. Mesmo quando achava que não tinha mais solução para você, eles continuaram acreditando. Então, o que te faz concluir que possa estar sendo abandonado por qualquer um deles?
― Acho que é só meu ego me dizendo que a culpa não é minha. ― Ri, dando de ombros. ― Ainda assim, mesmo que eu racionalmente tenha essa consciência, não consigo evitar me sentir desse jeito.
― Você tem aproveitado seus momentos com celular para se comunicar com eles?
― Sim. Sempre que posso, componho com meus melhores amigos e confiro como está. Acho que não quero que eles me sintam distante. Talvez não quero que eles me esqueçam.
― Eles não vão. Até porque eles não teriam tempo hábil para isso. ― Deu um sorrisinho, mexendo as folhas de sua prancheta. ― Não sei se você sabe, mas sua alta também está próxima.
― É, eu sei. Mas parece que os dias estão se arrastando ainda mais. ― Rimos.
― Costuma ser assim mesmo. Em menos de uma semana e meia, você vai vê-los e vai ver que a saudade não é o pior dos sentimentos que você poderia ter. Você acha que está pronto para lidar com o mundo lá fora de novo?
― Essa é uma pergunta que eu só vou conseguir responder quando estiver lá.
― Como você bem sabe, não trabalhamos com os 12 passos para uma vida sem vícios para quem não deseja segui-los e entendo que tenha seus motivos para não querer…
― Obrigado. ― Aproveitei sua pausa.
― Porém acredito que o oitavo e nono seriam interessantes para você e as pessoas que te cercam. Quero que você não pense nisso como algo relacionado somente ao seu próprio bem-estar ou à sua recuperação, mas como uma forma de reatar laços que estejam enfraquecidos e demonstrar àqueles que te apoiaram seu compromisso com sua evolução.
― Como exatamente a reparação com essas pessoas deve ser feita?
― Isso é você quem decide. Seja através de um pedido de perdão ou algo mais complexo, vai da sua necessidade, do que você considerar preciso.
― No fim, não acho que seja uma péssima ideia.
― Eu não tenho somente ideias chatas, viu só? ― Rimos.
― Obrigado, Rico. Eu estava precisando conversar.
― Você deveria me chamar mais vezes para esses momentos. Eu sei que você não se importa de falar na terapia em grupo, mas, às vezes, nem tudo precisa ser um grande anúncio, entende?
― É o costume. Depois de um tempo como pessoa pública, tudo se torna um grande anúncio, tudo precisa de plateia ou coisa que o valha. ― Dei um meio sorriso.
― Mas é importante que você saiba diferenciar a vida pública da privada. Você precisa ter momentos, sentimentos e relações que sejam só suas. Nem tudo precisa e nem deve ser compartilhado.
― Acho que eu aprendi isso da pior forma. ― Desviei os olhos para as minhas mãos.
― Pelo menos aprendeu. ― Sorriu. ― Tem gente que nem através da dor aprende. Você está evoluindo, Matthew, e não falo só do seu tratamento. Falo de algo mais profundo. Saber encarar as próprias feridas de frente e tentar melhorar é um bom começo.
― Espero não desistir no meio do caminho.
― Se acontecer, encare como um deslize e recomece quantas vezes for necessário. Só não interprete como uma queda, porque aí sim será mais difícil de voltar atrás.
Assenti, pensando a respeito.
“O problema é que minha vida é um eterno deslize”.
― Se você não se importar, tá na hora do jantar… ― deixei no ar.
― Claro. À vontade. ― Apontou para a porta.
― Obrigado mesmo, Rico.
― Sempre que precisar. ― Trocamos um meio sorriso antes de eu sair do local.
Diferente do que tinha dito, não fui para o refeitório, não tinha estômago para beber um gole de água que fosse. Só queria me deitar na cama em posição fetal e pensar sobre o que seria da minha vida assim que ganhasse alta.


#17

Seu irmão menor nunca te diz, mas ele te ama muito
(Colors - Halsey)



Depois que Angela recebeu sua alta, foi questão de dias até que a minha também fosse assinada. Ao mesmo tempo que senti alívio ao receber a documentação em mãos, também uma sensação de incerteza tomou meu peito.
Eu ainda tinha casa, família, amigos e um emprego que amava, mas ser um drogado filho da puta tinha ocupado boa parte dos meus últimos anos… arrisco a dizer que havia até se tornado parte da minha personalidade. E quem eu era sem isso? Talvez esta fosse uma das perguntas mais difíceis de responder.
Arrumei minhas malas lentamente, porém minha cabeça estava à milhão. Cada peça de roupa, livro e outros itens que colocava em minha bagagem parecia ser um pedaço de mim guardado dentro daquele pequeno retângulo. No entanto, ao final, sabia que ficaria faltando uma parte e, para cobrir aquele buraco, teria que me reinventar, reaprender a viver de outras formas.
Ao terminar, não desci para jantar nem para socializar, não estava com cabeça para nada disso. Queria apenas descansar e me preparar para as próximas interações as quais seria obrigado a fazer.
Deitado na cama, não dormi. Fiquei olhando para o teto a noite inteira, pensando sobre tudo em velocidade turbo.

- x x x -


Na manhã seguinte, não me permiti pensar muito sobre. Fiz tudo o que precisa pela última vez: assinei meu atestado definitivo de alta, troquei de roupa, peguei com a recepcionista as passagens que Jamie havia me mandado para voltar para casa, coloquei as malas dentro do táxi e parti para o aeroporto.
O primeiro voo me levaria para uma escala de três horas em um país vizinho, o que era péssimo. Não tinha por perto nada que pudesse me distrair além dos meus livros, os quais tinha lido todos durante a internação.
Pelo menos agora eu tinha acesso ilimitado ao meu celular. Na internet, o mundo continuava acontecendo, independente da minha existência ou da minha intervenção. Ao mesmo tempo que era triste concluir que ninguém efetivamente precisava de mim para sobreviver, era ótimo perceber que o mundo continuava o mesmo de antes de eu “sumir”.
Rolando as páginas de várias redes sociais diferentes, pude me atualizar da vida de quase todo mundo. Vi o que meus amigos andavam fazendo na minha ausência, as mensagens que minha família tinha me mandado ao saber que, em breve, estaria retornando e, até mesmo, pude ficar por dentro do trabalho.
George havia me respondido com algumas amostras de músicas que eu havia escrito e passado para ele produzir algo em cima. Todas estavam muito boas, mas precisavam de alguns retoques, como era de se esperar, e era nisso que trabalharíamos assim que eu estivesse de volta.
Cansado de ficar parado, fui andar pelo aeroporto, olhar algumas lojas, quem sabe tomar um café, o que fiz ao encontrar a primeira lanchonete à vista.
Caminhando mais à frente, encontrei uma livraria. Parei por alguns segundos, bebericando meu café enquanto relembrava o conselho de Rico a respeito de um pedido de desculpas para todas as pessoas que machuquei com minhas atitudes e meus comportamentos.
Talvez uma das pessoas com a qual eu mais queria me desculpar e, se preciso fosse, imploraria de joelhos por seu perdão era meu irmão.
Louis era uma das pessoas mais importantes no mundo para mim e eu faria qualquer por ele. E, de todas as pessoas, ele era a que mais ficava magoado com qualquer merda que eu fizesse para me machucar. Nós nunca falávamos sobre como ele se sentia sobre isso e nem havia por quê. Sabia exatamente como se sentia.
Se quisesse, aquele garoto poderia me dar a maior lição de moral da vida, dizer o que minhas ações individuais e egoístas, mais uma vez, estavam destruindo no nosso pequeno núcleo familiar, o quanto a situação estava ficando insustentável com nossos pais ou todas as vezes em que ele sofreu bullying de outros garotos por minha causa, afinal, Louis era o irmão mais novo de um “degenerado”.
Ao invés disso, ele só me abraçava e me perguntava se estava tudo bem, se eu precisava conversar.
Por causa de mim, Louis estava sendo obrigado a crescer cada vez mais rápido.
Pedindo para a pessoa do caixa ao lado da porta cuidar da minha bagagem no carrinho do lado de fora, entrei na livraria dando uma breve olhada em todas as lombadas e capas coloridas dispostas nas estantes. Haviam muitas opções, muitos lançamentos, no entanto, conhecendo meu irmão e o quanto estava se tornando ligado à atuação resolvi presenteá-lo com algo que tivesse significado.
Há muitos anos, sem querer, coloquei fogo com a ponta de um baseado acesa em uma versão encadernada de Giselle, de Théophile Gautier, que minha avó havia dado de presente para Louis. Menti até o fim que não havia sido culpa minha e que não sabia quem havia feito aquilo, mas, claro, todos sabiam a verdade. Inclusive, meu irmão.
Demorou algumas semanas para que ele voltasse a falar comigo, porém a certeza de que nunca havia esquecido não saiu da minha cabeça nem por um segundo.
Por não querer que se confirmassem as desconfianças a meu respeito, nunca me desculpei nem mesmo comprei um novo exemplar para Louis. E, ao encontrar uma versão de colecionador em capa dura, achei que era uma ótima forma de me redimir de todos os pecados que cometi enquanto irmão mais velho.
O preço era salgado, mas, por Louis, qualquer coisa valia a pena.
Ao pagar, coloquei o livro dentro da bolsa carteira, que carregava sobre o ombro, peguei meu carrinho e continuei a caminhar pelo aeroporto, na companhia apenas do meu café morno e dos fones de ouvido, que me confortavam ao som de Scattered Black and Whites, de Elbow.

- x x x -


Quando desembarquei em Londres, não havia ninguém me esperando, como havia pedido. Por isso, entrei no primeiro táxi que vi, passando-lhe o endereço da minha casa.
Olhando a paisagem passar pela janela do carro, só conseguia pensar no quanto gostaria de tomar um banho fora do horário, comer a hora que eu quisesse, assistir à um filme, jogar videogame… literalmente tudo que não pude fazer no tempo em que estive internado.
E qual não foi minha surpresa ao abrir a porta de casa e ver toda a minha família e amigos gritando “bem-vindo de volta”, soltando confetes, embaixo de uma faixa com “Parabéns, Matty” escrito em caixa alta?
― Oi, pessoal. ― Sorri. ― Parece que fiz falta. ― Deixei minhas malas ao lado da porta.
Não surpreendendo ninguém, Louis foi a primeira pessoa a me abraçar e me beijar. Apertei-o entre meus braços, dizendo à nossa maneira que também senti sua falta.
Era ótimo saber que, apesar de tudo, não havia sido o suficiente para estragar por completo o que tínhamos.
Desvencilhando-me dele, gastei mais alguns segundos olhando seu rosto sorridente entre minhas mãos.
Em seguida, um a um, começaram a se juntar a nós para me abraçar. Todos estavam mais animados que imaginei que estariam ao me ver. Era como se eu tivesse ido fazer intercâmbio de um ano em outro país, não me internar para ficar limpo e evitar morrer durante à noite enquanto todos estivessem em sono profundo.
Após a sessão de recepção, sentamos no sofá, cadeiras e, até mesmo, no chão para comer o bolo que haviam feito para mim. Durante a breve refeição, contei um pouco sobre como havia sido minha estadia na clínica, como demorei alguns dias para me acostumar às tarefas, como era cuidar de cavalos e outras coisas cotidianas.
Todos ouviam atentamente, como se eu pudesse ter uma recaída caso não me ouvissem falar.
― E como você se sente depois de tudo isso? ― Minha mãe questionou com os olhos cheios de expectativa.
― Bem. Limpo. Às vezes é estranho estar nesse lugar, mas acho que vou me acostumar, né? ― Concordou com a cabeça, com um sorriso orgulhoso.
― Mas a pergunta que não quer calar é: o que você quer fazer primeiro? ― George questionou antes que alguém pudesse meter-se em sua frente.
― Trabalhar. Temos um álbum para finalizar, certo? ― Deu um sorriso satisfeito e um tapinha em meu joelho. ― Aliás, quero aproveitar que estão todos aqui para agradecer pela paciência, por terem me permitido ter esse momento, mesmo que isso significasse atrasar nosso cronograma.
― Você é mais importante que qualquer cronograma, agenda ou qualquer merda dessas ― afirmou Ross em um tom encorajador.
― Você é nosso irmão e jamais poderíamos deixar nada te acontecer. Sua saúde está em primeiro lugar ― Adam completou.
― Mais uma vez, muito obrigado. De verdade.
Depois disso, aos poucos, o assunto deixou de ser eu, a reabilitação e acabou se transformando em muitos outros temas paralelos. Neste meio tempo, meus pais e meu padrasto anunciaram que estavam indo embora, pois tinham vindo apenas me receber. Todavia, uma pessoa não parecia querer ir embora, portanto, fiz o que deveria fazer:
― Louis, se você quiser ficar, você pode. Podemos jogar videogame e dormir até mais tarde, como nos velhos tempos. O que acha? ― Pus a mão sobre seu ombro.
― Se não for um problema para você… ― deixou no ar, com os olhos brilhando.
― Eu faço questão que você fique. Faz muito tempo que não nos vemos, certo? ― Assentiu.
― Vocês é quem sabem ― Denise manifestou-se, querendo pôr um ponto final na conversa.
― Eu vou ficar ― confirmou.
― Certo, vamos embora, então. Garotos, até mais. ― Acenou para meus amigos, que devolveram o gesto.
Acompanhei a todos até a porta e, ao voltar para a sala, Louis já estava novamente acomodado entre os outros, escolhendo um jogo, que, chocando ninguém, era Mario Kart.
― Por que você gosta tanto desse? ― Observei-o arrumando tudo para começar a jogar.
― Me lembra de quando estávamos sempre juntos. Sinto falta disso.
― Eu também. ― Sorri, colocando a mão sobre seu ombro.
― Mas não pense que isso vai me fazer aliviar para o seu lado, velhote.
― Eu nem quero. Assim, posso te provar que não estou enferrujado. ― Riu.
― Veremos.
E, desta forma, jogamos algumas partidas até que os outros também quisessem fazê-lo. Logo, acabamos cedendo o controle do perdedor para que novos jogadores pudessem entrar em nosso “campeonato”.
Quando largou o controle pela última vez para ceder lugar a Jamie, Louis levantou-se e foi para a cozinha. Imaginando que seria o momento perfeito para conversarmos, fui atrás dele após pegar o livro dentro da minha bolsa.
Escondendo o objeto nas minhas costas, observei-o beber um copo de água do batente da porta.
― Que foi? ― resmungou entre um gole e outro.
― Tem algo que quero muito te dizer.
― Estou ouvindo. ― Encostou-se na parede atrás de si.
― Eu não sei o que você acha ou o que sentiu sobre tudo o que aconteceu, mas, independente de qualquer coisa, quero que você me perdoe por todas as vezes que fui um irmão de merda. Eu é quem deveria cuidar de você, não o contrário, certo?
― Matty, tá tudo bem…
― Não, não tá ― interrompi-o. ― E quero que você saiba que me arrependo disso, de tudo que eu fiz você passar até aqui. Você é uma das pessoas mais importantes da minha vida e eu odiaria te perder por qualquer que fosse o motivo. ― Deu um meio sorriso.
― Eu sei.
― Você também deve saber que eu te amo, né?
Ew! ― Fez uma careta e eu ri. ― Ok, acho que essa conversa já foi longe demais. ― Bebeu o resto da sua água.
― Como prova de tudo isso, quero te dar algo.
― Espero que não seja nenhum dos seus conselhos horríveis.
― Ei, meus conselhos são ótimos. ― Fingi indignação, mas acabei rindo com ele. ― Mas é muito melhor que meus super conselhos, ok?
― E o que é? ― Cruzou os braços ao soltar o copo sobre a pia.
― Aqui. ― Estiquei o braço com o exemplar na mão.
Atônito, Louis olhou por alguns segundos para a capa do livro sem se mover ou dizer uma palavra. Após isso, levantou os olhos até meu rosto, voltando-os rapidamente para a encardenação.
― É sério?
― É. Por quê? Não gostou? ― Fiquei preocupado de imediato.
― Isso deve ter custado uma fortuna.
― Por você, vale cada centavo. ― Sorri.
Antes mesmo de pegar seu presente, meu irmão me abraçou forte e, sem que eu esperasse, senti algo molhar próximo à minha nuca. “Lágrimas?”
― Eu te amo. ― Ao ouvi-lo dizer, acariciei seus cabelos com minha mão livre, agradecendo ao universo ou qualquer outra força superior que pudesse existir por aquele momento, mesmo que eu não acreditasse em nada.

- x x x -


Ao acordar, a primeira coisa com a qual dei de cara foi as costas cobertas de meu irmão. Mesmo tendo um quarto de hóspedes na casa, ainda assim, havíamos dividido a cama, como fazíamos quando ele era criança. A imagem me tirou um leve sorriso.
Espreguiçando-me, cocei os olhos e levantei preguiçosamente da cama.
Estava um pouco frio, porém eu estava vestido o suficiente para não precisar de um casaco ou coisa do tipo.
Fui até o banheiro, escovei os dentes e lavei o rosto, encarando-me por alguns segundos no espelho.
George havia me avisado que ficaria produzindo no estúdio até terminar alguns materiais que estava trabalhando para outros artistas e, considerando que odiava deixar coisas incompletas, devia ter ficado a noite inteira. Provavelmente, se aparecesse lá, o veria dormindo ou ainda trabalhando a todo vapor.
Considerando que aquele seria um dos momentos mais tranquilos que teríamos juntos, fui até a cozinha e resolvi fazer um café da manhã reforçado para ele. Café puro, sem açúcar, torradas e ovos mexidos com cubos de tomate.
Ajeitei todos os itens, inclusive uma xícara de café para mim, sobre a bandeja que nunca usávamos e desci as escadas até o subsolo, onde ficava o estúdio.
Sem fones, George viu eu me aproximar com seu café, franzindo as sobrancelhas, sem compreender.
― Aconteceu alguma coisa?
― Sei que você passou a noite inteira aqui e imaginei que estivesse precisando comer algo. ― Pus a bandeja sobre um canto desocupado da mesa ao lado de seu computador, sentando-me na cadeira próxima. ― Mas também porque queria conversar com você.
― Ah, é? Sobre o que? ― Afastou a cadeira de onde trabalhava, pegando uma torrada em mãos e dando uma mordida.
― Uma das coisas que eu entendi ao fim do meu tratamento é que preciso me desculpar por todos os danos que causei a quem eu mais amo…
― Matty…
― Não, espera, escuta ― interrompi-o. ― Você foi uma das pessoas mais injustiçadas ao longo de todo esse processo. Eu te disse e te acusei de coisas horríveis, que não tinham o menor cabimento e, mesmo assim, você me acolheu, não fez eu me sentir pior do que já estava me sentindo. E eu sinto muito por isso. Que o Louis não me ouça, mas você é a minha pessoa favorita no mundo, passei a minha vida adulta inteira ao seu lado e não saberia viver se te perdesse. ― Deu um meio sorriso.
― Ah, cara… ― Desviou o olhar para a fatia de pão em uma das mãos.
― Então, mesmo que seja difícil para você ou que eu tenha ido longe demais com as minhas atitudes, quero que você me perdoe por tudo.
― Eu não preciso te perdoar por nada. ― Largou o que sobrou da torrada no prato, inclinando-se na minha direção. ― Na verdade, eu fico feliz e aliviado que você tenha chegado até aqui. Mais do que isso, estou orgulhoso de você. Orgulhoso por ter reconhecido que precisava de ajuda, por ter aguentado até o fim do tratamento, por ter voltado para nós. Estou orgulhoso que você tenha voltado para casa limpo, são e salvo. ― Pôs a mão sobre o meu joelho. ― E o que acha de trabalharmos em algumas coisas agora?
― Você não precisa, tipo, dormir? ― Ri, pegando minha xícara para beber meu café.
― Eu posso fazer isso a qualquer momento.
― E trabalhar também.
― É, você tá certo. Eu acho. ― Sorri, bebendo um gole do meu café.
Por mais que tivesse admitido, para George, aquela não era uma derrota, tanto que passamos todo o nosso café conversando sobre coisas que poderiam ser mudadas e o que ainda estava faltando para que déssemos a produção daquele álbum como finalizada.
Quando as torradas e os ovos se transformam em um prato vazio, levamos tudo para cozinha e meu amigo se encaminhou para sua cama.
Louis ainda não estava acordado, portanto, perambulei pela casa, fumando quantos cigarros conseguisse até que alguém desse um sinal de vida ― o que demorou mais algumas horas.
Esse tempo foi suficiente para que eu fizesse o que não tinha feito desde a minha viagem de ida: bisbilhotar a vida de .
Tudo parecia igual. continuava sendo a melhor amiga de e ambas estavam sempre juntas. Ela ainda continuava sendo a queridinha de seu chefe e conseguindo realizar as melhores entrevistas possíveis. E, diferente de quando estávamos juntos, seu rosto já não tinha o mesmo ar cansado de antes.
A pele estava com um viço saudável, o sorriso ainda parecia iluminar seu rosto, mas de um jeito mais leve, além de possuir aqueles mesmo olhar desafiador.
― Tá sorrindo igual idiota por quê? ― Louis jogou-se ao meu lado no sofá e eu bloqueei o celular o mais rápido que consegui, colocando o cigarro na boca para disfarçar.
― Tava vendo alguns memes. ― Soprei a fumaça e bati as cinzas dentro de uma xícara suja de café ao meu lado.
― Sei. E esse que você tava vendo foi feito pela ? ― Na hora, senti o sangue escorrer da minha cabeça, mas tentei fingir plenitude.
― O que tem ela?
― Acha que eu não vi você olhando alguma coisa dela?
― E se estivesse? Algum problema? ― Fiquei na defensiva, enquanto que Louis riu, balançando a cabeça negativamente.
― Ei, vocês aí, perdedores, Ross e Adam estão perguntando se queremos almoçar com eles?
― Eu topo ― respondi.
― Eu vou onde a comida estiver porque não sei cozinhar.
― Nós vamos. Esperem por nós, ok?
Adam e Ross, geralmente, faziam suas refeições nos horários corretos, diferente de nós. Por isso, em consideração a eles, nos arrumamos ligeiro e saímos para encontrá-los.
Não havia muito que pudéssemos dizer ou fazer dentro do carro durante o trajeto. Daniel e eu acendemos cigarros e Louis ficou a viagem inteira com a cabeça deitada sobre a beira do vidro da janela, ouvindo música.
Fomos para a casa de Adam, onde nos sentamos do lado de fora para comer, o que era ótimo, pois, nos últimos tempos, havia me acostumado com essa coisa de permanecer muito tempo do lado de fora, tomando um pouco de sol.
― Ah, com toda a correria, esquecemos de falar que o velho Oborne conseguiu o que pedimos ― Ross quebrou seu silêncio após um gole de cerveja.
― O que vocês pediram? ― Olhei para todos, esperando pela resposta.
― Credenciais para o show do The Killers. ― Encarei George com as sobrancelhas franzidas.
nos deu presentes de Natal e, mesmo que não tivesse feito isso, nós queríamos presenteá-la com algo legal. Aí o Ross se lembrou do dia em que te levamos para o aeroporto e todo o lance com The Killers, por isso, achamos que seria legal dar algo assim. ― Adam deu de ombros.
― Ela vai adorar. ― Sorri.
― Você já falou com ela?
― Ainda não. Não sei o que dizer e muito menos se é o momento. Acho que ela tá bem sem mim e não precisa que eu revire memórias de novo, né? ― Remexi minha comida com o garfo.
― Acho que ela ficaria muito feliz em te ver. ― Ross falou apontando com o garfo para mim.
― E, se você não tem o que dizer, pode usar como desculpa que você era o único com tempo livre para entregar o presente que temos para ela ― Adam completou.
Passei os olhos entre os três, procurando algum resquício de que estava brincando. Eu não acredito que eles estão falando sério.
― Vocês não acham que foram um pouco longe demais na imaginação?
― Por que você só não aceita? Tá na sua cara que você quer muito aceitar. ― Foi a vez de Louis contra-argumentar.
Decidi não falar mais nada sobre o assunto, pois todos ali já tinham entendido que eu queria ir. Na verdade, eles também não me deixariam desistir de ir. Acho que, bem no fundo, todo mundo sabia que ela e eu tínhamos ponteiros a serem acertados.
Nosso tempo juntos não durou muito mais, Adam ainda iria passar na casa dos pais para buscar algumas coisas e Ross tinha marcado de encontrar John e Jamie, da banda de apoio.
No caminho de volta, tentei pensar em algo que poderia presentear . Não queria ser somente o pombo-correio de meus amigos e, até mesmo, aproveitaria a situação para pedir seu perdão. Independente de como ficaríamos dali em diante, era uma das pessoas para as quais eu mais devia esse pedido.
tem feito algo de diferente? ― questionei George quando parou em um sinal vermelho.
― Como assim?
― Sei lá, algum hobby, atividade…
― Você sabia que ela corre? me contou que ela tá pensando em se inscrever em uma maratona beneficente.
― Sim. ― Ri. ― Achei que todo mundo soubesse disso.
― Descobrir isso me deixou um pouco sem reação, porque isso explica como ela conseguia andar para lá e para cá sem morrer no meio do caminho.
― Ela é mesmo impressionante, né? ― Desviei o olhar para a janela, com um sorriso no rosto.
E, como um raio cruzando o céu, uma ideia surgiu na minha cabeça.
― Eu preciso que você pare em uma loja de eletrônicos.
― Agora? ― Fez uma careta.
― Agora!
Daniel dirigiu por mais alguns quarteirões até achar o que tinha lhe pedido.
Deixando meu amigo e meu irmão no carro, fui até a loja.
― Olá, posso ajudá-lo? ― Uma moça simpática direcionou-se a mim.
― Ah, claro. Eu queria um fone de ouvido bluetooth.
― Alguma preferência por marca?
― Bom, é para prática de esporte, então, precisa ser um material mais resistente.
― Por aqui. ― Guiou para uma parte mais ao fundo do estabelecimento.
A garota foi tirando alguns objetos da prateleira, mostrando um a um e falando sobre suas vantagens ou desvantagens, além de, quando questionada, fazia um comparativo entre alguns modelos.
Enquanto encarava dois modelos em específico, a vendedora chamou minha atenção:
― Você por acaso é o Matty? The 1975, certo?
― Achei que dessa vez eu sairia ileso. ― Rimos.
― Tudo bem, não sou uma grande fã. Minha colega de quarto é.
― Quer uma foto, um autógrafo?
― Você se importa de, depois da sua compra, mandar um beijo para ela por vídeo?
― Claro que não. Se você fosse escolher um fone que tenha bons graves, uma boa vida útil a longo prazo, boa bateria e que seja confortável para correr, o que escolheria?
― Tem limite de preço?
― Não mesmo, vai que é sua, garota.
― Então, este aqui. ― Pegou em mãos um headphone prateado, não muito grande e que parecia perfeito. ― A bateria dele é de 24 horas de uso, 80 horas em pausa, atende e recusa chamadas, dá pra acionar a assistente do celular e retornar ligações do último contato que te ligou. E, em relação ao corpo, é resistente ao suor, água e poeira.
― Parece ótimo.
― Vai levar?
― Você faz um pacote de presente?
― Vamos para o caixa. ― Sorriu.
Enquanto a vendedora fazia o cupom fiscal de garantia do produto, pedi seu celular para gravar o vídeo para a sua amiga.
― Como é o nome dela?
― Raven.
― Olá, Raven, aqui é o Matty. Vim comprar uma coisa com a… ― Virei a câmera do celular para a vendedora e esperei que dissesse seu nome.
― Serena.
― Com a Serena. Muito simpática ela, né? Enfim, ela me disse que você é fã, por isso estou gravando essa mensagem. Espero te ver no próximo show, ok? Até lá. ― Acenei para a câmera antes de parar o vídeo e devolver o aparelho.
― Você prefere um papel de presente ou uma caixa?
― Caixa. Preciso colocar outras coisas dentro.
Serena terminou de embalar o fone e fez a cobrança da minha compra.
― Muito obrigada pela compra e pelo vídeo. Raven vai adorar.
― Não há de quê. Muito obrigado pela ajuda também. ― Peguei a sacola e saí da loja.
Do lado de fora, corri para entrar no carro e partimos o quanto antes para casa.
Apesar de ter dito a Serena que iria colocar mais coisas dentro da caixa, além do presente da banda, não fazia ideia do que mais pôr, mas sentia que faltava algo, como se precisasse demonstrar meu arrependimento através de algum objeto faltante.
E foi ao passar em frente à uma farmácia que entendi perfeitamente o que precisava fazer.


#18

Eu nunca poderia segurar algo perfeito e não demolir
(Forever... (is a long time) - Halsey)



Demorei ainda alguns dias para resolver ir atrás de . Acompanhando sua vida pelas redes sociais, sabia que havia passado as festas de fim de ano com os pais e que estava voltando para casa em pleno dia dois de janeiro. Esperava que não com o mesmo humor das “festividades” do ano anterior, quando eu e seus familiares conseguimos estragar tudo.
Mas foi naquele dia que tomei coragem para fazer o precisava ser feito. Fumei dois cigarros, tomei banho, escovei os dentes e até passei enxaguante bucal por mais tempo que o necessário para garantir que estava tudo certo. Mesmo que as chances de nos beijarmos de novo fosse mínima, não queria ser pego de surpresa caso acontecesse.
Para evitar perder tempo ou estragar a “surpresa”, liguei para para pedir que me esperasse na redação, pois passaria para buscá-la. , como a boa melhor amiga fofoqueira, ligou para o trabalho de e descobriu que ela não estava lá e, ainda, me contou que já estava em casa, porém arrumando suas malas para viajar a trabalho, logo, se precisasse conversar com ela, teria que ser naquela noite ou então só no final de semana, quando retornaria para a cidade.
Escolher uma roupa foi a tarefa mais difícil do mundo. Queria que me notasse, mas não queria que achasse que eu só estava querendo impressioná-la. Também não queria ir despojado demais para que ela não achasse que a reabilitação havia me transformado em um homem maltrapilho ou que não se importa com a própria aparência.
Mesmo que estivesse frio do lado de fora, ainda assim, estava tão nervoso que estava suando, logo, escolhi uma camiseta comum e um casaco um pouco mais quente para compensar, uma calça jeans e tênis.
Saindo do quarto, dei de cara com George fumando um cigarro enquanto assistia um filme qualquer na televisão.
― Vai sair?
― Vou entregar as coisas da .
― Achei que você já tivesse feito isso.
― Não, mas estou indo agora.
― Te espero para jantar? ― Pensei a respeito.
― É, pode esperar, sim. ― Assentiu.
― Boa sorte.
― Vou precisar. ― Peguei as chaves da casa, do carro e saí.
Já sabia o caminho do seu prédio de cor, não importava o meio de transporte, carro, a pé ou de metrô. Era como se fosse o trajeto da minha própria casa, por isso, não necessitava nem pensar nos movimentos que precisaria fazer ao volante para chegar até lá.
Estava morrendo de vontade de fumar um cigarro, entretanto, jogaria meu banho e minha escovada de dentes mais caprichada fora, por isso, me segurei. Haviam coisas mais urgentes do que suprimir minha ansiedade com um ou dois tabacos.
Peguei os presentes e saí do carro antes que sucumbisse. Entrando no edifício, cumprimentei o porteiro sem nem precisar dizer para que apartamento estava indo.
Quando cheguei em frente à sua porta, eram oito horas da noite em ponto e, apesar de não ter certeza se já estaria em casa ou não, preferi confiar que sim. Toquei a campainha e apenas esperei.
Ao me atender, em silêncio, suas sobrancelhas se ergueram.
― O que você tá fazendo aqui?
― Boa noite, . ― Dei uma risadinha. Como eu senti sua falta. ― Posso entrar? ― Sem muita reação, me deixou passar pela porta, fechando-a atrás de si.
Sua casa tinha aquele mesmo ar aquecido de sempre, porém, desta vez, era por culpa da calefação. Então, antes de me sentar no sofá, tirei o casaco, deixando-o de lado.
― Como sabia que eu estava em casa? ― Virou-se para mim, olhando-me.
― Pedi a para telefonar pra você no trabalho e pedir que me esperasse pra virmos pra cá juntos, mas informaram que você não estava lá.
― Ok, mas eu ainda não entendi a finalidade. ― Sua voz soava meio desconfiada.
― Ah, é isso aqui. ― Entreguei o embrulho feito por Adam e a caixa com os meus presentes.
― O que é isso? ― Recebeu-os, sentando-se ao meu lado no sofá.
― Abre, mulher. ― Sorri ao ver a desconfiança que não ia embora, como se eu tivesse lhe dado uma bomba para segurar.
Rasgando o embrulho sem a menor piedade, a credencial logo se revelou diante de seus olhos, fazendo-os brilhar discretamente de alegria.
― Os caras mexeram os pauzinhos junto com Jamie pra conseguir te dar isso. Um agradecimento e uma piada interna em um mesmo presente.
― Eles nunca mais vão esquecer aquilo, né? ― Reprimiu uma risadinha.
― Se você der sorte, talvez em uns cinco anos ninguém mais se lembre. ― Ri.
― E esse? ― Com cuidado, segurou a caixa, alternando o olhar entre o objeto e eu.
― Ah, esse é meu. ― Descansando-a sobre as coxas, desamarrou a fita, abrindo a caixa.
― Um cheque de 500 libras? ― Fez uma careta.
― Pra pagar pelos seus remédios que joguei fora naquele dia. Não sabia qual era o valor exato, então, coloquei um que achei que se aproximava. Mas esse não é o presente. ― Tomei o cheque de suas mãos para se concentrar no que importava.
― Nossa, de todas as coisas que eu precisava, você acertou em cheio. ― Sorri.
― Sempre vi você ir correr com fone de fio e sei o quanto te atrapalha. Achei que talvez fosse hora de você ter um desses e praticar mais confortável.
― Obrigada.
Abraçando-me com força, senti seu corpo quente próximo ao meu, o que fez com que eu me arrepiasse. Era uma sensação engraçado, pois fazia muito tempo que não me sentia assim, ainda mais em um contato meio desajeitado, onde quase não nos encostamos direito.
Meu rosto queimava em um misto de nervosismo com excitação. Sabia que aquele abraço podia não ter significado nada para ela, mas, para mim, significou tudo. O nó no estômago, a boca seca, as mãos suando…
Quando desvencilhou-se de mim, sentou-se um pouco mais próxima, olhando-me nos olhos. Aquela sensação fez uma agonia crescer dentro do meu peito, uma necessidade de colocar tudo em pratos limpos.
― Você sabe que eu não vim aqui pra tentar transar com você de novo, né? ― Passou a língua pelos lábios, concordando sem desviar dos meus olhos. ― Ok, só achei que precisava falar antes que você imaginasse que esse era o motivo. ― Quase suspirei de alívio.
― Mas você quer?
― O quê? ― Sua pergunta me pegou tão de surpresa que não tinha certeza se estava entendendo da maneira correta ― Bom… ― Movimentei-me, um pouco desconfortável em ter que afirmar o óbvio. ― Você quer?
― Nesse momento… ― Ajeitou parte do meu cabelo atrás da minha orelha. ― não tem nada que eu queira mais do que isso.
Imitei seu gesto, sorrindo. No entanto, seu cabelo desobedeceu meu comando, praticamente pulando para frente outra vez, o que nos fez rir. Era ótimo como qualquer bobagem nos distraía e criava uma atmosfera leve entre nós.
Encostei a testa na sua, fechando os olhos enquanto acariciava seu maxilar. Antes de qualquer coisa, queria que tivesse tempo para pensar sobre o que estava me propondo.
― Tem certeza?
― Por que você vive me perguntando isso?
― Porque eu não quero que você se arrependa de algo que eu tenho certeza de que não vou me arrepender.
Como se aquela fosse a resposta que esperava ouvir, me beijou suavemente, de uma forma muito diferente que imaginei que seria nosso primeiro beijo caso acontecesse após o meu retorno. Obviamente, não era ruim, mas mostrava o quanto nossa relação havia mudado. Não saberia dizer se para melhor ou pior, entretanto, já não era mais a mesma coisa.
Ao desvencilhar-se, levantou-se e estendeu a mão em minha direção, a qual segurei e a deixei me guiar para seu quarto.
Meus primeiros movimentos foram tirar os sapatos e as meias para sentar-me e estender minhas pernas sobre sua cama. Sem perder tempo, também subiu sobre o colchão engatinhando a movimentos curtos para chegar mais perto, sentando, por fim, sobre suas pernas à minha frente.
Como já era costume, ficamos alguns segundos nos encarando, olho no olho e sorrindo. Não havia pressa em nenhuma de nossas ações. , que antes era a pessoa que já chegava ao quarto tirando a roupa, desta vez, limitou-se a esperar que eu tomasse a iniciativa, quase como se tivéssemos combinado.

[n/a: coloca essa aqui pra chorar de soluçar e deixa no repeat se for necessário!!!]

Era um momento tão bonito, cheio de tantas palavras não ditas que eu ficaria feliz de permanecer daquela maneira com ela, independente do sexo.
Ficando de joelhos, deu mais alguns poucos passos à frente, permitindo que pudesse agarrá-la pelo quadril, colando nossos corpos para nos beijarmos de novo.
A saudade que senti dela fazia com que quisesse tocá-la em todos os lugares ao mesmo tempo para que nada se perdesse. Apesar disso, não o fiz. Contentei-me em apenas escalar seu corpo aos poucos com as pontas dos dedos, fazendo-a me sentir por baixo da roupa. E, por mais que a vontade fosse de reviver nossos momentos de loucura intensa, onde arrancávamos as roupas o mais de pressa possível, queria desfrutar daqueles breves instantes antes que me escapassem pelas minhas mãos como areia.
Por fim, deslizei as mãos para cima, trazendo sua camiseta junto. , por sua vez, ajudou-me erguendo os braços para facilitar. Todavia, algo chamou a minha atenção, fazendo-a rir.
― Você tem sutiã?
― Acho que é uma das peças mais comuns no armário de qualquer pessoa que se identifique como mulher, não?
― Mas eu nunca vi você…
― Usar? ― interrompeu-me. ― Simples: eu sabia que toda vez que nos encontrássemos iríamos acabar transando e é uma coisa a menos. Sem contar que eu dificilmente uso roupas muito transparentes, logo, não preciso de um sutiã.
, você me enganou esse tempo todo!
― Não. Você que é bobinho e achou que eu fosse algum tipo de mulher super barroca e diferentona que aboliu o sutiã para sempre. ― Acariciou os lóbulos das minhas orelhas. ― Espero que não tenha perdido a prática para abrir. ― Riu de um jeito travesso ao me ver um pouco atrapalhado com os colchetes.
A verdade é que estava tão agitado com tudo o que estava acontecendo que, aparentemente, tinha perdido a prática com ações muito básicas, como abrir um sutiã.
Quando consegui finalmente me livrar da peça, joguei-a longe, ocupando minhas mãos e meus olhos com o deleite que era a imagem de seu tronco. O abdômen, as costelas, o vão entre os seios… tudo nela clamava pela minha boca. Clamor este que atendia de bom grado, cobrindo cada pedaço dela com meus lábios.
Ocupado com seus seios e com sua bunda, seus dedos entraram em meio aos meus cabelos, apertando-os com um pouco mais de força que o normal. Entretanto, não puxou minha cabeça para longe de seu corpo e, sim, pressionou-me ainda mais contra o seio que eu ainda não havia chupado.
No sexo, sempre ditava nosso ritmo. Eu apenas a seguia. Se ela queria rápido, íamos rápido. Se ela queria forte, a atendia e ainda agradecia por estarmos juntos. Logo, quando decidiu que era hora de tirar minha camiseta, deixei.
Éramos da mesma altura, porém, em momentos como aquele, sua cama sempre se tornava pequena demais para nós dois. Tanto que, ao me inclinar sobre ela para fazê-la deitar, quase metade de sua cabeça ficou para fora do colchão. E, mesmo assim, recebeu cada um dos beijos que dei em sua barriga e permitiu que me livrasse do resto da roupa que me impedia de ter total acesso ao seu corpo.
Assim como o caminho de sua casa, eu sabia exatamente o caminho a ser feito para que alcançasse o prazer. Aquele talvez fosse um dos caminhos preferidos pelo qual gostava de guiá-la. Por isso, não foi nenhuma surpresa quando suas costas arquearam ao sentir minha língua passando pelo seu clitóris.
O ponto mais fora da curva era que, desta vez, não estava gemendo como costumava. Não porque não estivesse excitada ou não estivesse gostando. Os sinais estavam todos ali: as mãos apertadas em volta do cobertor, os espasmos que mais pareciam choques elétricos, a lubrificação, os suspiros, a perna sobre o meu ombro, vez ou outra, me apertando…
No entanto, algo estava acontecendo e eu não sendo capaz de lê-la.
Ao erguer-me para olhá-la rapidamente, a mulher não me deu tempo para reagir. Empurrou-me com um dos pés para trás e, rapidamente, veio para cima de mim, fazendo com que me deitasse. Atentamente, observei como cuidadosamente desafivelava meu cinto, abriu o botão e o zíper da minha calça, livrando-se dela e da minha cueca de uma única vez.
Com uma das mãos, envolveu meu pau, masturbando-me. E, por mais que quisesse fechar os olhos e me entregar às sensações, não queria perder um segundo dela. Então, a vi habilidosamente abrir a gaveta com apenas uma mão e retirar uma fileira inteira de preservativos. Para destacar o pacote, largou meu pênis e eu não sabia se ficava mais surpreso com a quantidade de camisinhas ou com como conseguiu abrir a gaveta e pegar o que queria com uma única mão livre, sem descompassar o ritmo de vai e vem da outra.
― Repus o estoque esses dias ― falou e quase ri.
Antes de inverter nossas posições, deixei-a colocar a camisinha em meu pau e só aí coloquei-me em meio às suas pernas.
Nossos lábios se tocaram novamente, devagar, e senti como se encaixássemos perfeitamente no corpo um do outro. Era como se eu tivesse sido feito sob medida para ela. Sua boca era do tamanho exato para minha, assim como seu corpo tinha o tamanho exato para caber em meio aos seus braços.
Ao penetrá-la, passei a me movimentar lentamente, porém, de novo, algo não estava certo. O rosto de tinha uma expressão ilegível, por isso, parei para lhe perguntar se estava tudo bem, começando a me preocupar.
Assentindo com um sorriso tímido, afirmou que estava tudo bem, logo, selei nossos lábios, voltando a me mexer dentro dela.
Olhando em seus olhos, segurei seus pulsos para levá-los a altura de sua cabeça, sobre seu travesseiro, entrelaçando nossos dedos.
Cada vez mais, eu era tomado por um sentimento que talvez nem nome tivesse. Era como uma falta.
me fazia falta em tudo. Seu sorriso, seus olhos, seu mau humor, seus excessivos palavrões em momentos de descontração, as mãos quentes, seus beijos, seus abraços.
E, no sexo, talvez fosse ainda pior. Não era como se fosse incapaz de sentir prazer com outras pessoas. Na verdade, tudo era como sempre foi. Meu pau ainda ficava duro, eu ainda gostava de ser chupado independente da boca que o fizesse e ainda conseguia gozar. Mas, uma vez que provei , nunca mais a esqueci. Eu era incapaz de sentir com outra pessoa o que sentia com ela.
Era como se o que faltasse em mim, de repente, nunca estivesse tão próximo, como se nunca tivesse faltado. O formigamento na minha pele deixava de ser só algo corriqueiro e se tornava algo intenso. Por onde sua boca passava, deixava um rastro, como impressões em cimento fresco. Sem contar o nervosismo, pois era como se sempre fosse nossa primeira vez.
Soltando suas mãos das minhas, abraçou-me com todos os membros de seu corpo, apertando-me ao máximo, quase como se estivesse prestes a nos fundir, tornar-nos um só. Aos poucos, seus espasmos faziam o espaço entre nós diminuir mais ainda, inclusive, me deixando quase imóvel.
E, apesar disso, não demorou muito para que tivesse um orgasmos, que, além de fazê-la tremer, também a fez chorar de soluçar.
Assustado, mesmo sem ter gozado, saí de cima dela.
― O que aconteceu? Eu fiz algo errado? Te machuquei? ― Acariciei seu rosto para fazê-la se sentir acolhida e presa ao tempo presente, caso fosse uma crise de pânico.
A mulher afastou-se, encolhendo-se na cama com os braços prendendo os joelhos próximos ao peito. Naquele momento, o corpo de era quase uma fortaleza que me mantinha longe de seus sentimentos.
... fale comigo ― sussurrei, tocando seus braços. ― Você quer uma água? ― Negou com a cabeça.
Sem saber mais o que fazer, fiz a única coisa que estava ao meu alcance: envolvi aquela pequena fortaleza em meio aos meus braços, aconchegando-a e permitindo que chorasse tanto quanto precisasse.
― Matty? ― sussurrou, secando algumas lágrimas.
― Sim?
― Por que você veio até aqui?
― Vim entregar seus presentes. ― No fundo, eu sabia que estava mentindo até para mim.
― E o que mais?
― Te ver. ― E, pouco a pouco, minha farsa estava caindo por terra. Tanto que minha voz não era mais do que um fio.
― É só isso mesmo?
― Por que a pergunta?
― Você disse que não veio aqui transar comigo, mas eu também sei que você não veio só pra me entregar presentes ou me ver. Então, por que você veio?
― Vim porque achei que, se você soubesse que estou recuperado, você se sentiria orgulhosa e que talvez essa fosse a nossa chance ― confessei.
― Chance do quê?
― De tentarmos de novo. ― dei de ombros.
― Você sabe que não podemos ― respondeu com convicção.
― Não podemos ou você não quer?
― Matty, nós não somos bons um para o outro e você bem sabe disso. ― Como se tivesse recebido um soco no estômago, foi minha vez de me afastar dela.
― Eu juro que nunca foi minha intenção te machucar. ― E, de repente, estava quase implorando seu perdão, como deveria ter feito desde o início.
― Não era a intenção de nenhum de nós dois, mas as coisas acontecem. A vida acontece e nós somos atropelados por ela o tempo todo. Nós estamos despedaçados demais e não é ficando juntos que vamos conseguir juntar nossos cacos. ― Alcançou-me, depositando um beijo em minhas costas e abraçou-me.
Você sabia que era isso que iria acontecer. Desde o início, você sabia.
Sem querer transformar aquilo em uma discussão, apenas beijei uma de suas mãos.
― Você pode passar a noite aqui? ― Confirmei com a cabeça, livrando-me da camisinha usada.
Deitando-me ao seu lado na cama, nunca me senti tão afetivamente distante de . Era como se houvesse uma muralha que nos mantivesse separados. Não conseguíamos conversar, mal conseguíamos nos olhar. De repente, toda a intimidade que tínhamos um com o outro havia simplesmente voado pela janela.
Em questão de segundos, havíamos nos transformado em completos estranhos.
A mulher, após alguns minutos secando mais algumas lágrimas silenciosas, acabou adormecendo e eu só pude observá-la tranquila, descansando para acordar em um dia completamente diferente, onde não haveria mais nós.
Durante a madrugada, ainda sem conseguir dormir, me levantei e me vesti.
Antes de partir, aproveitei a caneta e a agenda que sempre deixava ao lado de sua cabeceira para escrever-lhe um bilhete:

“Desculpe não estar aí quando você acordar, mas eu não vou suportar me despedir de você de novo. Diferente do dia em que terminamos, hoje você estava dormindo tranquila, quase sorrindo de olhos fechados e é assim que quero me lembrar de você. Prefiro acreditar que fomos um sonho bom do qual eu acordei e agora preciso seguir o dia imaginando o que vinha depois.”

Deixando a nota onde ela pudesse encontrar, dei uma última olhada nela e fui embora.
Dentro do carro, antes de decidir para onde iria, enviei uma mensagem para George, me desculpando por não ter voltado para casa e nem avisado. Pelo horário, sabia que não teria uma resposta, mas isso não me impediu de encarar a tela do celular por mais alguns segundos.
A verdade é que, se eu voltasse para casa, ao sair do quarto, teria que estar pronto para viver uma vida que ainda não sabia muito bem como viver. Achava que, após uma conversa sincera com , tudo estaria bem, que ela continuaria sendo uma parte fundamental da minha realocação a um cotidiano ao qual estava voltando. O que não aconteceu.
Assim como eu, também sentia saudades de nós, entretanto, ela também sentiu que não éramos mais nós. Ainda existia amor, tesão e prazer de estarmos um na companhia do outro. No entanto, nunca, em toda a minha vida, fiquei tão deprimido após transar com alguém que amava tanto quanto ela. Tudo tinha gosto de despedida.
Sem suportar me desfazer de mais um laço, decidi que era hora de me preocupar em fortalecer os que já tinha, por exemplo, com a minha família.
Pelo horário, poderia dirigir o resto da noite e chegaria à casa da minha mãe de manhãzinha, o que me daria tempo suficiente para pensar e remoer o que tinha acontecido.
parecia o clássico pessoa certa, na hora errada, mas, analisando toda a minha vida até aquele momento, não haveria uma hora certa para que ela chegasse. Eu era a pessoa errada, por mais que me esforçasse.
Concluir isso, fez meus olhos arderem e meu maxilar travar. Nestes breves instantes, uma onda de auto-ódio sempre tomava conta de mim e, considerando o meu histórico, nunca era bom deixar esse ódio tomar conta. No fim do dia, acabaria em algum lugar rodeado de pessoas que não conheço, festejando mais do que devia e usando um monte de drogas que me fariam ter um rebote depressivo pelo resto da semana.
Tentando livrar minha cabeça daquele monte de pensamentos, liguei o rádio do carro e deixei tocar uma música qualquer. Estava cansado de pensar sobre tudo ao mesmo tempo. Sobre ela, sobre nós, sobre a minha vida, minha saúde, minha carreira.
Só queria que tudo parasse, sumisse, que não precisasse lidar com mais nada. Era pedir demais?
Esforçando-me muito, mantive os olhos pregados na estrada durante toda a viagem, até chegar à casa da minha mãe.
Apesar de o sol já ter nascido e ser um horário razoável, ninguém estava acordado ainda. Pelo menos, era o que parecia pelo silêncio, janelas e portas completamente fechadas. Portanto, procurei pela chave reserva em um canteiro de flores ao lado da porta e entrei, fazendo o mínimo possível de barulho.
Pé ante pé, fui para o meu quarto, fechando-me lá para dormir um pouco.
Ao acordar, estava completamente atordoado, sem saber que horas eram nem onde estava direito. Entretanto, olhando ao meu redor, em questão de segundos, lembrei-me exatamente o que tinha acontecido e o que havia me levado até ali. Porra.
Coçando os olhos, conferi a tela do meu celular em busca de algum vestígio que alguém ― ― tenha sentido minha falta, porém, a central de notificações contava apenas com uma mensagem de George, alegando já saber que eu não voltaria tão cedo e pedindo para que mandasse notícias.
Antes de qualquer coisa, o respondi, dizendo que estava tudo bem e havia decidido visitar minha mãe de última hora. Após enviar a mensagem, levantei-me, procurei roupas reservas no armário e fui tomar um banho.
Provavelmente, ninguém sabia que eu estava ali e não precisaria assustá-los mais do que o necessário, logo, só saí debaixo do chuveiro quando senti que estava com um pouco mais de forças para enfrentar o mundo exterior.
Já vestido, desci as escadas e procurei pela minha família nos outros cômodos, mas, surpreendendo ninguém, encontrei minha mãe e Lincoln sentados na parte externa da casa, bebendo chá e rindo.
― Hã, oi? ― Acenei, saindo para a varanda.
― Você me avisou que vinha ou perdi algo? ― Minha mãe levantou-se para vir até mim, por fim, abraçando-me.
― Não, eu vim de surpresa mesmo. ― Retribui ao abraço, recostando minha cabeça em seu ombro.
― Faz muito tempo que você chegou?
― Da manhã. Precisava descansar um pouco e acho que estavam todos dormindo ainda. ― Desvencilhou-se de mim, segurando meu rosto, olhando-me com um meio sorriso.
― Você está tão bonito. Parece até mais corado. ― Sorri.
― Obrigado.
― Você se sente bem? ― Assenti. ― Venha, vamos sentar. Quer um chá ou comer algo?
― Aceito o chá. ― Sentei-me em uma das cadeiras sobre o gramado.
Lincoln sorriu e me entregou uma xícara de chá sobre um pires.
― Fez uma boa viagem? ― questionou.
― Ah, sim. Eu deveria viajar de madrugada mais vezes quando tiver que dirigir. A estrada é muito mais tranquila.
― Mas sozinho pode ser um pouco perigoso, não? ― Trocou olhares com a minha mãe.
― Não se você tiver insônia. ― Dei uma risadinha sem graça antes de bebericar meu chá.
― Ontem mesmo estávamos falando de combinar de fazer algo em família enquanto você e os meninos não voltam a viajar como doidos ― sugeriu minha mãe com uma voz empolgada.
― Devíamos mesmo. Onde está o Louis?
― Ah, dormiu na casa de um amigo. Não sei se ele volta hoje, às vezes, ele estende até a segunda.
― Ele não está errado. É bom aproveitar esses momentos mesmo. ― Bebi o conteúdo da xícara outra vez.
― Você sente falta de ser adolescente, né?
― A vida era tão mais fácil. ― Ri. ― Mas é isso, a vida tem que seguir, certo?
― Certo, querido. ― Sorriu.
― Matthew, eu estava pensando em sair para correr daqui a pouco. Não sei se você corre, mas poderíamos caminhar. O que acha?
― É uma boa ideia ― concordei, largando o pires com a xícara vazia sobre a mesa de centro.
― Você tem roupas mais leves? ― Conferi minha própria roupa, rindo.
― Não sei, acho que não.
― Tudo bem, eu te empresto algumas.
― Eu vou deixar esse ser o programa de garotos de vocês. Vão querer jantar quando voltarem, né? ― Lincoln e eu assentimos. ― Ótimo, vou preparar.
― Vou procurar as roupas e deixar no seu quarto, ok? ― Acenei com a cabeça, fazendo-o se levantar e encaminhar-se para dentro da casa.
Minha mãe acompanhou o marido sair com os olhos, como se esperasse ansiosamente para ficar a sós com seu primogênito e eu sabia exatamente o porquê disso.
― Você já pode perguntar o que quer que esteja pensando ― brinquei.
― Eu só ia perguntar se você está bem mesmo. Você não é do tipo que aparece sem mala e sem um aviso prévio.
― Eu estou bem. Não precisa se preocupar. ― Dei um meio sorriso.
― Tem certeza? ― Assenti.
― Só achei que era hora de tentar reconstruir os laços que eu estava tentando destruir. ― Esticou-se até alcançar minha mão.
― Você não destruiu nada, querido. Nós sempre te amamos e sempre vamos te amar. Ficamos tão animados com o seu retorno. ― Sorriu.
― Também estou feliz de estar de volta. ― Levei sua mão até minha boca para depositar um beijo.
― Você sabe que pode contar conosco sempre, né?
― É, eu sei. E agradeço. ― Com um pouco de dificuldade, a abracei.
Ainda que não fôssemos mais fisicamente tão próximos por questões relacionadas ao trabalho, abraçar a minha mãe era como voltar para casa, era quase como um beijo em um ralado no joelho com a justificativa que era mágico e qualquer dor seria curada. No fundo, eu ainda queria acreditar que poderia ser curado.
― Você devia ir se trocar. Lincoln se arruma na velocidade da luz. ― Rimos.
― E eu não quero estressá-lo em seu pré-treino. ― Desvencilhei-me dela.
Levantando-me, fui até o quarto para trocar de roupa já me arrependendo de ter concordado em me exercitar.

- x x x -


Depois de caminhar por alguns quilômetros quase que no mais pleno silêncio, Lincoln perguntou se eu me importaria de pararmos para comprar sucos. Precisando sentar em algum lugar, mesmo que fosse no meio-fio da calçada, concordei. Ao voltar, Lincoln entregou a vitamina de banana que havia pedido.
― Tá bom? ― Fiz um joinha após o primeiro gole, levantando-me do chão.
Lado a lado, caminhamos lentamente pela rua. Não sabia se já estávamos voltando para casa ou ainda seguindo nosso percurso de “exercícios”.
― Não tive a oportunidade de falar mais cedo, mas fiquei feliz que você veio nos visitar.
― Eu senti falta de vocês. De todos ― completei para garantir que se sentisse incluso. ― Sei que antes de viajar nos vimos bastante, mas não sinto como se tivesse aproveitado o suficiente. ― Observei-o beber um gole grande de seu suco.
― No começo, achei que sua mãe ficaria mais preocupada, mas acho que ela entendeu que era o melhor para você. ― Olhou-me. ― Você se sente bem?
― É, acho que sim. É estranho estar sóbrio. Não que eu não tenha tido momentos assim antes, mas não me lembrava como era… estar limpo. Acho que você… não entende a sensação.
― Não, mas já presenciei algumas coisas e acredito que realmente deva ser uma experiência interessante.
― Pela primeira vez, parece que eu estou presente, sabe? Essa conversa está acontecendo, estou aqui com você. ― Acenou lentamente com a cabeça. ― Aliás, acho que é o momento perfeito para me desculpar com você pelas coisas que já aconteceram, pelos transtornos que causei em festas e reuniões de família. Sei também que muitas vezes fui motivo de discórdia no casamento de vocês e nunca foi minha intenção. Você sabe… acima de tudo, quero que minha mãe tenha uma relação feliz e saudável, não quero de forma alguma ser o motivo pelo qual ela, de novo, não consiga experienciar isso.
De repente, Lincoln parou de andar, voltando-se para mim.
― Eu nunca imaginei que teríamos essa conversa.
― Nem eu. Mas faz parte do processo de reconhecer que, até então, estava agindo como alguém egoísta e que não reconheço. E não quero mais ser essa pessoa, então, estou me desfazendo da bagagem que ele deixou para trás.
― Denise estava certa o tempo todo. ― Pôs a mão sobre o meu ombro. ― Você é um bom garoto, Matty, alguém por quem vale a pena lutar.
― Ainda estou tentando descobrir se isso é verdade. ― Desviei os olhos para o meu copo. ― Mas obrigado. É importante ouvir isso.
― O que acha de voltarmos para casa?
― Ótima ideia. ― Deu dois tapinhas sobre meu ombro e retomamos nosso caminho rumo ao jantar que nos esperava.


#19

Eu sei que você está tentando ao máximo e a parte mais difícil é deixar ir as noites que compartilhamos
(Miserable at Best - Mayday Parade)



Depois da noite em que fugi da minha própria vida para me abrigar na casa da minha mãe por dois dias, fui obrigado a retornar para a minha rotina. Nem banda nem o álbum poderiam esperar que eu me recuperasse da minha dor de cotovelo. Por isso, na volta, fui direto para o subsolo da casa encontrar George e toda a nossa parafernalha.
Apesar de tudo, era boa a sensação de estar aonde realmente pertencemos.
Para iniciar os trabalhos, decidimos começar alterando o que já estava pronto. Em algumas músicas, fizemos novos vocais, em outras, fizemos alguns movimentos mais bruscos, como apagar tudo o que havíamos produzido e começar do zero. Inclusive, a música que havia escrito para .
Inside Your Mind era uma das ideias mais obscuramente românticas que tive sobre admirar alguém. era admirável até mesmo dormindo. A dificuldade que tinha para dormir era equivalente a profundidade do sono que atingia ao fechar os olhos. Às vezes, ao longo da madrugada, a via sorrir de leve, como se estivesse tendo um sonho bom e, nestes momentos, queria muito poder entrar em sua cabeça, saber qual era o filme que seu cérebro tinha preparado para aquela noite.
Será que apareci em algum deles? Será que estávamos juntos? Estas eram perguntas que eu jamais saberia a resposta, pois nunca me contava o conteúdo de seus sonhos, mesmo quando se lembrava deles. Fazia parecer que sua cabeça era um eterno filme pornô, o qual tinha vergonha de relatar em voz alta.
Diferente de mim, foram raras as vezes em que a mulher despertou de um pesadelo ou se manteve muito tempo acordada por medo de seus terrores noturnos. Já eu, levantava quase todas as noites para fumar um baseado ou, até mesmo, aceitava uma dose de clonazepam para ver se conseguia chegar ileso até a manhã seguinte.
E, pelo menos nisso, as coisas estavam diferentes. Após ter parado de usar pó e injetar, conseguia manter minha concentração por mais tempo no trabalho, o que me fazia cansar mais e, consequentemente, dormir com muita facilidade. Ainda tinha muitos pesadelos. Alguns, horrendos que me faziam suar e sobressaltar na cama ao acordar, outros, mais calmos, onde apenas via uma sucessão de imagens.
Aos poucos, conseguia sentir minha recuperação e, mesmo no cansaço, me alegrava por finalmente estar sentindo-o, por compreender os novos limites do meu corpo, aprender a ver e aceitar os sinais.
Tanto que sempre que sentia uma crise de ansiedade chegando, automaticamente, acendia um cigarro. Tragar lentamente me trazia de volta para os eixos. Logo, coloquei um entre os lábios e o acendi, deixando que todas as peças daquele quebra-cabeça que compunha minha mente voltassem para seu devido lugar.
George não pareceu notar que fiquei fora do ar por algum tempo. Pelo menos, não deixou transparecer. Por isso, continuei a trabalhar ao seu lado, indicando o que deveríamos fazer com alguns elementos novos que estavam sendo incluídos na linha do tempo do programa em seu computador.

- x x x -


As semanas foram passando e a minha única fonte de notícias a respeito de era Cat. Para saber literalmente qualquer coisa, bastava perguntar a ela. Se estava bem, como estava no trabalho, se estava em viagem e outras coisas. A única pergunta que eu nunca fazia a ― mesmo que quisesse muito ― era se estava saindo com alguém. Olhar suas redes sociais em busca de algum vestígio não era o suficiente para saber o que queria, mas podia se tornar uma forma de ver algo que não estava pronto para descobrir.
As publicações de sempre tinham muitos comentários. Não haviam tantos de homens que eu não conhecesse, mas sempre que algum nome que nunca vi ou ouvi aparecia, me via obrigado a pesquisar um pouco mais sobre.
Talvez estivesse um pouco obcecado? Talvez e estava tentando me policiar a respeito. No entanto, às vezes, era mais forte do que eu.
Para tentar não pensar nela ou na possibilidade de estar com outra pessoa, voltei a ter uma vida social. Ir a festas, sair para beber com os meus amigos e, vez ou outra, ficava muito tentado a aceitar qualquer coisa que me desligasse.
Mas tentava com todas as minhas forças resistir. Nestes momentos, ia para fora, acendia um baseado e, se necessário fosse, o fumava inteiro antes de voltar. Às vezes, nem voltava. Simplesmente ia para casa fumando e caminhando, tentando me convencer de que a vida estava muito boa do jeito que estava, que não precisava voltar para algo do qual me esforcei tanto para sair.
A heroína foi a primeira coisa pela qual me senti atraído e meus amigos não. Logo, aquele se tornou um segredo só meu e, consequentemente, se tornou a primeira vez que tive um segredo que não compartilhava com meus amigos. E era horrível não poder dividir com eles. Sentia como se tivesse voltado a ser um adolescente que precisa esconder algo dos pais. Depois de dois meses do meu retorno, prestes a reiniciar em uma rotina insustentável para a minha sobriedade, resolvi que era hora de tomar providências mais drásticas para garantir que continuasse sóbrio.
― Eu preciso da ajuda de vocês ― pronunciei-me na presença de todos os meus melhores amigos durante um almoço na minha casa. ― Tem sido ótimo desde que voltei, porque parece que nunca fui eu de verdade. Finalmente conseguimos finalizar tudo e logo vamos sair em turnê e eu sei que preciso ser vigiado.
George trocou um olhar com Ross, enquanto que Adam se remexeu em seu lugar de maneira desconfortável.
― Antes que vocês achem que já aconteceu, não, eu não tive uma recaída. ― Levantei-me e peguei um teste toxicológico e entreguei para Ross, que estava mais perto. ― Este é um teste que fiz hoje de manhã, continuo sóbrio. E o que eu quero propor é justamente isso: fazer testes todos os dias e entregar o resultado para que vocês saibam que ainda estou sóbrio.
― Você não acha isso um pouco… extremo demais? ― Adam argumentou.
― Talvez seja. Mas se esse é o único jeito de conseguir me manter do jeito que estou, é o que vou fazer.
― Bom, se é isso que você quer, acho que não podemos simplesmente dizer não, né? ― Ross concluiu.
― Obrigado.
― Esse rolê tá parecendo um velório. ― Jamie, nosso guitarrista de apoio, apareceu com um engradado de cervejas.
― Culpa do senhor Healy, como usual ― brincou George.
― O que foi dessa vez? ― Squire sentou-se entre nossos amigos, deixando as cervejas sobre a mesa de centro.
― Ele decidiu que vai mijar no palitinho pra gente ver se ele anda fazendo merda quando está sozinho ― Adam fingiu cochichar para quebrar o clima tenso.
― Como você é engraçado, Hann. ― Dei um sorriso falso.
― Você não vai mijar na nossa frente, né?
― Por que eu faria isso?
― É o seu tipo fazer isso ― Daniel rebateu.
― Vocês são péssimos amigos.
― Se fossemos, não concordaríamos em pegar no seu palitinho mijado. ― Ross riu.
― Ele tem um ponto ― Hann concluiu.
― Tá, já entendi, estão todos contra mim. Vamos voltar a almoçar. ― Encaminhei-me para o meu lugar entre eles e voltei a comer.
― Mas é sério o lance do palito? ― Jamie questionou enquanto abria uma lata de cerveja.
― Se você quiser pegar o que eu fiz hoje de manhã, está com o Ross.
― Não, obrigado?
― Jamie, todo mundo já recebeu a programação dos próximos ensaios?
― Eu já estou com a minha, então, acho que sim.
― Ótimo.
Conferindo as horas, George levantou-se, anunciando:
― Amo estar com vocês, mas tá na minha hora.
― Desde quando você tem hora para algo? ― perguntei.
― Desde que tenha alguém esperando por mim.
― E quem é a sua amante? Matty não gostou nada disso ― Squire debochou e eu fingi estar fazendo uma careta.
― É apenas uma amiga, não é o que vocês estão pensando.
― Ele vai encontrar a monstra da flores ― acusei.
― Como você sabe? ― George franziu as sobrancelhas.
― Se fosse um encontro, você não se preocuparia que pensássemos que vai à um encontro. Na verdade, você nem nos responderia.
― Enfim, vejo vocês mais tarde. Ou não, não sei até que horas vão ficar aqui.
― Bom seja lá o que você vai fazer com a sua amiga. ― George acenou de costas enquanto rumava para a saída.
― O que vamos fazer depois daqui?
― Poderíamos assistir ao jogo de futebol.
― Vocês são muito héteros ― debochei.
― E o que você sugere? Uma suruba? ― Ross brincou e eu arquei as sobrancelhas com um ar sugestivo.
Todos riram descontroladamente.
É, era bom saber que ainda poderíamos ter esses momentos mesmo depois do que disse a eles mais cedo.
Por volta das oito da noite, cada um decidiu ir para sua casa e eu fiquei sozinho. George ainda não havia voltado nem mandado sinal de vida, então, havia a possibilidade de não vê-lo mais naquele dia. Minhas únicas opções eram assistir a um filme sozinho, jogar videogame ou tentar compor algo. Ou, na melhor das hipóteses, sair de casa para respirar um pouco.
Cansado de ser blasé, escolhi a última opção como forma de distração.
Coloquei uma jaqueta, acendi um cigarro e saí de casa. Por não pretender ir muito longe, acabei indo a pé. A cidade ficava bonita a noite e eu gostava de observá-la.
Os quarteirões ao redor de onde eu morava tinham muitas árvores e jardins, o que fazia com que o ar ficasse mais puro e mais gelado também. No fim, estava mais frio do que imaginei que estaria e, por não estar com os trajes mais apropriados, decidi entrar em um bar a umas cinco quadras de distância do início da minha caminhada.
Era um local que nunca havia visitado. O ambiente estava a meia luz, com iluminação amarelada que, em conjunto com as paredes de tijolos a vista, dava um ar aconchegante. Por todo o salão, haviam mesas para duas e quatro pessoas, mais ao fundo, duas mesas de sinuca e um espaço com poltronas e mesas de centro a frente.
Nesta área, inclusive, havia apenas uma pessoa acompanhada de um notebook e duas garrafas de cerveja. Semicerrando os olhos, reconheci quem era.
― Você agora fica rondando a minha casa? ― A mulher ergueu os olhos da tela do computador, franzindo as sobrancelhas.
― Realmente, hoje o universo não quer me deixar trabalhar ― respondeu um pouco baixo com um sorriso irônico.
― O que aconteceu?
― Acabou a luz na redação, a internet do meu prédio está em manutenção e eu entrei no primeiro bar que vi que oferecia internet. ― Riu. ― Puta que pariu, minha vida é uma piada ― murmurou.
― De onde tirou isso? Você acabou de me encontrar no meio do seu turno de trabalho improvisado. Não sei o que pode ser melhor que isso.
― O seu argumento só comprova que minha vida é uma piada. ― Riu, bebendo um gole da sua cerveja.
― Tinha outra pessoa com você aqui? ― Olhei para a garrafa de um litro vazia e a outra quase na metade sobre a mesa.
― O que é isso? Ciúmes? Pode ficar tranquilo, fui eu quem bebi mesmo.
― Seu dia deve ter sido péssimo mesmo, hein? ― Suspirou.
― Foi o que eu disse.
― Vem. ― Levantei, estendo a mão em sua direção.
― Pra onde? ― Fez uma careta.
― Jogar sinuca.
― Eu não jogo sinuca, Healy.
― Eu te ensino.
― Eu preciso trabalhar.
― Você precisa se divertir um pouco. E, convenhamos, você já bebeu mais de um litro de cerveja sozinha, acho que você passou um pouco do ponto de quem está em condições de trabalhar, não acha? ― Revirou os olhos.
Intercalando o olhar entre minha mão e meu rosto, largou o copo sobre a mesa e guardou o notebook na bolsa, por fim, levantando-se.
Ignorando completamente minha mão, seguiu para um das mesas de sinuca e escolheu um taco para si.
― Espero que você não use do fato de um não saber jogar para trapacear.
― Eu não faria isso. Pelo menos, não com você. ― Rimos. ― Você só precisa usar a bola branca para acertar outras e tentar encaçapa-las. Você não pode bater em qualquer uma, se sua primeira tacada acertar um número menor de sete, você só pode encaçapar do sete para baixo. Se for acima de sete, a mesma coisa. Ganha o jogo quem encaçapar todas as suas bolas primeiro, ok?
― Você começa para eu poder te imitar. ― Ri.
Dei a primeira tacada espalhando todas as bolas pela mesa. Em sua vez, realmente tentou me imitar, porém sua tacada foi um completo fiasco, mal conseguindo acertar seu alvo.
― Essa porra é mais difícil do que imaginei.
― Quer ajuda?
― Não, eu consigo. ― Ri.
Dei minha nova tacada, encaçapando a bola número quatro.
― Você faz parecer muito fácil.
― São anos de prática. ― Pisquei. ― Sua vez.
Preparando-se toda, conseguiu acertar uma bola, entretanto, pela sua feição, sabia que não na direção que havia planejado.
― Ok, eu vou te ajudar. ― Larguei meu taco encostado na mesa e fui para perto dela. ― Erga mais esse braço. ― Posicionei-o da forma correta. ― Incline o seu corpo assim. ― Pus as mãos em suas costas, ajudando-a a se abaixar. ― E coloque o taco entre esses dois dedos. Deixe-os apoiados na mesa. ― Com o corpo muito próximo do dela, segurei sua mão no lugar correto. ― Respira fundo e depois solta o ar devagar ― instruí baixinho. ― Mire com um olho só e empurre o taco com essa mão.
Ainda atrás dela, me arrependi por ser tão solícito e entendi por que era uma ótima ideia não nos vermos. O cheiro de seus cabelos ainda era o mesmo, o calor irradiava de seu corpo de maneira tão familiar e aconchegante e, apesar da proximidade, seus músculos não enrijeceram como imaginei que aconteceria. Provavelmente, ela já tinha passado do ponto no álcool, só não havia percebido ainda.
Afastei-me devagar, deixando que fizesse seu próprio movimento no jogo e, sem me surpreender, quase encaçapou a bola na qual mirou.
― Eu não acredito! Consegui mesmo! ― comemorou com pulinhos de alegria.
― Perfeito. É só manter desse jeito até o final do jogo. ― Assentiu.
Após pedir uma coca-cola para o garçom, fiz minha movimentação seguinte.
E assim continuamos a jogar. Entre uma provocação e outra, íamos dando nossas tacadas até chegarmos aos últimos movimentos. Por muito pouco, não ganhou, pois, não sei como, ela simplesmente aprendeu a jogar de verdade. Ou talvez ela só estivesse fingindo que não sabia?
Ao final da partida, conferiu as horas no relógio de parede do estabelecimento.
― Nossa, eu não tinha percebido que horas são. Eu preciso ir.
― Você não vai para casa trabalhar, né?
― Você vai pagar as minhas contas?
― Se você deixar… ― Dei de ombros.
― Engraçadinho. Eu preciso mesmo ir.
― Posso te acompanhar pelo menos?
― Se eu tivesse bebido menos, eu diria não, mas…
― Ok, vamos. ― Tirei algumas notas da carteira e deixei sobre a mesa.
botou a bolsa sobre o ombro e caminhou para fora do bar na minha frente.
Na rua, acendi um cigarro com um pouco de dificuldade, por causa do vento, o que a fez rir.
― Senti falta do seu humor simples.
― Eu só tô rindo porque tô alta e você sabe disso.
― E você pretendia voltar para casa sozinha assim? ― Dei uma tragada, vendo-a dar de ombros.
― Se achasse que não daria conta, pedia para a me buscar. ― Assenti e continuamos a andar lado a lado.
Vez ou outra, seu ombro esbarrava no meu e eu disfarçava o sorrisinho colocando o cigarro na boca. estava tão distraída que caminhava olhando para o céu, o que a fez tropeçar em um buraco na calçada. Assustado, segurei-a pelo braço.
― Tá tudo bem? ― Riu.
― Tá, sim. Desculpa, me distrai.
― Você não tem que se desculpar. Pelo menos não se machucou.
― O que é um milagre, já que na sua presença isso é meio comum ― resmungou.
― Se você tem algo para me dizer, sabe que pode dizer na minha cara ― rebati.
Suspirou, parando de andar. As mãos presas a alça da bolsa transpassada pelo corpo. Encarando-me de um jeito sério, não soube identificar o que vinha a seguir. Era como se houvesse uma muralha entre nós.
― Por que você está agindo como se estivesse tudo bem?
― E não está?
― Não sei, me diga você ― ironizou. ― Você aparece na minha casa do nada, transa comigo e vai embora deixando pra trás só um bilhete, como se isso fosse o suficiente para pôr um ponto final em tudo, e sumiu.
― Não, espera. Você tá insinuando que eu te usei? , essa é uma das coisas mais sem nexo que ouvi você falar desde que nos conhecemos.
― Então, por que você não ficou?
― Você não queria isso!
― Por que você não insistiu?
― Era pra eu ter feito isso? Pelo amor de Deus! Isso é ridículo. Você sabe que eu jamais insistiria. ― Joguei o resto do cigarro fora sem nem me importar se estava aceso ou não. ― Você sabe que pode falar comigo sobre qualquer coisa. Literalmente qualquer coisa! Se você tivesse me pedido para ficar, eu ficaria. Se você não tivesse nem me deixado entrar na sua casa, eu iria embora sem pestanejar.
― Por quê?!
― Porque eu te amo e eu te respeito! Porque você é um ser humano como eu. A vida não é um filme, . Eu preciso que você me queira na sua vida, não posso te forçar a estar em uma situação que você não quer. ― Dei um meio sorriso sem humor. ― A vida seria muito mais fácil se fosse como nos filmes. Todos os nossos problemas estariam resolvidos. Nós poderíamos ir embora e ninguém nunca mais ouviria falar de nós.
― E você não seria capaz de largar sua vida por mim?
― E nem você largaria a sua por mim. Na verdade, eu nem mesmo te pediria isso! ― Respirei fundo, pois, pensando bem, parecia mais que o álcool estava falando por ela. Talvez ela tenha bebido mais do que parece. ― De qualquer forma, não deveríamos estar discutindo no meio da rua. Vamos.
― Aonde?
― Pra casa. Não era para lá que você estava indo?
― Você não vai comigo! ― Cruzou os braços em frente ao peito.
― E você acha mesmo que eu vou te deixar ir sozinha nesse estado?
― Que estado? Eu não estou bêbada!
― Pode não estar completamente bêbada, mas sóbria você também não está.
― O que te faz pensar isso?
― A sóbria jamais entraria nessa discussão no meio da rua. Você continuaria andando em silêncio ou então chamaria um táxi e iria embora só para não ter que me aguentar o caminho todo.
― Eu te odeio ― soltou um muxoxo e começou a caminhar na minha frente.
Dei uma risadinha baixa e a segui por todo o caminho até a estação de metrô, depois em pé ao lado de seu assento no veículo e, por fim, da estação final até a portaria de seu prédio.
Quando chegamos lá, nem olhou para trás, apenas procurou por suas chaves em seus bolsos e foi entrando.
― Boa noite, ― tentei fazê-la lembrar da minha existência.
Sem sucesso.
Marrenta do caralho.


#20

Você me fodeu tão bem que eu quase disse ‘eu te amo’
(Norman Fucking Rowell - Lana Del Rey)



Considerando meu constante estado de recuperação dos vícios, decidi por não fazer uma comemoração tão intensa do meu aniversário. Festejar demais para mim ainda era sinônimo de muita bebida, algumas carreiras de pó e, quem sabe, alguns comprimidos de origem duvidosa. E eu ainda não estava suficientemente bem física ou mentalmente para lidar com todos os danos que viriam no dia seguinte.
Então, minha festa foi algo apenas para os amigos mais próximos mesmo, afinal, nem na cidade estávamos.
Mas eu não tinha como impedir meus amigos de comemorarem seus respectivos aniversários, certo? Mesmo assim, em respeito a mim e a minha recuperação todas as comemorações de 2018 foram extremamente tranquilas. Apenas as pessoas mais próximas em rolês calmos, com o mínimo de drogas possível e sem festas que durassem dois ou três dias ― ou até a última pessoa ir embora.
Ao longo de todo ano, tentei reduzir a quantidade de festas e bares que frequentei. Claro, isso não me impediu de fumar toda a maconha disponível dos ambientes nem de continuar bebendo uma quantidade grande de álcool.
ia em quase todas as nossas festinhas, mesmo que não ficasse até o final. Geralmente, sua presença só não era confirmada nas que fazíamos em outras cidades ou países, por questões de logística relacionadas ao seu trabalho. Ainda assim, ela nunca perdia a oportunidade de fazer uma ligação em vídeo ou mandar um presente para nossas casas sempre que podia.
Depois daquele dia no bar, até me pediu desculpas por seu comportamento e explicou que já tinha bebido antes de nos encontrarmos. E, por mais que lhe dissesse que, por mim, estava tudo bem, ela não pareceu tão convencida disso, uma vez que nossa relação parece ter ficado abalada nos meses que se seguiram.
O cenário só pareceu se suavizar um pouco durante o aniversário de Adam, quando havíamos ficado encarregados de irmos juntos a despensa pegar todos os utensílios que ainda faltavam para pôr a mesa. Sozinhos em um ambiente muito apertado, não demorou para que nossas bocas estivessem tão coladas quanto nossos corpos, que uma das minhas mãos subisse pela sua nuca, emaranhando-se em seus cabelos soltos enquanto a outra descia livremente por cima de suas roupas, indo de um de seus seios à sua bunda e quase entrando em meio às suas pernas. Isto, no entanto, só não aconteceu porque ouvimos alguém se aproximando. Separando-se de mim o mais rápido que conseguiu, jogou algo no chão e, assim que Ross apareceu para perguntar se precisávamos de ajuda com algo, ela já estava agachada pegando alguns garfos e facas.
― Já estamos indo. Derrubei umas coisas no chão, Matty estava me ajudando a aguardar de novo. ― Sem saber o que fazer, a ajudei a se levantar.
MacDonald pareceu não entender o que realmente estava acontecendo, mas deve ter percebido que aquilo que seus olhos viam não condizia com a verdade.
Ao fim do dia, pouco antes de ir embora, me chamou para uma conversa rápida, dizendo em um tom firme e que não me dava margem para argumentar, que aquilo não iria mais se repetir. Depois disso, voltamos nos falar apenas de maneira distante e, quando era impossível de não interargirmos devido aos amigos em comum.
Quando 2019 chegou, com ele, a segurança de quem sabe conseguir começar a aproveitar melhor as oportunidades de festejar com meus amigos.
Novamente, no meu aniversário, me contive e não fiz uma grande festa. Apenas planejei um dia inteiro de passeios, refeições e estar ao lado de quem amo. Mas, em seguida ao meu, veio o de George. Se tinha alguém que sabia como dar uma boa festa, esse alguém era meu melhor amigo.
Com uma casa alugada, um bom sistema de som montado e um carregamento que parecia infinito de comida e bebida, Daniel enviou todos os convites que tinha direito na semana anterior ao seu aniversário. Por uma questão de segurança, a única presença proibida eram os celulares, que seriam recolhidos na entrada da festa e devolvidos somente quando o visitante resolvesse ir embora.
Minha única pergunta após ver a lista de convidados era se iria aparecer. Para isso, ela teria que viajar e, muito provavelmente, conseguir uma dispensa de trabalho no dia seguinte. Além disso, pensando em como andava nossa relação nos últimos meses, talvez ainda fosse cedo para nos vermos pessoalmente.
Logo, no dia do evento, a pessoa na qual fiquei mais surpreso em colocar meus olhos sobre foi ela.
Apesar da temperatura não tão amigável do lado de fora, apareceu com um vestido curto, que deixava boa parte das pernas amostra, e um decote generoso que me fez prender a respiração por alguns segundos.
Ao lado de , ambas chegaram trocando cochichos e rindo, os olhos circulando por todo o local. Provavelmente, já estavam comentando sobre os presentes. jamais perderia essa oportunidade.
Quando seu olhar recaiu sobre mim, vi os cantos dos seus lábios se repuxarem levemente para cima, como a menção de um sorriso. Para saber que estava tudo certo entre nós, dei um sorriso mais aberto, cumprimentando-a com uma erguida da garrafa de cerveja que eu segurava.
Logo, George juntou-se a elas, para receber os devidos cumprimentos pela data e receber seu presente. E, mesmo após ele ter ido cumprimentar outras pessoas, , ainda assim, não dei o braço a torcer. Não veio na minha direção, tampouco fez menção de me cumprimentar. Deixou-se levar para a direção contrária para cumprimentar outros conhecidos seus.
Tentando disfarçar o quanto aquilo me afetou, acendi um cigarro e fui me misturar no meio do povo. Embora balançasse a cabeça, risse das piadas e até falasse algumas coisas, como contar algumas histórias engraçadas para os amigos ao meu redor, eu não estava totalmente presente. Se pudesse, meus olhos acompanhariam onde quer que ela fosse.
Sentindo-me um pouco nervoso com a situação, decidi me isolar um pouco no andar de cima em algum cômodo que não tivesse ninguém. Os quartos logo seriam ocupados pelos casais formados pelo álcool e pela variedade de drogas que conseguiriam usar em poucas horas, por isso, escolhi entrar em um dos banheiros ao final do corredor.
No entanto, ao tentar fechar a porta, uma sandália preta entrou em meio a fresta, impedindo que alcançasse a mais plena privacidade.
― A última vez que eu te vi se esgueirar que nem um rato assim te peguei fazendo o que não devia. ― Pondo uma das mãos na porta, abriu-a e entrou, fechando-a atrás de si.
― Eu só queria ficar um pouco sozinho. ― Encostei-me em uma das paredes.
― Você? Sozinho? Numa festa? ― ironizou. ― Você é a própria festa, Healy.
― Não desde a reabilitação. ― Dei uma risadinha sem humor.
― É por isso que não tem comemorado seu aniversário? ― Fiz um gesto com a cabeça que a fizesse entender que sim.
Tirei de um dos bolsos um pacotinho com um pouco de erva e uma seda.
― Você se importa se eu…? ― Deixei no ar.
― Vá em frente. ― Sentou-se sobre a parte de mármore da pia.
Fazendo uma pequena carreira sobre a seda, ajeitei a erva com um cartão, enrolei-a e, então, passei as pontas do papel na língua para colá-lo. Com o baseado preso entre os lábios, acendi-o com a caixa de fósforo que havia arranjado minutos antes de sair de casa, quando descobri que meu isqueiro já não funcionava mais.
― Uma pena que não saímos mais para beber como naquele dia.
― Por favor, não me lembre daquele dia. ― Riu. ― Foi vergonhoso demais.
― Foi ótimo e você estava de um jeito que eu nunca te vi…
― Tonta? Maluca? Atirada?
― Despreocupada, solta, sem aquela postura rígida.
― Passa pra cá. ― Estendeu a mão.
― O quê? ― Levantei o baseado e ela assentiu.
Franzindo os lábios de surpresa, passei para ela e a vi tragar. Diferente da primeira vez que fumou comigo, não tossiu nem desistiu. Muito pelo contrário. Soltou a fumaça para cima de um jeito até… bem sensual.
Antes de me devolver, deu uma nova tragada.
― Você andou fumando maconha na minha ausência, ?
fumou um dia na minha casa e eu resolvi tentar de novo.
― Ok. Uau… quanto tempo eu fiquei em coma?
― Ué, não é você que diz que eu tenho que aproveitar a vida, ser menos burocrática?
― Você viu que eu não estava errado, né? ― Dei uma nova tragada.
A mulher inclinou-se para a frente, apoiando as mãos na pia. E, infelizmente, tive que fazer força para não olhar seu decote apontado na minha direção. Se eu sobreviver aos próximos cinco minutos, provavelmente, devo ser imortal.
― Sabe uma coisa que eu descobri? ― Traguei mais uma vez, tentando me concentrar em não olhar para seus peitos.
Apenas acenei com a cabeça, esperando que concluísse seu pensamento. pegou o baseado outra vez, dando uma tragada profunda. Ainda inclinada para frente, aproximou o rosto do meu e continuou:
― Dizem que transar chapado tem suas vantagens. ― E soprou a fumaça bem perto do meu rosto, pondo o cigarro entre meu lábios em seguida.
Por um segundo, paralisei. Nunca imaginei ouvir algo assim.
Na verdade, nunca imaginei aquela situação inteira. escolhendo se trancar no banheiro de uma festa, fumando maconha comigo e sugerindo que gostaria de sexo chapada… tudo isso parecia saído diretamente de uma fantasia na minha cabeça.
― Você está tentando me dizer algo, ? ― Aspirei o baseado pela última vez antes de apagar a bituca no tampo da pia.
Olhando para a sua boca, soltei a fumaça de uma única vez esperando por uma resposta.
Levando as mãos ao meu peito, deslizou-as para cima, prendendo uma delas no colarinho da minha camisa, puxando-me na sua direção. Entendendo o que aquilo significava, uni nossas bocas, começando a beijá-la com pressa. Minhas mãos automaticamente foram parar em suas coxas, apertando-as com mais força que o normal.
Em meio ao beijo, a mulher deixava alguns suspiros escaparem. Ofegante, em alguns momentos, desviava a boca da minha para respirar melhorar. Consequentemente, esfregava seu rosto contra o meu, quase como se estivesse tentando demarcar seu território através do seu cheiro.
Suas mãos, como sempre, se emaranhava em meu cabelo, porém, desta vez, mais descontroladas. Elas iam e vinham, me descabelando, bagunçando-os. Puxando minha cabeça para trás, desceu a boca para meu queixo e, por fim, para o meu pescoço. Começando devagar, sugou algumas partes da minha pele, aos poucos, com cada vez mais força.
Sem querer me controlar, me permiti gemer conforme a sensação se tornava mais prazerosa. Antes de conhecê-la, eu nem mesmo gostava tanto de mordidas ou chupões, mas, até isso, se tornava gostoso se feito por .
Não querendo mais esperar um segundo que fosse, minhas mãos subiram por suas coxas até alcançarem o cós de sua calcinha. Segurando-se em meu pescoço, a mulher ergueu brevemente o quadril para me ajudar a tirar a peça. O movimento, ainda ― graças a Deus! ―, fez seus seios serem pressionados contra o meu rosto.
Em seguida, suas mãos foram até a minha calça, desafivelando meu cinto, abrindo o botão e o zíper rapidamente. Tirando meu pau de dentro da cueca, pus as mãos atrás de seus joelhos, puxando-a mais para a beirada do tampo da pia para poder penetrá-la.
Assim que entrei, suspirou mais alto, prendendo uma das pernas em meu quadril.
Estocando-a em um ritmo urgente, comecei a ouvir seus gemidos altos. Seu corpo inclinou-se levemente para trás, como se estivesse derretendo igual sorvete sob o calor intenso do sol. até tentou apoiar uma das mãos na pia, porém parecia lhe faltar forças para se segurar.
Novamente apertando sua coxa, pus a outra mão em seu pescoço, enforcando-a o suficiente para diminuir a quantidade de ar que seu corpo captava. Com a cabeça pressionada contra o espelho, fixou o olhar no meu, os cantos da boca se repuxando ligeiramente em discretos sorrisos enquanto gemia alto.
― Não… para… pelo amor… de Deus… ― soltou entre gemidos quase histéricos e esganiçados.
Incentivado pelo seu pedido, tentei aumentar um pouco a velocidade, mesmo que estivesse ficando cansado.
Seu corpo estava enrijecendo e trêmulo, o que me indicava que estava quase lá. Tentando acelerar o processo, colocou a mão livre no próprio clitóris, fazendo movimentos meio rápidos, começando a deixar gemidos parecidos com urros saírem de sua garganta. Quando a mulher gozou, acabei saindo de dentro dela, pois sabia que gozaria logo em seguida.
Assim que soltei seu pescoço, tomou a liberdade de me beijar outra vez com voracidade, agarrando meu corpo com seus membros, exatamente como um polvo com sua presa, pressionando-me contra ela. Minha língua explorava a sua boca como se aquele fosse nosso primeiro beijo.
Embora nós dois já tivéssemos gozado, para mim, aquele não era o fim da linha. Eu não estava satisfeito. Queria ouvi-la gemer mais um pouco, sentir o calor de seu corpo, ver cada pedaço dela implorando por mais até que só expressar com o corpo não fosse suficiente e precisasse falar.
Mordendo seu lábio inferior, afastei nossos rostos, olhando-a nos olhos por alguns segundos. Desvencilhando-me, abaixei-me em meio às suas pernas, sendo observado atentamente.
estava tão sensível que só encostar a boca pela primeira vez a vi se contrair. Portanto, segurei suas pernas abertas enquanto a chupava.
Novamente, os gemidos altos tomaram conta do ambiente. Eles eram como músicas para os meus ouvidos, tanto que conseguia ignorar o som alto das festividades no piso abaixo de nós.
Sem dó algum, puxou meus cabelos com uma das mãos e aquilo só me dava mais vontade de continuar.
Havia algo sobre ela que me fazia querer sempre dar o meu melhor, fazer com que o sexo fosse inesquecível, como se nossa relação dependesse disso. Como se isso me garantisse que, no dia seguinte, ela me ligaria pedindo por mais.
Para mim, fazê-la gozar não era o suficiente. Ela precisava ficar com o meu cheiro, com a sensação de meu corpo contra o seu marcada em sua pele, se possível, ficar rouca de tanto gemer, tonta sem saber onde estavam suas coisas para ir embora. Queria que, todas as vezes que ela resolvesse tirar a roupa para outra pessoa, ao ser tocada, se lembrasse de mim, de como meu corpo era o encaixe perfeito do seu.
A cada vez que minha boca se movimentava em sua boceta, se remexia em espasmos. Não querendo que tivesse mais um orgasmo nos próximos segundos, desviei minha atenção para suas coxas, depositando alguns beijos e mordidas leves. A mulher recostou a cabeça no espelho atrás de si, de novo, como se estivesse se derretendo.
Sem dizer uma única palavra, segurou minha cabeça entre suas mãos, guiando-a de volta para sua boceta. Em qualquer outro momento, poderia rir, porém, naquele, obedeci-a, pois, no fim, era como se fosse seu servo e eu não fazia nenhuma questão de mudar este cenário.
Sem pestanejar, voltei a chupá-la, com o mesmo afinco de antes, dando atenção para todas as áreas possíveis. A mão presa em meio aos meus cabelos, outra vez, deu o indicativo de que estava quase lá de novo.
Seus dedos dos pés se contorciam nas sandálias enquanto que seu ventre se contraía e voltava ao normal a cada gemido. Sua intimidade estava tão molhada que minha boca deslizava mais e mais, sem nenhuma dificuldade.
Ao gozar, sua boca se abriu em um grito mudo e seus olhos se fecharam, como se estivesse aproveitando cada micro sensação que se abatia em seu corpo.
Limpando ao redor da boca com os dedos, fiquei de pé e a beijei, desta vez, com um pouco mais de tranquilidade, como se quisesse comunicá-la que estávamos encerrando as atividades. Pelo menos por enquanto. correspondeu, envolvendo-me em seus braços.
Afastando-se, olhou-me nos olhos, com um meio sorriso.
― Será que alguém ouviu?
― Com esse som alto? Pode ter certeza que não. ― Riu. ― E, se ouviu, tudo bem, a porta estava trancada.
Acariciei seu rosto com os dedões.
― Devo perguntar se você gostou da experiência?
― Acho que você já sabe a resposta, né? ― Selou nossos lábios.
― E você sabe que podemos repeti-la sempre que quiser, né?
― Não podemos, não. ― Fiz uma careta. ― E você sabe por quê.
― Enfim, por mim, nós podemos. É só você me ligar e eu faço acontecer. ― Acariciei suas coxas.
― E como faz ― brincou. ― Acho que devíamos voltar, não?
― Mas já?
― Alguém vai sentir nossa falta.
― Eu não ligo. ― Agora, foi sua vez de fazer uma careta. ― Ok, mas isso aqui ― Peguei sua calcinha na mão. ― vai comigo. ― Guardei-a no bolso.
― O quê?! Você vai ficar andando com a minha calcinha por aí?
― Acho que não era muito com isso que você deveria se preocupar. ― Olhei para o meio de suas pernas, onde se via sua boceta devido às pernas abertas. ― E você pode até pedir, mas não vou te devolver. Vai ser meu… pagamento. ― Sorri.
Rindo desacreditada, me beijou outra vez.
― Pelo menos, lava o rosto. Todo mundo vai sentir… ― Gesticulou em frente ao próprio rosto e eu ri.
Afastando-me dela, abri a torneira, molhando o meu rosto para ensaboá-lo com um pouco de sabonete líquido. Em seguida, joguei mais água para tirar a espuma, secando-me em uma toalha de rosto que ainda estava enroladinha.
― Te vejo lá embaixo? ― Selei nossos lábios.
― Vai curtir a festa, Healy. ― Deixei minha cabeça tombar para frente, fingindo decepção.
― Você é quem manda.
― Que bom que sabe. ― Abri a porta e, com o corpo do lado de fora, mas olhando para ela, lhe joguei um beijo e saí.
No andar de baixo, sabendo que as chances de se aproximar de mim em público eram mínimas, resolvi seguir seu conselho e aproveitar a festa. Por isso, sem cerimônia alguma, aceitei todo o copo, lata e garrafa de bebida que me ofereciam e, depois de algum tempo, acabei aceitando um comprimido de algo que não fazia ideia o que era.
Após começar a fazer efeito, tudo na minha mente se tornou um borrão.

- x x x -


Ao acordar, levantei a cabeça e senti meu pescoço e o início das minhas costas completamente doloridos ao menor dos movimentos. Isso porque havia dormido sentado no chão somente com a lateral da cabeça apoiada no sofá. Porém, o que me surpreendeu foi a primeira visão que tive: e Ross dormindo de conchinha no sofá a centímetros do meu rosto.
Sentindo o sangue da minha cabeça correr totalmente na direção oposta e minhas mãos começarem a formigar, tentei vasculhar minhas lembranças da noite anterior em busca do que tinha acontecido.
Aos poucos, flashes pipocaram na minha cabeça.
dançando comigo e Ross enquanto divídiamos um baseado e mais uma bebida. Em dado momento, beijei Ross e, por algum motivo, achei que era uma ótima ideia empurrar a cabeça do meu amigo e a de para que se beijassem também. O grande X da questão é que os dois passaram muito tempo se beijando. Muito tempo.
Se minha memória estava correta, conseguia ver as línguas se chocando uma contra a outra, as mãos de Ross posicionadas na lombar e na nuca da mulher, pressionando-a contra si, as mãos dela em seus cabelos.
Deus, é mais do que eu consigo suportar. Nervoso, me pus de pé e fui para a rua. Precisava urgentemente de um cigarro.
Do lado de fora, com as mãos trêmulas, risquei o palito de fósforo e acendi o tabaco com muita dificuldade. Agora que me lembrava, as lembranças estavam em looping infinito na minha cabeça, com pequenas adições.
Nós três dançando colados. beijando Ross e, logo após, me beijando. Quem ficava atrás dela, sempre beijava seu pescoço, seus ombros, sua nuca. Até que, de frente para mim, vi os peitos da mulher cobertos por duas mãos que os apertavam. Isso, combinado aos beijos que passei a dar em seu pescoço a fizeram soltar suspiros e gemidos baixos.
A visão fez um arrepio correr a minha espinha, pois aquilo poderia ter ido muito mais além.
― Isso serve pra você aprender a parar de encher o cu de droga. Olha só no que deu ― resmunguei comigo mesmo.
― Eu sabia que você era maluco, mas que falava sozinho também é novidade. ― Ross apareceu, estendendo a mão para pegar meu cigarro.
Dando a ele o aceso, peguei outro e pus entre os lábios, repetindo o processo inicial.
― Estava só pensando numas coisas ― murmurei.
― Meu Deus, a minha cabeça vai me matar. ― Passou a mão pelo rosto, dando uma tragada no cigarro em seguida.
― Ross, você se lembra de ontem?
― De bastante coisa. Por quê?
― Até de nós dois?
― Ah, sim. ― Riu. ― Você beija bem, deve ser por isso que todo quer.
― Você sabe que não é disso que estou falando.
― Óbvio que não é disso. ― Sorriu, batendo as cinzas do cigarro antes de pô-lo na boca de novo. ― Sim, eu me lembro de beijar a e de dançar com vocês dois.
Em silêncio, continuei a fumar, com o olhar fixo no chão à minha frente.
― Antes que isso gere algum desconforto entre nós, continua sendo só minha amiga. Sim, ela é linda, mas eu não tenho o menor interesse. Foi apenas algo de festa, assim como beijar você. ― Rimos.
― E rolou algo a mais? ― questionei como quem não quer nada.
― Você quer saber se nós fizemos um ménage ou se eu transei com ela? ― Pensei por um segundo.
― As duas coisas. ― Dei uma nova tragada.
― Nós só demos uns amassos e você estava incluso em todos. ― Riu. ― Não foi nada demais, ok?
Não iria admitir, mas ouvi-lo dizer me deixou automaticamente mais tranquilo, como se um fardo tivesse sido tirado dos meus ombros e do meu peito, pois tudo que eu menos precisava ou queria era ter que “competir” por com um dos meus melhores amigos. Ainda mais quando ela fazia questão de deixar muito claro que eu era a pessoa que tinha menos chance nas atuais circunstâncias.


#21

Voltei pras drogas que eu parei
(drunk face - Machine Gun Kelly)



AVISO DE GATILHO: O capítulo a seguir aborda temáticas sensíveis referente a saúde mental, consumo e dependência de substâncias químicas.


Três semanas se passaram e havíamos voltado para casa por alguns dias. George havia desaparecido pela segunda noite seguida e eu aproveitei para ir ao supermercado comprar algumas coisas para cozinhar nos próximos dias, já que precisava manter minha cabeça ocupada para não pensar no que não devia.
A rotina de show estava muito pesada, mal tínhamos tempo para descansar ou para aproveitarmos os lugares em que íamos. Logo, não demorou muito para que eu sentisse falta de usar algo. E demorou menos ainda para que conseguisse algo para usar quando ninguém estivesse olhando.
Começou com uma ou duas carreiras de pó antes de um show ou de uma agenda cheia de entrevistas. Assim, me mantinha ativo pelo máximo de tempo que fosse preciso. No entanto, a cocaína me deixava agitado demais e não me permitia relaxar depois, pelo menos, não do jeito certo. Então, quando me dei por mim, já tinha bolado heroína em uma folha de estanho e fumado até o fim.
Não havia culpa, não havia dor, apenas prazer. Era como boiar no mar e se deixar levar pelas ondas, sem ter que se preocupar com o que aconteceria a seguir.
Obviamente que, quando o efeito passava, tudo o que me restava era o arrependimento. Minha vida estava ótima durante meus tempos sóbrio. Eu conseguia pensar com clareza, tomar decisões sensatas, me relacionar com todos ao meu redor de maneira honesta.
Foi pouquíssimo tempo até que todos percebessem o quanto eu fazia de tudo para ficar sozinho, estava sempre com a imunidade meio baixa e deprimido demais para curtir. As coisas desandaram quando George insistiu para que eu voltasse a fazer testes toxicológicos uma vez a cada dois dias.
No início me recusei, bati o pé, afirmei que não era mais criança para ser tratado como tal. Entretanto, contra a minha máxima, estava Adam, que relembrou que havia pedido por essa cobrança de início.
― Se você não fizer o teste, nós vamos cancelar o resto da turnê. Não tem como continuarmos viajando com alguém que mente todos os dias e some sempre que pode. ― George me entregou o teste.
Olhando no rosto de cada um dos meus amigos, entendi que não estavam brincando. Ainda resistente, fui ao banheiro e fiz o teste, pois sabia que não havia como escapar.
O resultado positivo não surpreendeu ninguém. Na verdade, a única surpresa foi que Daniel junto com nosso empresário já havia entrado em contato com Rico, o terapeuta da clínica de reabilitação, para falar a respeito da minha recaída e como deveriam proceder. Desta forma, naquela mesma tarde, uma sessão de terapia havia sido marcada para mim e deveria comparecer.
Embora tivesse ficado irritado, de pouco em pouco, a vergonha foi chegando por ter me dado conta do que estava fazendo. Tanto que, naquela dia, foi a primeira vez que chorei em terapia. Contei a Rico sobre tudo o que estava acontecendo: os shows, a rotina, … literalmente, tudo. Aquela foi uma das sessões mais difíceis da minha vida.
Desta vez, Rico não me interrompeu em nenhum momento, apenas me deixou falar, como se soubesse que o que eu mais precisava era desabafar. De repente, parecia que todos os meus sentimentos pesavam uma tonelada e, se não os botasse para fora, teria que engolir bolas de boliche todos os dias e suportar seu peso até o fim.
― Matthew, apesar dessas recaídas, você tem ido muito bem na sua recuperação. Você retornou a sua vida normal e conseguiu se manter limpo por um ano. Você parou para pensar nisso? ― Balancei a cabeça negativamente. ― Não importa o que te fez deslizar, mas o que fará toda a diferença é que você não encare um deslize como queda, lembra? ― Assenti em silêncio.
― Mas o que eu devo fazer a partir de agora? Não é como se eu pudesse me internar de novo ou pudesse simplesmente seguir minha vida como se nada tivesse acontecido.
― Bom, primeiro, você terá que se abster de novo das drogas e, de preferência, dos locais e pessoas com quem você consegue também. O processo será o mesmo de antes, quando você estava internado.
― E se eu não conseguir?
― Você já conseguiu. Aliás, mais de uma vez. Ainda assim, recomendo que você faça acompanhamento médico, psicológico, cuide da sua alimentação e faça exercícios físicos. Esses dois últimos itens, inclusive, te ajudarão não só com relação a abstinência, como também a ter uma vida mais equilibrada de forma geral, ok? Se possível, comece isso hoje. Não deixe para amanhã. O tempo é precioso demais.
― Eu sei. ― Passei uma das mãos pelo rosto.
― Pelo que pude perceber, seus amigos estão te apoiando, certo?
― Eles são as pessoas com quem mais posso contar no mundo.
― Ótimo. É importante ser acolhido ao longo do processo. ― Deu um meio sorriso. ― Você vai conseguir, Matthew.
― Obrigado.
― Me prometa que se precisar, irá me ligar de novo.
― Eu vou.
― Perfeito.
― Obrigado mesmo.
― Não por isso. Até mais.
― Até. ― Desliguei.
Meu primeiro ato foi, automaticamente, acender um cigarro. Mesmo com as mãos trêmulas, não demorei tanto para acender o tabaco.
Minha cabeça rodava, não conseguia focar em nenhum pensamento que fosse e, muito provavelmente, não conseguiria concluir uma única frase concisa se precisasse. Ainda estava emocionalmente abalado por ter voltado à estaca zero e, por mais que quisesse muito seguir o conselho de Rico e começar naquele mesmo dia, não sabia nem por onde começar.
E foi assim que acabei no supermercado fazendo compras para um jantar não planejado. Não sabia o que comprar, mas acabei colocando em meu carrinho tudo que considerei que seria saudável. Nada de doces ou bebidas alcoólicas. Apenas verduras, legumes e alguns grãos.
Na volta para casa, vi uma figura conhecida caminhando emburrada com fones de ouvido. Estacionei o carro alguns metros a frente, abri a porta e gritei:
― Quer uma carona? ― Olhando primeiro de soslaio, só tirou os fones de ouvido ao ver quem falava com ela. ― Você tá meio longe de casa, né?
― Eu precisei passar pelo supermercado.
― Entre aí. ― Acenei com a cabeça. ― Eu te deixo em casa.
Parecendo meio hesitante, demorou alguns segundos até que entrasse no veículo e fechasse a porta. Por fim, pôs o cinto de segurança e a bolsa nos pés.
― Como vocês está?
― Bem. ― Franziu os lábios.
manteve os olhos na estrada à nossa frente. Desta vez, não perguntou como eu estava de volta. Era quase como se estivesse em um carro de aplicativo em que o motorista só tenta puxar assuntos aleatórios, nos quais ela não estava interessada.
Sabendo que não importava o que dissesse, isso não a faria parar de orbitar em seu próprio mundinho, segui dirigindo em silêncio, atentando-me aos sinais, pedestres e outros motoristas.
Mais algumas quadras adiante, pôs a mão meio agressivamente sobre meu braço.
― Que foi?
― Para, por favor ― respondeu baixo.
Atendendo seu pedido, estacionei na primeira vaga que surgiu à minha direita. Sem tempo para explicações, a mulher abriu a porta do carro rapidamente correndo para fora. Em poucos segundos, seu corpo se curvou para a frente, derramando uma refeição inteira ― ou seja lá o que aquilo fosse ― em forma de vômito.
Durante o tempo em que nos conhecíamos, nunca tinha visto passar mal, muito menos vomitar.
Após limpar a boca, entrou no carro novamente e bebeu um gole da água da garrafa que sempre carregava na bolsa.
Fiquei a encarando, esperando que dissesse algo. Quando esse algo não veio, achei que era melhor perguntar:
― Tá tudo bem?
― Tô ótima. ― Continuou a bebericar a sua água.
estava pálida e, mesmo no escuro do carro, conseguia ver isso.
― Não parece.
― Eu estou bem, ok?
… ― Desliguei o veículo e virei meu corpo levemente para o lado. ― Tudo bem se você não quiser falar pra mim, mas acabou de acontecer uma coisa que eu nunca vi acontecer. Se você quiser, posso te levar ao hospital e…
― Não precisa. ― Balançou a cabeça. ― Não seja exagerado.
― Eu estou preocupado. Você está pálida.
― Ok, ok! ― rebateu mais alto, suspirando. ― Eu estou atrasada. ― Franzi as sobrancelhas.
― Atrasada pra quê?
― Minha menstruação. ― Revirou os olhos. ― Era para ter vindo há umas duas semanas e até agora nada.
― Wow, wow, wow… e você tá me dizendo isso agora?
― Eu tinha esperanças, né?
― E você fez um teste?
― Não. Eu… fiquei com medo. ― Cerrou os olhos com força. ― Já pensou se é positivo?
― Mas pra saber você precisa fazer um teste. De nada adianta sofrer por antecedência sem ter certeza. ― Liguei o carro outra vez, nos colocando na estrada de novo.
― Onde vamos?
― Para a farmácia. Nós vamos fazer isso juntos, ok? ― De relance, vi um meio sorriso em seus lábios e seus ombros parecerem levemente relaxados.
Uma das farmácias mais próximas ― e seguras para que fofocas não vazassem ― era a algumas quadras de distância da minha casa, por isso, estacionei na calçada do outro lado da rua. fez menção de sair do carro, mas sabendo do peso que aquilo teria para ela, pus uma mão sobre a sua, sinalizando que poderia ficar no carro.
Rápido como um foguete, entrei no estabelecimento, fui até as gôndolas onde ficavam os testes, escolhi três de marcas diferentes e me encaminhei para o caixa.
― Noite difícil? ― O atendente sugeriu ao pegar a primeira caixa para passar no leitor de código de barras.
― Mais ou menos. Uma amiga precisava de ajuda e aqui estou eu. ― Dei um meio sorriso.
― Boa sorte para ela. ― Terminou de passar os itens.
Paguei as compras, peguei a sacola e saí, voltando para o carro.
Entregando a sacola para , virei a chave na ignição e pus o cinto de segurança.
― Por que três?
― Você confiaria no positivo ou no negativo de um único teste?
― Você já esteve nessa situação?
― Não, mas imagino que essa lógica se aplique pra quase tudo na vida. ― Riu baixinho.
Fizemos o resto do trajeto em silêncio, como se estivéssemos caminhando para uma possível condenação em pleno tribunal.
No fundo, eu não achava uma má ideia ter um filho com , entretanto, ela não parecia achar uma boa ideia ter um filho no geral.
Quando chegamos a garagem de casa, saímos do carro e adentramos pela porta do fundos, ainda quietos. As bocas fechadas duraram até entrarmos na sala, quando a ofereci algo para beber. Recusou e, nos instantes seguintes, vi a mulher parecer bugar, como se não soubesse por onde começar.
― Matty?
― Sim?
― E se… você sabe… der positivo? ― Cutucava os próprios dedos das mãos, demonstrando insegurança.
― Eu vou estar com você qualquer que seja a sua decisão. ― Caminhei até ela, parando a sua frente. ― Nós estamos juntos nessa, ok? ― Dei um beijo no alto da sua cabeça.
― Bom, eu vou… ― Apontou sobre o ombro, segurando as sacolas em mãos.
― Claro. Eu fico te esperando aqui. ― Sentei-me no sofá.
Saquei o celular para ocupar as mãos, que não paravam de tremer, em um mix de crise de abstinência e angústia.
A ficha de uma possível gravidez estava começando a realmente cair e passei a ponderar a respeito. O que ter um filho significaria na minha vida? O que de fato mudaria? Ou melhor, algo mudaria? Eu não tinha a resposta de nenhuma dessas perguntas e, se não tivesse um filho, talvez não as tivesse tão cedo. Tudo o que eu sabia era que, se saísse do banheiro com um positivo e me dissesse que gostaria de ter, não ficaria triste ou bravo. Na verdade, era bem provável que não conseguisse me conter de empolgação com a ideia de ser pai.
Mas, pela sua cara desde que a encontrei, estava bem explícito qual seria sua posição em caso de um positivo.
não demorou tanto quanto imaginei. De mãos vazias, voltou para a sala, perambulando inquieta de um lado para o outro até se sentar.
― E aí?
― Nada ainda. Deixei lá e saí. Não quero esperar pelos resultados sozinha. ― Embora não estivesse calor, bem de perto, vi uma gota de suor escorrer próxima a linha do cabelo da mulher.
Seus lábios estavam perdendo a cor aos poucos e os dedos de pontas roxas estavam tão trêmulos quanto os meus. Sua respiração estava começando a ficar audível quando uma bandeira vermelha se ergueu no meu cérebro. Crise de pânico.
Automaticamente, me agachei à sua frente, segurando suas mãos entre as minhas. Estavam frias como se estivessem sem circulação há algum tempo.
― Olha nos meus olhos e me diz o seu nome.
.
― Nome completo.
.
― E qual a sua profissão?
― Jornalista. ― Apertei suas mãos com um pouco mais de firmeza, afinal, seu tremor estava começando a me contagiar.
― E quem sou eu?
― Um babaca. ― Ri.
― Isso também. Mas qual o meu nome?
― Matty Healy.
― E o que eu faço?
― Vocalista de uma banda.
― Onde você está?
― Na sua casa.
― Você sente as minhas mãos?
― Sim.
― E o que você tá sentindo?
― Um misto de calor e frio. Taquicardia. Suor excessivo.
― Você sabe o que é isso? ― Assentiu, deixando a primeira lágrima rolar dos seus olhos. ― Quer que eu faça algo pra você se sentir melhor?
― Só… ― A lágrima solitária de repente virou uma tsunami, causando, inclusive, soluços que atrapalhavam sua fala. ― só fica comigo. Fala comigo.
― Que cor é o carpete da minha casa?
― Você não tem carpete. ― Franziu a testa e secou os olhos nas mangas da blusa, fazendo um malabarismo para não soltar nossas mãos.
― Qual seu programa preferido?
Keeping up with the Kardashians.
― Você gosta desse sofá?
― Que diabo de pergunta é essa? ― Riu nervosa.
― Eu estou improvisando. ― Ri.
― É, eu gosto, sim.
Mesmo com o rosto vermelho, cheio de lágrimas e as mãos ainda estivessem geladas, estas últimas estavam parando de tremer, o que me dizia que estava funcionando.
― Você quer assistir alguma coisa daqui a pouco?
― Não.
― Você está com fome?
― Sim. ― Fungou. Os lábios estavam voltando a ter a cor natural.
― O que você está sentindo agora?
― Parece que eu vou vomitar.
― Ótimo. Quer dizer, não muito. ― Sorri. ― Está com frio ainda?
― Não.
― E calor?
― Estou suada, mas o calor tá passando.
― O que tinha na sua sacola de compras?
― Macarrão instantâneo e cerveja.
― Você sempre com uma alimentação de merda, né?
― Você se alimenta de cigarro, maconha e café. Acho que não tem muita moral pra falar de mim. ― Ela está voltando ao normal.
― Sua casa é longe daqui?
― Mais ou menos.
― Que cor são os seus sapatos?
― Pretos. São sempre pretos.
― Que cor são meus olhos?
― Sempre me confundo, mas definitivamente castanhos.
― Vou beijar suas mãos, me fala qual é a sensação. ― E assim o fiz antes que pudesse protestar.
Demoradamente, encostei os lábios em cada um dos dorsos de suas mãos.
― São macios e quentes. Senti sua respiração e a ponta do seu nariz também.
― Você gostou?
― Eu sempre gosto. ― Deu um meio sorriso.
― Como está se sentindo?
― Meu coração tá normal e, como você pode sentir, não estou mais tremendo. E, se quiser, pode soltar minhas mãos.
― Você quer que eu faça isso?
― Fica só mais um pouquinho ― murmurou e eu atendi.
Todavia, diferente dos minutos anteriores, os olhos de corriam pelo ambiente e, vez ou outra, se focavam em nossas mãos juntas.
Voltando a me sentar no sofá, sem nem pedir permissão, a puxei para perto do meu peito, abraçando-a. Como se estivesse esperando por isso, se encolheu para se aconchegar próxima ao meu corpo.
Ficamos assim até que ouvi seu pigarro baixinho.
― Acho que o resultado está pronto. Mas eu…
― Eu vejo. ― Relutante em deixá-la, levantei-me e fui para o banheiro.
Aqueles foram os segundos mais tensos da minha vida depois do dia que subi pela primeira vez em um palco com mais de mil pessoas me assistindo. Queria acender um cigarro. Talvez quatro de uma vez só. Queria cheirar uma carreira. Qualquer coisa. Tudo que não estava sentindo de sintomas de abstinência, além dos tremores, comecei a sentir nos instantes que antecederam a leitura das instruções de cada um dos testes e a conferência dos resultados.
Antes de conseguir fazer qualquer uma dessas coisas, entrei no cômodo, abri a torneira, molhei as palmas das mãos e as passei pelas bochechas e nuca, tentando suavizar a sensação de ansiedade. Você não pode ter um colapso agora, acabou de passar mal, você é quem está cuidando dela!
Após descobrir como deveriam ser os resultados positivos e negativos, olhei cada um dos testes e quase suspirei de alívio.
? ― Retornei para a sala. ― Alarme falso.
Seus ombros se soltaram e sua expressão facial se suavizou, quase como se tivessem virado uma chave em seus cérebro.
― Tem certeza?
― É o que diz em cada um deles. Você não está grávida.
Pondo as mãos no rosto e se encolhendo, ouvi um suspiro de sua parte. Obviamente, a mais aliviada, no fim das contas, era .
Do alto do meu egoísmo, cheguei a me questionar se a ideia de ter um filho comigo era ruim o suficiente para fazê-la sentir toda aquela pressão e aquilo me fez tão mal que me senti enjoado, a ponto de sentir ânsia de vômito. No entanto, tentando me colocar em seu lugar, imaginei o que uma gravidez e, consequentemente, uma criança acarretaria, principalmente, em sua vida.
, assim como eu, era jovem, com uma vida inteira pela frente, no auge de sua carreira, pela qual havia batalhado tanto. Além disso, nossa relação nunca fora das mais tranquilas. Havíamos transitado entre a raiva, o desconforto, a paixão, a decepção e o amor. Quem poderia prever o que mais poderia vir caso tivéssemos um vínculo mais próximo e constante, como uma criança para criar? Acho que era mais do que ela ― e até mesmo eu ― poderia suportar.
― Ok, então, acho que é isso? ― Passou as mãos pelas pernas, levantando-se do sofá e pondo a bolsa sobre o ombro.
― Onde você pensa que vai?
― Para casa. Eu vim só fazer os testes.
― Não, nem pense nisso. Você acabou de ter uma crise de pânico e se acha que vou te deixar ir para casa sozinha e ficar sozinha até amanhã, sem nem me dar notícias, você está completamente enganada. Largue sua bolsa imediatamente, eu vou fazer o jantar e preparar o quarto pra você. ― Atônita, a mulher ficou parada por quase um minuto inteiro sem falar uma única palavra ou mover um músculo. Devagar, soltou a bolsa no sofá de novo.
― Espera… você disse… cozinhar? Desde quando você cozinha?
― Tem muitas coisas que você não sabe sobre mim, querida. ― Sorri, colocando um cigarro na boca e acendendo-o.
Indo para a cozinha, procurei nas sacolas tudo o que precisaria para fazer o que estava pensando, além de procurar no freezer onde estava a minha parte de uma comida que George e eu havíamos ganhado de sua mãe.
Enquanto cortava alguns temperos na bancada, parou ao meu lado, encarando-me.
― Que foi? ― resmunguei, fazendo o possível para que meu cigarro não caísse da boca.
― Obrigada.

― Não, é sério.
― Você me dá um susto desses e acha que vai se livrar de mim tão fácil? ― Bati as cinzas do cigarro em uma xícara suja e a vi abaixar a cabeça para uma risadinha.
Novamente, me concentrei em cortar o resto dos temperos que ainda faltavam. Assim que terminei, reservei-os em vasilhas, bati as cinzas do cigarro de novo e abri os armários em busca da panela perfeita para cozinhar. Enquanto isso, puxou uma cadeira da mesa de jantar e sentou-se.
Por estar congelada, botei a massa para cozinhar bem antes de começar a fazer o molho.
parecia distraída com algo e, por mais que o momento e o jantar fossem perfeitos para abrir uma garrafa de vinho, achei que seria inapropriado dado o que já havíamos passado naquela noite. Portanto, peguei duas latas de coca-cola, abrindo-as e pondo uma em frente à mulher.
― Apesar de estar com uma cara bem melhor do que quando chegou, você ainda não me parece o maior exemplo de animação.
― Tem sido difícil relaxar nos últimos tempos.
― Algo que queira falar a respeito? ― Dei um gole na minha bebida.
Seus olhos se fixaram em seus dedos, que brincavam com um fiapo de tecido.
― É algo que ainda não conversei com ninguém, estava esperando a terapia, que é amanhã. ― Deu um sorriso amarelo.
― Estou ouvindo.
― Não quero te encher com os meus problemas.
― Eu já te enchi com os meus várias vezes. ― Dei de ombros.
― Meu pai está doente. ― Seus olhos correram o ambiente. ― Ele tem câncer. Não sei há quanto tempo, nem a gravidade, mas eles não me contaram nada. Eu… ouvi uma conversa um dia e aí tive que procurar pela casa algum indício do que estavam dizendo. Um exame, qualquer coisa e eu achei não só a biópsia como a requisição de tratamento.
― Eles não sabem que você sabe? ― Meneou a cabeça. ― E você não pretende contar?
― Eu não saberia nem por onde começar. Quer dizer, eles estão mentindo há sei lá quanto tempo a respeito de uma coisa seríssima, não deveria ser eu a ter que contar algo, né?
― Apesar de que eu jamais faria isso, consigo compreender por que eles escolheram não te contar.
― Então, por favor, me explique. ― De repente, ela parecia levemente irritadiça.
, você tem os seus próprios demônios pra lidar e, às vezes, eles só não querem que você se preocupe, seja com algo que não é nada demais ou com algo que é inevitável.
― Mas é meu pai, porra! Eles deveriam me contar! E se acontecer algo com ele?
― Se acontecer, é porque era inevitável. Se você encontrou exames e encaminhamentos para um tratamento, significa que eles já estão fazendo o possível para o seu pai sair dessa. ― Passou as mãos pelo rosto. ― Eu sei que é difícil, mas não há nada que você possa fazer a não ser esperar pelo desfecho.
Aproximando-me dela, agachei-me ao seu lado, pondo uma mão sobre seu joelho.
― Enquanto isso, cuide de você. Você pode não estar grávida, mas certamente o seu corpo está tentando te dizer algo com esse susto, certo?
Dando algumas batidinhas rápidas sobre sua perna, me levantei para tirar a massa do fogo.
― O que você está aprontando aí?
― A mãe do George nos visitou e trouxe massa de macarrão caseira. É simplesmente o melhor macarrão que você vai comer na sua vida.
― É, eu acho que vai ser, sim. ― Não a olhei, mas ouvi o breve resquício de sorriso em sua voz.
Durante o preparo do molho, não ouvi mais a voz de . Tanto que, de vez em quando, virava para conferir se estava tudo bem, mas ela continuava apenas cutucando os fiapos de tecido ― que eu nem sabia de onde os estava tirando ― e, às vezes, bebericando seu refrigerante. Ela realmente não estava em seus melhores dias e, mentalmente, conclui que foi a melhor decisão que pude tomar ao trazê-la para casa e fazê-la ficar.
Quando coloquei o jantar na mesa, a mulher se serviu de uma quantidade mínima de comida, porém não insisti para que pegasse mais. Imaginei que, após os acontecimentos de mais cedo, seu apetite tivesse ido para o espaço.
Observando-a dar a primeira garfada, vi na ligeira variação de feições em seu rosto que já havia formulado sua opinião sobre o jantar.
― Foi você mesmo que fez esse pesto? ― questionou, limpando os cantos da boca com o guardanapo.
― Foi. O que achou?
― Tá maravilhoso. ― Sorri. ― Fazia muito tempo que eu não comia algo bom assim.
― Você gosta de inflar o meu ego, né? ― Concentrei-me no meu prato, começando a comer.
― Às vezes, sim. Quando você merece. ― Sorriu.
― E tem algum momento que você acha que eu mereço? ― brinquei.
― É, tem. Tipo, hoje.
Franzindo os lábios para baixo, balancei a cabeça. Ela é mesmo adorável.
Ao longo de toda a nossa refeição, transitamos entre o silêncio e algum assunto aleatório. parecia estar precisando daquele momento de descontração e eu também. Estar perto dela me fazia pensar menos nas minhas necessidades de recém abstêmio. Era só permanecer por um período um pouco maior sozinho que meu cérebro já começava a tramar maneiras de conseguir usar algo. Conseguia até me lembrar de cor o número de telefone do meu cara, algo que não conseguia nem com pessoas extremamente próximas a mim, como meus pais, irmão ou meus melhores amigos.
Terminando de jantar, colocamos pratos, talheres e panelas na máquina de lavar louças e fui pegar roupas e uma toalha para tomar banho.
― Se você quiser lavar seu cabelo, tem shampoo e condicionador, ok?
― Você usando condicionador? ― Semicerrou os olhos.
― Desde que você me mostrou que meu cabelo ficava muito bom assim. ― Sorriu.
Antes de entrar no cômodo e fechar a porta, deu um beijo na minha bochecha, o que me fez sentir meu rosto queimar de leve.
Tentando não deixar aquilo me afetar e me fazer perder a compostura, fui para o quarto, arrumar a cama para que minha convidada dormisse. Ao invés de pô-la no quarto de hóspedes, resolvi ceder o meu, afinal, caso precisasse de algo, já estava mais familiarizada com aquele ambiente.
Rápida como um gato tomando banho, pouco depois que terminei de ajeitar a cama, apareceu vestida com uma das minhas camisetas e uma samba-canção.
― Eu não vou dormir com você, né? ― Ri de seu tom desconfiado.
― Não. Só achei melhor te deixar dormir aqui porque é um quarto que você já conhece, se precisar de algo, sabe onde as coisas estão.
― Mas faz tanto tempo que eu não…
― Continua tudo igual. No mesmo lugar. ― Assentiu devagar.
Deixando as roupas e a bolsa em um canto do quarto, sentou-se na cama, arrumando os travesseiros na vertical para encostar as costas.
― Você pode ficar um pouco. Se quiser ― sugeriu.
Andando até a cama, sentei a uma distância de cerca de dois palmos dela.
― Matty?
― Hm?
― Você acha que seríamos bons pais?
― Nós dois sabemos que você seria incrível.
― Eu?
― É. Você. Eu tentaria acompanhar seu ritmo. ― Riu.
― Eu tô falando sério.
― Eu também.
― Você sabe que se eu realmente estivesse grávida, não teria a menor possibilidade de… ― deixou no ar.
― É, eu sei. E você teria todo o meu apoio, qualquer que fosse a sua decisão.
― Mesmo que você quisesse ter?
― Mesmo que eu quisesse. Eu ainda quero, sabe? Às vezes me imagino construindo uma família. Casado, com filhos, sossegado.
― Você? Sossegado? ― ironizou.
― Se você ainda não consegue imaginar isso, é porque não é minha hora. ― Riu. ― Mas você sabe que você foi a única pessoa com quem já consegui me imaginar tendo uma família, um lar, quem sabe filhos, animais de estimação…
A mulher nada respondeu. Apenas desviou os olhos para as mãos e os manteve ali, como se estivesse refletindo sobre o que aquilo significava. No fundo, ela provavelmente sabia, só não queria dar o braço a torcer.
― Por quê?
― Porque, com você, eu sempre tive certeza de tudo. ― Dei de ombros. ― Você é uma das poucas pessoas no mundo que me leva muito a sério. Quando você me diz que vai voltar, eu acredito, porque você jamais mentiria pra mim. Pelo menos, não pra magoar meus sentimentos. ― Os cantos dos meus lábios se puxaram, formando um pseudo-sorriso.
não levantou os olhos, mas a forma como seu corpo deslizou pelo colchão para debaixo das cobertas me disse que aquele era um assunto encerrado por ora.
― Eu vou te deixar dormir. ― Acariciei uma de suas pernas antes de me levantar da cama, apagar a luz e a deixar só.

- x x x -


Quase uma semana se passou desde toda a situação com , nós não havíamos nos falado mais e, no fim, achei que era até melhor pra nós dois, afinal, algo sempre acontecia quando estávamos juntos. Mas, ao mesmo tempo, foi bom ter tido aquele momento de fragilidade. De alguma forma, vê-la daquele jeito me fez pensar no quanto outras pessoas também podia precisar de mim, no quanto eu não era inútil. Essa reflexão me deu um pouco mais de força para investir na minha recuperação.
Na tarde seguinte, eu já havia contratado um personal trainer e começado a me exercitar, estabelecido um horário para parar de trabalhar, um para jantar e outro para dormir.
É, as coisas iam entrar nos trilhos, nem que para isso eu precisasse mudar radicalmente.
Entretanto, foi no fim de semana seguinte que meu telefone tocou e, para minha surpresa, era .
― A que devo a honra? ― Não contive o sorriso ao atendê-la.
― Nós nunca mais nos falamos depois daquele dia e achei que precisava te avisar caso tivesse… você sabe, uma confirmação física de que nossa família feliz não iria se formar agora. ― Rimos.
― Fico feliz que aconteceu. Mas você está bem?
― É, estou. Depois do susto, finalmente consegui voltar a trabalhar normalmente, conversei com os meus pais… enfim, uma avalanche de coisas se resolvendo.
― E você merece paz.
― De qualquer forma, queria te agradecer de novo por aquele dia.
― Não precisa. Eu fiz o que precisava ser feito.
― Nem todo mundo faria.
― Leve isso como a minha obrigação moral com você. ― Deu uma risadinha curta e baixa.
― Bom, eu preciso desligar, mas, caso precise de algo, você sempre sabe onde me encontrar.
― Obrigado. ― Agradeci, ouvindo-a desligar em seguida.


#22

Tudo que fazemos é sentar em silêncio, esperando por um sinal
(Drive - Halsey)



Por mais que fosse difícil conciliar uma rotina saudável com o mínimo de drogas possível e mais uma série de shows em vários países, com os mais diversos fusos horários era o grande desafio que tinha aceito para minha “nova vida”. Mal havia tempo de abrir a mala e conferir o que havia colocado ali, pois, sem me dar conta, era hora de partir. Nosso terceiro álbum tinha nos gerado mais frutos positivos do que imaginávamos e agora estávamos colhendo cada um deles.
Na primeira quinzena de agosto, foram cinco shows em cinco países diferentes e nem todos eram vizinhos. No entanto, foi ao chegar em um dos países mais esperados por nós que as coisas pareceram desandar.
Sempre que íamos ao Japão era algo especial. Foi a nossa viagem mais esperada quando ainda estávamos no início dos nossos 20 e poucos anos, afinal, mostrava o quão longe havíamos chegado com nossa pequena banda. Quem poderia imaginar que um grupo de moleques conseguiria fazer algo assim sem recorrer a métodos escusos ou, até mesmo, um “apadrinhamento” dos próprios pais.
Embora tivéssemos viajado horas e mais horas praticamente sem descanso, não consegui chegar no hotel e cochilar como todos os outros. Muito pelo contrário. Decidi que era hora de quem sabe fazer alguns exercícios que não havia conseguido nos últimos dias e comer algo.
Desta vez, não tinha conseguido trazer nosso personal junto, pois demoraria mais tempo do que imaginávamos para conseguir seu visto, logo, fiz somente o treino que havíamos feito pouco antes de eu partir. Não era pesado, mas era o suficiente para que meu corpo entendesse que não estávamos em modo férias ou no antigo modo em que trabalhávamos ― nenhum.
Quando terminei minhas séries, percebi que tinha menos tempo que o previsto até a hora de irmos para o local do show, então, decidi que uma refeição completa talvez não fosse a minha melhor escolha. Antes de todos aparecerem no restaurante do hotel, comi algumas frutas, comi alguns cereais e bebi um suco, que, por sinal, estava horrível.
E, enquanto todos comiam, fui me arrumar para sair.
Por incrível que pareça, já havia passados do meio dia e ainda tinha fumado só dois cigarros, além de não ter bebido nada alcoólico. Ao olhar para o frigobar, automaticamente, senti a garganta seca, portanto, decidi que era hora de uma cerveja.
Abrindo a janela do quarto, debrucei-me sobre o parapeito, observando a rua, as pessoas. Apesar de ser um lugar com muita gente, muito trânsito e muitos prédios, certamente era um dos locais mais organizados em que estive em toda a minha vida. Dificilmente você veria alguém atravessando fora das faixas de pedestres ou com semáforos fechados. Era engraçado perceber que estava tão longe de casa e sem previsão para voltar.
Acendendo o cigarro que deixei atrás da orelha por algum tempo, voltei-me para o lado de dentro do quarto, encarando minhas roupas sobre a cama. Diferente dos outros shows, pedi que a equipe de styling deixasse tudo pronto no meu quarto, afinal, não queria me trocar durante o festival. Não sabia nem se queria permanecer mais tempo que o necessário no festival, já que lá era o tipo de ambiente onde encontraria facilmente tudo aquilo do que estava fugindo.
Para aproveitar aquele breve instante de paz interior, liguei uma música aleatória no celular e deixei tocar, apreciando cada segundo na companhia do meu cigarro, minha lata de cerveja, que já estava na metade, e dos acordes tranquilos que enchiam o cômodo.
Ao sair do hotel a caminho do local onde estava acontecendo o festival, percebi o quão quente estava. Já não estávamos mais no auge do verão, mas nada parecia capaz de nos impedir de suar como sorvetes na praia. Sentia gotas de suor escorrendo pelos cantos do meu rosto, onde começavam os meus cabelos.
Pegando uma toalhinha, tentei ao máximo me manter aparentemente seco.
Em nosso camarim, havia tudo o que tínhamos solicitado: frutas, bebidas dos mais diversos tipos, toalhas e, principalmente, cadeiras para nos sentarmos enquanto esperávamos nossa hora.
Fazendo as honras, bolei e acendi um baseado, que passou por toda a banda. Para refrescar, abrimos algumas cervejas e bebemos com o ar condicionado na mínima temperatura possível e, mesmo assim, o verão parecia estar acontecendo dentro do nosso cubículo.
Estava difícil para conversarmos, para nos distrairmos, para literalmente qualquer coisa.
Quando a hora de subir ao palco chegou, não sabia se agradecia ou se começava a chorar, pois do lado de fora estava ainda mais calor.
Durante a performance nada melhorou, muito pelo contrário. Tanto nós quanto a nossa plateia parecíamos estar desfalecendo, porém dando o nosso melhor para que aquele dia fosse inesquecível.
Na intenção de me refrescar um pouco, cometi, inclusive, crimes alcoólicos, como beber vinho gelado. Mas nada resolvia aquela sensação de fogo que tomava cada pequeno pedaço do meu corpo, dos pés à cabeça.
No entanto, foi durante o final de Sex que a situação parece ter saído de controle. Era como se estivesse dissociando, a plateia e a banda pareciam distantes de mim, minha visão estava ficando turva, ao mesmo tempo que o mundo ao meu redor começava a rodar.
Por um segundo, minha única preocupação era não errar os acordes seguintes, entretanto, como uma torre sendo demolida, senti meu corpo ceder e não demorou até que me chocasse no chão.
Embora não tivesse perdido a consciência por completo, era como se não estivesse ali. Ouvi um milhão de vozes no retorno em meu ouvido, mas não compreendia uma única palavra do que era dito. Tudo que sabia era que a música seguia. Meus amigos estavam fazendo aquilo que se esperava deles: que o show deveria continuar não importava a circunstância.
Dentro da minha cabeça, a voz no fundo da minha mente me dizia para levantar, porém, meus músculos pesavam toneladas. E, ainda assim, como se fosse um zumbi, consegui me levantar do chão, meio cambaleante, sem conseguir me conectar com a realidade e sentindo que, a qualquer momento, meu destino poderia voltar a ser o chão novamente.
Já estávamos na última música. Você consegue, são só mais três minutos. Tentando manter a energia, esperava que a plateia não percebe que estava me recuperando de um verdadeiro colapso, não de uma gracinha. Ou melhor, que ainda estava colapsando.
Quando finalmente saímos do palco, dois paramédicos correram na minha direção para me entregarem uma garrafa de água e me guiarem a uma maca no chão mesmo. Eles me perguntavam meus sintomas, mas mal conseguia compreendê-los.
Enquanto um aferiu minha pressão arterial, o outro checava meus olhos com uma pequena lanterna e, considerando que eu ainda estava usando meus retornos, nem mesmo conseguia ouvir suas conclusões, o que, no fim, talvez nem fizesse diferença.
Minhas pálpebras estavam pesadas, como se estivesse morrendo de sono, mas sabia que nada tinha a ver com sono. E, vendo um dos médicos sinalizar para alguém atrás de si, acabei apagando por completo.
Ao acordar, nem me surpreendi ao me deparar com um quarto de hospital, agulhas, soro e os barulhos de monitoramento cardíaco.
Adam estava sentado em uma poltrona a alguns metros da maca, mexendo no celular.
― Acordei. Já posso ir embora? ― Passei a mão que não tinha nada conectado pelos olhos, tentando melhorar a visão.
― Você dormiu pouco. Achei que demoraria mais. ― Levantou-se, dando alguns passos em minha direção.
― Dormir? Isso é para fracotes ― debochei, fazendo-o soltar uma risadinha quase aliviada.
― Você nos deu um susto e tanto. Como está se sentindo?
― Bem, eu acho. Minha cabeça dói um pouco, mas acho que logo vai passar. O que eu tinha?
― Segundo o médico que te atendeu, foi um quadro que misturou muitas coisas, como exaustão e desidratação severa. Na verdade, nem ele acreditou que você conseguiu levantar do chão e terminar o show. E agora, basicamente, você precisa de um pouco de repouso, uma alimentação decente e líquidos.
― Ele me liberou para o show de amanhã?
― Sim, mas com ressalvas. Sem estripulias, de preferência, sem drogas no geral, se alimentando decentemente e bebendo bastante água. ― Coçou a cabeça. ― Mas, Matty… hã, acho que te devo um pedido de desculpas.
― Por que exatamente?
― Eu devia ter percebido. Você não estava bem. Quer dizer, nenhum dos nós estava, mas você…
― Hann, por favor, você não precisa se responsabilizar por nada.
― Eu estava mais perto de você, deveria ter te ajudado.
― Você fez o que deveria: continuou o show. Está tudo bem, não está?
― Bom, tecnicamente… não muito. ― Franziu os lábios e eu ri.
― Daqui a pouco, eu ganho alta, então, sim, está. ― Sorri. ― É, sério, está tudo bem. Não precisa se preocupar.
Pondo uma mão no meu ombro, deu um sorriso fraco.
― Você quer falar com alguém?
― Onde estão os outros?
― Foram comer algo na cantina. Eu já tinha comido, aí me ofereci para ficar. Vou chamá-los. ― Assenti.
Antes de sair, Adam deu um beijo no alto da minha cabeça.
Quando a porta do quarto se abriu novamente, a banda e adentraram.
― Todo mundo subiu, mas temos que ser rápidos porque a enfermeira falou que só uma pessoa pode permanecer como acompanhante no quarto ― anunciou. ― Como você está, garotão?
― Pronto pro próximo show.
― Seu senso de comprometimento com o trabalho me comove ― ironizou.
― Você pegou todo mundo desprevenido nessa, cara ― Ross se manifestou.
― É, eu gosto de surpreender. ― Ri.
― Mas você se machucou? Tem algo doendo?
― Não, tô inteiro. E é sério quando digo que tô pronto pro próximo já.
― Guarda essa disposição toda pra amanhã. Vai precisar, porque as condições climáticas vão ser as mesmas talvez piores ― George alertou.
Antes que alguém pudesse abrir a boca de novo, uma enfermeira adentrou no quarto, vindo em minha direção e começando a me checar.
― Como estamos fora do horário de visitas, peço que, assim que eu terminar de examiná-lo, permaneça no quarto apenas quem será o acompanhante da noite. Os demais, por favor, venham comigo.
― Amanhã é dia de show e seria bom que todos estivessem o mais descansados possível, então, se nem você, Matty, ou outros se importarem, posso ficar ― se voluntariou.
― Não é problema pra mim. ― Sorri.
A enfermeira, além de conferir minha pulsação, ainda fez um novo teste de coordenação com sua caneta de luzinha ― sei lá como se chama aquela porra ―, checou minha garganta e o soro conectado ao meu braço.
― Ok, pessoal, é hora da despedida ― anunciou, anotando algumas coisas no meu prontuário.
George abraçou-me de lado, Ross depositou um beijo no alto da minha cabeça e Adam deu um leve apertão em meu ombro, respectivamente.
― Descansa, cara ― Hann curvou os cantos do lábios, em um pequeno sorriso amigável.
― Eu vou. ― Correspondi.
Em fila, todos seguiram a mulher para fora do quarto. , por sua vez, sentou-se na poltrona onde Adam estava.
― Você tá bem mesmo? Parece bem… cansado.
― Eu tô bem. Sério. Foi só um susto mesmo.
― Talvez não seja o melhor momento para falar isso, mas teve uma pessoa que perguntou sobre você e eu não sabia o que responder. ― Inclinou-se para frente, apoiando os braços sobre as pernas.
― Consigo ter um vislumbre de quem pode ser. Mas por que você não sabia o que responder? Você sabia como eu estava, não?
― É que… ela… me perguntou se era um caso de exaustão mesmo ou… ― Passou uma das mãos pela testa, como se tentasse ganhar tempo para saber como abordar o assunto.
― Uma recaída? Não, não foi isso, . Você já deve saber, mas os caras têm checado os resultados dos meus toxicológicos todos os dias. Eu estou limpo de verdade. ― Suas feições, discretamente, se suavizaram. ― Diga a ela que não se preocupe. ― Desviei os olhos para o monitor de batimentos cardíacos. ― Ela… tem perguntado de mim?
― Quase sempre. Ela disfarça, finge que quer saber sobre todos, o que andam fazendo e tudo o mais. Só que hoje, em específico, ela viu um vídeo no twitter e achou que não era o momento certo para charme. ― Assim que a olhei, a vi tentar esconder um sorrisinho.
Novamente parando de olhá-la, não consegui não sorrir ao concluir que andava pensando em mim. Era engraçado como, no fim, parecíamos conectados um ao outro. Não, eu não pensava mais sobre ela o tempo todo, mas era impossível não me pegar relembrando sobre algo. Às vezes nem mesmo era uma lembrança completa, apenas um detalhe, um fragmento de instante.
Isso quando meu pensamento não voava em sua direção, fazendo-lhe questionamentos que jamais seriam respondidos. Como estava, se estava tudo bem no trabalho, se estava se alimentando bem, como estava a relação com a família ou se estava vendo alguém.
, você se importa de me falar sobre como ela está de vez em quando? Tipo, quando algo importante acontecer?
― Você tem o número dela, certo? ― Arqueou as sobrancelhas.
― É, tenho, mas não sei se ainda estamos nessa fase. ― Cruzou os braços em frente ao peito. ― Ela está bem melhor sem minhas interferências diárias, pode apostar. E quero que continue assim.
encarou-me por alguns segundos, analisando meu rosto, como se buscasse vestígios que servissem como justificativa para se recusar.
― Só quando eu julgar importante, ok? E sem direito a perguntas frequentes.
― Ok, totalmente de acordo.
― Combinado. ― Desarmou-se.
? ― Gesticulou para que eu continuasse. ― O que você tem achado do trabalho? Digo, estar conosco por aí e tudo o mais?
― Por que isso agora?
― Às vezes, acho que você se arrepende. Olha as situações em você se mete por nossa causa, sabe?
― Matty, já estive em situações bem piores e em estágios não remunerados. Acredite, ficar de acompanhante por uma noite no hospital é o paraíso ― brincou. ― E, apesar de eu achar que você podia pegar um pouco mais leve nas polêmicas, entendo que é a sua forma de lidar com a fama e ser você mesmo. Então, talvez eu não mudaria nada.
― Você gosta tanto assim de trabalhar conosco?
― Não só de trabalhar, gosto de estar com vocês. É como estar em casa em qualquer lugar do mundo. ― Deu um sorriso tímido. ― Nunca imaginei que pudesse sentir isso de pertencer a algum lugar, entende?
― Saiba que este sentimento é mútuo, ok? Para nós, você é família. E é estranha a forma que sinto como se você fosse uma velha amiga, com quem posso contar em qualquer situação. Sei que posso ser um pé no saco quando quero, mas saiba que não tem a ver com você. Na verdade, é ótimo te ter por perto.
― Matty, isso é… muito doce da sua parte. ― Franziu a testa. ― Obrigada.
― Ah, e antes que você ache que estou apenas querendo te sobrecarregar com minhas coisas sem nunca te dar um retorno, você sempre pode contar comigo também. Para o que precisar. Seja para te buscar bêbada em uma festa ou para ficar bêbada em uma festa. ― Rimos.
― Ok, festeiro, mas o que acha de dormir agora? Está ficando tarde e amanhã é mais um dia de turnê.
― Você está bem aí? Vai dormir também?
― Daqui a pouco. Estou sem sono. Mas não se preocupe, ok? Você é quem precisa de repouso.
― Obrigado, .
― Boa noite, querido. ― Sorriu.
― Boa noite.

- x x x -


Tão logo me recuperei, nossa turnê seguiu. Passamos por mais uma infinidade de países. Durante todas as viagens, George e eu nos concentramos em produzir o álbum novo. Sim, havíamos lançado o último há menos de um ano, mas, para nós, nunca era hora de parar. Fosse no gravador do celular, com um microfone qualquer, dentro de um ônibus, na sala de espera do aeroporto… qualquer lugar, hora e circunstância era o momento exato de fazermos música.
Nas horas vagas, relaxava consumindo música ou lendo um livro. Gostava de ouvir o que andava sendo lançado, o que os “jovens” andavam ouvindo, o que estava fazendo sucesso. Na maioria das vezes, era possível garimpar algumas coisas muito boas.
Naquela tarde, enquanto checava alguns relatórios da gravadora a respeito dos retornos que tínhamos com novos artistas e, para acompanhar, resolvi escolher um artista de maneira aleatória para ouvir. Entre as sugestões do aplicativo, estava a música cellophane, de ninguém menos que FKA twigs. Já tinha ouvido algumas de suas músicas e, além de ser uma compositora brilhante, tinha uma voz primorosa.
Ao dar play, sua voz encorpada invadiu o ambiente de uma maneira avassaladoramente gentil. Fui pego tão desprevenido que cheguei a ficar atordoado, esquecendo-me por completo do que estava fazendo antes. Deixei-me ser guiado pela melodia e preenchido por todas as emoções que seus falsetes me traziam.
Sua voz era carregada de uma dor que me parecia tão familiar, ao mesmo tempo, que tinha plena consciência de que não era minha.
Assim que a música chegou ao fim, atônito por alguns segundos, digeri o que havia acontecido, tentando designar o que era aquilo que havia sentido durante a reprodução. Tentando emular o sentimento novamente, coloquei a música para tocar pela segunda vez. Na metade, me senti na obrigação de compartilhar aquilo com quem quer que estivesse me acompanhando.
Por meio de um tweet, talvez um dos mais inspirados daquela semana, não poupei elogios sobre como aquela de longe era uma das melhores músicas de 2019.
Não demorou até que eu tivesse que desativar as notificações da publicação pelo excesso de curtidas, comentários e compartilhamentos. Não era sempre que eu acertava nas palavras, mas, quando isso acontecia, meu celular não parava de vibrar.
Ainda envolvido pela voz de twigs, resolvi retomar o trabalho ouvindo outras de suas músicas. Quando terminei, deitei na cama com o celular na mão, indo conferir as respostas ao meu tweet de mais cedo. E qual não foi a minha surpresa ao ver uma resposta da própria cantora?
Publicamente, um singelo emoji de coração. Na caixa privada de mensagens, uma breve frase:

“Obrigada por ter ouvido minha música, significa muito que tenha te tocado <3”

Encarando a mensagem por mais tempo que o necessário, meu cérebro tentava produzir uma frase com sentido para lhe responder, pois soava educado fazê-lo.

“Sua música é pura arte, estou verdadeiramente tocado e quero muito ouvir o que vem depois desta música” Foi tudo o que consegui colocar em palavras.

Por longos segundos, a tela do celular se manteve inalterada enquanto a fitava. Nem menção de uma resposta ou de digitação. Quando estava começando a ficar ansioso por, aparentemente, ter dito algo que não fosse o suficiente para dar continuidade a uma conversa, por algum motivo, achei por bem ser um pouco mais… agressivo na estratégia.

“Pra falar a verdade, fiquei bem interessado em produzir algo com você, caso tenha interesse!”

Em um breve instante, me questionei por que estava fazendo aquilo. Ao mesmo tempo que as mensagens eram digitadas por impulso, tentei analisar de onde vinha aquela vontade de puxar conversa com a mulher.

“Seria maravilhoso. Deveríamos conversar sobre isso, me passe o seu número (:”

De repente, minha garganta secou. Número? Aquela conversa havia escalado mais rápido do que havia sequer imaginado.
Digitando o número do meu telefone, justifiquei, em seguida, que estava fora de Londres, mas que, em breve, retornaria, twigs encerrou a conversa avisando que, assim que tivesse uma pausa programada em meio às divulgações do álbum, entraria em contato.
Sem compreender direito o que havia acontecido, escolhi uma música mais antiga de twigs e ouvi para voltar a trabalhar.
Conforme os dias foram se passando, por incrível que pareça, twigs realmente me mandou mensagens, passando sua agenda livre para, quem sabe, trabalharmos em algo juntos. Todavia, quem não estava muito livre era eu. A turnê ainda estava a todo vapor e só tínhamos pequenas pausas entre um show e outro, nas quais, meu descanso, segundo ordens médicas, era essencial. Portanto, sugeri a ela um passeio qualquer para conversarmos e nos conhecermos.
Pouco antes de sua resposta chegar, achei que negaria, dizendo que não tinha nenhum tipo de interesse em um laço mais pessoal comigo, entretanto, me pegando totalmente desprevenido, respondeu que sim e ainda questionou que dia poderíamos nos ver. Conferindo uma das planilhas de com todos os nossos meses de compromisso detalhados, lhe dei uma data e uma hora.
No local e hora marcados, lá estava eu, plantado em frente a porta de twigs, esperando-a para darmos uma volta pelo bairro.
Em roupas confortáveis, boné e óculos escuros, saímos em uma caminhada, lado a lado.
― Você pode me chamar de Tahliah também, se quiser.
― Ok, Tahliah. ― Sorri. ― Você sempre faz isso de caminhar pelo bairro?
― Eu gosto de ver o movimento que está perto de mim. Passo tanto tempo longe da minha casa, da minha cidade, que acho que aprendi a valorizar essas pequenas coisas.
― É, eu gosto também. Faz parecer que, ao menos, uma coisa na vida eu escolhi bem: minha vizinhança. ― Riu. ― Mas você sente saudades de estar em turnê?
― Às vezes. De vez em quando, fica chato estar sempre em casa ou não ter nada demais para fazer, sabe? Apesar de que tenho me concentrado nas minhas aulas de pole dance, o que tem tomado bastante tempo, já que pratico no dia a dia fora de aula.
― Ah, você…? ― Gesticulei com as mãos como se me agarrasse a algo e balancei o corpo.
― É. ― Riu de novo. ― Eu… ― Imitou meu gesto.
― Parece divertido.
― E é. Você já tentou?
― Eu? Não. Eu danço, mas acho que pole dance é um pouco complexo demais para mim.
― Não seja bobo. Qualquer um pode fazer.
― Pode até ser, mas, inclusive, tenho uma fratura na coluna, então, não acho que seria prudente da minha parte.
― Ah, que pena.
― Mas podemos pensar em outras atividades que eu consiga fazer e manter minha coluna no lugar.
― É, podemos, sim.
Continuamos andando por mais algum tempo, em silêncio. Mantive meus olhos presos ao chão à minha frente enquanto iniciava um novo assunto:
― Achei que você não aceitaria sair se não fosse um compromisso profissional.
― Por quê? ― Dei de ombros. ― Aceitei porque me pareceu um convite… amigável.
― O que isso significa? ― Franzi as sobrancelhas ao olhá-la.
― Não parecia ter segundas intenções.
― Se tivesse, você não aceitaria?
― Talvez sim, talvez não. Só me pareceu interessante que você não soou como se estivesse flertando, apenas sendo gentil e realmente elogiando meu trabalho.
― Que é impressionante, de verdade. Mas não vamos entrar nesse mérito agora, estamos de folga, ok? ― Riu.
― Ok.
― Mas fico feliz que tenha aceitado. Queria te conhecer.
― Esse é o papinho que você passa em todas? ― Reprimiu um sorriso sugestivo de um jeito delicado que me contagiou.
― Depende de muitos fatores. Às vezes, eu sei que ele não vai colar. ― Riu.
― Aposto que é isso que você normalmente usa com quem não é da indústria, né? ― Franzi as sobrancelhas, tentando compreender. ― Ou melhor, você não costuma sair com quem é da indústria. Pelo menos, é o que eu percebi.
― Andou pesquisando meu nome antes de sair comigo? ― ironizei.
― Queria saber onde estava me metendo, confesso. E acho que uma das coisas mais curiosas que achei a seu respeito foi justamente uma matéria em alguns tablóides falando sobre seu… affair com uma jornalista. ― Ri, fechando os olhos de nervoso.
De todos os assuntos que achei que poderiam vir à tona em um primeiro encontro, este com certeza não tinha nem passado pela minha cabeça.
― Impressão minha ou quer me perguntar algo a respeito?
― Apenas fiquei curiosa. Não é comum que alguém que declara ter problemas com a fama se relacionar justamente com o tipo de pessoa que se beneficia desse mundo, certo? ― Chutando pedrinhas que vi pelo caminho, refleti por alguns segundos.
Qualquer que fosse o resultado do que estava acontecendo ou do que iria acontecer, não queria que começasse com uma mentira que cairia por terra tão logo Tahliah e estivessem no mesmo ambiente, o que era um cenário totalmente possível dadas as profissões de ambas.
― Bom, é verdade. E não foi só um… affair. foi minha namorada por alguns meses.
― E por que terminou?
― Uau. ― Dei mais uma risadinha nervosa. ― Digamos que eu não estava tão comprometido com a nossa relação quanto ela. me conheceu no pior momento dos meus vícios. Quanto a isso você deve saber também, né? ― Assentiu devagar. ― Ótimo. Ela tentou de todas as formas me ajudar. Na verdade, ela salvou minha vida mais de uma vez e não é uma metáfora. Ela literalmente me salvou da morte no dia do seu aniversário. ― A surpresa estampou seu rosto ligeiramente. ― E, mesmo assim, eu não soube valorizar isso.
― E você se arrepende?
― Às vezes, me pergunto como seria se eu tivesse feito tudo diferente, mas é algo que está no passado. Não tenho como mudar nada do que já foi. ― Dei de ombros. ― Se fosse ela te respondendo, tenho certeza que diria que as coisas aconteceram como deveriam ser. ― Um sorrisinho surgiu no canto dos meus lábios. ― E você? Me fala sobre você. ― Engatei um novo assunto para não ter mais que falar sobre . ― Você já foi noiva, certo?
― É. Já faz algum tempo.
― Um vampiro, hã? ― Riu de um jeito gostoso, quase anasalado.
― É. Por aí. ― E o silêncio se fez presente.
Diferente de mim, que falava antes mesmo de meus pensamentos serem filtrados, Tahliah não disse mais nada sobre seu antigo relacionamento, limitando-se somente a caminhar a uma distância relativamente segura de mim, onde nem mesmo esbarraria no meu ombro ou coisa que o valha.
Apontando para um sorveteiro, questionou silenciosamente se eu queria um. Não só aceitei, bem como fui até o homem e comprei ambos os sorvetes. Entregando o que tinha pedido, voltamos a andar.
― Que sabor você pegou?
― Manjericão. ― Fez uma careta.
― Quem diabos come isso?
― Pelo visto, eu. ― Ri. ― Sei que o intuito desse passeio era não falar de trabalho, mas uma coisa passou aqui pela minha cabeça: vou ter que esperar para ouvir seu álbum como todo mundo? ― Sorriu, abaixando a cabeça.
― Se você quiser, posso te mostrar algumas versões que foram masterizadas. Estão na minha casa.
― Ok, eu quero. ― Sem dizer uma palavra, Tahliah mudou a direção em que estava andando, fazendo o caminho inverso e eu a segui.
Voltando todas as quadras pelas quais havíamos passado, chegamos ao ponto inicial, sua casa, após alguns minutos. Nossos sorvetes ainda nem haviam acabado quando entramos em sua sala.
A parte interior da residência não era como eu teria imaginado, mas soava exatamente como a personalidade mulher: acabamentos amadeirados, que davam um ar caloroso para o ambiente; algumas plantas e móveis bem distribuídos. Não havia nada jogado ou bagunças espalhadas. Tahliah devia ser bem organizada.
Guiando-me através de alguns corredores, chegamos no que parecia ser um estúdio. Ligando o computador, sentou-se na cadeira à nossa frente, dando alguns cliques em busca dos arquivos. Quando os encontrou, aumentou o som, virou a cadeira para mim, voltando a tomar seu sorvete enquanto uma música começava a sair pelos alto-falantes.
Puxando uma cadeira para perto dela, me deixei ser absorvido por aquela mistura de sons, por sua voz, pela composição. Haviam tantas camadas em cada uma de suas músicas que eu mal sabia o que deveria comentar primeiro ou se havia algum comentário além de “esplêndido” a ser feito.
Vez ou outra, seus olhos vinham até mim, como se esperasse algo da minha parte, uma opinião, um pitaco, qualquer coisa. Porém, minha considerações vieram somente ao final da última música que pôs para tocar:
― Isso é uma obra prima. ― Sorriu abertamente.
― Obrigada. Eu fiz o meu melhor.
― Tenho certeza que sim. ― Sorri. ― Está impresso em cada acorde, cada palavra.
Parecendo encabulada, suas bochechas coraram levemente.
― Sempre ouço ou vejo algo que me soa como sua música soou nos meus ouvidos, entendo que a vida vale a pena, me sinto vivo de novo.
― Desse jeito, se meu álbum for mal de crítica, vou achar que você mentiu.
― Nem tudo que compus foi bem avaliado pela crítica, mas foi o melhor que pude entregar. Meu sangue e meu coração estão ali. ― Assentiu.
― Que bonito ouvir isso. ― Olhou para a tela da computador e voltou-se para mim: ― Que educação a minha. Quer beber algo?
― Ah, não! Obrigado. Eu preciso voltar para casa.
― Mas já? ― Embora, na superfície, não houvesse nada de diferente em seu tom, algo me fez crer que havia um fundo de frustração.
― É, eu preciso arrumar minhas malas para a viagem antes que eu esqueça alguma coisa de novo. ― Pus-me de pé. ― Espero que possamos nos encontrar em algum outro momento.
― Veremos. ― Deu um meio sorriso sugestivo.
Encaminhando-me para a porta, fui seguido pela mulher.
― Você se importa se eu te mandar mensagens?
― Não. Quantas quiser.
― Bom, então, nós ainda vamos conversar. Até logo?
― É, até. ― Abriu e eu saí, dando-lhe um rápido aceno antes de tomar meu rumo para casa.


#23

Sinto falta de me apaixonar
(Sunshine Baby - The Japanese House)



A volta aos shows teve um aspecto diferente. Não foi cheio de melancolia ou tão difícil quanto imaginei que seria, baseado nas experiência anteriores. Aos poucos, estava começando a me empolgar com a ideia de viajar, ver outros lugares, outras pessoas, estar com meus melhores amigos. Talvez nada disso me empolgasse mais porque a vida já não tinha mais tanto valor.
Nos dias atuais, em um estilo um pouco mais regrado, treinava com meus amigos, fazíamos refeições juntos, saíamos para fazer outras coisas além de festas ou encher a cara. Estava sendo um ótimo momento para todos nós, creio eu.
Em minhas horas vagas, mandava algumas mensagens para Tahliah, que me respondia quando podia, uma vez que sua agenda estava cada vez mais bagunçada conforme o lançamento de seu álbum se aproximava. Ainda assim, falar com ela, mesmo que muito rapidamente, estava se tornando parte do meu cotidiano, como tomar café pela manhã.
Nem todos os dias trocávamos palavras, às vezes, ela me mandava um vídeo de seus ensaios com dançarinos e eu reagia a cada um deles. Por mais que, da minha parte, houvesse interesse, era inegável que, quando a elogiava, era sempre com muito fundamento. FKA twigs era uma artista completa e multifacetada. Quem discordava disso, muito provavelmente, não devia saber fazer nem um terço do que ela fazia com um microfone e uma barra de pole dance.
A verdade é que estava ansioso para a próxima vez que nos veríamos. Com certeza a chamaria para um jantar ou coisa parecida.
E, assim como havia ciclos se iniciando, também haviam alguns que se encerravam. Durante uma das viagens que em foi sentado ao lado, George resolveu que era hora de termos uma conversa que estávamos adiando há algum tempo.
Mais ou menos um ano antes, Daniel havia comprado uma casa exatamente do jeito que sempre quis, no local que queria. Entretanto, lhe pedi que não se mudasse ainda, pois o processo de recuperação era duro demais para ser suportado sozinho. Precisava de alguém que me mantivesse com os pés no chão, dizendo que estava tudo bem, que aquilo ia passar.
Todos os meus amigos foram essenciais nesse processo, mas George é quem estava lá, 24 horas por dia, sete dias por semana, inclusive, quando não estávamos trabalhando juntos.
― Eu sei o que vai me dizer ― comecei.
― Sabe? ― Franziu a testa.
― Tá na hora, né? ― Suspirei. ― Tudo bem.
― O quê?
― Você vai se mudar pra sua casa. Acertei?
― Como sabia?
― Sei o quanto isso é importante pra você.
― Você agora é vidente?
― Não, mas eu imaginei que não demoraria até que você decidisse que tava na hora. Tá tudo bem e já faz mais de um ano.
― E tudo bem por você?
― Eu estou bem. E é hora de você ir cuidar de si, certo? ― Sorri. ― Agradeço por ter cuidado de mim por todo esse tempo, sem você acho que não sairia dessa vivo.
― Sairia, sim. Eu só estive lá de torcida, mas foi você quem fez tudo.
― Vou sentir sua falta, espero que saiba disso.
― Você sempre pode ir na minha casa, assim como sempre poderei te visitar também. E não é como se não ficássemos juntos praticamente todos os dias, certo? ― Riu.
― Ainda assim, é diferente.
― Eu sei. Me promete que se acontecer algo, qualquer coisa, você vai pedir ajuda? ― Assenti.
Passando um braço por trás de mim, desajeitado, puxou-me para mais perto para depositar um beijo na lateral da minha cabeça.
Seria difícil me acostumar em uma vida na qual não teria George dormindo e acordando sob o mesmo teto que é eu, porém era para o bem dele. Meu amigo merecia ter tudo o que queria e eu faria o que estivesse ao meu alcance para que ele conseguisse isso.

- x x x -


Ao retornarmos para casa, nos primeiros dias, ajudei George com sua mudança. Havia uma quantidade absurda entulhada e escondida em seu quarto, as quais eu nem mesmo sabia que ainda estavam ali. Tanto que, no fim, acabamos pedindo o suporte de Ross e Adam.
Quando terminamos de levar o essencial, abrimos algumas cervejas e assistimos à um jogo de futebol juntos.
Disfarçadamente, respondia as mensagens Tahliah. Estávamos marcando de sair na noite seguinte e, por algum motivo que ainda não tinha racionalizado, não queria que meus amigos descobrissem que estávamos conversando. Talvez porque eu não tinha certeza onde essa história iria dar e tinha medo de estar apostando fichas em algo sem futuro.
Mas, no fundo, estava bem empolgado em revê-la. Tahliah e eu tínhamos muitas coisas em comum, ríamos das mesmas coisas e gostávamos de aproveitar nossos momentos de folga do mesmo jeito. Tanto que, na primeira oportunidade, a mulher me convidou para uma exposição de arte marginal promovida por um amigo seu.
Sem pestanejar, aceitei.
― O que está fazendo aí, rato? ― George tacou a tampa da garrafa em mim.
― É, presta atenção no jogo. ― Ross me chacoalhou.
Bloqueei o telefone e segui assistindo o jogo com meus amigos, mesmo sem prestar atenção em nada. Só queria que aquilo acabasse logo para tirar o celular de dentro do bolso e responder suas mensagens.
Ao final da partida, todos me encaravam com curiosidade. Por mais que o assunto não fosse eu e minha falta de atenção, ainda assim, sentia que, no menor dos deslizes, facilmente me tornaria o tema principal da conversa com meus amigos. Portanto, continuei fingindo que nada estava acontecendo, que não era nada demais. Eu realmente não estava a fim de criar expectativas.
Embora não conseguisse parar de pensar no dia seguinte, no que aconteceria, o que conversaríamos e tudo o mais, o mundo não parecia parado, tampouco meu relógio. A noite e o dia seguinte passaram normalmente, sem se arrastarem, quase como se alguém estivesse tentando me ajudar.
Em nossas conversas, havíamos decidido que nosso jantar seria algo casual, em um restaurante havaiano, por isso, escolhi apenas um suéter preto, calças sociais e tênis. Não queria de forma alguma parecer que havia me arrumado demais para a ocasião.
Ao entrar no ambiente, a primeira coisa na qual pus meus olhos foi nela. Com uma blusa de ombro a ombro branca, meio transparente e calças pretas ela estava tão bonita quanto se tivesse totalmente montada para um show. Quando nossos olhares se cruzaram, o sorriso que abriu para mim deixou explícito que estava tão feliz quanto eu de ter vindo.
― Eu demorei muito? ― questionei, sentando-me à sua frente.
― Na verdade, não. Acabei de chegar também. Tudo bem?
― Totalmente bem. E você?
― Ótima.
― Você já pediu?
― Sim. Este é o cardápio. ― Arrastou-o sobre a mesa na minha direção.
Chamando por um garçom, acabei escolhendo o mesmo prato de minha acompanhante.
― E, então, como foi seu dia? ― Comprimiu os cantos dos lábios, como se segurasse um sorriso. ― Que foi?
― É que… normalmente, as pessoas não me perguntam isso.
― Se você não se importa, eu gostaria de… de ouvir sobre seu dia. ― Inclinou-se sobre a mesa, cruzando os dedos das mãos.
― Eu tive ensaio pela manhã, quando voltei pra casa, acendi algumas velas, li um livro, me alimentei, conversei com alguns amigos, marquei reuniões para a próxima semana e, de repente, já era hora de me arrumar para vir.
― Você gosta de velas?
― Aromáticas. Adoro todas elas.
― Acho que já sei o que te dar de presente, então. ― Sorriu.
Quando nossas comidas chegaram, Tahliah não começou a comer imediatamente. Como se estivesse em um ritual, temperou sua salada e a misturou com calma. Mas, ao mesmo tempo, pela feição em seu rosto, podia ver que havia algo se passando em sua cabeça.
Não questionei nada, concentrei-me somente na minha comida, esperei para ver se seus pensamentos chegariam a ser assunto em nossas conversas da noite.
― O que é o seu equivalente a velas?
― Tipo, coisas que gosto de comprar? ― Assentiu. ― Instrumentos, livros, filmes em DVD ou VHS. Com exceção dos instrumentos, acabo comprando tudo de segunda mão.
― Por quê?
― Eu gosto quando as coisas tem um passado. Tem uma história a ser contada, sabe? ― Deu um meio sorriso. ― Por exemplo, alguns dos meus livros tem dedicatórias. Não conheço quem escreveu nem quem recebeu, mas é engraçado estar por dentro de um pedaço da vida dessas pessoas.
― E de pessoas com passado, com história?
― O que tem?
― Você gosta?
― Bom, ninguém pode ser alguém sem uma história, né? Se você chegou até aqui sem um passado, sem pessoas, sem sentimentos… talvez… você não tenha vivido direito. ― Com um sorriso amarelo, abaixou o olhar para seu prato, voltando a revirar a comida até, por fim, dar a primeira garfada.
― Você parece o tipo de pessoa que tem histórias pra contar.
― Várias. Talvez uma para cada tema. ― Rimos. ― O dia que quiser ouvir qualquer uma delas, basta me perguntar.
― Quero ouvir todas que você se sentir à vontade para me contar.
― Saiba que é recíproco. ― Bebi um gole de água. ― Você fala pouco de si, mas só o faça se sentir vontade. ― Com mais algumas garfadas em seu prato, aos poucos, Tahliah voltou ao silêncio.
Não era exatamente o tipo de silêncio confortável que eu gostava, porém soava como o tipo de coisa da qual ela precisava. A mulher dava a entender que ainda estava sentindo o território e eu não podia julgá-la por isso, afinal, nem mesmo sabia quais haviam sido suas experiências prévias em outros relacionamentos.
Tentando introduzir um assunto, Tahliah me perguntou sobre o novo álbum, se algum dia poderia ouvi-lo, se estava ansioso para o lançamento e, não querendo que o assunto morresse, apenas fui lhe dando mais e mais munição para me perguntar sobre o assunto, já que aquela lhe parecia sua zona segura.
Quando terminamos de comer, insisti para que me deixasse pagar sua parte na conta e, em seguida, caminhamos até sua casa.
Do lado de fora, a temperatura amena fez todo o trajeto ser tranquilo e o fato de conseguirmos ter mantido um diálogo também fez o clima se tornar, de pouco em pouco, mais agradável.
Parados em frente à sua porta, a mulher parecia hesitante em encerrar nossa conversa. Vez ou outra, a capturava passando a língua pelos lábios ou alternando o olhar em diversos pontos do meu rosto.
― Se você não se importar, podemos continuar essa conversa do lado de dentro, tomando um chá ― sugeriu. ― Aliás, você gosta de chá?
― Se não for incômodo para você…
― Ah, não. ― Gesticulou, soando animada. ― É cedo ainda para encerrarmos a noite e a conversa está… boa. ― Sorriu.
― Ok. ― Dei de ombros, vendo-a procurar as chaves e abrir a porta.
Novamente, ao pisar em sua sala, tive a sensação de certeza que ela jamais poderia dizer que aquela não era sua casa. No entanto, desta vez, senti no ar um aroma perfumado, floral. Velas.
― Senta, fique à vontade. Eu já volto. ― Andou corredor à dentro, deixando-me só por alguns minutos.
Ao retornar, estava acompanhada de duas xícaras de chá. Entregando uma para mim, sentou-se a alguns centímetros de distância no sofá.
― Tá maravilhoso ― elogiei após o primeiro gole.
― Que bom que gostou. Seria um pouco vergonhoso se algo tão simples ficasse ruim. ― Rimos.
― Nem sempre a gente pode acertar.
― Se eu tivesse errado, o que você diria?
― Agradeceria pelo chá. ― Sorriu.
― Não mentiria?
― Eu deveria? ― Deu de ombros. ― Não menti pra você nem quando você me perguntou algo extremamente pessoal a respeito de uma relação que nunca se tornou pública. Acho que não vale perder sua confiança por algo tão pequeno, certo?
Como se eu tivesse acertado as palavras, Tahliah me fitou de um jeito que mais parecia estar tentando entrar no meu corpo. Seus olhos escaneavam até a minha alma e só entendi o que viria em seguida quando a vi soltar a xícara e o pires sobre o pequeno armário ao lado do estofado.
― Eu meio que notei que você parece o tipo de pessoa que gosta que as coisas fiquem… claras. Então, acho melhor perguntar antes de decidir fazer algo. ― Aproximou-se um pouco. ― Posso te beijar?
Surpreendido pela pergunta, minhas sobrancelhas arquearam levemente. Sim, eu sabia que provavelmente nos beijaríamos, ainda mais depois da forma que começou a me olhar. Só realmente não esperava que me perguntasse antes.
Repetindo seu gesto, também soltei o que sobrava do meu chá sobre o armário do outro lado do sofá. Com as mãos livres, as pus em seu rosto, olhando-a nos olhos. Tocando seus lábios pela primeira vez, eram macios e estavam úmidos pelo gloss que usava.
Quando sua língua entrou em contato com a minha, seus dedos se enfiaram entre os fios dos meus cabelos da nuca, fazendo-me arrepiar. Seus movimentos eram suaves, exatamente como em qualquer outra situação.
Tahliah andava, falava, cantava, dançava e beijava da mesma forma: com carinho, com zelo, como se cada momento fosse especial e digno de ser guardado na memória. Ao seu redor, havia uma aura de mistério. Não sabia o que vinha após, se mais uma pergunta, se apenas se levantaria e voltaria a viver sua vida como se eu não estivesse ali ou se começaria a tirar as roupas.
Pondo-se de joelhos à minha frente, afastou minhas pernas uma da outra o suficiente para caber entre elas. Arrastando as mãos pelas minhas coxas, parou-as muito próximas à minha virilha, esticando o tronco para me dar um beijo rápido.
Tão logo afastou a boca da minha, suas mãos subiram até o cós da minha calça, abrindo o botão e abaixando o zíper devagar, sem quebrar nosso contato visual. Por um instante, cheguei a engolir em seco. A expectativa sempre me deixava atordoado.
Ainda lentamente, mas sem muita cerimônia, tirou meu pau de dentro da cueca, envolvendo em uma de suas mãos, movimentando-a para cima e para baixo calmamente.
Tahliah não tinha muito interesse no meu pênis em si, mas sim nas reações que provocava em mim. E, em um primeiro momento, não havia muito com o que reagir, apenas passei a respirar pela boca, tentando manter o controle do ar que entrava e saía.
Entretanto, quando resolveu começar um oral, foi como se uma chave dentro de mim virasse e todos os músculos que estavam tensos relaxaram tanto, que comecei a fazer parte do seu sofá, de tão esparramado que estava.
Ao mesmo tempo que chupava com um pouco de sucção a minha glande, aumentou a pressão da mão que subia e descia no meu pau e eu o sentia pulsar em meio aos seus dedos. Em segundos, já não conseguia mais segurar o peso da minha cabeça erguida e acabei deixando-a cair sobre o encosto do estofado.
― Não, querido. Olhe pra mim ― falou baixinho ao me tirar de sua boca, porém sem parar de me masturbar.
Ajeitando-me de forma que não precisasse me desencostar para olhá-la, foquei em seus lábios e no formato que adquiriam sempre que estavam ao meu redor. Sua boca, a cada novo movimento, se moldava de acordo com que ela desejava fazer. Porém, certamente o momento em que Tahliah me pegou desprevenido foi quando, encarando bem no fundo dos meus olhos, deslizou a língua da base do meu pênis até a glande, por enfim, fazendo-me entrar e sair de sua boca algumas vezes rapidamente.
Sem querer, deixei um “meu Deus” resmungado escapar misturado à um gemido baixo.
Meus dedos tentaram se agarrar a algo sobre o sofá, porém não havia nada no que pudesse fechá-los ao redor.
Ao tirar meu pau de sua boca de novo, deu um sorriso, passando a ponta do indicador sobre a gota de pré-gozo que escorreu.
― Estamos quase lá ― sussurrou usando aquela única gota escorrida para brincar com a minha glande.
Meu peito subia e descia com a minha respiração acelerada. Àquela altura já tinha até me esquecido que estava tentando mantê-la mais constante, sem desesperos ou ofegos que mais soassem como grunhidos. Quanto aos gemidos, como sempre, eu não tinha o menor controle. Eram baixos, altos, finos ou simples suspiros.
― Você pode foder minha boca se quiser ― sugeriu ao parar de me tocar de todas as maneiras, em um tom de voz que mais parecia um fio prestes a arrebentar.
― E já… não estamos… fazendo… isso? ― questionei com a voz entrecortada.
― Mas eu quero que você a use do jeito que quiser, na velocidade que quiser. ― Como um gato, esticou-se sobre as minhas pernas para que nossos rostos ficassem próximos.
Inclinando-me para frente, tomei seus lábios novamente. Desta vez, com calma, sentindo cada nota do seu paladar. Ainda que já tivéssemos nos beijado antes, sentia como se houvesse muito coisa para explorar dela, como se, a cada beijo, fosse conhecê-la mais e mais.
Pondo-me de pé, a vi dar um curto passo sobre os joelhos enquanto eu abaixava um pouquinho o elástico da minha cueca. Ajeitando seus cabelos atrás de seus ombros, a segurei pela nuca e para, enfim, entrar e sair de sua boca algumas vezes, sem pressa. Assim que Tahliah depositou as mãos em meu quadril, agarrando-se ao tecido da minha roupa, entendi que estava pronta para mim.
Investindo contra seus lábios mais rápido, o atrito do meu pau em sua língua misturado à saliva passou a fazer um barulho que me deixou ainda mais excitado, como se fosse possível ficar ainda mais duro do que estava. E, seguindo o que já havia me pedido, me mantive concentrado em olhar somente para ela e os detalhes do que a envolvia.
Minhas pernas perdiam a firmeza sempre que estava quase por inteiro dentro dela, o que só me dizia que eu não duraria muito mais. Meu baixo ventre parecia um caldeirão borbulhante e, por mais que estivesse cansando de manter o mesmo ritmo, algo não me deixava parar. Fossem seus olhos luxuriosos que, vez ou outra, me conferiam e pareciam se divertir; fosse sua boca macia e completamente molhada, que me recebia com tanto gosto; ou, até mesmo, as mãos presas na minha roupa, que eu tinha a impressão que me impulsionavam sempre que eu pensava em reduzir.
Pela primeira vez, não me preocupei com onde iria gozar, pois Tahliah não me deixou sair de dentro dela ao perceber que ia acontecer.
Sem nem conseguir expirar o ar, me derreti em sua boca silenciosamente, com as pálpebras caindo em relaxamento e ainda sentindo uma corrente elétrica pulsante onde me tocava.
Levantando-se, Tahliah lambeu a ponta de um dos dedos e selou nossos lábios. Depositando as mãos em sua cintura, deslizei-as brevemente para dentro do tecido de sua blusa, fazendo-a rir.
― Você sabe que não vai fazer nada comigo, né? ― Confuso, foi como se tivesse ficado sóbrio subitamente e não tivesse acabado de ter um orgasmo.
Abaixando o tom de voz, quase sussurrou bem próxima ao meu rosto, com um sorriso provocativo:
― Eu quero que você vá pra casa me sentindo em você, em cada lugar que eu te toquei. Quero que passe a noite pensando em mim e no quanto você daria tudo pra me foder. ― Bateu o indicador na ponta do meu nariz, dando um sorriso ainda mais largo e mais safado.
Sem reação, continuei encarando-a por longos segundos. E, enfim, quando tentei beijá-la, desviou o rosto.
― Você sabe o caminho da saída, né? ― Afastou-se.
Compreendendo o recado, ri, incrédulo, enfiando o pau dentro das roupas e as fechando.
― Boa noite? ― Olhei-a pegando ambos os pires com xícaras e encaminhando-se para o corredor de onde tinha vindo com eles.
― Até mais, querido.
Do lado de fora de sua casa, encarei a rua vazia, sentindo o ar puro no meu rosto. Dando uma risadinha, balancei a cabeça negativamente, ainda sem acreditar no que havia acabado de acontecer. Olhando para sua porta uma última vez, rumei para a estação de metrô mais próxima.
Quando cheguei em casa, pouco mais de 30 minutos depois, me encaminhei para o quarto.
Pronto para ir para o banho, parei à porta do antigo quarto de George, suspirando. Queria tanto que ele estivesse aqui, podíamos conversar sobre isso. Por fim, dei meia volta e entrei no banheiro.
Despindo-me, liguei o chuveiro e esperei a água esquentar antes de entrar. Deixando as gotas caírem sobre meu corpo, as palavras de Tahliah ainda ecoavam na minha cabeça, como se estivesse do meu lado dizendo-as novamente.
Ela realmente tinha conseguido entrar na minha mente, porque tudo que eu pensava era sobre seus lábios carnudos, na sua boca quente, no seu cheiro, no seu beijo e… no quanto eu daria tudo para terminarmos o que começamos. Tanto que, sem nem perceber, estava tendo outra ereção. Porra…
O problema foi que, desta vez, tive que resolver sozinho.


#24

É agridoce te ver de novo
(Hot & Heavy - Lucy Dacus)



Tahliah e eu não tivemos grandes oportunidades de encontros muito longos antes que eu voltasse a viajar. Entretanto, não muito depois do dia que me deixou à noite inteira acordado imaginando em como seria se tivéssemos terminado o que começamos, minha imaginação acabou se tornando realidade. A mulher me chamou para sua casa para fazermos algo e, obviamente, que tínhamos a mesma ideia do que esse “algo” poderia ser.
twigs era perfeita em todos os sentidos. Ela não tinha vergonha de dizer o que gostava, como gostava e em que ritmo. E diga-se de passagem que tínhamos ritmos bem diferentes: ela gostava devagar, sem muita sede ao pote, queria que repetíssemos a dose para aproveitar que ainda tínhamos fôlego. E confesso que eu também estava gostando disso.
Além do mais, sem a menor sombra de dúvidas, o que eu mais tinha apreciado certamente era o fato de ela quase sempre dançar. Às vezes era apenas um ensaio para um show ou uma apresentação, mas quase 100% das vezes em que eu a assistia acabava em sexo. E talvez estivesse curtindo tanto porque era algo novo. Pole dance e strip tease eram itens que, até então, no meu imaginário ficavam relegados a espaços onde eu pagava para transar.
Assim como existe diferença entre fazer sexo casual e com alguém por quem você está apaixonado, ao vê-la dançar, meus olhos sempre se enchiam. Não era só tesão. Haviam coisas que eu nem mesmo sabia nomear envolvidas, que enchiam os meus olhos e faziam com que quisesse guardar cada movimento seu no fundo da minha mente. Muito provavelmente foi isso que fez com que eu me afeiçoasse a Tahliah tão rápido.
Já nos primeiros dias longe dela, não consegui ficar mais de 24 horas sem ligar. Todos os dias conversávamos sobre nossos dias, sobre nossas agendas e quando conseguiríamos nos ver de novo. Vez ou outra, quando tínhamos um tempo disponível e à sós, trocávamos alguns sextings. Em momentos mais animados, até nos arriscávamos em algo mais… ousado por ligação.
Embora houvesse uma constância em todos os nossos atos, aquela era uma relação casual. Tanto que não tínhamos problema nenhum em sermos vistos com outras pessoas e, de vez em quando, deixarmos um ao outro avisado o motivo de não poder fazer uma ligação antes de dormir ou não poder responder mensagens com tanta frequência.
Contudo, de pouco em pouco, as coisas estavam mudando pra mim. Sim, eu continuava saindo com outras pessoas, mas estava começando a reduzir a frequência por não me sentir mais tão à vontade nem tão disposto a tal. No fundo, eu sabia o que aquilo significava e tentei negar até o momento em que durante um FaceTime soltei um “sinto sua falta”.
Com um sorrisinho pretensioso nos lábios, questionou:
― O que disse? ― Suspirei.
― Que estou com saudades. Sim, nos falamos todos os dias, mas não é a mesma coisa que, sei lá, sairmos juntos ou algo assim.
― É disso ou de algo que não tivemos tempo suficiente para aproveitar antes de você viajar?
― Também. ― Riu. ― Mas eu juro que não é só disso que eu tô falando.
― Você está tentando me dizer algo?
― Talvez, mas é provável que ainda não saiba exatamente o que é.
― Espero que até a próxima vez que nos virmos você já tenha a sua resposta.
― Será? Talvez. ― Dei de ombros.
Trocamos um meio sorriso e o silêncio furtou a linha por alguns segundos.
― Eu preciso desligar. Tenho gravação de um clipe amanhã de manhã.
― Eu posso saber a música?
Nah. Você vai descobrir. ― Sorriu. ― Boa noite.
― Boa noite. ― E desligou.
Suspirando sem tirar o sorriso bobo do rosto, resolvi levantar da cama e ir atrás de alguém que ainda estivesse acordado. Andando pelo corredor do hotel, o primeiro quarto em que bati foi o de George e não foi nenhuma surpresa encontrá-lo não só de pé, bem como praticando yoga.
― Posso me juntar a você? ― Acenou com a cabeça, dando-me passagem.
― Você vai se juntar no exercício também ou só assistir?
― Você tá fazendo o quê?
― Saudação do sol A e B. Já fiz metade, faz a sua e depois vamos juntos. ― Puta que pariu.
Dizendo apenas inspira e expira e estalando os dedos, George ditava o ritmo com que eu deveria entrar e sair de cada posição. Provavelmente, queria que ficássemos sincronizados quando fôssemos fazer juntos. Na metade do caminho, durante a pose da cobra, achei que ia morrer. Já no cachorro olhando para baixo senti o suor começando a sair dos meus poros.
Quando finalizei, já estava ofegante e aquilo era só metade da série de repetições.
― Tá pronto? ― George pôs-se ao meu lado e eu assenti, começando a me arrepender de achar que era uma boa ideia.
Quase como se fosse meu professor, Daniel dizia o nome de cada posição quando ia mudar para que eu conseguisse acompanhá-lo, afinal, não sabia a ordem correta dos movimentos de cabeça.
Ao fim de três séries completas, meu amigo foi até o frigobar e me jogou uma garrafa de água, pegando uma para si em seguida.
― Não vou nem perguntar se você quer meditar pra finalizar porque já sei a resposta. ― Riu, dando um gole em sua água.
― Na verdade, eu vim para conversar, não achei que você fosse me cooptar para a sua seita namastê ― debochei.
― Devíamos fazer mais vezes juntos. Ia te ajudar a se concentrar no seu treino normal.
― Quem sabe um dia? ― Dei de ombros, bebericando um golinho da minha garrafa.
― O que você estava ansioso para me contar que não podia esperar até amanhã e até te fez aceitar se exercitar comigo por 15 minutos?
― Você falando assim faz parecer que eu sou um péssimo amigo ― resmunguei.
― Às vezes, você consegue ser um pé no saco. ― Sentou-se na cama.
― Desculpa. ― Ri. ― É mais forte do que eu. Mas só queria dizer que estou conversando com uma pessoa e… acho que é sério. Quer dizer, não sério sério, mas acho que… ― parei de falar por falta do que dizer.
― Ok, entendi. A twigs?
― Como você sabe que é ela?
― Bom, você tá sempre falando com ela. ― Cruzou os braços em frente ao peito, dando de ombros. ― Me surpreenderia se fosse qualquer uma das outras garotas com quem você falou por uma noite e foi embora. Mas como isso aconteceu?
Andando de um lado para o outro, percebi que aquela era uma pergunta difícil de ser respondida. Ponderei as coisas que me levavam a sentir o que estava sentindo e não sabia nem como colocá-las em palavras.
Por fim, apenas encolhi os ombro e sentei-me ao seu lado.
― Só aconteceu. Ela é uma pessoa… encantadora. Acho que essa é a palavra. ― Dei um meio sorriso ao me lembrar de seu rosto.
― Ela parece mesmo. E eu fico feliz que você esteja sentindo isso de novo. ― Pôs a mão no meu joelho. ― Você sempre parece mais vivo quando tem um novo interesse.
― Eu não acho que, desta vez, seja só um interesse.
― Da outra vez também não era, né? ― falou baixinho, mas consegui entender. ― E tudo bem. Não tem nada de errado nisso, ok? ― Por instante, permaneci sem reação.
Não queria entrar naquele assunto, nem revirar nada daquela bagunça que demorei tanto tempo para arrumar.
― O que me interessa mesmo é quando vou conhecê-la.
― Assim que você me deixar conhecer sua namoradinha.
― Mas eu não estou namorando.
― George… ― rebati em um tom sugestivo. ― Quase sempre que tentamos marcar algo com você, está ocupado e, desde que saímos de viagem, você está trocando mensagens com a .
― Bom, ela é minha amiga, assim como você, Ross e Adam são. ― Ficou ainda mais na defensiva. ― Além do mais, se ela fosse minha namorada, não faria nem sentido eu apresentar a vocês. Todo mundo já a conhece.
― Como , o monstro das flores. Não , a namorada do nosso melhor amigo.
― Matty, por Deus, nós não namoramos. Nós nunca nem mesmo nos beijamos, ok?
― Ok. Mas saiba que vocês combinam. E muito.
― Chega desse assunto. Vamos assistir um filme?
― Posso escolher?
― Por favor, que seja um filme dessa década. ― Ri.
― Tá. ― Deitei-me na cama, procurando pelo controle remoto.
George ainda circulou pelo quarto para apagar a luz antes de se deitar.
― Podíamos aproveitar a manhã livre para gravarmos algumas coisas, o que acha?
― O ônibus com os equipamentos já chegou?
― Já, sim.
― Podemos. Peço ao Mark para não deixar ninguém entrar de supetão.
― Ótimo. ― Zapeei os canais de TV até encontrar algum filme que fosse do nosso agrado.
Quando finalmente encontramos um que estava no início, resolvemos que aquele seria o escolhido.

- x x x -


Os meses do segundo semestre do ano passaram voando, tanto que, quando nos demos conta, já era de comemorar mais um aniversário da Dirty Hit e, consequentemente, gastarmos uma preciosa noite de nossas vidas andando para lá e para cá com ternos bem alinhados e grandes sorrisos no rosto, na esperança de que Jamie fizesse seu trabalho, fechando todos os acordos que precisávamos para o ano seguinte.
Nesse meio tempo, eu já havia apresentado twigs para meus amigos e minha família. Como era de se esperar, todos a amaram de cara. E era meio difícil não acontecer. Ela realmente era adorável.
Por isso, decidi que era hora de incluí-la em outras áreas da minha vida, como no meu trabalho. Logo, assim que foi convidada, Tahliah aceitou ir ao baile da gravadora comigo, já começando a chamar seus amigos para irem às compras em busca do vestido perfeito.
Na noite em questão, Tahliah tinha demorado mais que o usual para se arrumar e, por isso, mesmo tendo chegado cedo em sua casa, nos atrasamos para o início da festa. Não que eu estivesse o poço de animação para ir. Ter de ir a um baile como aquele me lembrava de última vez em que tinha pisado em um baile como aquele e algo dentro de mim se remexia com força, se chocando contra o meu estômago, dando-me a sensação de que vomitaria a qualquer momento.
Notando que estava distante, Tahliah me questionou algumas vezes se estava tudo bem mesmo e se não gostaria de ficar em casa só desta vez ou, quem sabe, fazer qualquer outra coisa que não envolvesse um monte de gente de roupa social, bebendo champanhe e comemorando as gordas contas bancárias que só aumentavam a cada mês. Respondendo que estava tudo bem, tentei tranquilizá-la, dizendo que poderíamos voltar mais cedo e assistir um filme ou algo do gênero. Sorrindo, depositou a mão sobre a minha coxa e disse que eu não precisava fingir que estava tudo bem.
A verdade era que havia outros motivos por trás do meu desconforto.
Tahliah e eu estávamos saindo há alguns meses. E não demorou até que tivéssemos uma conversa mais aprofundada sobre nossas vidas e nossas relações anteriores. Portanto, o tópico voltou a ser a bola da vez e decidi que deveria lhe contar tudo que quisesse saber a respeito, assim como estava fazendo comigo.
A mulher não parecia ter uma curiosidade maldosa em relação a história, soava mais como se tentasse entender o que havia acontecido entre nós. Por isso, não hesitei em dizer a ela que, sim, a tinha chamado para sair porque estava interessado nela, a achava uma mulher atraente, além dos interesses profissionais, óbvio, mas, para mim, ainda era muito cedo para afirmar com toda a certeza de que havia esquecido .
Na realidade, talvez isso nunca fosse acontecer. Afinal, salvara minha vida incontáveis vezes, fosse através do amor que dedicara a mim dia após dia, fosse me resgatando da morte física que a overdose quase me causara.
Diferente de qualquer uma das reações que imaginei que teria, Tahliah sorriu e me envolveu em meio aos seus braços, sussurrando próxima de mim:
― Jamais te pediria isso. ― Desvencilhou-se de mim, segurando minhas mãos. ― Na verdade, acho que terei que agradecer a ela quando nos encontrarmos pessoalmente. ― Ri, desviando o olhar.
Apesar de ter se mostrado compreensiva desde o início e conseguir entender meus sentimentos em relação a Tahliah com muita clareza, não sabia como seria rever depois de tanto tempo e isso me frustrava, pois não queria que Tahliah se sentisse traída ou coisa do tipo.
Quando chegamos ao local, estacionei o carro e, após descer do veículos, ajudei minha companheira a fazer o mesmo.
Passando pelas portas do salão, cumprimentei Steve, o segurança, desejando-o uma boa noite de trabalho, além de lhe dizer que, assim que possível, lhe levaria alguns canapés, já que o buffet daquele dia valia muito a pena.
Todavia, mais cedo que esperei, a vi. Nossos olhares se cruzaram como se tivessem sido magnetizados um pelo outro, como costumava acontecer desde que havíamos nos conhecido. As feições eram sérias, quase profissionais. Ela jamais esquecia a que tinha vindo.
Sentindo uma crescente ansiedade em meu peito por aquele mísero contato, dei um meio sorriso, sendo correspondido da mesma forma e aquilo me acalmou. Estamos bem, afinal. Segundos depois, voltou a encarar Bea, que tagarelava sobre algo à sua frente.
Após ter corrido os olhos por todo o salão, Tahliah avistou um grupo de amigos. Tendo que ir pelo menos dizer “oi” para Jamie e os outros velhos com quem conversava, disse a ela que fosse falar com seus amigos, pois teríamos tempo suficiente ao final da noite para ficarmos grudados um no outro. Beijando o canto dos meus lábios, a mulher desvencilhou o braço do meu e caminhou daquele seu jeito flutuante para o outro lado do salão.
Agarrando uma taça de champanhe de uma das bandejas que passavam à minha frente sendo carregadas por garçons, dei mais alguns passos rumo a George e Jamie.
― Boa noite. ― Ergui a taça em como em um brinde, recebendo sorrisos amistosos em troca.
― Chegou o homem da noite. ― Jamie saudou, copiando meu gesto.
― Achei que vocês tinham desistido de vir. ― George pôs uma das mãos dentro do bolso frontal da calça.
― Tahliah demorou um pouco mais que o normal para se vestir, nada de mais.
― Ela ou você? ― brincou o mais alto, fazendo-me rir.
― Talvez nós dois. ― Riu.
― Matty, venha aqui, quero te apresentar umas pessoas. ― Oborne, a raposa astuta, atacara mais cedo que o normal naquela noite.
Dando mais alguns passos na direção dos homens mais velhos que se amontoavam próximos ao empresário, apertei algumas mãos e distribui sorrisos, posicionando-me em meio a alguns deles, com um dos ombros encostando na parede. Na posição que havia escolhido, conseguia ver todo o salão, inclusive, cuidar de , que ainda entrevistava Bea.
Ao terminar de falar com a garota, seu rosto estampava aquele sorriso agradecido que ela lançava aos entrevistados para lhes informar que já tinha tudo o que precisava. Quantas e quantas vezes a vi dar aquele sorriso. Algumas coisas nunca mudam mesmo.
― Cavalheiros, se me dão licença, preciso falar com uma pessoa. ― Pude perceber de relance o olhar irritado que Jamie me lançara, porém fingi não notar. Minha noite já estava uma bagunça, não o deixaria piorar as coisas.
Caminhando a passos ligeiros, desviando das pessoas que tomavam o salão, parei às costas da mulher, que apreciava um gole de sua bebida.
― Você continua com um sexto sentido ótimo. ― Sorri, pondo as mãos dentro dos bolsos da calça assim que se virou para mim.
― E você continua aparecendo atrás das pessoas, esperando que elas adivinhem que você tá por perto, hã? ― Bebeu o último gole da taça, pondo-a sobre a bandeja do primeiro garçom que passou por nós. ― Se rendeu às pressões estéticas? ― apontou para o meu cabelo.
― Primeiro: velhos hábitos nunca morrem. Segundo: parece que não fui o único. ― Acenei com o queixo para indicar seus cabelos trançados. ― Aliás ― Olhei-a dos pés à cabeça, conferindo cada detalhe. ―, belo vestido e o cabelo ficou muito bem em você.
Como sempre, continuava esplêndida. Seu bom gosto para roupas a impedia de se vestir mal e o novo penteado deixava a mostra uma das coisas das quais ela mais podia se orgulhar: o rosto. Apesar das feições quase sempre sérias, tinha traços muito suaves, que nem mesmo lhe deixavam a idade transparecer e seus olhos continuavam tão grandes e brilhantes quanto conseguia me lembrar.
― Sua acompanhante não se importa que você esteja por aí dando confiança pra jornalista? ― Sua voz era carregada de um tom zombeteiro.
― Ela encontrou uns amigos e está conversando. Disse a ela que iria falar com uma amiga que não via há muito tempo. ― Era uma meia verdade, mas não havia como falar com twigs sendo que fazia alguns bons minutos que não nos cruzávamos.
― Ela sabe que era comigo que você vinha falar? Ou melhor, quem sou eu?
― Ela sabe. ― Intuitivamente, olhei na direção em que tinha visto twigs quando a vi pela última vez, voltando a encarar . ― Depois que nos conhecemos, ela me fez algumas perguntas e uma delas incluía meu possível romance com a jornalista que me entrevistou.
― O que disse a ela?
― A verdade. Assim como você, ela parece que veio com um detector de mentiras de fábrica. ― Riu. ― É sério. Contei a ela tudo sobre você. Como ficamos amigos, como você é uma ótima profissional e que, mesmo quando eu fui um babaca, você não me abandonou no meu momento mais difícil. ― Trocamos um meio sorriso.
― Como estão todos? Ross, George, Adam? ― Mudou de assunto repentinamente.
― Bem, bem. Estamos finalizando nosso quarto álbum e você já deve saber disso, né? ― Assentiu.
― Sobre isso, me conte apenas coisas exclusivas que outros repórteres ainda não saibam ― brincou.
― Sabe que não posso fazer isso, mas se pudesse faria, né? ― Assentiu daquele jeito desconfiado.
― Eu conheço seu tipinho, Healy.
Encaramo-nos por alguns segundos em silêncio.
Uma figura parou ao nosso lado, fazendo-nos olhá-la.
― Desculpe a interrupção. ― Tahliah sorriu daquele jeito polido de quem teme estar se intrometendo onde não devia.
― Não interrompe. ― sorriu. ― Sou , repórter do Repeat Daily. ― Apresentou-se oferecendo a mão para um cumprimento.
― Olá. É um prazer. ― Trocaram um aperto de mão. ― Tahliah.
― É um prazer te conhecer pessoalmente. Sou uma grande admiradora do seu trabalho. ― E era verdade. costumava cantarolar muito em seus longos banhos e, por algum motivo, tinha uma regra onde só cantava músicas lançadas por outras mulheres.
― Você é a jornalista da revista, né? ― Semicerrando os olhos, fingiu arriscar. Ela sabia muito bem quem era , então, acho que só estava tentando não parecer uma psicopata que se lembrava de tudo.
― Eu mesma. Inclusive, este aqui foi quem me deu meu passaporte de entrada nessa vida. ― Depositou uma mão sobre meu ombro e senti o local se aquecer sob seu toque.
― Você escreve muito bem.
― E consideraria marcar uma entrevista comigo? ― Era óbvio que ela não perderia a oportunidade.
― Por que não? Entre em contato com a minha assessoria. Vou deixá-los avisados. ― Assentiu animada, como quem acaba de conseguir um item raro para a sua coleção. ― Matty querido, tive alguns problemas com a equipe do próximo show e preciso resolver ainda hoje, então, tenho que ir embora.
― Eu vou com você. ― Ofereci-me assim que terminou de falar.
A festa, como já imaginava, não estava tudo aquilo e rever havia remexido algumas coisas que talvez devessem ter ficado embaixo do tapete como estavam antes.
― Não é necessário. Hoje é dia de você celebrar com seus amigos, ok? ― Deslizou uma das mãos pelo meu braço suavemente com aqueles olhos que diziam muito mais do que sua boca era capaz de vocalizar.
Após me ver concordar com a cabeça, Tahliah selou nossos lábios carinhosamente, despedindo-se.
, mais uma vez, foi um prazer lhe conhecer. Tenho certeza de que também será um prazer conversar com mais tempo. ― Sorriu.
― O prazer foi todo meu. ― Observou a outra se retirar. ― Meu Deus, ela é perfeita? ― Fez uma careta demonstrando seu esgotamento e eu segurei uma risada.
― Não existe isso de pessoa perfeita, .
― Por tudo que é mais sagrado, Healy, ela parece que flutua ao invés de andar! Como foi que ela te deu bola? ― debochou e eu sorri. Às vezes também me pegava questionando isso.
― Tenho as minhas artimanhas. ― Pisquei e dei um soquinho de brincadeira em seu ombro.
― Ok, garanhão. Onde estão os outros? Preciso de uma fala de alguém da banda que não seja você.
― Por que não eu? ― Minha testa se franziu automaticamente.
― Porque meu chefe sabe que eu dei pra você, então, é um pouco antiético da minha parte te entrevistar, não acha? ― Dei de ombros, franzindo os lábios, indiferente. ― Onde está o George?
― Engraçado que você sempre recorre a ele, né? ― resmunguei, dando voz a pontinha de ciúmes dentro de mim.
― Tá com ciuminho, Healy? ― provocou. Acho que sim.
― Não. ― Ergui as mãos em sinal de rendição, fingindo inocência. ― Só estou comentando. Ele está lá, conversando com Jamie. ― Apontando para o outro lado do salão, indiquei o homem alto como uma árvore.
― Se me dá licença, preciso continuar a trabalhar. ― Antes que eu pudesse dizer algo, começou a caminhar rumo à meu amigo.
― Você vai ficar até o final da festa? ― Virando-se para mim e dando alguns passos de costas para me olhar, lançou-me um último sorriso. Sim, ela ia ficar.
Assistindo-a pegar uma nova taça em uma bandeja e adentrar o mar de pessoas à nossa frente, só consegui voltar a realidade segundos depois de ter sumido do meu campo de visão.
A festa ainda estava no início e não poderia ir embora tão cedo, portanto, ao enxergar Rome próximo de Bea conversando, resolvi me juntar a ambos.

- x x x -


Já cansado da quantidade de merdas sobre aumentar os lucros etc etc etc que havia ouvido durante a festa toda, por volta de 1h30 decidi que era hora de sair para fumar meu sexto cigarro daquela noite que parecia não ter mais fim. Eu estava por um fio de ir embora, só precisava do gatilho certo…
E ele aconteceu justamente quando estacionei em frente ao elevador.
― Me seguindo? ― Virou-se para mim com aquela feição brincalhona, porém que denunciava sua exaustão.
― Indo fumar um cigarro. Faz mais de uma hora que estou aqui dentro conversando com um monte de homens velhos a respeito do próximo álbum, que está atrasado etc. ― Dei de ombros e, por um segundo, tive a sensação de sentir o peso sobre eles aliviar. ― E você?
― Indo pra casa.
― Sozinha? ― Franzi a testa. sempre fora muito independente, mas, ainda assim, me preocupava com o fato de vê-la andando de madrugada só.
foi escravizada pelo velho Oborne e ela era minha carona. Não sou mais tão jovem a ponto de aguentar virar uma noite inteira acordada. ― Rimos.
― Posso te acompanhar até em casa? ― Franziu as sobrancelhas, deixando os lábios formarem um sorriso debochado e sugestivo na mesma medida. ― Juro que é apenas isso, te deixar em casa em segurança. ― Mais uma vez, ergui as mãos em sinal de rendição.
― Ok, fico te devendo uma. ― Sorriu e entrou no elevador. Segui-a como uma abelha atrás do pólen.
Ao sairmos do prédio de encontro a brisa gélida da rua, acendi um cigarro enquanto dávamos nossos primeiros passos rumo à estação de trem.
― Você ainda faz muito isso de pegar trens? ― Quebrou o silêncio.
― Não com a mesma frequência que fazia quando estávamos juntos, claro ― respondi em um tom mais baixo que o normal. Não esperava que entrássemos nesse assunto tão cedo.
― Por quê?
― Primeiro porque as pessoas agora querem conversar e tirar fotos comigo quando descobrem que sou eu. Antes elas só me deixavam lá e tiravam fotos de mim emburrado. ― Rimos. ― Segundo porque me lembra de coisas que nem sempre estou pronto para reviver. ― Dei uma tragada longa no cigarro.
Sim, estava falando dela e de tudo que tínhamos vivido juntos.
Andar de trem era algo tão nosso que, às vezes, eu até esquecia que tinha uma carta de habilitação e carro. Gostava de sentar ao seu lado, sentindo seu corpo levemente tocando o meu, compartilhar fones de ouvido e quase perder a estação certa de descer, pois estávamos trocando olhares daquele jeito que costumávamos fazer. Por isso, conseguia contar nos dedos de uma mão as vezes que andei de trem depois que terminamos.
Por mais que não tivesse falado abertamente o que significava o que tinha dito, no fundo, acho que havia entendido, pois não falou mais nada. Dentro da plataforma, em silêncio, esperamos até que o trem estacionasse a nossa frente e abrisse as portas.
Sentados em um dos assentos traseiros, vi a mulher se remexer. Aparentemente, procurava algo nos bolsos laterais do vestido. Vestido tem bolso?! Retirou de lá os velhos fones de ouvido, mostrando-os para mim. Franzi a testa, sabendo o que aquilo significava.
― Faz muito tempo desde a última vez, né? ― Deu um sorriso tímido e eu concordei com a cabeça, aceitando sua oferta, emocionado.
Pondo para tocar As the World Caves In, de Matt Maltese, senti como se estivéssemos dentro do nosso próprio filme, onde o final não havia sido como imaginávamos. Ne verdade, nenhuma das cenas haviam sido como imaginávamos, afinal, quando a beijei pela primeira vez, o fiz porque a achei interessante, não por querer que, meses depois, começássemos a namorar.
Quando chegamos à sua estação, tirei meu lado do fone, entregando à ela e saímos um atrás do outro de dentro do vagão, rumando outra vez para a rua fria.
Tendo percorrido o pequeno trajeto entre a estação e sua casa, paramos em frente ao portão de entrada do prédio. começou a brincar com as chaves entre os dedos, como se estivesse pensando sobre algo. Até verbalizar:
― Você quer subir um pouco? ― De novo, franzi as sobrancelhas sem entender onde a mulher queria chegar com aquilo. Por favor, Healy, não banque o inocente, você sabe o que ela quer. ― Sem segundas intenções ― completou. Porra, eu sou muito idiota mesmo.
― Ok. ― Dei um meio sorriso sem ter certeza se estava tomando a decisão certa.
Novamente quietos, adentramos no edifício e seguimos pelo corredor até seu apartamento um atrás do outro. Ao abrir a porta, foi, muito provavelmente, para seu quarto, retornando alguns minutos após sem os sapatos.
― Que tal uma cerveja?
― Você ainda sabe recepcionar muito bem suas visitas. ― A mulher sorriu e eu só conseguia me questionar o que realmente estava fazendo ali. Eu sabia o que poderia acontecer se ficássemos sozinhos.
Ouvindo o barulho da garrafa sendo aberta, recobrei a consciência do momento presente, aceitando a cerveja que me estendia.
― Ano passado você entrevistou a Phoebe de novo, né? ― Tentei quebrar o iceberg que, pouco a pouco, parecia ainda maior entre nós.
― Ah, sim. Ela é adorável, né? ― Deu o primeiro gole em sua bebida assim que a abriu.
― Ela é ótima mesmo ― concordei e bebi. ― Você sabe que ela vai lançar um álbum novo ano que vem?
― Ela comentou algo comigo. ― Balançava a cabeça para cima e para baixo devagar enquanto falava.
― Eu já ouvi e é incrível. Como quase tudo que aquela garota faz. ― Comprimi os cantos dos lábios para formar um sorriso.
― Vocês se conhecem há muito tempo? ― Pronto, vai começar a entrevistar.
― Não, mas sabe aquele tipo de conexão que não temos sempre na vida? ― Sim, Matty, dê entrevista pra sua ex às 03h da manhã. ― Foi isso. ― bebi mais um gole, subitamente me lembrando dos dias que haviam ficado em estúdio com Phoebe. ― Ah, meu Deus!
― O quê? ― Seu rosto se contorceu em incompreensão.
― Tem algo que quero te mostrar. ― Tirei o celular do bolso, procurando o arquivo que precisava na devida pasta. ― Pronta? ― Parecendo hesitante, assentiu.
Ainda sustentando uma feição confusa, ouvia os primeiros acordes da música. [n/a: coloca essa aqui pra tocar]
― Me daria a honra dessa dança? ― Estendi a mão em convite, vendo-a dar um meio sorriso.
― Você e suas danças, né?
― Aceita logo, mulher. ― Rindo, chacoalhei a mão para que aceitasse de uma vez por todas.
Tão logo a mulher segurou-a, aproximei nossos corpos, depositando a mão livre em sua lombar. Como já havíamos dançado antes, a guiei em passos vagarosos e ritmados pela sala.
― Phoebe? É música nova? ― Suas sobrancelhas ainda estavam contraídas.
― Perguntei pra ela se podia mostrar pra pessoa que essa música me lembrava. ― Deu um pequeno sorriso. ― Não tivemos tempo pra eu te perguntar antes, mas como estão as coisas nessa cabecinha? Tudo sob controle? ― Mudei de assunto de novo, pois achei que a música já estava fazendo o suficiente criando aquele clima de casal prestes a se beijar pela primeira vez.
― Saí dos remédios há uns meses e estou pensando em voltar a estudar.
― Sério? ― Assentiu com um lindo sorriso orgulhoso estampado no rosto. ― O que você vai fazer?
― Mestrado na minha área. Ainda não é nada certo, estou apenas considerando a ideia e tentando me planejar pra, caso realmente decida fazer e não consiga uma bolsa, eu tenha como pagar.
― Se for por falta de grana… ― Assimilando o que aquilo significava, não pude deixar de me sentir na obrigação de oferecer.
― Não termine essa frase, por favor ― interrompeu-me.
― Por quê? Se você quer e não puder pagar…
― Matty… ― não me deixou completar a oferta pela segunda vez.
― Eu insisto. ― Foi minha vez de impedi-la de prosseguir com a teimosia. ― Me deixe fazer pelo menos isso por você. ― Deu um sorriso fraco, silenciando-se.
Segundos depois, questionou:
― Posso te fazer uma pergunta que nunca fiz antes?
― Quantas quiser.
― O que exatamente você viu em mim? ― Estranhando a pergunta, franzi a testa.
― Por que isso agora?
― Bom, você conseguiu sair com a FKA twigs, que, no meu conceito, é uma das mulheres mais deslumbrantes e elegantes que já vi na vida. Então, fiquei me perguntando isso.
― A lista na realidade é imensa. ― Sorri, pensando em como fazer um breve resumo de tudo que achava sobre ela. ― Você é perspicaz, observadora, uma ótima ouvinte, tem uma habilidade excepcional com as palavras e, apesar de você achar que não, toca guitarra muito bem. ― Riu, provavelmente, se lembrando do dia que passamos juntos no estúdio que tinha em casa quando morava com George. ― Mas nem precisaria de tudo isso porque você é linda, gostosa pra caralho e tem o cabelo mais hidratado do mundo. ― Não sabia se aquelas palavras deveriam ter sido ditas em um tom de voz tão alto ou se deveriam ter sido vocalizadas, visto que não éramos mais tão próximos assim. Entretanto, quando vi a força que fazia para segurar a risada, entendi que sim, ainda podia lhe dizer aquelas coisas. ― Aliás, sempre quis saber como você faz isso. ― Pigarreei. ― E, na verdade, quem deveria fazer essa pergunta sou eu, né? Meu cabelo é seco e geralmente eu não penteio ele. Você odeia cigarro e eu sou uma tabacaria ambulante. E nem vamos entrar na parte da dependência química.
― Ainda assim, você tem um ótimo senso de humor, é charmoso, é criativo e muito bom quando faz música. E tem outras coisas nas quais você é ótimo, mas acho que é um pouco tarde pra falarmos sobre isso. ― Ri, entendendo exatamente do que ela estava falando.
Se havia algum lugar em que funcionávamos em perfeita sincronia, esse lugar certamente era a cama. Quando ainda estávamos juntos, adorava passar períodos longos de tempo longe de porque significava uma única coisa: sexo. Intensas e incansáveis sessões terapêuticas de sexo. Em um único dia, era capaz de me fazer produzir serotonina em quantidade suficiente para sobreviver a uma semana estressante.
― Você se lembra daquele dia que você achou meu estoque pessoal no meu quarto e eu te disse no telefone que você é esse tipo de pessoa apaixonante? ― Assentiu vagarosamente. ― Olhando pra você agora, eu me lembro de tudo. De todas as sensações. De quando pus meus olhos em você pela primeira vez. Da nossa primeira conversa franca naquele quarto de hotel. Do nosso primeiro beijo. Da primeira vez que nós fodemos no sofá da minha casa e de como achei, na primeira sentada que você deu, que você fosse me quebrar ao meio. ― riu, mas eu falava muito sério.
Na cama, não fazia muito o tipo que gostava de ser dominada, muito menos o tipo que faz de tudo para agradar. fazia apenas o que gostava e o fazia muito bem por acreditar que prazer era uma busca individual. Talvez por isso ela sempre desse o seu melhor.
― Pelo amor de Deus, Healy! ― quase gritou com as bochechas ganhando uma tonalidade rosada.
― Enfim, eu me lembro da sensação de amar e ser amado por você e era… tão bom. ― Sorri ao efetivamente visualizar em minha mente os bons momentos que tínhamos compartilhado. Tomando fôlego, prossegui: ― Você me amou e acreditou em mim quando eu achei que ninguém mais era capaz de fazê-lo. E eu sinto que, não importa quando ou onde nos conhecêssemos, eu continuaria me apaixonando por você. Nem que fosse por um breve momento. Alguns minutos que fosse. ― Mesmo sem muita consciência de que iria falar tudo aquilo, despejei sobre ela, pois sentia que só conseguiria seguir em frente se a deixasse saber de tudo.
― Você fica muito bonito com essa carinha saudável, sabia? ― Mudou de assunto rapidamente, bem como mudou de expressão facial, abandonando a feição envergonhada que seu rosto tinha assumido anteriormente. ― Como tem sido depois de algum tempo recuperado?
― Alguns dias são horríveis e eu mataria por uma dose de qualquer coisa que me derrubasse por cinco minutos que fosse. Outros, são mais fáceis e suportáveis, mas tenho gostado muito de estar limpo, de me sentir limpo. Consigo fazer quase tudo que não conseguia enquanto usava, tipo dormir. ― De todas as pessoas no mundo, era uma das únicas com quem eu conseguia ser 100% honesto e compartilhar todos os detalhes, pois sentia que compreendia cada uma daquelas palavras e o que significavam. ― E eu devo tudo isso à você, .
― Você não me deve nada.
― Devo, sim. Você não tinha obrigação nenhuma de ficar comigo e cuidar de mim. Não depois do que eu fiz no seu aniversário. E você poderia ter perdido seu emprego por mim. Obrigado é o mínimo que eu te devo.
― Depois de ter terminado com você, me questionei durante muito tempo o que me fez ficar, mesmo depois do que aconteceu. ― Seus olhos estavam ligeiramente avermelhados e a mulher piscava em intervalos menores. ― Mas eu não fiquei porque te amava. Eu fiquei por ter sido a primeira vez que me senti vista. Você olhou pra mim e viu o que nenhum outro viu. Não uma mulher frágil ou dramática. Me viu como uma pessoa que estava e ainda está tentando juntar os pedaços, trilhar o próprio caminho. Me viu como alguém digno de afeto e me proporcionou momentos que jamais vou ser capaz de esquecer, mesmo que eu queira. ― Ao encostar a cabeça em meu peito, envolvi-a em um abraço, depositando um beijo no alto de sua cabeça.
Apesar de trançados com fios sintéticos, seus cabelos ainda tinham o mesmo cheiro que costumavam ter anos atrás, enchendo meu peito de nostalgia.
― Se eu pudesse, faria tudo diferente ― sussurrei próximo ao meu ouvido, sentindo um nó tomar conta da minha garganta. ― Faria tudo que estivesse ao meu alcance pra não te ver chorar e nem te machucar como eu fiz.
― Você e twigs formam um belo casal. ― Novamente, mudou de assunto. Quem sabe ela só não quisesse dar espaço para as lembranças que a fariam chorar. ― É sério?
― Está ficando.
― Ela deve ser incrível.
― Ela é. ― Suspirei ao relembrar da mulher que provavelmente me esperava em casa. ― Quando tivemos a conversa sobre você, não foi só porque ela queria saber se era verdade. Foi porque ela também quis saber como tinha sido o processo de ficar limpo e precisei falar sobre a pessoa que mais acreditou que eu conseguiria. ― Trocamos um sorriso.
― Tudo isso é mérito seu, eu só te incentivei.
A música estava encerrando e sentia que o momento de partir estava chegando. Entretanto, era ótimo saber que e eu ainda conseguíamos compartilhar algo assim.
― Você esteve ao meu lado e eu jamais vou ter te agradecido o suficiente. ― Desvencilhando-me brevemente de seu corpo, segurei seu rosto entre minhas mãos, encostando nossas testas. Ao vê-la fechar os olhos, copiei seu gesto. ― Às vezes, sinto como nunca mais fosse ser capaz de amar outra pessoa como eu amei você. ― Depositou as mãos sobre as minhas. Milésimos de segundos depois, senti meus dedos úmidos.
Abri os olhos e, com os dedões, sequei as lágrimas que rolavam livremente por seu rosto.
― Eu preciso te dar uma coisa. ― Abriu os olhos, encarando-me.
Peguei o celular que havia deixado sobre a estante e comecei a procurar pelo segundo arquivo que havia mantido guardado ao meu alcance para o caso de encontrá-la por aí.
― Escrevi algo pra você há algum tempo. É uma música. Só, por favor, não ouve agora. Achei que teria coragem de te mostrar pessoalmente, mas, de repente, sinto que não tenho pra mais nada. ― Ri nervoso como nunca havia me sentido antes. Nunca tinha assumido para nenhuma das pessoas com quem havia me relacionado que havia escrito uma música para ela, com exceção de membros da minha família, claro. ― Só vou inclui-la no álbum se você aceitar, ok? Então, se não estiver tudo bem ou não gostar, me avise. ― Assentiu.
― Nunca imaginei que meu dia de glória de ter uma música abertamente minha chegaria.
― O único jeito de não ganhar uma música sua é só se você não se envolver com músico. ― Rimos.
Alcançando minha garrafa de cerveja, bebi o resto do conteúdo silenciosamente, sem tirar os olhos dela.
Como era comum quando estava próximo de , não conseguia parar de sorrir. Tudo nela me deixava alegre, além de que ter tido a oportunidade de lhe falar tudo o que sentia francamente havia me deixado mais leve, como se finalmente conseguisse seguir adiante com o que quer que estivesse estacionado em minha vida.
― Acho que eu deveria ir. ― Como quem volta de seu mundinho pessoal, assentiu, dando algumas piscadas um pouco mais fortes.
― Ah, claro. ― Pegando a garrafa de minha mão, foi para a cozinha, voltando para me acompanhar até a saída.
Já em frente a porta aberta, dei um beijo em sua testa e a abracei afetuosamente, como costumávamos fazer.
― Por favor, volte a fazer parte do nosso círculo social. Não tem tanta graça sem você. ― Trocamos um sorriso cúmplice. ― Se não for demais pra você, claro.
― twigs não vai se importar? ― hesitou.
― Tenho certeza de que Tahliah vai adorar você ― respondi sinceramente.
― Eu vou tentar. ― Assenti.
― Boa noite, .
― Boa noite, Matty. ― Com metade do corpo porta a fora, ficou me observando até o instante que entrei no elevador e sumi de seu campo de visão.
Sozinho pelas ruas de Londres, não tive coragem de ir até a estação de trem para voltar ao prédio onde acontecia a festa para buscar meu carro. Portanto, caminhando até um ponto de táxi, entrei no primeiro cujo motorista estava disponível.
Entrando em uma conversa animada sobre a música que tocava no rádio, que eu desconhecia, contei a Fred sobre como era ser músico e tudo o mais. Ao dizer o nome da banda a qual fazia parte, Fred contou que sua filha de 20 anos era nossa fã e perguntou se, antes de ir embora, não poderia lhe dar um autógrafo e gravar um pequeno vídeo lhe mandando um beijo.
Antes de concordar, uma notificação fez meu celular apitar alto dentro de meu bolso. Pegando-o em mãos, vi a mensagem de :

“Obrigada por isso. É uma música linda.”

Após isso, durante segundos que pareceram durar uma eternidade, meu celular sinalizava que digitava algo. Por fim, a sinalização desapareceu, como quem havia desistido de mandar o que quer que fosse. Decidi, então, respondê-la:

“Obrigado por ter me proporcionado amor quando achei que não seria capaz de amar mais nada nem ninguém”

Em seguida, enviei:

“Mais uma vez, boa noite,

Não contive um sorriso ao ler seu “Boa noite, Matty” com sua voz doce ecoando em meus pensamentos.
― Recebeu mensagem da patroa? ― A voz de Fred me puxou de volta a realidade presente.
― Ah, não, não. É só… uma amiga. ― Dei um meio sorriso.
― Vocês jovens tem um jeito engraçado de rotular as coisas hoje em dia. ― Ri.
― Quê?
― Pelo jeito que você sorriu, talvez devesse considerá-la além do que apenas uma amiga.
― Nós já… ― Tentei responder depois de algum tempo, porém não consegui dizer a palavra. ― Não deu muito certo.
― Você pisou na bola? ― Olhou-me pelo retrovisor ao parar em um semáforo vermelho.
― Como sabe que fui eu?
― Você não estaria falando com ela se ela tivesse sido a culpada. ― Sorri.
Touché.
Logo que o semáforo abriu de novo, Fred voltou a conduzir pelos poucos metros que faltavam para chegarmos ao nosso destino final.
Estacionando em frente ao prédio, paguei pela corrida, autografei um pedaço de papel e gravei um vídeo ao lado de Fred, agradecendo a Carly, sua filha, pelo apoio a banda, mandando-lhe um beijo e dizendo que a amava. Despedi-me do taxista com um aperto de mão e fui buscar meu carro no estacionamento.
Minutos mais tarde, ao chegar em casa, entrei tentando fazer o máximo de silêncio possível para, caso twigs estivesse dormindo, não acordá-la. No entanto, como já era de imaginar, a mulher estava acordada, sentada sobre a cama, comendo pipoca e assistindo Os fantasmas se divertem.
― Demorei muito? ― Desfiz o nó da gravata, sentando-me na cama.
― Não demorou, mas confesso que fiquei com medo que você não voltasse para casa hoje. ― Não desviou os olhos da televisão, colocando algumas pipocas na boca.
― Por quê? ― Franzi as sobrancelhas, abrindo os botões da camisa e tirando-a de dentro da calça.
― Por causa dela.
? ― Não respondeu.
Ajeitando-me para ficar de frente para ela, peguei o controle remoto e pausei o filme, para fazê-la me olhar.
― Se você não queria que ns falássemos ou que ficássemos sozinhos, era só ter me falado.
― Eu jamais te pediria isso. Sei o quanto ela significa para você. ― Umedeceu os lábios. ― Mas… saber disso também me deixa insegura às vezes.
― Você não tem nada com o que se preocupar. Tenho muito carinho pela , mas eu estou com você, não com ela, ok? ― Segurei seu rosto entre minhas mãos, dando um beijo em sua testa antes de me levantar para tirar as calças e trocar a regata branca que vestia embaixo da camisa por uma blusa de manga comprida.
Sentei-me ao seu lado na cama, ajeitando as cobertas sobre as pernas e soltando o filme novamente. Colocando algumas pipocas na boca, não contive um sorriso ao ver Tahliah rir de uma situação no filme.
Seria uma mentira deslavada de minha parte dizer que não amava mais . Talvez eu jamais fosse capaz de esquecê-la ou esquecer tudo o que havia feito por mim. No entanto, Tahliah, que havia chegado há tão pouco tempo, já havia trazido alegria de volta a minha vida. Como bem apontado por , tudo nela soava perfeito e harmônico. O jeito suave como falava e se movimentava, os olhos grandes e pouco expressivos, os lábios em formato de coração, o corpo esguio e pequeno em relação ao meu.
Quando as coisas pareciam estranhas e sem sentido, lá estava ela com aquele silêncio confortável e abraços que mais pareciam um lar.
Se amar era como uma chuva inesperada de verão, que chegava e molhava a tudo e a todos sem exceções, amar Tahliah era como boiar em um mar sem ondas, sempre tranquilo. E, depois de ter sido engolido pelo tsunami avassalador que era , queria poder reconstruir cada pequeno pedacinho do meu coração ao lado dos dias ensolarados de twigs que secavam qualquer enchente.
― Tahliah?
― Sim, querido? ― Seus olhos continuavam presos ao filme.
― Nós estamos namorando? ― Olhando-me, sorriu.
― Deveria ser eu a fazer essa pergunta, não? ― Comeu mais algumas pipocas. ― A conversa entre vocês rendeu? ― Assenti.
― Eu finalmente consegui dizer as coisas que queria ter dito a ela e nunca tive a oportunidade. ― Desviei o olhar para o pote de pipoca.
― Isso te fez se sentir melhor?
― Fez eu me sentir… livre.
― E era assim que você queria se sentir?
― Era isso que eu precisava ― admiti.
― Então, fico feliz que tenha alcançado isso. ― Sorri.
― Às vezes me pergunto o que fiz para te merecer.
― Talvez um dia você descubra, amor. ― Selou nossos lábios.
Passei um dos meus braços sobre seus ombros assim que relaxou a postura e recostou-se em meu ombro para assistir ao filme.
Espero que você também encontre amor na sua caminhada, .


#25

Me mostre suas coisas de garota negra, fingindo que sei o que é (eu não estava ouvindo), me desculpo e você encontra os meus olhos, [...] eu estou apaixonado por você
(I'm in Love With You - The 1975)



Como havia dito para twigs, conversar com havia me libertado para, enfim, poder recomeçar minha vida. Talvez tudo o que lhe disse eram conclusões que havia feito em minha cabeça e que precisavam ser ditas em voz alta para se tornarem realidade. Tanto que nas semanas seguintes, consegui me dedicar cada vez mais a Tahliah e a nossa relação.
Nós fomos a lugares que não tínhamos ido, tivemos alguns compromissos com sua família e seus amigos, até fizemos uma oficina de velas aromáticas juntos!
E, diferente de como achei que me sentiria quando a notícia chegasse, não tive uma reação ansiosa, exagerada ou desesperada assim que twigs me informou que daria entrevista em alguns dias para . Muito pelo contrário, fiquei até feliz que ambas teriam aquele momento. Tahliah entenderia finalmente por que todos ao nosso redor falavam da minha ex-namorada com tanto carinho e por que sentiam tanto sua falta.
Já no meu trabalho as coisas estavam agitadas, mas tranquilas. Não estávamos em turnê, mas haviam muitas questões burocráticas a serem resolvidas referente a outros artistas: álbuns a serem produzidos, lançados e distribuídos; turnês a serem agendadas; novos contratos a serem fechados; novos artistas sendo descobertos…
Eram tantos papéis a serem assinados e planilhas a serem revistas que até tinha me esquecido dos planos que havia feito e precisava colocar em ação. Quando me lembrei, liguei imediatamente para a sala de , pedindo-a que viesse até a minha sala assim que estivesse disponível.
Não demorou até que seus cabelos flamejantes e desfiados aparecessem na minha porta.
― O que foi dessa vez? ― Bloqueou o celular, fazendo uma bolinha de chiclete crescer entre seus lábios, estourando segundos depois.
― Descobre onde a quer fazer o mestrado dela e vê quanto é o valor anual.
― Planejando custear? ― Assenti. ― Você sabe que ela não vai aceitar, né? Ela é orgulhosa demais pra isso.
― É, eu sei. Por isso eu te chamei aqui.
― Eu não sei se você se lembra, mas eu sou chefe de relações públicas, faço apenas assessoria de imprensa. Não sou sua assistente ― rebateu.
― Sim, eu também sei disso, mas estou te pedindo como amigo, não como seu chefe.
― Você só me põe em furada, Matty. ― Revirou os olhos, o peito subindo e descendo em uma respiração profunda.
― O seu amigo pode te dar um aumento. ― Pisquei. ― Um por cento?
― Cinco e férias no final do ano que vem.
― Dois por cento com férias de 30 dias.
― Quatro! ― Apontou para mim arqueando uma sobrancelha.
― Três por centro e com as férias. Não se fala mais nisso. ― Suspirou, deixando um sorrisinho satisfeito tomar seus lábios.
― O que eu preciso fazer além de descobrir a universidade?
― Como ela não vai aceitar que eu pessoalmente pague pelos estudos delas, preciso que você dê um jeito de a universidade aceitar dizer que é uma bolsa de estudos. Não me interessa quanto vai custar ou o que você vai precisar fazer. Apenas faça e me conte quando der certo, ok? ― Bateu uma continência rápida.
― É só isso? ― Assenti. ― Matty?
― Sim?
― Você se importa se eu te perguntar por que está fazendo isso? ― Ajeitei minha postura na cadeira, encarando-a.
― Eu devo isso a ela, . sempre acreditou em mim e eu quero retribuir da mesma forma.
― É muito… gentil da sua parte. ― Sorriu. ― Apesar de ser meio babaca me dando mais trabalho, você é um cara muito legal. ― Ri.
― É minha obrigação com ela.
― Se precisar de mim, sabe o meu ramal. Mas, por favor, não precise.
― Jamais hesitarei em te perturbar.
― A intimidade é uma merda, né?
― Uma pena pra você ― debochei dando de ombros.
mostrou o dedo do meio, deixando outra bolinha de chiclete estourar sobre seus lábios e saiu.
Ri de sua atitude enquanto voltava a me concentrar no trabalho.
Mais tarde, fiquei de buscar twigs após a entrevista com no estúdio onde ensaiava. Havíamos combinado de irmos jantar logo depois e, mesmo que não soubesse o que esperar desse encontro, tentei me manter positivo. Pelo que conhecia de ambas, eram extremamente profissionais. Às vezes, até demais.
Dentro do carro, a caminho do estúdio, fumei dois cigarros enquanto cantava uma música antiga que saía dos alto-falantes. Ao estacionar o veículo, precisei respirar fundo algumas vezes antes de sair dele.
Já na entrada, cumprimentei alguns amigos e dançarinos da minha namorada e aproveitei para perguntar onde ela estava. Assim que ouvi o primeiro “na cozinha”, tratei de me encaminhar para lá.
Chegando a porta, a primeira imagem que vejo é das duas mulheres sorrindo uma para outra enquanto conversavam sobre algo aleatório com pires e xícaras à mão.
― Oi? ― Adentrei no cômodo ainda um pouco hesitante.
― Oi, amor. ― Tahliah se desencostou, esticando-se para beijar ao meu rosto assim que fiquei ao seu lado.
― Healy. ― fez um aceno de cabeça com um sorriso um pouco menor nos lábios, quase tímido, eu diria.
― Atrapalho?
― Não. Na verdade, não. Eu já estava de saída. ― pôs sua xícara de lado, arrumando a bolsa sobre o ombro.
― Hã, ? Você gostaria de jantar conosco? ― Tahliah soltou em uma voz doce. Quê?
― Eu… bom, acho… ― gaguejou.
Querendo mostrar que não havia constrangimento ou problema caso quisesse aceitar, resolvi interceder:
― Vamos, . Um jantar entre amigos. ― Usei meu melhor sorriso e, em silêncio, em sua melhor pose de jornalista, alternou o olhar entre nós.
― Vai ser divertido ― argumentou twigs.
― Hã… ok. Eu só… preciso chegar em casa cedo. Amanhã eu trabalho dois turnos.
― Sem problemas. Nós te levamos para casa depois.
― Só vou pegar as minhas coisas e podemos ir. ― Tahliah bateu palma e saiu.
Olhando-a saindo do ambiente, voltei-me para , que me encarava com as sobrancelhas franzidas.
― Quê?
― Por que você fez isso?
― Isso o quê?
― Insistir. Tá meio na cara que não é só eu que não estou confortável com isso.
― Vai ser bom para nós. Estranho? Sim, mas bom. Temos amigos em comum e quero que voltemos a conviver como antes. Você não?
― Acha que é mesmo necessário?
― Ainda tá em tempo de desistir. Invente uma desculpa e saia, fuja como você costuma fazer ― debochei, provocando-a.
― Eu não fujo. Você bem sabe disso. ― Sua postura enrijeceu.
― Esse é o momento para provar. ― Dei um sorriso vitorioso.
Assim que twigs voltou, apenas acenou para nós da porta, indicando para que fôssemos embora.
Dentro do carro, o silêncio predominava em todos os aspectos e, por sorte, o restaurante que minha namorada havia sugerido não era longe dali. Novamente, batucando os dedos no volante, fingi para mim mesmo que não estava ali, que somente meu corpo estava fadado a sofrer com o zumbido das bocas fechadas naquele tempo e espaço.
Quando chegamos, ambas desceram do veículo, recomeçando a conversar como se não tivessem passado 12 longos minutos sem proferirem uma única palavra. E, ainda por cima, me deixaram para trás.
Ao entrar, as vi sentando-se em uma mesa próxima à uma janela e as segui, sentando-me ao lado de Tahliah, de frente para .
Antes de continuarem a conversa que, de repente, tinham interrompido, fizemos nossos pedidos e, tão logo o garçom virou as costas, twigs se inclinou sobre a mesa, apoiando os cotovelos em uma pose curiosa.
― Eu sei que você me disse que eu podia fazer a pergunta que quisesse durante a nossa entrevista, mas não queria te interromper. Só que estou muito curiosa por que você escolheu essa profissão.
― Não vou ser clichê e dizer que escolhi porque gosto de escrever. ― Deu um sorrisinho amarelo. ― Na verdade, eu gosto de contar histórias. Sempre gostei. No jardim de infância, fui uma das que mais se voluntariou para contadora do dia. ― Trocaram um sorriso que podia facilmente afirmar que era de cumplicidade. ― Depois de adolescente, descobri que dava para viver disso e foi assim que eu vim parar aqui. ― Abriu os braços em um movimento meio exagerado.
― Teve alguma história que você se orgulha de ter contado?
― Ashley Frangipane, a.k.a. Halsey, 2017. ― As sobrancelhas da minha namorada se ergueram, talvez surpresas com a velocidade da resposta.
― Você se lembra até do ano.
― Me lembro até das roupas que eu e ela vestimos no dia. ― Sorriu. ― Halsey é uma pessoa incrível e acho que foi a primeira vez que eu não precisei pensar em como me aproximar de uma fonte ou ganhar sua confiança. ― Seu olhar recaiu sobre mim e entendi o que queria dizer. ― Acho que tivemos uma conexão. E foi ótimo porque estávamos confiando uma na outra. Ela me contou coisas que eu não sei se teria coragem de escrever a respeito se fosse alguém que não tivesse depositado confiança em mim, entende?
― Confesso que soube apenas por cima o que ela te contou e foi muito… corajoso da parte dela.
― No fim, acho que posso dizer que nos tornamos amigas. ― A conversa foi brevemente interrompida assim que o garçom serviu a cada um de nós.
bebeu um gole de sua água demoradamente, como se estivesse evitando que puxassem mais algum assunto com ela, Tahliah começou a comer e eu, como se estivesse em uma partida de ping pong, alternava o olhar entre as duas, esperando quem seria a primeira a retomar a conversa.
Não tinha medo de me tornar tema ou de que minha relação prévia com acabasse vindo à tona, porém estava em alerta. Por algum motivo, tinha a impressão de que uma nuvem de desconforto pairava sobre nós. E, relembrando como as encontrei, tive a sensação de que estava mais relacionada a minha presença do que uma tensão entre ambas as mulheres.
twigs estava dando o seu máximo para ser agradável, simpática e falante enquanto que soava como se estivesse se impedindo de falar para não dizer as coisas erradas. Quase como se tivesse uma enxurrada de perguntas a fazer que não poderiam em hipótese alguma serem respondidas na minha frente.
Quando parei de prestar atenção nas duas e em seus respectivos silêncios, tirou a carteira de dentro da bolsa.
― Se você está pensando em pagar, fique tranquila, você é minha convidada. ― twigs deu um meio sorriso.
― Não, imagina.
― Eu insisto. Aliás, se você planeja ir embora, espere mais um pouco, nós te levamos pra casa.
― Não, agora quem insiste sou eu. Se eu sair, vocês podem voltar aos planos iniciais de vocês sem mim. Vou pegar um táxi, ok? ― Ergueu as sobrancelhas daquele jeito quando espera uma resposta e que, de preferência, ela seja sim. "Não" nem mesmo está em seu vocabulário.
Desviando o olhar, Tahliah assentiu.
― Se precisar falar comigo, você tem o meu número. ― Sorriu, dirigindo-se somente à minha namorada. ― Bom jantar. ― E, então, à nós dois.
Observando-a sair, demoramos algum tempo até voltarmos a nos olhar ou retomarmos o nosso jantar.
Por mais que tivesse certeza de que algo que eu não sabia o que era estava acontecendo, achei que era melhor que continuasse assim até que minha namorada decidisse que deveria me deixar fazer parte do que quer que fosse.
― Posso perguntar como foi a entrevista? ― Dei a primeira garfada de retorno à minha refeição.
― Foi… ótimo. ― Desviou os olhos para o próprio prato. ― Fazia muito tempo que não sentia meu trabalho sendo valorizado.
― Não esperava que uma entrevista sobre o seu trabalho pudesse ser sobre o seu trabalho?
― É… e é meio estranho, na verdade. Com você isso também aconteceu?
― Mais ou menos. Eu meio que fui babaca com ela no início e, só então, percebi que ela não queria nada além de fazer o trabalho dela. O mais respeitosamente possível, claro.
― Você tinha razão quando disse que eu gostaria dela.
― É, eu sei. ― Dei uma risadinha baixa.
― Você ficou desconfortável por eu ter a convidado para o nosso jantar?
Mastiguei minha comida devagar, refletindo a respeito. Eu não estava completamente confortável ou pronto como achei que estaria para permanecer em um ambiente com minha ex e minha atual juntas, interagindo. Mas também não foi ruim como se pode imaginar em uma situação como aquela.
― Confesso que não foi o momento mais cômodo da minha vida. ― Dei um sorriso amarelo. ― Mas, se você não se importar, eu gostaria que, ao menos, tentássemos. construiu uma amizade com pessoas muito próximas de mim e não quero que ela sinta que precisa se desfazer desses laços por minha causa. ― twigs balançou a cabeça, compreensiva.
― Você é uma das pessoas mais doces que já conheci na vida, espero que saiba disso. ― Pôs uma mão sobre meu antebraço, fazendo um pouco de seu calor passar para mim.
Quando Tahliah se referia assim a mim, me questionava se eu realmente era essa pessoa ou se aquela era apenas uma visão de uma pessoa apaixonada.
Diante dos meus olhos, ela era incrível. Adorável, gentil, engraçada, polida, inteligente, ótima dançarina, uma cantora melhor ainda, exímia compositora. Sobretudo, uma amiga exemplar. twigs tinha tudo que eu poderia querer em uma pessoa. Só não sabia se merecia tudo isso.
Ao fim do jantar, pagamos nossa conta e fomos para sua casa. Havíamos prometido um ao outro que eu passaria dois dias lá e, ela, passaria os dois seguintes na minha.
A verdade era que estava na hora de pensarmos em uma dinâmica que envolvesse menos tratos e ligações. Eu estava bem tentado a chamá-la para morar comigo, mas não sabia como isso soaria ou como reagiria. Estávamos juntos há poucos meses, mas passávamos tanto tempo juntos no dia a dia que era quase como se já dividíssemos um espaço.
O tempo que passava com ela só não superava o tempo que eu passava com a banda, ensaiando ou fazendo shows.
Após o banho, sentindo minha pele repuxar, escolhi aleatoriamente um creme da bancada de Tahliah e o apliquei no rosto. Quando estava terminando, a mulher entrou no banheiro, a boca entreaberta, o olhar alternando entre meu rosto e o pote de creme na minha mão.
― Esse é o meu creme?
Olhei para o conteúdo na minha mão e depois para ela, sentindo que havia feito algo de errado.
― Sim? ― respondi hesitante.
― Você sabe que não é para o seu tipo de pele, né? ― Deu uma risadinha.
― E isso é um problema?
― Depende do que você considera um problema. Você pode ter efeito rebote… ― e, em seguida, não consegui prestar atenção em mais nada, pois estava em língua de cosméticos, algo que com certeza não domino.
Com cuidado, twigs limpou meu rosto com um algodão e um líquido meio gelado, explicando sobre as outras coisas que estavam sobre sua bancada. Eu apenas a admirava, concentrado na forma como seus lábios se mexiam a cada palavra, no toque dos seus dedos na minha pele e em como seus olhos brilhavam, cheios de afeto enquanto cuidava de mim.
E, então, entendi que podia não merecer tudo aquilo, mas que estava sim apaixonado de novo. Talvez mais do que imaginava.
― Entendeu? ― Arqueou as sobrancelhas.
Senti meus olhos arderem, dei um meio sorriso sem graça, tentando disfarçar o que estava sentindo.
― Eu amo você, ok? ― Segurei seu rosto entre minhas mãos.
Primeiro, a mulher franziu a testa, provavelmente, tentando entender que epifania era aquela. Logo após, abrindo um sorriso, selou nossos lábios.
― Espero que não esteja usando isso como desculpa para continuar usando as minhas coisas.
― Depende do que você considera sua. Essa boca, por exemplo… ― Selei nossos lábios de novo. ― É só sua? ― Assentiu, com um sorriso sapeca. ― E se eu te pedisse para dividir algumas coisas comigo?
― Tipo o quê? ― Apesar de tentar, twigs não sustentou o olhar provocante quando me abaixei para me encaixar entre suas pernas e pegá-la no colo. Inclusive, até deixou um gritinho risonho escapar.
Por mais que ela estivesse completamente vestida e eu de roupão, recém saído do banho, nos levei para debaixo do chuveiro, ligando-o novamente.
― twigs?
― Sim, querido?
― Você já pensou em morarmos juntos?
Em silêncio, como um gato, Tahliah se esticou sobre o meu colo, beijando-me em meio aos seus sorrisos alegres. E, ali, em meio ao seu corpo molhado, sentia como se estivesse me permitindo viver e construir algo finalmente.


#26

Estou olhando para ela, mas tudo que eu vejo é você
(Babe Can I Call - The Hunna)



AVISO DE GATILHO: O capítulo a seguir aborda temáticas sensíveis referente a saúde mental, consumo e dependência de substâncias químicas.


O início de 2020 foi completamente caótico por um simples motivo: o aniversário de twigs. Embora seus planos fossem para uma festa apenas para seus amigos mais próximos, nossos conceitos de “amigos próximos” eram totalmente diferentes. Enquanto eu imaginava que seria algo entre 30 e 50 pessoas, minha namorada planejou algo para quase 250 pessoas, em um clube privado, com tudo que tinha direito.
Eu, como bom namorado solidário, apoiei em tudo que pude. Lista de convidados, decidir a decoração, quais músicas eram essenciais para sua playlist, o buffet… literalmente tudo.
Quando o grande dia chegou, Tahliah estava no auge da sua beleza. Em um vestido brilhoso e decotado, por onde ela passava, prendia os olhares de todos. Da minha parte, era dela toda a atenção que quisesse, não precisava nem mesmo assobiar ou me colocar em uma coleira para que andasse atrás dela igual um filhote de cachorro. E assim continuou por boa parte do início da festa, já que haviam muitos de seus amigos para quem eu ainda não havia sido apresentado.
Porém, tão logo Ross e George chegaram, pedi licença e fui ficar um pouco com eles.
Entre nós, bebemos alguns drinks, conversamos sobre banalidades e ambos começaram a apreciar o que havia aos montes no ambiente: mulheres bonitas. Apesar de concordar ou discordar deles, além de prometer que poderia ajudá-los na aproximação com algumas, não conseguia acompanhar. Na verdade, não queria prestar muita atenção. Acho que a fase “Matty, um homem de todas” tinha finalmente ficado para trás.
Todavia, lá pela terceira dose uísque seguida, capturei se aproximar de nós, mas a pessoa que vi caminhando atrás dela foi a responsável pela trancada de respiração que dei inconscientemente por alguns segundos. Em mais um de seus vestidos curtos e pretos, praticamente desfilou rumo ao nosso pequeno grupo sorridente, com uma taça de champanhe na mão. Os cabelos volumosos de cachos bem definidos, outra vez, ornando seu rosto maquiado e autoconfiante.
― Sua namorada sabe como dar uma festa, hein? ― bateu com a bolsa no meu peito de brincadeira.
― Eu ajudei também, ok? ― respondi, tentando fingir que não havia ficado afetado pela presença dela em nossa roda.
― Aliás, onde ela está? Queria cumprimentá-la ― se manifestou e, de repente, todos os olhares estavam sobre mim, esperando por uma resposta.
― Não sei exatamente onde, mas tenho ideia de onde possa ser. Quer que eu te leve até lá? ― Assentiu e começou a me seguir para fora da nossa rodinha.
Quando perdemos nossos amigos de vista, a mulher segurou meu braço, fazendo-me parar.
― É muito estranho eu ter vindo?
― Bom, se ela te convidou, não vejo por que não aceitar. ― Dei de ombros.
― Ela não só me convidou por mensagem como insistiu para que a me trouxesse. Você pediu a ela?
― Ela realmente gostou de você, . Apesar de que é meio difícil não gostarem. ― Abaixou a cabeça, disfarçando um sorriso. ― Da minha parte, apenas disse que não queria que você não convivesse com os nossos amigos por minha causa.
― Obrigada. ― Comprimiu os lábios. ― Você não imagina o quanto… isso é… importante pra mim.
― Na verdade, sim, eu posso imaginar. ― Sorri. ― Podemos? ― Apontei sobre um dos meus ombros, querendo encerrar aquele assunto o mais rápido possível.
caminhou a minha frente por mais um ou dois minutos até me olhar para dizer:
― Acabei de ver ela.
― Ah, ok. Eu vou… ― Novamente, apontei sobre o ombro.
Observando-a andar a distância que havia entre ela e twigs, fiquei esperando para ver a reação da minha namorada ao perceber que não só tinha aceitado seu convite, bem como tinha ido até ali e estava parabenizando-a. E não posso dizer que não fiquei minimamente surpreso ao ver o sorriso que Tahliah abriu ao ver a jornalista. Ambas se abraçaram por alguns segundos, engatando uma conversa animada.
Tentando não pensar nos desdobramentos do que aquilo poderia significar ― se realmente significava algo ―, peguei uma taça de champanhe da bandeja de um garçom que estava passando e bebi inteira em um gole, aproveitando a mesma bandeja para pegar outra. Andando rumo ao bar, pedi uma dose dupla de uísque e bebi em seguida.
― Uau, vamos com calma, né, garotão? A festa mal começou. ― parou ao meu lado, sinalizando para pedir uma garrafa de cerveja ao bartender.
― Você não está no seu turno de trabalho, não precisa se preocupar comigo ― rebati, tentando não parecer ríspido.
― Mas eu sou sua amiga e me preocupo com você.
― É uma festa, .
― Da sua namorada. Seria interessante se você não desse vexame ― ironizou.
― Eu estou sóbrio, ok?
― Vamos ver por quanto tempo, né? ― Arqueou as sobrancelhas, dando um tapinha no meu ombro.
, por Deus, eu passei semanas ajudando a organizar essa festa, o mínimo que eu mereço é encher a cara e celebrar, não? ― Ergueu as mãos em sinal de rendição.
― Bom, se precisar de alguém que encerre a festa, chame táxis ou qualquer coisa assim, sabe a quem procurar ― respondeu com um ar meio esgotado.
Dei um beijo no alto de sua cabeça e um abraço apertado.
― Aproveite a festa, , você também merece uma folga, assim como todos aqui. ― Desvencilhei-me dela. Ainda segurando-a pelos ombros, olhei-a nos olhos: ― Aproveite a bebida de graça, use uma quantidade meio absurda de drogas, transe com alguém no banheiro… você pode fazer qualquer coisa, literalmente estamos numa festa e sua única obrigação é se divertir. ― Meio sem querer, tirei uma risada anasalada dela.
― Você é maluco.
― E você me adora por isso. ― Ao fundo, vi alguém que era de todo interesse de se aproximar e gesticulei com o queixo para que olhasse sobre seus ombros.
Virando-se sem movimentos bruscos, olhou para quem estava muito próximo dela, voltou-se para mim para mostrar os polegares e me deixou sozinho para ir atrás de Adam.
Pedindo mais uma dose, virei-a como se não houvesse amanhã e saí para procurar o resto dos meus amigos.
George e Ross ainda estavam no mesmo lugar, conversando e dividindo um cigarro. Juntei-me a eles, porém balançando o corpo no ritmo da música. Estava a todo custo tentando ocupar meus pensamentos com algo que não fosse a interação entre twigs e ou a sensação meio claustrofóbica que toda a situação estava me causando. Se você se abrisse a respeito dos seus sentimentos, talvez não estivesse passando por isso!
Alguns minutos mais tarde, oferecendo a mão para mim, Tahliah me puxou para dançar com ela ao som de Doja Cat e eu apenas me permiti ser guiado por ela. De um jeito muito mais descontraído que normalmente, ela rebolava próxima de mim, mantendo contato visual sempre que possível.
Seu movimentos me deixaram tão desconcertado que até me esqueci das coisas que andavam me afligindo por alguns minutos. Concentrei-me somente na sensação de seu corpo contra o meu e, rapidamente, me veio à mente por que eu gostava tanto dela. Tahliah tinha esse poder de me fazer esquecer do mundo ao nosso redor apenas para observá-la.
Assim que a música foi transicionando para outra, twigs agarrou minha mão e começou a me guiar para fora da pista de dança. Conforme foi me levando rumo às escadas ao lado do bar, soube exatamente para onde estava me levando.
Uma de suas exigências quando estávamos procurando um local para realizar sua festa era que houvesse um espaço privativo para que seus convidados ficassem mais “à vontade”. No fundo, eu sabia que não era só com os convidados que ela estava preocupada.
Logo que entramos no quarto, twigs me pressionou contra a porta fechada para me beijar. Com o tronco esticado, enlaçou os braços ao redor do meu pescoço, prendendo-me ali. Sua boca tinha gosto de champanhe caro e brilho labial. E, embora eu a quisesse por perto pelo máximo de tempo que conseguisse, Tahliah se afastou de mim segundos depois, tirando algo do meio dos seios.
Semicerrando os olhos para enxergar a meia luz do ambiente, enxerguei o que parecia ser um cigarro fino.
― Presente de aniversário. ― Passou o cigarro próximo do meu nariz.
Skunk? ― Arqueei as sobrancelhas.
― Todo nosso. ― Tateou meu bolso, parando ao encontrar o isqueiro.
― E você me trouxe até o quarto pra fumar?
― Oh, não, querido. Tenha certeza que não. ― Pôs o tabaco entre os lábios para acendê-lo. Devolvendo-me o isqueiro, deu uma tragada profunda. ― O melhor presente que você pode me dar é tirar essa roupa apertada de mim e fazer o que você faz de melhor. ― Deu um sorriso provocante.
Soprando a fumaça no meu rosto, ofereceu-me o cigarro e, por um milésimo de segundo, refleti se deveria mesmo aceitar.
Nenhuma das minhas experiências com skunk tinha sido boa. Na maioria delas, eu sempre acabava entrando em bad trips muito esquisitas e duradouras o suficiente para me deixar perturbado por muitos dias a fio.
Ainda assim, isso não foi o suficiente para me parar. Achei que seria melhor se estivéssemos curtindo a mesma vibe.
Dando a primeira tragada, a vi abrir os primeiros botões da minha camisa para encostar os lábios na pele da base do meu pescoço, descendo levemente para o meu peito. Aproveitei o momento para pôr o cigarro à boca novamente antes de devolver a ela. O ato de fumar sempre me fazia relaxar, tanto que, ao soltar a fumaça, senti meus ombros caírem.
Mesmo no escuro, seus olhos brilhavam como diamantes, cheios de luxúria que não se descolaram de mim nem quando seus dedos finos se preocupavam apenas em levar o baseado à sua bela boca.
Fitando-a, eu era capaz de ver cada milímetro de seus movimentos e sempre me perguntava como alguém poderia ser tão perfeita quanto ela a todo momento. Em cada mínimo detalhe, Tahliah era assertiva, quase como se calculasse tudo.
Emaranhando uma das mãos em seus cabelos, puxei sua cabeça de leve para o lado a fim de beijar seu pescoço. Ouvi sua respiração saindo intercalada por risadinha, o que me deu ainda mais vontade de ouvir aquele som saindo de sua garganta.
Seu corpo tinha cheiro de jasmim e, conforme via seu corpo cada vez mais abrindo espaço para ser explorado para o meu, era como se pudesse vê-la desabrochar, exatamente como uma flor.
Erguendo a cabeça, deixei-a me dar mais um trago do cigarro. Assim que o tirou dentre os meus lábios, aproximou a boca para que transferisse a fumaça para ela. E, antes que pudesse me preocupar em ocupar as mãos com seu vestido, novamente me deu o pequeno pedaço de cigarro para tragar.
Procurando por um cinzeiro, encontrei-o sobre uma mesa próxima à cabeceira. Ao apagá-lo, voltei para os braços da minha namorada.
Beijando-a, escorreguei as mãos por suas costas, buscando pelo zíper na parte inferior da sua roupa. Ao encontrá-lo, desci-o devagar, começando a sentir novos pedaços da sua pele, agora, descoberta. Sob meus dedos calosos, a sentia macia e suave como uma pétala de rosa. De repente, só sua boca já não era mais suficiente para me saciar, queria mais dela.
Toquei-a em todas as partes que podia alcançar e, ainda assim, não parecia suficiente.
Meio desajeitado, consegui tirá-la de dentro do vestido enquanto ouvia suas risadinhas arrastadas. Muito provavelmente, em twigs havia batido mais rápido que em mim.
Minha visão estava levemente embaralhada e meus dedos estavam com as pontas formigando, portanto, toda vez que a tocava, parecia que estávamos em planos físicos diferentes, como se não a estivesse tocando verdadeiramente. A sensação não era ruim, apenas não se parecia com o que eu normalmente sentia ao ficar excitado daquele jeito.
Recomeçando a beijá-la, dei alguns passos em sua direção até que nos chocássemos contra o colchão e, por fim, caíssemos deitados. Meio desajeitados, rimos um contra a boca do outro, sem nos separarmos.
Com mãos ávidas, twigs desabotoou o que ainda faltava da minha camisa, puxando-a para fora das minhas calças tão logo conseguiu. Os dedos escorregando com um pouco mais de força pelo meu peito, chegaram até às peças inferiores, abrindo-as.
Já minhas mãos deslizaram até seus seios, apertando-os, fazendo-a arfar baixinho contra a minha boca.
A cada segundo que passava, me sentia mais e mais distante do meu próprio corpo. Muito em breve, provavelmente, a única sensação que me restaria era a de estar me observando de fora do meu próprio corpo.
Ao mesmo tempo que meu coração estava acelerado, não o sentia bater tão forte quanto o usual. Estava tão fora da minha pele que nem me senti penetrando Tahliah com dois dedos, tampouco quando comecei a movimentá-los dentro dela.
Contra os meus lábios, a mulher gemia e, em meio aos suspiros, me pediu para beijá-la e eu atendi. Olhos fechados, boca aberta e, enfim, a sensação de algo. Sua língua roçando contra a minha, quase brigando por espaço dentro da minha boca.
Desviando a boca da sua, fui descendo os lábios pela sua pele até alcançar a altura de seus seios. Embora fosse custoso manter uma sincronia entre todos os movimentos naquele estado, meus dedos continuavam a entrar e sair dela ao mesmo tempo em que dedicava atenção à seus mamilos endurecidos de prazer.
Alternando entre seus peitos, minha língua se arrastava pelo vale de pele macia que unia um lado ao outro. Seu corpo estava quente e começando a transpirar, quase como se estivesse entrando em ebulição. Fazendo o caminho de volta para cima com os lábios, senti minha boca secar ao olhar seu rosto novamente.
Em questão de segundos, o sangue pareceu ter se esvaído por inteiro da minha cabeça e corrido na direção contrária.
Embaixo de mim, pedindo para ir com mais força em meio a gemidos falhos, estava .
Parado, encarando-a, pisquei forte algumas vezes na intenção de confirmar se o que estava vendo era real. A imagem embaixo de mim não dissipava não importava o quanto eu tentasse.
Estranhando, a mulher perguntou se havia algo errado, mas eu não sabia a resposta. E, sem querer decepcioná-la, deixei me envolvesse novamente naquela redoma de prazer em que estávamos. Beijando-a de olhos abertos, permaneci atento para ver se desaparecia.
Mas não.
Os olhos brilhantes e selvagens, a pele rosada de calor e os pedidos para ir mais forte continuavam.
Ainda surpreso, comecei a atendê-la em cada um dos seus pedidos, os dedos indo com mais força e mais rápido. De repente, só aquilo não era o bastante, então, tirei o resto das minhas roupas e substituí os dedos pelo meu pau. Além disso, passei a adicionar coisas que sabia que gostava, como uma mão ao redor de seu pescoço, sufocando-a enquanto a penetrava.
Os gemidos estavam se tornando gritinhos baixos e finos, vez ou outra, substituídos por risadas curtas de satisfação. Da minha parte, quase não havia gemidos. Algo parecido com urros saíam da minha garganta e se misturavam à sua voz doce.
Suas unhas compridas arranhavam as minhas costas a ponto de deixá-las ardidas, porém nada disso importava. Tudo que eu queria era poder ver gozar com aquela feição que poderia ser interpretada como algo relacionado a dor física. Quase como se eu tivesse lhe dado uma facada.
Sem saber se minutos ou segundos haviam se passado, senti sua boceta se contrair ao meu redor, ornado por um gemido profundo e aveludado. Por muito pouco, não gozei antes de conseguir sair de dentro dela. E, então, ao ouvir a risadinha fina de novo, conferi seu rosto mais uma vez e lá estava twigs, sorridente, com um semblante satisfeito e esgotado.
― Você nunca me decepciona, amor ― sussurrou.
Tentando esconder o choque de realidade que deveria estar estampado no minha cara deitei ao seu lado, pondo as mãos sobre o rosto.
― Você tá bem?
― Estou. Só… fico um pouco exausto demais quando uso algo antes de transar ― menti.
― Nós podemos dormir se quiser.
― Eu vou te limpar primeiro. Espera. ― Levantei-me da cama, indo até o banheiro do outro lado do cômodo.
Encostando levemente a porta, encarei-me no espelho. O rosto vermelho, os cabelos grudados nos cantos da pele devido ao suor, os braços um pouco trêmulos. O que acabou de acontecer? Molhando o rosto e a nuca, respirei fundo e, enfim, criei coragem para pegar uma das toalhas pequenas sobre a pia para me secar e voltar para o quarto.
Após limpar a barriga de twigs, depositei um beijo no alto da sua cabeça e me deitei ao seu lado.

- x x x -


Na manhã seguinte, acordar foi uma das tarefas mais difíceis da minha vida. Minha cabeça latejava, minhas pálpebras pareciam coladas e demorei longos segundos para finalmente conseguir abri-las. Quando os primeiros feixes de luz atingiram os meus olhos, a primeira visão que tive foi a de twigs, enrolada em uma toalha de banho, juntando seu vestido do chão.
Tentei não emitir nenhum som para que não tivéssemos que conversar, entretanto, como se tivesse um detector da minha “presença desperta”, virou-se para mim, sorrindo.
― Bom dia, amor. ― Caminhou até mim, sentando-se na beirada da cama e selando nossos lábios.
Foi neste momento que precisei de muito autocontrole para não deixar meus olhos saltarem para além do tamanho normal das orbes. Tahliah estava com o pescoço muito marcado da noite anterior e, de repente, minha mente foi preenchida de todas as lembranças do que havia acontecido.
Desta vez, não tive uma bad trip como esperado. Eu apenas alucinei que transava com e, por isso, tratei minha namorada, twigs, como se fosse minha ex.
Automaticamente, minhas mãos começaram a suar e minha visão ficou levemente turva. Fingindo que estava tudo bem, dei um sorriso amarelo, acariciando seu rosto com um dos dedões.
― Vou precisar ir embora antes de você. Já estou atrasada para o ensaio.
― Sobre ontem… ― não completei, esperando que entendesse onde eu queria chegar.
― Foi perfeito. Você nunca foi assim. ― Passou um dedo pelos meus lábios carinhosamente. ― Deveríamos fazer isso mais vezes.
― O seu… ― Gesticulei próximo ao meu pescoço, querendo me referir ao seu.
― Não tenho tempo para me preocupar com isso, querido. Além do mais, todos devem saber que temos uma vida sexual ativa, certo? ― Riu.
Depositando um beijo em meu rosto, levantou-se e entrou no vestido brilhoso, pedindo que fechasse o zíper para ela. Ainda descalça, rumou para fora do quarto com as sandálias da noite anterior nas mãos.
Pegando o travesseiro que estava ao meu lado na cama, o pus sobre o meu rosto, apertando-o o máximo que consegui. Morrer agora seria uma ótima opção.
Permaneci naquela posição por horas a fio, sem saber o que deveria fazer com tudo aquilo. Não estava tudo bem e, muito provavelmente, não ficaria tão cedo, já que as imagens na noite anterior não paravam de ir e voltar na minha cabeça em um looping infinito. Não havia como me desligar do que havia acontecido. Em um piscar de olhos, twigs estava lá e, em seguida, havia dado lugar à , com seus gemidos encorpados e seu olhar desafiador.
Quando finalmente consegui me levantar da cama, senti meu corpo inteiro formigar do lado esquerdo, ao mesmo tempo que meu coração batia tão forte na caixa toráxica que tinha certeza que morreria de uma ataque cardíaco muito em breve.
Sentando-me na cama, fechei os olhos e respirei fundo algumas vezes, mas nada parecia adiantar. Minha mente seguia inquieta, me torturando com as imagens da noite passada.
Meus ouvidos zumbiam e, em reflexo, tampei-os com as mãos, inclinando o tórax para a frente, quase o encostando nas coxas. Eu só queria que tudo aquilo passasse.
Novamente, sem nenhuma noção de espaço ou de tempo, as sensações foram sumindo aos poucos depois do que pareceram eras.
Procurei minhas roupas amassadas e jogadas em um canto do quarto e as vesti, sem me preocupar com um banho ou com a aparência das peças. Só queria chegar em casa o quanto antes. Eu preciso de ajuda.

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Horas se passaram após o meu retorno para casa sem que eu conseguisse me mover do sofá. Ainda com as roupas da festa e com o celular na mão, não tive forças para fazer absolutamente nada e estava agradecendo aos céus por Tahliah ter avisado que estenderia à noite para acertar alguns pontos de coreografia com seus bailarinos e, em seguida, sairiam para jantar em comemoração ao seu aniversário e ao sucesso da tour.
Lembrando-me da mensagem que havia enviado mais cedo para Rico, meu antigo terapeuta da reabilitação, a tela do celular se acendeu devido à uma notificação. Ao olhá-la, era um retorno do homem perguntando se poderíamos conversar por ligação.
Desesperadamente, meus dedos iniciaram a chamada, levando o aparelho à minha orelha. Tão logo o homem me atendeu, um nó se atou tão forte em minha garganta que as palavras ficaram presas por alguns segundos.
― O que aconteceu, Matthew? Se não for uma boa hora, posso te retornar assim que você puder falar.
― Não, precisa ser agora. ― Minha voz estava tão embargada que nem parecia minha. ― Você deveria ser a última pessoa para quem eu deveria falar isso, porque você é meu terapeuta da reabilitação, mas eu nunca estive completamente sóbrio. Creio que isso não seja verdadeiramente uma confissão da minha parte ou um choque para você. Desde que me recuperei da última recaída, não usei mais pó ou heroína ou coisas piores que isso, mas nunca deixei a maconha ou coisas que me dessem ânimo em festas, por exemplo.
― E como você tem lidado com isso?
― Acredito que da melhor maneira possível. Não tenho vontade de cair na tentação e voltar pros vícios, mas isso me faz cair em armadilhas, como o que aconteceu ontem. ― Dei uma risadinha sem humor, tentando disfarçar as lágrimas que estavam prestes a correr pelo meu rosto.
― O que aconteceu ontem?
― Usei skunk com a minha namorada, a gente transou, mas eu tive uma alucinação durante.
― E é o conteúdo dessa alucinação que está te incomodando?
― Eu… em determinado momento… eu vi a minha ex. ― Fingindo, sei lá para quem, que coçava os olhos, sequei-os antes que transparecesse que estava chorando. ― Mas essa não foi a pior parte. Eu comecei a agir como se realmente estivesse transando com a minha ex, inclusive, fiz coisas que ela gostava.
― Matthew, você não estava sóbrio. Coisas assim podem acontecer quando você está sob o efeito de alguma substância.
― A parte que não sai da minha cabeça é que… eu gostei. Parece que fiquei ainda mais excitado com o fato de ser ali. ― Meu tom de voz estava cada vez mais baixo, pois não conseguia esconder a vergonha que estava sentindo de mim mesmo.
As maçãs do meu rosto queimavam de um jeito que chegava a ser desconfortável.
― E faz muito, muito tempo que não temos nada. Nossa relação está no passado e eu gosto muito da twigs.
Rico ficou alguns segundos em silêncio, provavelmente, garantindo que eu havia terminado de falar e, até mesmo, fazendo algumas anotações. Se estivesse vendo seu rosto, tenho quase certeza que veria aquele olhar analítico e pacífico em seus olhos, combinado com um semblante esvaziado de expressões.
― Matthew, ao mesmo tempo que é importante que você tenha consciência de que está construindo uma nova relação e que, o que quer que seja que você e sua ex-namorada tiveram, ficou no passado, também tenha em mente que alucinógenos não tem a capacidade de criar sentimentos ou sensações. O que quer que você tenha sentido no momento em que estava sob o efeito, era algo já pré-existente, que apenas foi potencializado. Isso não te faz uma pessoa ruim, mau caráter ou infiel. Só prova que você é humano. Humanos são feitos de emoções, de sentimentos e constroem relações.
― Eu sei de tudo isso e, ainda assim, me sinto horrível. Não consigo parar de pensar sobre. Me sinto nojento por ter feito isso com a Tahliah.
― Desde o seu primeiro dia aqui na clínica, seu traço de personalidade mais forte sempre foi a honestidade. Você nunca teve vergonha de si mesmo, de se expor, de estar vulnerável. Na verdade, você parece ter aprendido muito mais rápido que os outros pacientes que talvez essa fosse a sua única forma de chegar a sobriedade. Então, seja honesto. Acho que será importante, inclusive, para que a sua namorada entenda que você está realmente comprometido em fazer dar certo entre vocês.
Como isso vai funcionar? Na minha cabeça, nada do que Rico dizia fazia sentido. Pelo contrário, parecia mais que o homem estava tentando dar um fim mais rápido ao meu relacionamento.
Durante um curto espaço de tempo em silêncio, tentei racionalizar formas de como ser honesto sem que isso me deixasse solteiro e morando sozinho novamente. Sem saber se eu continuava do outro lado da linha, Rico chamou a minha atenção e apenas respondi com um resmungo.
― Sei que, neste momento, você deve estar imaginando 1001 maneiras de como ser sincero, mas não pense demais. Apenas se permita dizer o que precisa ser dito quando se sentir pronto para isso, como você fez ao longo de todo o seu tratamento, por exemplo.
― Por que eu tenho a impressão de que, desta vez, você está errado?
― Posso estar mesmo. Você não precisa considerar tudo o que eu digo como uma verdade absoluta.
― Não era essa a resposta que eu esperava.
― Bom, a vida é feita de quebras de expectativa, não? ― Sua voz soou como se estivesse sorrindo.
― Acho que preciso pensar se vou fazer isso mesmo e como fazer.
― Na hora certa, você vai saber o que fazer.
― Como sabe?
― Para o nosso mal ou bem, nós sempre sabemos o que fazer. ― Respirei fundo e chacoalhei a cabeça. Não era exatamente isso que eu queria ouvir.
― Eu não sei por que eu ainda te ouço. ― Passei a mão pelo rosto. ― De qualquer forma, obrigado por me ouvir.
― Sempre que precisar. ― Desliguei.
Deixando o celular cair sobre o estofado, me joguei contra o encosto e tentei relaxar por alguns minutos. Entretanto, meus músculos estavam cada vez mais tensos, por isso, resolvi levantar e tomar banho. Talvez assim conseguisse tirar um pouco que fosse da sensação de culpa que parecia estar grudada na minha pele.
No entanto, nem a hora que passei embaixo da água quente, sentindo-a escorrer da minha cabeça até os meus pés foi suficiente para aliviar aquela agonia que estava sentindo.
Depois de me secar e vestir uma roupa qualquer, me sentei na cama com o celular na mão, com a janela de mensagens de twigs aberta. Pensei em lhe mandar uma mensagem falando que precisávamos conversar. Digitei um sem número de versões da tal mensagem.
E, então, achei que deveríamos nos falar pessoalmente.
Porém, quando a mulher apareceu na porta do nosso quarto, sorridente, caminhando na minha direção para me beijar, todo e qualquer resquício de coragem que havia alimentado para tocar naquele assunto simplesmente voou para debaixo do tapete.


#27

Quando tudo que você precisa é se manter firme, siga em frente, como eu sei que você vai fazer
(Move Along - The All-American Rejects)



AVISO DE GATILHO: O capítulo a seguir aborda temáticas sensíveis referente a relações abusivas.


Os meses se passaram mais rápido do que era de se imaginar. E, por mais que não pensasse o tempo todo a respeito do que havia acontecido no aniversário de Tahliah, vez ou outra, a memória vinha à minha cabeça me atormentar. Talvez fosse a minha consciência me cobrando o fato de não ter tomado nenhuma atitude nem naquele dia nem nos meses seguintes. Apenas tentei deixar o assunto morrer até para mim.
Com o tempo, que começou a ficar estranha foi twigs. Em alguns dias, a sentia distante, o olhar perdido no horizonte, não prestando atenção em nada do que acontecia ao seu redor, às vezes, parecendo até descolada da nossa realidade. Isso sem contar em seus sumiços.
Aconteceu cerca de duas ou três vezes. twigs me dizia que estava em um determinado lugar e, quando eu chegava para buscá-la, não havia nem passado por perto do local ou simplesmente saía de casa sem dizer a ninguém onde estava indo.
No começo, até cheguei a cogitar que talvez estivesse me traindo. Porém, como uma pessoa que tinha lá sua cota de infidelidade nas costas, percebia que talvez este não fosse o caso. Tirando os sumiços repentinos, twigs não tinha atitudes suspeitas de quem estava se encontrando com outra ― ou outras! ― pessoa. Não haviam ligações estranhas, excessos de mensagens em horários que pudessem ser considerados condenatórios nem conversas com pessoas que nunca tinha visto.
Ela apenas continuava a sentar e olhar para o nada, parecendo estar com a cabeça cheia de pensamentos, mais do que poderia colocar em palavras.
Eu não sabia se deveria abordá-la de alguma forma, tentar puxar o assunto para o nosso cotidiano. Logo, tentei lhe mostrar que estava disponível através de gestos: sempre que possível, a esperava com o jantar pronto, lhe comprava flores, deixava bilhetinhos com “te amo, tenha um bom dia” sobre suas coisas todos os dias e a levava para passear nos locais que queria ir quando estávamos juntos.
Ainda assim, nada disso se mostrava capaz de fazê-la se abrir comigo, portanto, resolvi esperar.
Até que, em um dia que trabalhei de casa para que pudéssemos ficar um pouco mais de tempo com ela, ouvi seus passos nas escadas que levavam ao subsolo, onde eu estava.
― Matty querido, você tem um momento? ― Virei minha cadeira para encontrar a figura de twigs com uma caneca em ambas as mãos, recostada na soleira da porta.
― Pra você? Sempre. ― Sorri. ― Senta aqui. ― Puxei a cadeira, que costumava ser ocupada por George para mais perto, batendo com a mão sobre o assento.
Quase como se estivesse se arrastando, a mulher andou até a cadeira e sentou-se. Por alguns segundos não fez nenhum contato visual ou físico, apenas manteve-se concentrada em sua caneca de chá.
― Tá tudo bem? ― Suspirou, finalmente, olhando-me.
― Matty, tem algumas coisas que você não sabe sobre mim e acho que é o momento de te contar. Estamos morando juntos e, logo, a merda vai aparecer. Não quero que você fique sabendo quando… ― Desviou o olhar de novo para sua bebida. ― quando a imprensa…
― Não importa o que seja. Estou do seu lado. ― Pus a mão sobre seu pulso, tentando confortá-la.
― É por isso que eu quero te contar isso. Estou processando um ex-namorado. Fui abusada física e psicologicamente. E, além do processo, quero que todos saibam quem ele é e o que fez comigo. ― Passou a língua pelos lábios, umedecendo-os. ― Ele me obrigava a dizer o quanto o amava, a dormir nua e a “aceitar” ― Fez aspas com um dos dedos. ― que ele dormisse com uma arma de fogo ao lado da nossa cama. Mas o momento em que mais senti que ele iria me matar foi no dia dos namorados no mesmo ano em que você e eu nos conhecemos. Ele estava dirigindo tão rápido que eu só conseguia procurar pelos adesivos de airbag no painel do carro. Quando não encontrei nenhum, comecei a me perguntar se havia algum naquela porra de carro. Por um segundo, pensei o que seria pior: me jogar de um veículo em movimento ou esperar pelo acidente que muito provavelmente iria acontecer.
À medida que as palavras pareciam pular da boca, eu ficava horrorizado, imaginando como algo assim acontecia na vida real. Mas também fiquei pensando em como este tipo de coisa poderia acontecer com alguém como ela. twigs era uma pessoa firme, que sabia se posicionar e, inclusive, se retirar quando necessário.
― Tudo que passei enquanto estava me relacionando com ele foi infinitamente pior do que qualquer outro obstáculo que eu tive toda a minha vida. ― Voltou a me olhar nos olhos. ― E, apesar de já nem conseguir mais chorar ao pensar a respeito, me recuperar disso tem sido a coisa mais difícil que já tive que fazer. ― Sentindo a dor transbordar em sua voz, aproximei-me dela para um abraço.
Com as mãos ocupadas em sua caneca, a mulher limitou-se a corresponder apenas deitando a cabeça sobre um dos meus ombros, aceitando permanecer em meio aos meus braços.
― Tem muitos outros detalhes que eu poderia te contar, mas não acho que vá fazer diferença agora. Você já está ciente do pior. ― Acariciei suas costas e sua nuca suavemente com as pontas dos dedos.
Vê-la vulnerável como nunca tinha visto estava mexendo comigo a ponto de querer ir atrás de quem quer que tenha feito aquilo com ela, mesmo que ela se opusesse a isso.
― Não vou dizer que fico feliz por você ter me contado porque, primeiramente, você nem deveria ter passado por isso. Mas fico aliviado de você se sentir à vontade de dividir algo assim comigo. ― Desvencilhei-me dela para segurar seu rosto entre minhas mãos. ― Saiba que o que você precisar, eu sempre vou estar aqui, ok?
― Eu sei. ― Deu um meio sorriso. ― Você tem me ajudado a me recuperar, mesmo sem saber de nada. ― Novamente, umedeceu os lábios com a língua. ― E, já que estou te contando tudo isso, quero também aproveitar para dizer que escolhi contar toda essa história a uma jornalista antes que… antes que alguém descobrisse e vazasse o processo na internet sem minha autorização.
Naquele exato instante, um nome veio à minha mente, porém não quis supor nada. Esperei até que twigs resolvesse continuar:
― Pela forma como se comportou na primeira vez que me entrevistou e como foi respeitosa desde o início, acabei escolhendo para escrever essa matéria. Espero que… que você não se incomode. ― Ao fim da frase, sua voz era como um fio finíssimo, prestes a arrebentar.
É, eu já sabia…
Por alguns milésimos de segundos, escolhi o silêncio para poder recapitular os últimos dias. Tudo fazia sentido. As conversas que se encerravam assim que me aproximava das duas, os sumiços de twigs… tudo estava começando a se encaixar.
― Não é sobre mim. Foque em você, ok? ― Segurei sua mão entre as minhas, depositando um beijo no dorso. ― E, sinceramente, acho que você não poderia ter escolhido pessoa melhor para contar essa história por você. ― Dei dois tapinhas ligeiros sobre sua mão, olhando-a nos olhos. ― O que você acha de ir pegar um casaco e darmos uma volta?
Controlando os cantos dos lábios, minha namorada deu um meio sorriso.
― Você está trabalhando, não quero te atrapalhar.
― Você nunca me atrapalha. E outra: eu fiquei em casa para passarmos um tempo juntos. A não ser que você não queira.
― Fico pronta em dez minutos. ― Deu um beijo no meu rosto e saiu.
Observando-a até sumir do meu campo de visão, sorri e desliguei tudo no estúdio.

- x x x -


Algumas semanas mais tarde, a reportagem assinada por foi ao ar. Já nas primeiras horas, o celular de Tahliah sinalizou um sem número de mensagens, muito provavelmente, de sua assessora e de sua assistente, pois vários outros repórteres queriam entrevistas ou um pronunciamento. Por fim, querendo ajudá-la, conversei com sua assistente para que fizesse um pronunciamento padrão para todos.
No começo, twigs ficou irritada comigo, afinal, queria resolver do seu jeito, era sua vez de dar sua versão dos fatos. Porém, quem a via externamente, como eu, podia vê-la se desgastando mais e mais. Aquele assunto já a rondava o suficiente em seu dia a dia, não precisava perder o pouco de paz que ainda tinha por nada, certo?
Entretanto, ela só se deu conta disso no dia seguinte.
― Amor?
― Hm?
― Queria que você me desculpasse.
― Pelo quê?
― Por ontem. Sei que você estava fazendo o melhor para mim.
― Você não tem que se desculpar.
― Eu fui uma boba.
― Não, não… não fale assim de você mesma. Eu devia tê-la deixado escolher o que você queria fazer.
― Mas você sabia que eu não precisava fazer isso. Inclusive, me sinto melhor não tendo que continuar lidando com isso o tempo todo, todos os dias. Dentro de mim já está uma bagunça, não preciso nutrir isso ainda mais, certo?
Puxando-a pelos ombros, abracei-a, pondo a cabeça sobre a sua. Permanecemos agarrados por algum tempo. A sensação de senti-la tão próxima de mim era muito acolhedora. Seu corpo esguio se encaixava perfeitamente no meu, moldando-se cada vez mais toda vez que respirava.
Naquele mesmo dia, mais tarde, Tahliah saiu para uma noite das garotas com algumas amigas e eu fiquei em casa tentando terminar algumas músicas em que George vinha trabalhando.
Vez ou outra, a reportagem passava pela minha cabeça. Não havia lido além do título e, embora soubesse que não mudaria em nada na minha vida saber de mais detalhes, algo dentro de mim queria muito descobrir o que twigs havia contado para que não para mim.
E, sem muito controle do que queria ou não fazer, acabei abrindo uma nova aba de navegador apenas para abrir a matéria de .
Destoando completamente do texto enorme e rico em detalhes sobre o relacionamento anterior da minha namorada, havia um editorial de fotos exclusivas para o Repeat Daily e, como sempre, twigs estava impecável, no auge de sua beleza.
Conforme minha leitura ia avançando, meu cérebro demorava mais e mais para processar as novas informações.
Minha primeira reação foi tentar compreender por que haviam coisas que ela havia decidido dividir com uma pessoa desconhecida e não comigo, com quem ela dormia e acordava todos os dias. Entretanto, a cada novo pormenor adicionado à narrativa, compreendia que talvez houvessem coisas que ela tenha deixado em segundo plano por serem muito dolorosas de serem repetidas à exaustão.
E, assim que me dei conta do sentimento de compadecimento que recaía sobre mim, fui compreendendo que talvez fosse isso que minha namorada quisesse evitar: a sensação de que eu a estivesse olhando com pena ou que, de fato, estivesse sentindo isso por ela.
Sim, eu sentia muito por tudo que havia lhe acontecido, mas este não era o único sentimento que nutria em relação a twigs. O que a fazia pensar que isso era possível?
No fim, tentando lhe dar um pouco de conforto, mesmo que a distância, resolvi fazer uma publicação no meu instagram com as fotos do nosso passeio do dia em que havia me contado o que estava acontecendo e, como legenda, disse que era o amor da minha vida, seguido do uso indiscriminado de emojis.
Sua resposta veio em forma de curtida, comentário e uma mensagem dizendo que me amava e o quão importante meu apoio estava sendo naquele momento.
Tão logo larguei meu celular, recostei minha cabeça no apoio da cadeira e respirei fundo, encarando o teto.
Por um segundo, involuntariamente, minha mente trouxe o questionamento de como estava com essa história toda, afinal, ela havia sido a autora da matéria. O pensamento seguinte foi um breve desapontamento por minha ex-namorada ter sido a pessoa que minha atual namorada havia escolhido para dividir um assunto tão pessoal. E o que era admiração, de repente, virou frustração por, aparentemente, não ser quem ou o que twigs esperava.
Esta conclusão me fez levantar de onde estava e ir até o aparador, onde ficavam as bebidas, preparar todas as doses de uísque que aguentasse beber.


#28

Eu sinto que estou bagunçando tudo
(Happiness - The 1975)



Uma das coisas que ninguém diz a respeito de relacionamentos é: além das suas feridas, você precisa lidar com as feridas do outro e, às vezes, isso pode ser a parte mais complicada de manter uma relação. Pelo menos, uma saudável.
A sobriedade era uma luta e uma escolha diária. Para não pensar no quanto estar chapado me faria mais ativo ou mais relaxado, precisei me entregar a outras tarefas, como trabalhar mais, me exercitar mais, cuidar melhor da minha alimentação e me consultar com meus médicos com mais frequência. Obviamente que, para fazer tudo isso caber na minha agenda, algo acabou, consequentemente, sendo sacrificado. Esse algo calhou de ser minha relação com Tahliah.
No começo, achei que essa escolha era totalmente inconsciente. Porém, aos poucos, notei que, no fundo, eu sabia exatamente o que estava fazendo. Por não ser capaz de lidar com tudo o que minha namorada estava passando e ainda conseguir estar “inteiro” para me responsabilizar pela minha própria merda, afastá-la pareceu viável.
Sem perceber, não conseguia mais ser a pessoa emocionalmente disponível que ela precisava e estava acostumada. Para fugir de nossos compromissos e momentos juntos, me enfurnava cada vez mais no trabalho, sempre produzindo novos artistas, tentando compor algo novo para a banda… literalmente, qualquer coisa que me desligasse da nossa vida a dois.
Não demorou até que Tahliah começasse a passar mais tempo na casa de amigos, em sua própria casa, em seu estúdio de dança ou, até mesmo, embarcando em longas viagens não programadas para ver sua família.
Em uma sessão de terapia, Rico me disse que não poderia adiar o inevitável para sempre. E, por mais que estivesse de acordo com seus conselhos, não me sentia preparado para deixá-la ir.
A verdade é que twigs tinha sido uma das poucas coisas realmente boas na minha vida nos últimos anos e, por mais egoísta que soasse, não queria perdê-la.
Pensar sobre isso me deixava deprimido e frustrado. Deprimido por não saber onde foi que nossa relação deixou de ser o que era, como deixei chegarmos àquele ponto; frustrado por novamente estar estragando tudo. Justo quando prometi e achei que tudo seria diferente.
E, embora tivesse plena consciência de tudo que estava se passando, foi quase cinco meses depois que as coisas pareceram desmoronar de verdade. Era uma tarde de primavera e há quase uma semana eu vinha planejando algo que talvez fosse a salvação do nosso relacionamento.
Tahliah estava em um ensaio enquanto eu recebia em casa a decoração e o pequeno jantar especial que havia encomendado para dois. Tinha decidido pedi-la em casamento, pois, mesmo que não estivéssemos tão bem, ainda a queria do meu lado, sabia o quanto a minha vida havia melhorado com ela por perto e não queria de forma alguma perder isso.
Assim que a porta da frente se abriu, lá estava eu, no meio do cômodo, com a mesa posta, vestindo terno, à luz de velas e segurando um arranjo de flores.
― Amor? O que é isso? ― Franziu a sobrancelha, sorrindo.
― Uma noite especial para nós dois. ― Dei um beijo em sua testa, guiando-a para a mesa.
Puxei a cadeira para que se sentasse e assumi meu lugar. Em seguida, servi o jantar em seu prato.
― Como foi seu dia? ― Encarando a própria comida enquanto colocava as primeiras porções na boca, twigs não parecia estar muito a fim de conversar. Suas respostas, na medida do possível, eram curtas, sem muitos detalhes.
Dava para ver em suas feições que estava achando aquilo tudo muito estranho, quase como se estivesse desconfiada de algo. Tentei manter a ansiedade pelo momento que aconteceria após o jantar para mim mesmo através da sustentação do diálogo. Tentei contar a ela como havia sido o meu dia, as coisas que havia feito com George no estúdio e como, muito em breve, talvez poderíamos começar a pensar em nosso próximo álbum.
Ao vê-la finalizar sua refeição, achei que era hora de, enfim, revelar a ela o motivo daquilo tudo. Tateando meus bolsos, encontrei a caixinha e a tirei do terno, levando-a para cima da mesa.
Os olhos da minha namorada alternaram entre o objeto e meu rosto, parecendo entender exatamente o que vinha depois.
― twigs… eu passei a semana inteira planejando isso, queria que fosse perfeito. ― Abri a caixa, mostrando a ela o solitário cravejado em diamantes que havia feito sob encomenda para ela. ― Tenho pensado nisso ao longo dos anos e acho que é o momento certo para começarmos a pensar em um futuro juntos.
Seus lábios se entreabrir algumas vezes, como se estivesse prestes a responder algo, mas sem palavras a serem pronunciadas. Por fim, pôs uma das mãos sobre a minha.
― Se fôssemos ter um futuro, você não estaria me dizendo que vamos começar a construi-lo agora.
Sem entender o que aquilo significava, uma ruga se formou em meio as minhas sobrancelhas.
― Sua atitude e sua cara agora me dizem exatamente o que eu precisava saber para dar uma resposta. Mas, antes, eu preciso saber no que estava pensando quando decidiu fazer tudo isso. ― Compreendendo ainda menos o que ela dizia, minhas sobrancelhas se juntaram.
― Porque eu te amo, quero que a gente fique juntos, quero ter uma família com você.
Passando a língua pelos lábios, Tahliah me encarou por longos segundos. E, de repente, me peguei com a mente em turbilhão. Ao mesmo tempo que queria ouvir todos os seus pensamentos, saber tudo o que passava em sua cabeça, não queria ouvir uma única palavra, ainda mais se isso significasse que não a teria mais em minha vida, um fim definitivo.
― Sinto muito, mas não acho que seja realmente isso que você quer. ― Soltou minha mão. ― Eu não posso aceitar esse pedido.
― E eu posso saber por quê?
A mulher levantou-se da cadeira, virando-de costas para mim. Uma de suas mãos foi parar em sua testa enquanto a outra descansava em sua cintura.
― Quanto tempo faz que nós estamos nessa situação? Você sai para trabalhar e eu não sei quando volta, se volta. Não tem tempo para nós, nunca parece interessado no que estou falando ou em mim. Nem o sexo vale mais a pena. Tudo está frio de um jeito que não sei mais se tem conserto.
― twigs… ― Virou-se para mim, erguendo a palma da mão, em sinal para interromper minha fala.
― Não, espera. Não terminei. Você queria saber meus motivos. Faz meses que eu sinto que não sou mais sua prioridade. Que nós não somos mais uma prioridade. E, quanto mais eu tento entender, mais chego a uma única resposta: não é comigo que você quer estar. Nunca foi. No fundo, eu sabia que você gostava de mim. Talvez muito, mas não era o suficiente . Talvez você nunca tenha chegado a me amar. ― Deu um sorriso amargo. ― Desde o início, sempre percebi a forma como você olhava pra ela. ― Por algum motivo, o pronome saiu de um jeito amargo de sua boca. ― E, no começo, você até me olhava parecido. Aos poucos, conforme o tempo passou, isso morreu.
― Eu nunca menti para você a respeito dela. Você sabe disso ― rebati baixinho, a voz saindo como se estivesse sobre uma corda bamba.
― O problema é que eu achei que você mudaria por mim, que tínhamos uma chance. Mas nunca tivemos, não é? ― Abraçou o próprio corpo. Sua silhueta diminuiu de tamanho consideravelmente. ― É por isso que não posso aceitar sua proposta de construir um futuro com você. Pelo menos não enquanto você continuar olhando para o passado, o que eu acho que você não tem a menor pretensão de parar de fazer.
― Nós podemos superar isso. Juntos.
― Podemos? ― Franziu as sobrancelhas, descruzando os braços. ― Olha, a minha resposta final é não. Vou para a minha casa, amanhã volto para buscar as minhas coisas, ok?
twigs continuou me encarando, como se esperasse uma manifestação, uma reação, uma resposta. No entanto, não o fiz. Esta era sua decisão e não seria eu que a impediria de fazer o que achasse melhor para si.
Percebendo que o esperado não viria, uma feição de frustração tomou seu rosto, pegou a bolsa e encaminhou-se para a saída sem nem se despedir.
Olhando para o ambiente ao meu redor, fiquei sem saber o que deveria fazer. Levantei-me da cadeira e, instintivamente, comecei a andar de um lado para o outro. Eu poderia beber meu estoque de vinho sozinho, ligar para Rico, ir até um bar…
Entretanto, meu celular começou a tocar. No primeiro momento, pensei em deixá-lo tocar até que a pessoa do outro lado desistisse. Não estava com cabeça para lidar com absolutamente ninguém. Talvez nem mesmo com twigs, caso fosse ela ligando.
Em alguns segundos, o aparelho parou de tocar e, quando achei que a paz e o silêncio voltariam a reinar, a música irritante voltou a soar pelo ambiente. Um pensamento intrusivo me dizia para jogar o celular contra a parede, pois quebrado (talvez) não tocasse. A razão me disse que não poderia fugir para sempre.
Por fim, aproximei-me para ver quem se atrevia a quebrar meu torpor. Era ninguém menos que Louis. Meu peito se aqueceu brevemente.
― Alô? ― atendi.
― Tava cagando?
― O que te faz achar isso?
― Você nunca deixa de atender. E, quando está fazendo show, alguém atende por você.
― Tava contemplando o vazio existencial. ― Dei um sorriso sem humor.
― Vai se foder. ― Riu. ― Queria saber se posso ir dormir na sua casa hoje.
― Você não tem casa nem cama? ― debochei.
― Na verdade, eu vim para Londres para sair com alguns amigos, mas todos furaram. Pensei que podíamos comer porcarias e conversar um pouco. Se você e a twigs não estiverem, sabe… ocupados. ― Deu uma risadinha sapeca ao final.
Ri, amargo.
― Não, pode apostar que não temos nada em mente. Pode vir. Estou te esperando com o jantar.
― Chego em 15 minutos. ― E desligou.
Assim que larguei o telefone, tirei o prato de Tahliah da mesa, levando-o até a cozinha para pegar um novo, juntamente com um par de talheres substitutos.
Pontualmente no tempo que estipulou, Louis bateu na porta e eu o atendi.
― Você realmente estava muito entendiado, né?
― Que bom que sabe, assim não preciso fingir. ― Riu, abraçando-me. ― Isso é comida? ― Sentiu o cheiro no ar.
― Eu disse que te esperava com o jantar.
― E eu não acreditei, como sempre.
― Por quê?
― Você é mentiroso profissional, maninho. Eu e você sabemos disso. ― Arqueei as sobrancelhas, tentando esconder o ar ofendido.
Mas, devido às circunstâncias daquela noite, senti que me afetou mais do que o normal.
Guiando-o pelos ombros, levei-o até a mesa posta na sala de jantar e o servi.
― Por que tenho a impressão que isso tá mais romântico do que deveria? ― Partiu um dos legumes no meio antes de pôr na boca.
― Não posso pedir um jantar para comer com o meu irmão?
― Pode, mas você não faria isso. ― Semicerrou os olhos. ― E a twigs?
― Saiu ― respondi rápido.
― Antes de jantar.
― Ela já… meu Deus, hoje você está mais insuportável que o normal! ― Concentrei-me no meu prato, mesmo que não estivesse com a menor fome. ― Quem foi que furou com você?
― Uma garota com quem eu estou saindo.
― Quem é ela? ― Revirou a comida do prato em silêncio.
― Ninguém especial. ― Deu de ombros.
― Com essa cara de cachorro abandonado e você me diz que não é ninguém?
― Bom, não é a primeira vez que ela fura comigo, então, talvez só não esteja tão afim quanto imaginei, né?
― Mas você gosta dela?
― Não sei se gostar é palavra certa… vem cá, por que estamos falando tanto de mim?
― Estou sendo um bom irmão.
― Gostava mais quando você fingia que não se importava. ― Deu uma risadinha um pouco amargurada.
― Se você não quiser, não precisamos falar sobre isso. ― Continuei a comer, desviando o olhar.
― Melhor mesmo. Até porque você também não quis falar sobre a minha cunhada, então, acho que não preciso falar sobre também. ― Fiz uma careta.
Depois disso, continuamos a fingir que a refeição era a coisa mais interessante da nossa noite, cada um encarando o próprio prato, dando garfadas minúsculas, mastigando devagar e mais do que o suficiente antes de engolir. Quando não havia mais o que pudesse servir de distração à nossa frente, tiramos tudo de cima da mesa, colocamos as louças na máquina de lavar e voltamos para a sala.
Louis pediu para jogarmos Mortal Kombat e concordei.
Estávamos com os pensamentos tão distantes que as lutas não tinham a menor graça. Não havia a competitividade e o empenho usual, apenas dois caras adultos escondendo os próprios sentimentos um do outro. Como usual.
― twigs terminou comigo ― soltei de repente.
― O quê? ― berrou, pausando o jogo.
― Você queria saber onde ela estava. Ela foi embora um pouco antes de você chegar.
― Por quê? O que aconteceu?
― A vida aconteceu. ― Dei de ombros. ― Eu a pedi em casamento, ela não aceitou pelos motivos dela. E eu entendo todos. Inclusive, pensando bem, acho que ela pode estar certa em não ter aceitado.
― Você não a ama mais?
― Amo, mas é por isso que a deixei ir. ― Umedeci os lábios. ― Às vezes, o melhor que podemos fazer por quem amamos é deixar que eles sigam o próprio caminho sem nós. ― Olhei para a tela do jogo parada. Seu Baraka estava com as lâminas arranhando meu Ermac no ar.
― Jamais imaginei que ia te ouvir dizer algo assim. ― Encarei-o, arqueando as sobrancelhas. ― Vai fingir surpresa?
― Estou verdadeiramente surpreso.
― Convenhamos, você não era um exemplo de virtude, né? O seu estado normal é se arrastar, implorar, chorar e infernizar até que façam aquilo que você quer.
― Agora, eu faço terapia. Você deveria tentar, sabia? ― Louis riu, empurrando meu braço com o cotovelo. ― Vamos voltar a jogar? Você não veio aqui para ouvir o lamento do seu irmão mais velho.
― Você é quem sabe. ― Deu de ombros, apertando o botão play em seguida.
Seguimos jogando pelo que pareceram alguns minutos, no entanto, assim que conferi o relógio já passava das quatro horas da manhã.
Anunciando que iria dormir, entreguei meu controle para meu irmão, dei um beijo no alto da sua cabeça e me encaminhei para o quarto.

- x x x -


Mesmo com apenas duas horas de sono, me levantei para me arrumar e ir para o estúdio. Embora os primeiros segundos de olhos abertos tenham sido um inferno devido a tomada de consciência de como estava a minha vida, não deixaria que a banda pagasse pelos meus problemas pessoais mais uma vez.
Durante o banho, a escovação de dentes e o café da manhã, algumas coisas vinham à minha mente e, na medida do possível, as anotava no meu bloco de notas no celular. Pela primeira vez na minha vida, a dor não iria se transformar em algo destrutivo antes de virar arte.
O que nutri por twigs era tão bonito que não havia por que virar algo que não estivesse de acordo com o início de nossa história.
No estúdio, quando cheguei, apenas George já trabalhava, concentrado, em algumas coisas de outros artistas. Ao me ver, tirou os fones de ouvido.
― Por que eu sinto que tem algo que você quer me mostrar?
― Talvez eu tenha, mas preciso trabalhar um pouco ainda.
― Posso ver?
Selecionei os textos no bloco de notas e os enviei por mensagem.
Atentamente, meu amigo leu cada um dos trechos escritos.
― Precisam ser lapidadas, mas são ótimas. Algo aconteceu?
― Outra hora falamos sobre isso. Podemos começar? ― Por breves instantes, Daniel me olhou sério, talvez assimilando o que havia acabado de dizer e, por fim, assentiu.


#29

Você acha que me lamento sobre seus novos amigos e seu novo cara? Bem, sim
(Watch Your Mouth - The Backseat Lovers)



A passagem dos dias, se transformou em semanas, logo, em meses. twigs e eu perdemos quase que completamente o contato, uma vez que não frequentávamos os mesmos lugares nem tínhamos muitos amigos em comum. E a dor que sentia não era tão aguda quanto imaginei que pudesse ser, porém era contínua e se estendia ao longo de toda a minha existência.
Não havia um único segundo em que não pensasse nela, em como nos conhecemos, como gostamos um do outro desde o primeiro dia, como tudo parecia certo com ela. Mas também pensava em como acabei com o nosso relacionamento conscientemente e apenas a observei ir embora nas pequenas coisas até finalmente anunciar sua partida definitiva.
Vez ou outra, a saudades se manifestava em algum pequeno objeto seu encontrado pela casa, como grampos e amarradores de cabelo, um par de luvas e um pote quase vazio do seu creme de pés.
Quase três meses depois, um pedido de Jamie, guitarrista da banda de apoio, soou como a oportunidade perfeita para que eu parasse de me sentir só depois da partida de Tahliah.
Jamie estava de mudança e precisava de um lugar para ficar provisoriamente ou de alguém que estivesse disposto a dividir a casa com ele. Com todo o espaço disponível que tinha em casa e na minha vida, abri as portas para receber meu amigo sem nem pestanejar.
― Matty, não sei nem como te agradecer por isso ― falou, pondo as mãos na cintura após largar a última caixa de sua mudança no chão.
― Na verdade, eu é quem agradeço por você ter aceitado. Morar sozinho não é as mil maravilhas como todos dizem. ― Dei um sorriso um pouco entristecido.
― Tem sido muito difícil? ― Dei de ombros, botando as mãos dentro dos bolsos das calças.
― Você sabe que, pra mim, é difícil deixar alguém entrar na minha vida. Logo, quando a pessoa decide sair em definitivo, não é o momento mais fácil.
― Já passei por isso algumas vezes e entendo o que quer dizer. Mas saiba que algo está por vir. Sempre está, certo? ― Sorri.
― É por isso que preciso de você aqui. ― Dei um tapinha em seu ombro. ― O que acha de arrumarmos suas coisas no quarto?
― Eu posso fazer isso sozinho.
― Eu quero ajudar. Vamos. ― Peguei a primeira caixa que vi na minha frente e encaminhei-me para o quarto.
Para dar o incentivo que precisávamos, coloquei um disco de vinil para tocar no volume máximo e começamos a desempacotar. Jamie não havia trazido muitas caixas, mas todas estavam muito cheias.
Eram objetos pequenos e, em sua maioria, pareciam ter muito mais valor emocional que monetário. Nesse sentido, éramos muito parecidos, já que minha casa mais parecia o cativeiro de um acumulador.
Em determinados momentos, meu amigo encontrava coisas que, por algum motivo, sentia-se compelido a me falar a respeito. Como tinha comprado, de quem tinha ganhado, há quanto tempo tinha, o que significava. Ouvi-lo falar com tanta empolgação sobre cada pequeno objeto, de certa forma, aqueceu meu coração. Era bom ouvir outra voz dentro de casa que não fosse apenas saída dos meus discos ou da televisão.
Quando finalizamos, decidimos chamar os outros caras para uma cerveja em comemoração àquela nova parceria.
Ao chegarem, ofereci bebidas a todos, antes de me sentar no sofá entre Ross e George. E não demorou até que o assunto se tornasse os planos para o aniversário de Adam. Hann havia decidido alugar uma casa em Amsterdã. Lá, poderíamos festejar, ir para todos os bares possíveis, fumar uma quantidade obscena de maconha ao longo dos dias...
E tudo estava indo bem, até chegarmos à lista de convidados.
― Matty, não achei que isso fosse relevante quando tive a ideia de viajarmos juntos, porque você ainda estava namorando. Só que agora tudo mudou.
― Do que você está falando? ― Franzi as sobrancelhas, pondo um cigarro entre os lábios, tentando acendê-lo.
Vendo alguns dos homens parecerem enrijecerem em seus assentos e a troca de olhares entre todos, percebi que todos sabiam de algo que eu ainda não sabia.
― Fala logo, então. ― Estava perdendo a paciência já. Tanto que desisti de acender o tabaco.
― Adam convidou para o aniversário dele, óbvio, só que, dessa vez, ela pediu para levar uma pessoa junto. Adam disse que, se era , não precisava se preocupar que ele havia a convidado, mas ela disse que era outra pessoa. ― Os ombros de Daniel estavam contraídos, como se estivesse com receio da minha reação. ― Claro, não temos certeza de que é alguém com quem ela esteja saindo, mas, em todo caso, é melhor que vá preparado, caso seja o que estamos pensando que é.
― E se você decidir não ir também, eu vou entender ― completou o aniversariante. ― É claro que eu vou.
― Vai? ― Jamie olhou-me confuso.
― Vou. Por que não? É aniversário do Hann ― respondi como se fosse algo lógico.
― Você acha uma boa ideia? Quer dizer, caso não esteja tudo bem, nós podemos simplesmente fazer algo somente entre nós ― Adam sugeriu, cuidadoso.
― Mas eu estou confortável! ― rebati. ― Quero ver quem é essa pessoa.
― Matty… ― George deixou escapar aquele tom paternal de quando previa a merda que poderia acontecer.
― O quê? É aniversário de um dos meus melhores amigos e eu tenho que ficar em casa porque decidiu namorar publicamente? ― debochei, porém, perdendo o controle das minhas próprias emoções, soei levemente afetado.
Os olhos de Jamie intercalaram entre mim e um George visivelmente preocupado.
Ross encarava o chão, como se não estivesse presente, enquanto que o rosto de Hann estava mais aflito que nunca. Parecia exatamente com a mesma feição de quando eu havia tido uma overdose.
― Matty, quando você quis seguir em frente, ela respeitou isso. Por favor, respeite o momento dela também ― advogou Daniel.
― Primeiro: não estou desrespeitando o momento, juro que vou ficar na minha. Segundo: por mais ridículo que isso soe, nunca segui em frente. Essa é a verdade. Tahliah terminou comigo porque ela vivia me puxando para o futuro que desejava e eu fiquei estacionado no tempo, tipo uma criança birrenta em frente a uma vitrine, implorando por algo. No fim do dia, as duas merecem alguém melhor que eu, não? ― conclui mais para mim que para meus amigos.
― O que eu quis dizer é que é uma pessoa emocionalmente fechada e você sabe disso. Se essa pessoa que vai acompanhá-la é realmente alguém com quem ela está saindo, você sabe que é porque está ficando sério, né?
― Eu sei e juro que não vou aprontar. Nada de maconha e pouca bebida pra evitar qualquer vexame.
― Ótimo. Já é meio caminho andado, né?
Em instantes, aquele foi um tópico superado por todos os presentes. Não para mim.
Dentro da minha cabeça, entre um gole e outro das bebidas que estavam sobre a mesa de centro, remoí todas as informações recém adquiridas.
Era uma amiga? Um amigo? Mais que isso? Era homem? Será que ela decidiu experimentar uma mulher? Ou melhor, será que ela gostava de mulheres e nunca tinha me contado? Com certeza se ela estivesse se envolvendo com uma mulher jamais voltaria a cogitar ficar com homens de novo.
Os pensamentos estavam me consumindo de uma maneira tão cegante que nem vi a hora passar e fiquei surpreso quando meus amigos disseram que já era hora de voltar para casa. Ótimo, agora tenho mais tempo ainda para ficar pensando sobre isso. A semana inteira, para ser mais exato.

- x x x -


Quando o final de semana chegou, todos nós, de malas feitas, partimos para Amsterdã.
A espera por respostas havia feito minhas unhas sumirem, de tanto que as roí. havia confirmado sua presença e de seu acompanhante na segunda-feira e, para garantir que estaria minimamente apresentável neste momento, pedi à Patricia, nossa estilista, que fizesse as melhores combinações para essa viagem. E ela realmente entendeu o que disse, pois não só colocou minhas melhores roupas, como mandou comprar algumas peças novas que fizessem as combinações que ela gostaria que eu usasse.
E, ao chegar, agradeci imensamente à Patricia pelos ótimos serviços prestados. já estava lá, com e um homem com uma pele marrom avermelhada tão luminosa que eu tinha certeza que ele devia beber muito mais que dois litros de água e passar hidratante diariamente.
Embora tenha escolhido cumprimentar as mulheres primeiro, não consegui desgrudar os olhos do homem que ainda estava “sem nome” para mim.
― Matty, esse é o Hari ― nos apresentou e eu apertei a mão do homem, atento para um possível “título” que a mulher pudesse lhe dar. Ficante, namorado, amigo… qualquer coisa serve, eu só quero saber!
Obviamente, a resposta não veio. Então, tentei me contentar em analisar sua figura.
Hari era dono de cabelos muito pretos e ondulados. Seus olhos eram igualmente escuros, mas continham um brilho invejável, coisa de quem parecia nunca ter passado por nenhuma tristeza na vida. A barba cheia ornava seu rosto de um jeito que, assim como Ross, soava como se ele tivesse nascido para tê-la exatamente daquela forma.
De frente para ele, ficava perceptível que tínhamos quase 20 centímetros de diferença de altura. Sua postura era completamente ereta e cada músculo de seu corpo parecia estar no local certo sob a camisa social de mangas dobradas e o jeans que usava. Ele é simplesmente perfeito! Até eu gostaria de ficar com ele!
― É um prazer te conhecer.
― Igualmente. ― Dei meu sorriso mais falsamente amigável. ― Acho que já que estamos todos aqui, podemos começar as comemorações, não? ― Eu me recuso a continuar na presença dele sóbrio.
Mesmo que eu não tivesse dito nada, meus amigos já haviam ido buscar cervejas, vinhos, uísques e o que mais estivesse disponível. Como sempre, a casa estava abastecida quando chegamos, pois assumiu o controle de tudo. Era aniversário de Adam e ela simplesmente decidiu que tudo seria impecável e irretocável do início ao fim.
Acho que nenhum de nós, olhando de fora, compreendia por inteiro a natureza da relação de Adam e , porém era impossível dizer que ambos não se gostavam e se preocupavam um com o outro. Hann sempre saía em defesa de , não importava que para isso acabasse se tornando advogado do diabo. E , claro, retribuia em tudo o que podia, nos mais mínimos detalhes.
No fim do dia, era muito bonito ver o sorriso que trocavam após pequenos gestos, como Hann se oferecendo para abrir uma garrafa de cerveja que não conseguia.
O pensamento fez meus olhos correrem na direção de , que já tomava assento em um dos sofás, ao lado de Hari. Com os ombros se tocando, a mulher o olhou e deu um sorriso, que respondeu a todos os meus questionamentos. Eu já tinha visto aquele sorriso inúmeras vezes, mas nunca para outra pessoa que não eu.
Abri uma cerveja para mim e tentei acompanhar ao máximo como a conversa fluía. Hari não estava completamente incluído nos assuntos, apenas soltava pequenos comentários, que, vez ou outra, fazia os presentes rirem. Mas nada era endereçado à ele e imaginei que era o momento perfeito para… nos conhecermos melhor.
― Então, Hari, o que você faz? ― De repente, todos os olhares se voltaram para mim, levemente assustados. ― Estou perguntando porque percebi que ninguém está necessariamente falando com você ― justifiquei-me mais para os outros do que para ele.
― Eu sou professor de yoga há alguns anos.
― E foi assim que vocês se conheceram? ― Apontei para os dois.
pareceu segurar um sorriso desacreditado enquanto todos os outros me encaravam, sem entender qual era o ponto daquilo tudo.
― Ah, sim. queria voltar a praticar e eu tinha recém aberto o estúdio perto do trabalho dela.
― Que legal. George e eu, às vezes, fazemos algumas sequências.
― Então, parece que já temos uma gangue de yoga? ― Rimos.
― Provavelmente. Em breve, seremos uma seita, não é, ? ― Com um olhar desconfiado, a mulher passou a língua pelos lábios e sorriu.
― Você nem mesmo conseguiria nos acompanhar. ― Levando na brincadeira, ri e beberiquei minha bebida.
Ao perceberem que não faria mais nenhuma intervenção, todos começaram a conversar entre si, sem deixar Hari de fora desta vez.
Não conseguia mais ouvir nada ao meu redor, só ficava observando o homem se mexer, o sorriso extremamente alinhado, o sotaque forte, provavelmente, herdado da família, os gestos das mãos eram sempre assertivos. Tão assertivos que até tiraram um sorriso meio safado de ao depositar uma das mãos em seu joelho.
Sem conseguir mais olhar, desviei a atenção para Ross, que contava uma história que não conseguia ouvir. Apenas ri quando todos riram, concordei quando era isso que esperavam de mim e bebi minha cerveja em silêncio.
Mais tarde, nos arrumamos para sair para jantar. Adam tinha decidido que gostaria de fazer uma comemoração de “adulto” pelo menos uma vez na vida, portanto, escolheu um restaurante francês fino, cujos nomes dos pratos precisam ser traduzidos por alguém que sabia francês ou que, ao menos, já tivesse comido o que estava sendo servido.
Obviamente que a nossa pose de adultos não durou muito tempo. Após a quarta garrafa de vinho, começamos a nos desafiar a comer mais escargots. Perdi as contas de quantos vídeos gravamos das caretas e quantas mesas se esvaziaram ao nosso redor durante as horas que passamos ali.
Decidimos estender o primeiro dia, mas em casa, para evitar o esvaziamento de outro estabelecimento. No quintal mesmo, colocamos caixas de som ligadas aos equipamentos que George havia trazido, trouxemos as bebidas para fora e fizemos nossa própria festa. O intuito era que à meia-noite cantássemos parabéns para o aniversariante. Entretanto, estávamos tão bêbados que só nos lembramos disso por volta das quatro da manhã.
Nesse meio tempo, todos haviam bebido tudo o que tinham direito. E, ainda assim, minha consciência não me deixava esquecer e seu… novo cara. Diferente de mais cedo, haviam esquecido todo e qualquer pudor do qual estavam carregados, beijando-se, abraçando-se, dançando juntos.
Isso pareceu durar mais do que o necessário aos meus olhos. Logo, acendi um baseado para dividir com George em um canto.
― Você está se saindo melhor do que eu imaginei. ― Passou o tabaco para mim.
― Eu disse que não iria criar caso. ― Dei de ombros. ― Só estava curioso a respeito do sujeito. Ela conheceu a pessoa que entrou na minha vida depois dela, acho que tenho esse direito, não?
― Porra de direito! ― Riu. ― Vocês são muito esquisitos, isso sim. ― Deixou-me para trás, assumindo suas pick ups de som outra vez.
apontou para mim e fingiu puxar uma corda invisível para me levar até ela. Era a primeira vez que a via tão alterada, com um olhar de quem havia usado alguma coisa além de álcool. Assim que me aproximou, já dançando, a mulher abriu a boca, estendendo o pescoço na minha direção e entendi que queria dar um trago no baseado também. Entreguei a ela e continuei a dançar sozinho.
Até que as costas de uma pessoa em específico esbarram no meu braço e não consegui evitar sorrir.
― Desculpa ― disse , chacoalhando as mãos como se tentasse acalmar a situação.
Pegando-a pela mão, a rodopiei, fazendo-a rir. Diferente do que achei que faria, não foi embora.
Hari estava sentado há algum tempo, conversando com Ross e ela seguia firme, dançando sozinha, de olhos fechados. Mas chocar-se contra mim não a repeliu, muito pelo contrário. Continuou a dançar comigo e com sua amiga.
Quando foi sentar-se, continuou comigo. E ainda me permitia tocá-la, mesmo que não acidentalmente. Demos mais alguns giros, fizemos algumas coreografias antigas juntos e, por fim, manteve-se com uma das mãos em meu ombro, para que não nos afastássemos.
Quando o dia clareou, fomos todos para nossos devidos quartos.
Embora estivesse bêbado e exausto, demorei muito tempo para pegar no sono. Fiquei quase uma hora encarando o teto, analisando tudo o que havia acontecido ao longo da noite. Boa parte do tempo, relembrando dançando comigo, às vezes, falando algo sem muita conexão e dividindo alguns goles das cervejas que eu estava bebendo.
A paz acabou assim que minha mente começou a me sabotar, também trazendo as lembranças da mulher dançando com o cara que havia trazido a tiracolo. Com os adendos de beijos, abraços e amassos em meio aos nossos amigos.
Pondo o travesseiro na cabeça para abafar a vontade de gritar, acabei dormindo.

- x x x -


Ao acordar, ainda estava zonzo, mas tinha certeza de que estava mais sóbrio do que quando fui dormir. Levantando da cama, fui tomar um banho, pois ainda cheirava a cerveja, suor e maconha.
Enrolado em uma toalha após a ducha, fui até a janela, a abri, procurei pelo maço de cigarros e acendi um enquanto procurava pelas minhas roupas. Indo por caminhos básicos, escolhi uma camisa branca, uma calça preta e calcei os chinelos. Quando o primeiro cigarro acabou, eu estava pronto para o convívio social. Desci as escadas e caminhei pelos espaços comuns até encontrar todos.
Ninguém na cozinha nem na sala de jantar.
Porém, me deixei guiar pelo som das risadas, que, aparentemente, estavam do lado de fora. Na varanda mesmo, os vi sentados à mesa comprida que ficava no pátio. Alguns tomavam café, outros almoçavam.
― Qual é a boa de hoje? ― Sentei-me ao lado de , acendendo um novo cigarro.
― Reservei um pub para nós ― respondeu e alguns dos homens bateram com as palmas das mãos no tampo da mesa ritmadamente.
― Uau, vamos encher a cara pela segunda noite consecutiva ― brinquei, servindo-me uma xícara de café.
― Mas não é só isso ― Adam manifestou, sorrindo.
― Ah, não? O que mais, então? ― Franzi as sobrancelhas para .
― Tem karaokê lá.
― Sem brincadeira? ― Arregalei os olhos.
― É sério ― Riu.
― Nossa, , eu te amo. A partir de agora, só você irá organizar festas, ok?
― Isso não é trabalho para mim, mandem todas!
Tão logo as pessoas foram terminando de comer, foram levantando-se da mesa para se arrumar. Como já estava minimamente aceitável, me permiti terminar meu cigarro em paz, tomar mais uma xícara de café antes de voltar para o meu quarto e colocar um sapato.
Tão logo fiquei pronto, fui até a sala e esperei todos para que pudéssemos sair.
nos pediu para esperar do lado de fora, pois nosso transporte já estava a caminho. O único detalhe que ela havia esquecido de incluir era o fato de ter alugado uma limusine. Sem muito uma reação padrão, alguns riram, outros gritaram e bateram palmas. Eu me contentei em piscar e sorrir para ela. está mesmo disposta a dar motivos para que Adam finalmente a note.

Quando chegamos ao nosso destino, menos de dez minutos depois, preenchemos as poucas mesas do pequeno pub, reservado para a nossa festa.
O ambiente estava a meia luz, uma música animada rolava no fundo e o karaokê já estava pronto para todos que quisessem assumir o microfone, porém isso demoraria ainda o tempo das refeições, mais ou menos uma hora.
As conversas nas mesas estavam acaloradas, parecíamos um bando de amigos que não nos víamos há meses. E, por mais que não estivesse muito inserido em todos os assuntos rolando, estava muito feliz de estar com meus amigos, saudáveis, vivos e mais animados que nunca.
A primeira pessoa a se levantar a cantar foi justamente .
― O que você acha que ela vai cantar? ― questionei e Hann deu de ombros em respostas.
― Eu sei exatamente o que é. ― sorriu antes de dar um gole em seu drink.
― E é?
― Você vai descobrir logo, logo. Mas ela vai puxar a régua do karaokê muito além do que deveria. ― Riu.
Em alguns segundos, a música que preencheu nossos ouvidos foi Sea, Swallow Me, do Cocteau Twins.
― Ela vai mesmo fazer isso?
― Ouça ― apontou para a amiga, que começou a cantar.
Aquele era o tipo de canção que provavelmente ninguém levaria para cantar em público, apenas por diversão. Elizabeth Fraser, a intérprete original, cantava de maneira que as estrofes não soassem como se fossem construídas por palavras. Era quase como se estivesse mais preocupada em criar texturas em sua forma de se comunicar.
A minha maior surpresa foi que, humildemente, conseguia emular tais texturas muito bem. Não com uma voz tão potente, mas com suavidade, quase como se fosse o sopro de uma ventania que entra pelas janelas abertas e corre por toda a casa.
A verdade é que eu estava tão impressionado com que mal percebi quando a música acabou, de tão absorto que me encontrava. Enquanto isso, todos os outros a aplaudiam e gritavam.
― Viu? Eu disse. ― sorriu, orgulhosa.
Após o retorno de para a mesa, vimos uma sequência ótima de músicas sendo cantadas, como Time to Pretend, Get Up (I Feel Like Being a) Sex Machine e Your Deep Rest. Por fim, pela primeira vez, resolvi pegar o microfone. A música escolhida foi algo que achei apropriado para cantar no momento, olhando nos olhos de .
Nos primeiros acordes de In My Sleep, procurei pelos seus olhos, pois, mesmo sem dizer, aquela seria dedicada inteiramente a tudo o que tivemos e tínhamos. Encarando-a, vi um sorriso pequeno, discreto, formar-se em seu rosto.
Por um segundo, achei que ela iria desviar o olhar tão logo fosse possível, entretanto, sustentou. Sem medo, sem vergonha, sem pudor. E tive a impressão de que, inclusive, me incentivou a continuar olhando-a e não seria eu que a desencorajaria.
Nas primeiras palavras, não contive um meio sorriso sugestivo que tomou os meus lábios conforme pronunciava cada uma delas.
Bebendo seu drink, aqueles olhos pareciam prestes a me colocar fogo e, embora estivéssemos cercados por nossos amigos e seu “ficante”, era como se não houvesse mais ninguém ao nosso redor. Pelo menos, era isso que eu poderia jurar que estava acontecendo.
Até que algo que eu não esperava aconteceu: levantou-se de seu assento e veio caminhando na minha direção. Desviando o olhar rapidamente para quem cuidava do som, pediu gesticulando por mais um microfone. E, apesar de entender o que aquilo significava, minha ficha só caiu quando a mulher assumiu o posto ao meu lado para cantar junto comigo.
Encarando-me, cantava com um sorriso sacana, os olhos brilhando com algo que soava como a volúpia que a desinibição do álcool fazia aflorar.
E ela não queria apenas fazer um dueto de karaokê. Quando menos esperei, estava performando, passando a mão pelo meu rosto, aproximando-se cada vez mais de mim… estávamos tão perto um do outro que conseguia sentir o cheiro de perfume e álcool que emanava do seu corpo.
Em determinado momento, pôs a mão sobre meu pescoço, fazendo um calafrio me percorrer por inteiro. Por pouco não deixei a sensação transparecer em minha voz.
Como se algo estivesse me hipnotizante e me atraindo, não tirei meus olhos de seu rosto e de como seus lábios se moviam a cada palavra.
Quando a música começou a se esvair, quase implorei para que cantássemos mais uma juntos. Queria conservar aquele momento por mais alguns instantes. Pelo máximo que fosse possível.
Segurando minha mão, fez com que me curvasse junto com ela em agradecimento aos nossos amigos, que nos aplaudiam.
Depois disso, muita coisa aconteceu. Assim que a bebida começou a fazer efeito, mais e mais duplas iam se juntando para cantarem músicas, inclusive, Adam e , que, após a primeira vez, acabaram dominando os microfones por boa parte da noite. Todavia, o que me chamou mais atenção foi o fato de Hari, em momento algum, ter se mexido para acompanhar .
Ela pediu, porém não insistiu e ele continuou lá, sentado, sorrindo, conversando, a aplaudindo quando cantava, incentivando com seus gritos e assobios. É o suficiente para você, ?
Aliás, a saideira foi dela, cantando True Love Waits, do Radiohead. E, daquela vez, não parecia preocupada com a performance, apenas em sustentar meu olhar.
Embora achasse que podia significar algo, que poderia ser um sinal. No fim, me convenci de que ela só estava cantando essa por ser uma boa música e me olhou, pois sabia o quanto eu gostava. Nada mais.
Voltando para casa, todos estavam funcionando praticamente no “combustível reserva”. Não havia conversas paralelas no carro e somente alguns poucos olhos abertos. Alías, o único ruído que se ouvia era o ronco baixo de , que, ao chegarmos ao nosso destino, foi carregada no colo até o quarto pelo aniversariante.
Já eu, não estava com o menor sono e sabia que se fosse para o quarto ficaria perambulando igual um zumbi até o dia raiar. Portanto, escolhi ficar no pátio por algum tempo.
Sentando-me em um dos bancos em frente à mesa, como mais cedo, acendi um cigarro. O sono não parecia nem perto de chegar, talvez fosse o momento de tomar um calmante para ver se me derrubava.
Muitas coisas que não faziam o menor sentido ― faziam sim ― tinham acontecido e mal sabia como deveria me sentir a respeito delas. no karaokê cantando comigo, depois, dançando comigo, olhos grudados nos meus, aquele sorriso aberto, as risadas sempre que me ouvia falar algo que nem era tão engraçado assim…
Seu ficante versão deluxe estava sempre distraído, conversando com meus amigos, bebendo, dançando ou prestando atenção em qualquer outra coisa. Talvez ele não soubesse exatamente o que estava em jogo ali ou quem era a pessoa com quem estava se relacionando.
Dando a terceira ou quarta tragada longa no cigarro, vi a porta de vidro correr e a figura agradável de atravessá-la, dando passos curtos e ligeiros em minha direção, de pé, à minha frente, cruzando os braços no peito.
― Cadê o vinho?
― Com o tanto que bebemos hoje, você deveria estar perguntando pela água. ― Riu.
― Eu ainda estou bem tranquila.
― Claro que está. Simplesmente a maior sommelier de alcoólicos que já conheci. ― Ri, dando uma nova tragada.
― Todo o grupo que dá rolê junto tem que ter alguém que entenda de bons drinks, né?
― Nunca disse que não era uma qualidade sua. ― Apaguei o cigarro no cinzeiro.
― Você precisa de um calmante?
― Acho que sim, mas talvez eu morra se tomar um agora. ― Levantei-me.
― Morrer não me parece uma boa ideia. ― Encarei-a.
Sob seus olhos, recaía a sombra das folhas e galhos da árvore atrás de nós, porém, ainda assim, conseguia ver que também me fitava. A boca levemente curvada nos cantos, formando um sorriso ligeiro, quase sapeca.
― Eu cantei aquela para você. Sabia? Ainda é a sua preferida, certo?
― Você ainda se lembra? ― Olhei-a, um pouco incrédulo.
― Por que não lembraria?
Sem refletir muito sobre meus atos, coloquei as mãos em seu rosto e a beijei.
Ainda era como costumava ser como era antes. Nós dois na mesma sintonia, parecendo sentir os mesmos sentimentos, compartilhando algo só nosso.
Depois dos segundos mais revigorantes em anos na minha vida, sentindo sua boca na minha, o corpo quente colado ao meu, quase como estivéssemos fundindo um ao outro, a senti começar a se desprender, se desconectar de nós. Já não éramos mais nós. Era se soltando de Matthew.
― Para. Isso… isso não tá certo. ― Seu rosto ganhou uma feição preocupada.
Confuso, inclinei a cabeça, procurando pelo seu olhar. passou o dorso de uma mão nos lábios, não em sinal de repulsa. Aparentemente, apenas tentava limpar os resquícios de segundos atrás.
― Isso… ― Alternou o dedo entre nós. ― Não é pra acontecer, não vai acontecer.
― Por quê? Se você não quer que role, por que passou as últimas duas noites por perto, dançando comigo? Você o trouxe, então, por que continua aqui comigo?
― Você quer saber se eu senti isso que você sentiu? ― Arqueou uma sobrancelha, olhando para as minhas calças, onde o volume do meu pau marcava levemente. Trocamos um sorriso. Antes de voltar a falar, passou a língua pelos lábios devagar. Ou eu que vi o movimento em slow motion. ― É, eu senti, sim. Esse fogo, esse calor, o tesão.
― Então, eu tô solteiro… você também… ― deixei no ar.
Pôs a mão no meu rosto, acariciando minha bochecha com o dedão.
― Só que realmente estou gostando do Hari. Não é amor ainda, mas eu estou envolvida e quero experimentar isso. Quero sentir como é gostar de uma pessoa que não é você, que não tenha passado pelas coisas que a gente passou, juntos ou individualmente. Eu não sei se tem futuro, se vai virar um namoro ou algo além, mas quero saber como é antes de dizer que não vale a pena.
Ajeitando os lados de seu cabelo atrás de sua orelha, segurei seu rosto entre minhas mãos, acariciando-o por alguns segundos. Como um gato que implora por carinho, esfregou o rosto em minhas palmas, cobrindo uma das minhas mãos com a sua.
― Nós vivemos tantas coisas, boas e ruins. Mas ainda não chegamos onde deveríamos chegar, onde queríamos chegar. Então, se resolvêssemos ficar juntos agora, talvez fosse como jogar todo avanço fora sem chegar ao objetivo.
True Love Waits é uma das minhas músicas preferidas porque sempre acreditei que o amor pode esperar e durar pelo tempo que for. Aliás, eu vi isso acontecer inúmeras vezes ao meu redor. Mas, atualmente, acho que a faceta mais forte do amor é aquela que abre mão, deixa ir. Nem todo mundo tem essa coragem ― conclui, mais para mim que para ela. ― Pode parecer deboche ou brincadeira vindo da pessoa que estava te beijando há alguns minutos, mas eu te desejo toda a felicidade do mundo. Que ele consiga te dar tudo que eu não dei, seja porque fui um idiota ou porque não tive tempo de fazê-lo. Você merece todas as coisas boas desse mundo, , inclusive, uma relação saudável com alguém que te proporcione estabilidade. ― Beijei sua testa.
Soltando-a, me encarou por mais alguns minutos antes de dar os primeiros passos rumo à porta da sala, por onde voltaria para dentro da casa.
? ― chamei-a uma última vez.
Virando somente o tronco, não tinha a menor intenção de ficar mais tempo comigo, apenas ouvir o que eu tinha a lhe dizer.
― Você pode não saber disso ou nem ligar, mas continua sendo uma das minhas pessoas favoritas no mundo inteiro.
― Aposto que estou perdendo para o George. ― Trocamos um sorriso.
Na verdade, os momentos mais felizes da minha vida sempre foram ao seu lado. George estava apenas aquecendo um lugar que era e sempre vai ser seu. Ao não ouvir uma resposta da minha parte, a mulher retomou sua caminhada, entrou na casa e desapareceu ao fechar as cortinas.
Pouco mais de uma hora após ter ficado sozinho novamente, resolvi que era hora de ir para o meu quarto. Antes, passei pela cozinha para beber um copo de água, em seguida, subi para o andar superior e entrei no corredor onde havia me hospedado.
De frente para a porta do meu dormitório, barulhos muito singelos chamaram a minha atenção e, automaticamente, virei para trás. A cena com a qual me deparei fez meu coração acelerar, não sei por nervosismo ou de angústia. Talvez um misto dos dois.
A porta do quarto à frente estava entreaberta, apenas uma pequena fresta mostrava o que produzia os breves ruídos: , com somente parte das costas cobertas pelo que parecia uma camisa branca, sentada e movendo-se, provavelmente, sobre Hari.
Embora a porta estivesse brevemente aberta, sabia que aquele não era o tipo de coisa que eu deveria assistir, por isso, entrei no meu quarto o mais rápido possível e tentei enganar a mim mesmo, dizendo que não havia nada demais, que, ao olhar para o cômodo, não vi nada, apenas sombras.


Continua...



Nota da autora: Eu achava que ia conseguir enviar esse antes de completar um mês sem att, mas falhei de novo, errei fui moleca :P Mas veio aí, né? Isso que importa!!
Espero que tenham aproveitado muito esse capítulo, pois é um dos meus preferidos dessa fic, me senti um pouquinho leitora enquanto revisava ele e quase desmaiava em algumas frases kkkkkkkkk
Beijos ;*


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