Capítulo 1
11 de Julho de 2016 – Los Angeles, Califórnia, EUA
– Bem vindos à Los Angeles. São dez e trinta e cinco, horário local. Por medidas de segurança, permaneçam sentados com os cintos afivelados até que os sinais luminosos tenham sido apagados.
guardou o livro que fingia ler ao longo das últimas horas e esperou até que a grande maioria dos passageiros já tivessem saído do avião para só então se levantar, evitando o tumulto. Evitando, também, colocar os pés no primeiro dos dias que estavam por vir.
Percorrendo seu caminho pelo aeroporto, não conseguiu se lembrar de qual havia sido a última vez em que vira a si mesma tão hesitante. Pequena e impotente, pensou que aquela deveria ser exatamente a sensação de uma criança que perde-se dos pais em um supermercado.
Usou o espelho do banheiro para desembaraçar os cabelos e treinar alguns sorrisos. Precisaria de muitos, mesmo que pouco verossímeis.
Lembrou-se da mensagem de . O que não era algo novo dentro daquelas horas todas desde seu embarque, no dia anterior. “Boa viagem, espero por você no estacionamento. Xx”. E ela havia decorado, o que considerou patético.
Guiando-se pelas placas informativas, sentia que seus joelhos cederiam a qualquer momento na tentativa de um novo passo. Elaborou novos discurso do que diria à quando o encontrasse – dois anos e meio depois de tê-lo visto pessoalmente pela última vez.
Aquelas conversas eventuais por telefone, preferia desconsiderá-las. Serviam apenas para que se lembrasse do quanto haviam passado de grandes amigos a conhecidos de longa data. Do familiar “hey, o que fez ontem”, direto ao desleixado “como andam as coisas?”, de quem não sabe ao certo sobre o que está perguntando.
Não fosse pelo pequeno cartaz que dizia “Welcome Poopface”, provavelmente não o teria percebido, encostado no corrimão daquela escada rolante. Grandes óculos de sol. Grande sorriso também. Sua imagem, tal como esperava, estava muito distante da que ela tinha de seu melhor amigo.
a puxou pra perto num abraço forte logo que a teve ao seu alcance. Saudoso e cheio de um calor que não pensava combinar com a relação que tinham agora. Seu abraço, que algum dia havia sido sinônimo de casa, de repente fazia com que ela se sentisse ainda mais deslocada.
– Você cortou o cabelo... – comentou, soltando as mechas que estavam presas atrás da orelha de . Ela flagrou a si mesma questionando qual era a diferença entre eles que fazia com que ficasse à vontade o suficiente para mexer em seu cabelo e ela fosse pura inquietação com a simples menção de seu nome. Ela sabia qual era a resposta, mas não estava disposta enfrentá-la.
– Você também! – costumava usar os cabelos menos curtos e tão menos organizados que seu novo penteado parecia nada mais que uma provocação, como se quisesse testar quanto tempo levaria até disparar uma piada a respeito.
– Como foi sua viagem?
não entendia de carros e pouco fazia questão de reconhecê-los. Tudo o que sabia, no momento em que acomodou-se no assento do passageiro, era que aquele carro no qual entraram, desde o modelo até o cheiro do estofado de couro, em nada se parecia com a Chevy Truck 70 que havia herdado de seu avô. A grande cúmplice de todas aquelas noites desregradas de anos atrás.
Costumavam ouvir Rock – do clássico ao punk e, apesar dos protestos de , gostava de aventurar-se no Folk vez ou outra. Talvez por isso ela tenha estranhado o pop romântico que tocou no caminho entre o aeroporto e o bistrô onde foram almoçar. “Carro da Mad”, esclareceu, como se pudesse ouvir seus questionamentos internos. “ da Mad”, concluiu sem dizer nenhuma palavra.
27 de Agosto de 1999 – Sheffield, South Yorkshire, UK
No intervalo entre uma música e outra, ouviu os passos pesados de seu pai, atravessando o corredor em frente ao seu quarto. Ele parecia apressado, considerou o menino. Tratou de livrar-se do headphone e escondê-lo junto ao Discman sob seu cobertor, temendo ser flagrado ainda acordado tarde da noite.
Logo que ouviu a mãe percorrer o mesmo caminho, saltou de sua cama. Enfiou a cabeça para fora do quarto a tempo de ouvir a porta bater no andar de baixo. Confuso, começou a dar-se conta da movimentação estranha na rua.
Através da janela, seus olhos assustados encontraram em chamas uma das casas do quarteirão. Os vizinhos todos se reuniram para observar os bombeiros. pensou que eles gritavam mais do que trabalhavam. “Afastem, afastem, afastem”, era o que diziam, distraindo-se do principal objetivo – apagar o fogo que parecia cada vez mais intenso.
Depois dos primeiros minutos de horror, apressou-se para encontrar com os pais do lado de fora. Stella, sua mãe, pediu que ele entrasse, daquele jeito automático que costumava fazer. Ele ficou.
Ninguém parecia comovido, pensou. Não verdadeiramente comovidos. Talvez porque fossem os vizinhos novos, haviam se mudado há menos de duas semanas e ninguém tinha se dado o trabalho de conhecê-los melhor. Talvez porque não afetasse diretamente a ninguém, exceto pelos proprietários da casa.
A equipe de bombeiros finalmente conseguiu organizá-los em uma linha horizontal, do lado contrário do incêndio, onde pudessem assistir sem correr grandes riscos.
Logo ao lado da família , estava a família – um casal de jovens e uma menina que imaginou ter sua idade. Estranhou, porém, que seus pais parecessem tão mais novos que os dele, numa análise rápida e irrelevante.
Todos os três choravam, ignorando as palavras vazias da senhora Harrison – a mais antiga moradora do bairro. Uma mulher que era rica e arrogante na mesma proporção.
observou, com curiosidade, o rosto lívido da mais nova e, movido por aquela empatia que aparentemente nasceu com ele, acercou-se alguns passos. Depois mais alguns. Podia ouvir os sussurros contrariados da mãe, para que voltasse, temendo que sua aproximação fosse indelicada. tinha para si a certeza de que indelicado mesmo seria não prestar qualquer tipo de apoio.
– Oi... – Ele disparou para a garota, sem saber ao certo o que dizer. Os olhos dela, brilhando em lágrimas, deixaram de refletir as chamas para, aos poucos, observarem o rosto de menino. – Meu nome é .
– , venha! – Stella chamou, dessa vez mais dura. – Sinto muito! Eu sinto muito mesmo! – Soprou aos vizinhos, puxando o filho pelo braço. – Sou Stella, e aquele é meu marido, Robert... Moramos naquela casa, logo ali! Se precisarem de qualquer coisa, por favor, nos deixem saber! O que estiver em nosso alcance, iremos ajudar... – O casal maneou a cabeça num aceno atordoado. Não para menos, pensou , depois da verborragia de sua mãe.
– Obrigada... – Agradeceu a mulher, olhos e voz instáveis. – Sou Martha, esse é Lucian... Essa é ! – E com as mãos nos ombros miúdos da filha, abaixou-se até que seu rosto alcançasse o dela. – Por que você não vai brincar com o ?
– Eu não quero brincar! – disse, soando contrariada. Era óbvio que não queria brincar.
– Quer ir pra casa, ? – Stella sugeriu, hesitante. – faz o melhor chocolate quente do mundo. – O menino rolou os olhos com o elogio injustificável. A mãe nunca sequer havia tomado seu chocolate quente.
– Não acho que você possa recusar algo assim... – Martha murmurou contra a bochecha de , um sorriso preocupado nos lábios. – É chocolate quente...
– O que vamos fazer depois? – perguntou, os olhos fixos naquela que agora se parecia muito pouco com a casa onde viveram os últimos dias. Martha e Lucian pensaram que aquela não deveria ser a preocupação de uma criança de 11 anos.
– Não pense nisso, meu amor... – Martha pediu e usou os dedos trêmulos para enxugar as lágrimas da filha. – Papai e eu vamos resolver tudo.
enterrou as mãos no bolso de seu moletom e caminhou ao lado da menina. Parou a mesma quantidade de vezes que ela o fez, hesitando deixar para trás sua família e o desastre que também a envolvia. Pacientemente, esperava até que ela voltasse a andar e, de pouquinho em pouquinho, chegaram ao seu destino.
não tinha muitos amigos e não se lembrava de nenhum que alguma vez tivesse vindo até sua casa. Pensou muito rapidamente no que poderia fazer para deixá-la confortável, mas seu próprio desconforto parecia muito maior que o dela. caminhou distraidamente pelo hall, encolhida dentro de seu pijama de inverno, parecendo ainda menor e mais frágil com as luzes acesas.
pensou se deveria deixá-la entrar em seu quarto. Não era muito agradável para ele a ideia de ter alguém por lá, gostava de pensar que toda sua privacidade estava concentrada naquele cômodo, espalhada por entre cada um dos itens. Era uma versão materializada de si mesmo e não sabia se estava disposto a deixar alguém que acabara de conhecer vê-lo tão de perto. “E além do mais, ela é uma garota”, pensou.
– Vem, hm... Meu quarto é por aqui.
Ele deixou que entrasse primeiro e, raro que fosse, não fechou a porta atrás de si. Assistiu enquanto ela passeava pelo cômodo. Os olhos, apesar de inchados, já não transbordavam e observaram pacientemente os pôsteres que cobriam as paredes. Demorou-se ao chegar nos livros, uma pequena coleção enfileirada na prateleira em cima da escrivaninha.
, ainda um tanto inseguro com a presença dela, ajoelhou-se no canto do quarto para ligar a vitrola. Correu os dedos pela familiar série de discos, a grande maioria enviada pelo tio que morava em Londres. Puxou o White Album dos Beatles, era provavelmente o que mais se orgulhava, embora tivesse sido comprado já usado e fosse o mais gasto dentre todos.
se acercou e sentou-se do outro lado da vitrola, sobre uma das grandes almofadas coloridas que Robert havia trazido de uma de suas viagens à York. passava quase todo o seu tempo livre naquele canto do quarto e desejou que pudesse sentir parte do aconchego que ele sentia.
Pediu que ela esperasse por ali antes de descer até a cozinha e preparar o chocolate quente. Stella havia lhe ensinado quando completou dez anos. “Agora já tem idade para isso”, ela justificou. Mas a verdade é que, dois anos atrás, ainda trabalhava como enfermeira plantonista e eram raras as noites em que conseguia colocá-lo na cama. Na grande maioria, o “boa noite” era dado por telefone, sem história ou canção de ninar. Então aprendeu a ler, depois a fazer seu próprio leite.
Da porta do quarto, observou . Sua cabeça encostada na parede e os olhos fechados o fizeram acreditar que ela pudesse ter pego no sono enquanto ouvia Dear Prudence. Ele pensou, por um breve instante, que parecia combinar com seu quarto.
Bastou que se aproximasse alguns passos para que ela abrisse os olhos, menos vermelhos agora.
entregou uma caneca a ela e acomodou-se por perto, mas nunca tão perto, porque não lidava bem com a ideia de ter contato com desconhecidos.
– Você gosta de Beatles? – Ele perguntou, porque achou que ela poderia estar pensando em infortúnios, se sim, talvez pudesse distraí-la.
– Minha mãe gosta... – não sabia se gostava, nunca tinha parado para pensar sobre. – Mas ela diz que o John Lennon era um exibido... – , que estava soprando seu chocolate quente, deixou escapar uma risada esquisita. Suas bochechas coraram.
– Você tem quantos anos?
– 11... E você? – ergueu os olhos na direção de , curiosa.
– 12.
– Você tem livros legais...
E enquanto a casa da família se desfazia em cinzas, e construíam algo novo. O que poderia parecer estranho, levando em consideração a dificuldade que ambos tinham, cada um a sua maneira, de fazer amizades ou estabelecer qualquer tipo de vínculo. Mas não sentiam-se estranhos. Pareceu, para os dois, a coisa mais natural do mundo. Daquele pequeno mundo que inventaram só para eles a partir daquele dia.
Martha e Lucian passaram para buscar quando o dia já estava por amanhecer. Enrolada no casaco de seu pai, despediu-se de Stella e Robert, depois de . Esperou pelos pais no meio fio, observando o monte de nada que estava no lugar de sua antiga casa. Ainda havia fumaça e curiosos por toda parte.
– Hm, ... – chamou e ela olhou pra trás a tempo de vê-lo espremer-se entre os pais na porta e correr em direção à ela. – Hm... Fique com esse... – E esticou um livro da Agatha Christie, que em meio à conversa que tiveram mais cedo, ela contou nunca ter lido.
– Obrigada, . – Ela segurou o livro contra o peito e mordiscou a parte interna de sua bochecha, pensando se deveria dizer qualquer coisa.
– Eu anotei meu telefone dentro... – contou e enterrou as mãos no bolso de seu moletom. – Hm... Minha mãe me leva sempre na loja de música, podemos passar para buscar você qualquer dia desses.
– Eu te ligo.
era, ainda hoje, a única boa lembrança que tinha daquela noite.
E talvez por isso tenha relido tantas vezes a pequena dedicatória que ele havia escrito, fazendo referência à Blackbird, com a caligrafia infantil e torta, no verso da folha de rosto. “Pegue essas asas quebradas e aprenda a voar”, dizia, assinando o próprio nome e deixando, logo abaixo, o telefone de sua casa.
não tinha certeza de que algum dia teria coragem de ligar.
Ela teve.
– Bem vindos à Los Angeles. São dez e trinta e cinco, horário local. Por medidas de segurança, permaneçam sentados com os cintos afivelados até que os sinais luminosos tenham sido apagados.
guardou o livro que fingia ler ao longo das últimas horas e esperou até que a grande maioria dos passageiros já tivessem saído do avião para só então se levantar, evitando o tumulto. Evitando, também, colocar os pés no primeiro dos dias que estavam por vir.
Percorrendo seu caminho pelo aeroporto, não conseguiu se lembrar de qual havia sido a última vez em que vira a si mesma tão hesitante. Pequena e impotente, pensou que aquela deveria ser exatamente a sensação de uma criança que perde-se dos pais em um supermercado.
Usou o espelho do banheiro para desembaraçar os cabelos e treinar alguns sorrisos. Precisaria de muitos, mesmo que pouco verossímeis.
Lembrou-se da mensagem de . O que não era algo novo dentro daquelas horas todas desde seu embarque, no dia anterior. “Boa viagem, espero por você no estacionamento. Xx”. E ela havia decorado, o que considerou patético.
Guiando-se pelas placas informativas, sentia que seus joelhos cederiam a qualquer momento na tentativa de um novo passo. Elaborou novos discurso do que diria à quando o encontrasse – dois anos e meio depois de tê-lo visto pessoalmente pela última vez.
Aquelas conversas eventuais por telefone, preferia desconsiderá-las. Serviam apenas para que se lembrasse do quanto haviam passado de grandes amigos a conhecidos de longa data. Do familiar “hey, o que fez ontem”, direto ao desleixado “como andam as coisas?”, de quem não sabe ao certo sobre o que está perguntando.
Não fosse pelo pequeno cartaz que dizia “Welcome Poopface”, provavelmente não o teria percebido, encostado no corrimão daquela escada rolante. Grandes óculos de sol. Grande sorriso também. Sua imagem, tal como esperava, estava muito distante da que ela tinha de seu melhor amigo.
a puxou pra perto num abraço forte logo que a teve ao seu alcance. Saudoso e cheio de um calor que não pensava combinar com a relação que tinham agora. Seu abraço, que algum dia havia sido sinônimo de casa, de repente fazia com que ela se sentisse ainda mais deslocada.
– Você cortou o cabelo... – comentou, soltando as mechas que estavam presas atrás da orelha de . Ela flagrou a si mesma questionando qual era a diferença entre eles que fazia com que ficasse à vontade o suficiente para mexer em seu cabelo e ela fosse pura inquietação com a simples menção de seu nome. Ela sabia qual era a resposta, mas não estava disposta enfrentá-la.
– Você também! – costumava usar os cabelos menos curtos e tão menos organizados que seu novo penteado parecia nada mais que uma provocação, como se quisesse testar quanto tempo levaria até disparar uma piada a respeito.
– Como foi sua viagem?
não entendia de carros e pouco fazia questão de reconhecê-los. Tudo o que sabia, no momento em que acomodou-se no assento do passageiro, era que aquele carro no qual entraram, desde o modelo até o cheiro do estofado de couro, em nada se parecia com a Chevy Truck 70 que havia herdado de seu avô. A grande cúmplice de todas aquelas noites desregradas de anos atrás.
Costumavam ouvir Rock – do clássico ao punk e, apesar dos protestos de , gostava de aventurar-se no Folk vez ou outra. Talvez por isso ela tenha estranhado o pop romântico que tocou no caminho entre o aeroporto e o bistrô onde foram almoçar. “Carro da Mad”, esclareceu, como se pudesse ouvir seus questionamentos internos. “ da Mad”, concluiu sem dizer nenhuma palavra.
27 de Agosto de 1999 – Sheffield, South Yorkshire, UK
No intervalo entre uma música e outra, ouviu os passos pesados de seu pai, atravessando o corredor em frente ao seu quarto. Ele parecia apressado, considerou o menino. Tratou de livrar-se do headphone e escondê-lo junto ao Discman sob seu cobertor, temendo ser flagrado ainda acordado tarde da noite.
Logo que ouviu a mãe percorrer o mesmo caminho, saltou de sua cama. Enfiou a cabeça para fora do quarto a tempo de ouvir a porta bater no andar de baixo. Confuso, começou a dar-se conta da movimentação estranha na rua.
Através da janela, seus olhos assustados encontraram em chamas uma das casas do quarteirão. Os vizinhos todos se reuniram para observar os bombeiros. pensou que eles gritavam mais do que trabalhavam. “Afastem, afastem, afastem”, era o que diziam, distraindo-se do principal objetivo – apagar o fogo que parecia cada vez mais intenso.
Depois dos primeiros minutos de horror, apressou-se para encontrar com os pais do lado de fora. Stella, sua mãe, pediu que ele entrasse, daquele jeito automático que costumava fazer. Ele ficou.
Ninguém parecia comovido, pensou. Não verdadeiramente comovidos. Talvez porque fossem os vizinhos novos, haviam se mudado há menos de duas semanas e ninguém tinha se dado o trabalho de conhecê-los melhor. Talvez porque não afetasse diretamente a ninguém, exceto pelos proprietários da casa.
A equipe de bombeiros finalmente conseguiu organizá-los em uma linha horizontal, do lado contrário do incêndio, onde pudessem assistir sem correr grandes riscos.
Logo ao lado da família , estava a família – um casal de jovens e uma menina que imaginou ter sua idade. Estranhou, porém, que seus pais parecessem tão mais novos que os dele, numa análise rápida e irrelevante.
Todos os três choravam, ignorando as palavras vazias da senhora Harrison – a mais antiga moradora do bairro. Uma mulher que era rica e arrogante na mesma proporção.
observou, com curiosidade, o rosto lívido da mais nova e, movido por aquela empatia que aparentemente nasceu com ele, acercou-se alguns passos. Depois mais alguns. Podia ouvir os sussurros contrariados da mãe, para que voltasse, temendo que sua aproximação fosse indelicada. tinha para si a certeza de que indelicado mesmo seria não prestar qualquer tipo de apoio.
– Oi... – Ele disparou para a garota, sem saber ao certo o que dizer. Os olhos dela, brilhando em lágrimas, deixaram de refletir as chamas para, aos poucos, observarem o rosto de menino. – Meu nome é .
– , venha! – Stella chamou, dessa vez mais dura. – Sinto muito! Eu sinto muito mesmo! – Soprou aos vizinhos, puxando o filho pelo braço. – Sou Stella, e aquele é meu marido, Robert... Moramos naquela casa, logo ali! Se precisarem de qualquer coisa, por favor, nos deixem saber! O que estiver em nosso alcance, iremos ajudar... – O casal maneou a cabeça num aceno atordoado. Não para menos, pensou , depois da verborragia de sua mãe.
– Obrigada... – Agradeceu a mulher, olhos e voz instáveis. – Sou Martha, esse é Lucian... Essa é ! – E com as mãos nos ombros miúdos da filha, abaixou-se até que seu rosto alcançasse o dela. – Por que você não vai brincar com o ?
– Eu não quero brincar! – disse, soando contrariada. Era óbvio que não queria brincar.
– Quer ir pra casa, ? – Stella sugeriu, hesitante. – faz o melhor chocolate quente do mundo. – O menino rolou os olhos com o elogio injustificável. A mãe nunca sequer havia tomado seu chocolate quente.
– Não acho que você possa recusar algo assim... – Martha murmurou contra a bochecha de , um sorriso preocupado nos lábios. – É chocolate quente...
– O que vamos fazer depois? – perguntou, os olhos fixos naquela que agora se parecia muito pouco com a casa onde viveram os últimos dias. Martha e Lucian pensaram que aquela não deveria ser a preocupação de uma criança de 11 anos.
– Não pense nisso, meu amor... – Martha pediu e usou os dedos trêmulos para enxugar as lágrimas da filha. – Papai e eu vamos resolver tudo.
enterrou as mãos no bolso de seu moletom e caminhou ao lado da menina. Parou a mesma quantidade de vezes que ela o fez, hesitando deixar para trás sua família e o desastre que também a envolvia. Pacientemente, esperava até que ela voltasse a andar e, de pouquinho em pouquinho, chegaram ao seu destino.
não tinha muitos amigos e não se lembrava de nenhum que alguma vez tivesse vindo até sua casa. Pensou muito rapidamente no que poderia fazer para deixá-la confortável, mas seu próprio desconforto parecia muito maior que o dela. caminhou distraidamente pelo hall, encolhida dentro de seu pijama de inverno, parecendo ainda menor e mais frágil com as luzes acesas.
pensou se deveria deixá-la entrar em seu quarto. Não era muito agradável para ele a ideia de ter alguém por lá, gostava de pensar que toda sua privacidade estava concentrada naquele cômodo, espalhada por entre cada um dos itens. Era uma versão materializada de si mesmo e não sabia se estava disposto a deixar alguém que acabara de conhecer vê-lo tão de perto. “E além do mais, ela é uma garota”, pensou.
– Vem, hm... Meu quarto é por aqui.
Ele deixou que entrasse primeiro e, raro que fosse, não fechou a porta atrás de si. Assistiu enquanto ela passeava pelo cômodo. Os olhos, apesar de inchados, já não transbordavam e observaram pacientemente os pôsteres que cobriam as paredes. Demorou-se ao chegar nos livros, uma pequena coleção enfileirada na prateleira em cima da escrivaninha.
, ainda um tanto inseguro com a presença dela, ajoelhou-se no canto do quarto para ligar a vitrola. Correu os dedos pela familiar série de discos, a grande maioria enviada pelo tio que morava em Londres. Puxou o White Album dos Beatles, era provavelmente o que mais se orgulhava, embora tivesse sido comprado já usado e fosse o mais gasto dentre todos.
se acercou e sentou-se do outro lado da vitrola, sobre uma das grandes almofadas coloridas que Robert havia trazido de uma de suas viagens à York. passava quase todo o seu tempo livre naquele canto do quarto e desejou que pudesse sentir parte do aconchego que ele sentia.
Pediu que ela esperasse por ali antes de descer até a cozinha e preparar o chocolate quente. Stella havia lhe ensinado quando completou dez anos. “Agora já tem idade para isso”, ela justificou. Mas a verdade é que, dois anos atrás, ainda trabalhava como enfermeira plantonista e eram raras as noites em que conseguia colocá-lo na cama. Na grande maioria, o “boa noite” era dado por telefone, sem história ou canção de ninar. Então aprendeu a ler, depois a fazer seu próprio leite.
Da porta do quarto, observou . Sua cabeça encostada na parede e os olhos fechados o fizeram acreditar que ela pudesse ter pego no sono enquanto ouvia Dear Prudence. Ele pensou, por um breve instante, que parecia combinar com seu quarto.
Bastou que se aproximasse alguns passos para que ela abrisse os olhos, menos vermelhos agora.
entregou uma caneca a ela e acomodou-se por perto, mas nunca tão perto, porque não lidava bem com a ideia de ter contato com desconhecidos.
– Você gosta de Beatles? – Ele perguntou, porque achou que ela poderia estar pensando em infortúnios, se sim, talvez pudesse distraí-la.
– Minha mãe gosta... – não sabia se gostava, nunca tinha parado para pensar sobre. – Mas ela diz que o John Lennon era um exibido... – , que estava soprando seu chocolate quente, deixou escapar uma risada esquisita. Suas bochechas coraram.
– Você tem quantos anos?
– 11... E você? – ergueu os olhos na direção de , curiosa.
– 12.
– Você tem livros legais...
E enquanto a casa da família se desfazia em cinzas, e construíam algo novo. O que poderia parecer estranho, levando em consideração a dificuldade que ambos tinham, cada um a sua maneira, de fazer amizades ou estabelecer qualquer tipo de vínculo. Mas não sentiam-se estranhos. Pareceu, para os dois, a coisa mais natural do mundo. Daquele pequeno mundo que inventaram só para eles a partir daquele dia.
Martha e Lucian passaram para buscar quando o dia já estava por amanhecer. Enrolada no casaco de seu pai, despediu-se de Stella e Robert, depois de . Esperou pelos pais no meio fio, observando o monte de nada que estava no lugar de sua antiga casa. Ainda havia fumaça e curiosos por toda parte.
– Hm, ... – chamou e ela olhou pra trás a tempo de vê-lo espremer-se entre os pais na porta e correr em direção à ela. – Hm... Fique com esse... – E esticou um livro da Agatha Christie, que em meio à conversa que tiveram mais cedo, ela contou nunca ter lido.
– Obrigada, . – Ela segurou o livro contra o peito e mordiscou a parte interna de sua bochecha, pensando se deveria dizer qualquer coisa.
– Eu anotei meu telefone dentro... – contou e enterrou as mãos no bolso de seu moletom. – Hm... Minha mãe me leva sempre na loja de música, podemos passar para buscar você qualquer dia desses.
– Eu te ligo.
era, ainda hoje, a única boa lembrança que tinha daquela noite.
E talvez por isso tenha relido tantas vezes a pequena dedicatória que ele havia escrito, fazendo referência à Blackbird, com a caligrafia infantil e torta, no verso da folha de rosto. “Pegue essas asas quebradas e aprenda a voar”, dizia, assinando o próprio nome e deixando, logo abaixo, o telefone de sua casa.
não tinha certeza de que algum dia teria coragem de ligar.
Ela teve.
Capítulo 2
11 de Julho de 2016 – Los Angeles, Califórnia, EUA
– Bom! – levantou-se da cama e levou as mãos na cintura enquanto caminhava em direção à porta. – Vou deixar você descansar. Qualquer coisa que precisar, eu estou no quarto do fim do corredor...
– Hm, ok... – A última vez que se sentira tão desconfortável foi provavelmente em seu primeiro dia de trabalho anos atrás.
– Ah! – exclamou, parecendo ter se lembrado de algo. Puxou do bolso de trás de seu jeans um pequeno envelope. – Eu comprei um Sim Card da T-Mobile caso você precise usar seu celular...
– Obrigada, , não precisava se preocupar... – Ele não respondeu, porque aquela cortesia e formalidade não tinham nada a ver com .
– O wifi tá liberado, também... É só conectar... – E com um sorriso que dizia muito sobre como estava se sentindo malquisto naquele momento, segurou a maçaneta da porta. – Bom descanso, .
– Obrigada!
sentou-se na beirada do que seria sua cama pelos próximos dias. A colcha branca exalou um perfume adocicado e enjoativo, com o qual ela teria que se acostumar. Observou, com olhos cheios de enfado, o papel de parede nude coberto com flores-de-lis num tom mais escuro. Combinava com o estofado quase dourado da poltrona no canto e do banco nos pés da cama.
Deixou o corpo cair contra o colchão, perturbada com a imagem que fantasiou de passeando pela mansão campestre dos sogros, conversando com a noiva. “Flor-de-lis, legal!”, ele diria, “móveis coloniais, que demais!”.
O babaca que nunca passou pela cabeça de que ele poderia se tornar. O babaca sobre quem teria feito piadas e poesias irônicas alguns anos atrás.
Um “toc toc” muito sutil fez com que ela erguesse a cabeça. Teve a impressão de que tinha cochilado, mas não conseguiu ter certeza. Encontrou Madson espremida em uma fresta da porta. Não a conhecia pessoalmente, mas o convite de casamento vinha com uma enorme foto do casal, então não foi difícil reconhecê-la – mais alta do que tinha imaginado, cabelos longos e lisos num tom entre o loiro escuro e o castanho claro. Os olhos de um azul-céu e de uma felicidade que fizeram os de parecerem ainda mais melancólicos.
– Posso entrar?
– Claro, por favor!
– Que prazer, ! – E, ignorando a mão estendida da mesma, Madson a atraiu para um abraço. desejou que sua voz fosse irritante e que quando se dirigisse à ela soasse como uma traiçoeira de primeira. Madson soou tão agradável que sentiu-se a traiçoeira de primeira ali.
– O prazer é meu!
– Fiquei tão feliz quando soube que poderia finalmente te conhecer! – Confidenciou a noiva, com uma alegria genuína. – Era como se eu não conhecesse uma das partes mais importantes da vida de ... – torceu pra que não estivesse fazendo qualquer tipo de careta.
– Estou feliz pelo convite, Madson, obrigada! – E agradeceu internamente que não estivesse por perto. Ele certamente teria reconhecido tamanha lorota.
– Imagina, eu é que agradeço por você ter vindo! – A gratidão de Madson desceu arranhando a garganta de , queimando em seu estômago como se tivesse tomado uma dose de whisky barato. – Eu vou indo, assim você pode descansar da viagem... Qualquer coisa que precisar, por favor, me diga!
– Obrigada, Madson, não se preocupe! – E a outra ainda lhe sorriu mais uma vez antes de dirigir-se até a porta.
– Ah, ! Sei que está aqui pelo , mas hoje à noite eu e minhas madrinhas vamos ao centro da cidade... Algo parecido com uma despedida de solteira – e soltou um riso nasalado antes de continuar. – Seria muito legal se você fosse... De verdade.
– Seria ótimo, agradeço o convite... – E, para não parecer rude, acrescentou: – Se eu não estiver muito cansada, pode contar comigo.
Bastou que Madson sumisse de seu campo de visão para que voltasse para a cama, ainda menos disposta do que antes. “Ela deveria ser uma idiota”, pensou.
Em sua imaginação, iriam para essa despedida de solteira mais tarde, Madson beberia mais do que o suficiente, balbuciaria ao taxista o endereço de um clube de strip-tease, abriria sua carteira e suas pernas para um dos dançarinos, com quem terminaria aquela noite. contaria a , como a amiga honesta que costumava ser. Nada de casamento naquele fim de semana.
Com um desassossego que a fez sentir-se nauseada, constatou: “a idiota sou eu” por encontrar uma diversão perversa naquela fantasia, que ia contra absolutamente todas as convicções pelas quais lutava diariamente. Não tinha quaisquer razões para culpar ou punir Madson – ainda que fosse unicamente por meio de devaneios tolos. era quem a tinha deixado pra trás muito antes de conhecer sua futura esposa.
Quando acordou do sono que não pretendia dormir, já era tarde da noite. Depois de um banho quente, trocou seu SIM Card pelo que havia lhe comprado. O celular vibrou insistentemente. A primeira notificação era uma mensagem da operadora, agradecendo a preferência. Todas as outras eram de . “Está aí?”, “Escapou da despedida de solteira da Mad, lol”, “Quando ressuscitar desça até a cozinha, deixei comida pra você no micro-ondas”.
agora usava “lol” em suas mensagens.
Estava aliviada por Madson ter desistido de sua presença na despedida de solteira. Não ficaria à vontade para negar caso ela insistisse, mesmo sabendo do desconforto que esperava por ela naquela noite de “diversão” com a noiva de seu melhor amigo e suas madrinhas.
Estava aliviada, também, porque já era tarde e a possibilidade de não haver mais ninguém acordado era grande. Não queria plateia ao desfilar seu mau humor pela casa.
Enrolada em um cardigã muito grande para seu corpo, deixou o quarto. Seus olhos vagaram curiosos pelos quadros pendurados pelo corredor. Se tivessem sido pintados por crianças fariam, sem dúvida, mais sentido.
Sabia que estava sendo amarga, mas não podia evitar.
Seu estômago manifestou-se com fome quando chegou na cozinha. Tateou as paredes ao lado da porta na procura pelo interruptor. Apertou os dois botões na tentativa de descobrir qual acenderia a lâmpada que precisava. Um deles, porém, iluminou o jardim e ela rapidamente reconheceu a figura de , sentado nos degraus da varanda dos fundos.
Seu rosto voltou-se na direção dela com um sorriso tão familiar que, para , foi como voltar a dez anos atrás. Quando tinham 18 anos de juventude e esperança.
Agora, com 28, pouco restava das duas coisas.
– O que está fazendo aqui? – Ela perguntou, logo que abriu as portas de vidro.
– Fumando escondido... – Confidenciou, erguendo uma das mãos para mostrar o cigarro entre os dedos. – Você parou?
– Mais ou menos... – se aproximou alguns passos, sentando-se ao lado dele. – Ainda fumo quando bebo.
– E quanto você tem bebido? – soou brincalhão, arrancando o primeiro riso verdadeiro de desde que se viram mais cedo. – Como estão as coisas por lá?
– Está tudo bem... – O rapaz apenas concordou com a cabeça, observando o rosto pouco expressivo da amiga. Não sabia desde quando precisava que ela manifestasse seus sentimentos através do semblante, ele costumava decifrá-la melhor.
– Continua na editora?
– Não na mesma... – contou e ele sentiu falta de quando ela tagarelava sem parar. – Estou na Pennine agora.
– É mesmo? O que achou da mudança? – A moça deu de ombros e por um instante achou que essa era toda a sua resposta. Estava começando a incomodar-se quando ela retomou a fala.
– Foi bom... Ela é maior e automaticamente a demanda também é. – Comentou, menos indiferente do que pretendia. – Às vezes acabo levando trabalho pra casa, mas não é sempre... E você? Ainda na empresa do seu pai?
– Hm, sim... – Contou, seu tom de voz enfadonho tudo tinha a ver com a falta de novidade daquilo que dizia. – Estivemos estudando a possibilidade de começar algo na França, então eu estaria mais perto de casa... Mas agora tem todo esse problema com a Inglaterra deixando a União Européia e ainda não falei sobre isso com Madson.
Passou pela cabeça de uma discussão terrível entre e Madson. “Não podemos ir para a Europa, eu gosto daqui”, ela argumentaria, exaltada. “Precisamos ir, é meu emprego”, enfatizaria. “Vá sozinho, se é tão importante”. Ele iria.
– Ela é legal! – disparou, tentando se redimir, como se pudesse ter ouvido as irrealidades maléficas que pensava até então.
– Você parece surpresa... – Comentou com diversão. decidiu não responder. – Ela também gostou de você... Quer dizer, ela já gostava da minha versão de ... Até porque houve uma época em que você era legal de verdade, não é? – A moça esbarrou seu ombro no dele, um protesto silencioso, depois deixou que um riso discreto lhe escapasse.
– Bons tempos... – Disse bem baixinho, com medo de acordar a nostalgia e evocar lembranças que não estavam preparados para visitar.
– Os melhores.
12 de Abril de 2003 – Sheffield, South Yorkshire, UK
Os olhos de , escuros de raiva, focavam o portão da escola do outro lado do jardim. Sua meta diária, atravessá-lo o mais rápido que pudesse. O sangue havia fugido das juntas de seus dedos, que estavam agarrados com força nas alças de sua mochila. “A vai pentear seus cabelos, ?”, um deles dizia. “ e , melhores amigas para sempre”, acrescentava outro. “O é um cara meio estranho, ele pensa no Marvin durante o banho”, cantarolavam em coro.
, que costumava ser seu esconderijo favorito, naquele momento não passava de um suplício. Mas lá estava ela, no portão da escola, como todas as quartas. Sempre encolhida e assustada, como alguém que se vê pequena demais para um mundo tão grande. , de tão parecido, se flagrava incomodado.
– Você poderia ter ido direto para a loja... – Disparou ao passar por ela, sem parar para cumprimentá-la. sabia bem que o amigo era alvo de piadas desagradáveis na escola e até tinha ideia de que seu nome era citado por serem muito próximos, mas não sabia até que ponto. Até aquele dia.
– Eu sempre venho até aqui. – Comentou, tentando alcançá-lo – Não achei que fosse um problema.
– Hey, , pede para a te levar no salão, fazer suas unhas!
– e , best friends forever.
– Você deveria fazer alguma coisa... – sugeriu, acompanhando com dificuldade as passadas largas do amigo.
– O que você quer que eu faça?
– Primeiro, e mais importante, pare de agir como se a culpa fosse minha! – Estabeleceu a menina, parando no topo da escadaria do metrô. – Se quiser que eu vá embora, é só dizer... – interrompeu os próprios passos, dois degraus depois e, voltando-se para ela, esboçou um sorriso cansado.
– Me desculpa, vem... – Convidou, estendendo sua mão à . – Vamos, o Duran disse que hoje chegaria o novo álbum do Linkin Park... – Ele quis rir da expressão impaciente que a amiga adotou, mas reprimiu, com medo de piorar sua condição. – É meu aniversário, vamos lá!
– Ok, seja menos idiota, então! – Rendeu-se, enrolando os ombros do melhor amigo com seu braço, ele ria seu riso favorito.
– Eu prometo que vou tentar.
Poucas coisas sobreviveram ao incêndio – que naquele ano completaria seus quatro anos. Da estrutura da casa restaram algumas paredes, queimadas o suficiente para precisarem ser derrubadas. Dos móveis, apenas as pias de mármore. Nenhuma peça de roupa, nenhum par de calçados.
Martha ficou firme nos primeiros dias, mas chorou pelo próximo ano inteiro. Não lamentava tanto pelos itens que perderam, mas pelas histórias que contavam. As fotografias de , que costumavam ficar espalhadas por toda a casa, começaram a parecer uma memória muito distante, perdendo a nitidez, Martha temeu se esquecer de como era o rosto de quando um bebê. Nunca mais o veria outra vez.
Mudaram-se para uma nova casa, em um bairro menor e menos movimentado, depois de viverem três semanas no hotel. Depois Lucian mudou-se para Doncaster. Prometeu que as levaria consigo logo que estivesse estabilizado. Elas acreditaram, pois precisavam acreditar. Foi apenas uma das muitas promessas que ele não cumpriu dentro daqueles anos.
Entre as coisas que restaram daquela noite, a única que não estava trincada, queimada, cheirando a fumaça: e .
No início se falavam por telefone quase todos os dias. Adoráveis irrelevâncias. indicava leituras. indicava álbuns. Depois telefonavam para comentar o que tinham achado das sugestões. Voltaram a se ver no aniversário de , em Abril de 2000. E, depois disso, viam-se com frequência porque passou da escola primária para a secundária, e esta ficava a apenas 10 minutos da escola onde estudava.
Além disso, Robert levava até a casa de . E Martha levava até a casa de . Stella costumava levá-los à loja de música e às vezes ao cinema do centro. Esperava por eles do lado de fora.
Exceto por eles dois, todos confundiam a relação que tinham. Passaram por diversos períodos diferentes naqueles últimos tempos. chegou a evitá-la, quando começou a achar que ter amizade com meninas não era o que esperavam dele. Durou uma semana e nunca havia sentido falta de nada como havia sentido falta da gargalhada de . Mentiu que estava gripado e assim não teria que passar pelo constrangimento de admitir o verdadeiro motivo.
“Se achasse que está certo, não se envergonharia”, Stella aconselhou qualquer dia, enquanto o trazia de volta da loja de Duran, dessa vez sem . A mãe tinha razão, ele sabia, então ligou para a amiga tão logo que chegaram em casa.
Desde então viam-se quase todos os dias. Na maioria, passava pela escola de apenas para caminhar com ela até a estação de metrô, embora não pegassem o mesmo. Às vezes trocavam livros e CDs, às vezes só conversavam sobre qualquer coisa que fosse. Mas toda quarta-feira pegavam um transporte até o centro, para visitar a loja de música, pois era o dia que chegavam os novos álbuns. Raras as vezes em que de fato compravam algo, mas gostavam da oportunidade de sentar por lá e ouvir um pouco de música.
– Tenho duas novidades! – Duran, um cara de aproximadamente 35 anos que usava meias nos joelhos como um adolescente de 15, exclamou assim que e atravessaram a porta de entrada.
– Conte... – Pediu a moça, se debruçando sobre o balcão.
– Separei um CD do Linkin Park para vocês ouvirem... Ainda não coloquei preço para a venda, então não contem a ninguém... – Esclareceu, deslizando pelo balcão uma capa de acrílico com a capa de um CD qualquer. – E... Tah-dah! Chegaram os novos fones de ouvido! – Uma caixinha que cabia na palma da mão de , de onde ele retirou os fones auriculares presos em longos fios. – São ótimos, vocês deveriam comprar um e experimentar.
– Podemos experimentar antes de comprar? – perguntou, um tanto inseguro quanto à qualidade. – São muito pequenos, tem certeza de que são bons?
– Não posso deixar que enfiem meus fones novos nessas orelhas sujas, menino!
– Ah, cara... – lamentou e estendeu o fone de volta para Duran.
– Ok, me dá dois... – soprou, mesmo contrariada.
– ? – O amigo soava questionador e confuso, ela sorriu e lançou uma caixinha em sua direção.
– Feliz aniversário.
No segundo ambiente da loja, dois degraus acima do primeiro, haviam alguns instrumentos usados expostos para venda, fitas cassete que ninguém comprava, armários com discos de vinil antigos e uma TV com aparelho DVD, onde sempre estava passando alguns clipes no mudo. Em uma prateleira, Duran deixava alguns CD Players usados, comprava pela metade do preço e também aceitava como doação. Cobrava uma libra por duas horas de uso.
e tinham uma espécie de acordo com o dono da loja. Pagavam 3 libras pelo dia todo, desde que levassem os próprios headphones e um plug para duplicar a entrada de P2 e assim não precisassem usar dois CD Players. Não foi um problema.
pendurou sua jaqueta jeans no mancebo mal tingido de pink que Duran provavelmente estava tentando vender. Depois soltou-se ao lado de no puff, fazendo com que o corpo dela desse um solavanco para fora, direto ao chão. “Idiota!”, ela sufocou em meio a um riso incontido, voltando para seu lugar.
Embora as músicas do Meteora fossem uma novidade, nada mais o era. Dividiam sempre o mesmo puff e na grande maioria das vezes usavam o mesmo CD Player. E quase cochilava. E brincava com os pingentes de sua pulseira, como se estivesse vendo-os pela primeira vez quando na realidade saberia dizer até a ordem em que estavam pendurados.
– Minha mãe te convidou para jantar em casa... – propôs, guardando seu celular na mochila enquanto caminhavam para fora da loja. – Ela fez um bolo pra mim e disse que te leva pra casa depois.
– Hm, não vai dar, , desculpa... – lamentou, enterrando as mãos nos bolsos de seu sobretudo. – Prometi jantar com minha mãe hoje, ela está um pouco chateada, você sabe... – concordou com a cabeça, os cabelos na altura dos ombros caindo em seu rosto, enquanto observava a calçada por onde caminhavam lado a lado.
– Nós combinamos no fim de semana, então... – Sugeriu e seus olhos correram para o canto, observando-a sempre muito discretamente.
– Podíamos ir ao cinema... Ouvi dizer que o Odeon voltou a passar Réquiem Para Um Sonho.
– Não vão nos deixar entrar...
– Minha mãe pode ir com a gente, ela se responsabiliza pelo nosso trauma psicológico... – Brincou a garota, e riu, esbarrando seu ombro no dela.
– Combinado, poopface.
Para a ansiedade matinal era tão familiar quanto o som de seu despertador. Quanto o gosto das torradas, quase sempre tostadas demais. Quanto o perfume adocicado do carro da mãe, que vinha diretamente do creme com aroma de morango que ela usava nas mãos.
Do momento em que atravessou o portão da Notre Dame naquela manhã até chegar ao laboratório de Biologia, notou que algo novo havia acontecido. Os garotos que o seguiam pelos corredores tentando ofendê-lo ao supor que fossem gay – quando na verdade o que de fato incomodava era que considerassem essa uma ofensa –, estes mesmos garotos lhe lançaram sorrisos maliciosos e piadas novas, que ele não quis gastar seu tempo e sua energia tentando entender.
, que não levava muito jeito com pessoas e pouco fazia questão de tal, incomodou-se com a maneira curiosa com a qual os pequenos grupos de garotas o observavam passar, como se fosse um novato ou como se vissem nele algo que não tivessem reparado anteriormente. Por um instante foi atravessado pelo pensamento de que estava usando as roupas do avesso. Mas não estava.
– Sério? – Notou o burburinho de uma dupla de garotas, estavam sentadas na bancada ao lado e caso não quisessem que ele escutasse, teriam como evitar. – Os meninos dizem que ele é gay.
– mesma contou às amigas da Tapton... – A outra acrescentou mais baixo, ainda assim audível. – Disse que eles ficaram duas vezes e que foi ótimo.
O plano de parecia funcional para ela. Bastou uma mensagem no MSN da pessoa certa. “Por favor, Liz, não conte a ninguém... Eu e , sabe, ficamos”. Era o suficiente para que no mundo cheio de insignificâncias daqueles que o perturbavam passasse do idiota com uma melhor amiga para o cara descolado que transava casualmente.
Infelizmente, na prática, só houve um rearranjo de apelidos e canções provocativas.
E uma ligação extremamente irritada de seu melhor amigo.
“Por-que-você-fez-isso?”, ele exigia e todo o seu retorno era uma gargalhada cada vez mais divertida de . Ela podia imaginá-lo soprar todas aquelas palavras entre os dentes. “Você não entende! Não me importo que achem que sou gay, , isso não me ofende!" . Ela gostava de como lidava com as questões do mundo e lamentava por ele encontrar tamanha dificuldade em enfiar goela abaixo o preconceito alheio. “Mas agora você é o alvo e eu não sei se vou tolerar”, admitiu, o desespero pouco implícito.
“Não me importo, !”, garantiu, muito firme. “Digam o que quiserem, não muda nada pra mim, desde que não mude nada pra você”.
E era esse o motivo do desconforto de . Gostaria de poder assegurar que não tinha mudado nada. Não podia. Porque desde que teve acesso aos boatos daquele falso corrido, não conseguia parar de pensar em . Não da maneira como costumava – o que poderia estar fazendo e o que faria mais tarde. Se ela já tinha ouvido a música nova de alguma banda que costumavam gostar ou se queria um pouco dos shortbreads que Stella havia preparado.
Naquela tarde, enquanto caminhava sozinho até sua casa, pensou em como uma garota que havia crescido e que agora ficava à vontade para inventar que haviam estado juntos na tentativa de livrá-lo das situações embaraçosas. Se ao menos ela desconfiasse que embaraçoso mesmo era lidar com todas as coisas novas que acompanhavam o rumor. Os pensamentos e questionamentos, as fantasias que fizeram com que a evitasse pelos próximos dias todos.
Na sexta de madrugada, quando costumavam telefonar um na casa do outro e assistir “juntos” a qualquer filme que estivesse passando na TV, deu uma desculpa e desligou muito rápido.
No sábado, inventou um mal-estar e sabotou o cinema.
No domingo, mentiu que iria ao golfe com o pai.
Na segunda, fingiu esquecer de passar pela Tapton.
Na terça já tinha ido embora quando passou pela Notre Dame.
Na quarta, porém, sabia que não havia muito para onde correr.
E, curioso: em meio aos cinco graus Celsius daquela manhã, as mãos de não paravam de suar.
– Bom! – levantou-se da cama e levou as mãos na cintura enquanto caminhava em direção à porta. – Vou deixar você descansar. Qualquer coisa que precisar, eu estou no quarto do fim do corredor...
– Hm, ok... – A última vez que se sentira tão desconfortável foi provavelmente em seu primeiro dia de trabalho anos atrás.
– Ah! – exclamou, parecendo ter se lembrado de algo. Puxou do bolso de trás de seu jeans um pequeno envelope. – Eu comprei um Sim Card da T-Mobile caso você precise usar seu celular...
– Obrigada, , não precisava se preocupar... – Ele não respondeu, porque aquela cortesia e formalidade não tinham nada a ver com .
– O wifi tá liberado, também... É só conectar... – E com um sorriso que dizia muito sobre como estava se sentindo malquisto naquele momento, segurou a maçaneta da porta. – Bom descanso, .
– Obrigada!
sentou-se na beirada do que seria sua cama pelos próximos dias. A colcha branca exalou um perfume adocicado e enjoativo, com o qual ela teria que se acostumar. Observou, com olhos cheios de enfado, o papel de parede nude coberto com flores-de-lis num tom mais escuro. Combinava com o estofado quase dourado da poltrona no canto e do banco nos pés da cama.
Deixou o corpo cair contra o colchão, perturbada com a imagem que fantasiou de passeando pela mansão campestre dos sogros, conversando com a noiva. “Flor-de-lis, legal!”, ele diria, “móveis coloniais, que demais!”.
O babaca que nunca passou pela cabeça de que ele poderia se tornar. O babaca sobre quem teria feito piadas e poesias irônicas alguns anos atrás.
Um “toc toc” muito sutil fez com que ela erguesse a cabeça. Teve a impressão de que tinha cochilado, mas não conseguiu ter certeza. Encontrou Madson espremida em uma fresta da porta. Não a conhecia pessoalmente, mas o convite de casamento vinha com uma enorme foto do casal, então não foi difícil reconhecê-la – mais alta do que tinha imaginado, cabelos longos e lisos num tom entre o loiro escuro e o castanho claro. Os olhos de um azul-céu e de uma felicidade que fizeram os de parecerem ainda mais melancólicos.
– Posso entrar?
– Claro, por favor!
– Que prazer, ! – E, ignorando a mão estendida da mesma, Madson a atraiu para um abraço. desejou que sua voz fosse irritante e que quando se dirigisse à ela soasse como uma traiçoeira de primeira. Madson soou tão agradável que sentiu-se a traiçoeira de primeira ali.
– O prazer é meu!
– Fiquei tão feliz quando soube que poderia finalmente te conhecer! – Confidenciou a noiva, com uma alegria genuína. – Era como se eu não conhecesse uma das partes mais importantes da vida de ... – torceu pra que não estivesse fazendo qualquer tipo de careta.
– Estou feliz pelo convite, Madson, obrigada! – E agradeceu internamente que não estivesse por perto. Ele certamente teria reconhecido tamanha lorota.
– Imagina, eu é que agradeço por você ter vindo! – A gratidão de Madson desceu arranhando a garganta de , queimando em seu estômago como se tivesse tomado uma dose de whisky barato. – Eu vou indo, assim você pode descansar da viagem... Qualquer coisa que precisar, por favor, me diga!
– Obrigada, Madson, não se preocupe! – E a outra ainda lhe sorriu mais uma vez antes de dirigir-se até a porta.
– Ah, ! Sei que está aqui pelo , mas hoje à noite eu e minhas madrinhas vamos ao centro da cidade... Algo parecido com uma despedida de solteira – e soltou um riso nasalado antes de continuar. – Seria muito legal se você fosse... De verdade.
– Seria ótimo, agradeço o convite... – E, para não parecer rude, acrescentou: – Se eu não estiver muito cansada, pode contar comigo.
Bastou que Madson sumisse de seu campo de visão para que voltasse para a cama, ainda menos disposta do que antes. “Ela deveria ser uma idiota”, pensou.
Em sua imaginação, iriam para essa despedida de solteira mais tarde, Madson beberia mais do que o suficiente, balbuciaria ao taxista o endereço de um clube de strip-tease, abriria sua carteira e suas pernas para um dos dançarinos, com quem terminaria aquela noite. contaria a , como a amiga honesta que costumava ser. Nada de casamento naquele fim de semana.
Com um desassossego que a fez sentir-se nauseada, constatou: “a idiota sou eu” por encontrar uma diversão perversa naquela fantasia, que ia contra absolutamente todas as convicções pelas quais lutava diariamente. Não tinha quaisquer razões para culpar ou punir Madson – ainda que fosse unicamente por meio de devaneios tolos. era quem a tinha deixado pra trás muito antes de conhecer sua futura esposa.
Quando acordou do sono que não pretendia dormir, já era tarde da noite. Depois de um banho quente, trocou seu SIM Card pelo que havia lhe comprado. O celular vibrou insistentemente. A primeira notificação era uma mensagem da operadora, agradecendo a preferência. Todas as outras eram de . “Está aí?”, “Escapou da despedida de solteira da Mad, lol”, “Quando ressuscitar desça até a cozinha, deixei comida pra você no micro-ondas”.
agora usava “lol” em suas mensagens.
Estava aliviada por Madson ter desistido de sua presença na despedida de solteira. Não ficaria à vontade para negar caso ela insistisse, mesmo sabendo do desconforto que esperava por ela naquela noite de “diversão” com a noiva de seu melhor amigo e suas madrinhas.
Estava aliviada, também, porque já era tarde e a possibilidade de não haver mais ninguém acordado era grande. Não queria plateia ao desfilar seu mau humor pela casa.
Enrolada em um cardigã muito grande para seu corpo, deixou o quarto. Seus olhos vagaram curiosos pelos quadros pendurados pelo corredor. Se tivessem sido pintados por crianças fariam, sem dúvida, mais sentido.
Sabia que estava sendo amarga, mas não podia evitar.
Seu estômago manifestou-se com fome quando chegou na cozinha. Tateou as paredes ao lado da porta na procura pelo interruptor. Apertou os dois botões na tentativa de descobrir qual acenderia a lâmpada que precisava. Um deles, porém, iluminou o jardim e ela rapidamente reconheceu a figura de , sentado nos degraus da varanda dos fundos.
Seu rosto voltou-se na direção dela com um sorriso tão familiar que, para , foi como voltar a dez anos atrás. Quando tinham 18 anos de juventude e esperança.
Agora, com 28, pouco restava das duas coisas.
– O que está fazendo aqui? – Ela perguntou, logo que abriu as portas de vidro.
– Fumando escondido... – Confidenciou, erguendo uma das mãos para mostrar o cigarro entre os dedos. – Você parou?
– Mais ou menos... – se aproximou alguns passos, sentando-se ao lado dele. – Ainda fumo quando bebo.
– E quanto você tem bebido? – soou brincalhão, arrancando o primeiro riso verdadeiro de desde que se viram mais cedo. – Como estão as coisas por lá?
– Está tudo bem... – O rapaz apenas concordou com a cabeça, observando o rosto pouco expressivo da amiga. Não sabia desde quando precisava que ela manifestasse seus sentimentos através do semblante, ele costumava decifrá-la melhor.
– Continua na editora?
– Não na mesma... – contou e ele sentiu falta de quando ela tagarelava sem parar. – Estou na Pennine agora.
– É mesmo? O que achou da mudança? – A moça deu de ombros e por um instante achou que essa era toda a sua resposta. Estava começando a incomodar-se quando ela retomou a fala.
– Foi bom... Ela é maior e automaticamente a demanda também é. – Comentou, menos indiferente do que pretendia. – Às vezes acabo levando trabalho pra casa, mas não é sempre... E você? Ainda na empresa do seu pai?
– Hm, sim... – Contou, seu tom de voz enfadonho tudo tinha a ver com a falta de novidade daquilo que dizia. – Estivemos estudando a possibilidade de começar algo na França, então eu estaria mais perto de casa... Mas agora tem todo esse problema com a Inglaterra deixando a União Européia e ainda não falei sobre isso com Madson.
Passou pela cabeça de uma discussão terrível entre e Madson. “Não podemos ir para a Europa, eu gosto daqui”, ela argumentaria, exaltada. “Precisamos ir, é meu emprego”, enfatizaria. “Vá sozinho, se é tão importante”. Ele iria.
– Ela é legal! – disparou, tentando se redimir, como se pudesse ter ouvido as irrealidades maléficas que pensava até então.
– Você parece surpresa... – Comentou com diversão. decidiu não responder. – Ela também gostou de você... Quer dizer, ela já gostava da minha versão de ... Até porque houve uma época em que você era legal de verdade, não é? – A moça esbarrou seu ombro no dele, um protesto silencioso, depois deixou que um riso discreto lhe escapasse.
– Bons tempos... – Disse bem baixinho, com medo de acordar a nostalgia e evocar lembranças que não estavam preparados para visitar.
– Os melhores.
12 de Abril de 2003 – Sheffield, South Yorkshire, UK
Os olhos de , escuros de raiva, focavam o portão da escola do outro lado do jardim. Sua meta diária, atravessá-lo o mais rápido que pudesse. O sangue havia fugido das juntas de seus dedos, que estavam agarrados com força nas alças de sua mochila. “A vai pentear seus cabelos, ?”, um deles dizia. “ e , melhores amigas para sempre”, acrescentava outro. “O é um cara meio estranho, ele pensa no Marvin durante o banho”, cantarolavam em coro.
, que costumava ser seu esconderijo favorito, naquele momento não passava de um suplício. Mas lá estava ela, no portão da escola, como todas as quartas. Sempre encolhida e assustada, como alguém que se vê pequena demais para um mundo tão grande. , de tão parecido, se flagrava incomodado.
– Você poderia ter ido direto para a loja... – Disparou ao passar por ela, sem parar para cumprimentá-la. sabia bem que o amigo era alvo de piadas desagradáveis na escola e até tinha ideia de que seu nome era citado por serem muito próximos, mas não sabia até que ponto. Até aquele dia.
– Eu sempre venho até aqui. – Comentou, tentando alcançá-lo – Não achei que fosse um problema.
– Hey, , pede para a te levar no salão, fazer suas unhas!
– e , best friends forever.
– Você deveria fazer alguma coisa... – sugeriu, acompanhando com dificuldade as passadas largas do amigo.
– O que você quer que eu faça?
– Primeiro, e mais importante, pare de agir como se a culpa fosse minha! – Estabeleceu a menina, parando no topo da escadaria do metrô. – Se quiser que eu vá embora, é só dizer... – interrompeu os próprios passos, dois degraus depois e, voltando-se para ela, esboçou um sorriso cansado.
– Me desculpa, vem... – Convidou, estendendo sua mão à . – Vamos, o Duran disse que hoje chegaria o novo álbum do Linkin Park... – Ele quis rir da expressão impaciente que a amiga adotou, mas reprimiu, com medo de piorar sua condição. – É meu aniversário, vamos lá!
– Ok, seja menos idiota, então! – Rendeu-se, enrolando os ombros do melhor amigo com seu braço, ele ria seu riso favorito.
– Eu prometo que vou tentar.
Poucas coisas sobreviveram ao incêndio – que naquele ano completaria seus quatro anos. Da estrutura da casa restaram algumas paredes, queimadas o suficiente para precisarem ser derrubadas. Dos móveis, apenas as pias de mármore. Nenhuma peça de roupa, nenhum par de calçados.
Martha ficou firme nos primeiros dias, mas chorou pelo próximo ano inteiro. Não lamentava tanto pelos itens que perderam, mas pelas histórias que contavam. As fotografias de , que costumavam ficar espalhadas por toda a casa, começaram a parecer uma memória muito distante, perdendo a nitidez, Martha temeu se esquecer de como era o rosto de quando um bebê. Nunca mais o veria outra vez.
Mudaram-se para uma nova casa, em um bairro menor e menos movimentado, depois de viverem três semanas no hotel. Depois Lucian mudou-se para Doncaster. Prometeu que as levaria consigo logo que estivesse estabilizado. Elas acreditaram, pois precisavam acreditar. Foi apenas uma das muitas promessas que ele não cumpriu dentro daqueles anos.
Entre as coisas que restaram daquela noite, a única que não estava trincada, queimada, cheirando a fumaça: e .
No início se falavam por telefone quase todos os dias. Adoráveis irrelevâncias. indicava leituras. indicava álbuns. Depois telefonavam para comentar o que tinham achado das sugestões. Voltaram a se ver no aniversário de , em Abril de 2000. E, depois disso, viam-se com frequência porque passou da escola primária para a secundária, e esta ficava a apenas 10 minutos da escola onde estudava.
Além disso, Robert levava até a casa de . E Martha levava até a casa de . Stella costumava levá-los à loja de música e às vezes ao cinema do centro. Esperava por eles do lado de fora.
Exceto por eles dois, todos confundiam a relação que tinham. Passaram por diversos períodos diferentes naqueles últimos tempos. chegou a evitá-la, quando começou a achar que ter amizade com meninas não era o que esperavam dele. Durou uma semana e nunca havia sentido falta de nada como havia sentido falta da gargalhada de . Mentiu que estava gripado e assim não teria que passar pelo constrangimento de admitir o verdadeiro motivo.
“Se achasse que está certo, não se envergonharia”, Stella aconselhou qualquer dia, enquanto o trazia de volta da loja de Duran, dessa vez sem . A mãe tinha razão, ele sabia, então ligou para a amiga tão logo que chegaram em casa.
Desde então viam-se quase todos os dias. Na maioria, passava pela escola de apenas para caminhar com ela até a estação de metrô, embora não pegassem o mesmo. Às vezes trocavam livros e CDs, às vezes só conversavam sobre qualquer coisa que fosse. Mas toda quarta-feira pegavam um transporte até o centro, para visitar a loja de música, pois era o dia que chegavam os novos álbuns. Raras as vezes em que de fato compravam algo, mas gostavam da oportunidade de sentar por lá e ouvir um pouco de música.
– Tenho duas novidades! – Duran, um cara de aproximadamente 35 anos que usava meias nos joelhos como um adolescente de 15, exclamou assim que e atravessaram a porta de entrada.
– Conte... – Pediu a moça, se debruçando sobre o balcão.
– Separei um CD do Linkin Park para vocês ouvirem... Ainda não coloquei preço para a venda, então não contem a ninguém... – Esclareceu, deslizando pelo balcão uma capa de acrílico com a capa de um CD qualquer. – E... Tah-dah! Chegaram os novos fones de ouvido! – Uma caixinha que cabia na palma da mão de , de onde ele retirou os fones auriculares presos em longos fios. – São ótimos, vocês deveriam comprar um e experimentar.
– Podemos experimentar antes de comprar? – perguntou, um tanto inseguro quanto à qualidade. – São muito pequenos, tem certeza de que são bons?
– Não posso deixar que enfiem meus fones novos nessas orelhas sujas, menino!
– Ah, cara... – lamentou e estendeu o fone de volta para Duran.
– Ok, me dá dois... – soprou, mesmo contrariada.
– ? – O amigo soava questionador e confuso, ela sorriu e lançou uma caixinha em sua direção.
– Feliz aniversário.
No segundo ambiente da loja, dois degraus acima do primeiro, haviam alguns instrumentos usados expostos para venda, fitas cassete que ninguém comprava, armários com discos de vinil antigos e uma TV com aparelho DVD, onde sempre estava passando alguns clipes no mudo. Em uma prateleira, Duran deixava alguns CD Players usados, comprava pela metade do preço e também aceitava como doação. Cobrava uma libra por duas horas de uso.
e tinham uma espécie de acordo com o dono da loja. Pagavam 3 libras pelo dia todo, desde que levassem os próprios headphones e um plug para duplicar a entrada de P2 e assim não precisassem usar dois CD Players. Não foi um problema.
pendurou sua jaqueta jeans no mancebo mal tingido de pink que Duran provavelmente estava tentando vender. Depois soltou-se ao lado de no puff, fazendo com que o corpo dela desse um solavanco para fora, direto ao chão. “Idiota!”, ela sufocou em meio a um riso incontido, voltando para seu lugar.
Embora as músicas do Meteora fossem uma novidade, nada mais o era. Dividiam sempre o mesmo puff e na grande maioria das vezes usavam o mesmo CD Player. E quase cochilava. E brincava com os pingentes de sua pulseira, como se estivesse vendo-os pela primeira vez quando na realidade saberia dizer até a ordem em que estavam pendurados.
– Minha mãe te convidou para jantar em casa... – propôs, guardando seu celular na mochila enquanto caminhavam para fora da loja. – Ela fez um bolo pra mim e disse que te leva pra casa depois.
– Hm, não vai dar, , desculpa... – lamentou, enterrando as mãos nos bolsos de seu sobretudo. – Prometi jantar com minha mãe hoje, ela está um pouco chateada, você sabe... – concordou com a cabeça, os cabelos na altura dos ombros caindo em seu rosto, enquanto observava a calçada por onde caminhavam lado a lado.
– Nós combinamos no fim de semana, então... – Sugeriu e seus olhos correram para o canto, observando-a sempre muito discretamente.
– Podíamos ir ao cinema... Ouvi dizer que o Odeon voltou a passar Réquiem Para Um Sonho.
– Não vão nos deixar entrar...
– Minha mãe pode ir com a gente, ela se responsabiliza pelo nosso trauma psicológico... – Brincou a garota, e riu, esbarrando seu ombro no dela.
– Combinado, poopface.
Para a ansiedade matinal era tão familiar quanto o som de seu despertador. Quanto o gosto das torradas, quase sempre tostadas demais. Quanto o perfume adocicado do carro da mãe, que vinha diretamente do creme com aroma de morango que ela usava nas mãos.
Do momento em que atravessou o portão da Notre Dame naquela manhã até chegar ao laboratório de Biologia, notou que algo novo havia acontecido. Os garotos que o seguiam pelos corredores tentando ofendê-lo ao supor que fossem gay – quando na verdade o que de fato incomodava era que considerassem essa uma ofensa –, estes mesmos garotos lhe lançaram sorrisos maliciosos e piadas novas, que ele não quis gastar seu tempo e sua energia tentando entender.
, que não levava muito jeito com pessoas e pouco fazia questão de tal, incomodou-se com a maneira curiosa com a qual os pequenos grupos de garotas o observavam passar, como se fosse um novato ou como se vissem nele algo que não tivessem reparado anteriormente. Por um instante foi atravessado pelo pensamento de que estava usando as roupas do avesso. Mas não estava.
– Sério? – Notou o burburinho de uma dupla de garotas, estavam sentadas na bancada ao lado e caso não quisessem que ele escutasse, teriam como evitar. – Os meninos dizem que ele é gay.
– mesma contou às amigas da Tapton... – A outra acrescentou mais baixo, ainda assim audível. – Disse que eles ficaram duas vezes e que foi ótimo.
O plano de parecia funcional para ela. Bastou uma mensagem no MSN da pessoa certa. “Por favor, Liz, não conte a ninguém... Eu e , sabe, ficamos”. Era o suficiente para que no mundo cheio de insignificâncias daqueles que o perturbavam passasse do idiota com uma melhor amiga para o cara descolado que transava casualmente.
Infelizmente, na prática, só houve um rearranjo de apelidos e canções provocativas.
E uma ligação extremamente irritada de seu melhor amigo.
“Por-que-você-fez-isso?”, ele exigia e todo o seu retorno era uma gargalhada cada vez mais divertida de . Ela podia imaginá-lo soprar todas aquelas palavras entre os dentes. “Você não entende! Não me importo que achem que sou gay, , isso não me ofende!" . Ela gostava de como lidava com as questões do mundo e lamentava por ele encontrar tamanha dificuldade em enfiar goela abaixo o preconceito alheio. “Mas agora você é o alvo e eu não sei se vou tolerar”, admitiu, o desespero pouco implícito.
“Não me importo, !”, garantiu, muito firme. “Digam o que quiserem, não muda nada pra mim, desde que não mude nada pra você”.
E era esse o motivo do desconforto de . Gostaria de poder assegurar que não tinha mudado nada. Não podia. Porque desde que teve acesso aos boatos daquele falso corrido, não conseguia parar de pensar em . Não da maneira como costumava – o que poderia estar fazendo e o que faria mais tarde. Se ela já tinha ouvido a música nova de alguma banda que costumavam gostar ou se queria um pouco dos shortbreads que Stella havia preparado.
Naquela tarde, enquanto caminhava sozinho até sua casa, pensou em como uma garota que havia crescido e que agora ficava à vontade para inventar que haviam estado juntos na tentativa de livrá-lo das situações embaraçosas. Se ao menos ela desconfiasse que embaraçoso mesmo era lidar com todas as coisas novas que acompanhavam o rumor. Os pensamentos e questionamentos, as fantasias que fizeram com que a evitasse pelos próximos dias todos.
Na sexta de madrugada, quando costumavam telefonar um na casa do outro e assistir “juntos” a qualquer filme que estivesse passando na TV, deu uma desculpa e desligou muito rápido.
No sábado, inventou um mal-estar e sabotou o cinema.
No domingo, mentiu que iria ao golfe com o pai.
Na segunda, fingiu esquecer de passar pela Tapton.
Na terça já tinha ido embora quando passou pela Notre Dame.
Na quarta, porém, sabia que não havia muito para onde correr.
E, curioso: em meio aos cinco graus Celsius daquela manhã, as mãos de não paravam de suar.
Capítulo 3
12 de Julho de 2016 – Los Angeles, Califórnia, USA
Quando acordou naquela manhã, Madson estava sentada na poltrona que ficava no canto do quarto, havia um livro esquecido em seu colo. Não acordava muito bem humorada, mas nunca deixava de sorrir ao vê-lo pela primeira vez no dia, a menos que houvesse algo errado.
Ela não sorriu.
se levantou sem questionar. “Bom dia” e um beijo no topo da cabeça da noiva ao passar por ela, como se não tivesse percebido. Quando saiu do banheiro, ao invés do livro, Madson segurava um casaco de . O mesmo que ele estava usando na noite anterior.
– Por favor, cheire. – Ela disse, estendendo a peça na direção dele. Não era exatamente um pedido. E não precisava de fato cheirar para saber sobre o que ela estava falando, mas enfiou o nariz no tecido grosso, fedendo à nicotina. – Desde quando?
– Mad, foi só a noite passada. – abaixou-se em frente à ela, as mãos apoiadas em seus joelhos. – Eu estou ansioso... Quando você está ansiosa não dorme, eu fumo.
– Eu gostaria que você tivesse me dito! – Reclamou, e quis virar os olhos, como todas as vezes que tiveram aquela discussão.
– Mad, foram um ou dois cigarros...
– Você sabe o quanto foi difícil pra você parar, . – ele sabia. Tão difícil que não parou de verdade. – Você se esforçou tanto, por que está se sabotando agora?
– Sei disso. – limitou-se a dizer, depois começou a se levantar. – Não vai voltar a acontecer, me desculpa.
– Não faz o menor sentido você se desculpar comigo, deveria se desculpar com você mesmo.
– Estou me desculpando por não ter contado a você ontem de madrugada que fumei dois cigarros...
– Não faça isso... Ser sarcástico desse jeito. – ela pediu, se levantando da poltrona e andando até a beirada da cama, para calçar suas sapatilhas. – Eu só estou tentando ajudar...
– Mad. – resmungou e alcançou o quadril dela com um dos braços. – Ei... Tem razão, ok? Você tem razão... Eu não deveria ter fumado, mas estou ansioso... Não conseguia dormir.
– Tudo bem. – E Madson finalmente cedeu um afago em seus cabelos. Como uma criança carente, tombou a cabeça para o lado e fechou os olhos. – Vou descer para o café da manhã, você vem?
– Vou só me trocar. – beijou seus lábios, depois deixou que ela se afastasse. – Estava pensando em levar para conhecer alguns lugares de LA, você vem, não é?
– Não acha que vai ser, sei lá, estranho?
– Claro que não, Mad. – não tinha certeza disso, nunca havia apresentado nenhuma namorada a . – Vai ser legal.
– Ok!
Sentada no parapeito de sua janela, assistiu a dezenas de homens carregando o que devia ser a decoração do casamento. Cadeiras, mesas, vasos imensos. Ficou tentando adivinhar, numa brincadeira estúpida, quantas e quais daquelas coisas haviam sido escolhidas por . Desistiu, porque era incômodo de várias maneiras diferentes.
tocou na porta e ela sabia que era ele porque sempre tocava do mesmo jeito. Três batidas rápidas e uma última depois de algum tempo. Sentia falta até de suas batidas na porta. Toctoctoc toc.
– Here’s Johnny! – Com a cabeça enfiada na fresta da porta, exclamou, em uma menção divertida ao filme O Iluminado, que sabia ser um dos favoritos de . Ela gargalhou espontaneamente. – Pronta para conhecer Los Angeles?
– Hm... Para onde vamos? – Ela quis saber, alcançando, no respaldo da poltrona, o suéter que havia separado para se proteger do ar fresco da manhã.
– Preparei um roteiro legal para a tarde. – contou, tomando a liberdade de entrar e se sentar na beirada da cama, mesmo que convite algum tivesse sido feito. – Tem algo específico que queira visitar?
– Não... Não conheço muito daqui, não sei o que escolheria.
– Podemos dar uma volta por Beverly Hills, tem alguns restaurantes legais na Via Rodeo... Ah, tem uma loja de discos que você pode gostar, você ainda tem os seus?
– São nossos, . – Disparou , quase antes dele terminar o que ia dizendo. – São seus também.
– Eu dei os meus pra você. – Respondeu o rapaz, pouco depois de recuperar-se da surpresa.
– Não. Você disse que iria deixá-los comigo enquanto estivesse fora, pra que eu cuidasse...
– Isso foi quando eu tinha um prazo para voltar desse “tempo fora”. Não é o caso agora, então... Hm... São seus.
O desconcerto quase passou desapercebido no rosto de , camuflado dentre os tantos outros sentimentos que faziam seu olhar parecer tão bagunçado. quis acrescentar alguma coisa, qualquer coisa, mas não conseguiu encontrar algo que coubesse ali. Seus olhos, especializados em compreender os dela, só conseguiam ver uma confusão sem fim. Não sabia sequer se ela estava magoada ou completamente indiferente. Em que momento haviam se tornado estranhos, afinal?
Beverly Hills não era pra , ela pensou logo que reconheceu o cenário tão conhecido. Madson, do assento do passageiro, a convidou para uma conversa maravilhada a respeito da rua que atravessavam. Era bonito, ela concordava e gostaria de parecer tão impressionada quanto os outros turistas, mas não pensava haver a possibilidade de atingir o nível de entusiasmo que o casal esperava dela.
Era como se fosse cinza demais para todas aquelas cores.
– A que horas seus pais chegam? – Madson perguntou a , cortando o silêncio que havia se instalado na mesa do restaurante onde escolheram almoçar.
– Precisaram trocar a passagem, vão chegar só na quinta. – Explicou ele, logo que conseguiu engolir toda a comida que tinha na boca. Depois de enxaguar a boca com o vinho tinto que Madson pediu ao sommelier, acrescentou: – Meu pai vai a uma consulta médica hoje, minha mãe tinha esquecido.
– Ele está bem? – Perguntou a noiva, as sobrancelhas se reunindo em uma expressão preocupada.
– Acho que sim, você sabe que eles não diriam se não estivesse. – forçou um falso bom humor.
– Passei por lá na semana passada. – se manifestou, encarando de frente o desconforto que isso provocou. – Hm, ele parecia bem. – deu um sorriso que carregou em uma queda livre direto à nostalgia.
– Minha mãe não disse que você tinha feito uma visita. – Ele argumentou, em uma crítica implícita.
– Ela deve ter se esquecido, não é exatamente uma novidade para ela. – justificou, espetando um pedaço de seu bife mal passado. estranhou que ela visse seus pais com mais frequência do que ele teria considerado.
– Oh, eu sempre digo à que precisa ir visitá-los mais vezes. – Madson manifestou-se, recebendo um olhar compreensivo de e um repressor do futuro marido.
– É uma viagem longa, perco um dia inteiro no avião para ir, outro para voltar... não é sempre que posso sair da empresa e passar, sei lá, uma semana fora... Acumula muito trabalho. – se defendeu, e teve a impressão de que estava se justificando para ela, não para Madson. – Eles entendem, sabem que é melhor quando eles vêm.
– Um pouco egoísta da sua parte. – Madson argumentou e, com impaciência, levantou-se de sua cadeira. – Eu vou ao banheiro, com licença.
– Não me olhe assim! – pediu a quando Madson já não estava entre eles.
– Assim?
– Com esse olhar de 2008.
– Não sei do que está falando, eu estava agora mesmo olhando para o meu purê com todo o amor do mundo. – riu, seus olhos analisando os gestos lentos de enquanto juntava seu purê ao bife, com o cuidado de ter a quantidade ideal dos dois.
– Ainda come com tanta preguiça. – Comentou o rapaz, achando graça quando as bochechas de ganharam um tom de vermelho muito forte. Desconcertada, ela alcançou sua taça de vinho e engoliu boa parte dele. cruzou os braços sobre a mesa e se inclinou em direção à ela como se quisesse confidenciar algo. – Não é o pior vinho que já tomou? – se perguntou se havia feito alguma careta, mas no fim deixou-se levar pela risada dele. – Eu finjo que gosto porque Mad adora.
– Ok, você finge que não fuma, finge que gosta do vinho favorito dela... – reprovou. – O que mais você finge? – Torceu, sem poder conter, que ele fingia também querer se casar.
– Finjo que gosto de James Morrison também. – Sussurrou, desfazendo a carranca de imediatamente, suas risadas se entrelaçando e criando um espaço familiar entre eles. – Sinto falta das nossas bebedeiras de vinho barato.
E embora não soubessem disso, foram arremessados diretamente para a mesma memória. Glastonbury de 2005. Quanto vinho e quanta chuva naquele ano.
Logo que Madson retornou, deixaram o restaurante e caminharam pelos arredores. Embora fosse um dia que chamou de pouco movimentado, havia um fluxo grande de pessoas o tempo todo, por todos os lugares.
A loja de vinil, que esperava ser uma espécie de espaço para antiguidades, era na verdade um prédio que, de modo geral, cheirava a novo. Objetos novos que faziam referência a coisas antigas. – jukebok com entrada para pendrive, roupas com estampa tie-dye que não haviam sido feitas em casa, discos de vinil novos custando muito mais do que costumava pagar em coleções inteiras de discos antigos.
Saiu de lá com um vinil 180g dos Ramones, que ela preferiu não saber quanto havia pago. Apenas aceitou o presente e aquele abraço estranho – um braço ao redor de seus ombros, o esbarrar da cabeça dele na sua, depois a distância e consequentemente o alívio.
E enquanto caminhavam pela calçada, desviando de pessoas que pareciam sempre tão apressadas, se lembrou de um tempo em que era confortável tê-lo por perto. Naquela época em que estavam sempre se esbarrando; Em que massageava sua orelha enquanto, deitada nas pernas dele, o ouvia ler em voz alta um dos livros da coleção da Agatha Christie que haviam comprado num sebo de Londres; em que suas pernas estavam sempre entrelaçadas quando, naquelas tardes de quarta, se sentavam no puff para ouvir música na loja de Duran.
Era melancólico que agora até o calor da presença dele causasse incômodo.
Cada vez que se aproximava, o coração de parecia gritar, em desespero, que ele se afastasse antes que fosse tarde demais. Já era tarde demais, e seu coração bem sabiam disso.
Levaram aproximadamente vinte minutos para chegar ao Getty Center. Deixaram o carro no estacionamento e pegaram o trem disponibilizado pelo museu. Passearam em silêncio pelo jardim que era, por si só, uma obra de arte criada por Robert Irwin. Madson atentou ao fato de que conforme andavam, de um lado para o outro, havia uma mudança no som do fluxo de água e que era proposital.
Passaram por alguns dos edifícios, observaram apenas uma parte das incontáveis pinturas e esculturas, mobílias antigas que cheiravam a lustra-móvel.
O fim da tarde já se aproximava quando chegaram ao Griffith Observatory. estava feliz que o sol estivesse se preparando para a despedida e logo o céu estaria recheado de estrelas, que ela poderia observar através de algum dos telescópios que estavam à disposição do público.
– É um lugar lindo. – Comentou, quase para si mesma. , parado ao seu lado, sorriu em resposta. Ela não viu, distraída com o letreiro de Hollywood e as luzes da cidade que, aos poucos, iam se acendendo.
– Foi o primeiro ponto turístico que visitei quando cheguei em Los Angeles. – Ele contou, e ela tentou imaginar o de anos atrás ali, naquele mesmo lugar. A vista parecia combinar melhor com ele do que com o que tinha agora ao seu lado.
– Você me enviou um cartão daqui. – Lembrou e deixou escapar um riso fácil ao recordar-se do que havia escrito nele. “Com os pássaros irei compartilhar essa vista solitária, porque minha melhor amiga não está aqui” dizia, fazendo menção a Scar Tissue, Red Hot Chilli Peppers, para depois alfinetar por sua ausência.
– É verdade, eu me lembro de ter comprado um na loja de souvenir. – recordou, apoiando os antebraços na balaustrada. Ficaram em silêncio por um tempo, observando a vastidão da cidade montanha abaixo. – Estou feliz que tenha vindo, . – Ela gostaria de soar sincera ao dizer que estava feliz de estar ali, mas temendo não conseguir, conteve suas palavras e esbarrou seu ombro no dele. – Sério... É muito importante pra mim.
– É bom te ver feliz. – Disse em resposta. E soou sincera como de fato estava sendo. O problema, concluiu, não era nem por um instante o bem estar de . Era, na realidade, o fato de ter se tornado claramente desnecessária em sua nova vida.
– Obrigado, poopface. – cedeu um sorriso. – Sinto muito que Tom não tenha conseguido vir.
– Ah, é. – E imediatamente ergueu-se, endireitando a postura num alongamento preguiçoso. – Em outra oportunidade, quem sabe. Vou dar uma olhada no telescópio.
– Vamos lá!
23 de Junho de 2006 – Sheffield, South Yorkshire, UK
O sol despontava em algum canto do céu daquele jeito meio inibido, escondendo-se por entre as nuvens como uma criança tímida que se esconde entre as pernas da mãe.
Ainda não havia clareado quando estacionou em frente à casa de . Saltou da Chevy 70 – que batizaram carinhosamente de Miss Lizzy em referência a “Dizzy, Miss Lizzy”, dos Beatles – e deu passos ansiosos até a porta, desejando acender seu primeiro cigarro do dia, mas reconhecendo que era muito cedo para isso.
Imaginou os olhos de erguendo-se, atentos ao som da campainha. Ela agarraria a mochila sobre a cama e, com ela pendurada em seus ombros magrelos, sairia em disparada pelo corredor, escadaria abaixo. Quando abrisse a porta, os cabelos estariam alvoroçados porque ela sempre se esquecia de pentear. Os olhos curiosos de sempre e um sorriso que faria a claridade débil daquela manhã parecer uma verdadeira piada.
Mas foi Martha quem apareceu. Cabelos alvoroçados, mas nenhum ânimo em sua expressão preocupada.
– , precisam mesmo ir a esse festival? – Disparou, dando espaço para que ele entrasse. Enquanto ouvia os passos apressados de no andar de cima, avançou pelo hall.
– Não precisa se preocupar, Martha, my dear. – Brincou ele, citando Beatles outra vez. – Não é um Woodstock, é mais familiar.
– Pois eu duvido muito! – Contestou ela, os olhos de se distraíram com a figura animada que vinha descendo as escadarias, dois degraus por vez. – Está marcando muita chuva, eu vi na previsão.
– Mãe, quando é que não está? – Argumentou e, quando próxima o suficiente, esbarrou seu ombro no de , um cumprimento bastante familiar entre eles.
– Sinto falta do tempo em que o mais longe que iam era o cinema do centro... E Stella esperava no carro. – Martha lembrou, nostálgica. – Por favor, se cuidem.
– Pode deixar, Martha... Vamos ficar bem! – garantiu e Martha confiou. Sempre confiava e era difícil não fazê-lo quando ele olhava para sempre com tamanho cuidado.
– Ok, vão logo. – E abanou as mãos como se quisesse enxotá-los. Os jovens se entreolharam com diversão, depois começaram a caminhar em direção à porta. – Estão levando guarda-chuva?
– Guarda-chuva, capas. – informou, inclinando-se para beijar o rosto de Martha em despedida. – E galochas!
– Que bom, não vou me voluntariar para desencardir tênis de ninguém! – Brincou a mulher, riu e a trouxe para um abraço apertado.
– Tchau, mãe... Tente, por favor, não arrancar todos os seus cabelos! – Pediu, soltando-se dela em seguida. – Eu te amo.
– Eu te amo, se cuida, por favor... – E quando já alcançavam Lizzy, acenaram para Martha mais uma vez. – Não fique só de sutiã! E não façam amizade com pessoas muito estranhas...
– E sexo? – provocou. gargalhou, ajeitando-se em seu assento. Martha estava escondida entre suas mãos, mas os dois sabiam que ela estava rindo.
– Se cuidem! – Gritou uma última vez. esperou até que estivesse acomodada para dar partida.
– Pronta, copilota? – Perguntou. sorriu com todos os dentes quando ouviu o sutil “click” de seu cinto de segurança, devidamente preso.
– Glastonbury, aqui vamos nós!
ligou o rádio que havia ganhado de seus pais em seu aniversário de 18 anos, apenas dois meses atrás. De havia ganhado um cartão, explicando o atraso do presente, que só chegou no início de Junho, o novo CD da banda Coldplay, X&Y, que rodava na caminhonete naquele instante.
Do porta-luvas, retirou o mapa que havia imprimido no dia anterior. A rota que deveriam fazer havia sido previamente tracejada de vermelho por ele, mas ela gostava de pensar que era a responsável pelas coordenadas.
Enquanto assistia a claridade cinzenta se espalhar pelo céu, pensou em todos aqueles últimos dias, na ansiedade da espera, nos planejamentos para a viagem. Em todos os enredos e roteiros que acabara criando, agora habituada à frustração que geralmente acompanhava tal costume. – chamava de “neurose de escritor”. Fazia pouco e muito sentido ao mesmo tempo.
Os olhos de correram para o canto, tentando observá-la sem ser percebido. , com os pés livres dos coturnos apoiados no painel do carro. O mapa aberto e apoiado nos joelhos não recebia nenhuma atenção de seus olhos, que vagavam janela afora, pela paisagem que ficava para trás em forma de borrões conforme avançavam. Seus cabelos longos agitados pelo vento, espanando o respaldo de seu assento. Um sorriso que ela esqueceu nos lábios.
soube: ainda que aquele festival não valesse a pena, aquele sorriso sempre valeria.
Pararam em um posto de gasolina próximo à Worcester, duas horas e vinte minutos depois de saírem de Sheffield. Enquanto abastecia Lizzy, foi ao banheiro. E enquanto foi ao banheiro, passou pela loja de conveniência e encheu uma sacola com todo tipo de guloseima. Não comeriam nem metade – mas sua fome fez parecer que sim.
Pouco antes de caírem na A37, que os levaria até a Worthy Farm, começaram a surgir placas coloridas anunciando o festival, apontando as direções para as quais deveriam ir. reduziu para a quarta marcha, terceira, segunda, avançando cada vez menos. empertigou-se em seu assento, abaixando seu vidro e enfiando a cabeça pra fora.
– ! Estamos oficialmente no congestionamento do Glastonbury!
viu-se cheio do entusiasmo que vinha dela – de seus olhos arregalados, sorriso desmedido, corpo impulsionado janela afora.
Nos primeiros vinte minutos havia gente buzinando por toda parte, cantoria, grupos de pessoas que desceram de seus carros e iam passando, de janela em janela, pulando e oferecendo um cantil com qualquer coisa que eles não arriscaram experimentar. Aos poucos, porém, tudo o que restou foram os piscas-alertas ligados, uma buzina aqui, outra ali.
encostou em sua porta e esticou as pernas pelo assento da caminhonete. Observou do lado de fora, manuseando sua câmera profissional que ganhara dos seus avós no início do ano, quando adentrou para o curso de fotografia na Sheffield Hallam University.
Lembrou-se de quando a notícia chegou e ela ficou dividida entre a alegria de vê-lo alcançar algo que realmente queria e o receio de que estivesse muito próxima de perdê-lo para a novidade. Temeu que o curso e todas as pessoas que ele traria para a vida de fizessem dela a amiga de infância, não a amiga de uma vida inteira.
A mudança era inevitável, reconheceu com o tempo. tinha uma rotina diferente agora. Levou um tempo até se acostumar a passar pelos portões da Notre Dame e não vê-lo cruzando o jardim, os cabelos caídos pelo rosto, o corpo inclinado para frente como se o peso de sua mochila fosse maior do que pudesse carregar – sabia que esse era o menor dos fardos que teve de carregar no colégio.
Também precisou se acostumar a não esperá-lo nos portões da Tapton. Nada de almoços alternativos no parque, nada de loja do Duran nas quartas. Mas ainda se falavam por telefone quase todos os dias e se encontravam nos fins de semana. a convidava para todas as festas universitárias, onde ficavam até conseguirem roubar uma garrafa de vodca para beber em qualquer outro lugar, sem aquela música eletrônica que eles não sabiam dançar.
Ainda era . Com menos tempo, mais maturidade, talvez. Mas ainda , seu melhor amigo... Por quem estava ligeiramente apaixonada, embora faltasse coragem de admitir até pra si mesma.
saltou pra dentro da caminhonete quando os carros começaram a andar. O cigarro aceso entre os lábios. Soltou sua câmera no colo da amiga antes de dar partida e avançar pouquíssimos metros atrás do micro-ônibus que estavam seguindo desde que caíram na A37.
posicionou a câmera, ainda ligada, em direção a ele. Não tinha o olhar de , não sabia os melhores ângulos, técnicas de foco e posicionamento, mas de alguma forma conseguiu capturar naquela foto uma imagem de muito particular, como se houvesse uma versão dele que era só sua. Um que só era aquele na sua presença. E para não havia pessoa mais bonita.
Por volta de duas horas depois, passaram por uma placa chamativa que dizia “Welcome to Glastonbury”. Separaram-se do micro-ônibus para entrar em uma fila só de carros. Seguiram lentamente pela rota azul até adentrarem um dos estacionamentos públicos. Dali seguiram caminhando com suas mochilas e a barraca.
Os portões haviam sido abertos há, no máximo, três horas, mas já havia tanta gente e tantas barracas montadas que por um instante se perguntaram se encontrariam um lugar no camping que planejaram ficar.
Quase vinte minutos de caminhada depois, e sentiam como se estivessem presos numa estufa colossal. O dia estava quente e abafado, apesar de nublado. Eles torceram para que houvesse um bar próximo ao camping onde ficassem instalados – se é que alguma coisa poderia ser considerada “próxima” ali.
Em uma lista de campsites onde preferiam ficar, Row Mead vinha em segundo lugar. Logo que encontraram um espaço suficiente na área, soltaram suas bagagens na grama. Depois seus corpos cansados e suados.
– Precisam de ajuda aí? – Perguntou o cara da barraca ao lado, ao reconhecer a dificuldade que os jovens encontravam para montar sua tenda. Estavam em um grupo grande, sentados em cadeiras dobráveis, com uma espaçosa caixa térmica no centro.
– Seria legal! – disparou, ofegante. – Parecia mais fácil na embalagem! – Brincou. O rapaz riu e deixou sua longneck de lado para começar a manusear o tecido resistente da barraca.
– Sempre parece. – Disse, enquanto trabalhava. – É a primeira vez de vocês aqui?
– É. – e concordaram.
– Legal, vocês vão se divertir. – Não levou dez minutos até que a barraca estivesse devidamente montada. – Pronto!
– Valeu! – agradeceu, apertando a mão do “vizinho” temporário.
– Prazer, cara... Sou Simon, vocês são?
– Sou , essa é . – Simon se alongou para alcançar a mão estendida de .
– Qualquer coisa que precisarem, é só falar...
– Obrigada! – disse. – Você sabe dizer onde tem um bar aqui por perto?
– Claro!
E imediatamente Simon apontou para vários lugares, apresentando as direções que deveriam seguir para encontrar os bares, banheiros, postos de informação, enfermarias. Parecia completamente habituado a tudo ali, sem nenhum dos receios que e compartilhavam um com o outro, mas que começaram a se dissipar a partir daquele momento.
Deixaram suas mochilas e casacos dentro da barraca e seguiram o caminho até o bar mais próximo – apontado por Simon. Compraram uma água e duas cervejas, ajudariam no passeio que pretendiam fazer para conhecer as atrações ao redor.
Já passava do meio dia quando pararam em uma tenda e comeram um cachorro quente. Dividiram um refrigerante e levaram duas cervejas para o resto da caminhada de volta ao camping.
ainda estava dormindo quando despertou. A escuridão fazia parecer tarde da noite, mas seu relógio de punho marcava seis e quarenta e sete. Saiu da barraca a tempo de ver um relâmpago tremeluzir no céu, pouco antes de um trovão murmurar, manso e preguiçoso.
O grupo ao lado de sua barraca estava sentado em círculo, parte deles em cadeiras dobráveis, parte em toalhas estendidas na grama. Um dos rapazes tocava habilmente as cordas de um violão velho. Pimball Wizard, The Who.
– Ei, ! – Simon chamou, depois acenou com a mão. – Vem pra cá! Cadê sua namorada? – abriu a boca para responder, mas se aproximou em silêncio, puxando os cabelos pra trás, como costumava fazer diante do desconcerto.
– Ela é minha amiga... Está dormindo. – Esclareceu. E como se ainda estivesse se acostumando ao convite, ficou em pé um tempo.
– Quer vinho? – Ofertou a moça mais próxima da caixa térmica, usava uma saia longa e um tope feito de crochê. Os cabelos vermelhos e volumosos.
– Quanto é? – perguntou, já levando a mão no bolso de trás do jeans.
– Não é nada. – Respondeu ela, como se fosse óbvio, depois pegou um dos copos plásticos para servi-lo. – Sou Julie, a propósito.
– ...
Ela inclinou-se, estendendo o copo para . Ele agradeceu com um sorriso, depois molhou os lábios com o vinho barato. Controlou uma careta, mas não o arrepio. Julie riu de um jeito propositalmente exagerado, como se tentasse parecer mais bêbada do que estava. não se importava, tampouco julgava. Gostava de pensar que ela tinha seus motivos. Gostava também de tentar descobrir quais poderiam ser.
arrastou-se para fora da barraca, encolhida dentro de sua jaqueta de couro. Enquanto se aproximava, começou a sorrir. Observou-a enquanto acenava para todos ao redor, sempre menos constrangida que ele, para depois sentar-se ao seu lado.
Dividiram o copo de vinho, fumaram alguns cigarros, cantarolaram algumas canções. fez algumas fotos do grupo, mas não gostou do resultado. Gostaria que parecessem à vontade, mas a espontaneidade forjada estava por toda parte. Que injusto era não poder registrar imagens com os próprios olhos.
Teria fotografado, desapercebido, os sorrisos lascivos trocados por um dos casais antes de sumirem para dentro de sua barraca. O momento em que Simon riu sozinho de si mesmo, depois de derramar um pouco de whisky em sua camiseta. A emoção genuína de Julie ao cantar Blowing In The Wind – foi provavelmente o primeiro e único momento da noite em que ela pareceu real, e ele perdeu, pois ao erguer as lentes em direção à ela, assistiu seu rosto adotar uma expressão plastificada. Uma nova emoção nascendo, e não era verdadeira e bonita como a anterior.
Convidou para caminhar. Em passos sem pressa, alcançaram o alto de uma colina que chamavam de “Green Fields”. Dali o festival resumia-se num amontoado de barracas e pequenas luzes.
Sentaram-se, sem fôlego e desfrutaram do silêncio e do vento fresco, que era provavelmente um sinal de que a chuva, prometida na previsão, se acercava.
deitou o corpo pra trás, apoiando seu peso nos cotovelos. Os olhos esquecidos sobre a figura de , sentada ao seu lado com a postura desfeita, cabelos presos num nó estranho. Quis esticar a mão e brincar com a mecha solta, mas por algum motivo temeu que parecesse inapropriado, invasivo. Apaixonado.
Como num romance clichê dos anos 90, havia decidido, anos atrás, aquietar seu coração a respeito de . Mas às vezes ele gritava alto demais, esperneando em seu peito como uma criança mimada que não conseguiu o que queria. Havia sempre o receio de que, se chegasse muito perto, pudesse ouvi-lo. Então mantinha uma distância saudável. Conhecia bem o suficiente para perceber caso seu sentimento fosse correspondido – não era.
cometera alguns enganos ao longo de sua vida.
Nenhum poderia ser tão frustrante quanto esse.
“– Steven? – Ouvir minha própria voz fez com que me sentisse real outra vez, depois daquele período confuso que eu jamais saberia dizer se foram minutos ou horas. Ela expressava toda a dor e desesperança que eu carregava comigo pelos corredores daquele lugar, que em nada me era familiar, mas que se parecia tanto comigo naquele momento. Gelado, úmido, fétido, solitário. Assustador. – Stev. – Eu implorava, escorada na parede coberta de lodo daquele labirinto sem fim. Tentei evitar minha mão, o que não parecia difícil quando ela não me servia de nada, esmagada e dormente, inútil, pendurada no fim do meu braço...”
parou de ler e virou o rosto na direção de .
– Por que você faz isso?
– O quê? – Ela desencostou-se do ombro dele, um sorriso escondido no canto de seus lábios.
– Esmagar a mão das pessoas, isso é horrível, ! – protestou, mas a realidade é que adorava ler tudo o que ela escrevia.
– Essa não é a intenção de livros de suspense? Causar aflição? – E depois voltou a aconchegar-se contra ele. esqueceu-se, por um instante, do que deveria fazer para respirar. Torceu pra que ela não notasse sua breve distração.
– Está com sono? – Ele quis saber. chacoalhou a cabeça negativamente, mas sabia que ela iria dormir tão logo que ele voltasse a ler. – Certo, vamos lá!
fechou os olhos quando mirou a lanterna para a página impressa. Ele aclarou a garganta antes de retomar a leitura. Sua voz, sempre grave e forte mesmo quando garoto, adotava uma ligeira rouquidão quando estava num tom abaixo do normal. Era sempre ele quem lia, porque gostava do seu jeito de ler, dando vida aos personagens, fazendo com que os cenários se construíssem em sua imaginação, parecendo ainda mais reais do que quando os escreveu.
Ela dormiu antes do fim.
desligou a lanterna quando terminou, abandonando-a junto das folhas ao seu lado, no pouco espaço que tinham. Precisava se lembrar de comentar com sobre quanto tinha gostado do final, pensou ele enquanto apoiava sua bochecha no topo da cabeça dela. E enquanto brincava de fingir que eram um casal, dividindo aquela barraca e aquele fim de semana, pegou no sono.
Quando acordou naquela manhã, Madson estava sentada na poltrona que ficava no canto do quarto, havia um livro esquecido em seu colo. Não acordava muito bem humorada, mas nunca deixava de sorrir ao vê-lo pela primeira vez no dia, a menos que houvesse algo errado.
Ela não sorriu.
se levantou sem questionar. “Bom dia” e um beijo no topo da cabeça da noiva ao passar por ela, como se não tivesse percebido. Quando saiu do banheiro, ao invés do livro, Madson segurava um casaco de . O mesmo que ele estava usando na noite anterior.
– Por favor, cheire. – Ela disse, estendendo a peça na direção dele. Não era exatamente um pedido. E não precisava de fato cheirar para saber sobre o que ela estava falando, mas enfiou o nariz no tecido grosso, fedendo à nicotina. – Desde quando?
– Mad, foi só a noite passada. – abaixou-se em frente à ela, as mãos apoiadas em seus joelhos. – Eu estou ansioso... Quando você está ansiosa não dorme, eu fumo.
– Eu gostaria que você tivesse me dito! – Reclamou, e quis virar os olhos, como todas as vezes que tiveram aquela discussão.
– Mad, foram um ou dois cigarros...
– Você sabe o quanto foi difícil pra você parar, . – ele sabia. Tão difícil que não parou de verdade. – Você se esforçou tanto, por que está se sabotando agora?
– Sei disso. – limitou-se a dizer, depois começou a se levantar. – Não vai voltar a acontecer, me desculpa.
– Não faz o menor sentido você se desculpar comigo, deveria se desculpar com você mesmo.
– Estou me desculpando por não ter contado a você ontem de madrugada que fumei dois cigarros...
– Não faça isso... Ser sarcástico desse jeito. – ela pediu, se levantando da poltrona e andando até a beirada da cama, para calçar suas sapatilhas. – Eu só estou tentando ajudar...
– Mad. – resmungou e alcançou o quadril dela com um dos braços. – Ei... Tem razão, ok? Você tem razão... Eu não deveria ter fumado, mas estou ansioso... Não conseguia dormir.
– Tudo bem. – E Madson finalmente cedeu um afago em seus cabelos. Como uma criança carente, tombou a cabeça para o lado e fechou os olhos. – Vou descer para o café da manhã, você vem?
– Vou só me trocar. – beijou seus lábios, depois deixou que ela se afastasse. – Estava pensando em levar para conhecer alguns lugares de LA, você vem, não é?
– Não acha que vai ser, sei lá, estranho?
– Claro que não, Mad. – não tinha certeza disso, nunca havia apresentado nenhuma namorada a . – Vai ser legal.
– Ok!
Sentada no parapeito de sua janela, assistiu a dezenas de homens carregando o que devia ser a decoração do casamento. Cadeiras, mesas, vasos imensos. Ficou tentando adivinhar, numa brincadeira estúpida, quantas e quais daquelas coisas haviam sido escolhidas por . Desistiu, porque era incômodo de várias maneiras diferentes.
tocou na porta e ela sabia que era ele porque sempre tocava do mesmo jeito. Três batidas rápidas e uma última depois de algum tempo. Sentia falta até de suas batidas na porta. Toctoctoc toc.
– Here’s Johnny! – Com a cabeça enfiada na fresta da porta, exclamou, em uma menção divertida ao filme O Iluminado, que sabia ser um dos favoritos de . Ela gargalhou espontaneamente. – Pronta para conhecer Los Angeles?
– Hm... Para onde vamos? – Ela quis saber, alcançando, no respaldo da poltrona, o suéter que havia separado para se proteger do ar fresco da manhã.
– Preparei um roteiro legal para a tarde. – contou, tomando a liberdade de entrar e se sentar na beirada da cama, mesmo que convite algum tivesse sido feito. – Tem algo específico que queira visitar?
– Não... Não conheço muito daqui, não sei o que escolheria.
– Podemos dar uma volta por Beverly Hills, tem alguns restaurantes legais na Via Rodeo... Ah, tem uma loja de discos que você pode gostar, você ainda tem os seus?
– São nossos, . – Disparou , quase antes dele terminar o que ia dizendo. – São seus também.
– Eu dei os meus pra você. – Respondeu o rapaz, pouco depois de recuperar-se da surpresa.
– Não. Você disse que iria deixá-los comigo enquanto estivesse fora, pra que eu cuidasse...
– Isso foi quando eu tinha um prazo para voltar desse “tempo fora”. Não é o caso agora, então... Hm... São seus.
O desconcerto quase passou desapercebido no rosto de , camuflado dentre os tantos outros sentimentos que faziam seu olhar parecer tão bagunçado. quis acrescentar alguma coisa, qualquer coisa, mas não conseguiu encontrar algo que coubesse ali. Seus olhos, especializados em compreender os dela, só conseguiam ver uma confusão sem fim. Não sabia sequer se ela estava magoada ou completamente indiferente. Em que momento haviam se tornado estranhos, afinal?
Beverly Hills não era pra , ela pensou logo que reconheceu o cenário tão conhecido. Madson, do assento do passageiro, a convidou para uma conversa maravilhada a respeito da rua que atravessavam. Era bonito, ela concordava e gostaria de parecer tão impressionada quanto os outros turistas, mas não pensava haver a possibilidade de atingir o nível de entusiasmo que o casal esperava dela.
Era como se fosse cinza demais para todas aquelas cores.
– A que horas seus pais chegam? – Madson perguntou a , cortando o silêncio que havia se instalado na mesa do restaurante onde escolheram almoçar.
– Precisaram trocar a passagem, vão chegar só na quinta. – Explicou ele, logo que conseguiu engolir toda a comida que tinha na boca. Depois de enxaguar a boca com o vinho tinto que Madson pediu ao sommelier, acrescentou: – Meu pai vai a uma consulta médica hoje, minha mãe tinha esquecido.
– Ele está bem? – Perguntou a noiva, as sobrancelhas se reunindo em uma expressão preocupada.
– Acho que sim, você sabe que eles não diriam se não estivesse. – forçou um falso bom humor.
– Passei por lá na semana passada. – se manifestou, encarando de frente o desconforto que isso provocou. – Hm, ele parecia bem. – deu um sorriso que carregou em uma queda livre direto à nostalgia.
– Minha mãe não disse que você tinha feito uma visita. – Ele argumentou, em uma crítica implícita.
– Ela deve ter se esquecido, não é exatamente uma novidade para ela. – justificou, espetando um pedaço de seu bife mal passado. estranhou que ela visse seus pais com mais frequência do que ele teria considerado.
– Oh, eu sempre digo à que precisa ir visitá-los mais vezes. – Madson manifestou-se, recebendo um olhar compreensivo de e um repressor do futuro marido.
– É uma viagem longa, perco um dia inteiro no avião para ir, outro para voltar... não é sempre que posso sair da empresa e passar, sei lá, uma semana fora... Acumula muito trabalho. – se defendeu, e teve a impressão de que estava se justificando para ela, não para Madson. – Eles entendem, sabem que é melhor quando eles vêm.
– Um pouco egoísta da sua parte. – Madson argumentou e, com impaciência, levantou-se de sua cadeira. – Eu vou ao banheiro, com licença.
– Não me olhe assim! – pediu a quando Madson já não estava entre eles.
– Assim?
– Com esse olhar de 2008.
– Não sei do que está falando, eu estava agora mesmo olhando para o meu purê com todo o amor do mundo. – riu, seus olhos analisando os gestos lentos de enquanto juntava seu purê ao bife, com o cuidado de ter a quantidade ideal dos dois.
– Ainda come com tanta preguiça. – Comentou o rapaz, achando graça quando as bochechas de ganharam um tom de vermelho muito forte. Desconcertada, ela alcançou sua taça de vinho e engoliu boa parte dele. cruzou os braços sobre a mesa e se inclinou em direção à ela como se quisesse confidenciar algo. – Não é o pior vinho que já tomou? – se perguntou se havia feito alguma careta, mas no fim deixou-se levar pela risada dele. – Eu finjo que gosto porque Mad adora.
– Ok, você finge que não fuma, finge que gosta do vinho favorito dela... – reprovou. – O que mais você finge? – Torceu, sem poder conter, que ele fingia também querer se casar.
– Finjo que gosto de James Morrison também. – Sussurrou, desfazendo a carranca de imediatamente, suas risadas se entrelaçando e criando um espaço familiar entre eles. – Sinto falta das nossas bebedeiras de vinho barato.
E embora não soubessem disso, foram arremessados diretamente para a mesma memória. Glastonbury de 2005. Quanto vinho e quanta chuva naquele ano.
Logo que Madson retornou, deixaram o restaurante e caminharam pelos arredores. Embora fosse um dia que chamou de pouco movimentado, havia um fluxo grande de pessoas o tempo todo, por todos os lugares.
A loja de vinil, que esperava ser uma espécie de espaço para antiguidades, era na verdade um prédio que, de modo geral, cheirava a novo. Objetos novos que faziam referência a coisas antigas. – jukebok com entrada para pendrive, roupas com estampa tie-dye que não haviam sido feitas em casa, discos de vinil novos custando muito mais do que costumava pagar em coleções inteiras de discos antigos.
Saiu de lá com um vinil 180g dos Ramones, que ela preferiu não saber quanto havia pago. Apenas aceitou o presente e aquele abraço estranho – um braço ao redor de seus ombros, o esbarrar da cabeça dele na sua, depois a distância e consequentemente o alívio.
E enquanto caminhavam pela calçada, desviando de pessoas que pareciam sempre tão apressadas, se lembrou de um tempo em que era confortável tê-lo por perto. Naquela época em que estavam sempre se esbarrando; Em que massageava sua orelha enquanto, deitada nas pernas dele, o ouvia ler em voz alta um dos livros da coleção da Agatha Christie que haviam comprado num sebo de Londres; em que suas pernas estavam sempre entrelaçadas quando, naquelas tardes de quarta, se sentavam no puff para ouvir música na loja de Duran.
Era melancólico que agora até o calor da presença dele causasse incômodo.
Cada vez que se aproximava, o coração de parecia gritar, em desespero, que ele se afastasse antes que fosse tarde demais. Já era tarde demais, e seu coração bem sabiam disso.
Levaram aproximadamente vinte minutos para chegar ao Getty Center. Deixaram o carro no estacionamento e pegaram o trem disponibilizado pelo museu. Passearam em silêncio pelo jardim que era, por si só, uma obra de arte criada por Robert Irwin. Madson atentou ao fato de que conforme andavam, de um lado para o outro, havia uma mudança no som do fluxo de água e que era proposital.
Passaram por alguns dos edifícios, observaram apenas uma parte das incontáveis pinturas e esculturas, mobílias antigas que cheiravam a lustra-móvel.
O fim da tarde já se aproximava quando chegaram ao Griffith Observatory. estava feliz que o sol estivesse se preparando para a despedida e logo o céu estaria recheado de estrelas, que ela poderia observar através de algum dos telescópios que estavam à disposição do público.
– É um lugar lindo. – Comentou, quase para si mesma. , parado ao seu lado, sorriu em resposta. Ela não viu, distraída com o letreiro de Hollywood e as luzes da cidade que, aos poucos, iam se acendendo.
– Foi o primeiro ponto turístico que visitei quando cheguei em Los Angeles. – Ele contou, e ela tentou imaginar o de anos atrás ali, naquele mesmo lugar. A vista parecia combinar melhor com ele do que com o que tinha agora ao seu lado.
– Você me enviou um cartão daqui. – Lembrou e deixou escapar um riso fácil ao recordar-se do que havia escrito nele. “Com os pássaros irei compartilhar essa vista solitária, porque minha melhor amiga não está aqui” dizia, fazendo menção a Scar Tissue, Red Hot Chilli Peppers, para depois alfinetar por sua ausência.
– É verdade, eu me lembro de ter comprado um na loja de souvenir. – recordou, apoiando os antebraços na balaustrada. Ficaram em silêncio por um tempo, observando a vastidão da cidade montanha abaixo. – Estou feliz que tenha vindo, . – Ela gostaria de soar sincera ao dizer que estava feliz de estar ali, mas temendo não conseguir, conteve suas palavras e esbarrou seu ombro no dele. – Sério... É muito importante pra mim.
– É bom te ver feliz. – Disse em resposta. E soou sincera como de fato estava sendo. O problema, concluiu, não era nem por um instante o bem estar de . Era, na realidade, o fato de ter se tornado claramente desnecessária em sua nova vida.
– Obrigado, poopface. – cedeu um sorriso. – Sinto muito que Tom não tenha conseguido vir.
– Ah, é. – E imediatamente ergueu-se, endireitando a postura num alongamento preguiçoso. – Em outra oportunidade, quem sabe. Vou dar uma olhada no telescópio.
– Vamos lá!
23 de Junho de 2006 – Sheffield, South Yorkshire, UK
O sol despontava em algum canto do céu daquele jeito meio inibido, escondendo-se por entre as nuvens como uma criança tímida que se esconde entre as pernas da mãe.
Ainda não havia clareado quando estacionou em frente à casa de . Saltou da Chevy 70 – que batizaram carinhosamente de Miss Lizzy em referência a “Dizzy, Miss Lizzy”, dos Beatles – e deu passos ansiosos até a porta, desejando acender seu primeiro cigarro do dia, mas reconhecendo que era muito cedo para isso.
Imaginou os olhos de erguendo-se, atentos ao som da campainha. Ela agarraria a mochila sobre a cama e, com ela pendurada em seus ombros magrelos, sairia em disparada pelo corredor, escadaria abaixo. Quando abrisse a porta, os cabelos estariam alvoroçados porque ela sempre se esquecia de pentear. Os olhos curiosos de sempre e um sorriso que faria a claridade débil daquela manhã parecer uma verdadeira piada.
Mas foi Martha quem apareceu. Cabelos alvoroçados, mas nenhum ânimo em sua expressão preocupada.
– , precisam mesmo ir a esse festival? – Disparou, dando espaço para que ele entrasse. Enquanto ouvia os passos apressados de no andar de cima, avançou pelo hall.
– Não precisa se preocupar, Martha, my dear. – Brincou ele, citando Beatles outra vez. – Não é um Woodstock, é mais familiar.
– Pois eu duvido muito! – Contestou ela, os olhos de se distraíram com a figura animada que vinha descendo as escadarias, dois degraus por vez. – Está marcando muita chuva, eu vi na previsão.
– Mãe, quando é que não está? – Argumentou e, quando próxima o suficiente, esbarrou seu ombro no de , um cumprimento bastante familiar entre eles.
– Sinto falta do tempo em que o mais longe que iam era o cinema do centro... E Stella esperava no carro. – Martha lembrou, nostálgica. – Por favor, se cuidem.
– Pode deixar, Martha... Vamos ficar bem! – garantiu e Martha confiou. Sempre confiava e era difícil não fazê-lo quando ele olhava para sempre com tamanho cuidado.
– Ok, vão logo. – E abanou as mãos como se quisesse enxotá-los. Os jovens se entreolharam com diversão, depois começaram a caminhar em direção à porta. – Estão levando guarda-chuva?
– Guarda-chuva, capas. – informou, inclinando-se para beijar o rosto de Martha em despedida. – E galochas!
– Que bom, não vou me voluntariar para desencardir tênis de ninguém! – Brincou a mulher, riu e a trouxe para um abraço apertado.
– Tchau, mãe... Tente, por favor, não arrancar todos os seus cabelos! – Pediu, soltando-se dela em seguida. – Eu te amo.
– Eu te amo, se cuida, por favor... – E quando já alcançavam Lizzy, acenaram para Martha mais uma vez. – Não fique só de sutiã! E não façam amizade com pessoas muito estranhas...
– E sexo? – provocou. gargalhou, ajeitando-se em seu assento. Martha estava escondida entre suas mãos, mas os dois sabiam que ela estava rindo.
– Se cuidem! – Gritou uma última vez. esperou até que estivesse acomodada para dar partida.
– Pronta, copilota? – Perguntou. sorriu com todos os dentes quando ouviu o sutil “click” de seu cinto de segurança, devidamente preso.
– Glastonbury, aqui vamos nós!
ligou o rádio que havia ganhado de seus pais em seu aniversário de 18 anos, apenas dois meses atrás. De havia ganhado um cartão, explicando o atraso do presente, que só chegou no início de Junho, o novo CD da banda Coldplay, X&Y, que rodava na caminhonete naquele instante.
Do porta-luvas, retirou o mapa que havia imprimido no dia anterior. A rota que deveriam fazer havia sido previamente tracejada de vermelho por ele, mas ela gostava de pensar que era a responsável pelas coordenadas.
Enquanto assistia a claridade cinzenta se espalhar pelo céu, pensou em todos aqueles últimos dias, na ansiedade da espera, nos planejamentos para a viagem. Em todos os enredos e roteiros que acabara criando, agora habituada à frustração que geralmente acompanhava tal costume. – chamava de “neurose de escritor”. Fazia pouco e muito sentido ao mesmo tempo.
Os olhos de correram para o canto, tentando observá-la sem ser percebido. , com os pés livres dos coturnos apoiados no painel do carro. O mapa aberto e apoiado nos joelhos não recebia nenhuma atenção de seus olhos, que vagavam janela afora, pela paisagem que ficava para trás em forma de borrões conforme avançavam. Seus cabelos longos agitados pelo vento, espanando o respaldo de seu assento. Um sorriso que ela esqueceu nos lábios.
soube: ainda que aquele festival não valesse a pena, aquele sorriso sempre valeria.
Pararam em um posto de gasolina próximo à Worcester, duas horas e vinte minutos depois de saírem de Sheffield. Enquanto abastecia Lizzy, foi ao banheiro. E enquanto foi ao banheiro, passou pela loja de conveniência e encheu uma sacola com todo tipo de guloseima. Não comeriam nem metade – mas sua fome fez parecer que sim.
Pouco antes de caírem na A37, que os levaria até a Worthy Farm, começaram a surgir placas coloridas anunciando o festival, apontando as direções para as quais deveriam ir. reduziu para a quarta marcha, terceira, segunda, avançando cada vez menos. empertigou-se em seu assento, abaixando seu vidro e enfiando a cabeça pra fora.
– ! Estamos oficialmente no congestionamento do Glastonbury!
viu-se cheio do entusiasmo que vinha dela – de seus olhos arregalados, sorriso desmedido, corpo impulsionado janela afora.
Nos primeiros vinte minutos havia gente buzinando por toda parte, cantoria, grupos de pessoas que desceram de seus carros e iam passando, de janela em janela, pulando e oferecendo um cantil com qualquer coisa que eles não arriscaram experimentar. Aos poucos, porém, tudo o que restou foram os piscas-alertas ligados, uma buzina aqui, outra ali.
encostou em sua porta e esticou as pernas pelo assento da caminhonete. Observou do lado de fora, manuseando sua câmera profissional que ganhara dos seus avós no início do ano, quando adentrou para o curso de fotografia na Sheffield Hallam University.
Lembrou-se de quando a notícia chegou e ela ficou dividida entre a alegria de vê-lo alcançar algo que realmente queria e o receio de que estivesse muito próxima de perdê-lo para a novidade. Temeu que o curso e todas as pessoas que ele traria para a vida de fizessem dela a amiga de infância, não a amiga de uma vida inteira.
A mudança era inevitável, reconheceu com o tempo. tinha uma rotina diferente agora. Levou um tempo até se acostumar a passar pelos portões da Notre Dame e não vê-lo cruzando o jardim, os cabelos caídos pelo rosto, o corpo inclinado para frente como se o peso de sua mochila fosse maior do que pudesse carregar – sabia que esse era o menor dos fardos que teve de carregar no colégio.
Também precisou se acostumar a não esperá-lo nos portões da Tapton. Nada de almoços alternativos no parque, nada de loja do Duran nas quartas. Mas ainda se falavam por telefone quase todos os dias e se encontravam nos fins de semana. a convidava para todas as festas universitárias, onde ficavam até conseguirem roubar uma garrafa de vodca para beber em qualquer outro lugar, sem aquela música eletrônica que eles não sabiam dançar.
Ainda era . Com menos tempo, mais maturidade, talvez. Mas ainda , seu melhor amigo... Por quem estava ligeiramente apaixonada, embora faltasse coragem de admitir até pra si mesma.
saltou pra dentro da caminhonete quando os carros começaram a andar. O cigarro aceso entre os lábios. Soltou sua câmera no colo da amiga antes de dar partida e avançar pouquíssimos metros atrás do micro-ônibus que estavam seguindo desde que caíram na A37.
posicionou a câmera, ainda ligada, em direção a ele. Não tinha o olhar de , não sabia os melhores ângulos, técnicas de foco e posicionamento, mas de alguma forma conseguiu capturar naquela foto uma imagem de muito particular, como se houvesse uma versão dele que era só sua. Um que só era aquele na sua presença. E para não havia pessoa mais bonita.
Por volta de duas horas depois, passaram por uma placa chamativa que dizia “Welcome to Glastonbury”. Separaram-se do micro-ônibus para entrar em uma fila só de carros. Seguiram lentamente pela rota azul até adentrarem um dos estacionamentos públicos. Dali seguiram caminhando com suas mochilas e a barraca.
Os portões haviam sido abertos há, no máximo, três horas, mas já havia tanta gente e tantas barracas montadas que por um instante se perguntaram se encontrariam um lugar no camping que planejaram ficar.
Quase vinte minutos de caminhada depois, e sentiam como se estivessem presos numa estufa colossal. O dia estava quente e abafado, apesar de nublado. Eles torceram para que houvesse um bar próximo ao camping onde ficassem instalados – se é que alguma coisa poderia ser considerada “próxima” ali.
Em uma lista de campsites onde preferiam ficar, Row Mead vinha em segundo lugar. Logo que encontraram um espaço suficiente na área, soltaram suas bagagens na grama. Depois seus corpos cansados e suados.
– Precisam de ajuda aí? – Perguntou o cara da barraca ao lado, ao reconhecer a dificuldade que os jovens encontravam para montar sua tenda. Estavam em um grupo grande, sentados em cadeiras dobráveis, com uma espaçosa caixa térmica no centro.
– Seria legal! – disparou, ofegante. – Parecia mais fácil na embalagem! – Brincou. O rapaz riu e deixou sua longneck de lado para começar a manusear o tecido resistente da barraca.
– Sempre parece. – Disse, enquanto trabalhava. – É a primeira vez de vocês aqui?
– É. – e concordaram.
– Legal, vocês vão se divertir. – Não levou dez minutos até que a barraca estivesse devidamente montada. – Pronto!
– Valeu! – agradeceu, apertando a mão do “vizinho” temporário.
– Prazer, cara... Sou Simon, vocês são?
– Sou , essa é . – Simon se alongou para alcançar a mão estendida de .
– Qualquer coisa que precisarem, é só falar...
– Obrigada! – disse. – Você sabe dizer onde tem um bar aqui por perto?
– Claro!
E imediatamente Simon apontou para vários lugares, apresentando as direções que deveriam seguir para encontrar os bares, banheiros, postos de informação, enfermarias. Parecia completamente habituado a tudo ali, sem nenhum dos receios que e compartilhavam um com o outro, mas que começaram a se dissipar a partir daquele momento.
Deixaram suas mochilas e casacos dentro da barraca e seguiram o caminho até o bar mais próximo – apontado por Simon. Compraram uma água e duas cervejas, ajudariam no passeio que pretendiam fazer para conhecer as atrações ao redor.
Já passava do meio dia quando pararam em uma tenda e comeram um cachorro quente. Dividiram um refrigerante e levaram duas cervejas para o resto da caminhada de volta ao camping.
ainda estava dormindo quando despertou. A escuridão fazia parecer tarde da noite, mas seu relógio de punho marcava seis e quarenta e sete. Saiu da barraca a tempo de ver um relâmpago tremeluzir no céu, pouco antes de um trovão murmurar, manso e preguiçoso.
O grupo ao lado de sua barraca estava sentado em círculo, parte deles em cadeiras dobráveis, parte em toalhas estendidas na grama. Um dos rapazes tocava habilmente as cordas de um violão velho. Pimball Wizard, The Who.
– Ei, ! – Simon chamou, depois acenou com a mão. – Vem pra cá! Cadê sua namorada? – abriu a boca para responder, mas se aproximou em silêncio, puxando os cabelos pra trás, como costumava fazer diante do desconcerto.
– Ela é minha amiga... Está dormindo. – Esclareceu. E como se ainda estivesse se acostumando ao convite, ficou em pé um tempo.
– Quer vinho? – Ofertou a moça mais próxima da caixa térmica, usava uma saia longa e um tope feito de crochê. Os cabelos vermelhos e volumosos.
– Quanto é? – perguntou, já levando a mão no bolso de trás do jeans.
– Não é nada. – Respondeu ela, como se fosse óbvio, depois pegou um dos copos plásticos para servi-lo. – Sou Julie, a propósito.
– ...
Ela inclinou-se, estendendo o copo para . Ele agradeceu com um sorriso, depois molhou os lábios com o vinho barato. Controlou uma careta, mas não o arrepio. Julie riu de um jeito propositalmente exagerado, como se tentasse parecer mais bêbada do que estava. não se importava, tampouco julgava. Gostava de pensar que ela tinha seus motivos. Gostava também de tentar descobrir quais poderiam ser.
arrastou-se para fora da barraca, encolhida dentro de sua jaqueta de couro. Enquanto se aproximava, começou a sorrir. Observou-a enquanto acenava para todos ao redor, sempre menos constrangida que ele, para depois sentar-se ao seu lado.
Dividiram o copo de vinho, fumaram alguns cigarros, cantarolaram algumas canções. fez algumas fotos do grupo, mas não gostou do resultado. Gostaria que parecessem à vontade, mas a espontaneidade forjada estava por toda parte. Que injusto era não poder registrar imagens com os próprios olhos.
Teria fotografado, desapercebido, os sorrisos lascivos trocados por um dos casais antes de sumirem para dentro de sua barraca. O momento em que Simon riu sozinho de si mesmo, depois de derramar um pouco de whisky em sua camiseta. A emoção genuína de Julie ao cantar Blowing In The Wind – foi provavelmente o primeiro e único momento da noite em que ela pareceu real, e ele perdeu, pois ao erguer as lentes em direção à ela, assistiu seu rosto adotar uma expressão plastificada. Uma nova emoção nascendo, e não era verdadeira e bonita como a anterior.
Convidou para caminhar. Em passos sem pressa, alcançaram o alto de uma colina que chamavam de “Green Fields”. Dali o festival resumia-se num amontoado de barracas e pequenas luzes.
Sentaram-se, sem fôlego e desfrutaram do silêncio e do vento fresco, que era provavelmente um sinal de que a chuva, prometida na previsão, se acercava.
deitou o corpo pra trás, apoiando seu peso nos cotovelos. Os olhos esquecidos sobre a figura de , sentada ao seu lado com a postura desfeita, cabelos presos num nó estranho. Quis esticar a mão e brincar com a mecha solta, mas por algum motivo temeu que parecesse inapropriado, invasivo. Apaixonado.
Como num romance clichê dos anos 90, havia decidido, anos atrás, aquietar seu coração a respeito de . Mas às vezes ele gritava alto demais, esperneando em seu peito como uma criança mimada que não conseguiu o que queria. Havia sempre o receio de que, se chegasse muito perto, pudesse ouvi-lo. Então mantinha uma distância saudável. Conhecia bem o suficiente para perceber caso seu sentimento fosse correspondido – não era.
cometera alguns enganos ao longo de sua vida.
Nenhum poderia ser tão frustrante quanto esse.
“– Steven? – Ouvir minha própria voz fez com que me sentisse real outra vez, depois daquele período confuso que eu jamais saberia dizer se foram minutos ou horas. Ela expressava toda a dor e desesperança que eu carregava comigo pelos corredores daquele lugar, que em nada me era familiar, mas que se parecia tanto comigo naquele momento. Gelado, úmido, fétido, solitário. Assustador. – Stev. – Eu implorava, escorada na parede coberta de lodo daquele labirinto sem fim. Tentei evitar minha mão, o que não parecia difícil quando ela não me servia de nada, esmagada e dormente, inútil, pendurada no fim do meu braço...”
parou de ler e virou o rosto na direção de .
– Por que você faz isso?
– O quê? – Ela desencostou-se do ombro dele, um sorriso escondido no canto de seus lábios.
– Esmagar a mão das pessoas, isso é horrível, ! – protestou, mas a realidade é que adorava ler tudo o que ela escrevia.
– Essa não é a intenção de livros de suspense? Causar aflição? – E depois voltou a aconchegar-se contra ele. esqueceu-se, por um instante, do que deveria fazer para respirar. Torceu pra que ela não notasse sua breve distração.
– Está com sono? – Ele quis saber. chacoalhou a cabeça negativamente, mas sabia que ela iria dormir tão logo que ele voltasse a ler. – Certo, vamos lá!
fechou os olhos quando mirou a lanterna para a página impressa. Ele aclarou a garganta antes de retomar a leitura. Sua voz, sempre grave e forte mesmo quando garoto, adotava uma ligeira rouquidão quando estava num tom abaixo do normal. Era sempre ele quem lia, porque gostava do seu jeito de ler, dando vida aos personagens, fazendo com que os cenários se construíssem em sua imaginação, parecendo ainda mais reais do que quando os escreveu.
Ela dormiu antes do fim.
desligou a lanterna quando terminou, abandonando-a junto das folhas ao seu lado, no pouco espaço que tinham. Precisava se lembrar de comentar com sobre quanto tinha gostado do final, pensou ele enquanto apoiava sua bochecha no topo da cabeça dela. E enquanto brincava de fingir que eram um casal, dividindo aquela barraca e aquele fim de semana, pegou no sono.
Capítulo 4
13 de Julho de 2016 – Los Angeles, Califórnia, USA
Em contradição aos 23oC, o corpo de tremia sob o cobertor – enjoada do perfume adocicado do quarto e daquela sensação de ser pequena demais, que a carregava numa viagem de volta ao período da escola.
A pequena , que de tão comum tornava-se irrelevante. Notas e comportamento satisfatório – nada que chamasse atenção positiva ou negativamente. Não fazia parte das cheerleaders, nem dos matletas. Não estava em nenhum tipo de grupo específico, time ou corporação. Tinha algumas amigas, mas nunca as encontrava fora da escola
Desapercebida, era talvez a palavra que melhor definisse a passagem de pela escola.
Quando pensava sobre isso durante sua adolescência, costumava fantasiar uma imagem de si mesma se desfazendo – às vezes em partículas que voavam para longe, às vezes enfraquecendo até desaparecer por completo. Mas o telefone tocava, e era . A campainha soava, . A buzina velha de Lizzy, . Uma gargalhada quando ela já estava quase pegando no sono, . Um flash repentino quando ela estava dispersa, .
evitou que sucumbisse. E fez o mesmo por ele.
Eram reais um para o outro, o que os tornava reais pra si mesmos.
E naquela noite, dez ou onze anos depois de deixarem a escola, viu-se desaparecer outra vez. Em sua mente, uma imagem de si mesma retrocedendo pelos anos, cada vez menor, mais fraca e impotente, até não restar nada.
E não bateu na porta.
empurrou o cobertor e alcançou seu cardigã no mancebo, vestindo-o sobre o pijama que usava. Atravessou o corredor e avançou escadaria abaixo, manuseando a carteira de cigarros e desejando que estivesse em casa – ao menos saberia onde encontrar o whisky.
Cruzou a cozinha escura e saiu na varanda dos fundos. Não estava ventando, mas sentiu como se respirasse melhor ali, sentada no mesmo degrau onde encontrara madrugada passada. Ele não estava dessa vez. Durante a tarde havia contado, quase com deboche, sobre a bronca que recebeu pela manhã, quando Madson identificou o odor de cigarro em seu casaco.
Diante da desesperança da realidade, costumava começar novas histórias em sua cabeça, que poderia ou não colocar no papel mais tarde. Naquela noite nada lhe ocorria, além de rindo com sua testa escorada na de Madson, quando o sogro fez alguma piada sobre o casamento durante o jantar.
Uma camada de lágrimas embaçou sua visão, mas secaram com a mesma rapidez quando a luz da varanda se acendeu. Seu rosto virando-se, de súbito, em direção à cozinha. O coração dolorosamente apressado, assustado e otimista – depois desapontado, ao encontrar o olhar curioso de Madson.
– Insônia? – Perguntou a moça, encostando a porta atrás de si e se acercando de em pouco passos.
– Às vezes meu coração fica claustrofóbico de viver dentro de mim. – Brincou. Madson sentou-se ao seu lado, risonha. – Você se importa? – Perguntou, mostrando o cigarro aceso entre os dedos.
– Não, tudo bem. – E lançou um sorriso verdadeiro. – Há quanto tempo fuma?
– Desde os 15. – não soou orgulhosa, mas também não estava preocupada.
– Você e começaram juntos?
– Hm... Mais ou menos... Eu comecei antes. – Seus lábios sorriram com culpa. Madson soltou um riso divertido. – Parei antes também, mas já parei e voltei tantas vezes que perdi as contas.
– fumava quase dois maços por dia quando o conheci. – não estava surpresa. – Agora ele fuma escondido às vezes.
– Nunca é escondido de verdade, né? – Madson riu, a cabeça balançando negativamente. – Nós fumamos escondido por um tempo, ou achávamos que sim...
– Ele disse que sua mãe bateu em vocês dois. – E foi a primeira vez que Madson viu gargalhar.
– Isso foi quando ela encontrou maconha na minha mochila. – Comentou, risonha. – Ela foi durona.
– Drogas, huh? – não esperava que fosse um segredo e quis se sentir mal pela revelação.
– Não... Quer dizer, fumamos maconha algumas poucas vezes... Nada além disso. – Esclareceu, depois tragou seu cigarro pela última vez.
– nunca contou. – Madson comentou, reconheceu a consternação em sua voz.
– Ele não faz por mal, só... Não é algo que se orgulha. – Supôs, cuidadosa.
– Hm, enfim! Ele disse que você trabalha em uma editora?
– Ah, sim. – queria acender outro cigarro, mas conteve-se.
– Você gosta?
– Gosto! Na verdade eu esperava que fosse gostar mais quando estava na universidade. – confidenciou, embora não parecesse fazer sentido conversar sobre coisas como aquelas com Madson. – Mas não é algo que eu desgoste também...
– O que você faz, exatamente?
E, bem, se pretendiam mesmo bater um papo naquela madrugada, tomou coragem e perguntou se havia algo que pudessem beber. Madson arranjou uma garrafa de whisky e dois copos, decidida a acompanhar em uma dose, depois de confidenciar que não costumava experimentar nada muito forte.
Entre um copo e outro, compartilharam algumas histórias. Madson contou sobre algumas situações que vivenciou em seu trabalho como designer de interiores – relatando com carinho sobre ter conhecido ao ser contratada para decorar os escritórios da empresa de seu pai.
conhecia apenas a versão acelerada e desinteressada de . “Eu disse que não tinha novidades, mas lembrei que tenho uma, hm, eu estou saindo com a decoradora lá da empresa...”, contou ele ao telefone. “Ah, ela é legal”, respondeu quando quis saber sobre Madson.
decidiu resumir a história de como ela e haviam se conhecido porque não sentia-se confortável compartilhando lembranças que agora pareciam muito distantes. Madson, por sua vez, lembrou-se da versão afetuosa que havia contado anos atrás, quando começaram a se conhecer melhor. Quando era ainda mais presente em sua vida.
Ela nunca havia, de fato, deixado de fazer parte dos discursos de , mesmo quando se falavam tão pouco. Vez ou outra ele dizia “ ia achar isso legal”, “ morreria de rir disso”, ou “uma vez eu e fizemos tal coisa”. Madson quase sempre via-se entregue ao ciúme, mas aos poucos aprendeu a conviver com a ausência sempre tão presente da melhor amiga de seu namorado.
Meia garrafa depois, escorou Madson em seus ombros e a conduziu escadaria acima, ouvindo suas gargalhadas e palavras de apreço motivadas pelo álcool.
Já estavam no meio do corredor quando entreabriu a porta do quarto que dividia com Madson. Cabelos desalinhados e apenas um dos olhos abertos, lidando com a claridade.
– O que houve? – Perguntou, dando um passo para fora do quarto.
– Roubamos uma garrafa de whisky do casamento... Ups! – Madson exclamou, depois desmanchou-se numa gargalhada. olhou com diversão para .
– Eu sei que pareço a responsável por isso. – Comentou com uma expressão engraçada.
– Continua uma péssima influência, ! – Brincou o rapaz, tentando ajudá-la com Madson.
– Com louvor! – Exclamou a melhor amiga, arrancando uma risada divertida de .
Os olhos de fugiram para encontrar . Ela segurava com zelo os cabelos de Madson, que acabou aquela noite ajoelhada entre eles, com o corpo curvado em direção ao vaso sanitário.
Ele desejou, por um instante, que o flagrasse. Que olhasse pra ele como vinha evitando fazer. Que dissesse qualquer coisa, mesmo sem dizer nada. Sentia falta daquela transmissão de pensamento fajuta, que no fim era só o fato de se conhecerem bem o suficiente para saberem o que pensavam em determinadas situações.
Gostaria de saber o que ela estava pensando naquele exato momento.
Gostaria de saber o que ela estava pensando o tempo todo desde que chegara ali, com seus olhos frios e aquele abraço que levou direto a um inverno rigoroso.
– Bom, ela vai ficar bem. – comentou, logo que deixaram Madson sobre a cama em sono profundo.
– Não acredito que o primeiro porre da minha namorada foi com você. – Comentou , falsamente inconformado.
– Dizem por aí que o primeiro porre tem que ser sempre com alguém confiável. – Ele riu alto demais e, num gesto automático, cobriu a boca dele com a mão. – Shh!
– Está com fome? – perguntou enquanto caminhavam até a porta do quarto, seus corpos se esbarrando de um jeito familiar.
– Não... Mas aceito um café.
24 de Junho de 2005 – Worthy Farm, Pilton, UK
Era engraçado que uma mesma nuvem pudesse tomar tantas formas diferentes. Um cachorro. Um golfinho. Um avião. Depois um corpo humano. Cabelos enormes. Seios maiores ainda. fechou os olhos, mas era pior de olhos fechados, então tornou a abri-los. Pequenos, sonolentos. Quanto sono.
Ia chover, ele pensou rapidamente quando a nuvem cinzenta foi iluminada por um relâmpago. Queria avisar , “vai chover”, mas quando as palavras estavam se formando, ficou com preguiça de dizê-las. Não tinha certeza se tinha dito ou não, mas ela estava rindo. Ele tampouco se lembrava de ter perguntado o motivo, mas ela explicou assim que notou seu olhar. “Você tá bem louco”. E então começou a gargalhar junto com ela, porque estava mesmo bem louco.
queria um sanduíche. Disse isso enquanto se aninhava contra . Ele acariciou seu cabelo e gostou da sensação dos fios deslizando por entre seus dedos dormentes. Podia ouvir a respiração dela, mais alta e mais próxima. Queria poder entrar em sua cabeça e esconder-se em qualquer curva dela, saber o que se passava por lá, ouvir seu próprio nome de repente.
não sabia há quanto tempo estava ali, ou por quanto tempo havia mantido os olhos fechados, mas o céu de repente parecia mais escuro. desenrolou-se de seu abraço e se levantou numa ligeireza que não se via capaz de ter. Ela estendeu a mão e o ajudou a se levantar. “Está chovendo”, ela disse, “vamos comer”. Não fazia sentido, mas não precisava fazer.
A caminhada pareceu mais longa do que das outras vezes que percorreram o mesmo caminho. A chuva caía de forma gentil, fazendo cócegas em seus rostos. queria beber cada uma daquelas gotas tamanha sua sede.
Dois sanduíches cada um. Um saco de cookies para comer no caminho de volta.
– Nossa, cadê todo mundo? – perguntou, montada nas costas de . Suas roupas e cabelos encharcados da chuva que agora caía em gotas pesadas.
– Eu acho, mas só acho que estão se abrigando da chuva. – Brincou, cheio do deboche que adorava. Ela gargalhou, o queixo apoiado no ombro dele.
– Estamos chegando?
– Estamos...
Mas não estavam.
E quando chegaram, sentiu todo o cansaço da caminhada abatê-lo de uma só vez. pulou de suas costas e correu para dentro da barraca. Ambos sujos e ensopados.
– Um pinto no ninho. – sugeriu, naquela brincadeira tola de trocar por genitais uma palavra no título de um filme.
– Vagina mecânica! – A gargalhada dos dois preencheu a pequena barraca.
– Brilho eterno de uma vagina sem lembranças! – falou, mal conseguindo parar de rir.
– Clube da vagina!
– o estranho pinto de jack.
– Fui aceita em Leeds. – Não houve nenhuma gargalhada dessa vez. ergueu um pouco a cabeça, tentando olhar para o rosto dela.
– Oi?
– Fui aceita na Universidade de Leeds...
– ! – exclamou. – Que boa notícia! – Ele sentou-se primeiro, foi erguida em seu abraço apertado. – Parabéns, poopface!
– Obrigada. – Murmurou, os olhos fechados. – Eu não disse a minha mãe ainda... Não fale nada perto dela.
– Ok. – reconheceu o olhar receoso de . – Por que ainda não disse?
– Não sei se quero ir. – Confidenciou, os olhos fixos nos farelos de cookie espalhados pelo chão da barraca. – Você sabe... Somos eu e ela, não sei como vai ser quando eu não estiver.
– , não leva uma hora até Leeds, você pode vê-la sempre que quiser. – Ela se perguntou se , em algum momento, se sentiria da mesma forma que ela ao descobrir que ele estava indo para a universidade.
– Eu gosto de Sheffield. – Insistiu, a voz mais baixa, quase constrangida.
– Bom, você tem até agosto para pensar sobre isso, não é? – concordou com a cabeça, esbarrou o ombro no dela, expressando apoio. – Você vai saber o que fazer quando chegar a hora.
não conseguiu pegar no sono tão rápido quanto , desconfortável com a imagem que criou dela desaparecendo dentro de um trem. “Não leva uma hora até Leeds”, repetiu a si mesmo o que havia dito à ela. Levava, para ser exato, 01h15 minutos. Que pareciam dias de distância quando pensava que não poderia simplesmente aparecer na porta da casa dela, no meio da semana, para fazerem qualquer coisa – e nem importava o quê. Não poderia levar biscoitos de nata pra ela toda vez que sua mãe fizesse. Tampouco poderia convidá-la para dar uma volta pela cidade tarde da noite.
estaria a 35 milhas de distância. O suficiente para perder-se dele.
– , acorda. – chamou. Sua voz emergente fez com que ele se sentasse ao mesmo tempo em que retomava a consciência.
– O que está acontecendo?
Havia água por toda parte.
A chuva caía com um aspecto diluviano, colidindo ameaçadoramente contra o tecido da barraca. Era como se a qualquer momento fosse desmantelar o frágil abrigo, começando pela sutil invasão, inundando o chão, molhando suas roupas e mochilas.
não sabia se era boa ideia – e não era –, mas abriu a barraca. Uma correnteza de água e lama avançou para dentro, cobrindo-os até a canela. Entre palavrões de todos os tipos, marcharam para fora, passos limitados pela enchente.
– Precisam de ajuda? – Gritou Simon, sua barraca era grande e resistente, não parecia afetada. Ao contrário de tudo ao redor.
– Nossa barraca já era! – soou desesperado.
– Vocês pegaram tudo aí dentro? – reconheceu o cara que tocava violão no dia em que chegaram. Ele tomou a liberdade de colocar a mochila dela em seu próprio ombro.
– Acho que sim! – respondeu, mas não tinha certeza. Era como se não estivesse completamente acordado e talvez de fato não tivesse tido tempo pra isso.
– Simon, vamos colocar as coisas na nossa barraca...
– Certo! – Simon abriu uma parte do zíper, apenas o suficiente para que passassem as mochilas para dentro, sem deixar que a inundação entrasse. – Depois pensamos no que fazer, não se preocupem.
– Será que vão cancelar as apresentações? – perguntou à Simon.
– Pelo que parece, só os da manhã...
– No Pyramid cancelaram Adjágas e The Subways. – Ewin informou. – É tudo que sabemos até agora...
– Todo mundo bem aqui? – Um policial gritou, os olhos vagando por todos os cantos.
– Sim! – Simon gritou de volta. – Tudo sob controle!
Não estava tudo sob controle, mas o público não parecia se importar tanto assim. Hora ou outra passavam pessoas completamente cobertas de lama, ou nadando pela correnteza. Sim, nadavam pela correnteza.
encontrou apenas uma das capas de chuva dentro de sua mochila, então convenceu a vesti-la. Quando a chuva começou a amenizar, caminharam até um dos banheiros, onde conseguiram trocar suas roupas e calçar suas galochas.
Encontraram com o grupo da barraca ao lado no centro do festival, em frente ao palco Pyramid. A vantagem era que, embora houvesse lama por toda parte, a enchente não havia alcançado aquela área. A desvantagem é que, por conta disso, grande parte do público havia se concentrado ali.
– Desculpa. – murmurou, não era para ninguém em específico, mas para todas aquelas pessoas em quem estava esbarrando enquanto o rebocava pelo meio da multidão, tentando chegar mais próxima do palco. – Desculpa. – Ele ia dizendo, enquanto tentava não se soltar dela e correr o risco de não encontrá-la mais. – Desculpa. – Ninguém estava de fato ouvindo, ou se importando. Deveriam ser os únicos que não estavam pulando ao som de Somebody Told Me, a música de abertura do show de The Killers.
Era o penúltimo show daquela sexta-feira e era também o mais esperado por . O cansaço encontrava brechas para se manifestar – agora, com o álcool baixando guarda, tinham vontade de sentar nas músicas que não conheciam ou não gostavam, e se pegou torcendo pra que concordasse em assistir ao último show, da banda The Whipe Stripes, acomodada em algum lugar.
começou a vibrar assim que Brandon Flowers conduziu Dave Keuning mais à frente do palco, quase 40 minutos depois do início do show, para tocar aquela que era sua música favorita. esbarrou o braço no dela e, ao ganhar seu olhar desatento, abaixou-se, indicando as costas pra que ela subisse. Sem hesitar e com seu maior sorriso, deixou que ele a erguesse em seus ombros – que de repente pareciam, para , indiferentes à exaustão decorrente das últimas 12 ou 13 horas de festival.
“I just can’t look it’s killing me and taking coltrol”, cantava a plenos pulmões aquela música que dizia tanto sobre ciúmes, e não parava de pensar em como soava irônico e provocativo. Lembrava-se o tempo todo de e Edwin dividindo um cigarro no meio daquela tarde, enquanto ele, evitando a cena, cantarolava sem nenhum entusiasmo o refrão de Valerie – era sua música favorita dos The Zutons e agora estava vinculada àquela memória malquista.
– Eu queria dar um beijo na boca de quem fez esse hambúrguer! – disparou, depois da primeira mordida.
– Uma pena que eu só saiba fazer hambúrguer de soja. – Edwin disparou e a turma explodiu em gargalhadas exageradas. e compartilharam um olhar rápido e discreto.
– Eu adoro carne, não vai acontecer. – brincou, mas havia uma falta de jeito em sua voz que bem conhecia.
– Acho que pela vale comer um bife, Ed! – Julie considerou, sua voz soou arrastada e divertida.
– Se ela me pedir, vou agora mesmo comer um hambúrguer. – , com a cabeça baixa, ergueu os olhos e observou sob os cílios. Ela manteve a atenção em seu sanduíche, claramente constrangida. E não de uma maneira positiva. – O que me diz, ? – esperava ansioso que ela fosse se manifestar e, na realidade, estava surpreso que ainda não o tivesse feito. Não precisava defendê-la, era o que ela sempre lhe dizia.
– Acho que ela não tá a fim, cara. – Eles mal ouviram a voz de naqueles três dias inteiros, mas a reconheceram naquele momento. o observou, surpresa e agradecida na mesma proporção.
– Que tal se ela falar por si mesma? – Edwin retorquiu, não grosseiro, mas debochado. achou que era ainda pior.
– Talvez você não saiba, mas silêncios dizem muito. – A turma desmanchou-se em uma gargalhada provocativa.
– Vamos, . – convidou, se levantando de seu lugar. – Simon, vamos passar para pegar nossas coisas na barraca.
– Pessoal, pessoal, se acalmem! Edwin só está sendo galante...
– Está tudo bem. – disse, as mãos nos ombros rígidos de , incentivando-o a caminhar para longe dali. – Boa noite, pessoal... E, Edwin... Respeitar animais é muito legal, respeite as pessoas com a mesma dedicação.
A manifestação ruidosa foi ficando cada vez mais distante e menos audível, até não restar nada. Os músculos de continuaram enrijecidos, ombros contraídos, maxilar apertado. Ficou esperando, ao longo da caminhada até a barraca de Simon, pelo momento em que viraria e lembraria ele que sabia se defender sozinha. Ele sabia que sim. era da luta – sempre carregando sob a manga palavras sóbrias e sensatas, nunca agressivas. Conviver com ela era quase sempre educacional.
Reconheceram primeiro a barraca de Simon, para só então identificarem a deles, agora um amontoado de tafetá sob um grande acúmulo de lama. teve vontade de levar embora. Havia prometido, ao lhe presentear com o ticket do festival, que seria um fim de semana legal e no primeiro dia de shows já não tinham nem barraca para dormir.
, porém, não parecia se importar. Sustentou sua mochila nos ombros e brincou: “Lizzy não nos abandona nunca”. Seguiram, então, em uma caminhada que não pareceu tão longa na quarta-feira quando chegaram, motivados pela ansiedade e expectativas positivas. Naquela madrugada, esgotados, diriam que havia levado bem mais de uma hora para chegarem ao estacionamento.
esperou até que vestisse uma roupa seca e só depois de conferir se ela estava devidamente segura e acomodada na cabine, foi para a traseira. Arrastou-se sob a lona que cobria a caçamba e livrou-se das galochas antes de enrolar-se no cobertor restante, que apesar de grosso não evitava o incômodo da superfície dura na qual estava deitado.
Lembrou-se de todas as vezes que ele e estacionavam Lizzy no observatório inativo, onde podiam ouvir música alta e dividir uma garrafa de qualquer coisa, deitados naquele mesmo lugar onde ele estava agora, sem aquela lona ocultando o céu, que na maioria das vezes estava só nublado, mas naquela noite transbordava sem parar.
Com os olhos fechados, visitou todos os momentos daquele dia, com a impressão peculiar de que havia passado muito tempo desde que acordaram, como se a enchente tivesse sido dias atrás – mesmo o primeiro show da sexta já se tornava uma memória longínqua.
O cansaço foi relaxando seu corpo dolorido, sua consciência começou a desfazer-se em lacunas, fazendo com que tivesse a sensação de sonhar antes de dormir. Quando já estava quase completamente adormecido, ouviu a porta da cabine abrir, depois fechar.
Ergueu o corpo, o pouco que a lona permitia, seu coração batendo assustado. Já estava se desfazendo do casulo que havia construído com seu cobertor quando viu surgir do lado de fora da traseira. Ela abaixou o rosto, como se verificasse sua presença ali e depois engatinhou para deitar-se ao seu lado.
– Estava muito confortável na cabine. – Sussurrou, como se tivesse alguém para acordar. – Achei que não combinava com meu estilo de vida selvagem. – achou graça e sabia que ela também estava rindo. Gostaria que houvesse claridade o suficiente para olhar a diversão em seu rosto.
– Você deveria ficar lá, , vai acordar quebrada amanhã. – Ele advertiu, pegando uma jaqueta na mochila e enrolando-a o suficiente para que usasse como travesseiro.
– ”Oh, uma vez fui ao Glastonbury, dormi na cabine da Chevy do meu amigo, acordei renovada” não parece algo divertido de se contar aos filhos, . – Ela dizia, enquanto se aninhava preguiçosamente contra ele, ignorando o travesseiro improvisado.
– É, não é muito rock ‘n’ roll. – Ele murmurou, aconchegando-se à ela. Ficou imaginando o que poderia acontecer caso ela dissesse que, na verdade, estava ali porque não queria dormir em um lugar onde ele não estivesse. Estava sempre tão próximo de beijá-la que temeu perder o controle em algum momento.
– ... Obrigada por se manifestar hoje... Com o Edwin. – agradeceu, e surpreendeu-se com seu tom honesto. Não soou constrangida como costumava soar todas as vezes que se desculpava por qualquer coisa ou agradecia qualquer pessoa.
– Bem, eu ia bater nele, mas depois você diria que violência não resolve as coisas etc. – gargalhava antes mesmo de terminar.
– Você ia acabar com ele! – Ela disse, zombeteira e sonolenta. – Boa noite, bad boy.
– Boa noite, poopface.
Em contradição aos 23oC, o corpo de tremia sob o cobertor – enjoada do perfume adocicado do quarto e daquela sensação de ser pequena demais, que a carregava numa viagem de volta ao período da escola.
A pequena , que de tão comum tornava-se irrelevante. Notas e comportamento satisfatório – nada que chamasse atenção positiva ou negativamente. Não fazia parte das cheerleaders, nem dos matletas. Não estava em nenhum tipo de grupo específico, time ou corporação. Tinha algumas amigas, mas nunca as encontrava fora da escola
Desapercebida, era talvez a palavra que melhor definisse a passagem de pela escola.
Quando pensava sobre isso durante sua adolescência, costumava fantasiar uma imagem de si mesma se desfazendo – às vezes em partículas que voavam para longe, às vezes enfraquecendo até desaparecer por completo. Mas o telefone tocava, e era . A campainha soava, . A buzina velha de Lizzy, . Uma gargalhada quando ela já estava quase pegando no sono, . Um flash repentino quando ela estava dispersa, .
evitou que sucumbisse. E fez o mesmo por ele.
Eram reais um para o outro, o que os tornava reais pra si mesmos.
E naquela noite, dez ou onze anos depois de deixarem a escola, viu-se desaparecer outra vez. Em sua mente, uma imagem de si mesma retrocedendo pelos anos, cada vez menor, mais fraca e impotente, até não restar nada.
E não bateu na porta.
empurrou o cobertor e alcançou seu cardigã no mancebo, vestindo-o sobre o pijama que usava. Atravessou o corredor e avançou escadaria abaixo, manuseando a carteira de cigarros e desejando que estivesse em casa – ao menos saberia onde encontrar o whisky.
Cruzou a cozinha escura e saiu na varanda dos fundos. Não estava ventando, mas sentiu como se respirasse melhor ali, sentada no mesmo degrau onde encontrara madrugada passada. Ele não estava dessa vez. Durante a tarde havia contado, quase com deboche, sobre a bronca que recebeu pela manhã, quando Madson identificou o odor de cigarro em seu casaco.
Diante da desesperança da realidade, costumava começar novas histórias em sua cabeça, que poderia ou não colocar no papel mais tarde. Naquela noite nada lhe ocorria, além de rindo com sua testa escorada na de Madson, quando o sogro fez alguma piada sobre o casamento durante o jantar.
Uma camada de lágrimas embaçou sua visão, mas secaram com a mesma rapidez quando a luz da varanda se acendeu. Seu rosto virando-se, de súbito, em direção à cozinha. O coração dolorosamente apressado, assustado e otimista – depois desapontado, ao encontrar o olhar curioso de Madson.
– Insônia? – Perguntou a moça, encostando a porta atrás de si e se acercando de em pouco passos.
– Às vezes meu coração fica claustrofóbico de viver dentro de mim. – Brincou. Madson sentou-se ao seu lado, risonha. – Você se importa? – Perguntou, mostrando o cigarro aceso entre os dedos.
– Não, tudo bem. – E lançou um sorriso verdadeiro. – Há quanto tempo fuma?
– Desde os 15. – não soou orgulhosa, mas também não estava preocupada.
– Você e começaram juntos?
– Hm... Mais ou menos... Eu comecei antes. – Seus lábios sorriram com culpa. Madson soltou um riso divertido. – Parei antes também, mas já parei e voltei tantas vezes que perdi as contas.
– fumava quase dois maços por dia quando o conheci. – não estava surpresa. – Agora ele fuma escondido às vezes.
– Nunca é escondido de verdade, né? – Madson riu, a cabeça balançando negativamente. – Nós fumamos escondido por um tempo, ou achávamos que sim...
– Ele disse que sua mãe bateu em vocês dois. – E foi a primeira vez que Madson viu gargalhar.
– Isso foi quando ela encontrou maconha na minha mochila. – Comentou, risonha. – Ela foi durona.
– Drogas, huh? – não esperava que fosse um segredo e quis se sentir mal pela revelação.
– Não... Quer dizer, fumamos maconha algumas poucas vezes... Nada além disso. – Esclareceu, depois tragou seu cigarro pela última vez.
– nunca contou. – Madson comentou, reconheceu a consternação em sua voz.
– Ele não faz por mal, só... Não é algo que se orgulha. – Supôs, cuidadosa.
– Hm, enfim! Ele disse que você trabalha em uma editora?
– Ah, sim. – queria acender outro cigarro, mas conteve-se.
– Você gosta?
– Gosto! Na verdade eu esperava que fosse gostar mais quando estava na universidade. – confidenciou, embora não parecesse fazer sentido conversar sobre coisas como aquelas com Madson. – Mas não é algo que eu desgoste também...
– O que você faz, exatamente?
E, bem, se pretendiam mesmo bater um papo naquela madrugada, tomou coragem e perguntou se havia algo que pudessem beber. Madson arranjou uma garrafa de whisky e dois copos, decidida a acompanhar em uma dose, depois de confidenciar que não costumava experimentar nada muito forte.
Entre um copo e outro, compartilharam algumas histórias. Madson contou sobre algumas situações que vivenciou em seu trabalho como designer de interiores – relatando com carinho sobre ter conhecido ao ser contratada para decorar os escritórios da empresa de seu pai.
conhecia apenas a versão acelerada e desinteressada de . “Eu disse que não tinha novidades, mas lembrei que tenho uma, hm, eu estou saindo com a decoradora lá da empresa...”, contou ele ao telefone. “Ah, ela é legal”, respondeu quando quis saber sobre Madson.
decidiu resumir a história de como ela e haviam se conhecido porque não sentia-se confortável compartilhando lembranças que agora pareciam muito distantes. Madson, por sua vez, lembrou-se da versão afetuosa que havia contado anos atrás, quando começaram a se conhecer melhor. Quando era ainda mais presente em sua vida.
Ela nunca havia, de fato, deixado de fazer parte dos discursos de , mesmo quando se falavam tão pouco. Vez ou outra ele dizia “ ia achar isso legal”, “ morreria de rir disso”, ou “uma vez eu e fizemos tal coisa”. Madson quase sempre via-se entregue ao ciúme, mas aos poucos aprendeu a conviver com a ausência sempre tão presente da melhor amiga de seu namorado.
Meia garrafa depois, escorou Madson em seus ombros e a conduziu escadaria acima, ouvindo suas gargalhadas e palavras de apreço motivadas pelo álcool.
Já estavam no meio do corredor quando entreabriu a porta do quarto que dividia com Madson. Cabelos desalinhados e apenas um dos olhos abertos, lidando com a claridade.
– O que houve? – Perguntou, dando um passo para fora do quarto.
– Roubamos uma garrafa de whisky do casamento... Ups! – Madson exclamou, depois desmanchou-se numa gargalhada. olhou com diversão para .
– Eu sei que pareço a responsável por isso. – Comentou com uma expressão engraçada.
– Continua uma péssima influência, ! – Brincou o rapaz, tentando ajudá-la com Madson.
– Com louvor! – Exclamou a melhor amiga, arrancando uma risada divertida de .
Os olhos de fugiram para encontrar . Ela segurava com zelo os cabelos de Madson, que acabou aquela noite ajoelhada entre eles, com o corpo curvado em direção ao vaso sanitário.
Ele desejou, por um instante, que o flagrasse. Que olhasse pra ele como vinha evitando fazer. Que dissesse qualquer coisa, mesmo sem dizer nada. Sentia falta daquela transmissão de pensamento fajuta, que no fim era só o fato de se conhecerem bem o suficiente para saberem o que pensavam em determinadas situações.
Gostaria de saber o que ela estava pensando naquele exato momento.
Gostaria de saber o que ela estava pensando o tempo todo desde que chegara ali, com seus olhos frios e aquele abraço que levou direto a um inverno rigoroso.
– Bom, ela vai ficar bem. – comentou, logo que deixaram Madson sobre a cama em sono profundo.
– Não acredito que o primeiro porre da minha namorada foi com você. – Comentou , falsamente inconformado.
– Dizem por aí que o primeiro porre tem que ser sempre com alguém confiável. – Ele riu alto demais e, num gesto automático, cobriu a boca dele com a mão. – Shh!
– Está com fome? – perguntou enquanto caminhavam até a porta do quarto, seus corpos se esbarrando de um jeito familiar.
– Não... Mas aceito um café.
24 de Junho de 2005 – Worthy Farm, Pilton, UK
Era engraçado que uma mesma nuvem pudesse tomar tantas formas diferentes. Um cachorro. Um golfinho. Um avião. Depois um corpo humano. Cabelos enormes. Seios maiores ainda. fechou os olhos, mas era pior de olhos fechados, então tornou a abri-los. Pequenos, sonolentos. Quanto sono.
Ia chover, ele pensou rapidamente quando a nuvem cinzenta foi iluminada por um relâmpago. Queria avisar , “vai chover”, mas quando as palavras estavam se formando, ficou com preguiça de dizê-las. Não tinha certeza se tinha dito ou não, mas ela estava rindo. Ele tampouco se lembrava de ter perguntado o motivo, mas ela explicou assim que notou seu olhar. “Você tá bem louco”. E então começou a gargalhar junto com ela, porque estava mesmo bem louco.
queria um sanduíche. Disse isso enquanto se aninhava contra . Ele acariciou seu cabelo e gostou da sensação dos fios deslizando por entre seus dedos dormentes. Podia ouvir a respiração dela, mais alta e mais próxima. Queria poder entrar em sua cabeça e esconder-se em qualquer curva dela, saber o que se passava por lá, ouvir seu próprio nome de repente.
não sabia há quanto tempo estava ali, ou por quanto tempo havia mantido os olhos fechados, mas o céu de repente parecia mais escuro. desenrolou-se de seu abraço e se levantou numa ligeireza que não se via capaz de ter. Ela estendeu a mão e o ajudou a se levantar. “Está chovendo”, ela disse, “vamos comer”. Não fazia sentido, mas não precisava fazer.
A caminhada pareceu mais longa do que das outras vezes que percorreram o mesmo caminho. A chuva caía de forma gentil, fazendo cócegas em seus rostos. queria beber cada uma daquelas gotas tamanha sua sede.
Dois sanduíches cada um. Um saco de cookies para comer no caminho de volta.
– Nossa, cadê todo mundo? – perguntou, montada nas costas de . Suas roupas e cabelos encharcados da chuva que agora caía em gotas pesadas.
– Eu acho, mas só acho que estão se abrigando da chuva. – Brincou, cheio do deboche que adorava. Ela gargalhou, o queixo apoiado no ombro dele.
– Estamos chegando?
– Estamos...
Mas não estavam.
E quando chegaram, sentiu todo o cansaço da caminhada abatê-lo de uma só vez. pulou de suas costas e correu para dentro da barraca. Ambos sujos e ensopados.
– Um pinto no ninho. – sugeriu, naquela brincadeira tola de trocar por genitais uma palavra no título de um filme.
– Vagina mecânica! – A gargalhada dos dois preencheu a pequena barraca.
– Brilho eterno de uma vagina sem lembranças! – falou, mal conseguindo parar de rir.
– Clube da vagina!
– o estranho pinto de jack.
– Fui aceita em Leeds. – Não houve nenhuma gargalhada dessa vez. ergueu um pouco a cabeça, tentando olhar para o rosto dela.
– Oi?
– Fui aceita na Universidade de Leeds...
– ! – exclamou. – Que boa notícia! – Ele sentou-se primeiro, foi erguida em seu abraço apertado. – Parabéns, poopface!
– Obrigada. – Murmurou, os olhos fechados. – Eu não disse a minha mãe ainda... Não fale nada perto dela.
– Ok. – reconheceu o olhar receoso de . – Por que ainda não disse?
– Não sei se quero ir. – Confidenciou, os olhos fixos nos farelos de cookie espalhados pelo chão da barraca. – Você sabe... Somos eu e ela, não sei como vai ser quando eu não estiver.
– , não leva uma hora até Leeds, você pode vê-la sempre que quiser. – Ela se perguntou se , em algum momento, se sentiria da mesma forma que ela ao descobrir que ele estava indo para a universidade.
– Eu gosto de Sheffield. – Insistiu, a voz mais baixa, quase constrangida.
– Bom, você tem até agosto para pensar sobre isso, não é? – concordou com a cabeça, esbarrou o ombro no dela, expressando apoio. – Você vai saber o que fazer quando chegar a hora.
não conseguiu pegar no sono tão rápido quanto , desconfortável com a imagem que criou dela desaparecendo dentro de um trem. “Não leva uma hora até Leeds”, repetiu a si mesmo o que havia dito à ela. Levava, para ser exato, 01h15 minutos. Que pareciam dias de distância quando pensava que não poderia simplesmente aparecer na porta da casa dela, no meio da semana, para fazerem qualquer coisa – e nem importava o quê. Não poderia levar biscoitos de nata pra ela toda vez que sua mãe fizesse. Tampouco poderia convidá-la para dar uma volta pela cidade tarde da noite.
estaria a 35 milhas de distância. O suficiente para perder-se dele.
– , acorda. – chamou. Sua voz emergente fez com que ele se sentasse ao mesmo tempo em que retomava a consciência.
– O que está acontecendo?
Havia água por toda parte.
A chuva caía com um aspecto diluviano, colidindo ameaçadoramente contra o tecido da barraca. Era como se a qualquer momento fosse desmantelar o frágil abrigo, começando pela sutil invasão, inundando o chão, molhando suas roupas e mochilas.
não sabia se era boa ideia – e não era –, mas abriu a barraca. Uma correnteza de água e lama avançou para dentro, cobrindo-os até a canela. Entre palavrões de todos os tipos, marcharam para fora, passos limitados pela enchente.
– Precisam de ajuda? – Gritou Simon, sua barraca era grande e resistente, não parecia afetada. Ao contrário de tudo ao redor.
– Nossa barraca já era! – soou desesperado.
– Vocês pegaram tudo aí dentro? – reconheceu o cara que tocava violão no dia em que chegaram. Ele tomou a liberdade de colocar a mochila dela em seu próprio ombro.
– Acho que sim! – respondeu, mas não tinha certeza. Era como se não estivesse completamente acordado e talvez de fato não tivesse tido tempo pra isso.
– Simon, vamos colocar as coisas na nossa barraca...
– Certo! – Simon abriu uma parte do zíper, apenas o suficiente para que passassem as mochilas para dentro, sem deixar que a inundação entrasse. – Depois pensamos no que fazer, não se preocupem.
– Será que vão cancelar as apresentações? – perguntou à Simon.
– Pelo que parece, só os da manhã...
– No Pyramid cancelaram Adjágas e The Subways. – Ewin informou. – É tudo que sabemos até agora...
– Todo mundo bem aqui? – Um policial gritou, os olhos vagando por todos os cantos.
– Sim! – Simon gritou de volta. – Tudo sob controle!
Não estava tudo sob controle, mas o público não parecia se importar tanto assim. Hora ou outra passavam pessoas completamente cobertas de lama, ou nadando pela correnteza. Sim, nadavam pela correnteza.
encontrou apenas uma das capas de chuva dentro de sua mochila, então convenceu a vesti-la. Quando a chuva começou a amenizar, caminharam até um dos banheiros, onde conseguiram trocar suas roupas e calçar suas galochas.
Encontraram com o grupo da barraca ao lado no centro do festival, em frente ao palco Pyramid. A vantagem era que, embora houvesse lama por toda parte, a enchente não havia alcançado aquela área. A desvantagem é que, por conta disso, grande parte do público havia se concentrado ali.
– Desculpa. – murmurou, não era para ninguém em específico, mas para todas aquelas pessoas em quem estava esbarrando enquanto o rebocava pelo meio da multidão, tentando chegar mais próxima do palco. – Desculpa. – Ele ia dizendo, enquanto tentava não se soltar dela e correr o risco de não encontrá-la mais. – Desculpa. – Ninguém estava de fato ouvindo, ou se importando. Deveriam ser os únicos que não estavam pulando ao som de Somebody Told Me, a música de abertura do show de The Killers.
Era o penúltimo show daquela sexta-feira e era também o mais esperado por . O cansaço encontrava brechas para se manifestar – agora, com o álcool baixando guarda, tinham vontade de sentar nas músicas que não conheciam ou não gostavam, e se pegou torcendo pra que concordasse em assistir ao último show, da banda The Whipe Stripes, acomodada em algum lugar.
começou a vibrar assim que Brandon Flowers conduziu Dave Keuning mais à frente do palco, quase 40 minutos depois do início do show, para tocar aquela que era sua música favorita. esbarrou o braço no dela e, ao ganhar seu olhar desatento, abaixou-se, indicando as costas pra que ela subisse. Sem hesitar e com seu maior sorriso, deixou que ele a erguesse em seus ombros – que de repente pareciam, para , indiferentes à exaustão decorrente das últimas 12 ou 13 horas de festival.
“I just can’t look it’s killing me and taking coltrol”, cantava a plenos pulmões aquela música que dizia tanto sobre ciúmes, e não parava de pensar em como soava irônico e provocativo. Lembrava-se o tempo todo de e Edwin dividindo um cigarro no meio daquela tarde, enquanto ele, evitando a cena, cantarolava sem nenhum entusiasmo o refrão de Valerie – era sua música favorita dos The Zutons e agora estava vinculada àquela memória malquista.
– Eu queria dar um beijo na boca de quem fez esse hambúrguer! – disparou, depois da primeira mordida.
– Uma pena que eu só saiba fazer hambúrguer de soja. – Edwin disparou e a turma explodiu em gargalhadas exageradas. e compartilharam um olhar rápido e discreto.
– Eu adoro carne, não vai acontecer. – brincou, mas havia uma falta de jeito em sua voz que bem conhecia.
– Acho que pela vale comer um bife, Ed! – Julie considerou, sua voz soou arrastada e divertida.
– Se ela me pedir, vou agora mesmo comer um hambúrguer. – , com a cabeça baixa, ergueu os olhos e observou sob os cílios. Ela manteve a atenção em seu sanduíche, claramente constrangida. E não de uma maneira positiva. – O que me diz, ? – esperava ansioso que ela fosse se manifestar e, na realidade, estava surpreso que ainda não o tivesse feito. Não precisava defendê-la, era o que ela sempre lhe dizia.
– Acho que ela não tá a fim, cara. – Eles mal ouviram a voz de naqueles três dias inteiros, mas a reconheceram naquele momento. o observou, surpresa e agradecida na mesma proporção.
– Que tal se ela falar por si mesma? – Edwin retorquiu, não grosseiro, mas debochado. achou que era ainda pior.
– Talvez você não saiba, mas silêncios dizem muito. – A turma desmanchou-se em uma gargalhada provocativa.
– Vamos, . – convidou, se levantando de seu lugar. – Simon, vamos passar para pegar nossas coisas na barraca.
– Pessoal, pessoal, se acalmem! Edwin só está sendo galante...
– Está tudo bem. – disse, as mãos nos ombros rígidos de , incentivando-o a caminhar para longe dali. – Boa noite, pessoal... E, Edwin... Respeitar animais é muito legal, respeite as pessoas com a mesma dedicação.
A manifestação ruidosa foi ficando cada vez mais distante e menos audível, até não restar nada. Os músculos de continuaram enrijecidos, ombros contraídos, maxilar apertado. Ficou esperando, ao longo da caminhada até a barraca de Simon, pelo momento em que viraria e lembraria ele que sabia se defender sozinha. Ele sabia que sim. era da luta – sempre carregando sob a manga palavras sóbrias e sensatas, nunca agressivas. Conviver com ela era quase sempre educacional.
Reconheceram primeiro a barraca de Simon, para só então identificarem a deles, agora um amontoado de tafetá sob um grande acúmulo de lama. teve vontade de levar embora. Havia prometido, ao lhe presentear com o ticket do festival, que seria um fim de semana legal e no primeiro dia de shows já não tinham nem barraca para dormir.
, porém, não parecia se importar. Sustentou sua mochila nos ombros e brincou: “Lizzy não nos abandona nunca”. Seguiram, então, em uma caminhada que não pareceu tão longa na quarta-feira quando chegaram, motivados pela ansiedade e expectativas positivas. Naquela madrugada, esgotados, diriam que havia levado bem mais de uma hora para chegarem ao estacionamento.
esperou até que vestisse uma roupa seca e só depois de conferir se ela estava devidamente segura e acomodada na cabine, foi para a traseira. Arrastou-se sob a lona que cobria a caçamba e livrou-se das galochas antes de enrolar-se no cobertor restante, que apesar de grosso não evitava o incômodo da superfície dura na qual estava deitado.
Lembrou-se de todas as vezes que ele e estacionavam Lizzy no observatório inativo, onde podiam ouvir música alta e dividir uma garrafa de qualquer coisa, deitados naquele mesmo lugar onde ele estava agora, sem aquela lona ocultando o céu, que na maioria das vezes estava só nublado, mas naquela noite transbordava sem parar.
Com os olhos fechados, visitou todos os momentos daquele dia, com a impressão peculiar de que havia passado muito tempo desde que acordaram, como se a enchente tivesse sido dias atrás – mesmo o primeiro show da sexta já se tornava uma memória longínqua.
O cansaço foi relaxando seu corpo dolorido, sua consciência começou a desfazer-se em lacunas, fazendo com que tivesse a sensação de sonhar antes de dormir. Quando já estava quase completamente adormecido, ouviu a porta da cabine abrir, depois fechar.
Ergueu o corpo, o pouco que a lona permitia, seu coração batendo assustado. Já estava se desfazendo do casulo que havia construído com seu cobertor quando viu surgir do lado de fora da traseira. Ela abaixou o rosto, como se verificasse sua presença ali e depois engatinhou para deitar-se ao seu lado.
– Estava muito confortável na cabine. – Sussurrou, como se tivesse alguém para acordar. – Achei que não combinava com meu estilo de vida selvagem. – achou graça e sabia que ela também estava rindo. Gostaria que houvesse claridade o suficiente para olhar a diversão em seu rosto.
– Você deveria ficar lá, , vai acordar quebrada amanhã. – Ele advertiu, pegando uma jaqueta na mochila e enrolando-a o suficiente para que usasse como travesseiro.
– ”Oh, uma vez fui ao Glastonbury, dormi na cabine da Chevy do meu amigo, acordei renovada” não parece algo divertido de se contar aos filhos, . – Ela dizia, enquanto se aninhava preguiçosamente contra ele, ignorando o travesseiro improvisado.
– É, não é muito rock ‘n’ roll. – Ele murmurou, aconchegando-se à ela. Ficou imaginando o que poderia acontecer caso ela dissesse que, na verdade, estava ali porque não queria dormir em um lugar onde ele não estivesse. Estava sempre tão próximo de beijá-la que temeu perder o controle em algum momento.
– ... Obrigada por se manifestar hoje... Com o Edwin. – agradeceu, e surpreendeu-se com seu tom honesto. Não soou constrangida como costumava soar todas as vezes que se desculpava por qualquer coisa ou agradecia qualquer pessoa.
– Bem, eu ia bater nele, mas depois você diria que violência não resolve as coisas etc. – gargalhava antes mesmo de terminar.
– Você ia acabar com ele! – Ela disse, zombeteira e sonolenta. – Boa noite, bad boy.
– Boa noite, poopface.
Capítulo 5
13 de Julho de 2016 – Los Angeles, Califórnia, USA
– Bom dia... – cumprimentou cordial e contidamente enquanto se aproximava da mesa do café da manhã. Lauren ergueu a cabeça com a mesma delicadeza que expressava em todos os seus gestos. O marido, Stephen – Steph para os íntimos – arriscou um sorriso enrijecido para a moça. Era um tanto desapontador que se encaixasse bem naquele cenário, exceto pelo fato de ser o único que de fato lhe queria ali.
– Dormiu bem? – Lauren perguntou, mas não queria saber.
– Sim, obrigada! – deixou escapar o alívio que sentia por, diferente de sua primeira noite ali, ter dormido bem.
– Mimi... – Stephen convidou a senhora uniformizada, sempre no canto da sala, esperando para atendê-los. – Veja o que senhorita quer comer.
– Ah, agradeço, Mimi, mas vou ficar satisfeita com uma xícara de café. – apressou-se a pegar o bule antes que Mimi o fizesse, na tentativa de não compactuar com o teatro elitista proposto por eles.
Enquanto bebericava seu café, observava a conversa entre e Stephen sobre algo que o sogro havia lido no jornal, parecia interessante, mas ela preferiu não prestar atenção. Lauren havia decidido fazer o mesmo. O tempo todo. Como um objeto decorativo, era bonita e silenciosa. não pôde evitar se perguntar, por um instante, se Lauren estava feliz com suas escolhas. Se ela, algum dia, tivera uma escolha.
– Está a fim de conhecer a Hollywood Boulevard? – perguntou quando já haviam saído da mesa. – Preciso fazer a última prova do meu terno, pode ir comigo, depois seguimos pra lá.
– Esse não é o papel do seu padrinho? – brincou, acompanhando-o escadaria acima. soltou um riso nasalado. – Estou brincando, vou com você.
– Ok, eu vou me trocar... Passo te chamar.
– A Madson está bem? – preocupou-se, diminuindo o ritmo de seus passos ao aproximar-se da porta de seu quarto.
– Quando ela acordar do coma, vamos descobrir.
Mas Madson não acordou disposta – pelo contrário, o que sentia era o antônimo de disposição. desejou que não tivesse sido atravessada subitamente por aquela satisfação ao ver que seriam só ela e naquela manhã. Na tentativa de desvincular Madson de seu rancor, usou o mesmo mantra que vinha repetindo nos últimos dias. Madson não tem culpa. Madson não tem culpa. Madson não tem culpa.
Não havia um culpado, concluiu enquanto tagarelava sobre o álbum novo de The Last Shadow Puppets. Não fazia sentido culpar alguém pelos desencontros que sofreram. Pela coragem que lhe faltou. Ou que talvez tenha faltado à . Pelos acovardamentos de ambos. E fazia ainda menos sentido culpar Madson, que havia naufragado na vida de e feito dela menos solitária nos últimos dois anos. Culpá-la por ser quem faria da vida dele menos solitária por todos os próximos.
– Bom dia! – Saudou o recepcionista da alfaiataria. Sua voz forçada como a de um apresentador de programa de TV direcionado a adolescentes. , ainda se perguntando de onde ele havia surgido, imaginou roletas brilhantes e um cenário colorido se construindo logo atrás dele.
– Bom dia... – respondeu, levando a mão na nuca para coçá-la. pensou que aquele deveria ser seu novo sinal de desconcerto. Antes costumava puxar os cabelos pra trás. – Eu vim pra última prova do meu fraque... Hm... ...
– ... – O homem repetiu, um sorriso entusiasmado. – O futuro marido da senhorita Madson Houston!
– Isso... – novamente coçou a nuca e seu desarranjo lembrava de um passado não tão distante.
– E a senhorita? Sua irmã?
– , minha amiga.
– Ah, muito prazer, ! Sou Jimmy.
– O prazer é meu... – Mas não havia prazer nenhum, na realidade.
– Fannie, leve para provar seu fraque... – Jimmy recrutou a primeira funcionária que passou por ele. – , se quiser se sentar para esperar... Posso te servir algo? Café, chá, uma taça de champagne?
– Obrigada...
– Vem comigo... – convidou, tentando não perder Fannie de vista. O olhar de Jimmy antecedia, claramente, alguma manifestação negativa. Não deram nenhum tempo a ele para concluir.
– Ok, vamos lá.
tinha uma imagem diferente de uma alfaiataria. Todas as poucas vezes que pensara em uma, imaginava um espaço modesto, antigo, que passasse um ar de seriedade e nostalgia. Não se parecia em nada com o ambiente para o qual foram levados. Sem araras ao redor, poltronas arcaicas, mesa de madeira rústica, coberta com recortes de tecido social.
Era, pelo contrário, um lugar que ela descreveria como limpo – paredes branquíssimas, duas poltronas grandes com estofado bege, um aparador de vidro onde estava um vaso de flores cheirosas e um bule de chá rodeado por algumas xícaras.
foi carregado para dentro de uma porta, e se sentou para esperar. Havia uma espécie de plataforma em frente ao espelho que cobria quase toda a parede. E embora nunca tivesse sido madrinha de casamento, e pouco tivesse assistido aos filmes de romance, tinha quase certeza de que aquele era o cenário onde noivas provavam seus vestidos.
foi deixado sozinho no provador. Era a primeira vez que via seu fraque composto por todas as peças – a calça cinza escura com discretas riscas pretas, o paletó preto; camisa branca, colete e gravata cinza. Perguntou-se se deveria sentir-se entusiasmado e assegurou a si mesmo que “não necessariamente”. Estava ali para certificar-se de que sua roupa lhe servia, não para se comover.
Logo que apontou na sala de prova, ergueu os olhos em direção a ele e algo estranho aconteceu.
Para e para .
ficou constrangido. E não tinha nada a ver com a reação dela, que era reação nenhuma. Tinha a ver com a sensação de não ter certeza sobre estar no lugar certo – e não parecia ter ligação com a alfaiataria, mas com quem havia se tornado. Cresceu vendo seu reflexo nos olhos de e aprendeu a gostar de si mesmo através dela. Não sabia se seus olhos estavam orgulhosos naquele momento. Não sabia se estavam orgulhosos nos últimos anos todos.
achava que não tinha nada de em nenhuma daquelas peças. Ela não conseguia encontrá-lo ali, embaixo daqueles tecidos e daqueles anos de distância entre ele e ele mesmo.
Torceu pra que desse uma volta no lugar, fizesse uma graça, parecesse irônico, jocoso. Mas ele ficou lá, parado na porta do provador, tentando levar pra trás os cabelos curtos. E foi em seus olhos, coagidos e embaraçados, que reconheceu seu melhor amigo. Quis abraçá-lo pela primeira vez desde que chegara em Los Angeles. Quis dizer que havia sentido sua falta. Pedir que ele não sumisse outra vez. Mas Fannie o conduziu até a plataforma para começar os ajustes necessários.
Seus olhos se buscaram através do espelho, e achou que ele estava bonito, apesar de tudo.
25 de Junho de 2005 – Worthy Farm, Pilton, UK
– RUBY, RUBY, RUBY, RUBY!
Havia pouca voz. Muita energia. Sábado de sobra pela frente.
Kaiser Chiefs era o quarto show do palco Pyramid, o primeiro que e assistiram naquele dia.
Levantaram-se tarde e caminharam, sem pressa, de volta ao festival. Percorreram alguns caminhos que ainda não haviam feito e, enquanto tomavam café e fumavam um cigarro, pararam para assistir uma atração circense que, apesar de não entretê-los como parecia entreter a todos ao redor, era impressionante.
Da colina onde escolheram se sentar, podiam ouvir a distância ao show de uma banda que não conheciam. Gastaram ali o pouco que restava da manhã e uma parte da tarde. Durante o intervalo entre a banda Goldie Lookin’ Chain e Kaiser Chiefs, passaram por um dos foodtrucks e se instalaram em frente ao Pyramid, num ponto onde conseguiam ver o show, mas conseguiam manter uma distância saudável da aglomeração.
Fina e incessante, a chuva fez companhia pelo dia e também pela noite. Com aquele aspecto gentil de uma garoa... Parecia inofensiva, mas os encharcou por completo antes do entardecer.
Durante o intervalo que antecedia o show do Coldplay, convenceu a se aproximarem um pouco mais do palco. Ainda havia uma distância incalculável entre eles e o alambrado de segurança quando se acomodaram, mas aproveitou a trégua da chuva para acender o baseado que havia bolado mais cedo – deixaram de se importar com a longitude muito rápido depois disso.
A cada uma das músicas que terminava, havia essa torcida eufórica dentro de , desejando que a próxima fosse Speed of Sound. Tão logo que ouviu sua introdução, prontificou-se a levantá-la em seus ombros. Ignorando a proposta, lhe lançou um sorriso que o convidou a uma atmosfera outra. Diferente de qualquer lugar que já tivesse visitado, a mais adorável das sensações que poderia ter provado.
Ela fechou os olhos e dançou, e por um momento chegou a pensar que era dela que vinha o som. Ela era a melodia, serpenteando com os braços para o alto. Seus lábios se moviam, sibilando a letra com tamanha doçura e veracidade que parecia ter sido quem a escreveu. Assim como a cantoria de uma sereia, foi atraído até render-se inteiramente a ela.
Tão linda e singular. Tão de repente, era sua.
abriu os olhos, porque não gostava da escuridão que era o mundo sem a presença de . Deleitou-se na sensação de estar sendo abraçada, mesmo quando os braços dele ainda estavam longe do corpo dela. Que inapropriada era aquela distância.
assistiu quando a mão de ergueu-se em sua direção. Os dedos dela tocaram seu rosto, tão sutis que pareciam passear com a ponta dos pés, sorrateiramente. Percorreram seu queixo, bochecha, têmpora e testa, depois desceram por seu nariz como se fosse o escorregador de um parquinho. Tocaram seus lábios, contornando-os de mansinho como se quisessem passar desapercebidos. Jamais poderiam.
Zonzo, apreciou a respiração dela soprando seu rosto, morna e entrecortada. Não conseguiu se lembrar do momento em que se aproximaram o suficiente para que o rosto de estivesse alinhado ao seu. Temeu que tivesse sido ele, num momento de distração, que atraiu sem consentimento o corpo dela pra perto do seu. Descobriu, pouco depois, os braços caídos ao lado de seu próprio corpo, imóveis diante de sua ansiedade.
Fechou os olhos ao mesmo tempo em que a boca de fazia caminho até a sua – tão destemida que o convenceu de que não havia nada a temer ou perder.
E naquele encontro, silenciosamente esperado por ambos, não cabia quaisquer expectativas ou idealizações. jogou fora cada um dos enredos que havia criado em sua mente, e livrou-se de todas as fantasias e dos inúmeros questionamentos que já o haviam atravessado. Eram inaproveitáveis frente à adorável realidade.
Não houve urgência ou pressa. Pensaram que haveria estranheza, mas concluíram, pelo namorar gentil de suas línguas, que não havia lugar nenhum no mundo onde pudessem pertencer que não fosse na boca um do outro.
E, em meio a tanto sentimento, temeram o momento em que o beijo findasse e tivessem que lidar com todo o resto. Então adiaram – e que maneira deliciosa de postergar qualquer coisa.
Mas o fôlego se esgotou, e Speed of Sound foi substituída por Low.
Seus lábios ainda se tocavam, rendidos, temendo se afastar depois de tanto tempo esperando por aquele encontro secreto. sentiu quando a boca de começou a curvar-se num sorriso. E, ainda de olhos fechados, sem a coragem que precisava para encará-la, também sorriu. Seus risos, logo audíveis, se misturaram. Soavam bem juntos.
Restava pouco do show e o pouco que restava soou absurdamente mais bonito. Assistiram lado a lado, com seus mindinhos enroscados, num gesto que demonstravam o quanto não sabiam como agir. A característica falta de jeito para romances, que agora já parecia fazer parte de quem eram.
Sem trocar uma só palavra, caminharam para longe do palco quando a banda se despediu e as luzes se apagaram. Passaram pelo foodtruck mais distante. Comeram muito e com uma preguiça proposital. Depois visitaram os banheiros, o banho a seco fazendo com que sentissem falta dos banhos convencionais.
Já passava das três da manhã quando começaram, num silêncio que nunca havia sido tão incômodo, sua longa caminhada até o estacionamento.
No percurso, pensou em sugerir que fossem até uma das festas eletrônicas que aconteciam ao longo da madrugada – mas também poderiam ir à atração circense, a uma roda de música, ao Green Fields, ou qualquer lugar onde pudessem adiar o fim daquela noite. Ao invés disso, usou o pouco que restava de sua intimidade com para passar seu braço ao redor dos ombros dela.
Antes de entrar na cabine de Lizzy, recolheu uma muda de roupas, ansiosa para tirar as peças encharcadas de seu corpo. , confuso e desarranjado, acomodou-se na traseira da caminhonete para fazer o mesmo.
Já vestido, ele ainda podia ouvi-la no compartimento adjacente. Movendo-se sobre o assento, esbarrando acidentalmente no painel ou na lataria. Perguntou-se, com uma inquietação crescente, se ela viria.
Por desejar, mais do que qualquer outra coisa, estar ao lado de , temeu que ela decidisse passar aquela noite na cabine, fora de seu alcance.
Mas havia ainda o receio de que, caso ela viesse, a decepcionasse com sua clara falta de jeito.
A figura sorrateira de , escalando sorrateiramente o corpo de , dizia que não havia mais tempo para suas análises inseguras. Ao abraçá-lo tão perto, aquietou todo seu desassossego.
beijou a boca de como se pertencesse a ela. E por um instante, nada breve, ele pensou que de fato pertencia. Se procurasse bem, talvez houvesse uma bandeira dela hasteada em se peito e isso não o assustou naquele momento como vinha assustando nos últimos anos.
Ela quis beijá-lo pelo que restava da noite e da vida. Quis que ele tirasse cada peça de suas roupas, passeasse por cada uma de suas esquinas. Quem sabe decidisse fazer uma visita ao seu coração e noutro dia qualquer trouxesse uma mala de roupas e sentimentos, caso quisesse ficar.
Foi quem interrompeu o beijo e gentilmente impediu que a mão dela adentrasse pelo cós de sua calça. E sabia que, caso um dos dois fosse recuar, seria ele. Não estava surpresa, mas frustrada.
– Me desculpa... – Ele pediu, num sussurro. sentiu o resfolegar ruidoso de contra seus lábios. – Não é que eu não queira, , mas não acho que seja o melhor momento... – Justificou e aguardou um tempo na esperança de que ela dissesse algo. Tudo o que obteve, em resposta, foi um silêncio desconfortável. – Quero que seja legal pra você... Estamos chapados... Não quero que amanhã ou depois nós dois vejamos isso como um desrespeito com você... Não suportaria a ideia de ser um idiota contigo, .
– Tudo bem. – E estava mesmo tudo bem. Ainda assim sentiu que havia arruinado a madrugada e junto qualquer nova chance de aproximação. escolheu não acrescentar novas palavras. E ele duvidou que houvesse algo a ser dito para amenizar o desconforto, então descartou um possível diálogo e a abraçou pra perto, tentando descobrir se ainda era bem-vindo. Parecia ser. – ... – chamou e o coração de respondeu com uma batida mais forte. – Foi estranho pra você?
“Não”, ele teria respondido imediatamente. “Tudo, menos estranho”, gostaria de acrescentar, antes de um riso carinhoso. Mas, inseguro que era, imaginou o que poderia responder. Talvez um “foi estranho pra mim”, ou quem sabe “melhor sermos só amigos”.
E já havia sido rejeitado muitas vezes antes, costumava lidar bem com a frustração, mas não achava que sua experiência com abandonos se aplicaria àquela situação. era sua exceção.
– Um pouco...
Se, naquela noite, não estivesse tão escuro na traseira de Lizzy, ou talvez se a chuva não estivesse batendo com tanta força contra a lona, teria percebido nas entrelinhas da voz vacilante de , em seu olhar fugitivo e desamparado, na maneira como ele havia parado de respirar antes de finalmente responder que aquela era uma grande mentira. Talvez a maior que ele já tivesse contado.
E talvez ela se sentisse à vontade para confessar sua espera, o receio e aquele sentimento anônimo e monstruoso que vinha alimentando dentro de si.
Talvez confidenciasse os sonhos frequentes e sobre os planos escondidos embaixo de seu travesseiro.
Sobre o medo de não estar com ele.
Mas naquela noite estava muito escuro na traseira de Lizzy. E a chuva estava batendo com muita força contra a lona. Então não pôde reconhecer as entrelinhas ou os vacilos da voz de , tampouco pôde notar as fugas desesperadas de seus olhos. Não percebeu, portanto, que era uma grande mentira. E viu-se encurralada entre o desejo e o receio, como todas as outras vezes que pensava nos dois.
– É, talvez sejamos bons amigos e só.
– Bom dia... – cumprimentou cordial e contidamente enquanto se aproximava da mesa do café da manhã. Lauren ergueu a cabeça com a mesma delicadeza que expressava em todos os seus gestos. O marido, Stephen – Steph para os íntimos – arriscou um sorriso enrijecido para a moça. Era um tanto desapontador que se encaixasse bem naquele cenário, exceto pelo fato de ser o único que de fato lhe queria ali.
– Dormiu bem? – Lauren perguntou, mas não queria saber.
– Sim, obrigada! – deixou escapar o alívio que sentia por, diferente de sua primeira noite ali, ter dormido bem.
– Mimi... – Stephen convidou a senhora uniformizada, sempre no canto da sala, esperando para atendê-los. – Veja o que senhorita quer comer.
– Ah, agradeço, Mimi, mas vou ficar satisfeita com uma xícara de café. – apressou-se a pegar o bule antes que Mimi o fizesse, na tentativa de não compactuar com o teatro elitista proposto por eles.
Enquanto bebericava seu café, observava a conversa entre e Stephen sobre algo que o sogro havia lido no jornal, parecia interessante, mas ela preferiu não prestar atenção. Lauren havia decidido fazer o mesmo. O tempo todo. Como um objeto decorativo, era bonita e silenciosa. não pôde evitar se perguntar, por um instante, se Lauren estava feliz com suas escolhas. Se ela, algum dia, tivera uma escolha.
– Está a fim de conhecer a Hollywood Boulevard? – perguntou quando já haviam saído da mesa. – Preciso fazer a última prova do meu terno, pode ir comigo, depois seguimos pra lá.
– Esse não é o papel do seu padrinho? – brincou, acompanhando-o escadaria acima. soltou um riso nasalado. – Estou brincando, vou com você.
– Ok, eu vou me trocar... Passo te chamar.
– A Madson está bem? – preocupou-se, diminuindo o ritmo de seus passos ao aproximar-se da porta de seu quarto.
– Quando ela acordar do coma, vamos descobrir.
Mas Madson não acordou disposta – pelo contrário, o que sentia era o antônimo de disposição. desejou que não tivesse sido atravessada subitamente por aquela satisfação ao ver que seriam só ela e naquela manhã. Na tentativa de desvincular Madson de seu rancor, usou o mesmo mantra que vinha repetindo nos últimos dias. Madson não tem culpa. Madson não tem culpa. Madson não tem culpa.
Não havia um culpado, concluiu enquanto tagarelava sobre o álbum novo de The Last Shadow Puppets. Não fazia sentido culpar alguém pelos desencontros que sofreram. Pela coragem que lhe faltou. Ou que talvez tenha faltado à . Pelos acovardamentos de ambos. E fazia ainda menos sentido culpar Madson, que havia naufragado na vida de e feito dela menos solitária nos últimos dois anos. Culpá-la por ser quem faria da vida dele menos solitária por todos os próximos.
– Bom dia! – Saudou o recepcionista da alfaiataria. Sua voz forçada como a de um apresentador de programa de TV direcionado a adolescentes. , ainda se perguntando de onde ele havia surgido, imaginou roletas brilhantes e um cenário colorido se construindo logo atrás dele.
– Bom dia... – respondeu, levando a mão na nuca para coçá-la. pensou que aquele deveria ser seu novo sinal de desconcerto. Antes costumava puxar os cabelos pra trás. – Eu vim pra última prova do meu fraque... Hm... ...
– ... – O homem repetiu, um sorriso entusiasmado. – O futuro marido da senhorita Madson Houston!
– Isso... – novamente coçou a nuca e seu desarranjo lembrava de um passado não tão distante.
– E a senhorita? Sua irmã?
– , minha amiga.
– Ah, muito prazer, ! Sou Jimmy.
– O prazer é meu... – Mas não havia prazer nenhum, na realidade.
– Fannie, leve para provar seu fraque... – Jimmy recrutou a primeira funcionária que passou por ele. – , se quiser se sentar para esperar... Posso te servir algo? Café, chá, uma taça de champagne?
– Obrigada...
– Vem comigo... – convidou, tentando não perder Fannie de vista. O olhar de Jimmy antecedia, claramente, alguma manifestação negativa. Não deram nenhum tempo a ele para concluir.
– Ok, vamos lá.
tinha uma imagem diferente de uma alfaiataria. Todas as poucas vezes que pensara em uma, imaginava um espaço modesto, antigo, que passasse um ar de seriedade e nostalgia. Não se parecia em nada com o ambiente para o qual foram levados. Sem araras ao redor, poltronas arcaicas, mesa de madeira rústica, coberta com recortes de tecido social.
Era, pelo contrário, um lugar que ela descreveria como limpo – paredes branquíssimas, duas poltronas grandes com estofado bege, um aparador de vidro onde estava um vaso de flores cheirosas e um bule de chá rodeado por algumas xícaras.
foi carregado para dentro de uma porta, e se sentou para esperar. Havia uma espécie de plataforma em frente ao espelho que cobria quase toda a parede. E embora nunca tivesse sido madrinha de casamento, e pouco tivesse assistido aos filmes de romance, tinha quase certeza de que aquele era o cenário onde noivas provavam seus vestidos.
foi deixado sozinho no provador. Era a primeira vez que via seu fraque composto por todas as peças – a calça cinza escura com discretas riscas pretas, o paletó preto; camisa branca, colete e gravata cinza. Perguntou-se se deveria sentir-se entusiasmado e assegurou a si mesmo que “não necessariamente”. Estava ali para certificar-se de que sua roupa lhe servia, não para se comover.
Logo que apontou na sala de prova, ergueu os olhos em direção a ele e algo estranho aconteceu.
Para e para .
ficou constrangido. E não tinha nada a ver com a reação dela, que era reação nenhuma. Tinha a ver com a sensação de não ter certeza sobre estar no lugar certo – e não parecia ter ligação com a alfaiataria, mas com quem havia se tornado. Cresceu vendo seu reflexo nos olhos de e aprendeu a gostar de si mesmo através dela. Não sabia se seus olhos estavam orgulhosos naquele momento. Não sabia se estavam orgulhosos nos últimos anos todos.
achava que não tinha nada de em nenhuma daquelas peças. Ela não conseguia encontrá-lo ali, embaixo daqueles tecidos e daqueles anos de distância entre ele e ele mesmo.
Torceu pra que desse uma volta no lugar, fizesse uma graça, parecesse irônico, jocoso. Mas ele ficou lá, parado na porta do provador, tentando levar pra trás os cabelos curtos. E foi em seus olhos, coagidos e embaraçados, que reconheceu seu melhor amigo. Quis abraçá-lo pela primeira vez desde que chegara em Los Angeles. Quis dizer que havia sentido sua falta. Pedir que ele não sumisse outra vez. Mas Fannie o conduziu até a plataforma para começar os ajustes necessários.
Seus olhos se buscaram através do espelho, e achou que ele estava bonito, apesar de tudo.
25 de Junho de 2005 – Worthy Farm, Pilton, UK
– RUBY, RUBY, RUBY, RUBY!
Havia pouca voz. Muita energia. Sábado de sobra pela frente.
Kaiser Chiefs era o quarto show do palco Pyramid, o primeiro que e assistiram naquele dia.
Levantaram-se tarde e caminharam, sem pressa, de volta ao festival. Percorreram alguns caminhos que ainda não haviam feito e, enquanto tomavam café e fumavam um cigarro, pararam para assistir uma atração circense que, apesar de não entretê-los como parecia entreter a todos ao redor, era impressionante.
Da colina onde escolheram se sentar, podiam ouvir a distância ao show de uma banda que não conheciam. Gastaram ali o pouco que restava da manhã e uma parte da tarde. Durante o intervalo entre a banda Goldie Lookin’ Chain e Kaiser Chiefs, passaram por um dos foodtrucks e se instalaram em frente ao Pyramid, num ponto onde conseguiam ver o show, mas conseguiam manter uma distância saudável da aglomeração.
Fina e incessante, a chuva fez companhia pelo dia e também pela noite. Com aquele aspecto gentil de uma garoa... Parecia inofensiva, mas os encharcou por completo antes do entardecer.
Durante o intervalo que antecedia o show do Coldplay, convenceu a se aproximarem um pouco mais do palco. Ainda havia uma distância incalculável entre eles e o alambrado de segurança quando se acomodaram, mas aproveitou a trégua da chuva para acender o baseado que havia bolado mais cedo – deixaram de se importar com a longitude muito rápido depois disso.
A cada uma das músicas que terminava, havia essa torcida eufórica dentro de , desejando que a próxima fosse Speed of Sound. Tão logo que ouviu sua introdução, prontificou-se a levantá-la em seus ombros. Ignorando a proposta, lhe lançou um sorriso que o convidou a uma atmosfera outra. Diferente de qualquer lugar que já tivesse visitado, a mais adorável das sensações que poderia ter provado.
Ela fechou os olhos e dançou, e por um momento chegou a pensar que era dela que vinha o som. Ela era a melodia, serpenteando com os braços para o alto. Seus lábios se moviam, sibilando a letra com tamanha doçura e veracidade que parecia ter sido quem a escreveu. Assim como a cantoria de uma sereia, foi atraído até render-se inteiramente a ela.
Tão linda e singular. Tão de repente, era sua.
abriu os olhos, porque não gostava da escuridão que era o mundo sem a presença de . Deleitou-se na sensação de estar sendo abraçada, mesmo quando os braços dele ainda estavam longe do corpo dela. Que inapropriada era aquela distância.
assistiu quando a mão de ergueu-se em sua direção. Os dedos dela tocaram seu rosto, tão sutis que pareciam passear com a ponta dos pés, sorrateiramente. Percorreram seu queixo, bochecha, têmpora e testa, depois desceram por seu nariz como se fosse o escorregador de um parquinho. Tocaram seus lábios, contornando-os de mansinho como se quisessem passar desapercebidos. Jamais poderiam.
Zonzo, apreciou a respiração dela soprando seu rosto, morna e entrecortada. Não conseguiu se lembrar do momento em que se aproximaram o suficiente para que o rosto de estivesse alinhado ao seu. Temeu que tivesse sido ele, num momento de distração, que atraiu sem consentimento o corpo dela pra perto do seu. Descobriu, pouco depois, os braços caídos ao lado de seu próprio corpo, imóveis diante de sua ansiedade.
Fechou os olhos ao mesmo tempo em que a boca de fazia caminho até a sua – tão destemida que o convenceu de que não havia nada a temer ou perder.
E naquele encontro, silenciosamente esperado por ambos, não cabia quaisquer expectativas ou idealizações. jogou fora cada um dos enredos que havia criado em sua mente, e livrou-se de todas as fantasias e dos inúmeros questionamentos que já o haviam atravessado. Eram inaproveitáveis frente à adorável realidade.
Não houve urgência ou pressa. Pensaram que haveria estranheza, mas concluíram, pelo namorar gentil de suas línguas, que não havia lugar nenhum no mundo onde pudessem pertencer que não fosse na boca um do outro.
E, em meio a tanto sentimento, temeram o momento em que o beijo findasse e tivessem que lidar com todo o resto. Então adiaram – e que maneira deliciosa de postergar qualquer coisa.
Mas o fôlego se esgotou, e Speed of Sound foi substituída por Low.
Seus lábios ainda se tocavam, rendidos, temendo se afastar depois de tanto tempo esperando por aquele encontro secreto. sentiu quando a boca de começou a curvar-se num sorriso. E, ainda de olhos fechados, sem a coragem que precisava para encará-la, também sorriu. Seus risos, logo audíveis, se misturaram. Soavam bem juntos.
Restava pouco do show e o pouco que restava soou absurdamente mais bonito. Assistiram lado a lado, com seus mindinhos enroscados, num gesto que demonstravam o quanto não sabiam como agir. A característica falta de jeito para romances, que agora já parecia fazer parte de quem eram.
Sem trocar uma só palavra, caminharam para longe do palco quando a banda se despediu e as luzes se apagaram. Passaram pelo foodtruck mais distante. Comeram muito e com uma preguiça proposital. Depois visitaram os banheiros, o banho a seco fazendo com que sentissem falta dos banhos convencionais.
Já passava das três da manhã quando começaram, num silêncio que nunca havia sido tão incômodo, sua longa caminhada até o estacionamento.
No percurso, pensou em sugerir que fossem até uma das festas eletrônicas que aconteciam ao longo da madrugada – mas também poderiam ir à atração circense, a uma roda de música, ao Green Fields, ou qualquer lugar onde pudessem adiar o fim daquela noite. Ao invés disso, usou o pouco que restava de sua intimidade com para passar seu braço ao redor dos ombros dela.
Antes de entrar na cabine de Lizzy, recolheu uma muda de roupas, ansiosa para tirar as peças encharcadas de seu corpo. , confuso e desarranjado, acomodou-se na traseira da caminhonete para fazer o mesmo.
Já vestido, ele ainda podia ouvi-la no compartimento adjacente. Movendo-se sobre o assento, esbarrando acidentalmente no painel ou na lataria. Perguntou-se, com uma inquietação crescente, se ela viria.
Por desejar, mais do que qualquer outra coisa, estar ao lado de , temeu que ela decidisse passar aquela noite na cabine, fora de seu alcance.
Mas havia ainda o receio de que, caso ela viesse, a decepcionasse com sua clara falta de jeito.
A figura sorrateira de , escalando sorrateiramente o corpo de , dizia que não havia mais tempo para suas análises inseguras. Ao abraçá-lo tão perto, aquietou todo seu desassossego.
beijou a boca de como se pertencesse a ela. E por um instante, nada breve, ele pensou que de fato pertencia. Se procurasse bem, talvez houvesse uma bandeira dela hasteada em se peito e isso não o assustou naquele momento como vinha assustando nos últimos anos.
Ela quis beijá-lo pelo que restava da noite e da vida. Quis que ele tirasse cada peça de suas roupas, passeasse por cada uma de suas esquinas. Quem sabe decidisse fazer uma visita ao seu coração e noutro dia qualquer trouxesse uma mala de roupas e sentimentos, caso quisesse ficar.
Foi quem interrompeu o beijo e gentilmente impediu que a mão dela adentrasse pelo cós de sua calça. E sabia que, caso um dos dois fosse recuar, seria ele. Não estava surpresa, mas frustrada.
– Me desculpa... – Ele pediu, num sussurro. sentiu o resfolegar ruidoso de contra seus lábios. – Não é que eu não queira, , mas não acho que seja o melhor momento... – Justificou e aguardou um tempo na esperança de que ela dissesse algo. Tudo o que obteve, em resposta, foi um silêncio desconfortável. – Quero que seja legal pra você... Estamos chapados... Não quero que amanhã ou depois nós dois vejamos isso como um desrespeito com você... Não suportaria a ideia de ser um idiota contigo, .
– Tudo bem. – E estava mesmo tudo bem. Ainda assim sentiu que havia arruinado a madrugada e junto qualquer nova chance de aproximação. escolheu não acrescentar novas palavras. E ele duvidou que houvesse algo a ser dito para amenizar o desconforto, então descartou um possível diálogo e a abraçou pra perto, tentando descobrir se ainda era bem-vindo. Parecia ser. – ... – chamou e o coração de respondeu com uma batida mais forte. – Foi estranho pra você?
“Não”, ele teria respondido imediatamente. “Tudo, menos estranho”, gostaria de acrescentar, antes de um riso carinhoso. Mas, inseguro que era, imaginou o que poderia responder. Talvez um “foi estranho pra mim”, ou quem sabe “melhor sermos só amigos”.
E já havia sido rejeitado muitas vezes antes, costumava lidar bem com a frustração, mas não achava que sua experiência com abandonos se aplicaria àquela situação. era sua exceção.
– Um pouco...
Se, naquela noite, não estivesse tão escuro na traseira de Lizzy, ou talvez se a chuva não estivesse batendo com tanta força contra a lona, teria percebido nas entrelinhas da voz vacilante de , em seu olhar fugitivo e desamparado, na maneira como ele havia parado de respirar antes de finalmente responder que aquela era uma grande mentira. Talvez a maior que ele já tivesse contado.
E talvez ela se sentisse à vontade para confessar sua espera, o receio e aquele sentimento anônimo e monstruoso que vinha alimentando dentro de si.
Talvez confidenciasse os sonhos frequentes e sobre os planos escondidos embaixo de seu travesseiro.
Sobre o medo de não estar com ele.
Mas naquela noite estava muito escuro na traseira de Lizzy. E a chuva estava batendo com muita força contra a lona. Então não pôde reconhecer as entrelinhas ou os vacilos da voz de , tampouco pôde notar as fugas desesperadas de seus olhos. Não percebeu, portanto, que era uma grande mentira. E viu-se encurralada entre o desejo e o receio, como todas as outras vezes que pensava nos dois.
– É, talvez sejamos bons amigos e só.
Capítulo 6
13 de Julho de 2016 – Los Angeles, Califórnia, USA
– Podemos dar uma passada no meu apartamento e revelar as fotos, se quiser... – sugeriu, logo que se acomodaram no carro, depois de gastarem a última uma hora passeando pela Hollywood Boulevard.
– Espera... – pediu, seus olhos desviando do trânsito para o rosto do amigo. – Você não mora na casa onde estamos hospedados?
– Hm, não... – O rosto de , mesmo concentrado no caminho que faziam, tinha um ar amigável que ninguém além de parecia conhecer. Talvez porque tivesse passado tempo suficiente ao seu lado. Talvez porque só existisse na sua presença. – Aquela casa é dos meus sogros, estou ficando lá enquanto reformo meu apartamento... É o mesmo desde que cheguei aqui, mas estava precisando de alguns ajustes... – E, quando terminou de esclarecer, ligou o rádio.
– E você tem um laboratório de revelação por lá?
– Tão caseiro quanto o que fizemos na casa dos meus pais... – explicou, cedendo um riso divertido. – E também fica no meu lavabo.
– Um lavaboratório? – brincou e gostou de como a gargalhada dele ainda lhe soava tão familiar. – Que piada idiota.
– Eu gosto... – confessou. – Mas me deixa te levar para outro lugar agora.
– Posso saber onde?
– Não. Mas você vai gostar.
apressou-se em virar o rosto para a janela antes de começar a sorrir. Lembrou-se de um período, pós-Glastonbury, em que tinha a impressão persecutória de que qualquer palavra ou movimento na presença de poderia colocar em exposição todos os seus sentimentos – dos mais claros aos mais inéditos. Sentia que bastava um gesto incerto para virá-la do avesso e evidenciar tudo o que vinha cuidadosamente acobertando dentro de si.
Lá estava ela. A (não tão) boa e velha vulnerabilidade.
– Hanging out, down the street... – A cantoria de arrancou do canto de sua mente onde estivera escondida nos últimos minutos, a abertura de “That’s 70 Show” rodando nitidamente em sua cabeça. – The same old thing we did last week! – Um riso frouxo lhe escapou, lembrando-se de todas as vezes que cantavam aquela música pelas ruas de Sheffield, quebrando o silêncio assustador das madrugadas. – Not a thing to do, but talk to you! Not a thing to do out in the street! Oh, yeah!
– Cheap Tricks, essa é velha! – Brincou ela, fingindo um desdém que na realidade não tinha espaço para existir.
– Vamos lá, ! – E esbarrou sua mão no braço dela num convite. – Mom and dad live upstairs, the music’s loud, so we don’t care! – riu, seu rosto fugindo do dele, na tentativa de disfarçar seu entusiasmo. – Mis-used now, but rock lives now! Oh, yeah! – sorriu quando ouviu a voz dela, ainda que muito constrangida, acompanhar a dele. – We’re still rockin’ in Wisconsin, we’re all alright, we’re all alright, yeah!
Levaram pouco mais de uma hora para chegar ao espaço da cidade onde ficava localizado o parque temático Six Flags. Podiam ver, ainda da estrada íngreme que os guiava ao estacionamento, uma parte das estruturas coloridas de alguns brinquedos. , que nem se lembrava da última vez que havia visitado um parque de diversões, agitou-se em seu assento. tinha razão, ela gostou.
– E então? – Ele perguntou mesmo depois de percebê-la entusiasmada.
– Agora sim, ! – disparou, abrindo a porta do carro logo que estacionaram em uma das muitas vagas desocupadas. – Agora estamos falando do mesmo tipo de diversão!
E então os deixou pra trás – e seu sorriso jubiloso.
O parque agigantou-se ao redor de ambos enquanto caminhavam por entre as atrações. , que já havia estado ali algumas vezes antes, fazia todas as orientações, apontando para cada canto do mapa que tinham em mãos, inteirando sobre o que encontrariam.
A ideia de era que começassem pela montanha russa que considerasse mais assustadora. Ela não precisou pensar muito, olhando as imagens do mapa. X2 seria.
Instalada em uma área próxima de onde estavam, levou pouco tempo até alcançarem a fila. Ao contrário do que esperavam, em menos de cinco minutos estavam sendo conduzidos aos seus assentos.
Logo que aconselhados, testaram as travas de segurança e, pouco antes de começarem a se locomover, suas poltronas se inclinaram até que estivessem em posição horizontal, quase completamente deitados. virou o rosto em direção à e trocaram um olhar enérgico e assustado, depois começaram a rir de puro pânico.
fechou os olhos logo que começaram a ganhar velocidade. E enquanto observava seu rosto risonho e desconfiado, notou o quanto havia sentido falta de tudo em sua presença – e mesmo agora, sempre tão contida e silenciosa, como se estivesse ocupada maquiando suas verdades em um mundo tão cheio de pessoas, era sua pessoa favorita.
Seus pensamentos foram arrancados dele, dando lugar a um enorme vácuo quando a velocidade era maior do que poderia administrar. De olhos semiabertos, e logo lacrimejantes, acompanhou todos os contornos, loopings e espirais pelos quais passaram. manteve os dela fechados e ele não sabia dizer se ela estava rindo ou gritando, talvez os dois. Soava encantador de qualquer maneira.
Seguiram de pernas vacilantes até a Tatsu, que segundo era sua favorita. Nenhum dos dois estava exatamente recuperado e pronto para outra carga de adrenalina e se talvez tivessem tido um pouco mais de tempo para pensar, teriam postergado o passeio. Não tiveram.
Seus assentos, desta vez, ficavam inclinados para baixo. De bruços, tiveram dificuldade em se entreolhar e, inicialmente, tudo o que conseguiam ver era o chão. Tão logo começaram a subir pela estrutura íngreme, despejou um punhado de palavrões sobre . Gritou, com muita propriedade, que ele era o pior amigo do mundo. E só conseguia se sentir alegre por ainda ser considerado seu amigo – mesmo que, naquele momento, fosse supostamente o pior deles.
Em determinados momentos, sentia que de fato poderia morrer. Atravessada por um medo irracional e imagens nítidas de seu corpo desprendendo-se das travas de segurança e rompendo ao meio depois de colidir contra os arcos alaranjados. O mais coerente de seus terrores devia ser aquele em que seu coração, depois de muito tentar suportar, parasse de bater. Mas quanto mais próxima das ideias ruins e do mal estar, maior era seu alívio ao descer do carrinho – lidando com a fraqueza nas pernas, a ânsia de vômito e a taquicardia, porém sentindo-se um pouco mais viva do que antes.
Ela gostava da sensação de escapar. De resistir. De estar a salvo. Especialmente em dias como aqueles, durante os quais seu receio era o de não sair tão pouco prejudicada de Los Angeles quanto havia saído daquelas montanhas-russas. Temia não haver alívio algum após o casamento de e ter que voltar completamente danificada para a Inglaterra.
Sem ele. E sem ela mesma.
– Isso é sério? – esbravejou, ao ver agarrar seu copo de milk shake e arremessá-lo na lata de lixo mais próxima.
– Você não quer perder a oportunidade de dar uma volta nesse carrossel... – Ele garantiu, e quando ela ia dizer que queria, sim, perder aquela oportunidade, ele acrescentou: – Qual foi a última vez que esteve em um? Ah é, nunca!
– Eu gostaria de entender por que diabos isso te incomoda tanto! – argumentou, ao mesmo tempo em que se permitia ser guiada para dentro da belíssima atração.
– Nenhuma criança deveria ser privada do fascínio que é uma volta no carrossel, poopface! – Ele justificou, após uma breve análise, impedindo que se acomodasse nos assentos que faziam referência à poltrona de uma carroça antiga. – Vamos escolher nossos cavalos.
– Talvez seja difícil notar, mas não sou mais uma criança há uns vinte anos... – disse e havia uma provocação divertida em sua voz. – Talvez o fascínio não seja exatamente o mesmo.
– Talvez não! – concordou, oferecendo ajuda pra que ela montasse em seu cavalo, para depois ajeitar-se em um paralelo ao dela. – Mas talvez seja, vamos descobrir.
Parecia pouco significativo. Girar incansavelmente, montada em um cavalo de brinquedo. Mas havia algo de melancólico naquele circuito. Talvez tivesse a ver com a música suave. Talvez com a desesperança que envolvia estar presa numa volta sem fim, um círculo vicioso materializado. Um carrossel de adultos, para adultos.
temeu que estivesse muito perto de chorar. E, mais do que isso, temeu que ao permitir uma ou duas lágrimas, elas não parassem mais de cair.
Não havia nada de fascinante. Era só triste.
– O que achou? – quis saber quando desceram do tablado de madeira envernizada e seguiram para fora da cerca colorida em direção à saída do parque.
– Que crianças são sortudas.
04 de Setembro de 2005 – Leeds, West Yorkshire, UK
– Alô?
– ! Te acordei?
Era .
Depois dos últimos setenta e um dias de desassossego.
Um mil setecentos e quatro horas de esquivança.
.
sentou-se de imediato, levando a mão no peito como se pudesse com esse gesto desacelerar seu coração e talvez, num golpe de sorte, regularizar sua respiração.
– Está tudo bem? – Perguntou, soando confuso e embaraçado. O que era uma novidade tão grande quanto a voz introvertida de do outro lado.
– Preparado para minha inconveniência? – cedeu um sorriso, aliviado que ela não pudesse ver.
– Já me acostumei! – E embora não parecesse uma brincadeira imprópria, havia desarranjo na risada de ambos.
– Meu pai ficou de me levar para Leeds essa manhã, mas ele ligou há dois minutos, desmarcando... você sabe, é meu pai. – empertigou-se e, sem perceber, segurou o celular com mais força. Ela estava indo. Definitivamente, estava indo. – Você acha que pode me levar?
Ele não achava que poderia.
Não havia o mínimo de tranquilidade na ideia de levá-la à Leeds; ajudá-la com suas malas. Percorrer cinquenta e sete quilômetros ao lado dela, naquela cabine que, de repente, parecia menor desde o domingo em que voltaram do Glastonbury.
Não havia qualquer mansidão em ser quem a conduziria direto a sua nova vida. Da qual ele não tinha certeza de que faria parte – especialmente depois da estranheza que havia se apropriado de sua relação naquelas últimas dez semanas.
E mesmo reconhecendo o fiasco iminente, analisou que, de todas as coisas que haviam mudado depois do romance relâmpago entre ele e , permanecia intacta sua lealdade.
– Pode contar comigo.
fingiu não perceber os olhos avermelhados da mãe, mas ao vê-la sair do quarto, pensou ter ouvido o próprio coração trincando dentro do peito, para depois despedaçar em fragmentos muito pequenos. Não sabia se conseguiria juntá-los outra vez algum dia.
Quis devolver todas aquelas roupas em seu armário, apoiar a mala no canto do quarto, que era o lugar dela desde sempre. Desistir e fazer daquele um domingo como outro qualquer. Mas lhe faltava coragem para ficar, tanto quanto faltava para ir. Sua decisão fora baseada numa simples avaliação: caso fosse e não se adaptasse, poderia voltar. Caso não fosse, porém, talvez nunca mais tivesse a chance de ir.
– Mãe... – Chamou logo que a porta do quarto foi aberta.
– Resposta errada.
.
Depois dos últimos setenta e um dias de desassossego.
Um mil setecentos e quatro horas de esquivança.
.
Encostado no batente, com um sorriso refreado e as mãos enterradas no bolso de seu jeans surrado.
Era pouco o que havia sobrado do coração quebrado de , mas esse pouco esperneou com sofreguidão ao vê-lo ali, tão próximo outra vez.
Quis ir até . Abraçá-lo. Mas temeu beijá-lo na boca, assim, de repente. E queria tanto que depois não poderia dizer que foi “sem querer”. E não se arrependeria nada, então tampouco poderia alegar que estava arrependida.
Sem álcool, sem drogas. Só aquele desejo mimado que não sabia direito como lidar com rejeição.
– Precisa de ajuda?
– Sim... – concordou e, depois de respirar fundo, continuou: – Você pode fazer companhia pra minha mãe enquanto eu organizo o que falta?
– Claro... – desencostou-se do batente e, antes de deixar o quarto, voltou-se novamente na direção de . – Você... – Ele começou e num gesto ansioso tamborilou os dedos na maçaneta. – Você está bem?
– Vou ficar.
havia feito o caminho mais longo até a casa de , tentando se preparar para o momento em que chegasse lá. Pouco adiantou.
Ficou quinze minutos parado na porta, antes de encontrar um resto de coragem para tocar a campainha. Pouco adiantou também.
Torceu para que Martha estivesse lidando com a situação daquele jeito otimista que costumava ter, ou fingia. Ela não estava. Martha, na realidade, estava em ruínas.
“Quer um chá?”, ela ofereceu. Sua voz saiu tão trêmula quanto seus lábios. aceitou, porque não sabia o que dizer. Talvez devesse abraçá-la, considerou. Ou talvez devesse deixá-la sozinha para elaborar a novidade.
Descobriu, naquela manhã, que havia perdido muito daquele instinto cuidador que costumava ter. Parecia saber exatamente o que fazer para que se sentisse melhor na noite do incêndio. Mas chocolate quente e Beatles talvez não dessem conta do sofrimento de Martha naquela situação. Ou de .
– Você vem com a gente até Leeds? – perguntou a Martha, aceitando a xícara de chá que ela havia preparado.
– Não... – Respondeu. Seus olhos estavam cobertos por uma camada de lágrimas desde que chegara. Ele concordou com a cabeça e pensou em algo que pudesse dizer. Parecia não existir palavra certa. – Não quero que vocês se afoguem nas minhas lágrimas – esperou até que Martha sorrisse, para só então fazer o mesmo. Os olhos dela, ao serem contraídos, escorreram.
– Não se preocupe com isso... – Pediu, com um deboche umedecido em carinho. – Podemos usar boias, o que acha?
Martha riu até começar a chorar. E dessa vez não parecia ter controle sobre isso. Não podia parar quando quisesse. pensou que poderia sentar-se no banco ao lado do que ela estava, passar um braço ao redor de seus ombros, segurá-la perto de si. Mas, ao mesmo tempo, estava cimentado ao seu lugar.
Se pelo menos Lucian estivesse ali. Foi o que ela murmurou em meio às lágrimas. “Se pelo menos Lucian estivesse aqui”. E soube que aquele pranto consternado era um acúmulo de abandono e desamparo. E soube, não havia nada que pudesse dizer para fazê-la se sentir melhor. Não tinha o direito de pedir que não chorasse e não fazia sentido algum sugerir a Martha que se acalmasse, ou que considerasse os pontos positivos. “Há um lado brilhante para tudo”, diriam as amigas dela num discurso ensaiado. Elas tinham razão, havia algo bom. Martha descobriria isso em algum momento, mas não naquele.
Por ora ela só precisava chorar porque não estaria em casa quando ela chegasse do trabalho. Porque ninguém estaria ali para reclamar quando, distraída com seu vinho, ela se esquecesse da carne no fogo – nem sequer teria alguém ali para perceber e talvez começasse a comer carne queimada sempre. Precisava chorar porque a segunda temporada de The Office começava dia 20 daquele mês e os episódios só eram tão engraçados porque estava sempre ao seu lado no sofá, gargalhando.
Precisava chorar porque aquela casa era imensa e ficaria ainda maior quando não restasse ninguém além dela. era uma só, mas preenchia todos os cômodos com sua vivacidade.
Dias sem cor esperavam por Martha e ela precisava chorar pelo lado que não era brilhante.
– Eu comprei isso pra você... – disse à mãe, desvencilhando-se do que deveria ser o quarto abraço delas. Alcançou em sua bolsa um calendário personalizado com fotos das duas. Martha deixou escapar algumas lágrimas que estava controlando na presença da filha.
– Obrigada, meu amor... – Murmurou em meio ao choro contido.
– Todas essas marcas em vermelho são os dias que eu estarei aqui... – explicou, mostrando os números circulados com uma caneta esferográfica. – Faltam só alguns dias até a próxima sexta e você já pode até encomendar a pizza se quiser... – Martha cobriu parte do rosto com a mão, como se estivesse proibida de se comover. – E se, por um acaso, você sentir vontade de comer pizza no meio da semana, vou me sentir traída, mas pode convidar o ...
– Nem vamos sentir sua falta, não é mesmo, Martha? – Ele arriscou, brincalhão.
– tem razão! Estamos só fingindo, pra que você não pense que queremos que você vá...
– Sim, porque na verdade, nós queremos... – acrescentou, com falso descaso.
– Vocês vão é morrer de tanto sentir minha falta, essa é a verdade! – Concluiu , um de seus braços ao redor dos ombros da mãe. – E eu vou morrer de tanto sentir falta de vocês.
– Vá logo! – Martha exigiu, soltando-se de seu abraço. – Não queremos que isso pareça com uma despedida... Sexta você já está de volta!
– É isso aí! – anuiu e estendeu sua mão para um high five. – E se, por um acaso, não tiver uma pizza e uma garrafa de vinho me esperando... Aí, Martha, você irá se ver comigo!
– Pizza e vinho, estou dentro! – se convidou, risonho.
– Oh, querido... – Martha despejou, com carinho – Você sempre será bem-vindo, sabe disso... Mas agora leve ela daqui... Antes que eu tranque essa porta e ninguém mais saia.
A buzina de Lizzy foi o último sinal de despedida. Martha acenava desde a porta, com um sorriso triste, mas menos triste que antes. sabia que ela logo se acostumaria, na medida do possível. E ele também. Ou pelo menos torceu pra que sim.
Ainda era tão difícil prever um mundo sem , mesmo que fossem apenas quatro ou cinco dias. Talvez quatorze ou quinze quando as coisas ficassem corridas. Logo , que costumava fazer dias longos parecerem curtos, agora faria eterna todas aquelas semanas sem sua presença.
Logo que viraram a rua, antes mesmo de ligar o rádio ou relaxar minimamente em seu assento, foi a vez de desmoronar. E enquanto procurava um lugar onde pudesse estacionar, se perguntou quando é que chegaria sua hora de confrontar a ansiedade daquela despedida.
Devido às últimas semanas, não achou que ele a abraçaria. E temeu que, se o fizesse, fosse frio e distante. Mas a abraçou e estava muito longe de ser qualquer coisa além de caloroso e familiar, como todos os abraços dele costumavam ser.
– Tudo bem? – Ele perguntou quando ela começou a se afastar, enxugando com impaciência o próprio rosto.
– Parece clichê, mas é como se eu realmente estivesse deixando pra trás uma parte de mim... Uma parte essencial... – explicou, a aflição em sua voz tornando pesado o coração de seu amigo. – Eu tenho medo que ela se sinta abandonada, ... Eu não quero que ela se sinta assim outra vez! E não quero ser eu a provocar isso.
– Ela vai ficar bem, ... – Arriscou o rapaz, tomando a liberdade de segurar a mão dela na sua, seus dedos se entrelaçando num gesto puramente automático e cheio de apoio. – Talvez não hoje e não amanhã... Talvez seja uma semana difícil, um mês difícil... Mas quando ela começar a perceber que pode ir te ver quando quiser e que você vai estar sempre aqui... Então ela vai começar a enfrentar isso de maneira diferente...
– É tão difícil! – admitiu, seus olhos fugindo dos de , gotejando como uma torneira mal fechada. – Sinto que é meu dever estar do lado dela, não deixá-la sozinha.
– Não é, ... – Ele garantiu, usando o polegar para massagear as costas da mão dela. – Você está do lado dela por amor, não porque tem que estar... E, da mesma forma, você não está se mudando porque quer simplesmente, mas porque precisa... – E, finalmente, voltou a encará-lo, agora mais atentamente. – E eu tenho certeza que, apesar de estar sofrendo com a distância, faz parte dos sonhos dela ver você graduada, especialmente em algo que gosta.
– Tem razão... – Concordou a moça. E em meio ao silêncio, fechou seus olhos e respirou, devagar e profundamente, como se tentasse recobrar sua estabilidade. observou seu rosto molhado, a ponta do nariz tão vermelha quanto seus lábios e os arredores de seus olhos inchados. Quis trilhar com beijos todos os diferentes caminhos de lágrimas que haviam marcado seu rosto. Quis beijar sua boca entreaberta e torcer pra que ela retribuísse. Nunca havia sentido falta de algo como sentia falta de beijá-la.
– Eu vou sentir sua falta... – Ele disparou, porque era o mais próximo de uma declaração de amor que poderia fazer naquele momento.
– Eu tenho sentido sua falta todos esses dias... – confidenciou, depois abriu os olhos úmidos e mais claros que o comum. – Não queria que o que aconteceu entre nós tivesse perturbado nossa amizade... – gostaria de dizer que não havia sido o beijo. Nenhum deles. Quis dizer que havia adorado e que não parava de sonhar com ela. E com eles. E então explicaria, por fim, que se estava se mantendo à distância era por temer que a qualquer momento, entre uma palavra e outra, dissesse que estava apaixonado por ela. Não disse nada disso, porém, porque a voz de não parava de ecoar em sua cabeça, lembrando-o de que eram bons amigos. E só.
– Só embaralhamos tudo, poopface. Vamos esquecer isso.
Nenhum deles esqueceu.
Mas também não voltaram a falar sobre o ocorrido. E o fato de, de repente, parecerem estar de volta ao normal não deixava margem para que retomassem aquela conversa.
Uma pena.
– Não acredito... – disparou, com bom humor, tão logo que conectou um pendrive na entrada USB de seu rádio. – Você finalmente se rendeu à tecnologia? – cedeu um riso, os olhos distraídos com a direção.
– Você não estava por perto para me lembrar que sou vintage... – gargalhou e num gesto automático alcançou o ombro dele com o seu, num empurrão delicado.
– Não me culpe por estar indo contra todos os seus princípios. – Exigiu, depois passou a primeira música para ver o que encontrava a seguir. – Tem algo novo?
– Não... Duran me disse que no mês que vem sai o segundo álbum do Franz Ferdinand...
– Ah, é mesmo? Eu gostei do primeiro... – E sabia que ela estava começando a sentir-se à vontade outra vez, retirando o Vans amarelo mostarda para encolher os pés sobre o assento da caminhonete. – Não tanto quando você, claro... Eles soltaram alguma música antes?
– Provavelmente, mas não quero ouvir... – tinha lá seus hábitos. – Vou esperar pelo álbum complet...
– Ah!!! – exclamou, interrompendo sua fala. – Você assistiu ao novo filme do Tarantino?
– ... Esse grito foi para gravidade máxima. Sabe disso, não sabe?
– Não! Foi um grito para gravidade moderada... – Argumentou , para depois gritar mais alto e com mais horror. sobressaltou, sem esperar por aquilo. – Esse foi um para gravidade máxima... É bom que você aprenda, caso algum dia eu esteja em apuros.
– Ok! – Ele rendeu-se, pois não havia muito a ser dito. – Você estava falando de Sin City?
– Sim! – voltou ao seu entusiasmo inicial.
– Ainda não assisti...
– , você precisa assistir. Isso é sério! – E parecia sério para ela.
– Podemos assistir no fim de semana, quando você voltar. – Ele sugeriu, e concordou imediatamente. – Ah, eu vi o trailer do novo do Woody.
– Match Point?
– Sim! Talvez seja um bom candidato ao seu novo filme favorito... – Sugeriu , em uma provocação explícita. – Quem sabe deixemos de assistir Garden State uma vez no mês.
– Esqueça.
e , habituados a uma comunicação frequente, haviam muito a compartilhar daqueles dois longos meses que mal se viram e pouco se falaram. Os cinquenta e cinco minutos de viagem pareciam, de repente, reduzidos a dez. Quando ele estacionou Lizzy em frente aos dormitórios universitários, ainda não tinha dito que sua turma faria uma viagem na primeira semana de aula e que esperaria por ela para assistir à estreia da nova série da CBS, How I Met Your Mother.
Aquela tarde foi quando chegou mais próximo de se arrepender por ter ficado com no festival. Disposto a sacrificar qualquer de seus sentimentos românticos por ela, para não correr o risco de perder mais dois meses sem tê-la ao seu lado.
O quarto de ficava no terceiro andar de um prédio universitário. Não era o mais próximo do campus, mas o preço era acessível e ela não precisaria dividir o cômodo com ninguém.
se ofereceu para ajudá-la a carregar as malas para dentro e enquanto ela abria as cortinas para observar a vista de sua janela, ele sentou-se à cadeira giratória que ficava em frente a uma espaçosa escrivaninha. respirou fundo e soltou o corpo contra o que seria sua cama pelos próximos anos, encostando-se contra a parede.
– Você não tem uma TV... – observou. – Trouxe livros?
– Sim! Mas minha TV chega amanhã, comprei uma pela internet...
– Legal! – desejou que não parecesse estranho caso decidisse se deitar ao lado dela, como já havia feito tantas vezes. Preferiu não arriscar. – Acho que vou indo, .
– Espera! – Ela pediu, saltando de onde estava e andando até a bolsa, que havia deixado no mancebo da entrada. Voltou de lá com algumas libras.
– O que é isso? – disparou. – ...
– Aceita, por favor! Não é muito, só vai ajudar com o combustível!
– Não vou aceitar, é sério! – respirou fundo, recobrando sua paciência.
– Você é a pessoa mais teimosa que conheço!
– Isso é porque conhece muito pouco de si mesma! – arriscou uma carranca, mas acabou dando risada. – Você vai ficar bem? – quis saber, levantando-se de onde estava.
– Vou! – Garantiu, parecendo mais convicta do que realmente estava.
– Certo... Se precisar de qualquer coisa, me liga! Eu dou um pulo aqui... – sorriu e sem maiores hesitações passou os braços ao redor dos ombros de .
– Obrigada por tudo! – Abafou as palavras no ombro dele, que a abraçava de volta, com ainda mais intensidade.
– Não precisa me agradecer... – Advertiu ele, encostando sua bochecha no topo da cabeça de . Seus olhos se fecharam instantaneamente, respondendo ao deleite que era tê-la em seus braços outra vez. – Boa sorte nesses primeiros dias... E em todos os outros, também.
– Obrigada, ... – E por um instante quis que ele ficasse.
– Fica bem por aí... Se ficar triste, me liga.
– Ligo!
ligou exatos dez minutos depois de perder de vista, na escadaria do fim do corredor. Não havia uma desculpa convincente para dar, então pediu, com simplicidade, que ele ficasse um pouco mais. Ainda na esquina, não foi difícil voltar. E mesmo que estivesse na metade de seu caminho para Sheffield, voltaria.
Estava sempre voltando para ela.
– Podemos dar uma passada no meu apartamento e revelar as fotos, se quiser... – sugeriu, logo que se acomodaram no carro, depois de gastarem a última uma hora passeando pela Hollywood Boulevard.
– Espera... – pediu, seus olhos desviando do trânsito para o rosto do amigo. – Você não mora na casa onde estamos hospedados?
– Hm, não... – O rosto de , mesmo concentrado no caminho que faziam, tinha um ar amigável que ninguém além de parecia conhecer. Talvez porque tivesse passado tempo suficiente ao seu lado. Talvez porque só existisse na sua presença. – Aquela casa é dos meus sogros, estou ficando lá enquanto reformo meu apartamento... É o mesmo desde que cheguei aqui, mas estava precisando de alguns ajustes... – E, quando terminou de esclarecer, ligou o rádio.
– E você tem um laboratório de revelação por lá?
– Tão caseiro quanto o que fizemos na casa dos meus pais... – explicou, cedendo um riso divertido. – E também fica no meu lavabo.
– Um lavaboratório? – brincou e gostou de como a gargalhada dele ainda lhe soava tão familiar. – Que piada idiota.
– Eu gosto... – confessou. – Mas me deixa te levar para outro lugar agora.
– Posso saber onde?
– Não. Mas você vai gostar.
apressou-se em virar o rosto para a janela antes de começar a sorrir. Lembrou-se de um período, pós-Glastonbury, em que tinha a impressão persecutória de que qualquer palavra ou movimento na presença de poderia colocar em exposição todos os seus sentimentos – dos mais claros aos mais inéditos. Sentia que bastava um gesto incerto para virá-la do avesso e evidenciar tudo o que vinha cuidadosamente acobertando dentro de si.
Lá estava ela. A (não tão) boa e velha vulnerabilidade.
– Hanging out, down the street... – A cantoria de arrancou do canto de sua mente onde estivera escondida nos últimos minutos, a abertura de “That’s 70 Show” rodando nitidamente em sua cabeça. – The same old thing we did last week! – Um riso frouxo lhe escapou, lembrando-se de todas as vezes que cantavam aquela música pelas ruas de Sheffield, quebrando o silêncio assustador das madrugadas. – Not a thing to do, but talk to you! Not a thing to do out in the street! Oh, yeah!
– Cheap Tricks, essa é velha! – Brincou ela, fingindo um desdém que na realidade não tinha espaço para existir.
– Vamos lá, ! – E esbarrou sua mão no braço dela num convite. – Mom and dad live upstairs, the music’s loud, so we don’t care! – riu, seu rosto fugindo do dele, na tentativa de disfarçar seu entusiasmo. – Mis-used now, but rock lives now! Oh, yeah! – sorriu quando ouviu a voz dela, ainda que muito constrangida, acompanhar a dele. – We’re still rockin’ in Wisconsin, we’re all alright, we’re all alright, yeah!
Levaram pouco mais de uma hora para chegar ao espaço da cidade onde ficava localizado o parque temático Six Flags. Podiam ver, ainda da estrada íngreme que os guiava ao estacionamento, uma parte das estruturas coloridas de alguns brinquedos. , que nem se lembrava da última vez que havia visitado um parque de diversões, agitou-se em seu assento. tinha razão, ela gostou.
– E então? – Ele perguntou mesmo depois de percebê-la entusiasmada.
– Agora sim, ! – disparou, abrindo a porta do carro logo que estacionaram em uma das muitas vagas desocupadas. – Agora estamos falando do mesmo tipo de diversão!
E então os deixou pra trás – e seu sorriso jubiloso.
O parque agigantou-se ao redor de ambos enquanto caminhavam por entre as atrações. , que já havia estado ali algumas vezes antes, fazia todas as orientações, apontando para cada canto do mapa que tinham em mãos, inteirando sobre o que encontrariam.
A ideia de era que começassem pela montanha russa que considerasse mais assustadora. Ela não precisou pensar muito, olhando as imagens do mapa. X2 seria.
Instalada em uma área próxima de onde estavam, levou pouco tempo até alcançarem a fila. Ao contrário do que esperavam, em menos de cinco minutos estavam sendo conduzidos aos seus assentos.
Logo que aconselhados, testaram as travas de segurança e, pouco antes de começarem a se locomover, suas poltronas se inclinaram até que estivessem em posição horizontal, quase completamente deitados. virou o rosto em direção à e trocaram um olhar enérgico e assustado, depois começaram a rir de puro pânico.
fechou os olhos logo que começaram a ganhar velocidade. E enquanto observava seu rosto risonho e desconfiado, notou o quanto havia sentido falta de tudo em sua presença – e mesmo agora, sempre tão contida e silenciosa, como se estivesse ocupada maquiando suas verdades em um mundo tão cheio de pessoas, era sua pessoa favorita.
Seus pensamentos foram arrancados dele, dando lugar a um enorme vácuo quando a velocidade era maior do que poderia administrar. De olhos semiabertos, e logo lacrimejantes, acompanhou todos os contornos, loopings e espirais pelos quais passaram. manteve os dela fechados e ele não sabia dizer se ela estava rindo ou gritando, talvez os dois. Soava encantador de qualquer maneira.
Seguiram de pernas vacilantes até a Tatsu, que segundo era sua favorita. Nenhum dos dois estava exatamente recuperado e pronto para outra carga de adrenalina e se talvez tivessem tido um pouco mais de tempo para pensar, teriam postergado o passeio. Não tiveram.
Seus assentos, desta vez, ficavam inclinados para baixo. De bruços, tiveram dificuldade em se entreolhar e, inicialmente, tudo o que conseguiam ver era o chão. Tão logo começaram a subir pela estrutura íngreme, despejou um punhado de palavrões sobre . Gritou, com muita propriedade, que ele era o pior amigo do mundo. E só conseguia se sentir alegre por ainda ser considerado seu amigo – mesmo que, naquele momento, fosse supostamente o pior deles.
Em determinados momentos, sentia que de fato poderia morrer. Atravessada por um medo irracional e imagens nítidas de seu corpo desprendendo-se das travas de segurança e rompendo ao meio depois de colidir contra os arcos alaranjados. O mais coerente de seus terrores devia ser aquele em que seu coração, depois de muito tentar suportar, parasse de bater. Mas quanto mais próxima das ideias ruins e do mal estar, maior era seu alívio ao descer do carrinho – lidando com a fraqueza nas pernas, a ânsia de vômito e a taquicardia, porém sentindo-se um pouco mais viva do que antes.
Ela gostava da sensação de escapar. De resistir. De estar a salvo. Especialmente em dias como aqueles, durante os quais seu receio era o de não sair tão pouco prejudicada de Los Angeles quanto havia saído daquelas montanhas-russas. Temia não haver alívio algum após o casamento de e ter que voltar completamente danificada para a Inglaterra.
Sem ele. E sem ela mesma.
– Isso é sério? – esbravejou, ao ver agarrar seu copo de milk shake e arremessá-lo na lata de lixo mais próxima.
– Você não quer perder a oportunidade de dar uma volta nesse carrossel... – Ele garantiu, e quando ela ia dizer que queria, sim, perder aquela oportunidade, ele acrescentou: – Qual foi a última vez que esteve em um? Ah é, nunca!
– Eu gostaria de entender por que diabos isso te incomoda tanto! – argumentou, ao mesmo tempo em que se permitia ser guiada para dentro da belíssima atração.
– Nenhuma criança deveria ser privada do fascínio que é uma volta no carrossel, poopface! – Ele justificou, após uma breve análise, impedindo que se acomodasse nos assentos que faziam referência à poltrona de uma carroça antiga. – Vamos escolher nossos cavalos.
– Talvez seja difícil notar, mas não sou mais uma criança há uns vinte anos... – disse e havia uma provocação divertida em sua voz. – Talvez o fascínio não seja exatamente o mesmo.
– Talvez não! – concordou, oferecendo ajuda pra que ela montasse em seu cavalo, para depois ajeitar-se em um paralelo ao dela. – Mas talvez seja, vamos descobrir.
Parecia pouco significativo. Girar incansavelmente, montada em um cavalo de brinquedo. Mas havia algo de melancólico naquele circuito. Talvez tivesse a ver com a música suave. Talvez com a desesperança que envolvia estar presa numa volta sem fim, um círculo vicioso materializado. Um carrossel de adultos, para adultos.
temeu que estivesse muito perto de chorar. E, mais do que isso, temeu que ao permitir uma ou duas lágrimas, elas não parassem mais de cair.
Não havia nada de fascinante. Era só triste.
– O que achou? – quis saber quando desceram do tablado de madeira envernizada e seguiram para fora da cerca colorida em direção à saída do parque.
– Que crianças são sortudas.
04 de Setembro de 2005 – Leeds, West Yorkshire, UK
– Alô?
– ! Te acordei?
Era .
Depois dos últimos setenta e um dias de desassossego.
Um mil setecentos e quatro horas de esquivança.
.
sentou-se de imediato, levando a mão no peito como se pudesse com esse gesto desacelerar seu coração e talvez, num golpe de sorte, regularizar sua respiração.
– Está tudo bem? – Perguntou, soando confuso e embaraçado. O que era uma novidade tão grande quanto a voz introvertida de do outro lado.
– Preparado para minha inconveniência? – cedeu um sorriso, aliviado que ela não pudesse ver.
– Já me acostumei! – E embora não parecesse uma brincadeira imprópria, havia desarranjo na risada de ambos.
– Meu pai ficou de me levar para Leeds essa manhã, mas ele ligou há dois minutos, desmarcando... você sabe, é meu pai. – empertigou-se e, sem perceber, segurou o celular com mais força. Ela estava indo. Definitivamente, estava indo. – Você acha que pode me levar?
Ele não achava que poderia.
Não havia o mínimo de tranquilidade na ideia de levá-la à Leeds; ajudá-la com suas malas. Percorrer cinquenta e sete quilômetros ao lado dela, naquela cabine que, de repente, parecia menor desde o domingo em que voltaram do Glastonbury.
Não havia qualquer mansidão em ser quem a conduziria direto a sua nova vida. Da qual ele não tinha certeza de que faria parte – especialmente depois da estranheza que havia se apropriado de sua relação naquelas últimas dez semanas.
E mesmo reconhecendo o fiasco iminente, analisou que, de todas as coisas que haviam mudado depois do romance relâmpago entre ele e , permanecia intacta sua lealdade.
– Pode contar comigo.
fingiu não perceber os olhos avermelhados da mãe, mas ao vê-la sair do quarto, pensou ter ouvido o próprio coração trincando dentro do peito, para depois despedaçar em fragmentos muito pequenos. Não sabia se conseguiria juntá-los outra vez algum dia.
Quis devolver todas aquelas roupas em seu armário, apoiar a mala no canto do quarto, que era o lugar dela desde sempre. Desistir e fazer daquele um domingo como outro qualquer. Mas lhe faltava coragem para ficar, tanto quanto faltava para ir. Sua decisão fora baseada numa simples avaliação: caso fosse e não se adaptasse, poderia voltar. Caso não fosse, porém, talvez nunca mais tivesse a chance de ir.
– Mãe... – Chamou logo que a porta do quarto foi aberta.
– Resposta errada.
.
Depois dos últimos setenta e um dias de desassossego.
Um mil setecentos e quatro horas de esquivança.
.
Encostado no batente, com um sorriso refreado e as mãos enterradas no bolso de seu jeans surrado.
Era pouco o que havia sobrado do coração quebrado de , mas esse pouco esperneou com sofreguidão ao vê-lo ali, tão próximo outra vez.
Quis ir até . Abraçá-lo. Mas temeu beijá-lo na boca, assim, de repente. E queria tanto que depois não poderia dizer que foi “sem querer”. E não se arrependeria nada, então tampouco poderia alegar que estava arrependida.
Sem álcool, sem drogas. Só aquele desejo mimado que não sabia direito como lidar com rejeição.
– Precisa de ajuda?
– Sim... – concordou e, depois de respirar fundo, continuou: – Você pode fazer companhia pra minha mãe enquanto eu organizo o que falta?
– Claro... – desencostou-se do batente e, antes de deixar o quarto, voltou-se novamente na direção de . – Você... – Ele começou e num gesto ansioso tamborilou os dedos na maçaneta. – Você está bem?
– Vou ficar.
havia feito o caminho mais longo até a casa de , tentando se preparar para o momento em que chegasse lá. Pouco adiantou.
Ficou quinze minutos parado na porta, antes de encontrar um resto de coragem para tocar a campainha. Pouco adiantou também.
Torceu para que Martha estivesse lidando com a situação daquele jeito otimista que costumava ter, ou fingia. Ela não estava. Martha, na realidade, estava em ruínas.
“Quer um chá?”, ela ofereceu. Sua voz saiu tão trêmula quanto seus lábios. aceitou, porque não sabia o que dizer. Talvez devesse abraçá-la, considerou. Ou talvez devesse deixá-la sozinha para elaborar a novidade.
Descobriu, naquela manhã, que havia perdido muito daquele instinto cuidador que costumava ter. Parecia saber exatamente o que fazer para que se sentisse melhor na noite do incêndio. Mas chocolate quente e Beatles talvez não dessem conta do sofrimento de Martha naquela situação. Ou de .
– Você vem com a gente até Leeds? – perguntou a Martha, aceitando a xícara de chá que ela havia preparado.
– Não... – Respondeu. Seus olhos estavam cobertos por uma camada de lágrimas desde que chegara. Ele concordou com a cabeça e pensou em algo que pudesse dizer. Parecia não existir palavra certa. – Não quero que vocês se afoguem nas minhas lágrimas – esperou até que Martha sorrisse, para só então fazer o mesmo. Os olhos dela, ao serem contraídos, escorreram.
– Não se preocupe com isso... – Pediu, com um deboche umedecido em carinho. – Podemos usar boias, o que acha?
Martha riu até começar a chorar. E dessa vez não parecia ter controle sobre isso. Não podia parar quando quisesse. pensou que poderia sentar-se no banco ao lado do que ela estava, passar um braço ao redor de seus ombros, segurá-la perto de si. Mas, ao mesmo tempo, estava cimentado ao seu lugar.
Se pelo menos Lucian estivesse ali. Foi o que ela murmurou em meio às lágrimas. “Se pelo menos Lucian estivesse aqui”. E soube que aquele pranto consternado era um acúmulo de abandono e desamparo. E soube, não havia nada que pudesse dizer para fazê-la se sentir melhor. Não tinha o direito de pedir que não chorasse e não fazia sentido algum sugerir a Martha que se acalmasse, ou que considerasse os pontos positivos. “Há um lado brilhante para tudo”, diriam as amigas dela num discurso ensaiado. Elas tinham razão, havia algo bom. Martha descobriria isso em algum momento, mas não naquele.
Por ora ela só precisava chorar porque não estaria em casa quando ela chegasse do trabalho. Porque ninguém estaria ali para reclamar quando, distraída com seu vinho, ela se esquecesse da carne no fogo – nem sequer teria alguém ali para perceber e talvez começasse a comer carne queimada sempre. Precisava chorar porque a segunda temporada de The Office começava dia 20 daquele mês e os episódios só eram tão engraçados porque estava sempre ao seu lado no sofá, gargalhando.
Precisava chorar porque aquela casa era imensa e ficaria ainda maior quando não restasse ninguém além dela. era uma só, mas preenchia todos os cômodos com sua vivacidade.
Dias sem cor esperavam por Martha e ela precisava chorar pelo lado que não era brilhante.
– Eu comprei isso pra você... – disse à mãe, desvencilhando-se do que deveria ser o quarto abraço delas. Alcançou em sua bolsa um calendário personalizado com fotos das duas. Martha deixou escapar algumas lágrimas que estava controlando na presença da filha.
– Obrigada, meu amor... – Murmurou em meio ao choro contido.
– Todas essas marcas em vermelho são os dias que eu estarei aqui... – explicou, mostrando os números circulados com uma caneta esferográfica. – Faltam só alguns dias até a próxima sexta e você já pode até encomendar a pizza se quiser... – Martha cobriu parte do rosto com a mão, como se estivesse proibida de se comover. – E se, por um acaso, você sentir vontade de comer pizza no meio da semana, vou me sentir traída, mas pode convidar o ...
– Nem vamos sentir sua falta, não é mesmo, Martha? – Ele arriscou, brincalhão.
– tem razão! Estamos só fingindo, pra que você não pense que queremos que você vá...
– Sim, porque na verdade, nós queremos... – acrescentou, com falso descaso.
– Vocês vão é morrer de tanto sentir minha falta, essa é a verdade! – Concluiu , um de seus braços ao redor dos ombros da mãe. – E eu vou morrer de tanto sentir falta de vocês.
– Vá logo! – Martha exigiu, soltando-se de seu abraço. – Não queremos que isso pareça com uma despedida... Sexta você já está de volta!
– É isso aí! – anuiu e estendeu sua mão para um high five. – E se, por um acaso, não tiver uma pizza e uma garrafa de vinho me esperando... Aí, Martha, você irá se ver comigo!
– Pizza e vinho, estou dentro! – se convidou, risonho.
– Oh, querido... – Martha despejou, com carinho – Você sempre será bem-vindo, sabe disso... Mas agora leve ela daqui... Antes que eu tranque essa porta e ninguém mais saia.
A buzina de Lizzy foi o último sinal de despedida. Martha acenava desde a porta, com um sorriso triste, mas menos triste que antes. sabia que ela logo se acostumaria, na medida do possível. E ele também. Ou pelo menos torceu pra que sim.
Ainda era tão difícil prever um mundo sem , mesmo que fossem apenas quatro ou cinco dias. Talvez quatorze ou quinze quando as coisas ficassem corridas. Logo , que costumava fazer dias longos parecerem curtos, agora faria eterna todas aquelas semanas sem sua presença.
Logo que viraram a rua, antes mesmo de ligar o rádio ou relaxar minimamente em seu assento, foi a vez de desmoronar. E enquanto procurava um lugar onde pudesse estacionar, se perguntou quando é que chegaria sua hora de confrontar a ansiedade daquela despedida.
Devido às últimas semanas, não achou que ele a abraçaria. E temeu que, se o fizesse, fosse frio e distante. Mas a abraçou e estava muito longe de ser qualquer coisa além de caloroso e familiar, como todos os abraços dele costumavam ser.
– Tudo bem? – Ele perguntou quando ela começou a se afastar, enxugando com impaciência o próprio rosto.
– Parece clichê, mas é como se eu realmente estivesse deixando pra trás uma parte de mim... Uma parte essencial... – explicou, a aflição em sua voz tornando pesado o coração de seu amigo. – Eu tenho medo que ela se sinta abandonada, ... Eu não quero que ela se sinta assim outra vez! E não quero ser eu a provocar isso.
– Ela vai ficar bem, ... – Arriscou o rapaz, tomando a liberdade de segurar a mão dela na sua, seus dedos se entrelaçando num gesto puramente automático e cheio de apoio. – Talvez não hoje e não amanhã... Talvez seja uma semana difícil, um mês difícil... Mas quando ela começar a perceber que pode ir te ver quando quiser e que você vai estar sempre aqui... Então ela vai começar a enfrentar isso de maneira diferente...
– É tão difícil! – admitiu, seus olhos fugindo dos de , gotejando como uma torneira mal fechada. – Sinto que é meu dever estar do lado dela, não deixá-la sozinha.
– Não é, ... – Ele garantiu, usando o polegar para massagear as costas da mão dela. – Você está do lado dela por amor, não porque tem que estar... E, da mesma forma, você não está se mudando porque quer simplesmente, mas porque precisa... – E, finalmente, voltou a encará-lo, agora mais atentamente. – E eu tenho certeza que, apesar de estar sofrendo com a distância, faz parte dos sonhos dela ver você graduada, especialmente em algo que gosta.
– Tem razão... – Concordou a moça. E em meio ao silêncio, fechou seus olhos e respirou, devagar e profundamente, como se tentasse recobrar sua estabilidade. observou seu rosto molhado, a ponta do nariz tão vermelha quanto seus lábios e os arredores de seus olhos inchados. Quis trilhar com beijos todos os diferentes caminhos de lágrimas que haviam marcado seu rosto. Quis beijar sua boca entreaberta e torcer pra que ela retribuísse. Nunca havia sentido falta de algo como sentia falta de beijá-la.
– Eu vou sentir sua falta... – Ele disparou, porque era o mais próximo de uma declaração de amor que poderia fazer naquele momento.
– Eu tenho sentido sua falta todos esses dias... – confidenciou, depois abriu os olhos úmidos e mais claros que o comum. – Não queria que o que aconteceu entre nós tivesse perturbado nossa amizade... – gostaria de dizer que não havia sido o beijo. Nenhum deles. Quis dizer que havia adorado e que não parava de sonhar com ela. E com eles. E então explicaria, por fim, que se estava se mantendo à distância era por temer que a qualquer momento, entre uma palavra e outra, dissesse que estava apaixonado por ela. Não disse nada disso, porém, porque a voz de não parava de ecoar em sua cabeça, lembrando-o de que eram bons amigos. E só.
– Só embaralhamos tudo, poopface. Vamos esquecer isso.
Nenhum deles esqueceu.
Mas também não voltaram a falar sobre o ocorrido. E o fato de, de repente, parecerem estar de volta ao normal não deixava margem para que retomassem aquela conversa.
Uma pena.
– Não acredito... – disparou, com bom humor, tão logo que conectou um pendrive na entrada USB de seu rádio. – Você finalmente se rendeu à tecnologia? – cedeu um riso, os olhos distraídos com a direção.
– Você não estava por perto para me lembrar que sou vintage... – gargalhou e num gesto automático alcançou o ombro dele com o seu, num empurrão delicado.
– Não me culpe por estar indo contra todos os seus princípios. – Exigiu, depois passou a primeira música para ver o que encontrava a seguir. – Tem algo novo?
– Não... Duran me disse que no mês que vem sai o segundo álbum do Franz Ferdinand...
– Ah, é mesmo? Eu gostei do primeiro... – E sabia que ela estava começando a sentir-se à vontade outra vez, retirando o Vans amarelo mostarda para encolher os pés sobre o assento da caminhonete. – Não tanto quando você, claro... Eles soltaram alguma música antes?
– Provavelmente, mas não quero ouvir... – tinha lá seus hábitos. – Vou esperar pelo álbum complet...
– Ah!!! – exclamou, interrompendo sua fala. – Você assistiu ao novo filme do Tarantino?
– ... Esse grito foi para gravidade máxima. Sabe disso, não sabe?
– Não! Foi um grito para gravidade moderada... – Argumentou , para depois gritar mais alto e com mais horror. sobressaltou, sem esperar por aquilo. – Esse foi um para gravidade máxima... É bom que você aprenda, caso algum dia eu esteja em apuros.
– Ok! – Ele rendeu-se, pois não havia muito a ser dito. – Você estava falando de Sin City?
– Sim! – voltou ao seu entusiasmo inicial.
– Ainda não assisti...
– , você precisa assistir. Isso é sério! – E parecia sério para ela.
– Podemos assistir no fim de semana, quando você voltar. – Ele sugeriu, e concordou imediatamente. – Ah, eu vi o trailer do novo do Woody.
– Match Point?
– Sim! Talvez seja um bom candidato ao seu novo filme favorito... – Sugeriu , em uma provocação explícita. – Quem sabe deixemos de assistir Garden State uma vez no mês.
– Esqueça.
e , habituados a uma comunicação frequente, haviam muito a compartilhar daqueles dois longos meses que mal se viram e pouco se falaram. Os cinquenta e cinco minutos de viagem pareciam, de repente, reduzidos a dez. Quando ele estacionou Lizzy em frente aos dormitórios universitários, ainda não tinha dito que sua turma faria uma viagem na primeira semana de aula e que esperaria por ela para assistir à estreia da nova série da CBS, How I Met Your Mother.
Aquela tarde foi quando chegou mais próximo de se arrepender por ter ficado com no festival. Disposto a sacrificar qualquer de seus sentimentos românticos por ela, para não correr o risco de perder mais dois meses sem tê-la ao seu lado.
O quarto de ficava no terceiro andar de um prédio universitário. Não era o mais próximo do campus, mas o preço era acessível e ela não precisaria dividir o cômodo com ninguém.
se ofereceu para ajudá-la a carregar as malas para dentro e enquanto ela abria as cortinas para observar a vista de sua janela, ele sentou-se à cadeira giratória que ficava em frente a uma espaçosa escrivaninha. respirou fundo e soltou o corpo contra o que seria sua cama pelos próximos anos, encostando-se contra a parede.
– Você não tem uma TV... – observou. – Trouxe livros?
– Sim! Mas minha TV chega amanhã, comprei uma pela internet...
– Legal! – desejou que não parecesse estranho caso decidisse se deitar ao lado dela, como já havia feito tantas vezes. Preferiu não arriscar. – Acho que vou indo, .
– Espera! – Ela pediu, saltando de onde estava e andando até a bolsa, que havia deixado no mancebo da entrada. Voltou de lá com algumas libras.
– O que é isso? – disparou. – ...
– Aceita, por favor! Não é muito, só vai ajudar com o combustível!
– Não vou aceitar, é sério! – respirou fundo, recobrando sua paciência.
– Você é a pessoa mais teimosa que conheço!
– Isso é porque conhece muito pouco de si mesma! – arriscou uma carranca, mas acabou dando risada. – Você vai ficar bem? – quis saber, levantando-se de onde estava.
– Vou! – Garantiu, parecendo mais convicta do que realmente estava.
– Certo... Se precisar de qualquer coisa, me liga! Eu dou um pulo aqui... – sorriu e sem maiores hesitações passou os braços ao redor dos ombros de .
– Obrigada por tudo! – Abafou as palavras no ombro dele, que a abraçava de volta, com ainda mais intensidade.
– Não precisa me agradecer... – Advertiu ele, encostando sua bochecha no topo da cabeça de . Seus olhos se fecharam instantaneamente, respondendo ao deleite que era tê-la em seus braços outra vez. – Boa sorte nesses primeiros dias... E em todos os outros, também.
– Obrigada, ... – E por um instante quis que ele ficasse.
– Fica bem por aí... Se ficar triste, me liga.
– Ligo!
ligou exatos dez minutos depois de perder de vista, na escadaria do fim do corredor. Não havia uma desculpa convincente para dar, então pediu, com simplicidade, que ele ficasse um pouco mais. Ainda na esquina, não foi difícil voltar. E mesmo que estivesse na metade de seu caminho para Sheffield, voltaria.
Estava sempre voltando para ela.
Capítulo 7
14 de Julho de 2016 – Los Angeles, Califórnia, USA
Com desatenção, acariciou a crina do cavalo no qual estava montado. O carrossel estava mais antigo e melancólico do que conseguia se lembrar. Podia sentir a aspereza dos pelos sob seus dedos e ouvia a madeira gemer a cada movimento das correntes enferrujadas, que carregava os cavalos para cima e para baixo muito lentamente.
A iluminação precária não permitia que reconhecesse qualquer um dos rostos ao seu redor. Aquela música se parecia muito com algo que tocava nos filmes de drama, os que Madson gostava de assistir.
– Filho?
atentou-se, seus olhos encharcados fazendo com que sua boca parecesse ainda mais ressecada. Ele olhou curiosamente a sua volta, sem saber ao certo de que direção vinha a voz do pai. Mais tarde teve a impressão de que era de algum lugar dentro de si.
– , vamos! – Robert convidava. – Você vai se atrasar.
E demorou para se recordar e reunir todas as letras que precisava. Quando finalmente formou um hesitante “pra que?”, sua voz não passava de um sussurro frágil e inaudível por qualquer um além dele.
segurou-se na corrente, assustadoramente enterrada na cabeça daquele cavalo que não deveria ser um animal de verdade e prontificou-se a saltar. Notou, só então, que estava a metros de distância do chão. E mesmo aterrorizado, deslumbrou-se com a vista. Aquele carrossel não costumava voar, pensou.
– Ora, menino! – O pai reclamou e os olhos de finalmente o encontraram. O campo pareceu grande demais para a figura de Robert, mãos na cintura como um super-herói, tentando parecer imponente. – Desça já daí!
quis, desesperadamente, descer do cavalo e ir de encontro ao pai. Se comunicar com ele antes que se zangasse e desistisse de esperar. Mas sua voz era nada mais que um sopro débil em sua cabeça, como se não tivesse força suficiente para ser externalizada. “Uma volta no carrossel não pode demorar tanto”, considerou, concentrando-se na espera.
A imagem risonha de Robert foi tomando novas proporções, conforme os cavalos cavalgavam de volta para a terra firme. saltou logo que pôde e tentou correr em direção ao pai, frustrando-se com a distância que havia entre eles e que parecia maior a cada um de seus passos.
“Eu não consigo!”, ele admitiu, com o coração dolorido. Dessa vez havia voz. Havia tanta voz que soou como um grito, desencorajado, sofrido. Robert soltou uma risada compreensiva, os braços movendo-se num gesto que convidava o filho para um abraço.
Zonzo e cansado, o rapaz observou o gramado entre ele e o pai. Contou, com dificuldade, quantos passos precisava percorrer para alcançá-lo e dessa vez, quando começou a andar, tudo ficou em seu devido lugar.
Contou bem baixinho suas passadas:
Décimo.
Nono.
Oitavo.
Com a proximidade, Robert parecia mais velho do que antes. Mais magro, talvez.
Sétimo.
Sexto.
reconheceu e repudiou a imagem da bengala de madeira, onde o pai se apoiava.
Quinto.
Quarto.
O sorriso de Robert de repente era apenas uma tentativa falha. Sua face esquerda escorrendo como sorvete em dias quentes. Havia um acúmulo de saliva em seus lábios e uma postura cansada, como se tivesse ficado em pé por tempo demais.
“Pode chorar, se quiser”, sugeriu o mais velho com ar de riso, e novamente foi como se sua voz viesse de dentro de , ecoando por toda parte, asfixiando-o lentamente. “Mas não acho que tenhamos tempo para isso”, acrescentou rapidamente e, depois de dar uma rápida olhadela para trás, concluiu “são as noivas que se atrasam e já está pronta”.
Por cima do ombro do pai, reconheceu o tapete branco, coberto daquelas folhas alaranjadas, secas e mortas que faziam parecer outono em meio ao sol abrasivo de Julho. Os vasos muito grandes com flores coloridas e as cadeiras envernizadas demais para um casamento que deveria parecer rústico. Mas Madson havia adorado.
Madson.
– Onde está Madson?
– Quem é Madson? – Robert perguntou, adotando uma expressão confusa.
– Madson, pai! Minha noiva!
– Em que tipo de encrenca está metido, ? – O pai questionou rapidamente, preocupado com o rumo da conversa. – Espero que não esteja envolvido com mais ninguém, é tarde demais agora.
– Eu estou me casando com a ?
– Com quem mais seria? – Robert perguntou impaciente, mas brincalhão.
– Não sei... – E soou tão confuso quanto realmente estava.
– Claro que não sabe! Se não fosse com , não se casaria com ninguém mais.
– Que bom que está aqui, pai!
Robert arriscou um sorriso assimétrico, dispensando a bengala e curvando-se em frente ao filho. Com um dos joelhos apoiados no chão e ambos os braços abertos em direção à , propôs um abraço como fazia quando o filho ainda era um menino. E naquele momento, tornou-se um. O pequeno em meio ao abraço firme e seguro de seu pai.
Havia uma mancha úmida na fronha de e um acúmulo de lágrimas em seus olhos, sua pele marcada pelas outras que secaram no meio do caminho. Havia um peso tão grande em seu peito que ele mal sentia-se capaz de respirar, como se estivesse sendo lentamente esmagado por uma bigorna.
Madson não estava na cama, ele constatou ao virar-se para o lado, onde ela costumava dormir. Seu corpo todo doía, como se ao invés de repor, tivesse gastado toda sua energia durante o sono.
Levantar foi uma tarefa árdua e ainda assim era de grande alívio estar fora da cama. Havia um bilhete da noiva colado no espelho do banheiro. Avisava, através dele, que ficaria o dia fora com as madrinhas – haviam ganhado algumas horas no spa ou algo do tipo.
encarou seu reflexo. Tentou convencer a si mesmo de que estava preparado para a angústia que era o reencontro com seus pais. Sentiu-se esgotado antes de obter sucesso e então declarou desistência, correndo para um banho quase frio na tentativa de livrar-se do suor. Com sorte, da agonia acomodada em seu coração.
– Já vou!
avisou, sem abrir a porta ou permitir que ele entrasse. fantasiou que ela se levantava e andava passos preguiçosos até a mala, alcançando qualquer peça de roupa com a qual pudesse se cobrir, depois viria ao seu encontro. Antes que ele concluísse seu devaneio, surgiu na porta – cabelos trançados de um jeito prático, os óculos de grau ainda eram os mesmos.
Colocar seus olhos nela fez com que recordasse seu sonho, podia ouvir a própria voz soando etérea: “estou me casando com ?”.
Ele só percebeu que estava muito tempo em silêncio quando o rosto de começou a se contrair em uma careta, confusa e preocupada. Ele bem conhecia aquela expressão.
– Você está ocupada?
– Hm, não exatamente... Estava só respondendo alguns e-mails pendentes. – esclareceu, encostando-se ao batente, os braços se cruzando numa postura resistente e defensiva. – Está tudo bem?
– É que, hm... Eu estou indo buscar meus pais no aeroporto... – Ele não verbalizou o convite e nem precisava fazê-lo. , assim como nos velhos tempos, soube exatamente o que ele estava fazendo ali.
– Vou com você! – Estabeleceu, decidida. Depois recuou um passo e segurou a maçaneta. – Me dê um minuto, vou me trocar.
– Não precisa se apressar... – disse, enterrando as mãos no bolso de seu jeans. – Te espero lá embaixo, no jardim.
– Combinado.
Incapaz de se mover, encarou a porta fechada, fugindo para dentro de si mesmo e revisitando, mais uma vez, o sonho perturbador. Havia prometido a si mesmo, mais cedo durante o banho, não pensar mais sobre os incontáveis significados que poderia ter. Teve medo do que encontraria.
Naquele momento, porém, pegou-se debruçado sobre todas as possibilidades, assustado com todas elas.
Reencontrar era de alguma forma reencontrar inevitavelmente a si mesmo.
Era como entrar em um cativeiro onde havia mantido preso o que costumava ser; livrara-se dele desde o momento em que tornara-se um fardo muito pesado para carregar. E era fácil fingir que aquela versão de si mesmo não existia quando não estava em Sheffield, perto de ou de seus pais. Era fácil fingir que era alguém completamente novo e diferente para aquelas pessoas que pouco conheciam dele.
Não precisava viver encolhido pelo mundo, com medo de ser notado.
Não precisava andar com as mãos escondidas no bolso, afugentando os cumprimentos.
Não precisava ser inseguro e incompreendido quando podia ser alguém fácil de lidar.
Não precisava ser o de Robert.
O de Stella.
O de .
Mas lá estava ele.
O único que poderia ser.
– Você tem um pendrive aí? – Ele perguntou a , logo que se acomodaram no carro.
– Serve meu celular?
– Sim! – E sem tirar os olhos da direção abriu um compartimento entre os assentos, onde estava instalada a entrada USB e uma auxiliar. – Pode conectar, vamos ver o que anda ouvindo.
– Provavelmente as mesmas coisas que ouvia a dez anos atrás... – adiantou-se. sorriu tão logo que reconheceu a introdução de No Rain, da banda Blind Melon.
– Quanto tempo não ouço essa música! – Comentou ele. apenas sorriu, a mente correndo em direção a todas aquelas lembranças. – Você ainda escreve, ?
– Hm... Não tanto quanto antes.
– Eu gostaria de ler... – parecia surpresa, e angustiou-se com o fato de ter se distanciado o bastante para que ela se surpreendesse com seu interesse. – Se quiser me mandar.
– Desde que você prometa não enviar a nenhuma editora... – provocou e apesar da ironia e graça, havia também uma cólera implícita.
– Droga, você me pegou! – disparou zombeteiro. – Eu ia arriscar uma de Sheffield... Eu ouvi dizer que eles têm uma profissional excepcional por lá... – não queria sorrir, mas precisou morder os lábios para conter-se. – Eu aposto que alguém assim reconheceria seu talento e a grande escritora que é.
– Eu duvido... – Confessou e havia tanto peso em seus olhos quanto em sua voz. – Afinal, não aconteceu até agora e não sei se mudou muita coisa.
– Você deveria se dar uma chance, poopface. – E, por um instante, o coração de vacilou, errando uma batida.
– É... – sabia que aquele era um terreno perigoso. Já havia estado ali antes.
– Não quero te pressionar outra vez, não acho que eu possa fazer isso depois d...
– Tem razão! – interrompeu. – Não pode! – E houve dez segundos de silêncio que de tão incômodo pareceu ter durado uma hora inteira. – Eu só... , eu leio tantos originais, é o que passo meus dias fazendo e tem alguns... Eles são muito bons, verdadeiramente incríveis. Mas existem esses outros, eles são impublicáveis! – aguardou em silêncio absoluto até que ela retomasse o que ia dizendo. – Eu tenho medo, seja lá quem for o profissional a ler um original meu, que ele pense exatamente assim... Como se... “que merda é essa?”, sabe?
– ... – O rapaz chamou determinado e esperou até que a atenção dela estivesse toda voltada para ele. – Você sabe que isso não aconteceria, certo? Você sabe disso, não sabe?
– Não, , eu não sei... Podemos só... Não falar disso?
– , você sabe! – Ele insistiu, enfático. – Eu sei que você não acreditava totalmente em mim, em meus elogios e você tinha razão em não me dar créditos, eu não trabalho com isso e sou absolutamente tendencioso a seu respeito... – respirou fundo e aproveitou para espiar o rosto rígido de antes do sinal abrir outra vez. – Mas , o e-mail daquela editora... Eles aprovaram, ! Quer dizer, eles propuseram algumas mudanças, mas queriam investir na sua história... Isso é grande, não é?
– Eu nunca li...
– Nunca... O que? – quase freou o carro, tamanha sua surpresa. – Você nunca abriu o e-mail?
– Eu abri... Mas quando vi que a história estava anexada, eu... Hm, eu sabia que tinha sido você e eu estava com raiva, então eu só... Eu apaguei, não li. Nunca li.
– Uau! – observou o perfil de , toda sua tensão depositada na musculatura rígida de seu maxilar. – Uau, !
– Sou mais covarde do que você pensou uma vida inteira?
– Sim! – admitiu e não conseguiu conter um riso sincero. – Uma pena para você que eu tenha esse e-mail salvo e você não volta para a Inglaterra antes de ler.
– ...
– Nada do que você disser vai me convencer do contrário... – respirou fundo, seus braços se cruzando automaticamente. – Houve um tempo, , em que eu morria de medo que você me odiasse. Agora eu já sei qual é a sensação.
– Nunca cheguei perto de te odiar, ! – Ela garantiu, quase ofendida por aquela convicção vinda dele.
– Tem certeza?
Ela não tinha.
25 de Dezembro de 2008 – Sheffield, South Yorkshire, UK
– Vocês chegaram! – Stella exclamou, o entusiasmo de sua voz provocando um sorriso em seus convidados. – Entrem!
– Com licença! – Martha pediu e esperou até que soltasse Stella de um abraço apertado, para só então poder cumprimentá-la. – Obrigada pelo convite!
– Oh, imagina, Martha! Estou feliz que tenham vindo! – Exclamou Stella, aceitando a sobremesa que Martha lhe estendia.
– Esse é Allan! Allan, essa é Stella, mãe do !
– É um grande prazer, Allan! – Saudou a anfitriã, apertando alegremente a mão do homem que lhe fora apresentado. – , está lá em cima!
O trem agora era também uma casa para . Ela acabara se habituando até mesmo aos incômodos que outros passageiros continuavam a reclamar. Sabia qual era o melhor horário para viajar – o da manhã estava sempre superlotado, eram raras as vezes que conseguia embarcar. A mesma coisa acontecia no fim da tarde. Arriscou o da noite uma vez ou outra, mas além de chegar em Sheffield tarde demais, o público era predominantemente adolescentes bêbados. Não era tão divertido para ela, que fazia todo o trajeto sóbria.
Costumava, então, faltar a uma aula ou outra e pegar o trem do meio da tarde na sexta-feira. Era um bom horário. Sempre conseguia tickets, mesmo quando não comprava com antecedência. Na maioria das vezes até podia escolher sua poltrona. Chegava em Sheffield no exato horário em que estava saindo da universidade. Ele sempre passava para buscá-la e quando chegavam à casa de , Martha já havia encomendado as pizzas e aberto o vinho.
Passavam os sábados juntos, fazendo o que quer que fosse – cinema, observatório, um barzinho às vezes. Em geral, se divertiam com qualquer programa. achava particularmente entediante quando a arrastava junto dele para as festas da universidade. Ele, pelo contrário, gostava de ser convidado por ela para as festas que ela frequentava em Leeds. Na maioria das vezes, acabavam bêbados na pequena cama do dormitório de .
Não é como se acontecesse algo entre eles. Nunca acontecia. Mas gostava de estar tão próximo a ela e imaginar o dia em que teria coragem de admitir que havia aquela moradia em seu coração e que ele vinha limpando e cuidando, mobiliando e decorando para o dia que ela chegasse. A porta havia sido feita sob medida e nenhuma outra pessoa se adaptaria o suficiente para entrar. Ninguém nunca havia passado do jardim.
– Hey! – exclamou no momento em que abriu a porta, sem antes tocar. sobressaltou e girou sua poltrona, ficando de frente para ela.
– Feliz Natal, poopface! – Desejou daquele jeito introvertido que já conseguia prever. Ela andou até ele e o envolveu num abraço tão apertado quanto desajeitado.
– Feliz Natal, Alex! – Felicitou, quando já se afastava e estendia a ele uma sacola de papel kraft. Havia um laço mal feito segurando as alças. – Eu vi.
– O quê?
– Você olhando torto para o meu laço, ! – reclamou, depois soltou o peso de seu corpo contra a cama, enquanto ele divertia-se com o comentário.
– Você melhora a cada dia... – Provocou, desfazendo o nó da fita azul.
– Ande logo, abra! – E ele obedeceu, risonho. Afastou as alças e enfiou a mão dentro da sacola, retirando dela o vinil mais recente dos Arctic Monkeys, Favourite Worst Nighmare. – Isso é sério?
– Gostou? – quis saber e havia um sorriso cheio de dentes e expectativas em seu rosto.
– Você não vai acreditar! – garantiu, alongando-se para alcançar a caixa floral sobre sua escrivaninha. – Abra o seu.
– Hm, ok! – aceitou a caixa e surpreendeu-se ao abrir e encontrar exatamente o mesmo vinil. – Eu-não-acredito! – Gritou espontânea, depois desmanchou-se em uma gargalhada. – Que ridículos! Nós somos péssimos, ! Péssimos!
– Eu comprei ele há meses, quando ouvimos a primeira vez e você não parava de falar sobre Teddy Picker! – riu, esticando-se para um high five.
– Você acertou em cheio, meu amigo!
– Que bom! – esqueceu um sorriso nos lábios enquanto observava o rosto contente de , ela contornava distraidamente cada detalhe da capa de seu disco com a ponta do indicador. – Quer ver as fotos de ontem?
– Olha... Não tenho certeza! – Brincou a moça, mas deixou sua caixa sobre a cama para ir juntar-se à , sentando-se no braço de sua poltrona.
– Você prefere ver em ordem cronológica? Ou da pior para a melhor? – começou a rir antes mesmo do momento em que abriu a pasta em seu computador.
– Cronológica.
Havia aquela promessa gritando no peito de . Não iria ceder novamente ao sentimento, resistente e inegavelmente caloroso, que nutria sem querer. Mas todas as vezes que estava tão próxima dele, transmitindo aquele calor que derreteria toda a neve lá fora e enchendo sua vida daquele perfume que era só dela, pegava-se à beira de uma declaração.
Pronto para agarrar o violão e tocar (muito mal) Accidentally In Love – e pelo menos havia a chance de achar engraçadinho, mesmo que não passasse disso.
A ponto de escrever uma carta, de uma folha ou mil. Talvez algo quilométrico, se desenrolando por todo o quarteirão.
Muito próximo de beijá-la, com tanto amor que acabaria por convencê-la de que não era estranho, nem mesmo um pouco. Não era nada além de fascinante.
– , já sabe o que vai querer fazer depois de graduada? – Robert perguntou, e empertigou-se em sua cadeira ao ser convidada para a conversa.
– Eu e tivemos uma ideia! – Comentou, trocando uma olhadela com o amigo, ao seu lado. – Nós vamos fazer um mochilão... Ainda não decidimos a rota, não é?
– É, decidimos começar pelo Brasil, depois seguimos pela América do Sul... Chile, Peru, provavelmente... – esclareceu, sua atenção toda voltada para , como se ela fosse a única pessoa com quem realmente quisesse compartilhar aqueles planos.
– Argentina... – Ela acrescentou, e concordou imediatamente. Iria para onde quer que ela fosse.
– Quanto tempo vai levar essa... hm, viagem? – Martha perguntou, as sobrancelhas erguidas de um jeito desafiador. e começaram a rir imediatamente.
– Alguns meses... – se adiantou. – Cinco ou seis...
– Mas... – continuou, evitando que a mãe começasse uma argumentação. – Vamos produzir algo... Um livro, como um guia para outros mochileiros, com nossas rotas, fatos curiosos, histórias... E fará fotos, vai ficar incrível! – E, ao finalizar, ergueu a mão na direção do amigo, propondo um high five.
– Está muito claro pra mim que vocês inventaram esse livro só para ter uma boa desculpa... Não me enganaram nem por um instante! – Robert brincou e, exceto por e , que estavam ocupados fingindo-se de ofendidos, o resto dos convidados gargalharam.
– Está bem, talvez a ideia do livro tenha vindo depois... – admitiu, alcançando sua taça de vinho. – Mas vocês precisam admitir que é sensacional.
– Eu concordo... – Robert apoiou.
– Oh, meu Deus, Robert, não apoie! – Stella disparou, a mão na testa. – Eles já são desregrados demais!
– Deixe os meninos! – O marido pediu, abanando a mão com descaso. – Eles sabem se cuidar.
– Ah, é mesmo? – Stella desafiou, seu olhar caindo sobre , que rapidamente encolheu os lábios em uma única linha. – Dá próxima vez, meu filho, que você for ligar para alguém pedindo para verificar se você está no seu quarto, porque você não tem certeza disso... Não se esqueça do número do seu pai!
– Você fez isso, ? – Robert perguntou, embora já soubesse que sim. – A louça é sua... E da , que, convenhamos, péssima influência.
– Não é justo! – A moça protestou, em meio as risadas que preenchiam o ambiente. – Eu bem achei meu quarto noite passada.
– Mas dormiu de botas... – Martha denunciou, com a boca dentro de sua taça de vinho.
– Os dois para a cozinha, já.
Já era tarde da noite quando os convidados se despediram.
retribuiu os abraços ébrios de boa noite e podia ouvir a risada libidinosa de seus pais mesmo depois de terem desaparecido quarto adentro. Trancou sua porta, como se com isso fosse parecer menos intrometido.
Havia um sorriso surgindo sorrateiro em seu rosto quando alcançou a sacola com seu presente. Riu mais abertamente do laço, agora que não estava. Trabalhos manuais não combinavam muito com ela.
Ele retirou o vinil de sua capa e o colocou para rodar na vitrola. Acomodado em sua poltrona, curtiu em silêncio os primeiros acordes de Brianstorm. Levou um curto período de tempo até notar um papel azul dobrado, caído em seu carpete. Esticou-se para pegá-lo e reconheceu muito rapidamente a caligrafia paciente de .
“Agora pare de choramingar por cartões de Natal!
Te amo”
releu. Uma, duas, três vezes. E tantas outras que ele perdeu as contas. Não havia nada demais naquelas palavras, mas havia tanto de nelas que ele quase podia ouvir sua voz lendo o cartão em voz alta, com aquele deboche que já havia se tornado parte de quem era. Não se parecia com uma carta de amor, mas transbordava cumplicidade, que era provavelmente o que mais gostava na relação que tinham.
Enquanto ouvia o disco, revisitou as fotos da noite anterior, selecionando algumas para enviar a uma pasta onde guardava fotografias impublicáveis, como a que estavam dentro da banheira vazia do anfitrião naquela festa de desconhecidos, compartilhando um baseado. Haviam decidido que era o último antes de começarem a queimá-lo, não cumpriram a promessa.
As músicas do vinil acabaram ao mesmo tempo em que a campainha tocou pela primeira vez. Na segunda, já estava em pé. Se tinha algo que ele havia aprendido com o tempo, telefones e visitas pela madrugada nunca eram um bom sinal.
Andou apressado até sua janela. Reconheceu primeiro a minivan de Martha, estacionada do outro lado da rua, depois a silhueta de parada no meio do jardim, voltada em direção à janela onde ele estava.
“É a ”, avisou Stella quando passou por ela no corredor, disparando escadaria abaixo enquanto sua ansiedade tomava conta de construir diferentes teorias – nenhuma delas positiva.
Nenhuma delas era a correta, também.
– Hey! – soprou ao abrir a porta, seu hálito quente transformando-se em fumaça ao entrar em contato com o vento gélido. – Entra!
– Não precisa, vai ser rápido... – A voz dela escapou por entre os dentes trincados, ele não sabia se de frio ou raiva. As duas coisas, logo descobriu. – Eu só quero que você me responda uma coisa.
– Está tudo bem? – perguntou, enfiando as mãos no bolso de seu moletom, tentando aquecê-las minimamente.
– , você enviou minha história para alguma editora? – Ele imaginou que aquela pergunta viria em algum momento, mas não esperava que fosse parecer furiosa. – Enviou?!
– Hm, enviei... A última. – Era quase um sussurro amedrontado. fechou os olhos e tentou respirar fundo, mas seu fôlego não parecia o suficiente. Quando voltou seu olhar para , estava muito perto de começar a chorar.
– Por que você fez isso?
– Eu enviei um e-mail com a sinopse... Eles quiseram ler a história completa, então... Hm, eu enviei... – E, depois de um suspiro, retirou a mão do bolso e estendeu a ela. – , entra aqui... – Pediu, alarmado por suas lágrimas.
– Eu não quero entrar, ! Eu quero uma explicação! – Exclamou, suas palavras tão hostis quanto o olhar que direcionou a ele. – Por que você fez isso?
– Eles responderam? O que disseram? – quis saber, tentando adivinhar o motivo pelo qual ela estava zangada. Talvez tivessem recusado, talvez não tivessem sido gentis.
– Tanto faz o que disseram, você não tinha o direito de fazer isso! – já tinha assistido suas tempestades antes, mas nunca havia sido o motivo de nenhuma delas. – O que você achou? Que eu nunca iria descobrir?
– Não, , por Deus! – Ele soprou, aflito. – Eu quem passei seu e-mail para que eles respondessem pra mim e pra você, eu só achei que você fosse gostar de saber a opinião de um profissional...
– Eu confiei a merda toda em você, ! – Gritou e havia tanta decepção em sua voz, quanto em seus olhos encharcados. – Você é a única pessoa para quem eu enviei, porque eu nunca quis compartilhar com mais ninguém... Eu nunca quis que fosse algo público! E advinha só? Eu ainda não quero! – A última frase escapou uma oitava acima do que ambos esperavam, e quis abraçá-la como se pudesse defendê-la de si mesmo. Não parecia coerente, então manteve-se a dois passos de distância. – Você precisa entender que você gostar das histórias significa muito pra mim, mas não quer dizer que são boas, ! Não significa que tenham interesse em publicar! Não significa que eu tenha esse interesse também! Você simplesmente não podia ter feito isso!
– Me desculpa, ... – Ele pediu, mas ela não pareceu escutar.
– Eu confiei em você.
– Eu sei... – Mas ela ignorou outra vez.
– Peça desculpas a sua mãe pelos gritos... – Murmurou, enxugando o rosto daquele jeito agressivo de quem desaprova a própria fragilidade – Eu vou pra casa.
Com desatenção, acariciou a crina do cavalo no qual estava montado. O carrossel estava mais antigo e melancólico do que conseguia se lembrar. Podia sentir a aspereza dos pelos sob seus dedos e ouvia a madeira gemer a cada movimento das correntes enferrujadas, que carregava os cavalos para cima e para baixo muito lentamente.
A iluminação precária não permitia que reconhecesse qualquer um dos rostos ao seu redor. Aquela música se parecia muito com algo que tocava nos filmes de drama, os que Madson gostava de assistir.
– Filho?
atentou-se, seus olhos encharcados fazendo com que sua boca parecesse ainda mais ressecada. Ele olhou curiosamente a sua volta, sem saber ao certo de que direção vinha a voz do pai. Mais tarde teve a impressão de que era de algum lugar dentro de si.
– , vamos! – Robert convidava. – Você vai se atrasar.
E demorou para se recordar e reunir todas as letras que precisava. Quando finalmente formou um hesitante “pra que?”, sua voz não passava de um sussurro frágil e inaudível por qualquer um além dele.
segurou-se na corrente, assustadoramente enterrada na cabeça daquele cavalo que não deveria ser um animal de verdade e prontificou-se a saltar. Notou, só então, que estava a metros de distância do chão. E mesmo aterrorizado, deslumbrou-se com a vista. Aquele carrossel não costumava voar, pensou.
– Ora, menino! – O pai reclamou e os olhos de finalmente o encontraram. O campo pareceu grande demais para a figura de Robert, mãos na cintura como um super-herói, tentando parecer imponente. – Desça já daí!
quis, desesperadamente, descer do cavalo e ir de encontro ao pai. Se comunicar com ele antes que se zangasse e desistisse de esperar. Mas sua voz era nada mais que um sopro débil em sua cabeça, como se não tivesse força suficiente para ser externalizada. “Uma volta no carrossel não pode demorar tanto”, considerou, concentrando-se na espera.
A imagem risonha de Robert foi tomando novas proporções, conforme os cavalos cavalgavam de volta para a terra firme. saltou logo que pôde e tentou correr em direção ao pai, frustrando-se com a distância que havia entre eles e que parecia maior a cada um de seus passos.
“Eu não consigo!”, ele admitiu, com o coração dolorido. Dessa vez havia voz. Havia tanta voz que soou como um grito, desencorajado, sofrido. Robert soltou uma risada compreensiva, os braços movendo-se num gesto que convidava o filho para um abraço.
Zonzo e cansado, o rapaz observou o gramado entre ele e o pai. Contou, com dificuldade, quantos passos precisava percorrer para alcançá-lo e dessa vez, quando começou a andar, tudo ficou em seu devido lugar.
Contou bem baixinho suas passadas:
Décimo.
Nono.
Oitavo.
Com a proximidade, Robert parecia mais velho do que antes. Mais magro, talvez.
Sétimo.
Sexto.
reconheceu e repudiou a imagem da bengala de madeira, onde o pai se apoiava.
Quinto.
Quarto.
O sorriso de Robert de repente era apenas uma tentativa falha. Sua face esquerda escorrendo como sorvete em dias quentes. Havia um acúmulo de saliva em seus lábios e uma postura cansada, como se tivesse ficado em pé por tempo demais.
“Pode chorar, se quiser”, sugeriu o mais velho com ar de riso, e novamente foi como se sua voz viesse de dentro de , ecoando por toda parte, asfixiando-o lentamente. “Mas não acho que tenhamos tempo para isso”, acrescentou rapidamente e, depois de dar uma rápida olhadela para trás, concluiu “são as noivas que se atrasam e já está pronta”.
Por cima do ombro do pai, reconheceu o tapete branco, coberto daquelas folhas alaranjadas, secas e mortas que faziam parecer outono em meio ao sol abrasivo de Julho. Os vasos muito grandes com flores coloridas e as cadeiras envernizadas demais para um casamento que deveria parecer rústico. Mas Madson havia adorado.
Madson.
– Onde está Madson?
– Quem é Madson? – Robert perguntou, adotando uma expressão confusa.
– Madson, pai! Minha noiva!
– Em que tipo de encrenca está metido, ? – O pai questionou rapidamente, preocupado com o rumo da conversa. – Espero que não esteja envolvido com mais ninguém, é tarde demais agora.
– Eu estou me casando com a ?
– Com quem mais seria? – Robert perguntou impaciente, mas brincalhão.
– Não sei... – E soou tão confuso quanto realmente estava.
– Claro que não sabe! Se não fosse com , não se casaria com ninguém mais.
– Que bom que está aqui, pai!
Robert arriscou um sorriso assimétrico, dispensando a bengala e curvando-se em frente ao filho. Com um dos joelhos apoiados no chão e ambos os braços abertos em direção à , propôs um abraço como fazia quando o filho ainda era um menino. E naquele momento, tornou-se um. O pequeno em meio ao abraço firme e seguro de seu pai.
Havia uma mancha úmida na fronha de e um acúmulo de lágrimas em seus olhos, sua pele marcada pelas outras que secaram no meio do caminho. Havia um peso tão grande em seu peito que ele mal sentia-se capaz de respirar, como se estivesse sendo lentamente esmagado por uma bigorna.
Madson não estava na cama, ele constatou ao virar-se para o lado, onde ela costumava dormir. Seu corpo todo doía, como se ao invés de repor, tivesse gastado toda sua energia durante o sono.
Levantar foi uma tarefa árdua e ainda assim era de grande alívio estar fora da cama. Havia um bilhete da noiva colado no espelho do banheiro. Avisava, através dele, que ficaria o dia fora com as madrinhas – haviam ganhado algumas horas no spa ou algo do tipo.
encarou seu reflexo. Tentou convencer a si mesmo de que estava preparado para a angústia que era o reencontro com seus pais. Sentiu-se esgotado antes de obter sucesso e então declarou desistência, correndo para um banho quase frio na tentativa de livrar-se do suor. Com sorte, da agonia acomodada em seu coração.
– Já vou!
avisou, sem abrir a porta ou permitir que ele entrasse. fantasiou que ela se levantava e andava passos preguiçosos até a mala, alcançando qualquer peça de roupa com a qual pudesse se cobrir, depois viria ao seu encontro. Antes que ele concluísse seu devaneio, surgiu na porta – cabelos trançados de um jeito prático, os óculos de grau ainda eram os mesmos.
Colocar seus olhos nela fez com que recordasse seu sonho, podia ouvir a própria voz soando etérea: “estou me casando com ?”.
Ele só percebeu que estava muito tempo em silêncio quando o rosto de começou a se contrair em uma careta, confusa e preocupada. Ele bem conhecia aquela expressão.
– Você está ocupada?
– Hm, não exatamente... Estava só respondendo alguns e-mails pendentes. – esclareceu, encostando-se ao batente, os braços se cruzando numa postura resistente e defensiva. – Está tudo bem?
– É que, hm... Eu estou indo buscar meus pais no aeroporto... – Ele não verbalizou o convite e nem precisava fazê-lo. , assim como nos velhos tempos, soube exatamente o que ele estava fazendo ali.
– Vou com você! – Estabeleceu, decidida. Depois recuou um passo e segurou a maçaneta. – Me dê um minuto, vou me trocar.
– Não precisa se apressar... – disse, enterrando as mãos no bolso de seu jeans. – Te espero lá embaixo, no jardim.
– Combinado.
Incapaz de se mover, encarou a porta fechada, fugindo para dentro de si mesmo e revisitando, mais uma vez, o sonho perturbador. Havia prometido a si mesmo, mais cedo durante o banho, não pensar mais sobre os incontáveis significados que poderia ter. Teve medo do que encontraria.
Naquele momento, porém, pegou-se debruçado sobre todas as possibilidades, assustado com todas elas.
Reencontrar era de alguma forma reencontrar inevitavelmente a si mesmo.
Era como entrar em um cativeiro onde havia mantido preso o que costumava ser; livrara-se dele desde o momento em que tornara-se um fardo muito pesado para carregar. E era fácil fingir que aquela versão de si mesmo não existia quando não estava em Sheffield, perto de ou de seus pais. Era fácil fingir que era alguém completamente novo e diferente para aquelas pessoas que pouco conheciam dele.
Não precisava viver encolhido pelo mundo, com medo de ser notado.
Não precisava andar com as mãos escondidas no bolso, afugentando os cumprimentos.
Não precisava ser inseguro e incompreendido quando podia ser alguém fácil de lidar.
Não precisava ser o de Robert.
O de Stella.
O de .
Mas lá estava ele.
O único que poderia ser.
– Você tem um pendrive aí? – Ele perguntou a , logo que se acomodaram no carro.
– Serve meu celular?
– Sim! – E sem tirar os olhos da direção abriu um compartimento entre os assentos, onde estava instalada a entrada USB e uma auxiliar. – Pode conectar, vamos ver o que anda ouvindo.
– Provavelmente as mesmas coisas que ouvia a dez anos atrás... – adiantou-se. sorriu tão logo que reconheceu a introdução de No Rain, da banda Blind Melon.
– Quanto tempo não ouço essa música! – Comentou ele. apenas sorriu, a mente correndo em direção a todas aquelas lembranças. – Você ainda escreve, ?
– Hm... Não tanto quanto antes.
– Eu gostaria de ler... – parecia surpresa, e angustiou-se com o fato de ter se distanciado o bastante para que ela se surpreendesse com seu interesse. – Se quiser me mandar.
– Desde que você prometa não enviar a nenhuma editora... – provocou e apesar da ironia e graça, havia também uma cólera implícita.
– Droga, você me pegou! – disparou zombeteiro. – Eu ia arriscar uma de Sheffield... Eu ouvi dizer que eles têm uma profissional excepcional por lá... – não queria sorrir, mas precisou morder os lábios para conter-se. – Eu aposto que alguém assim reconheceria seu talento e a grande escritora que é.
– Eu duvido... – Confessou e havia tanto peso em seus olhos quanto em sua voz. – Afinal, não aconteceu até agora e não sei se mudou muita coisa.
– Você deveria se dar uma chance, poopface. – E, por um instante, o coração de vacilou, errando uma batida.
– É... – sabia que aquele era um terreno perigoso. Já havia estado ali antes.
– Não quero te pressionar outra vez, não acho que eu possa fazer isso depois d...
– Tem razão! – interrompeu. – Não pode! – E houve dez segundos de silêncio que de tão incômodo pareceu ter durado uma hora inteira. – Eu só... , eu leio tantos originais, é o que passo meus dias fazendo e tem alguns... Eles são muito bons, verdadeiramente incríveis. Mas existem esses outros, eles são impublicáveis! – aguardou em silêncio absoluto até que ela retomasse o que ia dizendo. – Eu tenho medo, seja lá quem for o profissional a ler um original meu, que ele pense exatamente assim... Como se... “que merda é essa?”, sabe?
– ... – O rapaz chamou determinado e esperou até que a atenção dela estivesse toda voltada para ele. – Você sabe que isso não aconteceria, certo? Você sabe disso, não sabe?
– Não, , eu não sei... Podemos só... Não falar disso?
– , você sabe! – Ele insistiu, enfático. – Eu sei que você não acreditava totalmente em mim, em meus elogios e você tinha razão em não me dar créditos, eu não trabalho com isso e sou absolutamente tendencioso a seu respeito... – respirou fundo e aproveitou para espiar o rosto rígido de antes do sinal abrir outra vez. – Mas , o e-mail daquela editora... Eles aprovaram, ! Quer dizer, eles propuseram algumas mudanças, mas queriam investir na sua história... Isso é grande, não é?
– Eu nunca li...
– Nunca... O que? – quase freou o carro, tamanha sua surpresa. – Você nunca abriu o e-mail?
– Eu abri... Mas quando vi que a história estava anexada, eu... Hm, eu sabia que tinha sido você e eu estava com raiva, então eu só... Eu apaguei, não li. Nunca li.
– Uau! – observou o perfil de , toda sua tensão depositada na musculatura rígida de seu maxilar. – Uau, !
– Sou mais covarde do que você pensou uma vida inteira?
– Sim! – admitiu e não conseguiu conter um riso sincero. – Uma pena para você que eu tenha esse e-mail salvo e você não volta para a Inglaterra antes de ler.
– ...
– Nada do que você disser vai me convencer do contrário... – respirou fundo, seus braços se cruzando automaticamente. – Houve um tempo, , em que eu morria de medo que você me odiasse. Agora eu já sei qual é a sensação.
– Nunca cheguei perto de te odiar, ! – Ela garantiu, quase ofendida por aquela convicção vinda dele.
– Tem certeza?
Ela não tinha.
25 de Dezembro de 2008 – Sheffield, South Yorkshire, UK
– Vocês chegaram! – Stella exclamou, o entusiasmo de sua voz provocando um sorriso em seus convidados. – Entrem!
– Com licença! – Martha pediu e esperou até que soltasse Stella de um abraço apertado, para só então poder cumprimentá-la. – Obrigada pelo convite!
– Oh, imagina, Martha! Estou feliz que tenham vindo! – Exclamou Stella, aceitando a sobremesa que Martha lhe estendia.
– Esse é Allan! Allan, essa é Stella, mãe do !
– É um grande prazer, Allan! – Saudou a anfitriã, apertando alegremente a mão do homem que lhe fora apresentado. – , está lá em cima!
O trem agora era também uma casa para . Ela acabara se habituando até mesmo aos incômodos que outros passageiros continuavam a reclamar. Sabia qual era o melhor horário para viajar – o da manhã estava sempre superlotado, eram raras as vezes que conseguia embarcar. A mesma coisa acontecia no fim da tarde. Arriscou o da noite uma vez ou outra, mas além de chegar em Sheffield tarde demais, o público era predominantemente adolescentes bêbados. Não era tão divertido para ela, que fazia todo o trajeto sóbria.
Costumava, então, faltar a uma aula ou outra e pegar o trem do meio da tarde na sexta-feira. Era um bom horário. Sempre conseguia tickets, mesmo quando não comprava com antecedência. Na maioria das vezes até podia escolher sua poltrona. Chegava em Sheffield no exato horário em que estava saindo da universidade. Ele sempre passava para buscá-la e quando chegavam à casa de , Martha já havia encomendado as pizzas e aberto o vinho.
Passavam os sábados juntos, fazendo o que quer que fosse – cinema, observatório, um barzinho às vezes. Em geral, se divertiam com qualquer programa. achava particularmente entediante quando a arrastava junto dele para as festas da universidade. Ele, pelo contrário, gostava de ser convidado por ela para as festas que ela frequentava em Leeds. Na maioria das vezes, acabavam bêbados na pequena cama do dormitório de .
Não é como se acontecesse algo entre eles. Nunca acontecia. Mas gostava de estar tão próximo a ela e imaginar o dia em que teria coragem de admitir que havia aquela moradia em seu coração e que ele vinha limpando e cuidando, mobiliando e decorando para o dia que ela chegasse. A porta havia sido feita sob medida e nenhuma outra pessoa se adaptaria o suficiente para entrar. Ninguém nunca havia passado do jardim.
– Hey! – exclamou no momento em que abriu a porta, sem antes tocar. sobressaltou e girou sua poltrona, ficando de frente para ela.
– Feliz Natal, poopface! – Desejou daquele jeito introvertido que já conseguia prever. Ela andou até ele e o envolveu num abraço tão apertado quanto desajeitado.
– Feliz Natal, Alex! – Felicitou, quando já se afastava e estendia a ele uma sacola de papel kraft. Havia um laço mal feito segurando as alças. – Eu vi.
– O quê?
– Você olhando torto para o meu laço, ! – reclamou, depois soltou o peso de seu corpo contra a cama, enquanto ele divertia-se com o comentário.
– Você melhora a cada dia... – Provocou, desfazendo o nó da fita azul.
– Ande logo, abra! – E ele obedeceu, risonho. Afastou as alças e enfiou a mão dentro da sacola, retirando dela o vinil mais recente dos Arctic Monkeys, Favourite Worst Nighmare. – Isso é sério?
– Gostou? – quis saber e havia um sorriso cheio de dentes e expectativas em seu rosto.
– Você não vai acreditar! – garantiu, alongando-se para alcançar a caixa floral sobre sua escrivaninha. – Abra o seu.
– Hm, ok! – aceitou a caixa e surpreendeu-se ao abrir e encontrar exatamente o mesmo vinil. – Eu-não-acredito! – Gritou espontânea, depois desmanchou-se em uma gargalhada. – Que ridículos! Nós somos péssimos, ! Péssimos!
– Eu comprei ele há meses, quando ouvimos a primeira vez e você não parava de falar sobre Teddy Picker! – riu, esticando-se para um high five.
– Você acertou em cheio, meu amigo!
– Que bom! – esqueceu um sorriso nos lábios enquanto observava o rosto contente de , ela contornava distraidamente cada detalhe da capa de seu disco com a ponta do indicador. – Quer ver as fotos de ontem?
– Olha... Não tenho certeza! – Brincou a moça, mas deixou sua caixa sobre a cama para ir juntar-se à , sentando-se no braço de sua poltrona.
– Você prefere ver em ordem cronológica? Ou da pior para a melhor? – começou a rir antes mesmo do momento em que abriu a pasta em seu computador.
– Cronológica.
Havia aquela promessa gritando no peito de . Não iria ceder novamente ao sentimento, resistente e inegavelmente caloroso, que nutria sem querer. Mas todas as vezes que estava tão próxima dele, transmitindo aquele calor que derreteria toda a neve lá fora e enchendo sua vida daquele perfume que era só dela, pegava-se à beira de uma declaração.
Pronto para agarrar o violão e tocar (muito mal) Accidentally In Love – e pelo menos havia a chance de achar engraçadinho, mesmo que não passasse disso.
A ponto de escrever uma carta, de uma folha ou mil. Talvez algo quilométrico, se desenrolando por todo o quarteirão.
Muito próximo de beijá-la, com tanto amor que acabaria por convencê-la de que não era estranho, nem mesmo um pouco. Não era nada além de fascinante.
– , já sabe o que vai querer fazer depois de graduada? – Robert perguntou, e empertigou-se em sua cadeira ao ser convidada para a conversa.
– Eu e tivemos uma ideia! – Comentou, trocando uma olhadela com o amigo, ao seu lado. – Nós vamos fazer um mochilão... Ainda não decidimos a rota, não é?
– É, decidimos começar pelo Brasil, depois seguimos pela América do Sul... Chile, Peru, provavelmente... – esclareceu, sua atenção toda voltada para , como se ela fosse a única pessoa com quem realmente quisesse compartilhar aqueles planos.
– Argentina... – Ela acrescentou, e concordou imediatamente. Iria para onde quer que ela fosse.
– Quanto tempo vai levar essa... hm, viagem? – Martha perguntou, as sobrancelhas erguidas de um jeito desafiador. e começaram a rir imediatamente.
– Alguns meses... – se adiantou. – Cinco ou seis...
– Mas... – continuou, evitando que a mãe começasse uma argumentação. – Vamos produzir algo... Um livro, como um guia para outros mochileiros, com nossas rotas, fatos curiosos, histórias... E fará fotos, vai ficar incrível! – E, ao finalizar, ergueu a mão na direção do amigo, propondo um high five.
– Está muito claro pra mim que vocês inventaram esse livro só para ter uma boa desculpa... Não me enganaram nem por um instante! – Robert brincou e, exceto por e , que estavam ocupados fingindo-se de ofendidos, o resto dos convidados gargalharam.
– Está bem, talvez a ideia do livro tenha vindo depois... – admitiu, alcançando sua taça de vinho. – Mas vocês precisam admitir que é sensacional.
– Eu concordo... – Robert apoiou.
– Oh, meu Deus, Robert, não apoie! – Stella disparou, a mão na testa. – Eles já são desregrados demais!
– Deixe os meninos! – O marido pediu, abanando a mão com descaso. – Eles sabem se cuidar.
– Ah, é mesmo? – Stella desafiou, seu olhar caindo sobre , que rapidamente encolheu os lábios em uma única linha. – Dá próxima vez, meu filho, que você for ligar para alguém pedindo para verificar se você está no seu quarto, porque você não tem certeza disso... Não se esqueça do número do seu pai!
– Você fez isso, ? – Robert perguntou, embora já soubesse que sim. – A louça é sua... E da , que, convenhamos, péssima influência.
– Não é justo! – A moça protestou, em meio as risadas que preenchiam o ambiente. – Eu bem achei meu quarto noite passada.
– Mas dormiu de botas... – Martha denunciou, com a boca dentro de sua taça de vinho.
– Os dois para a cozinha, já.
Já era tarde da noite quando os convidados se despediram.
retribuiu os abraços ébrios de boa noite e podia ouvir a risada libidinosa de seus pais mesmo depois de terem desaparecido quarto adentro. Trancou sua porta, como se com isso fosse parecer menos intrometido.
Havia um sorriso surgindo sorrateiro em seu rosto quando alcançou a sacola com seu presente. Riu mais abertamente do laço, agora que não estava. Trabalhos manuais não combinavam muito com ela.
Ele retirou o vinil de sua capa e o colocou para rodar na vitrola. Acomodado em sua poltrona, curtiu em silêncio os primeiros acordes de Brianstorm. Levou um curto período de tempo até notar um papel azul dobrado, caído em seu carpete. Esticou-se para pegá-lo e reconheceu muito rapidamente a caligrafia paciente de .
Te amo”
releu. Uma, duas, três vezes. E tantas outras que ele perdeu as contas. Não havia nada demais naquelas palavras, mas havia tanto de nelas que ele quase podia ouvir sua voz lendo o cartão em voz alta, com aquele deboche que já havia se tornado parte de quem era. Não se parecia com uma carta de amor, mas transbordava cumplicidade, que era provavelmente o que mais gostava na relação que tinham.
Enquanto ouvia o disco, revisitou as fotos da noite anterior, selecionando algumas para enviar a uma pasta onde guardava fotografias impublicáveis, como a que estavam dentro da banheira vazia do anfitrião naquela festa de desconhecidos, compartilhando um baseado. Haviam decidido que era o último antes de começarem a queimá-lo, não cumpriram a promessa.
As músicas do vinil acabaram ao mesmo tempo em que a campainha tocou pela primeira vez. Na segunda, já estava em pé. Se tinha algo que ele havia aprendido com o tempo, telefones e visitas pela madrugada nunca eram um bom sinal.
Andou apressado até sua janela. Reconheceu primeiro a minivan de Martha, estacionada do outro lado da rua, depois a silhueta de parada no meio do jardim, voltada em direção à janela onde ele estava.
“É a ”, avisou Stella quando passou por ela no corredor, disparando escadaria abaixo enquanto sua ansiedade tomava conta de construir diferentes teorias – nenhuma delas positiva.
Nenhuma delas era a correta, também.
– Hey! – soprou ao abrir a porta, seu hálito quente transformando-se em fumaça ao entrar em contato com o vento gélido. – Entra!
– Não precisa, vai ser rápido... – A voz dela escapou por entre os dentes trincados, ele não sabia se de frio ou raiva. As duas coisas, logo descobriu. – Eu só quero que você me responda uma coisa.
– Está tudo bem? – perguntou, enfiando as mãos no bolso de seu moletom, tentando aquecê-las minimamente.
– , você enviou minha história para alguma editora? – Ele imaginou que aquela pergunta viria em algum momento, mas não esperava que fosse parecer furiosa. – Enviou?!
– Hm, enviei... A última. – Era quase um sussurro amedrontado. fechou os olhos e tentou respirar fundo, mas seu fôlego não parecia o suficiente. Quando voltou seu olhar para , estava muito perto de começar a chorar.
– Por que você fez isso?
– Eu enviei um e-mail com a sinopse... Eles quiseram ler a história completa, então... Hm, eu enviei... – E, depois de um suspiro, retirou a mão do bolso e estendeu a ela. – , entra aqui... – Pediu, alarmado por suas lágrimas.
– Eu não quero entrar, ! Eu quero uma explicação! – Exclamou, suas palavras tão hostis quanto o olhar que direcionou a ele. – Por que você fez isso?
– Eles responderam? O que disseram? – quis saber, tentando adivinhar o motivo pelo qual ela estava zangada. Talvez tivessem recusado, talvez não tivessem sido gentis.
– Tanto faz o que disseram, você não tinha o direito de fazer isso! – já tinha assistido suas tempestades antes, mas nunca havia sido o motivo de nenhuma delas. – O que você achou? Que eu nunca iria descobrir?
– Não, , por Deus! – Ele soprou, aflito. – Eu quem passei seu e-mail para que eles respondessem pra mim e pra você, eu só achei que você fosse gostar de saber a opinião de um profissional...
– Eu confiei a merda toda em você, ! – Gritou e havia tanta decepção em sua voz, quanto em seus olhos encharcados. – Você é a única pessoa para quem eu enviei, porque eu nunca quis compartilhar com mais ninguém... Eu nunca quis que fosse algo público! E advinha só? Eu ainda não quero! – A última frase escapou uma oitava acima do que ambos esperavam, e quis abraçá-la como se pudesse defendê-la de si mesmo. Não parecia coerente, então manteve-se a dois passos de distância. – Você precisa entender que você gostar das histórias significa muito pra mim, mas não quer dizer que são boas, ! Não significa que tenham interesse em publicar! Não significa que eu tenha esse interesse também! Você simplesmente não podia ter feito isso!
– Me desculpa, ... – Ele pediu, mas ela não pareceu escutar.
– Eu confiei em você.
– Eu sei... – Mas ela ignorou outra vez.
– Peça desculpas a sua mãe pelos gritos... – Murmurou, enxugando o rosto daquele jeito agressivo de quem desaprova a própria fragilidade – Eu vou pra casa.
Capítulo 8
14 de Julho de 2016, Los Angeles, Califórnia – USA
parecia pura angústia, notou.
Havia se esquecido de ligar o rádio, e o único ruído dentro do carro, além de sua respiração nervosa e entrecortada, era o tamborilar incessante de seus dedos no volante. pensou em perguntar se ele estava bem, depois achou melhor iniciar um assunto sobre qualquer outra coisa. Considerou a ideia de colocar uma música, mas tudo que fez foi abrir a janela e aceitar o desconforto. O caminho seria longo e ela sabia disso. Então esteve ali. Apenas esteve ali, como sempre havia estado.
fez essa viagem arriscada para dentro de si. Pensou em todas as ligações apressadas que fez aos pais nos últimos anos. Nas visitas que nunca aconteciam. Aquela tentativa desesperada e injusta de não encarar a condição de seu pai depois do AVC. Correndo na direção oposta ao choro saudoso de sua mãe. Fingindo que seu próprio não existia.
Esperou que os óculos de sol acobertassem o desassossego em seus olhos.
E que um sorriso minimamente descontraído fosse o suficiente para maquiar a tristeza alojada em seu peito, junto à preocupação que nunca manifestava, a saudade que nunca demonstrava, as palavras que nunca dizia – nem a si mesmo.
– ? – chamou, e ele, que pensou estar fantasiando a mão dela na sua, notou que era real. – Está tudo bem? – E, como se tentasse trazê-lo de volta à realidade, apoiou as mãos em seus ombros.
– Está. – soltou, sem pensar realmente na pergunta. – Por quê?
– Você parou de andar de repente... – Comentou e arriscou um sorriso compreensivo. – Vamos lá?
– Podemos só... Esperar por aqui, um pouco...
indicou algumas cadeiras desocupadas e o acompanhou até lá.
não diria e ele não precisava. Ela sabia. Havia estado lá aquela noite. Havia estado lá todos aqueles anos, assistindo a ausência cada vez mais frequente de . Havia escutado todas as desculpas que ele deu para não estar, para não ligar. E o discurso compreensivo de Stella, que geralmente fazia com que o detestasse por um dia inteiro.
Mas não o detestou naquele momento.
Não podia fazê-lo.
Tomada pela ânsia de colocá-lo em seu colo, arrancar dele parte daquele sofrimento, dividir o fardo que vinha carregando sozinho e em silêncio, dia e noite. Era ela quem costumava estar ao seu lado, deveria ser a única pessoa com quem confidenciava suas angústias. Agora, com ninguém mais.
– São só seus pais, ...
Ela lembrou ele, como se tivesse esquecido. E ele talvez tivesse.
sabia que ele talvez fosse desaprovar seu comentário. Desconversar, ignorar, argumentar. Mas o que aconteceu não estava entre as reações planejadas por ela.
a abraçou. Do jeito desajeitado e limitado que o braço da cadeira permitia, mas com todo o amor e gratidão que tinha em si. Era muito, ela percebeu. E retribuiu, agarrando-se a ele como se nunca fosse soltá-lo outra vez. Não iria, até que ele estivesse pronto.
Desejaram, em segredo, que por um instante que fosse não existisse nada além deles.
– Parece um déjà vu!
Era Robert.
E esperava que, de alguma maneira, aquele breve momento com o tivesse preparado para levantar-se e abraçar seu pai como não conseguia fazer há anos. Não podia, não ainda. A antiga resistência ainda estava ali, habitando seu coração. Era como se, cada vez que fosse colocado em frente a Robert, iniciasse uma verificação se aquele era mesmo seu pai, mas nunca restasse tempo para finalizar a análise.
– Meu Deus, como você está diferente, meu filho! – Stella exclamou, atraindo-o para um abraço apertado. – Tão crescido, meu amor... Senti sua falta.
– Eu também, mãe... – E, embora não estivesse mentindo, não conseguia transmitir intensidade em seu tom de voz.
– E esse cabelo? – O pai perguntou em tom zombeteiro. Sua fala ainda estava comprometida, mas não tanto quanto parecia estar por telefone. – Nem parece o desordeiro que criei! – Brincou e rodeou com o braço que não estava apoiado na bengala. – Tudo bem, meu filho?
– Tudo bem, pai... – Respondeu e embora talvez fosse hora de soltar-se do abraço, o manteve, buscando a segurança e conforto que sentira ao abraçá-lo em seu sonho. – E você, como está?
– Melhor a cada dia... – Disse Robert e seu tom de voz otimista deixava clara sua tentativa de tranquilizar , como quando era uma criança. – Como estão os preparativos?
– Estão indo bem! – comentou, alcançando as alças da mala que a mãe trazia. – Madson correu atrás de tudo e eu fui concordando.
– Onde está Mad? – Stella quis saber e enquanto caminhavam em direção à saída do aeroporto, o braço da mulher rodeou os ombros de , com uma familiaridade que conhecia, mas não estava esperando encontrar depois de tanto tempo.
– Não pôde vir, mãe. Ganhou uma espécie de dia no Spa com as madrinhas. – Ele explicou, os olhos verificando nervosamente o caminhar de seu pai. – Pediu desculpas por não estar aqui... Vocês já tomaram café da manhã?
– Não como desde ontem... – Robert contou e Stella soltou um riso divertido. – Me deram uma sopa no avião que parecia já ter passado pelo meu processo digestivo. – Os quatro gargalharam e se prontificou a ajudar o pai a entrar no carro. O homem fez um gesto com a mão, dispensando, mas agradeceu com os olhos paternais de sempre.
– Bom, eu e também não tomamos café, o que acham de irmos a algum lugar?
– Parece ótimo, filho.
O café favorito de ficava afastado do centro de Los Angeles. E embora nada ali parecesse menos frequentado, ele havia dado a sorte de encontrar esse espaço de pouco movimento para ler um livro qualquer durante sua rotina corrida de trabalho.
Os donos, que também administravam o local, eram a família de quem havia alugado – e depois comprado – seu apartamento quando mudou-se para Los Angeles. Conheciam-se o suficiente para terem piadas internas e brincadeiras informais. Já haviam encontrado Robert e Stella, percebeu, e demonstraram grande alegria ao conhecê-la. Era estranho pensar que já tinham ouvido falar dela. E como tinham.
– Stella começou a ler o livro da mocinha Lutz, ... – Robert comentou. ergueu os olhos de sua pilha de panquecas, observando-os.
– É mesmo, Stella? Está gostando? – quis saber, depois levou a xícara na boca e experimentou o primeiro gole de seu café.
– Estou! Li uma boa parte dele durante a viagem... – Comentou a mulher, sua voz tinha uma entonação entusiasmada que surpreendeu , ela nunca havia sido uma leitora assídua. – Estou esperando pelo desfecho, Robert disse que é surpreendente.
– Também achei! – concordou, puxando a jaqueta jeans do respaldo de sua cadeira para vestir. – Achei melhor que o livro anterior, você não achou, Robert?
– Hm... – O homem pensou um instante, depois negou com a cabeça. – O outro prendeu mais minha atenção. Esse começou a ficar interessante pra mim depois das primeiras sessenta páginas. – havia se esquecido de continuar comendo e devia estar fazendo uma careta confusa, Stella tratou de explicar imediatamente.
– nos empresta livros semanalmente... – Contou, alcançando o caramelo para banhar seus waffles. – Um livro por um pote de shortbreads, é nosso acordo! – gargalhou de um jeito que quase já não se recordava. Deus, como sua risada era adorável.
– É sério, isso? – Ele disparou, sem disfarçar sua surpresa. – me substituiu e ninguém me contou.
– Ficamos com medo que você decidisse voltar... – Robert brincou. – tem sido uma ótima substituta, sabe como é.
– Uau, obrigado, pai! – respondeu, mal contendo o riso. – Mas não pensem vocês que isso tudo é consideração, ela faz qualquer coisa por shortbreads.
– Blasfêmia! – gritou e fingiu esconder o pequeno pote de biscoitos amanteigados que havia pedido junto de seu café, provocando riso nos demais.
– Só acredito se você me der um desses... – propôs, estendendo a mão.
– Ora, ... Compre os seus!
16 de Janeiro de 2008 – Sheffield, South Yorkshire, UK
Não havia cuidado nenhum na maneira como o corpo de chegou ao chão. Um baque surdo. Não podia dizer que era um tombo inesperado, quando tentava correr pelo estacionamento coberto de neve da Hallam University. Nada extraordinário ou surpreendente, os pés perderam o ritmo e escorregaram para lados diferentes. Sentiu raiva, bem mais do que sentiu dor.
Dentro de Lizzy, não ligou o rádio. Não achava que podia ouvir qualquer coisa que não fosse o próprio coração, pulsando impaciente de um jeito que parecia estar em sua cabeça, não em seu peito.
O sangue parecia ter escoado do rosto de . Sua pele, de tão branca, assumiu uma coloração acinzentada, um aspecto doente. Não sabia se de frio ou de medo, mas tremia dos pés à cabeça.
Percorreu o mais rápido que pôde os cinco quilômetros que o distanciavam do Northern General Hospital. Deixou a Chevy no estacionamento mais próximo da entrada principal, sem ter certeza de que era pra onde deveria ir.
Haviam duas recepcionistas atrás do balcão de mármore. Nenhuma disponível. Aguardou impaciente, sua boca e garganta ressecando de frio, mas principalmente de ansiedade.
– Preciso de uma informação – exclamou logo que uma das funcionárias afastou-se da bancada, onde antes preenchia a ficha de um paciente e caminhou em direção a uma porta. – Por favor... – suplicou. Ela parou para observá-lo e retornou, incapaz de ignorá-lo – os olhos em pânico o assemelhavam a um garotinho. Seu dedo ossudo apontou para a porta de saída, sua voz atenciosa explicando o caminho que ele deveria percorrer até o prédio ao lado, destinado ao departamento de neurologia.
De volta ao frio, avançou com passos rápidos e descuidados pelo caminho que o levaria à outra unidade. Sentiu-se exausto. Respirar, que costumava ser uma tarefa automática e desapercebida, de repente tornou-se algo penoso. Era como se ao inspirar, um amontoado de neve escorregasse para dentro de suas narinas, congelando sua cabeça de um jeito dolorido.
– Andar de cima – explicou a recepcionista, sem erguer os olhos em sua direção. – Unidade de avaliação neurológica – esclareceu, indicando uma placa grande e azul que estava pendurada no corredor. esperou quatro ou cinco segundos pelo elevador e pensou, no auge da angústia, ter esperado por minutos.
Seus passos, largos e desorientados, o levaram ao fim do corredor. Subiu os dois lances de escada, dois degraus por vez. Leu rapidamente a placa, NAU – Neurological Assessment Unit. As letras perderam o foco, sua visão turva sob as lágrimas. Os olhos vagaram pelo corredor, procurando atentamente pela mãe. Ela, se levantando da cadeira onde estava, levou uma mão na boca ao vê-lo, abafando um soluço choroso.
não fez perguntas. Atraiu-a pra perto num abraço apertado, na tentativa desesperada de transmitirem força um ao outro. Stella, que havia decidido não demonstrar seu desassossego, pouco conseguiu conter, chorando no ombro magro e trêmulo do filho.
– Meu Deus, , onde está sua blusa? – Quis saber, esfregando os braços gélidos do rapaz.
– Como ele está, mãe? – disparou, segurando ambas as mãos dela entre as suas.
– Não sei, meu bem... – Admitiu, soando constrangida por não poder confortá-lo. Deveria ser esse seu papel. – Eles não me disseram nada ainda.
– Como aconteceu?
– Quando liguei, hoje mais cedo... – Stella pausou a fala para um suspiro, chacoalhou a cabeça como se tentasse organizar os pensamentos e encontrar as palavras que gostaria de usar. – Ele estava sonolento, parecia preocupado, mas disse que estava tudo bem, que estava com dor de cabeça e tinha tomado um medicamento... – respirou fundo, tentando controlar o tremor em seu corpo e recobrar o ritmo de sua respiração. – Pedi a ele para adiantar o jantar e que logo eu estaria em casa... Quando cheguei, ele estava na cozinha, tinha derrubado a travessa de salada e estava um pouco confuso... – Ela interrompeu novamente seu discurso, mas dessa vez não parecia ter a intenção de continuar. Apoiou a testa na própria mão, chorando um pouco mais. voltou a trazê-la pra perto. Tratou de disfarçar a própria comoção e desejou que fosse ele a encontrar o pai em mal estar, não Stella. Era para ter sido, caso ele não tivesse se prolongado na universidade. Engoliu a culpa, pois não havia espaço para outro sentimento ruim.
– Mãe, eu vou tentar conseguir alguma informação, espera aqui.
Mas não conseguiu nada além de um interrogatório sobre os dias anteriores. “Ele andava confuso? Sonolento? Percebeu alguma fraqueza, náuseas, vômitos, confusão mental?”. “Não”, respondeu, mas não tinha certeza. O pai nunca compartilhava qualquer coisa ruim que fosse – podia ser a notícia de uma nevasca que assistiu no jornal ou um desmaio que sofreu enquanto não havia ninguém por perto.
se perguntou se poderiam ter evitado o agravamento do AVC caso tivessem percebido algo. Talvez se tivessem insistido um pouco no “como foi seu dia?” ao invés de se contentarem com um automático “tudo bem” enquanto observavam o jantar com nenhum apetite. E apesar de acreditar debilmente que não havia nada que pudessem ter feito, o coração pesou de remorso.
– E então? – Stella quis saber quando sentou-se ao lado dela outra vez, no canto daquela sala que era tão branca quanto fria.
– Fizeram alguns exames e estão aguardando os resultados... – Ele contou, sua fala soou lenta e contida, tinha a impressão de que se abrisse um pouco mais a boca, vomitaria. – Eles fizeram exames de sangue, tomografia, ressonância e alguns outros. – Esclareceu, apoiando os antebraços nas próprias pernas. – Você está bem?
– Estou melhor... – A mãe murmurou e torceu pra que o fato de estar menos nervosa fosse capaz de desassombrá-lo. – Você? – não respondeu porque não queria mentir, tampouco achava que a realidade contribuiria positivamente naquela situação.
– A enfermeira me fez algumas perguntas. – Comentou, sem encará-la. – Sobre a condição dele nos últimos dias... Ele estava bem, não estava? – Ansiou que a mãe concordasse.
– Estava... – Anuiu e alisou suas costas na tentativa de confortá-lo. – Não é possível que uma vida inteira sendo enfermeira não tenha me servido de nada... – Brincou. Ou pelo menos tentou, mas ambos perceberam em seu tom de voz sem nenhuma graça que havia mais culpa do que diversão no que Stella dizia.
– Tenho certeza que teria percebido, mãe... – arriscou e olhou para ela por um breve instante antes de enfiar o rosto entre as mãos.
– Seu casaco está no carro? Vou buscar pra você...
– Esqueci na universidade... – Respondeu, puxando os cabelos pra trás num gesto ansioso. – Está tudo bem, mãe.
– Então vá pra casa buscar outro, ... – Ela pediu e sentiu-se mal por pensar em argumentar. – Sim?
– Por que você não vai pra casa tomar um banho, comer algo... – Sugeriu, apoiando sua mão no joelho da mãe. – Quando voltar você me traz uma jaqueta.
– Não posso deixar você aqui sozinho...
– Mãe... – E forçou um sorriso carinhoso. – Tenho quase 22 anos, acho que posso ficar sozinho por alguns minutos.
– Ok... – Stella respirou fundo, depois esfregou o rosto como se tentasse recobrar qualquer lucidez e tranquilidade. – Qualquer novidade você me liga? Não vou demorar.
– Te ligo... – Garantiu . – Não precisa ter pressa, mãe... Não sei quanto tempo vamos passar aqui, tente descansar um pouco.
Stella o observou, uma onda de nostalgia inundando seu coração maternal, dividida entre o orgulho e o remorso pelo amadurecimento acelerado de . Já era um homem, mas não se lembrava de nenhum momento a partir dos 12 ou 13 anos em que ele estivesse sendo apenas um garoto.
Gostaria de agradecer por, às vezes, convidá-lo a bebedeiras e noites que terminavam no dia seguinte. Ela era quem provavelmente havia apresentado à irresponsabilidade ocasional, ao esporádico infringir de regras. Não fosse por ela, talvez viveria em uma quietude nociva. Mas Stella nem conseguia pensar muito nisso, porque não fosse por , não tinha certeza de quem seria de modo geral.
Talvez, como nas últimas semanas desde aquela madrugada de Natal, ele estaria mais solitário. Uma solidão muito específica, quase desejada. Se não estava, não queria que ninguém mais estivesse. Então vinha passando muito tempo enfiado no estúdio de revelação que improvisaram no lavabo, ou trancado com sua vitrola, que de repente rodava constantemente algum disco de músicas cansadas.
E a cada dia que não aparecia, cada ligação que recebia e não era dela, sorria menos.
E menos.
Depois menos ainda.
Por isso, vê-la sair do elevador fez com que aquele corredor aflitivo se enchesse de esperança. Um otimismo que ela não diria ter, mas que só encontrava em sua presença.
disparou em sua direção e por um instante, em meio a toda sua angústia, despontou um lampejo de contentamento.
Ela não disse nada, e ele não precisava que dissesse desde que o abraçasse daquela maneira. Pelo resto de sua vida.
O ombro de pareceu um bom lugar para aconchegar-se e chorar as lágrimas que vinha contendo, mas se pegou engolindo-as outra vez.
– Eu vim o mais rápido que pude... – Comentou, sem soltá-lo ou afrouxar os braços ao seu redor.
– Obrigado... – E soou tão devastado quanto estava. vasculhou a própria cabeça atrás de qualquer palavra de conforto e estreitou ainda mais o abraço. Para ele bastava aquele gesto. Era como se através de sua proximidade impassível dissesse “estou aqui, não vou te soltar”. E não soltou.
– Onde está sua mãe?
– Consegui convencê-la a ir pra casa tomar banho e comer alguma coisa... – contou. afastou-se o suficiente para observá-lo. Os olhos examinadores varrendo seu rosto e seu corpo novamente trêmulo.
– E você? Não está com fome?
– Não...
– E frio? Deve estar com frio! – Constatou, dando mais um passo para trás. quis dizer que acostumou-se com o frio que ela deixou pra trás desde a última vez que se falaram, mas achou que soaria desesperadamente piegas. – Senta, vou buscar um café pra gente.
– , não precisa... – Garantiu e a maneira como segurou sua mão e impediu que ela se afastasse pareceu, para , um apelo silencioso. Não queria café, só queria que ela ficasse por perto.
– Ok, então veste meu casaco... – Determinou, livrando-se de seu sobretudo. deixou escapar um sorriso divertido.
– Não precisa, eu estou bem... – Ele tentou, mas gostou de como ela o conduziu de volta à cadeira e começou a cobri-lo com o tecido grosso e quente.
– Pronto... Deve servir... – Concluiu, sem dar ouvidos aos seus argumentos. – Você tem certeza que não quer um café? Alguma coisa pra comer?
– ... – Ele chamou e sua voz soou firme pela primeira vez desde que ela chegara. – Só senta um pouco aqui comigo.
Depois de atender à necessidade declarada de e com o braço ao redor de seus ombros, revisitou tristemente a expressão surpresa dele ao vê-la chegar.
Não achava que algum dia se surpreenderiam com a presença um do outro – em qualquer momento, mas especialmente em situações de infortúnio. Ainda que suas últimas palavras trocadas estivessem carregadas de decepção e hostilidade. Ainda que não tivessem se falado desde então.
Era parte de um acordo implícito – quase explícito – que estariam sempre por perto, mesmo quando não soubessem muito como ou o porquê. Só estariam, como vinham estando nos últimos anos todos. Não havia qualquer razão boa o suficiente para não estar e gostaria de desculpar-se por ter sido inesperada, pois onde quer que estivesse, estaria sempre a caminho para encontrá-lo quando fosse solicitada. Também quando não fosse.
Stella retornou em menos de uma hora depois de ter saído. descobriu que não esperava encontrá-la inconsolável. A imagem inabalável e pouquíssimo vulnerável que teve de Stella por todos aqueles anos parecia ter sucumbido à angústia. E apesar disso, havia um alívio em seus olhos quando repousaram na figura de .
– Que bom que está aqui – disse quando a moça, que para ela ainda era uma menina, se arriscou na tentativa de confortá-la. Um abraço apertado e paciente. – Cuide dele pra mim – pediu e não havia surpresa nenhuma em sua súplica, ou em como o coração de vacilou sôfrego.
se ofereceu para buscar café e novas informações. Soou solícita, mas a verdade era que, assumindo seu egoísmo, precisava se afastar por um instante e recuperar-se antes de retornar e abraçar a dor de ambos outra vez.
Trouxe o café prometido, mas nenhuma nova informação além do esperado “ainda sob avaliação” que vinha sendo dito a noite toda desde que Robert adentrara o hospital. Lamentava ter que dar essa notícia outra vez, gostaria de ter mais a oferecer. Se pelo menos entendesse um pouco sobre o assunto, quem sabe assim pudesse dizer com propriedade e segurança o “vai ficar tudo bem” que eles gostariam de escutar.
Já era muito tarde quando Martha chegou – viu com atraso a mensagem apressada que enviara antes de embarcar no trem para Sheffield. Pouco depois um irmão de Robert, que vinha de Londres e se chamava Matthew, uniu-se a eles. Havia uma segurança diferente em sua postura, que de alguma maneira trouxe esperança para o visível cansaço dos que já estavam ali.
“AVC isquêmico”, disse um dos médicos responsáveis pela avaliação de Robert. O discurso sobre causas, tratamentos e sequelas durou pelo menos quarenta minutos. tentou arduamente organizar todas aquelas palavras de forma que fizessem algum sentido, mas ao final não tinha certeza de seu êxito.
Os olhos confusos e amedrontados de remeteram Stella a todas as noites em que o deixava em seu quarto para ir à maternidade onde trabalhava, em um período em que o filho era ainda muito novo e claramente precisava de seus cuidados – mesmo que fosse um leite quente e uma história pouco coerente que se prolongaria até que pegasse no sono.
Naquele momento, com o rosto assustado dele entre suas mãos, quis dizer que não iria a lugar algum.
– Vão encaminhá-lo a outra unidade... – Stella informou aos que não estavam com ela e durante a conversa com o médico. – Lá ele vai ser monitorado pela equipe responsável, alguns especialistas... Vão fazer alguns novos exames e refazer outros depois que estiver estabilizado. – Os olhos de vasculhavam todos os cantos do rosto de , tentando identificar as emoções que se manifestavam, talvez cuidar delas mais tarde. – E então, dependendo de como ele vai se recuperar, pode receber alta ou passar um tempo em uma terceira unidade, recebendo alguns cuidados e reabilitação.
– Oh, Stella... – Martha soprou e, já em pé, apoiou a mão no ombro da mulher. Um sinal hesitante de apoio. – Temos que ter esperança, ele logo vai estar em casa com vocês. – E deu uma olhadela para o menino ao lado, que para o coração gentil de Martha já era um filho.
– Muito obrigada... – Stella murmurou e, depois de respirar fundo numa tentativa de se recuperar, acrescentou. – Eu preciso ficar para assinar qualquer procedimento que for necessário, mas vocês deveriam ir descansar...
– Eu vou ficar... – avisou, os olhos argumentativos da mãe lhe disseram o contrário.
– Você vai pra casa... – Determinou, incorruptível. – São três da manhã, às sete no máximo você precisa estar de volta pra que eu possa ir descansar... Certo? – Ele não respondeu, pois embora concordasse que era melhor obedecê-la, não estava de todo convencido a deixá-la sozinha.
– Eu fico com sua mãe, ... – Martha assegurou, depois prosseguiu. – vai com você, amanhã cedo trocamos. É um bom plano?
– Eu também posso ficar. – Matthew se ofereceu.
– Pode ser. – Soprou, enterrando a mão no fundo dos bolsos de seu casaco. Hesitou em olhar para . Sentada na beirada da cadeira, ela o observava pacientemente, tudo em sua postura dizia o quanto estava disponível para ajudá-lo. – Você não tem que voltar para Leeds amanhã?
– Não... – Negou, ainda que precisasse. Não se afastaria um passo sequer. – Estamos em semana de congressos, nada demais... – Mentiu e talvez assim ele não contestasse. – Vamos lá?
– Você vai me ligar se tiver qualquer nova notícia, mãe? – conferiu, de um jeito duro que fazia parecer ameaçador.
– Prometo. – Stella garantiu, fazendo um carinho rápido no rosto gelado do rapaz.
– Certo.
Fumaram um cigarro de antes de entrarem na Chevy, agora coberta por uma espessa camada de neve, como todo o resto de Sheffield parecia estar. bocejou nas mãos e as esfregou, tentando aquecê-las minimamente antes de dar partida e firmá-las no volante.
estava muito silenciosa e ele também não sentia vontade de conversar. Sua mente parecia dar piruetas lentas e confusas. Queria estar em sua cama, agora mais do que em qualquer momento da noite. Poderia sentir o cheiro de seu cobertor caso se concentrasse o suficiente em seu ansioso desejo de estar em casa..
Quando chegaram, pouco se lembrava do caminho feito automaticamente para chegar até ali. esperou até que ele saltasse para depois fazer o mesmo, acompanhando seus passos apressados para dentro da casa.
– Você... – começou, parado em frente à porta de seu quarto. Zonzo, esfregou o próprio rosto. – Esqueci o que ia dizendo...
– Precisa parar com a erva, cara... – brincou porque de repente sentia-se à vontade para isso. sorriu, confirmando sua expectativa. – Por que não toma um banho? Vai ser bom para relaxar.
– É... – Mas não se moveu. tomou a iniciativa de entrar em seu quarto e andar até o armário. Não precisava de permissão, nunca havia precisado.
– Te espero aqui... – Garantiu quando entregou o agasalho a ele.
– Se quiser dormir, , pode ficar à vontade... – Ele arriscou, desorganizado em seu breve discurso. – O quarto de hóspedes não deve estar arrumado, mas você pode dormir no quarto dos meus pais se preferir.
– Ok, não se preocupe comigo.
Quando voltou do banho, quase num estado de inércia, reconheceu no canto de sua cama, como em um cenário muito familiar – encolhida contra a parede, enrolada em seu cobertor favorito, distraída com qualquer coisa que fosse – e na maioria das vezes era com a própria imaginação.
Sua aproximação a despertou de seu devaneio. Nenhum dos dois disse nada, porque não parecia haver nada a ser dito. alcançou as canecas de chocolate quente, estendendo uma a ele. , que era pura vulnerabilidade naquele momento, quis chorar. Mas conteve-se mais uma vez, escorregando para baixo do cobertor e tentando não dar atenção ao esbarrar de seus corpos enquanto buscavam uma posição confortável para ambos.
O MP4 que ganhara de Allan no último natal tinha centenas de músicas, mas estava tocando Beatles quando aceitou os fones que ela lhe ofereceu.
Bebericaram preguiçosamente todo o leite quente, imersos naquela mesma lembrança de nove anos atrás. temendo que parecesse tosca e fajuta sua tentativa de retribuir o apoio que ele havia ofertado na noite do incêndio. duvidando que existissem palavras que expressassem sua gratidão.
– Está sem sono? – perguntou depois de assisti-lo abrir e fechar os olhos muitas vezes. Deitado de frente para ela, procurou seu rosto em meio à escuridão do quarto.
– Estou assustado. – Confessou sob o fôlego, como se alguém além dela pudesse escutá-lo.
– Tem todo o direito de estar.
– Eu fico o tempo todo tentando lembrar dos últimos dias... – Contou, os olhos constrangidos fugindo dos de . – Mas não sei o que pode ser pior... Não me lembrar de nada ou me lembrar de algo que percebi, mas ignorei.
– Você se lembra quando te liguei, dias depois da noite do incêndio e comentei que atrás da cômoda do meu quarto havia essa extensão, onde estavam ligadas muitas tomadas? – gesticulou com a cabeça, concordando brevemente. – Eu estava com medo que, de repente, fosse eu a responsável por tudo... Mas você me disse que isso acontece o tempo todo e em todos os lugares do mundo e que poderia ter sido minha tomada, mas poderia ter sido qualquer outra coisa e que talvez nunca chegássemos a saber... – pausou e respirou fundo antes de continuar. – Acho que agora é minha vez de pedir que não fique se torturando com esses pensamentos, ... Precisamos nos concentrar na recuperação dele a partir de agora... – E ele gostava de como ela se incluía em sua dor, em seus planos, em suas jornadas. Era sempre “precisamos”, nunca “você precisa”.
– Obrigado, ... – Soprou, frustrando em sua nova tentativa de conter a emoção. – Não sei como seria se você não estivesse aqui...
– Não existe qualquer chance de algum dia eu não estar, ... – Sua declaração fez com que uma discreta comemoração se manifestasse em , desde seu coração perdendo o ritmo, até sua respiração acelerada e incompleta. – Agora tenta não pensar mais nisso e descansar um pouco... – E a maneira como o abraçou pra perto fez com que sua proposta parecesse irônica. Será que ela ao menos desconfiava sobre como era difícil, quase impossível, pegar no sono estando tão próximo a ela?
– ... – “Sou apaixonado por você”. teve a impressão de sentir a frase escorregar de seu coração, garganta acima, preencher sua boca. Foi necessário esforço para não deixá-la escapar em voz alta. Ele achou, em algum momento dos últimos anos, que com o passar do tempo aprenderia a administrar seus sentimentos e, consequentemente, não correria grandes riscos de perder o controle. Não aconteceu. E agora ele estava certo de que esse dia nunca chegaria. Amar em segredo seria sempre penoso e cansativo. Mas adorável, apesar disso. – Senti sua falta.
– É a consequência de ser um babaca intrometido... – deixou escapar um riso nasalado, aconchegando o rosto na curva morna do pescoço de sua amiga. – Mas eu já te perdoei. Só estava sendo orgulhosa... – sorriu e no escuro era mais fácil sorrir com todo o amor que tinha por ele. Sem correr o risco de ser flagrada, poderia gastar o resto de sua noite amando-o despreocupadamente. – Quer que eu cante pra você dormir? Posso cantar se quiser...
– Por favor, não... – forçou um falso desespero e os dois desmancharam em gargalhadas sonolentas. – Mas agradeço suas boas intenções.
– When you try yout best, but you don’t succeed... – começou, com a voz risonha, arriscando um falsete que soava ridículo. Podia sentir o corpo de chacoalhar com a intensidade de seu riso. – When you get what you want, but not what you need... When you feel so tired, but you can’t sleep... – Mas a voz de foi soando mais baixa e logo menos cômica. – Stuck in reverse... – deixou escapar um último riso, débil e preguiçoso. – And the tears come streaming down your face... When you lose something you can’t replace... When you love someone, but it goes to waste... Could it be worse? – , que havia lutado a noite toda contra o pranto, agora sentia-se incapaz de refreá-lo. sentiu quando as primeiras lágrimas escorreram do rosto dele para seu pescoço. Não fez alarde. Não o segurou com mais força do que fazia antes. Não alterou a voz. Não o impediu ou o motivou. Apenas esteve ali. Bastava. – Lights will guide you home and ignite your bones... And I will try to fix you.
14 de Julho de 2016 – Los Angeles, California, USA
ouvia a própria respiração, custosa e ruidosa. Abriu os olhos, zonzo da bebida e da adrenalina. Madson aconchegou a cabeça em seu peito, buscando por ele daquela maneira manhosa que ele costumava gostar, mas, naquela noite, o perturbou.
Acariciou seus cabelos, que ele mesmo havia embaraçado. Depois correu a ponta dos dedos por suas costas nuas, seguindo cada vértebra de sua coluna, porque sabia que ela sentia cócegas e sempre se contorcia em meio a uma risadinha frouxa. Ele costumava sorrir junto, mas naquela noite não conseguiu.
Fechar os olhos era ainda pior. Atacado novamente pela imagem que havia criado de durante o sexo com Madson. Não se lembrava de outra vez que isso tivesse acontecido. Tampouco se lembrava de algum dia ter estado tão excitado.
Junto com o tesão, deixou pra trás o bem estar daquele devaneio. De prazerosa, a imagem tornou-se apavorante.
Ainda assim, quando Madson desenrolou-se de seus braços e não o convidou para o banho, pegou-se colocando rapidamente suas roupas e escapulindo para fora do quarto, onde talvez conseguisse respirar.
A ideia era tomar um copo d’água – talvez whisky, mas esqueceu-se disso no caminho.
– Estava dormindo? – Disparou logo que surgiu do outro lado da porta. Não parecia sonolenta, constatou.
– Não... Está tudo bem? – Quis saber. As bochechas rosadas delatando que havia bebido demais durante o jantar.
– Posso entrar? – Os olhos dele correram pelo corredor, persecutórios. achou que ele cheirava à whisky e sexo. Desejou que tivesse força para dizer não, que ele não podia entrar.
– Pode... – passou pra dentro e sem pedir permissão largou o corpo sobre a cama. – O que houve?
– Nada... – reconheceria suas mentiras em qualquer situação, mas decidiu não pressioná-lo, porque não tinha certeza se queria saber qual era a verdade. – Só queria te ver. – E lá estava ela, tremendo dos pés à cabeça.
– Hm... – Murmurou e depois aclarou a garganta como se pretendesse acrescentar algumas palavras, mas apenas sentou-se ao lado de e manteve o silêncio.
– Você tem música aí?
– , é melhor você ir para o seu quarto, Madson pode se zangar se souber que está aqui ouvindo música, tarde da noite... – Ele concordou com a cabeça, sua expressão mal escondeu quão penoso era ser rejeitado por ela. Mesmo depois de todos aqueles anos.
– Quero te fazer um convite. – comentou e levou a mão em seu bolso num gesto automático, procurando pelos cigarros, que há muito tempo não ficavam ali para quando estivesse ansioso.
– Da última vez que me fez um convite, foi pra essa enrascada aqui... – brincou, depois sentiu-se mal pela veracidade que havia por trás daquelas palavras.
– Esse é dos bons... – Ele garantiu, risonho. – Você ainda confia em mim?
– Como assim? – empertigou-se, suas sobrancelhas se reunindo e expressando sua confusão.
– Se você ainda confia em mim, pouco que seja, só diga que sim!
– ... – Ela soltou, um pouco descrente, muito surpresa.
– Como nos velhos tempos...
– Nos velhos tempos, todas as vezes que você fazia isso era porque ia me levar para algum lugar que sabia que eu não ia concordar... – começou a rir e aos poucos conquistou um sorriso de .
– Vamos lá, você era mais corajosa!
– E você não usava gel! – Ele curvou-se numa gargalhada. Só pela maneira como o atacou, sabia que ela estava guardando aquilo desde que chegou.
– Um sim e não usarei nenhum gel... – Havia um ar leve e gracioso no olhar desconfiado de . Estava tentada a aceitar, notou. – Vamos, .
– Sem nenhuma dica?
– Você nunca precisou delas, poopface. – Ela lambeu os lábios e ficou um tempo apenas observando o rosto cheio de expectativas do amigo.
– Ok.
– Sim?
– Sim! – adotou uma postura triunfante enquanto se levantava. Cambaleou nos dois primeiros passos antes de voltar a estabilizar-se. – Tenho a impressão de que você está completamente bêbado e que vou me arrepender pelo resto da vida por aceitar sua proposta impensada.
– , existem poucas coisas que posso te garantir na vida... – Ele discursou, uma mão apoiada no batente, a outra na cintura, em uma característica pose ébria. Não havia qualquer parte do corpo de que não estivesse arrepiada. – Uma delas é que você não irá se arrepender!
parecia pura angústia, notou.
Havia se esquecido de ligar o rádio, e o único ruído dentro do carro, além de sua respiração nervosa e entrecortada, era o tamborilar incessante de seus dedos no volante. pensou em perguntar se ele estava bem, depois achou melhor iniciar um assunto sobre qualquer outra coisa. Considerou a ideia de colocar uma música, mas tudo que fez foi abrir a janela e aceitar o desconforto. O caminho seria longo e ela sabia disso. Então esteve ali. Apenas esteve ali, como sempre havia estado.
fez essa viagem arriscada para dentro de si. Pensou em todas as ligações apressadas que fez aos pais nos últimos anos. Nas visitas que nunca aconteciam. Aquela tentativa desesperada e injusta de não encarar a condição de seu pai depois do AVC. Correndo na direção oposta ao choro saudoso de sua mãe. Fingindo que seu próprio não existia.
Esperou que os óculos de sol acobertassem o desassossego em seus olhos.
E que um sorriso minimamente descontraído fosse o suficiente para maquiar a tristeza alojada em seu peito, junto à preocupação que nunca manifestava, a saudade que nunca demonstrava, as palavras que nunca dizia – nem a si mesmo.
– ? – chamou, e ele, que pensou estar fantasiando a mão dela na sua, notou que era real. – Está tudo bem? – E, como se tentasse trazê-lo de volta à realidade, apoiou as mãos em seus ombros.
– Está. – soltou, sem pensar realmente na pergunta. – Por quê?
– Você parou de andar de repente... – Comentou e arriscou um sorriso compreensivo. – Vamos lá?
– Podemos só... Esperar por aqui, um pouco...
indicou algumas cadeiras desocupadas e o acompanhou até lá.
não diria e ele não precisava. Ela sabia. Havia estado lá aquela noite. Havia estado lá todos aqueles anos, assistindo a ausência cada vez mais frequente de . Havia escutado todas as desculpas que ele deu para não estar, para não ligar. E o discurso compreensivo de Stella, que geralmente fazia com que o detestasse por um dia inteiro.
Mas não o detestou naquele momento.
Não podia fazê-lo.
Tomada pela ânsia de colocá-lo em seu colo, arrancar dele parte daquele sofrimento, dividir o fardo que vinha carregando sozinho e em silêncio, dia e noite. Era ela quem costumava estar ao seu lado, deveria ser a única pessoa com quem confidenciava suas angústias. Agora, com ninguém mais.
– São só seus pais, ...
Ela lembrou ele, como se tivesse esquecido. E ele talvez tivesse.
sabia que ele talvez fosse desaprovar seu comentário. Desconversar, ignorar, argumentar. Mas o que aconteceu não estava entre as reações planejadas por ela.
a abraçou. Do jeito desajeitado e limitado que o braço da cadeira permitia, mas com todo o amor e gratidão que tinha em si. Era muito, ela percebeu. E retribuiu, agarrando-se a ele como se nunca fosse soltá-lo outra vez. Não iria, até que ele estivesse pronto.
Desejaram, em segredo, que por um instante que fosse não existisse nada além deles.
– Parece um déjà vu!
Era Robert.
E esperava que, de alguma maneira, aquele breve momento com o tivesse preparado para levantar-se e abraçar seu pai como não conseguia fazer há anos. Não podia, não ainda. A antiga resistência ainda estava ali, habitando seu coração. Era como se, cada vez que fosse colocado em frente a Robert, iniciasse uma verificação se aquele era mesmo seu pai, mas nunca restasse tempo para finalizar a análise.
– Meu Deus, como você está diferente, meu filho! – Stella exclamou, atraindo-o para um abraço apertado. – Tão crescido, meu amor... Senti sua falta.
– Eu também, mãe... – E, embora não estivesse mentindo, não conseguia transmitir intensidade em seu tom de voz.
– E esse cabelo? – O pai perguntou em tom zombeteiro. Sua fala ainda estava comprometida, mas não tanto quanto parecia estar por telefone. – Nem parece o desordeiro que criei! – Brincou e rodeou com o braço que não estava apoiado na bengala. – Tudo bem, meu filho?
– Tudo bem, pai... – Respondeu e embora talvez fosse hora de soltar-se do abraço, o manteve, buscando a segurança e conforto que sentira ao abraçá-lo em seu sonho. – E você, como está?
– Melhor a cada dia... – Disse Robert e seu tom de voz otimista deixava clara sua tentativa de tranquilizar , como quando era uma criança. – Como estão os preparativos?
– Estão indo bem! – comentou, alcançando as alças da mala que a mãe trazia. – Madson correu atrás de tudo e eu fui concordando.
– Onde está Mad? – Stella quis saber e enquanto caminhavam em direção à saída do aeroporto, o braço da mulher rodeou os ombros de , com uma familiaridade que conhecia, mas não estava esperando encontrar depois de tanto tempo.
– Não pôde vir, mãe. Ganhou uma espécie de dia no Spa com as madrinhas. – Ele explicou, os olhos verificando nervosamente o caminhar de seu pai. – Pediu desculpas por não estar aqui... Vocês já tomaram café da manhã?
– Não como desde ontem... – Robert contou e Stella soltou um riso divertido. – Me deram uma sopa no avião que parecia já ter passado pelo meu processo digestivo. – Os quatro gargalharam e se prontificou a ajudar o pai a entrar no carro. O homem fez um gesto com a mão, dispensando, mas agradeceu com os olhos paternais de sempre.
– Bom, eu e também não tomamos café, o que acham de irmos a algum lugar?
– Parece ótimo, filho.
O café favorito de ficava afastado do centro de Los Angeles. E embora nada ali parecesse menos frequentado, ele havia dado a sorte de encontrar esse espaço de pouco movimento para ler um livro qualquer durante sua rotina corrida de trabalho.
Os donos, que também administravam o local, eram a família de quem havia alugado – e depois comprado – seu apartamento quando mudou-se para Los Angeles. Conheciam-se o suficiente para terem piadas internas e brincadeiras informais. Já haviam encontrado Robert e Stella, percebeu, e demonstraram grande alegria ao conhecê-la. Era estranho pensar que já tinham ouvido falar dela. E como tinham.
– Stella começou a ler o livro da mocinha Lutz, ... – Robert comentou. ergueu os olhos de sua pilha de panquecas, observando-os.
– É mesmo, Stella? Está gostando? – quis saber, depois levou a xícara na boca e experimentou o primeiro gole de seu café.
– Estou! Li uma boa parte dele durante a viagem... – Comentou a mulher, sua voz tinha uma entonação entusiasmada que surpreendeu , ela nunca havia sido uma leitora assídua. – Estou esperando pelo desfecho, Robert disse que é surpreendente.
– Também achei! – concordou, puxando a jaqueta jeans do respaldo de sua cadeira para vestir. – Achei melhor que o livro anterior, você não achou, Robert?
– Hm... – O homem pensou um instante, depois negou com a cabeça. – O outro prendeu mais minha atenção. Esse começou a ficar interessante pra mim depois das primeiras sessenta páginas. – havia se esquecido de continuar comendo e devia estar fazendo uma careta confusa, Stella tratou de explicar imediatamente.
– nos empresta livros semanalmente... – Contou, alcançando o caramelo para banhar seus waffles. – Um livro por um pote de shortbreads, é nosso acordo! – gargalhou de um jeito que quase já não se recordava. Deus, como sua risada era adorável.
– É sério, isso? – Ele disparou, sem disfarçar sua surpresa. – me substituiu e ninguém me contou.
– Ficamos com medo que você decidisse voltar... – Robert brincou. – tem sido uma ótima substituta, sabe como é.
– Uau, obrigado, pai! – respondeu, mal contendo o riso. – Mas não pensem vocês que isso tudo é consideração, ela faz qualquer coisa por shortbreads.
– Blasfêmia! – gritou e fingiu esconder o pequeno pote de biscoitos amanteigados que havia pedido junto de seu café, provocando riso nos demais.
– Só acredito se você me der um desses... – propôs, estendendo a mão.
– Ora, ... Compre os seus!
16 de Janeiro de 2008 – Sheffield, South Yorkshire, UK
Não havia cuidado nenhum na maneira como o corpo de chegou ao chão. Um baque surdo. Não podia dizer que era um tombo inesperado, quando tentava correr pelo estacionamento coberto de neve da Hallam University. Nada extraordinário ou surpreendente, os pés perderam o ritmo e escorregaram para lados diferentes. Sentiu raiva, bem mais do que sentiu dor.
Dentro de Lizzy, não ligou o rádio. Não achava que podia ouvir qualquer coisa que não fosse o próprio coração, pulsando impaciente de um jeito que parecia estar em sua cabeça, não em seu peito.
O sangue parecia ter escoado do rosto de . Sua pele, de tão branca, assumiu uma coloração acinzentada, um aspecto doente. Não sabia se de frio ou de medo, mas tremia dos pés à cabeça.
Percorreu o mais rápido que pôde os cinco quilômetros que o distanciavam do Northern General Hospital. Deixou a Chevy no estacionamento mais próximo da entrada principal, sem ter certeza de que era pra onde deveria ir.
Haviam duas recepcionistas atrás do balcão de mármore. Nenhuma disponível. Aguardou impaciente, sua boca e garganta ressecando de frio, mas principalmente de ansiedade.
– Preciso de uma informação – exclamou logo que uma das funcionárias afastou-se da bancada, onde antes preenchia a ficha de um paciente e caminhou em direção a uma porta. – Por favor... – suplicou. Ela parou para observá-lo e retornou, incapaz de ignorá-lo – os olhos em pânico o assemelhavam a um garotinho. Seu dedo ossudo apontou para a porta de saída, sua voz atenciosa explicando o caminho que ele deveria percorrer até o prédio ao lado, destinado ao departamento de neurologia.
De volta ao frio, avançou com passos rápidos e descuidados pelo caminho que o levaria à outra unidade. Sentiu-se exausto. Respirar, que costumava ser uma tarefa automática e desapercebida, de repente tornou-se algo penoso. Era como se ao inspirar, um amontoado de neve escorregasse para dentro de suas narinas, congelando sua cabeça de um jeito dolorido.
– Andar de cima – explicou a recepcionista, sem erguer os olhos em sua direção. – Unidade de avaliação neurológica – esclareceu, indicando uma placa grande e azul que estava pendurada no corredor. esperou quatro ou cinco segundos pelo elevador e pensou, no auge da angústia, ter esperado por minutos.
Seus passos, largos e desorientados, o levaram ao fim do corredor. Subiu os dois lances de escada, dois degraus por vez. Leu rapidamente a placa, NAU – Neurological Assessment Unit. As letras perderam o foco, sua visão turva sob as lágrimas. Os olhos vagaram pelo corredor, procurando atentamente pela mãe. Ela, se levantando da cadeira onde estava, levou uma mão na boca ao vê-lo, abafando um soluço choroso.
não fez perguntas. Atraiu-a pra perto num abraço apertado, na tentativa desesperada de transmitirem força um ao outro. Stella, que havia decidido não demonstrar seu desassossego, pouco conseguiu conter, chorando no ombro magro e trêmulo do filho.
– Meu Deus, , onde está sua blusa? – Quis saber, esfregando os braços gélidos do rapaz.
– Como ele está, mãe? – disparou, segurando ambas as mãos dela entre as suas.
– Não sei, meu bem... – Admitiu, soando constrangida por não poder confortá-lo. Deveria ser esse seu papel. – Eles não me disseram nada ainda.
– Como aconteceu?
– Quando liguei, hoje mais cedo... – Stella pausou a fala para um suspiro, chacoalhou a cabeça como se tentasse organizar os pensamentos e encontrar as palavras que gostaria de usar. – Ele estava sonolento, parecia preocupado, mas disse que estava tudo bem, que estava com dor de cabeça e tinha tomado um medicamento... – respirou fundo, tentando controlar o tremor em seu corpo e recobrar o ritmo de sua respiração. – Pedi a ele para adiantar o jantar e que logo eu estaria em casa... Quando cheguei, ele estava na cozinha, tinha derrubado a travessa de salada e estava um pouco confuso... – Ela interrompeu novamente seu discurso, mas dessa vez não parecia ter a intenção de continuar. Apoiou a testa na própria mão, chorando um pouco mais. voltou a trazê-la pra perto. Tratou de disfarçar a própria comoção e desejou que fosse ele a encontrar o pai em mal estar, não Stella. Era para ter sido, caso ele não tivesse se prolongado na universidade. Engoliu a culpa, pois não havia espaço para outro sentimento ruim.
– Mãe, eu vou tentar conseguir alguma informação, espera aqui.
Mas não conseguiu nada além de um interrogatório sobre os dias anteriores. “Ele andava confuso? Sonolento? Percebeu alguma fraqueza, náuseas, vômitos, confusão mental?”. “Não”, respondeu, mas não tinha certeza. O pai nunca compartilhava qualquer coisa ruim que fosse – podia ser a notícia de uma nevasca que assistiu no jornal ou um desmaio que sofreu enquanto não havia ninguém por perto.
se perguntou se poderiam ter evitado o agravamento do AVC caso tivessem percebido algo. Talvez se tivessem insistido um pouco no “como foi seu dia?” ao invés de se contentarem com um automático “tudo bem” enquanto observavam o jantar com nenhum apetite. E apesar de acreditar debilmente que não havia nada que pudessem ter feito, o coração pesou de remorso.
– E então? – Stella quis saber quando sentou-se ao lado dela outra vez, no canto daquela sala que era tão branca quanto fria.
– Fizeram alguns exames e estão aguardando os resultados... – Ele contou, sua fala soou lenta e contida, tinha a impressão de que se abrisse um pouco mais a boca, vomitaria. – Eles fizeram exames de sangue, tomografia, ressonância e alguns outros. – Esclareceu, apoiando os antebraços nas próprias pernas. – Você está bem?
– Estou melhor... – A mãe murmurou e torceu pra que o fato de estar menos nervosa fosse capaz de desassombrá-lo. – Você? – não respondeu porque não queria mentir, tampouco achava que a realidade contribuiria positivamente naquela situação.
– A enfermeira me fez algumas perguntas. – Comentou, sem encará-la. – Sobre a condição dele nos últimos dias... Ele estava bem, não estava? – Ansiou que a mãe concordasse.
– Estava... – Anuiu e alisou suas costas na tentativa de confortá-lo. – Não é possível que uma vida inteira sendo enfermeira não tenha me servido de nada... – Brincou. Ou pelo menos tentou, mas ambos perceberam em seu tom de voz sem nenhuma graça que havia mais culpa do que diversão no que Stella dizia.
– Tenho certeza que teria percebido, mãe... – arriscou e olhou para ela por um breve instante antes de enfiar o rosto entre as mãos.
– Seu casaco está no carro? Vou buscar pra você...
– Esqueci na universidade... – Respondeu, puxando os cabelos pra trás num gesto ansioso. – Está tudo bem, mãe.
– Então vá pra casa buscar outro, ... – Ela pediu e sentiu-se mal por pensar em argumentar. – Sim?
– Por que você não vai pra casa tomar um banho, comer algo... – Sugeriu, apoiando sua mão no joelho da mãe. – Quando voltar você me traz uma jaqueta.
– Não posso deixar você aqui sozinho...
– Mãe... – E forçou um sorriso carinhoso. – Tenho quase 22 anos, acho que posso ficar sozinho por alguns minutos.
– Ok... – Stella respirou fundo, depois esfregou o rosto como se tentasse recobrar qualquer lucidez e tranquilidade. – Qualquer novidade você me liga? Não vou demorar.
– Te ligo... – Garantiu . – Não precisa ter pressa, mãe... Não sei quanto tempo vamos passar aqui, tente descansar um pouco.
Stella o observou, uma onda de nostalgia inundando seu coração maternal, dividida entre o orgulho e o remorso pelo amadurecimento acelerado de . Já era um homem, mas não se lembrava de nenhum momento a partir dos 12 ou 13 anos em que ele estivesse sendo apenas um garoto.
Gostaria de agradecer por, às vezes, convidá-lo a bebedeiras e noites que terminavam no dia seguinte. Ela era quem provavelmente havia apresentado à irresponsabilidade ocasional, ao esporádico infringir de regras. Não fosse por ela, talvez viveria em uma quietude nociva. Mas Stella nem conseguia pensar muito nisso, porque não fosse por , não tinha certeza de quem seria de modo geral.
Talvez, como nas últimas semanas desde aquela madrugada de Natal, ele estaria mais solitário. Uma solidão muito específica, quase desejada. Se não estava, não queria que ninguém mais estivesse. Então vinha passando muito tempo enfiado no estúdio de revelação que improvisaram no lavabo, ou trancado com sua vitrola, que de repente rodava constantemente algum disco de músicas cansadas.
E a cada dia que não aparecia, cada ligação que recebia e não era dela, sorria menos.
E menos.
Depois menos ainda.
Por isso, vê-la sair do elevador fez com que aquele corredor aflitivo se enchesse de esperança. Um otimismo que ela não diria ter, mas que só encontrava em sua presença.
disparou em sua direção e por um instante, em meio a toda sua angústia, despontou um lampejo de contentamento.
Ela não disse nada, e ele não precisava que dissesse desde que o abraçasse daquela maneira. Pelo resto de sua vida.
O ombro de pareceu um bom lugar para aconchegar-se e chorar as lágrimas que vinha contendo, mas se pegou engolindo-as outra vez.
– Eu vim o mais rápido que pude... – Comentou, sem soltá-lo ou afrouxar os braços ao seu redor.
– Obrigado... – E soou tão devastado quanto estava. vasculhou a própria cabeça atrás de qualquer palavra de conforto e estreitou ainda mais o abraço. Para ele bastava aquele gesto. Era como se através de sua proximidade impassível dissesse “estou aqui, não vou te soltar”. E não soltou.
– Onde está sua mãe?
– Consegui convencê-la a ir pra casa tomar banho e comer alguma coisa... – contou. afastou-se o suficiente para observá-lo. Os olhos examinadores varrendo seu rosto e seu corpo novamente trêmulo.
– E você? Não está com fome?
– Não...
– E frio? Deve estar com frio! – Constatou, dando mais um passo para trás. quis dizer que acostumou-se com o frio que ela deixou pra trás desde a última vez que se falaram, mas achou que soaria desesperadamente piegas. – Senta, vou buscar um café pra gente.
– , não precisa... – Garantiu e a maneira como segurou sua mão e impediu que ela se afastasse pareceu, para , um apelo silencioso. Não queria café, só queria que ela ficasse por perto.
– Ok, então veste meu casaco... – Determinou, livrando-se de seu sobretudo. deixou escapar um sorriso divertido.
– Não precisa, eu estou bem... – Ele tentou, mas gostou de como ela o conduziu de volta à cadeira e começou a cobri-lo com o tecido grosso e quente.
– Pronto... Deve servir... – Concluiu, sem dar ouvidos aos seus argumentos. – Você tem certeza que não quer um café? Alguma coisa pra comer?
– ... – Ele chamou e sua voz soou firme pela primeira vez desde que ela chegara. – Só senta um pouco aqui comigo.
Depois de atender à necessidade declarada de e com o braço ao redor de seus ombros, revisitou tristemente a expressão surpresa dele ao vê-la chegar.
Não achava que algum dia se surpreenderiam com a presença um do outro – em qualquer momento, mas especialmente em situações de infortúnio. Ainda que suas últimas palavras trocadas estivessem carregadas de decepção e hostilidade. Ainda que não tivessem se falado desde então.
Era parte de um acordo implícito – quase explícito – que estariam sempre por perto, mesmo quando não soubessem muito como ou o porquê. Só estariam, como vinham estando nos últimos anos todos. Não havia qualquer razão boa o suficiente para não estar e gostaria de desculpar-se por ter sido inesperada, pois onde quer que estivesse, estaria sempre a caminho para encontrá-lo quando fosse solicitada. Também quando não fosse.
Stella retornou em menos de uma hora depois de ter saído. descobriu que não esperava encontrá-la inconsolável. A imagem inabalável e pouquíssimo vulnerável que teve de Stella por todos aqueles anos parecia ter sucumbido à angústia. E apesar disso, havia um alívio em seus olhos quando repousaram na figura de .
– Que bom que está aqui – disse quando a moça, que para ela ainda era uma menina, se arriscou na tentativa de confortá-la. Um abraço apertado e paciente. – Cuide dele pra mim – pediu e não havia surpresa nenhuma em sua súplica, ou em como o coração de vacilou sôfrego.
se ofereceu para buscar café e novas informações. Soou solícita, mas a verdade era que, assumindo seu egoísmo, precisava se afastar por um instante e recuperar-se antes de retornar e abraçar a dor de ambos outra vez.
Trouxe o café prometido, mas nenhuma nova informação além do esperado “ainda sob avaliação” que vinha sendo dito a noite toda desde que Robert adentrara o hospital. Lamentava ter que dar essa notícia outra vez, gostaria de ter mais a oferecer. Se pelo menos entendesse um pouco sobre o assunto, quem sabe assim pudesse dizer com propriedade e segurança o “vai ficar tudo bem” que eles gostariam de escutar.
Já era muito tarde quando Martha chegou – viu com atraso a mensagem apressada que enviara antes de embarcar no trem para Sheffield. Pouco depois um irmão de Robert, que vinha de Londres e se chamava Matthew, uniu-se a eles. Havia uma segurança diferente em sua postura, que de alguma maneira trouxe esperança para o visível cansaço dos que já estavam ali.
“AVC isquêmico”, disse um dos médicos responsáveis pela avaliação de Robert. O discurso sobre causas, tratamentos e sequelas durou pelo menos quarenta minutos. tentou arduamente organizar todas aquelas palavras de forma que fizessem algum sentido, mas ao final não tinha certeza de seu êxito.
Os olhos confusos e amedrontados de remeteram Stella a todas as noites em que o deixava em seu quarto para ir à maternidade onde trabalhava, em um período em que o filho era ainda muito novo e claramente precisava de seus cuidados – mesmo que fosse um leite quente e uma história pouco coerente que se prolongaria até que pegasse no sono.
Naquele momento, com o rosto assustado dele entre suas mãos, quis dizer que não iria a lugar algum.
– Vão encaminhá-lo a outra unidade... – Stella informou aos que não estavam com ela e durante a conversa com o médico. – Lá ele vai ser monitorado pela equipe responsável, alguns especialistas... Vão fazer alguns novos exames e refazer outros depois que estiver estabilizado. – Os olhos de vasculhavam todos os cantos do rosto de , tentando identificar as emoções que se manifestavam, talvez cuidar delas mais tarde. – E então, dependendo de como ele vai se recuperar, pode receber alta ou passar um tempo em uma terceira unidade, recebendo alguns cuidados e reabilitação.
– Oh, Stella... – Martha soprou e, já em pé, apoiou a mão no ombro da mulher. Um sinal hesitante de apoio. – Temos que ter esperança, ele logo vai estar em casa com vocês. – E deu uma olhadela para o menino ao lado, que para o coração gentil de Martha já era um filho.
– Muito obrigada... – Stella murmurou e, depois de respirar fundo numa tentativa de se recuperar, acrescentou. – Eu preciso ficar para assinar qualquer procedimento que for necessário, mas vocês deveriam ir descansar...
– Eu vou ficar... – avisou, os olhos argumentativos da mãe lhe disseram o contrário.
– Você vai pra casa... – Determinou, incorruptível. – São três da manhã, às sete no máximo você precisa estar de volta pra que eu possa ir descansar... Certo? – Ele não respondeu, pois embora concordasse que era melhor obedecê-la, não estava de todo convencido a deixá-la sozinha.
– Eu fico com sua mãe, ... – Martha assegurou, depois prosseguiu. – vai com você, amanhã cedo trocamos. É um bom plano?
– Eu também posso ficar. – Matthew se ofereceu.
– Pode ser. – Soprou, enterrando a mão no fundo dos bolsos de seu casaco. Hesitou em olhar para . Sentada na beirada da cadeira, ela o observava pacientemente, tudo em sua postura dizia o quanto estava disponível para ajudá-lo. – Você não tem que voltar para Leeds amanhã?
– Não... – Negou, ainda que precisasse. Não se afastaria um passo sequer. – Estamos em semana de congressos, nada demais... – Mentiu e talvez assim ele não contestasse. – Vamos lá?
– Você vai me ligar se tiver qualquer nova notícia, mãe? – conferiu, de um jeito duro que fazia parecer ameaçador.
– Prometo. – Stella garantiu, fazendo um carinho rápido no rosto gelado do rapaz.
– Certo.
Fumaram um cigarro de antes de entrarem na Chevy, agora coberta por uma espessa camada de neve, como todo o resto de Sheffield parecia estar. bocejou nas mãos e as esfregou, tentando aquecê-las minimamente antes de dar partida e firmá-las no volante.
estava muito silenciosa e ele também não sentia vontade de conversar. Sua mente parecia dar piruetas lentas e confusas. Queria estar em sua cama, agora mais do que em qualquer momento da noite. Poderia sentir o cheiro de seu cobertor caso se concentrasse o suficiente em seu ansioso desejo de estar em casa..
Quando chegaram, pouco se lembrava do caminho feito automaticamente para chegar até ali. esperou até que ele saltasse para depois fazer o mesmo, acompanhando seus passos apressados para dentro da casa.
– Você... – começou, parado em frente à porta de seu quarto. Zonzo, esfregou o próprio rosto. – Esqueci o que ia dizendo...
– Precisa parar com a erva, cara... – brincou porque de repente sentia-se à vontade para isso. sorriu, confirmando sua expectativa. – Por que não toma um banho? Vai ser bom para relaxar.
– É... – Mas não se moveu. tomou a iniciativa de entrar em seu quarto e andar até o armário. Não precisava de permissão, nunca havia precisado.
– Te espero aqui... – Garantiu quando entregou o agasalho a ele.
– Se quiser dormir, , pode ficar à vontade... – Ele arriscou, desorganizado em seu breve discurso. – O quarto de hóspedes não deve estar arrumado, mas você pode dormir no quarto dos meus pais se preferir.
– Ok, não se preocupe comigo.
Quando voltou do banho, quase num estado de inércia, reconheceu no canto de sua cama, como em um cenário muito familiar – encolhida contra a parede, enrolada em seu cobertor favorito, distraída com qualquer coisa que fosse – e na maioria das vezes era com a própria imaginação.
Sua aproximação a despertou de seu devaneio. Nenhum dos dois disse nada, porque não parecia haver nada a ser dito. alcançou as canecas de chocolate quente, estendendo uma a ele. , que era pura vulnerabilidade naquele momento, quis chorar. Mas conteve-se mais uma vez, escorregando para baixo do cobertor e tentando não dar atenção ao esbarrar de seus corpos enquanto buscavam uma posição confortável para ambos.
O MP4 que ganhara de Allan no último natal tinha centenas de músicas, mas estava tocando Beatles quando aceitou os fones que ela lhe ofereceu.
Bebericaram preguiçosamente todo o leite quente, imersos naquela mesma lembrança de nove anos atrás. temendo que parecesse tosca e fajuta sua tentativa de retribuir o apoio que ele havia ofertado na noite do incêndio. duvidando que existissem palavras que expressassem sua gratidão.
– Está sem sono? – perguntou depois de assisti-lo abrir e fechar os olhos muitas vezes. Deitado de frente para ela, procurou seu rosto em meio à escuridão do quarto.
– Estou assustado. – Confessou sob o fôlego, como se alguém além dela pudesse escutá-lo.
– Tem todo o direito de estar.
– Eu fico o tempo todo tentando lembrar dos últimos dias... – Contou, os olhos constrangidos fugindo dos de . – Mas não sei o que pode ser pior... Não me lembrar de nada ou me lembrar de algo que percebi, mas ignorei.
– Você se lembra quando te liguei, dias depois da noite do incêndio e comentei que atrás da cômoda do meu quarto havia essa extensão, onde estavam ligadas muitas tomadas? – gesticulou com a cabeça, concordando brevemente. – Eu estava com medo que, de repente, fosse eu a responsável por tudo... Mas você me disse que isso acontece o tempo todo e em todos os lugares do mundo e que poderia ter sido minha tomada, mas poderia ter sido qualquer outra coisa e que talvez nunca chegássemos a saber... – pausou e respirou fundo antes de continuar. – Acho que agora é minha vez de pedir que não fique se torturando com esses pensamentos, ... Precisamos nos concentrar na recuperação dele a partir de agora... – E ele gostava de como ela se incluía em sua dor, em seus planos, em suas jornadas. Era sempre “precisamos”, nunca “você precisa”.
– Obrigado, ... – Soprou, frustrando em sua nova tentativa de conter a emoção. – Não sei como seria se você não estivesse aqui...
– Não existe qualquer chance de algum dia eu não estar, ... – Sua declaração fez com que uma discreta comemoração se manifestasse em , desde seu coração perdendo o ritmo, até sua respiração acelerada e incompleta. – Agora tenta não pensar mais nisso e descansar um pouco... – E a maneira como o abraçou pra perto fez com que sua proposta parecesse irônica. Será que ela ao menos desconfiava sobre como era difícil, quase impossível, pegar no sono estando tão próximo a ela?
– ... – “Sou apaixonado por você”. teve a impressão de sentir a frase escorregar de seu coração, garganta acima, preencher sua boca. Foi necessário esforço para não deixá-la escapar em voz alta. Ele achou, em algum momento dos últimos anos, que com o passar do tempo aprenderia a administrar seus sentimentos e, consequentemente, não correria grandes riscos de perder o controle. Não aconteceu. E agora ele estava certo de que esse dia nunca chegaria. Amar em segredo seria sempre penoso e cansativo. Mas adorável, apesar disso. – Senti sua falta.
– É a consequência de ser um babaca intrometido... – deixou escapar um riso nasalado, aconchegando o rosto na curva morna do pescoço de sua amiga. – Mas eu já te perdoei. Só estava sendo orgulhosa... – sorriu e no escuro era mais fácil sorrir com todo o amor que tinha por ele. Sem correr o risco de ser flagrada, poderia gastar o resto de sua noite amando-o despreocupadamente. – Quer que eu cante pra você dormir? Posso cantar se quiser...
– Por favor, não... – forçou um falso desespero e os dois desmancharam em gargalhadas sonolentas. – Mas agradeço suas boas intenções.
– When you try yout best, but you don’t succeed... – começou, com a voz risonha, arriscando um falsete que soava ridículo. Podia sentir o corpo de chacoalhar com a intensidade de seu riso. – When you get what you want, but not what you need... When you feel so tired, but you can’t sleep... – Mas a voz de foi soando mais baixa e logo menos cômica. – Stuck in reverse... – deixou escapar um último riso, débil e preguiçoso. – And the tears come streaming down your face... When you lose something you can’t replace... When you love someone, but it goes to waste... Could it be worse? – , que havia lutado a noite toda contra o pranto, agora sentia-se incapaz de refreá-lo. sentiu quando as primeiras lágrimas escorreram do rosto dele para seu pescoço. Não fez alarde. Não o segurou com mais força do que fazia antes. Não alterou a voz. Não o impediu ou o motivou. Apenas esteve ali. Bastava. – Lights will guide you home and ignite your bones... And I will try to fix you.
14 de Julho de 2016 – Los Angeles, California, USA
ouvia a própria respiração, custosa e ruidosa. Abriu os olhos, zonzo da bebida e da adrenalina. Madson aconchegou a cabeça em seu peito, buscando por ele daquela maneira manhosa que ele costumava gostar, mas, naquela noite, o perturbou.
Acariciou seus cabelos, que ele mesmo havia embaraçado. Depois correu a ponta dos dedos por suas costas nuas, seguindo cada vértebra de sua coluna, porque sabia que ela sentia cócegas e sempre se contorcia em meio a uma risadinha frouxa. Ele costumava sorrir junto, mas naquela noite não conseguiu.
Fechar os olhos era ainda pior. Atacado novamente pela imagem que havia criado de durante o sexo com Madson. Não se lembrava de outra vez que isso tivesse acontecido. Tampouco se lembrava de algum dia ter estado tão excitado.
Junto com o tesão, deixou pra trás o bem estar daquele devaneio. De prazerosa, a imagem tornou-se apavorante.
Ainda assim, quando Madson desenrolou-se de seus braços e não o convidou para o banho, pegou-se colocando rapidamente suas roupas e escapulindo para fora do quarto, onde talvez conseguisse respirar.
A ideia era tomar um copo d’água – talvez whisky, mas esqueceu-se disso no caminho.
– Estava dormindo? – Disparou logo que surgiu do outro lado da porta. Não parecia sonolenta, constatou.
– Não... Está tudo bem? – Quis saber. As bochechas rosadas delatando que havia bebido demais durante o jantar.
– Posso entrar? – Os olhos dele correram pelo corredor, persecutórios. achou que ele cheirava à whisky e sexo. Desejou que tivesse força para dizer não, que ele não podia entrar.
– Pode... – passou pra dentro e sem pedir permissão largou o corpo sobre a cama. – O que houve?
– Nada... – reconheceria suas mentiras em qualquer situação, mas decidiu não pressioná-lo, porque não tinha certeza se queria saber qual era a verdade. – Só queria te ver. – E lá estava ela, tremendo dos pés à cabeça.
– Hm... – Murmurou e depois aclarou a garganta como se pretendesse acrescentar algumas palavras, mas apenas sentou-se ao lado de e manteve o silêncio.
– Você tem música aí?
– , é melhor você ir para o seu quarto, Madson pode se zangar se souber que está aqui ouvindo música, tarde da noite... – Ele concordou com a cabeça, sua expressão mal escondeu quão penoso era ser rejeitado por ela. Mesmo depois de todos aqueles anos.
– Quero te fazer um convite. – comentou e levou a mão em seu bolso num gesto automático, procurando pelos cigarros, que há muito tempo não ficavam ali para quando estivesse ansioso.
– Da última vez que me fez um convite, foi pra essa enrascada aqui... – brincou, depois sentiu-se mal pela veracidade que havia por trás daquelas palavras.
– Esse é dos bons... – Ele garantiu, risonho. – Você ainda confia em mim?
– Como assim? – empertigou-se, suas sobrancelhas se reunindo e expressando sua confusão.
– Se você ainda confia em mim, pouco que seja, só diga que sim!
– ... – Ela soltou, um pouco descrente, muito surpresa.
– Como nos velhos tempos...
– Nos velhos tempos, todas as vezes que você fazia isso era porque ia me levar para algum lugar que sabia que eu não ia concordar... – começou a rir e aos poucos conquistou um sorriso de .
– Vamos lá, você era mais corajosa!
– E você não usava gel! – Ele curvou-se numa gargalhada. Só pela maneira como o atacou, sabia que ela estava guardando aquilo desde que chegou.
– Um sim e não usarei nenhum gel... – Havia um ar leve e gracioso no olhar desconfiado de . Estava tentada a aceitar, notou. – Vamos, .
– Sem nenhuma dica?
– Você nunca precisou delas, poopface. – Ela lambeu os lábios e ficou um tempo apenas observando o rosto cheio de expectativas do amigo.
– Ok.
– Sim?
– Sim! – adotou uma postura triunfante enquanto se levantava. Cambaleou nos dois primeiros passos antes de voltar a estabilizar-se. – Tenho a impressão de que você está completamente bêbado e que vou me arrepender pelo resto da vida por aceitar sua proposta impensada.
– , existem poucas coisas que posso te garantir na vida... – Ele discursou, uma mão apoiada no batente, a outra na cintura, em uma característica pose ébria. Não havia qualquer parte do corpo de que não estivesse arrepiada. – Uma delas é que você não irá se arrepender!
Capítulo 9
15 de Julho de 2016 – Los Angeles, California, USA
Havia aquele relógio bonito na mesa de cabeceira que ficava do lado de Madson e desejou poder quebrá-lo. A cada minuto daquela noite que pareceu eterna, as pancadas imaginárias ficavam mais frequentes, mais fortes. Queria destruí-lo até que não restasse um só fragmento, até que ele não significasse mais nada e então não teria de esperar que as horas dissessem que já poderia se levantar e começar seu novo dia.
Sentia-se disposto como se fossem nove da manhã, mas ainda eram quatro – mostrava aquele maldito relógio preguiçoso.
– Que horas são? – Madson resmungou, a voz arrastada e cheia de sono.
– Sete e alguma coisa. – respondeu, depois de conferir os ponteiros do relógio que prendia ao punho. – Bom dia!
– Bom dia... – Com clara indisposição, Madson sentou-se na cama e retribuiu o beijo gentil que o noivo deixava em seus lábios. – Tem algum compromisso?
– Preciso ir no apartamento... – Não era mentira, embora não fosse toda a verdade. Depois de um rápido conflito de ideias dentro de si, acrescentou. – Convidei para ir comigo, vamos revelar algumas fotos e ficar pela cidade... – Soou estranho e achou que não deveria haver estranheza ou culpa, não deveria parecer uma traição ou algo que ele devesse evitar. – Você se importa?
– Devo? – Madson disparou, suas longas pernas se enrolando numa posição de índio, os olhos cuidadosos. – Está atrasado? – maneou a cabeça num gesto negativo, tentando afastar aquela sensação de que estava em apuros. – Senta aqui um pouquinho, então.
– Hm, ok... – Ele sabia exatamente o tipo de conversa que o esperava. Não era bom com elas.
– Meu pai veio me perguntar sobre vocês dois ontem... Você e ... – Comentou, tentando soar mais casual do que poderia.
– Perguntar o quê?
– Se vocês têm uma história. – odiava aquela imensa facilidade que Madson tinha de olhar nos olhos.
– E o que você disse?
– Que eu não tinha certeza... – Os dois se observaram, num silêncio que tinha muito a dizer.
– Não entendo... – soltou, curvando-se para apoiar os antebraços nas próprias pernas, assim talvez tivesse uma desculpa para não olhar diretamente para a noiva. – Você sabe que conheço desde os 12 anos, que somos amigos desde então...
– ... Não é esse tipo de história, você sabe. – Ele não respondeu, mesmo ciente que não responder deixava espaço para quaisquer suposições. – Eu não queria estar falando sobre isso, amor, eu sempre fiz questão de não ser a namorada chata, ficar criando caso por nada... – Ele não respondeu, mas com orgulho reconhecia o relacionamento saudável que nutriam. Pouco se aborreciam com julgamentos e argumentações, com cobranças ou amarras desnecessárias. – Eu gosto de . Quer dizer, eu tive medo de conhecê-la, tive medo do que encontraria... Insegurança, talvez... – Ou instinto, pensou. – Pensei que talvez ela fosse apaixonada por você e que viesse com a intenção de deixar isso claro, tentar te conquistar, eu não sei... Alguma coisa meio “Casamento do Meu Melhor Amigo”. – Madson disse, umedecendo a tensão com um pouco de bom humor. – Mas ontem, quando estávamos no jardim com seus pais... Enquanto bebiam e compartilhavam histórias que eu ainda não conhecia, eu... Comecei a me sentir insegura outra vez...
– Mad...
– ... – Era um pedido e nunca negava nenhum deles. – O que me preocupa é que... Não foi nada do que ela fez, não acho que ela vá te agarrar a qualquer momento, ou reivindicar você na vida dela... Mas você... – , alarmado, desenrolou a coluna e adotou uma postura quase defensiva. Madson continuou, com a mesma calma de antes. – O jeito que você olhava pra ela, você provavelmente nunca me olhou daquela maneira e eu não tenho certeza de que algum dia você vai. – E então sufocaram no silêncio asfixiante. – Você é apaixonado por ela, ? – Em voz alta, soou dolorosamente real e aterrorizante.
– Não... – havia treinado aquela negação por tantos anos que agora ela soava convincente.
– Você já foi, algum dia, apaixonado por ela? – Aquela pergunta, por outro lado, ele nunca havia respondido. Havia um “não” em sua garganta, mas ele não saiu. – Só... Por favor, não minta pra mim.
– Nós ficamos uma vez... – Disparou e era a primeira vez que contava sobre isso a alguém. Mesmo ele e não citaram o ocorrido de maneira tão declarada. Era sempre implícito, com palavras soltas, mal escolhidas. – Em 2005... – precisou conter os detalhes que nunca havia dito. Eles nunca pareceram tão vívidos em sua memória. – Depois disso nunca houve nada entre nós, além de amizade... – Era a mentira mais verdadeira que já havia contado. – Onze anos, Mad, fazem onze anos...
– Por que nunca me disse? – A mulher questionou e embora houvesse um rastro de cólera em sua voz, continuava paciente.
– Eu não sei! Talvez porque não tenha significado nada pra nenhum de nós! – Despejou e tinha essa impressão de que sua irritação devia-se muito pouco aos questionamentos de Madson. Muito mais à indiferença de . – Estávamos bêbados, chapados, não sabíamos ao certo o que estávamos fazendo! Foi estranho, quase incestuoso, é só isso... – Quando parou, percebeu, nos olhos bem abertos da noiva, que estivera gritando mais do que pretendia.
– ... Você tem certeza? Tem certeza que não significou nada para os dois? – arfou e levantou-se, o corpo trêmulo de uma raiva que estivera contida e que de repente estava sendo exposta para a pessoa errada.
– Eu não posso dizer por ela, Madson! – Exclamou, frustrado ao tentar conter sua ira.
– Eu não acho que possa dizer por você, também! – levou as mãos na cabeça, os dedos penteando agressivamente os cabelos pra trás. Ficou de costas, porque não conseguia encará-la. – Você precisa pensar nisso, e ser sincero com você e comigo... Não é justo com nenhum de nós que você entre naquele altar pela metade.
gostaria de ter organizado a tempo o emaranhado de palavras que tomava conta de sua mente. Não estava nem perto de conseguir quando ouviu a porta do banheiro fechar – não com a brutalidade que esperava. Sozinho, naquele quarto assombrado, teve vontade de socar qualquer coisa.
Ao invés disso, tocou na porta de . Apenas uma parte de seu rosto inchado surgiu na fresta da porta. apontou para o próprio cabelo, sem gel como o prometido, ela lhe respondeu com uma risada sonolenta. Perguntou que horas eram, depois disse que iria se trocar. “O mais rápido que eu puder”, garantiu. ainda sugeriu que carregasse consigo algumas peças de roupa. E enquanto ela se organizava, ele teve tempo suficiente para escrever um bilhete, com letras tortas e apressadas, para Madson. Deixou sobre a mesa de cabeceira, preso embaixo do relógio que ele passou a madrugada detestando.
– Você já pode me dizer onde vamos? – perguntou logo que se acomodaram no carro, ambos puxando o cinto de segurança ao mesmo tempo. A inquietação que sentia desde a discussão começava a perder a força. Logo não haveria nada além da ansiedade positiva pelo dia que estava por vir.
– Primeiro vamos até o meu apartamento... – Dito isso, estendeu para ela sua câmera. – Temos algumas fotos para revelar.
– Ok, e depois? – A boca de se curvou num sorriso desatento. – Ah, qual é, ?
– Paciência, gafanhoto! – Pediu, com um bom humor que parecia irônico depois do início daquela manhã. – Logo você saberá.
18 de Julho de 2009 – Sheffield, South Yorkshire, UK
Os olhos de observavam a corrente de ouro que tinha na palma de sua mão – era delicada o bastante pra que ele se preocupasse em romper seus elos ao manuseá-la. Analisou mais uma vez os pingentes, um pequeno livro aberto e uma pena ainda menor, na dúvida se combinavam com o colar, se iria gostar.
– , já está pronto? – Stella gritou do outro lado da porta de seu quarto. O rapaz tratou de guardar a corrente na caixa e enfiar no fundo do bolso de sua calça.
– Preciso de ajuda com a minha gravata! – Respondeu, levantando-se e andando para frente do espelho, a fim de fingir que estava ali desde antes.
– Filho, estamos atrasados! – Repreendeu Stella ao irromper pelo quarto. – Me deixa ver isso aqui...
Stella iniciou uma rápida discussão a respeito de seu cabelo, ele deveria ter cortado desde o início da semana, mas deixou passar. Ao menos havia retirado aquela barba que nunca crescia direito.
“Minha mãe vai se casar”, disse em uma ligação no começo de Junho. “Queremos que seja meu par”, acrescentou. E ele quis dizer que seria seu par pela vida toda, caso ela quisesse. Mas calou-se. E vinha alimentando aquele silêncio há tanto tempo, que agora, bem nutrido, havia tomado uma proporção incômoda. Precisava livrar-se dele, havia decidido.
Então quebrou aquele cofre, onde vinha economizando dinheiro para o mochilão que já não sabia se fariam e comprou um colar com pingentes personalizados. Diria que era um presente pela finalização de seu curso, mas era apenas o pontapé inicial de um discurso que havia ensaiado – preferia chamar de discurso, porque declaração parecia muito audacioso.
Diria como estava se sentindo. Ou pelo menos uma parte. Quem sabe usar algumas metáforas. Talvez arriscasse enfiar seus sentimentos todos num pedido singelo: “quer jantar comigo?”. Embora “podíamos sair e beber alguma coisa qualquer dia desses” combinasse mais com a relação que tinham, ainda estava decidindo o que soava melhor.
Estava calor e as mãos úmidas de escorregavam pelo volante do carro da mãe. Ela não estava tagarelando como de costume, distraída ao tentar fechar a pulseira que usava em ocasiões especiais – era sempre Robert quem lidava com o fecho, mas não naquele dia, ou nos últimos meses. pensou que ela poderia ter pedido a ele, mas entendia porque não o havia feito. Vinha substituindo o pai em algumas tarefas, mas havia espaços onde ele nunca caberia.
Ao seu lado, no banco do passageiro, Robert respirava com preguiça e pouco se manifestava. Seu silêncio havia se tornado familiar depois do AVC, falar fazia-se cansativo. Às vezes irritante. E agora, mesmo que depois de todos os exercícios intensivos as palavras voltassem a soar como palavras, ele parecia acostumado a guardá-las pra si.
saltou do carro e ajudou Stella na tarefa usual que havia se tornado o montar e desmontar da cadeira de rodas. Robert já se considerava preparado para começar o uso do andador, seu fisioterapeuta ainda preocupava-se com seu equilíbrio.
Disse a que conseguia descer do carro sozinho e acomodar-se na cadeira, só precisava apoiar o peso do corpo na perna saudável, mas o rapaz ignorou como costumava fazer. Pegá-lo no colo foi ficando mais fácil, achava. Não sabia se pela clara perda de peso devido à dificuldade de deglutição que ele sofria desde o acidente, ou se pelo costume.
A temperatura muito alta daquela tarde os fazia questionar se ainda estavam na Inglaterra, ou se de repente o salão de festas ficava em um mundo paralelo – em algum lugar muito próximo do inferno talvez. E em meio à toda aquela claridade incomum, os olhos semiabertos de a reconheceram. Do outro lado do jardim que atravessavam, no topo de uma escada de quatro degraus, apoiada na balaustrada e entretida com coisa alguma.
só os percebeu quando Stella soltou um elogio melódico sobre sua aparência. Ela ergueu os olhos e começou a sorrir. Não sabia lidar com elogios. E com o ar zombeteiro de sempre, girou no lugar, exibindo o vestido longo e floral.
– Desculpe o atraso, ... – Stella pediu, beijando o rosto corado da moça. – Você conhece o amigo que tem...
– Ei! – Ele reclamou, empurrando o pai pela rampa na lateral do salão.
– Tudo bem, Robert? – perguntou, inclinando-se para beijar o rosto do homem.
– Tudo bem... – Ele respondeu, lenta e cuidadosamente. – Você está linda. – Arriscou, riu com as mãos na cintura.
– Muito obrigada! Vocês é que estão incríveis! – E lançando um sorriso divertido a , voltou-se para Stella. – Se quiserem ir entrando, eu e o cara elegante ali precisamos esperar por aqui...
– Ah, claro! – A mulher respondeu, com um rastro de malícia que e fingiram não perceber. – Vamos, Rob... Nos vemos mais tarde, crianças.
– Então ele decidiu vir? – perguntou, encostando-se na cerca de madeira que margeava a varanda do salão.
– Sim... Não insistimos mais, minha mãe disse que eu não deveria falar mais nada sobre isso e no fim ele pediu pra eu levá-lo no alfaiate no meio da semana... – foi rapidamente sugado para dentro do sorriso de , tão bonito e caloroso.
– Que bom que ele está mais à vontade... Fico feliz! – respondeu com um sorriso contido.
– E então, o que precisamos fazer? – Ele quis saber, e soltou uma risadinha antes de continuar.
– Além de passar vergonha? – deixou escapar um riso fácil e parou de respirar no minuto em que colocou as mãos em sua gravata, parada em frente à ele, mais perto do que ele considerava saudável. – Vamos entrar no salão antes da minha mãe, temos que assistir à cerimônia ao lado deles e assinar uns papéis...
– Que responsabilidade... – O rapaz comentou, distraído. Seus olhos passeando pelo rosto concentrado de , desejando que pudesse simplesmente tracejá-lo com beijos, sem que isso parecesse estranho ou incabível.
– Parece até que temos mais de 20 anos... Oh, é! Nós temos... – acompanhou sua risada, como se fosse automático. Não sabia se algum dia a felicidade de um estaria dissociada da felicidade do outro.
– Gostei do vestido... – Era sua tentativa confusa de dizer o quanto ela estava linda. – Você parece a personificação da primavera com ele... – cedeu um riso, confuso e divertido ao mesmo tempo.
– E isso é bom?
– É a estação mais bonita do ano...
Foi como se todas aquelas borboletas mantidas em cativeiro dentro do coração de ambos, de repente, estivessem livres. Tomando conta de cada pequeno espaço, batendo suas asas agitadas, procurando a saída, borboletando mundo afora.
desejou dizer qualquer coisa. Um "obrigada” que fosse.
E desejou que ela dissesse qualquer coisa. Um “não seja idiota” que fosse.
Ambos queriam romper o silêncio, porque já não era o mesmo silêncio que compartilhavam quando se deitavam na traseira da Lizzy para observar o céu – sem nunca estarem, de fato, pensando sobre as estrelas ou o universo.
O novo silêncio era assustadoramente tagarela e estava o tempo todo tentando dizer coisas que eles não se julgavam preparados para ouvir, ou compartilhar um com o outro.
, retornando do êxtase como quem emerge depois de muito tempo imerso, arfou, com o fôlego escasso. Levou a mão em seu bolso, dessa vez não em busca dos cigarros, mas do colar. Seu coração, prevendo o que estava por vir, disparou.
– ? – Era Allan, na porta do salão, o olhar curioso se tornando preocupado. – Desculpa interromper vocês... Mas sua mãe chegou, vocês precisam entrar.
– Ah, certo... – A moça concordou, apressada e ansiosa. – Já estamos indo...
– Ok! – Allan sorriu para os dois, depois desapareceu salão adentro.
– Vamos lá? – disparou, os olhos varrendo apressadamente o rosto de , sem conseguir encará-lo.
– , espera... – Depois dos anos postergando aquele momento, havia pressa. tinha a impressão de que, se deixasse passar aquela oportunidade, poderia cair em si a qualquer instante e então desistir. Decidir, talvez, que poderia esperar um pouco mais, mesmo tão próximo de abandonar a espera pra trás.
– Não podemos atrasar a cerimônia... – argumentou, mas ela e sabiam que era nada mais que um pretexto inventado para escapar do que quer que ele tivesse a dizer.
– Posso só... Comprei uma coisa pra você... – Com os olhos menos inquietos, observou o rosto otimista do amigo, se perguntando se ele poderia ouvir seu coração acidentalmente eufórico. – Não é nada demais... – Adiantou aflito, alcançando o presente dentro do bolso de sua calça. Enquanto o assistia tentar abrir a caixa com a ponta dos dedos trêmulos, sentiu como se tivesse bebido uma garrafa inteira de amor misturado com agonia, não sabia qual era o gosto predominante, mas os dois juntos a embriagaram muito rapidamente.
– ... – Sussurrou quando seus olhos se encontraram, pela primeira vez, com o colar. E como todo primeiro encontro, aquele foi inesquecível. – Ele é... Tão lindo.
– Acho que combina com você... – Disparou, antes que a frase fugisse, acovardada pelo momento.
– Muito obrigada! – A voz dela soou menos trêmula, mas ainda emocionada.
– De nada... – respirou fundo, mas não teve sucesso em sua tentativa de recobrar um pouco de serenidade. Se perguntou, durante um longo tempo de sua vida qual era a expressão que fazia enquanto observava retirar o próprio colar do pescoço.
– Me ajude a colocar!
Pediu, enquanto dava suas costas a ele. Pareceu tão mais fácil para ambos não terem que se encarar.
fechou os olhos e aguardou com o coração vacilante. E havia essa balada romântica dos anos 80 tocando dentro do salão, que a fez ceder um riso discreto, pensando em todos os filmes de romance que evitara assistir. Aquele clichê seria seu favorito.
E , daquele jeito meio tolo de quem está apaixonado até o pescoço, achava tudo nela gracioso, até a maneira como aquelas mechas de seu cabelo escapuliram do coque mal feito e aquela pinta que ninguém nunca deveria ter reparado, porque ficava escondida por entre os cabelos recém-nascidos em sua nuca.
Explicitamente arrebatado, precisou de tempo até conseguir parar de tremer e abrir o fecho do colar. Pensou que a música lá dentro ia acabar, ou a qualquer momento Allan apareceria para apressá-los outra vez, talvez Martha aparecesse, irritada com o atraso que deveria ser da noiva. Era sua euforia deixando o momento passar.
Mas nada disso aconteceu, porque ainda que , e talvez , estivesse preso num slow motion sem fim, levou apenas um minuto ou menos pra que ele conseguisse prender o colar ao redor do pescoço dela. E tal como aquela pinta que nem mesmo conhecia e como aquela tatuagem de ponto-vírgula que haviam feito numa noite de bebedeira, ou como seus olhos, boca, nariz, as sardas que de tão claras quase passavam desapercebidas. Assim como , em seu coração...
Aquele colar, agora, também fazia parte dela. E era como se sempre estivesse estado ali.
– Precisamos ir...
– Precisamos...
Precisavam.
Então ofereceu seu braço pra que ela enroscasse o dela, num movimento tão familiar que agora parecia automático. Adentraram e caminharam num ritmo tranquilo, sem pressa. Se entreolharam e a declaração de amor que não disseram em voz alta, estava ali, no sorriso de ambos.
Martha fez sua entrada logo depois e, apesar de não estar usando um vestido de noiva, era a noiva mais noiva que alguém já tinha visto. Com aquele amor em seus olhos. E em seu sorriso. E em seu caminhar confiante. , pela primeira vez em anos, estava feliz que Lucian tivesse partido. Se ele não tivesse ido, talvez nunca houvesse espaço para Allan... Mas agora havia e poucas coisas pareciam fazer tanto sentido quanto Allan e Martha.
A cerimônia levou tempo suficiente para ser emocionante, mas não cansativa.
No jardim, sob uma grande tenda estavam as mesas e cadeiras. Haviam flores lindas, mas nunca tão lindas quanto a atmosfera que foi criada quando todos se reuniram para os cumprimentos e brindes.
– Muito obrigada, meninos... – Martha disse, um braço ao redor de , outro ao redor de .
– Mãe, por favor... – Reclamou a moça, que não lidava muito bem com a emoção.
– Eu que agradeço o convite! – declarou, enfiando as mãos no bolso da calça.
– Não consegui pensar em ninguém além de vocês. – Confidenciou a mulher, com o sorriso carinhoso que já havia se tornado familiar para . – Ah, já te contou que está namorando? – O tom dela não era o que podia-se esperar daquela notícia. Não era encantado ou entusiasmado, não era sequer positivo. Soou como se reprovasse o que dizia, como se pedisse a : “dê uma bronca nela”. Ele faria com prazer, caso conseguisse ao menos respirar naquele momento.
– Mãe! – queixou-se, fugindo do olhar inerte de .
– Não contou ainda? – Ninguém respondeu. – Ah... Desculpa, achei que... Ele é seu melhor amigo, caramba.
– Pois é... – disparou e seus olhos, antes cravados no rosto de , fugiram pelos arredores. – Depois precisamos falar sobre isso, mocinha... – Um bom humor claramente forçado, um sorriso dolorido. – Eu vou... Ver, meu pai... Se ele está precisando de alguma coisa.
– Mãe... – soltou, logo que se afastou. Seu tom nervoso e cansado. – Você precisava ter feito isso?
– Como eu poderia saber que você não tinha contado à ele? Aliás, por que não contou? – Mas não havia chegado a conclusão nenhuma, então não soube o que responder. – Você não deveria fazer isso com ele...
– Fazer o quê? – não queria soar tão irritada, mas pouco conseguia controlar.
– Ficar “cozinhando” o cara dessa maneira... – Martha sabia do protesto por vir, então acrescentou rapidamente, enquanto tinha tempo: – Se não pretende ter qualquer relação com ele, que não seja amizade... Seja honesta, , deixe que ele saia da friendzone.
– Não existe friendzone nenhuma, Martha... – queixou-se, o argumento da mãe foi uma gargalhada exagerada, mas verdadeira. – Você deve estar infectada com o vírus casamenteiro e fica vendo corações por toda parte...
– Talvez eu esteja... – Anuiu Martha, organizando uma mecha do cabelo da filha que havia se soltado com o vento. – Mas talvez eu esteja certa e esse seja o motivo pelo qual, mesmo estando com Tom desde o último sábado, ele não tenha sido citado para quem você diz ser seu melhor amigo.
observou a si mesmo no espelho e havia essa imaginação cômica de balões em formato de coração estourando ao seu redor, todos de uma só vez. Quase podia ouvir o “pop!” que faziam ao entrar em contato com a unha afiada da novidade. tinha um namorado.
Gostaria de odiá-la por um minuto. Ou culpar o cara por ter aparecido. Mas , justo que era, apropriou-se da responsabilidade. Se estava onde estava – escondido naquele banheiro, com medo de esbarrar no sorriso comprometido de – era por ter se acovardado frente a cada uma das chances de aproximação que teve ao longo dos últimos 11 anos. Adiando e adiando um pouco mais, agarrado à ideia de que ela não iria a lugar nenhum.
Sentia que nunca havia estado ali, naquela condição. Nem quando deu o primeiro beijo, em 2002. Ou quando ela foi para Leeds, em 2005. Mesmo quando ela transou pela primeira vez, em 2007 e ele desligou o telefone o mais rápido que pode, sentindo que poderia morrer de ciúmes.
No ano anterior, 2008, depois de sua formatura, revelou que ficaria um ano a mais em Leeds, para uma especialização que ele aprovou, porque ela estava entusiasmada. E começou aquela contagem regressiva, mês por mês preparando-se para seu retorno. Sheffield voltaria a fazer sentido. E não podia negar, todas as outras coisas também.
E então surgiu aquela decisão, ainda a ser elaborada e aperfeiçoada: abriria o jogo. Tentou se convencer de que seria simples. Seria como se aproximar das garotas em festas, testaria alguns assuntos até encontrar um em comum, depois a elogiaria e daria a entender o que esperava do fim da noite. A diferença é que nunca se aproximava de garotas em festas, na grande maioria das vezes. Se elas não arriscassem se acercar, passaria a noite bêbado e sozinho.
E mesmo que fosse algo habitual, nenhuma delas era .
Já sabia quais assuntos tinham em comum. Todos.
E ela preferia entrar em combustão a ser elogiada.
Ela compreenderia o que ele esperava do fim da noite, mesmo que ele não desse a entender. Parecia positivo, mas ele não tinha certeza de que era.
Nunca seria simples, concluiu, enquanto fosse .
E naquela noite, depois daquela notícia que por algum motivo não deu, soube que tampouco seria complicado.
Apenas não seria mais.
– Aí está você! – disparou ao encontrá-lo, sentado na varanda do salão, do outro lado e bem distante da tenda. – Tentei colocar um cigarro no meu sutiã, mas ele está todo amassado... Será que você me arranja um? – E não havia tanto humor no riso sem graça de .
– Não sei porque você ainda inventa essas desculpas... Eu sustento seu vício desde sempre...
– Grande mentira... – protestou, sentando-se ao lado dele no último dos quatro degraus da escada. – O que está fazendo aqui? Não consigo mais te defender quando dizem que você é antissocial, meu amigo.
– Estou fumando...
– Escondido? Se fosse algo orgânico eu acreditaria, depois da surra que a minha mãe nos deu... – Os dois gargalharam, soprando pra longe uma parte da tensão que os rodeava.
– Por que não me disse? – Ele deixou escapar, a boca dentro do copo de whisky, como se quisesse disfarçar seu interesse. não precisava que ele fosse mais específico. Ou que dissesse a verdade sobre estar ali, isolado. Ela bem sabia.
– Não é importante... – Foi como se uma chama surgisse timidamente no coração de , ele gostaria de soprá-la de mansinho e fazê-la vingar, mas tratou de apagá-la com um pouco de saliva.
– Parece importante. – Argumentou e deu outro gole em seu whisky, tentando fazer descer aquela ansiedade presa em sua garganta.
– Ele fez a proposta na frente de alguns amigos, eu achei que era uma brincadeira... – confidenciou, revivendo o momento com menos alegria do que deveria. – Eu disse que sim, porque parecia indelicado dizer que não, mas não achei que fosse sério...
– Era sério...
– Era... – Os lábios dela se curvando num sorriso que não sabia se era irônico ou divertido.
– Eu conheço?
– Talvez já tenham se trombado em alguma festa em Leeds... – contou e esticou-se para alcançar o copo dele, com a liberdade de sempre. – O nome dele é Tom.
– Ele é legal?
– Ele me trata bem... – comentou, devolvendo o whisky a . Ele sentiu-se grato, precisaria de whisky caso ela decidisse traçar um perfil de Tom. – É um pouquinho presunçoso...
– Do tipo “leio um livro por semana”?
– Hm... – E negou brevemente com a cabeça. – Do tipo “Rockabilly com gel no cabelo”.
Havia aquele relógio bonito na mesa de cabeceira que ficava do lado de Madson e desejou poder quebrá-lo. A cada minuto daquela noite que pareceu eterna, as pancadas imaginárias ficavam mais frequentes, mais fortes. Queria destruí-lo até que não restasse um só fragmento, até que ele não significasse mais nada e então não teria de esperar que as horas dissessem que já poderia se levantar e começar seu novo dia.
Sentia-se disposto como se fossem nove da manhã, mas ainda eram quatro – mostrava aquele maldito relógio preguiçoso.
– Que horas são? – Madson resmungou, a voz arrastada e cheia de sono.
– Sete e alguma coisa. – respondeu, depois de conferir os ponteiros do relógio que prendia ao punho. – Bom dia!
– Bom dia... – Com clara indisposição, Madson sentou-se na cama e retribuiu o beijo gentil que o noivo deixava em seus lábios. – Tem algum compromisso?
– Preciso ir no apartamento... – Não era mentira, embora não fosse toda a verdade. Depois de um rápido conflito de ideias dentro de si, acrescentou. – Convidei para ir comigo, vamos revelar algumas fotos e ficar pela cidade... – Soou estranho e achou que não deveria haver estranheza ou culpa, não deveria parecer uma traição ou algo que ele devesse evitar. – Você se importa?
– Devo? – Madson disparou, suas longas pernas se enrolando numa posição de índio, os olhos cuidadosos. – Está atrasado? – maneou a cabeça num gesto negativo, tentando afastar aquela sensação de que estava em apuros. – Senta aqui um pouquinho, então.
– Hm, ok... – Ele sabia exatamente o tipo de conversa que o esperava. Não era bom com elas.
– Meu pai veio me perguntar sobre vocês dois ontem... Você e ... – Comentou, tentando soar mais casual do que poderia.
– Perguntar o quê?
– Se vocês têm uma história. – odiava aquela imensa facilidade que Madson tinha de olhar nos olhos.
– E o que você disse?
– Que eu não tinha certeza... – Os dois se observaram, num silêncio que tinha muito a dizer.
– Não entendo... – soltou, curvando-se para apoiar os antebraços nas próprias pernas, assim talvez tivesse uma desculpa para não olhar diretamente para a noiva. – Você sabe que conheço desde os 12 anos, que somos amigos desde então...
– ... Não é esse tipo de história, você sabe. – Ele não respondeu, mesmo ciente que não responder deixava espaço para quaisquer suposições. – Eu não queria estar falando sobre isso, amor, eu sempre fiz questão de não ser a namorada chata, ficar criando caso por nada... – Ele não respondeu, mas com orgulho reconhecia o relacionamento saudável que nutriam. Pouco se aborreciam com julgamentos e argumentações, com cobranças ou amarras desnecessárias. – Eu gosto de . Quer dizer, eu tive medo de conhecê-la, tive medo do que encontraria... Insegurança, talvez... – Ou instinto, pensou. – Pensei que talvez ela fosse apaixonada por você e que viesse com a intenção de deixar isso claro, tentar te conquistar, eu não sei... Alguma coisa meio “Casamento do Meu Melhor Amigo”. – Madson disse, umedecendo a tensão com um pouco de bom humor. – Mas ontem, quando estávamos no jardim com seus pais... Enquanto bebiam e compartilhavam histórias que eu ainda não conhecia, eu... Comecei a me sentir insegura outra vez...
– Mad...
– ... – Era um pedido e nunca negava nenhum deles. – O que me preocupa é que... Não foi nada do que ela fez, não acho que ela vá te agarrar a qualquer momento, ou reivindicar você na vida dela... Mas você... – , alarmado, desenrolou a coluna e adotou uma postura quase defensiva. Madson continuou, com a mesma calma de antes. – O jeito que você olhava pra ela, você provavelmente nunca me olhou daquela maneira e eu não tenho certeza de que algum dia você vai. – E então sufocaram no silêncio asfixiante. – Você é apaixonado por ela, ? – Em voz alta, soou dolorosamente real e aterrorizante.
– Não... – havia treinado aquela negação por tantos anos que agora ela soava convincente.
– Você já foi, algum dia, apaixonado por ela? – Aquela pergunta, por outro lado, ele nunca havia respondido. Havia um “não” em sua garganta, mas ele não saiu. – Só... Por favor, não minta pra mim.
– Nós ficamos uma vez... – Disparou e era a primeira vez que contava sobre isso a alguém. Mesmo ele e não citaram o ocorrido de maneira tão declarada. Era sempre implícito, com palavras soltas, mal escolhidas. – Em 2005... – precisou conter os detalhes que nunca havia dito. Eles nunca pareceram tão vívidos em sua memória. – Depois disso nunca houve nada entre nós, além de amizade... – Era a mentira mais verdadeira que já havia contado. – Onze anos, Mad, fazem onze anos...
– Por que nunca me disse? – A mulher questionou e embora houvesse um rastro de cólera em sua voz, continuava paciente.
– Eu não sei! Talvez porque não tenha significado nada pra nenhum de nós! – Despejou e tinha essa impressão de que sua irritação devia-se muito pouco aos questionamentos de Madson. Muito mais à indiferença de . – Estávamos bêbados, chapados, não sabíamos ao certo o que estávamos fazendo! Foi estranho, quase incestuoso, é só isso... – Quando parou, percebeu, nos olhos bem abertos da noiva, que estivera gritando mais do que pretendia.
– ... Você tem certeza? Tem certeza que não significou nada para os dois? – arfou e levantou-se, o corpo trêmulo de uma raiva que estivera contida e que de repente estava sendo exposta para a pessoa errada.
– Eu não posso dizer por ela, Madson! – Exclamou, frustrado ao tentar conter sua ira.
– Eu não acho que possa dizer por você, também! – levou as mãos na cabeça, os dedos penteando agressivamente os cabelos pra trás. Ficou de costas, porque não conseguia encará-la. – Você precisa pensar nisso, e ser sincero com você e comigo... Não é justo com nenhum de nós que você entre naquele altar pela metade.
gostaria de ter organizado a tempo o emaranhado de palavras que tomava conta de sua mente. Não estava nem perto de conseguir quando ouviu a porta do banheiro fechar – não com a brutalidade que esperava. Sozinho, naquele quarto assombrado, teve vontade de socar qualquer coisa.
Ao invés disso, tocou na porta de . Apenas uma parte de seu rosto inchado surgiu na fresta da porta. apontou para o próprio cabelo, sem gel como o prometido, ela lhe respondeu com uma risada sonolenta. Perguntou que horas eram, depois disse que iria se trocar. “O mais rápido que eu puder”, garantiu. ainda sugeriu que carregasse consigo algumas peças de roupa. E enquanto ela se organizava, ele teve tempo suficiente para escrever um bilhete, com letras tortas e apressadas, para Madson. Deixou sobre a mesa de cabeceira, preso embaixo do relógio que ele passou a madrugada detestando.
– Você já pode me dizer onde vamos? – perguntou logo que se acomodaram no carro, ambos puxando o cinto de segurança ao mesmo tempo. A inquietação que sentia desde a discussão começava a perder a força. Logo não haveria nada além da ansiedade positiva pelo dia que estava por vir.
– Primeiro vamos até o meu apartamento... – Dito isso, estendeu para ela sua câmera. – Temos algumas fotos para revelar.
– Ok, e depois? – A boca de se curvou num sorriso desatento. – Ah, qual é, ?
– Paciência, gafanhoto! – Pediu, com um bom humor que parecia irônico depois do início daquela manhã. – Logo você saberá.
18 de Julho de 2009 – Sheffield, South Yorkshire, UK
Os olhos de observavam a corrente de ouro que tinha na palma de sua mão – era delicada o bastante pra que ele se preocupasse em romper seus elos ao manuseá-la. Analisou mais uma vez os pingentes, um pequeno livro aberto e uma pena ainda menor, na dúvida se combinavam com o colar, se iria gostar.
– , já está pronto? – Stella gritou do outro lado da porta de seu quarto. O rapaz tratou de guardar a corrente na caixa e enfiar no fundo do bolso de sua calça.
– Preciso de ajuda com a minha gravata! – Respondeu, levantando-se e andando para frente do espelho, a fim de fingir que estava ali desde antes.
– Filho, estamos atrasados! – Repreendeu Stella ao irromper pelo quarto. – Me deixa ver isso aqui...
Stella iniciou uma rápida discussão a respeito de seu cabelo, ele deveria ter cortado desde o início da semana, mas deixou passar. Ao menos havia retirado aquela barba que nunca crescia direito.
“Minha mãe vai se casar”, disse em uma ligação no começo de Junho. “Queremos que seja meu par”, acrescentou. E ele quis dizer que seria seu par pela vida toda, caso ela quisesse. Mas calou-se. E vinha alimentando aquele silêncio há tanto tempo, que agora, bem nutrido, havia tomado uma proporção incômoda. Precisava livrar-se dele, havia decidido.
Então quebrou aquele cofre, onde vinha economizando dinheiro para o mochilão que já não sabia se fariam e comprou um colar com pingentes personalizados. Diria que era um presente pela finalização de seu curso, mas era apenas o pontapé inicial de um discurso que havia ensaiado – preferia chamar de discurso, porque declaração parecia muito audacioso.
Diria como estava se sentindo. Ou pelo menos uma parte. Quem sabe usar algumas metáforas. Talvez arriscasse enfiar seus sentimentos todos num pedido singelo: “quer jantar comigo?”. Embora “podíamos sair e beber alguma coisa qualquer dia desses” combinasse mais com a relação que tinham, ainda estava decidindo o que soava melhor.
Estava calor e as mãos úmidas de escorregavam pelo volante do carro da mãe. Ela não estava tagarelando como de costume, distraída ao tentar fechar a pulseira que usava em ocasiões especiais – era sempre Robert quem lidava com o fecho, mas não naquele dia, ou nos últimos meses. pensou que ela poderia ter pedido a ele, mas entendia porque não o havia feito. Vinha substituindo o pai em algumas tarefas, mas havia espaços onde ele nunca caberia.
Ao seu lado, no banco do passageiro, Robert respirava com preguiça e pouco se manifestava. Seu silêncio havia se tornado familiar depois do AVC, falar fazia-se cansativo. Às vezes irritante. E agora, mesmo que depois de todos os exercícios intensivos as palavras voltassem a soar como palavras, ele parecia acostumado a guardá-las pra si.
saltou do carro e ajudou Stella na tarefa usual que havia se tornado o montar e desmontar da cadeira de rodas. Robert já se considerava preparado para começar o uso do andador, seu fisioterapeuta ainda preocupava-se com seu equilíbrio.
Disse a que conseguia descer do carro sozinho e acomodar-se na cadeira, só precisava apoiar o peso do corpo na perna saudável, mas o rapaz ignorou como costumava fazer. Pegá-lo no colo foi ficando mais fácil, achava. Não sabia se pela clara perda de peso devido à dificuldade de deglutição que ele sofria desde o acidente, ou se pelo costume.
A temperatura muito alta daquela tarde os fazia questionar se ainda estavam na Inglaterra, ou se de repente o salão de festas ficava em um mundo paralelo – em algum lugar muito próximo do inferno talvez. E em meio à toda aquela claridade incomum, os olhos semiabertos de a reconheceram. Do outro lado do jardim que atravessavam, no topo de uma escada de quatro degraus, apoiada na balaustrada e entretida com coisa alguma.
só os percebeu quando Stella soltou um elogio melódico sobre sua aparência. Ela ergueu os olhos e começou a sorrir. Não sabia lidar com elogios. E com o ar zombeteiro de sempre, girou no lugar, exibindo o vestido longo e floral.
– Desculpe o atraso, ... – Stella pediu, beijando o rosto corado da moça. – Você conhece o amigo que tem...
– Ei! – Ele reclamou, empurrando o pai pela rampa na lateral do salão.
– Tudo bem, Robert? – perguntou, inclinando-se para beijar o rosto do homem.
– Tudo bem... – Ele respondeu, lenta e cuidadosamente. – Você está linda. – Arriscou, riu com as mãos na cintura.
– Muito obrigada! Vocês é que estão incríveis! – E lançando um sorriso divertido a , voltou-se para Stella. – Se quiserem ir entrando, eu e o cara elegante ali precisamos esperar por aqui...
– Ah, claro! – A mulher respondeu, com um rastro de malícia que e fingiram não perceber. – Vamos, Rob... Nos vemos mais tarde, crianças.
– Então ele decidiu vir? – perguntou, encostando-se na cerca de madeira que margeava a varanda do salão.
– Sim... Não insistimos mais, minha mãe disse que eu não deveria falar mais nada sobre isso e no fim ele pediu pra eu levá-lo no alfaiate no meio da semana... – foi rapidamente sugado para dentro do sorriso de , tão bonito e caloroso.
– Que bom que ele está mais à vontade... Fico feliz! – respondeu com um sorriso contido.
– E então, o que precisamos fazer? – Ele quis saber, e soltou uma risadinha antes de continuar.
– Além de passar vergonha? – deixou escapar um riso fácil e parou de respirar no minuto em que colocou as mãos em sua gravata, parada em frente à ele, mais perto do que ele considerava saudável. – Vamos entrar no salão antes da minha mãe, temos que assistir à cerimônia ao lado deles e assinar uns papéis...
– Que responsabilidade... – O rapaz comentou, distraído. Seus olhos passeando pelo rosto concentrado de , desejando que pudesse simplesmente tracejá-lo com beijos, sem que isso parecesse estranho ou incabível.
– Parece até que temos mais de 20 anos... Oh, é! Nós temos... – acompanhou sua risada, como se fosse automático. Não sabia se algum dia a felicidade de um estaria dissociada da felicidade do outro.
– Gostei do vestido... – Era sua tentativa confusa de dizer o quanto ela estava linda. – Você parece a personificação da primavera com ele... – cedeu um riso, confuso e divertido ao mesmo tempo.
– E isso é bom?
– É a estação mais bonita do ano...
Foi como se todas aquelas borboletas mantidas em cativeiro dentro do coração de ambos, de repente, estivessem livres. Tomando conta de cada pequeno espaço, batendo suas asas agitadas, procurando a saída, borboletando mundo afora.
desejou dizer qualquer coisa. Um "obrigada” que fosse.
E desejou que ela dissesse qualquer coisa. Um “não seja idiota” que fosse.
Ambos queriam romper o silêncio, porque já não era o mesmo silêncio que compartilhavam quando se deitavam na traseira da Lizzy para observar o céu – sem nunca estarem, de fato, pensando sobre as estrelas ou o universo.
O novo silêncio era assustadoramente tagarela e estava o tempo todo tentando dizer coisas que eles não se julgavam preparados para ouvir, ou compartilhar um com o outro.
, retornando do êxtase como quem emerge depois de muito tempo imerso, arfou, com o fôlego escasso. Levou a mão em seu bolso, dessa vez não em busca dos cigarros, mas do colar. Seu coração, prevendo o que estava por vir, disparou.
– ? – Era Allan, na porta do salão, o olhar curioso se tornando preocupado. – Desculpa interromper vocês... Mas sua mãe chegou, vocês precisam entrar.
– Ah, certo... – A moça concordou, apressada e ansiosa. – Já estamos indo...
– Ok! – Allan sorriu para os dois, depois desapareceu salão adentro.
– Vamos lá? – disparou, os olhos varrendo apressadamente o rosto de , sem conseguir encará-lo.
– , espera... – Depois dos anos postergando aquele momento, havia pressa. tinha a impressão de que, se deixasse passar aquela oportunidade, poderia cair em si a qualquer instante e então desistir. Decidir, talvez, que poderia esperar um pouco mais, mesmo tão próximo de abandonar a espera pra trás.
– Não podemos atrasar a cerimônia... – argumentou, mas ela e sabiam que era nada mais que um pretexto inventado para escapar do que quer que ele tivesse a dizer.
– Posso só... Comprei uma coisa pra você... – Com os olhos menos inquietos, observou o rosto otimista do amigo, se perguntando se ele poderia ouvir seu coração acidentalmente eufórico. – Não é nada demais... – Adiantou aflito, alcançando o presente dentro do bolso de sua calça. Enquanto o assistia tentar abrir a caixa com a ponta dos dedos trêmulos, sentiu como se tivesse bebido uma garrafa inteira de amor misturado com agonia, não sabia qual era o gosto predominante, mas os dois juntos a embriagaram muito rapidamente.
– ... – Sussurrou quando seus olhos se encontraram, pela primeira vez, com o colar. E como todo primeiro encontro, aquele foi inesquecível. – Ele é... Tão lindo.
– Acho que combina com você... – Disparou, antes que a frase fugisse, acovardada pelo momento.
– Muito obrigada! – A voz dela soou menos trêmula, mas ainda emocionada.
– De nada... – respirou fundo, mas não teve sucesso em sua tentativa de recobrar um pouco de serenidade. Se perguntou, durante um longo tempo de sua vida qual era a expressão que fazia enquanto observava retirar o próprio colar do pescoço.
– Me ajude a colocar!
Pediu, enquanto dava suas costas a ele. Pareceu tão mais fácil para ambos não terem que se encarar.
fechou os olhos e aguardou com o coração vacilante. E havia essa balada romântica dos anos 80 tocando dentro do salão, que a fez ceder um riso discreto, pensando em todos os filmes de romance que evitara assistir. Aquele clichê seria seu favorito.
E , daquele jeito meio tolo de quem está apaixonado até o pescoço, achava tudo nela gracioso, até a maneira como aquelas mechas de seu cabelo escapuliram do coque mal feito e aquela pinta que ninguém nunca deveria ter reparado, porque ficava escondida por entre os cabelos recém-nascidos em sua nuca.
Explicitamente arrebatado, precisou de tempo até conseguir parar de tremer e abrir o fecho do colar. Pensou que a música lá dentro ia acabar, ou a qualquer momento Allan apareceria para apressá-los outra vez, talvez Martha aparecesse, irritada com o atraso que deveria ser da noiva. Era sua euforia deixando o momento passar.
Mas nada disso aconteceu, porque ainda que , e talvez , estivesse preso num slow motion sem fim, levou apenas um minuto ou menos pra que ele conseguisse prender o colar ao redor do pescoço dela. E tal como aquela pinta que nem mesmo conhecia e como aquela tatuagem de ponto-vírgula que haviam feito numa noite de bebedeira, ou como seus olhos, boca, nariz, as sardas que de tão claras quase passavam desapercebidas. Assim como , em seu coração...
Aquele colar, agora, também fazia parte dela. E era como se sempre estivesse estado ali.
– Precisamos ir...
– Precisamos...
Precisavam.
Então ofereceu seu braço pra que ela enroscasse o dela, num movimento tão familiar que agora parecia automático. Adentraram e caminharam num ritmo tranquilo, sem pressa. Se entreolharam e a declaração de amor que não disseram em voz alta, estava ali, no sorriso de ambos.
Martha fez sua entrada logo depois e, apesar de não estar usando um vestido de noiva, era a noiva mais noiva que alguém já tinha visto. Com aquele amor em seus olhos. E em seu sorriso. E em seu caminhar confiante. , pela primeira vez em anos, estava feliz que Lucian tivesse partido. Se ele não tivesse ido, talvez nunca houvesse espaço para Allan... Mas agora havia e poucas coisas pareciam fazer tanto sentido quanto Allan e Martha.
A cerimônia levou tempo suficiente para ser emocionante, mas não cansativa.
No jardim, sob uma grande tenda estavam as mesas e cadeiras. Haviam flores lindas, mas nunca tão lindas quanto a atmosfera que foi criada quando todos se reuniram para os cumprimentos e brindes.
– Muito obrigada, meninos... – Martha disse, um braço ao redor de , outro ao redor de .
– Mãe, por favor... – Reclamou a moça, que não lidava muito bem com a emoção.
– Eu que agradeço o convite! – declarou, enfiando as mãos no bolso da calça.
– Não consegui pensar em ninguém além de vocês. – Confidenciou a mulher, com o sorriso carinhoso que já havia se tornado familiar para . – Ah, já te contou que está namorando? – O tom dela não era o que podia-se esperar daquela notícia. Não era encantado ou entusiasmado, não era sequer positivo. Soou como se reprovasse o que dizia, como se pedisse a : “dê uma bronca nela”. Ele faria com prazer, caso conseguisse ao menos respirar naquele momento.
– Mãe! – queixou-se, fugindo do olhar inerte de .
– Não contou ainda? – Ninguém respondeu. – Ah... Desculpa, achei que... Ele é seu melhor amigo, caramba.
– Pois é... – disparou e seus olhos, antes cravados no rosto de , fugiram pelos arredores. – Depois precisamos falar sobre isso, mocinha... – Um bom humor claramente forçado, um sorriso dolorido. – Eu vou... Ver, meu pai... Se ele está precisando de alguma coisa.
– Mãe... – soltou, logo que se afastou. Seu tom nervoso e cansado. – Você precisava ter feito isso?
– Como eu poderia saber que você não tinha contado à ele? Aliás, por que não contou? – Mas não havia chegado a conclusão nenhuma, então não soube o que responder. – Você não deveria fazer isso com ele...
– Fazer o quê? – não queria soar tão irritada, mas pouco conseguia controlar.
– Ficar “cozinhando” o cara dessa maneira... – Martha sabia do protesto por vir, então acrescentou rapidamente, enquanto tinha tempo: – Se não pretende ter qualquer relação com ele, que não seja amizade... Seja honesta, , deixe que ele saia da friendzone.
– Não existe friendzone nenhuma, Martha... – queixou-se, o argumento da mãe foi uma gargalhada exagerada, mas verdadeira. – Você deve estar infectada com o vírus casamenteiro e fica vendo corações por toda parte...
– Talvez eu esteja... – Anuiu Martha, organizando uma mecha do cabelo da filha que havia se soltado com o vento. – Mas talvez eu esteja certa e esse seja o motivo pelo qual, mesmo estando com Tom desde o último sábado, ele não tenha sido citado para quem você diz ser seu melhor amigo.
observou a si mesmo no espelho e havia essa imaginação cômica de balões em formato de coração estourando ao seu redor, todos de uma só vez. Quase podia ouvir o “pop!” que faziam ao entrar em contato com a unha afiada da novidade. tinha um namorado.
Gostaria de odiá-la por um minuto. Ou culpar o cara por ter aparecido. Mas , justo que era, apropriou-se da responsabilidade. Se estava onde estava – escondido naquele banheiro, com medo de esbarrar no sorriso comprometido de – era por ter se acovardado frente a cada uma das chances de aproximação que teve ao longo dos últimos 11 anos. Adiando e adiando um pouco mais, agarrado à ideia de que ela não iria a lugar nenhum.
Sentia que nunca havia estado ali, naquela condição. Nem quando deu o primeiro beijo, em 2002. Ou quando ela foi para Leeds, em 2005. Mesmo quando ela transou pela primeira vez, em 2007 e ele desligou o telefone o mais rápido que pode, sentindo que poderia morrer de ciúmes.
No ano anterior, 2008, depois de sua formatura, revelou que ficaria um ano a mais em Leeds, para uma especialização que ele aprovou, porque ela estava entusiasmada. E começou aquela contagem regressiva, mês por mês preparando-se para seu retorno. Sheffield voltaria a fazer sentido. E não podia negar, todas as outras coisas também.
E então surgiu aquela decisão, ainda a ser elaborada e aperfeiçoada: abriria o jogo. Tentou se convencer de que seria simples. Seria como se aproximar das garotas em festas, testaria alguns assuntos até encontrar um em comum, depois a elogiaria e daria a entender o que esperava do fim da noite. A diferença é que nunca se aproximava de garotas em festas, na grande maioria das vezes. Se elas não arriscassem se acercar, passaria a noite bêbado e sozinho.
E mesmo que fosse algo habitual, nenhuma delas era .
Já sabia quais assuntos tinham em comum. Todos.
E ela preferia entrar em combustão a ser elogiada.
Ela compreenderia o que ele esperava do fim da noite, mesmo que ele não desse a entender. Parecia positivo, mas ele não tinha certeza de que era.
Nunca seria simples, concluiu, enquanto fosse .
E naquela noite, depois daquela notícia que por algum motivo não deu, soube que tampouco seria complicado.
Apenas não seria mais.
– Aí está você! – disparou ao encontrá-lo, sentado na varanda do salão, do outro lado e bem distante da tenda. – Tentei colocar um cigarro no meu sutiã, mas ele está todo amassado... Será que você me arranja um? – E não havia tanto humor no riso sem graça de .
– Não sei porque você ainda inventa essas desculpas... Eu sustento seu vício desde sempre...
– Grande mentira... – protestou, sentando-se ao lado dele no último dos quatro degraus da escada. – O que está fazendo aqui? Não consigo mais te defender quando dizem que você é antissocial, meu amigo.
– Estou fumando...
– Escondido? Se fosse algo orgânico eu acreditaria, depois da surra que a minha mãe nos deu... – Os dois gargalharam, soprando pra longe uma parte da tensão que os rodeava.
– Por que não me disse? – Ele deixou escapar, a boca dentro do copo de whisky, como se quisesse disfarçar seu interesse. não precisava que ele fosse mais específico. Ou que dissesse a verdade sobre estar ali, isolado. Ela bem sabia.
– Não é importante... – Foi como se uma chama surgisse timidamente no coração de , ele gostaria de soprá-la de mansinho e fazê-la vingar, mas tratou de apagá-la com um pouco de saliva.
– Parece importante. – Argumentou e deu outro gole em seu whisky, tentando fazer descer aquela ansiedade presa em sua garganta.
– Ele fez a proposta na frente de alguns amigos, eu achei que era uma brincadeira... – confidenciou, revivendo o momento com menos alegria do que deveria. – Eu disse que sim, porque parecia indelicado dizer que não, mas não achei que fosse sério...
– Era sério...
– Era... – Os lábios dela se curvando num sorriso que não sabia se era irônico ou divertido.
– Eu conheço?
– Talvez já tenham se trombado em alguma festa em Leeds... – contou e esticou-se para alcançar o copo dele, com a liberdade de sempre. – O nome dele é Tom.
– Ele é legal?
– Ele me trata bem... – comentou, devolvendo o whisky a . Ele sentiu-se grato, precisaria de whisky caso ela decidisse traçar um perfil de Tom. – É um pouquinho presunçoso...
– Do tipo “leio um livro por semana”?
– Hm... – E negou brevemente com a cabeça. – Do tipo “Rockabilly com gel no cabelo”.
Capítulo 10
15 de Julho de 2016 – Los Angeles, Califórnia, USA
Não havia um porteiro para recebê-los. Tampouco havia um elevador funcionando, então subiram pelas escadas os quatro únicos andares do edifício. Cada piso se dividia entre dois apartamentos médios – dois quartos, dois banheiros, a sala compartilhava seu espaço com uma pequena cozinha. No apartamento de , em específico, tudo estava fora do lugar, empilhado, coberto de lonas, cheirando à poeira e tinta, mas sentiu-se em casa pela primeira vez desde que colocara seus pés em Los Angeles.
O banheiro social havia sido transformado num laboratório de revelação – teve qualquer possível iluminação isolada por uma cortina blackout; a lâmpada comum foi substituída por uma incandescente fraca e a luminária que ele colocou sobre a bancada era a mesma que ele e usavam em sua casa, anos atrás.
– Uau, você tem uma estufa agora... – disparou, parada em frente à novidade. Um riso frouxo escapou de , enquanto ele tomava o cuidado de vedar as frestas da porta com uma silver tape. – E um tanque para o espiral... – Antes mesmo de continuar a provocação, sua voz se perdeu numa risada. – Oh, não... Esse você roubou na Hallan...
– Engraçadinha! – reclamou, divertido. – Eles tinham muitos, eu usava uma lata de molho de tomate da Heinz... – O banheiro fez com que suas gargalhadas ecoassem de um jeito agradável.
– Não seja mal agradecido, eu gastei uma lata de spray e uma tarde inteira pintando ela de preto...
– Bom, está bem aqui... – acrescentou antes que concluísse seu protesto, alcançando a lata que usara como tanque de revelação por anos e que agora servia como porta-qualquer-coisa.
– Não acredito! – disparou e suas bochechas coradas denunciaram a satisfação. – Por que você guarda isso?
– Olhar pra ela me deixa feliz...
Como num ritual familiar, colocou música para tocar – anos atrás usava um rádio, agora uma pequena caixa de som em formato de jukebox com entrada para pen drive. Atribuiu à a tarefa de verificar a temperatura do químico revelador dentro do pequeno tanque cilíndrico enquanto rebobinava o filme em sua câmera, antes de vestir suas luvas de borracha para tirá-lo de lá.
sentou-se no chão e não precisava calcular o espaço que tinha antes de apagar a luz, conhecia o suficiente do ambiente para conseguir se virar no completo escuro. Com as luzes apagadas, verificou se não havia qualquer iluminação esgueirando-se sorrateira para dentro do banheiro. Deu três passos e se sentou, exatamente ao lado de .
The Smiths tocava na pequena caixa de som. Cemetry Gates. ouvia cantarolar daquele jeito distraído – mais alto e muito mais encantador do que ela poderia imaginar. Ela, por sua vez, podia ouvi-lo manusear o que tinha em mãos, agitando cuidadosamente o tanque. E ainda que nunca tivesse visto realizar aquela parte da revelação, devido à falta de iluminação, conseguira construir uma imagem nítida, e particularmente muito bonita, de como seria se pudesse enxergá-lo.
No escuro, era 2005 outra vez.
– Pode acender a luminária, se quiser... – informou, entre uma música e outra. não respondeu, tampouco considerou a iluminação avermelhada.
– E então, quer me explicar esse convite? – Questionou, gostando de como parecia mais fácil conversar sobre qualquer coisa sem vê-lo ou ser vista por ele.
– Não tive uma despedida de solteiro... – respondeu imediatamente e ela soube que ele estava sendo honesto.
– Sério? Que tipo de padrinhos você arrumou?
– Eu meio que não arrumei – Suas palavras, carregadas de ironia, provocaram riso em . – São os namorados das madrinhas... E, bem, não é como se fôssemos amigos.
– Ah, sério? – a empurrou, num protesto silencioso, ao identificar o sarcasmo em seu tom de voz. – Minha mãe dizia que você era um cara de “poucos amigos” ... Ela estava errada, você está mais para um cara de “amigo nenhum” – Os dois gargalharam, porque nenhum deles se importava com a solidão.
– Eu tentei, está bem? Madson vive organizando jantares em casal e eu já até fui pra um pub só com eles... Um happy hour que de happy não teve nada... – E riu, achando graça na risada espremida de . – No fim, eu estou bem satisfeito que eles não tenham planejado uma despedida de solteiro pra mim, talvez eu desistisse de me casar.
– Você é uma péssima pessoa, ... – Ela brincou, e ele já havia perdido a conta de quantas vezes ouvira aquelas palavras na voz de . – Mas eu topo ser seu padrinho.
– Hm... Na verdade, eu estava pensando que você poderia ser a stripper... – concentrou-se demais em afastar a imagem obscena que irrompeu em sua mente, acabou se esquecendo de rir.
– Com ou sem lap dance?
Parecia estranho, mas ao invés de perversidades, pensou que estava partindo em pouco menos de 48 horas.
Já havia vivenciado aquela ansiedade antes, quando ela vinha de Leeds para os fins de semana. Toda sexta-feira, quando colocava seus olhos nela pela primeira vez, era atravessado pelo mesmo pensamento de que tinham apenas quarenta e oito horas e vinte e cinco minutos – ou quarenta e duas horas e trinta minutos, caso ela pegasse o trem da 13h. Desconsiderava em suas contas o tempo que, dentro daquelas horas, não passava ao seu lado. Saber que ela estava em Sheffield – e que bastava percorrer alguns quilômetros quando quisesse vê-la – era o suficiente para que se sentisse em sua presença.
E naquele momento, em que ela tagarelava sobre o livro novo do seu autor favorito, lembrou-se da angústia que era não tê-la por perto. E lembrou-se, também, que logo não teria. Quis, pela primeira vez em anos, voltar para Sheffield e odiou-se por estar permitindo que desmantelasse tão facilmente a muralha que ele havia construído ao seu redor para se proteger do que sentia por ela – talvez não fossem muros tão altos e resistentes afinal. Ou talvez tenha esquecido de colocar o sentimento pra fora antes de fechar os portões e vivera preso com ele aquele tempo todo sem se dar conta.
Madson tinha razão. Nunca poderia estar por inteiro naquele relacionamento, ou no altar que fosse. Muito antes disso havia lhe roubado uns bons ¾.
E ele teve medo de pertencer à ela mais do que pertencia à Madson.
Teve medo de pertencer à ela muito mais do que pertencia a si mesmo.
– Você já se perguntou como seria se você tivesse vindo?
28 de Maio de 2010 – Sheffield, South Yorkshire, UK
Stella acordou um pouco, depois um pouco mais, retomando lentamente a consciência. Perguntou-se, enquanto observava a escuridão de seu quarto, se o som da campainha havia sido real ou se fazia parte de um sonho. Suas noites mal dormidas, de raras passaram a uma frequência cansativa. Não se espantava quando acordava com o trivial som de um carro passando pela rua, ou o tiquetaquear do relógio do corredor. Era como se nunca chegasse a sair da fase de vigília e o sono profundo do estágio quatro fosse nada mais que uma utopia.
Quando a campainha preencheu todos os cômodos outra vez, seus olhos correram até a mesa de cabeceira, onde ficava o relógio digital. Ele marcava 01:20. Seu coração vacilou, preocupado com a visita inesperada. Poderia ser qualquer um, trazendo qualquer notícia e tinha essa impressão angustiante de que não poderia ser algo positivo.
Era . Roupas encharcadas de chuva. Olhos encharcados de lágrimas.
– , o que houve? – Stella não esperou que ela se manifestasse, apenas a tomou pelo braço, puxando-a para dentro de casa. – Você está ensopada!
– O está? – Disparou e embora seus lábios e queixos tremessem de frio e ansiedade, sua voz não titubeou.
– Sim, deve estar no quarto...
– Posso subir?
– Você está bem, ? – A moça apenas chacoalhou a cabeça positivamente, sabendo que Stella não acreditaria, tampouco não insistiria. – Ok.
Dangerous Animals soava pelo headphone. Tão alto que sentia como se fizesse parte da música. Seu corpo vibrava e ele imaginava que era um dos acordes, uma das cordas da guitarra, de repente estava escondido dentro do bumbo da bateria. Desfazendo-se em pura melodia.
Não pensava em nada e gostava da sensação de não haver nada em mente a não ser por aquelas linhas coloridas que se entrelaçavam harmoniosamente no ritmo da música. Mas de repente, mesmo por trás de suas pálpebras, ficou claro. E depois disso, foi uma questão de tempo até não haver mais música.
– Quando você ia me contar?
tentou organizar as palavras em sua cabeça, mas elas corriam muito depressa.
assistiu enquanto ele se sentava lentamente, apreensivo e confuso. Tentou lidar com as ambivalências que ele costumava provocar. Queria jogar alguma coisa em seu rosto, gritar ofensas que o fizessem chorar e depois abraçá-lo tão forte e tão perto, até que não restasse uma só parte de seus corpos que não estivesse em contato.
– Você está molhada... – Ele comentou, enrolando as pernas em posição de índio.
– E você está chapado, que ótimo! – arqueou um pouco as sobrancelhas e controlou a repentina vontade de rir, disfarçando com uma tosse.
– Por que está brava? – Perguntou, tentando se lembrar de quanto tempo fazia que não se viam pessoalmente. – Quando chegou?
– ... – Ele não gostou de seu tom e de como seus olhos estavam cravados nele. Ele quase podia sentir fisicamente. – É verdade?
– Do que está falando, ?
– Estou falando sobre você ir embora para os Estados Unidos em duas semanas e não ter me dito absolutamente nada! – Ela disparou, tão rápido que ele quase não conseguiu acompanhar. Tão agressiva que um soco teria sido menos doloroso.
– Três semanas... – Ele esclareceu. Não pareceu fazer diferença para , ele notou através de sua carranca. – Eu ia te contar.
– Ia, ? – Ele concordou com a cabeça, ignorando a ironia em seu tom de voz. – Quando?
– Logo... – Foi tudo o que ele conseguiu pensar. – Você estava em Leeds.
– Estive lá quatro dias, então a menos que você tenha decidido isso no último fim de semana, eu não vou engolir essa desculpa... – se levantou, percorrendo o espaço que havia entre eles.
– Quando foi a última vez que nos vimos? – Era uma pergunta séria percebeu. Ela abriu a boca, porque tinha a impressão de que a resposta deveria estar na ponta da língua, mas de repente não estava. – Não achei que coubesse te ligar, um mês sem te ver e dizer “hey, , estou indo embora”.
– Achei que não houvesse essa coisa de caber ou não entre nós... – Sua voz soou embargada e sabia que ela começaria a chorar a qualquer momento porque não conseguia evitar.
– Eu também achei, ... – E talvez o fato de estar indo embora tivesse despertado em um lado destemido. E talvez por isso ele tenha tocado seus cabelos daquela forma, que não era só amigável e os dois sabiam.
– Por que você está indo? – Ela sussurrou, como se dizer em voz alta fosse doer mais. E doeria.
– Porque preciso... – E os dedos dele ainda passeavam por seus cabelos molhados, como se chegar ali fosse uma conquista tão grande que não pudessem, simplesmente, abrir mão. – Meu pai tem essa pequena empresa lá, antes ele ia e voltava todo mês, você se lembra? Bem... O funcionário que tomava conta precisou se mudar... Ele ia enviar alguém, eu... Me disponibilizei.
– Você nem gosta da América... – lembrou e havia muita esperança naquele comentário, como se pudesse fazê-lo repensar. queria indicar o caminho que ela deveria seguir para fazê-lo desistir. Era a única que poderia.
– É só por um tempo, até treinarmos algum outro funcionário para ficar no meu lugar... – Ele sabia que os planos não eram exatamente esses, mas gostaria que fossem.
– Isso vai soar muito humilhante, mas... , e eu? – , que não lidava bem com rendições, sentiu-se exposta e vulnerável. – O que eu vou fazer? Uma vida inteira do seu lado não me deixou muitas perspectivas de como seria se você decidisse ir embora para o outro lado da merda do mundo! – sorriu com tristeza e segurou uma lágrima dela com seu polegar.
– Você não precisa descobrir... – não respondeu. Pouco havia entendido. se afastou e levou todo o calor consigo para o outro lado do quarto. Voltou com um agasalho em mãos. – É melhor você tirar sua roupa molhada, eu te espero no corredor.
vestiu o agasalho de e chorou baixinho sentada na beirada de sua cama, porque não conseguia se livrar da sensação de que aquela era uma despedida. Depois se levantou e, como ele havia garantido, esperou por ela no corredor. Ela lembrou-se de todas as noites que ficava muito tarde para ir pra casa e Stella a convidava para dormir. O agasalho que vestia naquele momento era mais seu do que de .
Ele estendeu a mão, fria e suada como todas as vezes que ele ficava nervoso. aceitou e pensou, enquanto desciam as escadarias, que segurar a mão dele não deveria ser mais agradável que segurar a de Tom. E ter as mãos dele em seu cabelo não deveria deixá-la mais ansiosa do que ter as de Tom embaixo de seu vestido. Mas agora era tarde demais e dessa vez era mesmo tarde demais, como nenhuma outra vez havia sido antes.
Seu tempo definitivamente havia se esgotado e não sabia se havia tomado as melhores decisões até ali. Temeu que, pelo contrário, tivesse tomado somente as piores.
O lavabo, que haviam transformado em um laboratório de revelação anos atrás, era pequeno. Naquela noite ele pareceu claustrofóbico.
vedou a porta, ligou a luminária e o rádio, que nunca havia girado outro CD que não fosse aquela velha coletânea de Rock Alternativo. não se moveu, porque se havia a possibilidade de não vê-lo por um bom tempo, não queria tirar seus olhos dele por um segundo que fosse.
– Eu tenho alguns filmes revelados... – comentou e não entendeu que motivo teria para sua voz trepidar daquela maneira. – Você pode me ajudar a passar para o papel fotográfico? – Ela observou seu rosto, avermelhado por conta da lâmpada e soube que aquela imagem viveria no melhor dos cômodos de sua memória, junto com tantas outras que tinha dele.
– Posso...
havia guardado os fotogramas em diferentes pacotes plásticos, estavam enumerados, organizados em uma fileira sobre a bancada onde ficava o ampliador. Estavam esperando por , mesmo que não soubessem quando de fato ela estaria por ali.
Bem baixinho, praguejou a si mesmo, tremendo tanto ficava difícil manusear o fotograma e deixá-lo na posição correta dentro da gaveta do ampliador. Não queria botar tudo a perder caso as imagens ficassem desfocadas no papel fotográfico.
Bem, era só mais um dos riscos que estava correndo.
, responsável por preparar os químicos e conferir a temperatura de cada um deles, observou enquanto colocava o papel fotográfico na mesa do ampliador, acionando a luz e mantendo tempo o suficiente para que ela fizesse a revelação. fazia parecer tão fácil e tão apaixonante, que era difícil não se sentir minimamente deslumbrada enquanto o assistia.
Ele trouxe o primeiro papel entre as pontas de uma longa pinça, soltando-o dentro da banheira do químico revelador. implicou-se em sua tarefa, movendo delicadamente o líquido, suas ondas suaves lambendo a fotografia, que pouco a pouco começava a tomar forma.
Em menos de um minuto ela reconheceu a si mesma na imagem em preto e branco. Ela não se lembrava do momento em que havia sido capturada, mas sabia ter sido em algumas de suas visitas ao observatório. Estava claramente embriagada, com um sorriso tão grande quanto a flor presa em sua orelha.
Apreensivo, tentou observá-la e identificar sua expressão, mas não havia nada além de uma demasiada atenção no que fazia – passando a fotografia pelo ácido asséptico, depois deixando-a dentro da terceira banheira, no fixador. Ele levou o segundo papel fotográfico e cedeu um sorriso nervoso quando os olhos dela esbarraram nos seus.
A segunda foto também era uma imagem de . Tal como a terceira, a quarta e todas as outras que, pouco mais tarde, preenchiam a banheira de água corrente. E o coração dela, que acelerava um pouco mais a cada foto sua, agora sapateava com tanta pressa que ela sentiu-se zonza. Não sabia explicar como, mas havia tanto amor em cada uma daquelas fotografias que era difícil não se entupir dele.
deixou o último papel fotográfico no químico revelador, e enquanto movia a banheira com cuidado, ele encostou seu ombro no dela e foi como se dissesse “ainda estou aqui”. Quando na realidade, o que ele de fato queria dizer estava sendo impresso naquele exato momento.
A imagem foi tomando forma aos poucos, a caligrafia torta e expressiva de desenhando o papel fotográfico. O coração de ambos compartilhando a aflição da espera, da expectativa e daquele sentimento que eles não gostavam de chamar de amor, porque isso os deixava assustados.
“Vem comigo?”, formavam as letras pressionadas naquele guardanapo de papel que havia fotografado. Ela quase podia ouvi-lo ler o convite em voz alta, mas não foi o que ele disse quando finalmente se manifestou – com seu corpo parcialmente escondido atrás do dela, a bochecha apoiada no topo de sua cabeça e a voz melancólica de sempre.
– Você não precisa responder agora... – Propôs e sentiu o corpo de pulsar num soluço contido. – Você tem as próximas semanas para pensar e se organizar...
– Como isso poderia funcionar, ? – Ela sussurrou, sua voz desafinando com a tentativa de não chorar.
– Não se preocupe com nada, poopface... Se decidir ir, consigo suas passagens, temos onde ficar e eu vou receber dinheiro suficiente pra nós dois até você encontrar algo que queira fazer e você pode fazer o que quiser... – Ela negou com a cabeça, cedendo um suspiro choroso. – É só me dar um sinal.
E esperou.
Pelos próximos dias.
Pelas próximas semanas.
Esperou no dia anterior à viagem.
Manhã, tarde e noite.
Noite em claro, porque não queria correr o risco de estar dormindo caso ela decidisse dar uma resposta.
Esperou até a última chamada para o voo.
Mas precisou embarcar, sem qualquer sinal ou abraço de despedida.
Não havia um porteiro para recebê-los. Tampouco havia um elevador funcionando, então subiram pelas escadas os quatro únicos andares do edifício. Cada piso se dividia entre dois apartamentos médios – dois quartos, dois banheiros, a sala compartilhava seu espaço com uma pequena cozinha. No apartamento de , em específico, tudo estava fora do lugar, empilhado, coberto de lonas, cheirando à poeira e tinta, mas sentiu-se em casa pela primeira vez desde que colocara seus pés em Los Angeles.
O banheiro social havia sido transformado num laboratório de revelação – teve qualquer possível iluminação isolada por uma cortina blackout; a lâmpada comum foi substituída por uma incandescente fraca e a luminária que ele colocou sobre a bancada era a mesma que ele e usavam em sua casa, anos atrás.
– Uau, você tem uma estufa agora... – disparou, parada em frente à novidade. Um riso frouxo escapou de , enquanto ele tomava o cuidado de vedar as frestas da porta com uma silver tape. – E um tanque para o espiral... – Antes mesmo de continuar a provocação, sua voz se perdeu numa risada. – Oh, não... Esse você roubou na Hallan...
– Engraçadinha! – reclamou, divertido. – Eles tinham muitos, eu usava uma lata de molho de tomate da Heinz... – O banheiro fez com que suas gargalhadas ecoassem de um jeito agradável.
– Não seja mal agradecido, eu gastei uma lata de spray e uma tarde inteira pintando ela de preto...
– Bom, está bem aqui... – acrescentou antes que concluísse seu protesto, alcançando a lata que usara como tanque de revelação por anos e que agora servia como porta-qualquer-coisa.
– Não acredito! – disparou e suas bochechas coradas denunciaram a satisfação. – Por que você guarda isso?
– Olhar pra ela me deixa feliz...
Como num ritual familiar, colocou música para tocar – anos atrás usava um rádio, agora uma pequena caixa de som em formato de jukebox com entrada para pen drive. Atribuiu à a tarefa de verificar a temperatura do químico revelador dentro do pequeno tanque cilíndrico enquanto rebobinava o filme em sua câmera, antes de vestir suas luvas de borracha para tirá-lo de lá.
sentou-se no chão e não precisava calcular o espaço que tinha antes de apagar a luz, conhecia o suficiente do ambiente para conseguir se virar no completo escuro. Com as luzes apagadas, verificou se não havia qualquer iluminação esgueirando-se sorrateira para dentro do banheiro. Deu três passos e se sentou, exatamente ao lado de .
The Smiths tocava na pequena caixa de som. Cemetry Gates. ouvia cantarolar daquele jeito distraído – mais alto e muito mais encantador do que ela poderia imaginar. Ela, por sua vez, podia ouvi-lo manusear o que tinha em mãos, agitando cuidadosamente o tanque. E ainda que nunca tivesse visto realizar aquela parte da revelação, devido à falta de iluminação, conseguira construir uma imagem nítida, e particularmente muito bonita, de como seria se pudesse enxergá-lo.
No escuro, era 2005 outra vez.
– Pode acender a luminária, se quiser... – informou, entre uma música e outra. não respondeu, tampouco considerou a iluminação avermelhada.
– E então, quer me explicar esse convite? – Questionou, gostando de como parecia mais fácil conversar sobre qualquer coisa sem vê-lo ou ser vista por ele.
– Não tive uma despedida de solteiro... – respondeu imediatamente e ela soube que ele estava sendo honesto.
– Sério? Que tipo de padrinhos você arrumou?
– Eu meio que não arrumei – Suas palavras, carregadas de ironia, provocaram riso em . – São os namorados das madrinhas... E, bem, não é como se fôssemos amigos.
– Ah, sério? – a empurrou, num protesto silencioso, ao identificar o sarcasmo em seu tom de voz. – Minha mãe dizia que você era um cara de “poucos amigos” ... Ela estava errada, você está mais para um cara de “amigo nenhum” – Os dois gargalharam, porque nenhum deles se importava com a solidão.
– Eu tentei, está bem? Madson vive organizando jantares em casal e eu já até fui pra um pub só com eles... Um happy hour que de happy não teve nada... – E riu, achando graça na risada espremida de . – No fim, eu estou bem satisfeito que eles não tenham planejado uma despedida de solteiro pra mim, talvez eu desistisse de me casar.
– Você é uma péssima pessoa, ... – Ela brincou, e ele já havia perdido a conta de quantas vezes ouvira aquelas palavras na voz de . – Mas eu topo ser seu padrinho.
– Hm... Na verdade, eu estava pensando que você poderia ser a stripper... – concentrou-se demais em afastar a imagem obscena que irrompeu em sua mente, acabou se esquecendo de rir.
– Com ou sem lap dance?
Parecia estranho, mas ao invés de perversidades, pensou que estava partindo em pouco menos de 48 horas.
Já havia vivenciado aquela ansiedade antes, quando ela vinha de Leeds para os fins de semana. Toda sexta-feira, quando colocava seus olhos nela pela primeira vez, era atravessado pelo mesmo pensamento de que tinham apenas quarenta e oito horas e vinte e cinco minutos – ou quarenta e duas horas e trinta minutos, caso ela pegasse o trem da 13h. Desconsiderava em suas contas o tempo que, dentro daquelas horas, não passava ao seu lado. Saber que ela estava em Sheffield – e que bastava percorrer alguns quilômetros quando quisesse vê-la – era o suficiente para que se sentisse em sua presença.
E naquele momento, em que ela tagarelava sobre o livro novo do seu autor favorito, lembrou-se da angústia que era não tê-la por perto. E lembrou-se, também, que logo não teria. Quis, pela primeira vez em anos, voltar para Sheffield e odiou-se por estar permitindo que desmantelasse tão facilmente a muralha que ele havia construído ao seu redor para se proteger do que sentia por ela – talvez não fossem muros tão altos e resistentes afinal. Ou talvez tenha esquecido de colocar o sentimento pra fora antes de fechar os portões e vivera preso com ele aquele tempo todo sem se dar conta.
Madson tinha razão. Nunca poderia estar por inteiro naquele relacionamento, ou no altar que fosse. Muito antes disso havia lhe roubado uns bons ¾.
E ele teve medo de pertencer à ela mais do que pertencia à Madson.
Teve medo de pertencer à ela muito mais do que pertencia a si mesmo.
– Você já se perguntou como seria se você tivesse vindo?
28 de Maio de 2010 – Sheffield, South Yorkshire, UK
Stella acordou um pouco, depois um pouco mais, retomando lentamente a consciência. Perguntou-se, enquanto observava a escuridão de seu quarto, se o som da campainha havia sido real ou se fazia parte de um sonho. Suas noites mal dormidas, de raras passaram a uma frequência cansativa. Não se espantava quando acordava com o trivial som de um carro passando pela rua, ou o tiquetaquear do relógio do corredor. Era como se nunca chegasse a sair da fase de vigília e o sono profundo do estágio quatro fosse nada mais que uma utopia.
Quando a campainha preencheu todos os cômodos outra vez, seus olhos correram até a mesa de cabeceira, onde ficava o relógio digital. Ele marcava 01:20. Seu coração vacilou, preocupado com a visita inesperada. Poderia ser qualquer um, trazendo qualquer notícia e tinha essa impressão angustiante de que não poderia ser algo positivo.
Era . Roupas encharcadas de chuva. Olhos encharcados de lágrimas.
– , o que houve? – Stella não esperou que ela se manifestasse, apenas a tomou pelo braço, puxando-a para dentro de casa. – Você está ensopada!
– O está? – Disparou e embora seus lábios e queixos tremessem de frio e ansiedade, sua voz não titubeou.
– Sim, deve estar no quarto...
– Posso subir?
– Você está bem, ? – A moça apenas chacoalhou a cabeça positivamente, sabendo que Stella não acreditaria, tampouco não insistiria. – Ok.
Dangerous Animals soava pelo headphone. Tão alto que sentia como se fizesse parte da música. Seu corpo vibrava e ele imaginava que era um dos acordes, uma das cordas da guitarra, de repente estava escondido dentro do bumbo da bateria. Desfazendo-se em pura melodia.
Não pensava em nada e gostava da sensação de não haver nada em mente a não ser por aquelas linhas coloridas que se entrelaçavam harmoniosamente no ritmo da música. Mas de repente, mesmo por trás de suas pálpebras, ficou claro. E depois disso, foi uma questão de tempo até não haver mais música.
– Quando você ia me contar?
tentou organizar as palavras em sua cabeça, mas elas corriam muito depressa.
assistiu enquanto ele se sentava lentamente, apreensivo e confuso. Tentou lidar com as ambivalências que ele costumava provocar. Queria jogar alguma coisa em seu rosto, gritar ofensas que o fizessem chorar e depois abraçá-lo tão forte e tão perto, até que não restasse uma só parte de seus corpos que não estivesse em contato.
– Você está molhada... – Ele comentou, enrolando as pernas em posição de índio.
– E você está chapado, que ótimo! – arqueou um pouco as sobrancelhas e controlou a repentina vontade de rir, disfarçando com uma tosse.
– Por que está brava? – Perguntou, tentando se lembrar de quanto tempo fazia que não se viam pessoalmente. – Quando chegou?
– ... – Ele não gostou de seu tom e de como seus olhos estavam cravados nele. Ele quase podia sentir fisicamente. – É verdade?
– Do que está falando, ?
– Estou falando sobre você ir embora para os Estados Unidos em duas semanas e não ter me dito absolutamente nada! – Ela disparou, tão rápido que ele quase não conseguiu acompanhar. Tão agressiva que um soco teria sido menos doloroso.
– Três semanas... – Ele esclareceu. Não pareceu fazer diferença para , ele notou através de sua carranca. – Eu ia te contar.
– Ia, ? – Ele concordou com a cabeça, ignorando a ironia em seu tom de voz. – Quando?
– Logo... – Foi tudo o que ele conseguiu pensar. – Você estava em Leeds.
– Estive lá quatro dias, então a menos que você tenha decidido isso no último fim de semana, eu não vou engolir essa desculpa... – se levantou, percorrendo o espaço que havia entre eles.
– Quando foi a última vez que nos vimos? – Era uma pergunta séria percebeu. Ela abriu a boca, porque tinha a impressão de que a resposta deveria estar na ponta da língua, mas de repente não estava. – Não achei que coubesse te ligar, um mês sem te ver e dizer “hey, , estou indo embora”.
– Achei que não houvesse essa coisa de caber ou não entre nós... – Sua voz soou embargada e sabia que ela começaria a chorar a qualquer momento porque não conseguia evitar.
– Eu também achei, ... – E talvez o fato de estar indo embora tivesse despertado em um lado destemido. E talvez por isso ele tenha tocado seus cabelos daquela forma, que não era só amigável e os dois sabiam.
– Por que você está indo? – Ela sussurrou, como se dizer em voz alta fosse doer mais. E doeria.
– Porque preciso... – E os dedos dele ainda passeavam por seus cabelos molhados, como se chegar ali fosse uma conquista tão grande que não pudessem, simplesmente, abrir mão. – Meu pai tem essa pequena empresa lá, antes ele ia e voltava todo mês, você se lembra? Bem... O funcionário que tomava conta precisou se mudar... Ele ia enviar alguém, eu... Me disponibilizei.
– Você nem gosta da América... – lembrou e havia muita esperança naquele comentário, como se pudesse fazê-lo repensar. queria indicar o caminho que ela deveria seguir para fazê-lo desistir. Era a única que poderia.
– É só por um tempo, até treinarmos algum outro funcionário para ficar no meu lugar... – Ele sabia que os planos não eram exatamente esses, mas gostaria que fossem.
– Isso vai soar muito humilhante, mas... , e eu? – , que não lidava bem com rendições, sentiu-se exposta e vulnerável. – O que eu vou fazer? Uma vida inteira do seu lado não me deixou muitas perspectivas de como seria se você decidisse ir embora para o outro lado da merda do mundo! – sorriu com tristeza e segurou uma lágrima dela com seu polegar.
– Você não precisa descobrir... – não respondeu. Pouco havia entendido. se afastou e levou todo o calor consigo para o outro lado do quarto. Voltou com um agasalho em mãos. – É melhor você tirar sua roupa molhada, eu te espero no corredor.
vestiu o agasalho de e chorou baixinho sentada na beirada de sua cama, porque não conseguia se livrar da sensação de que aquela era uma despedida. Depois se levantou e, como ele havia garantido, esperou por ela no corredor. Ela lembrou-se de todas as noites que ficava muito tarde para ir pra casa e Stella a convidava para dormir. O agasalho que vestia naquele momento era mais seu do que de .
Ele estendeu a mão, fria e suada como todas as vezes que ele ficava nervoso. aceitou e pensou, enquanto desciam as escadarias, que segurar a mão dele não deveria ser mais agradável que segurar a de Tom. E ter as mãos dele em seu cabelo não deveria deixá-la mais ansiosa do que ter as de Tom embaixo de seu vestido. Mas agora era tarde demais e dessa vez era mesmo tarde demais, como nenhuma outra vez havia sido antes.
Seu tempo definitivamente havia se esgotado e não sabia se havia tomado as melhores decisões até ali. Temeu que, pelo contrário, tivesse tomado somente as piores.
O lavabo, que haviam transformado em um laboratório de revelação anos atrás, era pequeno. Naquela noite ele pareceu claustrofóbico.
vedou a porta, ligou a luminária e o rádio, que nunca havia girado outro CD que não fosse aquela velha coletânea de Rock Alternativo. não se moveu, porque se havia a possibilidade de não vê-lo por um bom tempo, não queria tirar seus olhos dele por um segundo que fosse.
– Eu tenho alguns filmes revelados... – comentou e não entendeu que motivo teria para sua voz trepidar daquela maneira. – Você pode me ajudar a passar para o papel fotográfico? – Ela observou seu rosto, avermelhado por conta da lâmpada e soube que aquela imagem viveria no melhor dos cômodos de sua memória, junto com tantas outras que tinha dele.
– Posso...
havia guardado os fotogramas em diferentes pacotes plásticos, estavam enumerados, organizados em uma fileira sobre a bancada onde ficava o ampliador. Estavam esperando por , mesmo que não soubessem quando de fato ela estaria por ali.
Bem baixinho, praguejou a si mesmo, tremendo tanto ficava difícil manusear o fotograma e deixá-lo na posição correta dentro da gaveta do ampliador. Não queria botar tudo a perder caso as imagens ficassem desfocadas no papel fotográfico.
Bem, era só mais um dos riscos que estava correndo.
, responsável por preparar os químicos e conferir a temperatura de cada um deles, observou enquanto colocava o papel fotográfico na mesa do ampliador, acionando a luz e mantendo tempo o suficiente para que ela fizesse a revelação. fazia parecer tão fácil e tão apaixonante, que era difícil não se sentir minimamente deslumbrada enquanto o assistia.
Ele trouxe o primeiro papel entre as pontas de uma longa pinça, soltando-o dentro da banheira do químico revelador. implicou-se em sua tarefa, movendo delicadamente o líquido, suas ondas suaves lambendo a fotografia, que pouco a pouco começava a tomar forma.
Em menos de um minuto ela reconheceu a si mesma na imagem em preto e branco. Ela não se lembrava do momento em que havia sido capturada, mas sabia ter sido em algumas de suas visitas ao observatório. Estava claramente embriagada, com um sorriso tão grande quanto a flor presa em sua orelha.
Apreensivo, tentou observá-la e identificar sua expressão, mas não havia nada além de uma demasiada atenção no que fazia – passando a fotografia pelo ácido asséptico, depois deixando-a dentro da terceira banheira, no fixador. Ele levou o segundo papel fotográfico e cedeu um sorriso nervoso quando os olhos dela esbarraram nos seus.
A segunda foto também era uma imagem de . Tal como a terceira, a quarta e todas as outras que, pouco mais tarde, preenchiam a banheira de água corrente. E o coração dela, que acelerava um pouco mais a cada foto sua, agora sapateava com tanta pressa que ela sentiu-se zonza. Não sabia explicar como, mas havia tanto amor em cada uma daquelas fotografias que era difícil não se entupir dele.
deixou o último papel fotográfico no químico revelador, e enquanto movia a banheira com cuidado, ele encostou seu ombro no dela e foi como se dissesse “ainda estou aqui”. Quando na realidade, o que ele de fato queria dizer estava sendo impresso naquele exato momento.
A imagem foi tomando forma aos poucos, a caligrafia torta e expressiva de desenhando o papel fotográfico. O coração de ambos compartilhando a aflição da espera, da expectativa e daquele sentimento que eles não gostavam de chamar de amor, porque isso os deixava assustados.
“Vem comigo?”, formavam as letras pressionadas naquele guardanapo de papel que havia fotografado. Ela quase podia ouvi-lo ler o convite em voz alta, mas não foi o que ele disse quando finalmente se manifestou – com seu corpo parcialmente escondido atrás do dela, a bochecha apoiada no topo de sua cabeça e a voz melancólica de sempre.
– Você não precisa responder agora... – Propôs e sentiu o corpo de pulsar num soluço contido. – Você tem as próximas semanas para pensar e se organizar...
– Como isso poderia funcionar, ? – Ela sussurrou, sua voz desafinando com a tentativa de não chorar.
– Não se preocupe com nada, poopface... Se decidir ir, consigo suas passagens, temos onde ficar e eu vou receber dinheiro suficiente pra nós dois até você encontrar algo que queira fazer e você pode fazer o que quiser... – Ela negou com a cabeça, cedendo um suspiro choroso. – É só me dar um sinal.
E esperou.
Pelos próximos dias.
Pelas próximas semanas.
Esperou no dia anterior à viagem.
Manhã, tarde e noite.
Noite em claro, porque não queria correr o risco de estar dormindo caso ela decidisse dar uma resposta.
Esperou até a última chamada para o voo.
Mas precisou embarcar, sem qualquer sinal ou abraço de despedida.
Capítulo 11
15 de Julho de 2016 – Los Angeles, Califórnia, USA
– Não sei como seria, ... – Admitiu e murchou tão rápido quanto um balão furado antes de se perguntar que diabos esperava que ela dissesse. Ele tampouco sabia como seria. – Acho que já passaram os cinco minutos...
– Ahn? – cedeu um riso e estranhou o fato de seu bom humor ter saído ileso àquela pergunta.
– O revelador, , cinco minutos!
Os olhos estreitaram-se, desacostumados com a claridade, quando saíram do laboratório. Deixaram as fotografias enfileiradas num varal, ao invés de usarem a estufa nova. garantiu que entregaria todas elas no domingo, antes do embarque de .
Ele propôs que fossem caminhando e enroscou o braço no dele como se tivessem 16 outra vez. E embora fosse difícil revisitar todas aquelas lembranças, era difícil também não fazê-lo.
– Espera aqui...
pediu e andou depressa para o outro lado da rua, não dando tempo a para questionar. Ela o teria seguido, mas esperou, porque parecia importante pra ele que ela esperasse.
Dentro de dois ou três minutos, ouviu um som tão familiar quanto o tom da voz de sua mãe, o toque do telefone da editora ou o alarme espalhafatoso de seu despertador velho.
Foi como se o motor da Chevy 70 roncasse dentro dela, espalhando uma euforia que sabia não poder conter. Também não queria tentar. Se Miss Lizzy fosse uma pessoa, estaria esmagada entre seus braços calorosos. Como era maior do que ela poderia abraçar, teve de saudá-la com um sorriso nostálgico.
– Eu não acredito! – Exclamou quando saltou para dentro da caminhonete. – Eu achei que você tinha deixado em Sheffield! Por Deus, ela ainda cheira exatamente como antes.
– Miss Lizzy não é nada como você, ... Ela nunca me abandonaria! – Era pra ser uma piada e tinha um pouco de graça, embora tivesse também muita cólera implícita.
– Cala a boca... – Disparou a moça, mal contendo o riso. – Eu senti muito mais falta dela do que de você, só para deixar bem claro! – E para provocar, deitou seu rosto no painel, arrancando uma gargalhada divertida do amigo.
– Pois um dia desses ela confessou que não gostava mais de você, porque afinal você se negou a vir com a gente...
– Miss Lizzy jamais faria isso, , você sabe... Ela sempre foi compreensiva, não tente mudar a personalidade dela agora!
– Se alguém nos ouvisse, talvez achasse que somos loucos.
– Talvez sejamos, meu amigo.
reconheceu a fachada do café onde estiveram na manhã anterior. pediu, novamente, que ela ficasse. Dessa vez não havia um plano surpresa, só pressa. Ela assistiu enquanto ele atravessava a rua, voltando de lá com um fardo de cervejas e um pacote de papel pardo. Estava longe de ser um almoço saudável, mas muito próximo das refeições que costumavam fazer no Endcliffe Park aos fins de semana.
reconheceu o aroma do Cornish Pasty no exato momento em que deixou o pacote em seu colo, mas pretendia fingir surpresa quando ele revelasse o que havia dentro.
parecia vivo, ela considerou enquanto o observava dirigir, com um sorriso que parecia ter sido esquecido em seus lábios. Mais vivo do que nos últimos dias. Talvez mais vivo do que ela se lembrava dele meses antes de sua partida, ou quando, há dois anos e meio atrás, passou um fim de semana em Sheffield – jantaram hambúrgueres artesanais na lanchonete favorita de Tom e passou a noite inteira pensando que “aquele babaca” poderia desaparecer.
Parecia, agora, tão vivo quanto quando eram só e , almoçando no parque, ouvindo música no Duran, assistindo qualquer filme no cinema, cantando muito alto no observatório, ou virando a noite em algum festival de música alternativa. Uma vivacidade que ninguém reconhecia em – o cara calado e de poucos amigos. Não era difícil pra ela, porém. Quase podia sentir dentro de si mesma. Estavam vivos outra vez. Meu Deus, tão vivos.
– Palisades Park... – leu em uma das placas informativas. – Como na música dos Ramones?
– Bom... Foi proposital... – gabou-se, feliz que ela tivesse reconhecido. – A triste notícia é que eles se referiam ao Palisades Park de New Jersey e se eu quisesse te levar pra lá perderíamos meu casamento... – riu, e tentou afugentar rapidamente a sensação aflitiva que teve ao se lembrar da cerimônia.
– Serve esse aqui...
E serviria qualquer um.
Assim como já haviam servido os pubs mais frequentados de Londres ou Sheffield. Também aquelas visitas silenciosas às bibliotecas e as noites ociosas de música e jogos de tabuleiro no quarto de . Nunca encontravam contrariedades em quaisquer locais ou programas. Na diversão ou no tédio, e haviam aquele espaço particular e singular para onde podiam fugir juntos. E lá se bastavam.
O parque ficava em uma área plaina, no nível das ruas da cidade de Santa Monica. Do outro lado, colina abaixo, estava a praia e o píer, tão movimentado que entrava em contraste com a calmaria do espaço onde estavam.
Por entre o gramado baixo e bem cuidado haviam vielas asfaltadas pelas quais caminharam. Hora ou outra cruzavam com pessoas se exercitando, passeando com seus cachorros, espalhados pela grama, ou pendurados na balaustrada que margeavam a colina, apreciando a vista do mar.
retirou da mochila pendurada em seu ombro a máquina fotográfica. Registrou algumas imagens do parque e da caminhada curiosa de , mesmo sob seus protestos constrangidos.
Quando já haviam percorrido o parque de um extremo a outro, escolheram a sombra de uma árvore arredada do movimento para se sentarem, sobre um lençol estreito que se lembrara de trazer. Aquela tentativa débil de revisitar os almoços no parque aos quais um dia estiveram tão habituados.
– Pasty! – Ela exclamou quando viu, pela primeira vez, o salgado. Era péssima atriz.
– Como se você não soubesse... – riu, desfazendo-se dos coturnos e meias. – Pedi a Hailey para fazer, não sei se ficaram bons...
– Parecem bons! – Ela comentou e enquanto procurava uma posição confortável para se sentar, lembrou-se de que odiava vestidos. – Você não deveria beber, vai dirigir.
– Não vou... São suas... – lhe estendeu primeiro o salgado, depois uma longneck. – E não faça essa cara, como se não bebesse feito um alcoolista.
– Talvez eu seja uma... – Brincou, depois mordeu seu salgado. retirou o Vans e deleitou-se na umidade da grama sob seus pés, vinda diretamente da brisa do mar. – E então, o que trouxe pra gente ler?
– Depois te mostro...
– E onde vamos depois daqui? Espero que seja dar um mergulho, eu não aceito qualquer coisa que não seja isso... – riu, roubando um gole da longneck dela.
– Nada de mergulho... E isso também é proposital, quem sabe assim você aceite me visitar mais vezes, sem precisar que eu me case pra isso...
– Me convide para outras ocasiões, sem ser seu casamento e eu virei... – sorriu, os olhos escondidos sob a lente de seus óculos de sol observando pacientemente o rosto distraído de . – Se não vamos nadar, pra que as peças de roupas?
– Não vamos voltar para a casa dos meus sogros...
– Como é? – exclamou e havia esperança disfarçada atrás do susto.
– Por agora... – Ele acrescentou, risonho. – Afinal, que tipo de despedida de solteiro acaba antes da meia noite?
terminou sua refeição pouco depois de . Deitou-se preguiçosamente sobre o tecido que, pouco espesso, permitia que sentisse a textura desnivelada do gramado baixo. O amigo, sentado ao seu lado, acendeu um cigarro e distraiu-se com sua câmera, fazendo com que ela se lembrasse, de uma maneira quase torturante, de quem costumavam ser.
– Hm, está a fim de ler? – perguntou, trazendo de seus devaneios. – Ainda temos um lugar para ir antes de voltarmos ao apartamento... – Ela sorriu daquele jeito que era só dela e sentou-se vagarosamente.
– Vamos lá... O que tem aí? – , sentado ao seu lado, alcançou sua mochila e de lá retirou uma única folha dobrada em dois. – É um conto? – E, não por ignorar sua pergunta, ou pela maneira como ele estendeu o que tinha em mãos, mas pela forma como a encarou, paciente e decidido, ela soube exatamente do que se tratava. – ...
– Se você não ler, leio eu... – Ele adiantou, mas insistiu que ela pegasse a folha e , apesar da clara resistência, o fez.
– Preciso ler em voz alta? – Perguntou, daquele jeito irônico e áspero que deveria ofendê-lo, mas só o fez rir.
– Não precisa, poopface, fique à vontade para ler como quiser.
a observou durante toda a leitura, a intimidade que tinha com suas expressões permitindo que ele soubesse exatamente em qual parte do e-mail ela estava, pela maneira como movia as sobrancelhas, crispava os lábios com incômodo ou empurrava a bochecha com a língua em puro constrangimento.
Ao final, ela tinha aquela expressão de quem estava satisfeita, mas jamais admitiria. Ele não precisava que ela admitisse pra ele, apenas pra si mesma em algum momento. Por isso não introduziu nenhum tipo de diálogo a respeito, ao invés disso se levantou e estendeu sua mão para ela, convidando-a para sair dali.
– Passa longe de ser tão legal quanto o Duran, mas, bem...
sorriu em resposta. Olhando ao seu redor podia perceber, tinha razão. Era uma loja de música como qualquer outra que já tivessem visitado ao longo dos anos de amizade, nenhuma delas parecia tão boa quanto a de Duran, e ela sabia que não tinha absolutamente nada a ver com qualidade.
Era muito mais pessoal do que isso, muito menos físico que os CD Players ou álbuns disponíveis, também não estava relacionado ao preço ou à decoração. Referiam-se, mesmo que de um jeito velado, às lembranças prazerosas que viveram lá e assim tornava-se injusto comparar.
– O que você tem escutado de lançamento? – perguntou enquanto passeavam por entre as prateleiras abarrotadas de CDs.
– Me deixa pensar... – pediu, os dedos correndo pelas capas acrílicas, procurando por coisa alguma – Blackstar, do Bowie... Everything You’ve Come to Expect, dos Last Shadow Puppets... O novo do Weezer e o do Bob Dylan...
– Você gostou?
– De todos?
- Fallen Angels...
– Você sabe que não posso responder isso... É o Bob Dylan! Ele poderia recitar um poema sobre abacates, eu iria encontrar um jeito de achar incrível.
– Isso é porque você é uma fã pouco criteriosa... O pior tipo de fã, diga-se de passagem.
– Eu sei, eu assumo! – riu, puxando um dos CDs da prateleira. A Moon Shaped Pool, o álbum do Radiohead sobre o qual ela falava mais cedo. – Épico! Você ouviu o novo do Travis?
– Não sabia que tinham lançado...
– Depois a péssima fã sou eu... – Murmurou , numa clara provocação.
– Como é o nome?
– Everything At Once... – E logo que começou a procurar, ela continuou. – O novo do Jake Bugg é legal.
– Não me lembro de ter ensinado você a ouvir música ruim... – Disparou o amigo, arrancando um suspiro pesado dela. – É brincadeira, eu gosto do primeiro álbum do cara... Mas já que estamos falando dessas músicas de pouca qualidade que você gosta, ouvi o álbum novo do Ray LaMontagne...
– Ah, cala a boca, ... – exclamou, ele desmanchou-se em uma gargalhada vitoriosa e extremamente agradável de se ouvir. – Ele é ótimo... – E com um sorriso contido, concluiu: – O novo álbum nem tanto...
– Achei um bom álbum, dormi da primeira à última música... – não segurou o riso, empurrando o ombro dele com o seu. – O que? Existem músicas para se ouvir acordado, outras que é melhor dormir...
– Meu Deus, eu quase me esqueci do quanto você é insuportável.
E aquela conversa poderia ter nenhuma significância para o resto do mundo, mas na relação entre e , compartilhar irrelevâncias era como estar em casa outra vez depois de uma longa viagem. E aquela viagem, em específico, havia durado tempo demais. Havia tanto a ser dito e tão pouco tempo para dizer. Os minutos a mais eram, para eles, minutos a menos. Assustados e antecipadamente solitários.
E que engraçado era pensar em solidão quando se tratava deles dois.
, que em determinado momento decidiu sair da casa da mãe para ter a sua própria. Gostava de sair da editora e passar pelo mercado, escolher o que cozinharia para o jantar. Não se importava de colocar a mesa para um ou sentar-se nela sozinha para desfrutar sua refeição de porção única.
Escolhia um disco para colocar na vitrola. Abria um vinho ou whisky quando estava sem fome e pretendia escrever até ficar bêbada, então espalhava-se sozinha em sua cama para dois.
E , que considerou a ideia de comprar uma passagem de volta para a Inglaterra depois da terceira confraternização para a qual fora convidado. Não parecia algo a ser recusado, então participava. Costumava ser o cara no canto da festa, comendo pouco, bebendo muito, forçando alguns sorrisos.
Ele mal conseguia dividir a vida com qualquer pessoa que fosse – e não tinha a ver apenas com as histórias sempre resumidas, ou aquela preocupação que ficava enrugando sua testa por dias, mas nunca era dita em voz alta. Era também sobre seus dias que ele nunca aprendera a dividir com qualquer pessoa que não fosse .
Madson descobriu isso muito cedo, quando ele se dispunha a levá-la pra casa no fim da noite, mesmo que fossem 5h da manhã e parecesse mais cômodo deixá-la ficar até o amanhecer. Ou quando ele parecia se esquecer de que ela estava no apartamento, distraído com um livro ou filme qualquer, sem de fato convidá-la para participar.
No início ela achou engraçadinho, “ele é todo Inglês” comentava com as amigas. Depois foi ficando cansativo e foram necessárias incontáveis discussões e argumentações até reconhecer que aquelas portas, pelas quais só passava , precisavam ser trocadas.
Gostavam da solidão. O que nunca haviam aprendido a lidar era a ficar um sem o outro.
– Quer beber alguma coisa? – gritou e não sabia exatamente de qual cômodo do apartamento estava vindo, mas apressou-se em deixar o porta-retratos, que guardava uma foto dele e de Madson, sobre a mesa de cabeceira.
– Uma cerveja, melhor não misturar. – Respondeu, acomodada na beirada do colchão. riu, escorando o corpo no batente.
– É, acho que você está ficando velha... – Comentou, provocante. alcançou um dos coturnos, dos quais havia se livrado há pouco e atirou em direção a ele. – Ouch!
– E agora, você já pode me contar pra onde vamos depois?
– É, talvez se eu persistir ainda mais no suspense, você ache que estou te levando para a atração da sua vida... É só um pub Inglês. Vai rolar um cover dos Beatles lá essa noite. – E a forma como os olhos de brilharam fez com que as luzes de Los Angeles parecessem falhas em sua função.
– Sempre bem-vindo, ... Sempre bem-vindo! – E de um jeito muito à vontade, ela soltou o corpo contra o colchão, apenas a ponta de seus pés tocando o carpete. imaginou como seria caso ele não tivesse Madson, caso não tivesse Tom. Depois convenceu-se de que não era saudável dar espaço para tais pensamentos. Ele tinha Madson. tinha Tom. Nunca dividiram aquela cama, aquele apartamento, ou uma vida a dois. – ? Minha cerveja.
– Um gato gordo é menos folgado que você, .
Estava tocando Florence + The Machine quando voltou para o quarto, vinha da TV onde havia conectado o Youtube. Ela esperou por sua longneck, mas não ficou para fazer companhia à ele. Carregou a cerveja e sua mochila para dentro do banheiro. sentou-se na cama e se concentrou no barulho do chuveiro. A adorável tortura do “tão perto, tão longe” de sempre.
Pela primeira vez no dia olhou seu celular. Havia mensagens de Madson em resposta ao bilhete que ele havia deixado antes de sair de casa. “Aproveite sua despedida, futuro marido”, dizia a primeira, e depois minutos depois enviara outra: “soou um tanto psicopata, não foi a intenção, não me deixe no altar! Te amo!”.
riu, lembrando-se do porquê havia deixado Madson entrar e ficar. Era fácil amá-la. Deus, como gostaria de amá-la naquela proporção que ela demonstrava amá-lo. Como merecia ser amada.
Deixou uma mensagem, contando brevemente o que já haviam feito e pra onde estariam indo em breve. Esperou um tempo pela resposta, depois conectou o celular no carregador e esqueceu-se dele. Propositalmente.
esperou até que o corpo estivesse menos úmido e quente para vestir a calça, sua falta de jeito corriqueira fazendo com que os rasgos propositais ao longo do jeans se abrissem ainda mais. Separou a babylook preta que havia enfiado na mochila pela manhã, mas decidiu colocá-la só depois da maquiagem – o delineador preto e o batom vermelho escuro de sempre.
Soltou e prendeu o cabelo quatro ou cinco vezes. Deixou solto, mas guardou o lacinho no bolso de trás do jeans.
Ela não olhou diretamente para quando voltou para o quarto, vestindo distraidamente sua jaqueta de couro. E ele estava feliz que ela não tivesse feito, não sabia quanto de seu deslumbre havia sido refletido em seus olhos ou expressão, ela talvez notasse. Detestava ser o cara que estava sucumbindo de desejo por daquele jeito que ela detestava que fizessem.
Tratou de ir para o banho enquanto ela calçava as botas outra vez, cantarolando uma música do Jimmy Eat World que não lembrava o nome.
girou o maço de Marlboro enquanto atravessava o apartamento em direção à sacada. A cidade estava toda acesa, ela notou enquanto acendia um cigarro, debruçada na balaustrada. A voz de soando etérea em sua lembrança. “Você já se perguntou como seria se tivesse vindo?”. Já, queria ter respondido. Houve um tempo em que se fazia aquela pergunta todos os dias e sofria com cada uma das respostas que elaborava pra si mesma – mesmo aquelas que deveriam servir para confortá-la. Mesmo quando pensava que não daria em nada, que continuariam sendo apenas amigos. Ainda preferia estar ao lado dele.
Na sacada do apartamento de , aquela pergunta arrastou para dentro da fantasia de uma vida compartilhada com ele.
Imaginou a si mesma chegando do trabalho, qualquer que fosse e deixando sua bolsa naquele mancebo ao lado da porta, as chaves no aparador de madeira. Encontraria em seu caminho de volta do banho, apenas esperando por ela para dividirem o jantar que ele trouxe de algum restaurante enquanto voltava pra casa. Uma vida cheia de normalidade, quase tediosa, que ela adoraria ter.
Vivendo naqueles cômodos, dividindo o sofá da sala ou a banheira na qual havia descansado seu corpo nos últimos minutos.
Era doloroso.
Mais do que poderia suportar.
– Hey... – chamou e ela temeu que sua melancolia fosse tão grande que tivesse tomado uma forma física, algo como uma nuvem azul acinzentada pairando ao seu redor. apoiou os antebraços na balaustrada e reconheceu a pequena lata que ele tinha em mãos. – Pensei que podíamos... Pelos velhos tempos.
– Está vendo por que a vida separou nós dois? – comentou e pensou que ela teria algo sério a dizer. – Só fazemos merda juntos! – Ele cedeu um riso divertido. – , faz muito tempo que eu, hm... Não fumo... Não sei mesmo se é boa ideia.
– Velha...
– Quem de nós dois tem o maior histórico de teto preto, ?
– Não sei como seria, ... – Admitiu e murchou tão rápido quanto um balão furado antes de se perguntar que diabos esperava que ela dissesse. Ele tampouco sabia como seria. – Acho que já passaram os cinco minutos...
– Ahn? – cedeu um riso e estranhou o fato de seu bom humor ter saído ileso àquela pergunta.
– O revelador, , cinco minutos!
Os olhos estreitaram-se, desacostumados com a claridade, quando saíram do laboratório. Deixaram as fotografias enfileiradas num varal, ao invés de usarem a estufa nova. garantiu que entregaria todas elas no domingo, antes do embarque de .
Ele propôs que fossem caminhando e enroscou o braço no dele como se tivessem 16 outra vez. E embora fosse difícil revisitar todas aquelas lembranças, era difícil também não fazê-lo.
– Espera aqui...
pediu e andou depressa para o outro lado da rua, não dando tempo a para questionar. Ela o teria seguido, mas esperou, porque parecia importante pra ele que ela esperasse.
Dentro de dois ou três minutos, ouviu um som tão familiar quanto o tom da voz de sua mãe, o toque do telefone da editora ou o alarme espalhafatoso de seu despertador velho.
Foi como se o motor da Chevy 70 roncasse dentro dela, espalhando uma euforia que sabia não poder conter. Também não queria tentar. Se Miss Lizzy fosse uma pessoa, estaria esmagada entre seus braços calorosos. Como era maior do que ela poderia abraçar, teve de saudá-la com um sorriso nostálgico.
– Eu não acredito! – Exclamou quando saltou para dentro da caminhonete. – Eu achei que você tinha deixado em Sheffield! Por Deus, ela ainda cheira exatamente como antes.
– Miss Lizzy não é nada como você, ... Ela nunca me abandonaria! – Era pra ser uma piada e tinha um pouco de graça, embora tivesse também muita cólera implícita.
– Cala a boca... – Disparou a moça, mal contendo o riso. – Eu senti muito mais falta dela do que de você, só para deixar bem claro! – E para provocar, deitou seu rosto no painel, arrancando uma gargalhada divertida do amigo.
– Pois um dia desses ela confessou que não gostava mais de você, porque afinal você se negou a vir com a gente...
– Miss Lizzy jamais faria isso, , você sabe... Ela sempre foi compreensiva, não tente mudar a personalidade dela agora!
– Se alguém nos ouvisse, talvez achasse que somos loucos.
– Talvez sejamos, meu amigo.
reconheceu a fachada do café onde estiveram na manhã anterior. pediu, novamente, que ela ficasse. Dessa vez não havia um plano surpresa, só pressa. Ela assistiu enquanto ele atravessava a rua, voltando de lá com um fardo de cervejas e um pacote de papel pardo. Estava longe de ser um almoço saudável, mas muito próximo das refeições que costumavam fazer no Endcliffe Park aos fins de semana.
reconheceu o aroma do Cornish Pasty no exato momento em que deixou o pacote em seu colo, mas pretendia fingir surpresa quando ele revelasse o que havia dentro.
parecia vivo, ela considerou enquanto o observava dirigir, com um sorriso que parecia ter sido esquecido em seus lábios. Mais vivo do que nos últimos dias. Talvez mais vivo do que ela se lembrava dele meses antes de sua partida, ou quando, há dois anos e meio atrás, passou um fim de semana em Sheffield – jantaram hambúrgueres artesanais na lanchonete favorita de Tom e passou a noite inteira pensando que “aquele babaca” poderia desaparecer.
Parecia, agora, tão vivo quanto quando eram só e , almoçando no parque, ouvindo música no Duran, assistindo qualquer filme no cinema, cantando muito alto no observatório, ou virando a noite em algum festival de música alternativa. Uma vivacidade que ninguém reconhecia em – o cara calado e de poucos amigos. Não era difícil pra ela, porém. Quase podia sentir dentro de si mesma. Estavam vivos outra vez. Meu Deus, tão vivos.
– Palisades Park... – leu em uma das placas informativas. – Como na música dos Ramones?
– Bom... Foi proposital... – gabou-se, feliz que ela tivesse reconhecido. – A triste notícia é que eles se referiam ao Palisades Park de New Jersey e se eu quisesse te levar pra lá perderíamos meu casamento... – riu, e tentou afugentar rapidamente a sensação aflitiva que teve ao se lembrar da cerimônia.
– Serve esse aqui...
E serviria qualquer um.
Assim como já haviam servido os pubs mais frequentados de Londres ou Sheffield. Também aquelas visitas silenciosas às bibliotecas e as noites ociosas de música e jogos de tabuleiro no quarto de . Nunca encontravam contrariedades em quaisquer locais ou programas. Na diversão ou no tédio, e haviam aquele espaço particular e singular para onde podiam fugir juntos. E lá se bastavam.
O parque ficava em uma área plaina, no nível das ruas da cidade de Santa Monica. Do outro lado, colina abaixo, estava a praia e o píer, tão movimentado que entrava em contraste com a calmaria do espaço onde estavam.
Por entre o gramado baixo e bem cuidado haviam vielas asfaltadas pelas quais caminharam. Hora ou outra cruzavam com pessoas se exercitando, passeando com seus cachorros, espalhados pela grama, ou pendurados na balaustrada que margeavam a colina, apreciando a vista do mar.
retirou da mochila pendurada em seu ombro a máquina fotográfica. Registrou algumas imagens do parque e da caminhada curiosa de , mesmo sob seus protestos constrangidos.
Quando já haviam percorrido o parque de um extremo a outro, escolheram a sombra de uma árvore arredada do movimento para se sentarem, sobre um lençol estreito que se lembrara de trazer. Aquela tentativa débil de revisitar os almoços no parque aos quais um dia estiveram tão habituados.
– Pasty! – Ela exclamou quando viu, pela primeira vez, o salgado. Era péssima atriz.
– Como se você não soubesse... – riu, desfazendo-se dos coturnos e meias. – Pedi a Hailey para fazer, não sei se ficaram bons...
– Parecem bons! – Ela comentou e enquanto procurava uma posição confortável para se sentar, lembrou-se de que odiava vestidos. – Você não deveria beber, vai dirigir.
– Não vou... São suas... – lhe estendeu primeiro o salgado, depois uma longneck. – E não faça essa cara, como se não bebesse feito um alcoolista.
– Talvez eu seja uma... – Brincou, depois mordeu seu salgado. retirou o Vans e deleitou-se na umidade da grama sob seus pés, vinda diretamente da brisa do mar. – E então, o que trouxe pra gente ler?
– Depois te mostro...
– E onde vamos depois daqui? Espero que seja dar um mergulho, eu não aceito qualquer coisa que não seja isso... – riu, roubando um gole da longneck dela.
– Nada de mergulho... E isso também é proposital, quem sabe assim você aceite me visitar mais vezes, sem precisar que eu me case pra isso...
– Me convide para outras ocasiões, sem ser seu casamento e eu virei... – sorriu, os olhos escondidos sob a lente de seus óculos de sol observando pacientemente o rosto distraído de . – Se não vamos nadar, pra que as peças de roupas?
– Não vamos voltar para a casa dos meus sogros...
– Como é? – exclamou e havia esperança disfarçada atrás do susto.
– Por agora... – Ele acrescentou, risonho. – Afinal, que tipo de despedida de solteiro acaba antes da meia noite?
terminou sua refeição pouco depois de . Deitou-se preguiçosamente sobre o tecido que, pouco espesso, permitia que sentisse a textura desnivelada do gramado baixo. O amigo, sentado ao seu lado, acendeu um cigarro e distraiu-se com sua câmera, fazendo com que ela se lembrasse, de uma maneira quase torturante, de quem costumavam ser.
– Hm, está a fim de ler? – perguntou, trazendo de seus devaneios. – Ainda temos um lugar para ir antes de voltarmos ao apartamento... – Ela sorriu daquele jeito que era só dela e sentou-se vagarosamente.
– Vamos lá... O que tem aí? – , sentado ao seu lado, alcançou sua mochila e de lá retirou uma única folha dobrada em dois. – É um conto? – E, não por ignorar sua pergunta, ou pela maneira como ele estendeu o que tinha em mãos, mas pela forma como a encarou, paciente e decidido, ela soube exatamente do que se tratava. – ...
– Se você não ler, leio eu... – Ele adiantou, mas insistiu que ela pegasse a folha e , apesar da clara resistência, o fez.
– Preciso ler em voz alta? – Perguntou, daquele jeito irônico e áspero que deveria ofendê-lo, mas só o fez rir.
– Não precisa, poopface, fique à vontade para ler como quiser.
a observou durante toda a leitura, a intimidade que tinha com suas expressões permitindo que ele soubesse exatamente em qual parte do e-mail ela estava, pela maneira como movia as sobrancelhas, crispava os lábios com incômodo ou empurrava a bochecha com a língua em puro constrangimento.
Ao final, ela tinha aquela expressão de quem estava satisfeita, mas jamais admitiria. Ele não precisava que ela admitisse pra ele, apenas pra si mesma em algum momento. Por isso não introduziu nenhum tipo de diálogo a respeito, ao invés disso se levantou e estendeu sua mão para ela, convidando-a para sair dali.
– Passa longe de ser tão legal quanto o Duran, mas, bem...
sorriu em resposta. Olhando ao seu redor podia perceber, tinha razão. Era uma loja de música como qualquer outra que já tivessem visitado ao longo dos anos de amizade, nenhuma delas parecia tão boa quanto a de Duran, e ela sabia que não tinha absolutamente nada a ver com qualidade.
Era muito mais pessoal do que isso, muito menos físico que os CD Players ou álbuns disponíveis, também não estava relacionado ao preço ou à decoração. Referiam-se, mesmo que de um jeito velado, às lembranças prazerosas que viveram lá e assim tornava-se injusto comparar.
– O que você tem escutado de lançamento? – perguntou enquanto passeavam por entre as prateleiras abarrotadas de CDs.
– Me deixa pensar... – pediu, os dedos correndo pelas capas acrílicas, procurando por coisa alguma – Blackstar, do Bowie... Everything You’ve Come to Expect, dos Last Shadow Puppets... O novo do Weezer e o do Bob Dylan...
– Você gostou?
– De todos?
- Fallen Angels...
– Você sabe que não posso responder isso... É o Bob Dylan! Ele poderia recitar um poema sobre abacates, eu iria encontrar um jeito de achar incrível.
– Isso é porque você é uma fã pouco criteriosa... O pior tipo de fã, diga-se de passagem.
– Eu sei, eu assumo! – riu, puxando um dos CDs da prateleira. A Moon Shaped Pool, o álbum do Radiohead sobre o qual ela falava mais cedo. – Épico! Você ouviu o novo do Travis?
– Não sabia que tinham lançado...
– Depois a péssima fã sou eu... – Murmurou , numa clara provocação.
– Como é o nome?
– Everything At Once... – E logo que começou a procurar, ela continuou. – O novo do Jake Bugg é legal.
– Não me lembro de ter ensinado você a ouvir música ruim... – Disparou o amigo, arrancando um suspiro pesado dela. – É brincadeira, eu gosto do primeiro álbum do cara... Mas já que estamos falando dessas músicas de pouca qualidade que você gosta, ouvi o álbum novo do Ray LaMontagne...
– Ah, cala a boca, ... – exclamou, ele desmanchou-se em uma gargalhada vitoriosa e extremamente agradável de se ouvir. – Ele é ótimo... – E com um sorriso contido, concluiu: – O novo álbum nem tanto...
– Achei um bom álbum, dormi da primeira à última música... – não segurou o riso, empurrando o ombro dele com o seu. – O que? Existem músicas para se ouvir acordado, outras que é melhor dormir...
– Meu Deus, eu quase me esqueci do quanto você é insuportável.
E aquela conversa poderia ter nenhuma significância para o resto do mundo, mas na relação entre e , compartilhar irrelevâncias era como estar em casa outra vez depois de uma longa viagem. E aquela viagem, em específico, havia durado tempo demais. Havia tanto a ser dito e tão pouco tempo para dizer. Os minutos a mais eram, para eles, minutos a menos. Assustados e antecipadamente solitários.
E que engraçado era pensar em solidão quando se tratava deles dois.
, que em determinado momento decidiu sair da casa da mãe para ter a sua própria. Gostava de sair da editora e passar pelo mercado, escolher o que cozinharia para o jantar. Não se importava de colocar a mesa para um ou sentar-se nela sozinha para desfrutar sua refeição de porção única.
Escolhia um disco para colocar na vitrola. Abria um vinho ou whisky quando estava sem fome e pretendia escrever até ficar bêbada, então espalhava-se sozinha em sua cama para dois.
E , que considerou a ideia de comprar uma passagem de volta para a Inglaterra depois da terceira confraternização para a qual fora convidado. Não parecia algo a ser recusado, então participava. Costumava ser o cara no canto da festa, comendo pouco, bebendo muito, forçando alguns sorrisos.
Ele mal conseguia dividir a vida com qualquer pessoa que fosse – e não tinha a ver apenas com as histórias sempre resumidas, ou aquela preocupação que ficava enrugando sua testa por dias, mas nunca era dita em voz alta. Era também sobre seus dias que ele nunca aprendera a dividir com qualquer pessoa que não fosse .
Madson descobriu isso muito cedo, quando ele se dispunha a levá-la pra casa no fim da noite, mesmo que fossem 5h da manhã e parecesse mais cômodo deixá-la ficar até o amanhecer. Ou quando ele parecia se esquecer de que ela estava no apartamento, distraído com um livro ou filme qualquer, sem de fato convidá-la para participar.
No início ela achou engraçadinho, “ele é todo Inglês” comentava com as amigas. Depois foi ficando cansativo e foram necessárias incontáveis discussões e argumentações até reconhecer que aquelas portas, pelas quais só passava , precisavam ser trocadas.
Gostavam da solidão. O que nunca haviam aprendido a lidar era a ficar um sem o outro.
– Quer beber alguma coisa? – gritou e não sabia exatamente de qual cômodo do apartamento estava vindo, mas apressou-se em deixar o porta-retratos, que guardava uma foto dele e de Madson, sobre a mesa de cabeceira.
– Uma cerveja, melhor não misturar. – Respondeu, acomodada na beirada do colchão. riu, escorando o corpo no batente.
– É, acho que você está ficando velha... – Comentou, provocante. alcançou um dos coturnos, dos quais havia se livrado há pouco e atirou em direção a ele. – Ouch!
– E agora, você já pode me contar pra onde vamos depois?
– É, talvez se eu persistir ainda mais no suspense, você ache que estou te levando para a atração da sua vida... É só um pub Inglês. Vai rolar um cover dos Beatles lá essa noite. – E a forma como os olhos de brilharam fez com que as luzes de Los Angeles parecessem falhas em sua função.
– Sempre bem-vindo, ... Sempre bem-vindo! – E de um jeito muito à vontade, ela soltou o corpo contra o colchão, apenas a ponta de seus pés tocando o carpete. imaginou como seria caso ele não tivesse Madson, caso não tivesse Tom. Depois convenceu-se de que não era saudável dar espaço para tais pensamentos. Ele tinha Madson. tinha Tom. Nunca dividiram aquela cama, aquele apartamento, ou uma vida a dois. – ? Minha cerveja.
– Um gato gordo é menos folgado que você, .
Estava tocando Florence + The Machine quando voltou para o quarto, vinha da TV onde havia conectado o Youtube. Ela esperou por sua longneck, mas não ficou para fazer companhia à ele. Carregou a cerveja e sua mochila para dentro do banheiro. sentou-se na cama e se concentrou no barulho do chuveiro. A adorável tortura do “tão perto, tão longe” de sempre.
Pela primeira vez no dia olhou seu celular. Havia mensagens de Madson em resposta ao bilhete que ele havia deixado antes de sair de casa. “Aproveite sua despedida, futuro marido”, dizia a primeira, e depois minutos depois enviara outra: “soou um tanto psicopata, não foi a intenção, não me deixe no altar! Te amo!”.
riu, lembrando-se do porquê havia deixado Madson entrar e ficar. Era fácil amá-la. Deus, como gostaria de amá-la naquela proporção que ela demonstrava amá-lo. Como merecia ser amada.
Deixou uma mensagem, contando brevemente o que já haviam feito e pra onde estariam indo em breve. Esperou um tempo pela resposta, depois conectou o celular no carregador e esqueceu-se dele. Propositalmente.
esperou até que o corpo estivesse menos úmido e quente para vestir a calça, sua falta de jeito corriqueira fazendo com que os rasgos propositais ao longo do jeans se abrissem ainda mais. Separou a babylook preta que havia enfiado na mochila pela manhã, mas decidiu colocá-la só depois da maquiagem – o delineador preto e o batom vermelho escuro de sempre.
Soltou e prendeu o cabelo quatro ou cinco vezes. Deixou solto, mas guardou o lacinho no bolso de trás do jeans.
Ela não olhou diretamente para quando voltou para o quarto, vestindo distraidamente sua jaqueta de couro. E ele estava feliz que ela não tivesse feito, não sabia quanto de seu deslumbre havia sido refletido em seus olhos ou expressão, ela talvez notasse. Detestava ser o cara que estava sucumbindo de desejo por daquele jeito que ela detestava que fizessem.
Tratou de ir para o banho enquanto ela calçava as botas outra vez, cantarolando uma música do Jimmy Eat World que não lembrava o nome.
girou o maço de Marlboro enquanto atravessava o apartamento em direção à sacada. A cidade estava toda acesa, ela notou enquanto acendia um cigarro, debruçada na balaustrada. A voz de soando etérea em sua lembrança. “Você já se perguntou como seria se tivesse vindo?”. Já, queria ter respondido. Houve um tempo em que se fazia aquela pergunta todos os dias e sofria com cada uma das respostas que elaborava pra si mesma – mesmo aquelas que deveriam servir para confortá-la. Mesmo quando pensava que não daria em nada, que continuariam sendo apenas amigos. Ainda preferia estar ao lado dele.
Na sacada do apartamento de , aquela pergunta arrastou para dentro da fantasia de uma vida compartilhada com ele.
Imaginou a si mesma chegando do trabalho, qualquer que fosse e deixando sua bolsa naquele mancebo ao lado da porta, as chaves no aparador de madeira. Encontraria em seu caminho de volta do banho, apenas esperando por ela para dividirem o jantar que ele trouxe de algum restaurante enquanto voltava pra casa. Uma vida cheia de normalidade, quase tediosa, que ela adoraria ter.
Vivendo naqueles cômodos, dividindo o sofá da sala ou a banheira na qual havia descansado seu corpo nos últimos minutos.
Era doloroso.
Mais do que poderia suportar.
– Hey... – chamou e ela temeu que sua melancolia fosse tão grande que tivesse tomado uma forma física, algo como uma nuvem azul acinzentada pairando ao seu redor. apoiou os antebraços na balaustrada e reconheceu a pequena lata que ele tinha em mãos. – Pensei que podíamos... Pelos velhos tempos.
– Está vendo por que a vida separou nós dois? – comentou e pensou que ela teria algo sério a dizer. – Só fazemos merda juntos! – Ele cedeu um riso divertido. – , faz muito tempo que eu, hm... Não fumo... Não sei mesmo se é boa ideia.
– Velha...
– Quem de nós dois tem o maior histórico de teto preto, ?
Capítulo 12
Estavam atrasados para o cover porque não conseguia encontrar sua jaqueta jeans e levou um tempo até se recordar de que havia deixado na caminhonete. Passaram para buscar antes de conseguirem um táxi até o pequeno pub Inglês, The Pickey.
A banda tocava “We Can Work It Out” e inventou uma teoria de que deveriam ter começado há pouco tempo. Era uma “música de começo de show” na sua opinião. não discordou, porque não estava interessada em procurar argumentos.
Sentaram-se nos bancos do canto em frente ao balcão. Pediram a primeira rodada de cervejas e um fish ‘n chips para dividir. Aproveitaram a música para não precisarem conversar, enquanto desfrutavam dos esbarrões de seus joelhos, que de acidentais tinham muito pouco.
quis confidenciar à que, desde que chegara em Los Angeles, sentia-se presa em uma Tardis, a famosa nave espacial de Dr. Who. Viajando pelo tempo, o tempo todo. Mas temeu que a noite ganhasse um aspecto deprimido, então cantou bem alto “With A Little Help From My Friends”, que parecia dizer muito sobre quem costumavam ser, sobre a amizade que costumavam ter. Por um momento, nada parecia ter mudado.
“Get Back” ainda era a música favorita de . “Revolution” ainda era a de . E quando a banda tocou “I Want Her (She’s So Heavy)”, ele foi embalado naquele desejo usual de poder direcionar sua cantoria a ela. Ainda fazia tanto sentido. Meu Deus, como fazia sentido. Mesmo o solo de guitarra parecia falar sobre eles, sobre a maneira como amava tão intensa, verdadeira e dolorosamente. E, àquela altura da noite, ele não via qualquer possibilidade de negar a realidade que, irritantemente, vinha cutucando seu coração há dias. Ou anos.
Admitir, mesmo que só pra si mesmo, que ainda era absolutamente apaixonado por tinha um aspecto perigosamente libertador. E desfrutou isso, porque embora fosse doer muito no dia seguinte, e talvez pelo resto da vida, naquela noite, ao lado dela, era encantador.
A banda estava tocando o que parecia ser uma das últimas músicas, não fosse a última. Era “Eight Days A Week” e o vocalista havia interrompido o refrão para convidar a palma de todos. Hold me (Clapclap), love me (clapclap). Ficava bonito, pensou. , ao seu lado, ficou zonzo com o barulho e o movimento de todas aquelas mãos ao mesmo tempo.
Na tentativa de recuperar-se da vertigem, levou os antebraços no balcão e deitou a testa sobre eles. Sua cabeça parecia virar cambalhotas, seu estômago acompanhou e logo havia vômito dele por toda parte.
saltou do banco, bêbada e aturdida, depois segurou o rosto dele entre suas mãos. Os olhos de , vermelhos e úmidos, giraram na órbita com dificuldade para se manterem abertos. Em um primeiro minuto, não soube o que fazer. No outro, pagou a conta, desculpou-se repetidas vezes pelo ocorrido e carregou o amigo para fora do pub.
– , olha pra mim... – Ela pediu, depois de sentá-lo nos degraus de um edifício ao lado. achou engraçado o fato de, de repente, estar mais sóbria do que a um minuto atrás. – Você tá legal?
– Se eu dormir, vou melhorar... – Comentou, apoiando seu rosto na grade. – Pode ir lá, eu vou dormir um pouquinho... – conteve o riso, as mãos apoiadas nos joelhos do amigo. – É sério, poopface, pode ir.
– Que tal irmos pro seu apartamento? – Propôs, porque não achava boa ideia levar naquelas condições para a casa dos sogros. – Vou conseguir um táxi.
– Me desculpa, ... – Ele pediu e na escolha das palavras e do tom de voz pareceu mais sóbrio, sabia que era só sorte. – Eu estraguei tudo.
– Que nada – Ela disparou imediatamente, sentando-se ao lado dele. – Você não estragou nada, eu me diverti muito! Além disso, já é fim de noite, a banda já estava por se despedir... – começou a negar com a cabeça e, zonzo, apoiou a testa na palma da mão. – Eight Days A Week é, definitivamente, uma “música de fim de show”.
– Estraguei tudo. – E começou a perceber que ele não estava falando sobre aquela noite em específico. Ela não sabia se queria ouvir.
– Vou conseguir um táxi, tudo bem? Não sai daqui.
disparou para longe dele, o coração batendo depressa contra seu peito, curioso e receoso com o que poderia ter a dizer. O que quer que fosse, ela não achava que seria uma conversa saudável para aquela noite. Ou para aquela vida.
dormiu logo que o taxista começou a dirigir em direção ao apartamento. Os degraus foram uma tarefa árdua e ela precisou destrancar a porta, porque ele claramente não encontraria a lingueta em menos de duas horas.
andou, cambaleante, até a sacada, soltando-se contra chão e encostando a cabeça pra trás. O vento em seu rosto dando a ele uma expectativa de melhora.
– Quer um pouco de água? – Não era exatamente uma pergunta, e por isso ela já havia trazido uma garrafa. – Não é melhor você ligar para a Madson? Diga que não estou legal e acabei pegando no sono... Ela vai ficar preocupada se você não aparecer.
– Eu não sei onde está meu celular...
– Estava no seu quarto, carregando... Quer que eu pegue?
não respondeu e ela não tinha certeza de que ele estava acordado. Se estivesse, não seria por muito tempo, então apressou-se em buscar o aparelho. Ao desconectá-lo do carregador, a tela se iluminou e uma notificação de Madson surgiu na tela. não deveria ler por diversos motivos, ainda assim não conseguiu evitar. “Última noite como namorado e namorada, volte logo”.
quase podia sentir o choro avançando de seu peito para a garganta, queimando dolorosamente tudo por onde passava. Respirou fundo duas ou três vezes, seu controle emocional funcionado precariamente depois de todo o álcool. Quando teve certeza de que não ia chorar, pelo menos não naquele momento, levantou-se e levou o celular para .
A conversa entre ele e Madson não pareceu agradável, mas tentou não prestar atenção, preferia não ouvir caso decidisse declarar palavras ébrias e românticas à futura esposa. Ao invés disso, colocou a vitrola de na tomada e escolheu um disco de sua pequena nova coleção. Tinha um terço dos que estavam na casa dela, por outro lado, estavam mais conservados. Não pareciam ser ouvidos com frequência.
– Quem é o velho agora? – Ela provocou, sentando-se no chão da sacada, de frente para ele e contra o vento. sorriu, abrindo os olhos preguiçosamente.
– Quem diria... – Disparou, cruzando os braços desajeitadamente. – Você e eu sentados aqui, na minha despedida de solteiro.
– Quem diria... – concordou e torceu pra que ele escolhesse qualquer outro assunto para ser discutido. Qualquer dos tópicos confortáveis que gostavam de falar. Livros, música, filmes... Nunca sobre eles.
– Daqui dezoito horas eu estarei casado... – Continuou o rapaz, os olhos perdidos na noite. quis que ele pegasse no sono, assim, de repente, como havia feito no táxi. – Daqui um tempo você também estará. – Os olhos dela fugiram dos dele, que agora focavam seu rosto pacientemente. – Ou você e Tom ainda não pensaram nisso? – torceu pra que tivessem pensado e assim não seria ele o único responsável por aquele “nunca mais” piscando por trás de seus olhos.
– ... – Ela precisou aclarar a garganta para ganhar tempo, pensando em como daria aquela notícia. – Eu e Tom, nós... Não estamos mais juntos.
– Como é? – E então sentiu como se o chão abaixo dele estivesse abrindo e o levando, em queda livre, para lugar nenhum. – Por que não me disse?
– Só... – E negou com a cabeça, e para foi como reviver a cena da noite em que soube que ela e Tom estavam namorando.
– “Não é importante?” – Ela ergueu o rosto, quase ouvindo a própria voz naquela noite de 2009. – Há quanto tempo?
– Pouco mais de 10 meses... 10 ou 11...
– 10 ou 11 meses, ? – A mente ébria de fazendo os cálculos o mais rápido que podia. Agosto. Dois meses antes de pedir Madson em casamento.
– Acho que sim... – Ela precisava de um cigarro.
– Faz um ano que você rompeu seu relacionamento de seis anos e você não achou importante me contar? – Para , aquela acusação soou quase como uma provocação, ela podia sentir o peito se enchendo de ressentimento.
– Mal estávamos nos falando, ! – Argumentou, desafinada. O rapaz sorriu nervoso, descruzando os braços para puxar os cabelos pra trás.
– Eu achei que estivéssemos acima disso! Achei que você soubesse que pode contar comigo!
– Mesmo que você só falasse comigo quando eu telefonasse ou mandasse e-mails? – A voz dela, mesmo trêmula, soou tão precisa quanto o golpe de uma espada. Touché! – Você se lembra de ter ligado pra mim no dia do meu aniversário, no ano passado? – E revirou todos os cantos em busca daquela lembrança. Não havia uma. – Você não ligou e naquela noite Tom me pediu em casamento... – sentiu como se o coração tivesse dado uma pirueta mal elaborada e caído com as costelas na quina de algum móvel. – E eu te liguei uma madrugada inteira, porque embora não fizesse nenhum sentido, eu não conseguia parar de pensar naquela noite em que assistimos “O Exorcista”. Você lembra? – E ele se lembrava, mas não esperou por sua resposta. – Eu estava aterrorizada e liguei pra você porque não conseguia dormir, então você abriu sites de curiosidades e erros de gravação, você leu cada item para me mostrar que era só um filme e que eu não precisava ter medo... – pausou, sentindo-se zonza e só depois de uma ruidosa lufada de ar, continuou: – Quando Tom me pediu em casamento e eu me vi obrigada a dizer sim... , a última vez que eu havia me sentido tão apavorada foi naquela noite, do Exorcista. Eu te liguei e torci pra que você tivesse algumas palavras para me confortar, me garantir que estava tudo bem... – era uma chorona de primeira, mas descobriu com o tempo que nunca se acostumaria com seu pranto. Pegou-se em ruínas outra vez diante de suas lágrimas. – Me convencer de que eu estava fazendo a coisa certa... Mas seu celular estava desligado e ficou desligado pelos próximos dias todos. Então quatro meses mais tarde você me ligou, dizendo que tinha sido assaltado e trocado o número, mas aparentemente se esqueceu de me avisar... Você disse que queria meu endereço...
– Para te enviar meu convite de casamento... – concluiu e sua voz era apenas um sussurro aflito.
– Eu decidi terminar com ele. Cinco ou seis dias depois do pedido... – E já havia pensado naquela história um milhão de vezes, mas nunca verbalizado. – Porque não era justo com nenhum de nós... – Ela lambeu os lábios, o gosto salgado das lágrimas impregnou em sua língua. – Eu nunca planejei casamentos ou vida à dois, mas eu esperava que se algum dia isso chegasse a acontecer, seria com alguém de quem eu não precisasse esconder nenhum dos meus lados, com quem eu me sentisse à vontade para contar sobre o meu dia, ou sobre algo muito mais pessoal. Alguém com quem eu pudesse transar de luzes acesas... – respirou fundo, tentando se desfazer da angústia que espremia seu peito. – E não era só medo de dar errado, embora fosse isso também. Eu só queria me sentir entusiasmada com a ideia, apesar de tudo. Mas não havia nada disso entre eu e Tom e se não conseguimos construir em seis anos de relacionamento, não construiríamos em dez anos de casamento.
– Sinto muito, ... – E ele sentia. Por tantas coisas diferentes que ele poderia passar o resto da noite listando todas elas. – Eu gostaria de ter atendido ao seu telefonema.
– Está tudo bem... – Ela estava sendo honesta, notou na maneira como ela ergueu o rosto e encarou o dele, enxugando as próprias lágrimas. – Eu estou melhor sem ele e ele deu a maior sorte de escapar dessa bagunça que eu sou... Você sabe... – Ela riu, mas seu queixo continuava tremendo de comoção.
– Gosto imenso da sua bagunça... – Confidenciou e embora não fosse um segredo, os olhos de fugiram dos dele com desconcerto.
– Por que você desapareceu, ? – Ela sussurrou e se parecia mais com uma pergunta retórica do que algo a ser respondido.
– , me mudar pra cá foi a coisa mais difícil que eu já fiz em toda minha vida... – Admitiu e embora aquela fosse a conversa mais dolorosa que tinha em anos, havia sentido falta daquela cumplicidade entre eles. – E ainda assim eu vim, então você consegue imaginar o quanto viver lá estava insustentável naquele momento? Eu não podia mais, ... – E embora não tivesse visto chorar muitas vezes, reconheceu imediatamente os sinais. – Só de lembrar daquela angústia, estava me consumindo... Convencer meu pai a ir aos tratamentos e acompanhá-lo sem saber o que poderia acontecer, observar enquanto ele se alimentava, sempre com aquela impressão horrível de que ele poderia engasgar e sem ter certeza de que eu poderia ajudar... E minha mãe... Sempre à beira de um colapso, sem dormir ou comer, perdendo peso e saúde... E eu, impotente, , eu nunca tinha sentido nada parecido... Era como se eu fosse um completo inútil... – Ele precisou respirar fundo, mas respirar fundo não resolveu. – Eu tinha essa esperança de que quando você voltasse de Leeds, talvez as coisas voltassem a fazer sentido e recuperassem a leveza de sempre... Você fazia com que eu me sentisse esperançoso... Como todas as vezes que eu passava horas tentando organizar meu cubo mágico, pra você chegar no fim da tarde e solucionar em vinte minutos... – soluçou contra o punho, pressionado na boca, os olhos escondidos sob os cílios molhados. – Mas você estava sempre ocupada e tinha Tom, então você passava muito tempo em Leeds... E eu não te culpo por isso, por nada disso... Eu nem poderia, porque eu nunca tive essa conversa com você antes... Eu nunca te disse o quanto precisava de você... Eu só... Fiquei esgotado, de energia e de perspectivas... Eu precisava... Eu só... Precisava sair de lá.
– Você foi tão egoísta, ! – Aquela acusação pesou no coração do rapaz. Ele fechou os olhos e aceitou, pois sentia que merecia. – Você simplesmente fugiu... E nunca voltou, , você nunca voltou! – E essa era a parte que mais doía, ambos sabiam disso.
– Eu não consegui...
– Você não tentou! – Era um grito. E encontrava beleza mesmo no lado tempestuoso de . – Seus pais precisavam de você, eu precisava de você, mas você estava preocupado demais com o quanto você precisava de você mesmo, não é? Sua mãe também estava esgotada de energia e perspectivas, e esse era o motivo pelo qual ela não comia ou dormia, ela também não sabia o que fazer, ou tinha forças pra isso... Sozinha e culpada... E seu pai, quem você acha que é para se ver mais esgotado de energia e perspectivas que ele, ? – Ela quis interromper quando as lágrimas dele começaram a cair com mais frequência, sua mão pálida limpando as antigas para dar espaço às novas. – Ele era quem tinha menos perspectivas de vocês três, desmotivado por um tratamento que demorava a dar resultados, dependendo de você para ir ao banheiro ou tomar banho, sendo assistido enquanto comia, com a sensação horrível de que poderia engasgar a qualquer momento e sequer tinha a certeza de que ele ou você poderiam resolver de alguma forma...
– ... – Ele sussurrou, a dor se espalhando, de seu coração para todo o seu corpo.
– É bom, não é? Ir embora, fingir que não está deixando nada pra trás... Parece esperançoso pra mim... – arfou, tão sem fôlego quanto ele parecia estar. E embaixo das lágrimas, dele e as suas próprias, o reconheceu. Seu melhor amigo, encolhido no canto daquela sacada como se quisesse se proteger de uma surra. – Oh, ... – Soprou, erguendo-se nos próprios joelhos e atraindo-o para um abraço. – Oh, meu Deus, me desculpa... Você sabe que eu não levo jeito para broncas...
– Você é durona, poopface... – Ele murmurou e mesmo as palavras mais simples ganhavam um tom de ebriedade naquele momento.
– Alguém tem que fazer o trabalho sujo... – Eles fizeram um caminho por entre todo o desconsolo e sorriram.
deixou-se ser abraçado, porque não se julgava capaz de recusar qualquer conforto depois de ser despido de suas defesas todas. Uma criança perdida no meio da própria confusão, sendo engolida pela culpa de não ter agido como deveria, mas com o peso de ser um adulto e precisar lidar com as consequências de suas escolhas.
Nenhum videogame para ser tirado de seu poder, seu castigo era lidar com o desapontamento nos olhos de quem amava.
E apesar de ter sido a despertar sua dor, que de tão intensa pareceu física, ele estava feliz que também fosse ela ali, encontrando seu aspecto miserável, embaixo das máscaras que vinha usando. Podia finalmente ser quem era, mesmo que naquele momento fosse alguém de quem não se orgulhava.
sentou-se ao lado dele, mantendo um braço ao seu redor e o sentiu no contato de seus corpos, enquanto ele se acalmava. Livrando-se aos poucos da tremedeira, dos espasmos, recuperando-se da vertigem da bebida e dos sintomas da hipotensão.
Ela, exausta, gostou de ver o sol começando a despontar no céu. Era sábado. O tão-nada-esperado sábado. E de alguma maneira ela olhou pra ele com otimismo. Depois da loucura de todos os últimos dias, estavam a um passo de voltar à normalidade – talvez mais dolorosa e menos brilhante, mas ao menos familiar.
– Vem, vamos deitar... – Ela convidou, erguendo-se antes dele, que já parecia adormecido em seu ombro há um tempo. – Pelo menos uma ou duas horinhas... É o dia do seu casamento, meu amigo.
sorriu com desassossego e aceitou a ajuda de para se levantar. Andaram juntos até o quarto e livraram-se de suas jaquetas e calçados antes de se acomodarem na cama, que parecia ainda mais confortável depois do tempo que passaram sentados no chão.
Deitaram próximos e, de tão próximos, suas testas quase se encostavam, mas bêbados e cansados pouco se incomodaram com a ansiedade que isso provocava. observou o rosto adormecido de , sua pele manchada de vermelho em pontos diferentes. Pálpebras, nariz, boca. Quis voltar atrás e ter mantido sua opinião velada, mas afugentou o pensamento e a culpa, fazia parte de seu papel de melhor amiga contribuir para o bem-estar dele, mesmo que isso implicasse em um mal-estar momentâneo.
Não era a única pessoa durona ali, se recuperaria.
– ... – Ele chamou, num sussurro. Não abriu os olhos ou se moveu, apenas respirou fundo e bem devagar. – Madson acha que eu sou apaixonado por você... – E sentiu como se estivesse na descida de uma das montanhas-russas do parque que haviam visitado. Seu coração agitou-se e não achava que houvesse algo no mundo capaz de fazer com que seu corpo parasse de tremer. – E eu também acho que eu sou.
A banda tocava “We Can Work It Out” e inventou uma teoria de que deveriam ter começado há pouco tempo. Era uma “música de começo de show” na sua opinião. não discordou, porque não estava interessada em procurar argumentos.
Sentaram-se nos bancos do canto em frente ao balcão. Pediram a primeira rodada de cervejas e um fish ‘n chips para dividir. Aproveitaram a música para não precisarem conversar, enquanto desfrutavam dos esbarrões de seus joelhos, que de acidentais tinham muito pouco.
quis confidenciar à que, desde que chegara em Los Angeles, sentia-se presa em uma Tardis, a famosa nave espacial de Dr. Who. Viajando pelo tempo, o tempo todo. Mas temeu que a noite ganhasse um aspecto deprimido, então cantou bem alto “With A Little Help From My Friends”, que parecia dizer muito sobre quem costumavam ser, sobre a amizade que costumavam ter. Por um momento, nada parecia ter mudado.
“Get Back” ainda era a música favorita de . “Revolution” ainda era a de . E quando a banda tocou “I Want Her (She’s So Heavy)”, ele foi embalado naquele desejo usual de poder direcionar sua cantoria a ela. Ainda fazia tanto sentido. Meu Deus, como fazia sentido. Mesmo o solo de guitarra parecia falar sobre eles, sobre a maneira como amava tão intensa, verdadeira e dolorosamente. E, àquela altura da noite, ele não via qualquer possibilidade de negar a realidade que, irritantemente, vinha cutucando seu coração há dias. Ou anos.
Admitir, mesmo que só pra si mesmo, que ainda era absolutamente apaixonado por tinha um aspecto perigosamente libertador. E desfrutou isso, porque embora fosse doer muito no dia seguinte, e talvez pelo resto da vida, naquela noite, ao lado dela, era encantador.
A banda estava tocando o que parecia ser uma das últimas músicas, não fosse a última. Era “Eight Days A Week” e o vocalista havia interrompido o refrão para convidar a palma de todos. Hold me (Clapclap), love me (clapclap). Ficava bonito, pensou. , ao seu lado, ficou zonzo com o barulho e o movimento de todas aquelas mãos ao mesmo tempo.
Na tentativa de recuperar-se da vertigem, levou os antebraços no balcão e deitou a testa sobre eles. Sua cabeça parecia virar cambalhotas, seu estômago acompanhou e logo havia vômito dele por toda parte.
saltou do banco, bêbada e aturdida, depois segurou o rosto dele entre suas mãos. Os olhos de , vermelhos e úmidos, giraram na órbita com dificuldade para se manterem abertos. Em um primeiro minuto, não soube o que fazer. No outro, pagou a conta, desculpou-se repetidas vezes pelo ocorrido e carregou o amigo para fora do pub.
– , olha pra mim... – Ela pediu, depois de sentá-lo nos degraus de um edifício ao lado. achou engraçado o fato de, de repente, estar mais sóbria do que a um minuto atrás. – Você tá legal?
– Se eu dormir, vou melhorar... – Comentou, apoiando seu rosto na grade. – Pode ir lá, eu vou dormir um pouquinho... – conteve o riso, as mãos apoiadas nos joelhos do amigo. – É sério, poopface, pode ir.
– Que tal irmos pro seu apartamento? – Propôs, porque não achava boa ideia levar naquelas condições para a casa dos sogros. – Vou conseguir um táxi.
– Me desculpa, ... – Ele pediu e na escolha das palavras e do tom de voz pareceu mais sóbrio, sabia que era só sorte. – Eu estraguei tudo.
– Que nada – Ela disparou imediatamente, sentando-se ao lado dele. – Você não estragou nada, eu me diverti muito! Além disso, já é fim de noite, a banda já estava por se despedir... – começou a negar com a cabeça e, zonzo, apoiou a testa na palma da mão. – Eight Days A Week é, definitivamente, uma “música de fim de show”.
– Estraguei tudo. – E começou a perceber que ele não estava falando sobre aquela noite em específico. Ela não sabia se queria ouvir.
– Vou conseguir um táxi, tudo bem? Não sai daqui.
disparou para longe dele, o coração batendo depressa contra seu peito, curioso e receoso com o que poderia ter a dizer. O que quer que fosse, ela não achava que seria uma conversa saudável para aquela noite. Ou para aquela vida.
dormiu logo que o taxista começou a dirigir em direção ao apartamento. Os degraus foram uma tarefa árdua e ela precisou destrancar a porta, porque ele claramente não encontraria a lingueta em menos de duas horas.
andou, cambaleante, até a sacada, soltando-se contra chão e encostando a cabeça pra trás. O vento em seu rosto dando a ele uma expectativa de melhora.
– Quer um pouco de água? – Não era exatamente uma pergunta, e por isso ela já havia trazido uma garrafa. – Não é melhor você ligar para a Madson? Diga que não estou legal e acabei pegando no sono... Ela vai ficar preocupada se você não aparecer.
– Eu não sei onde está meu celular...
– Estava no seu quarto, carregando... Quer que eu pegue?
não respondeu e ela não tinha certeza de que ele estava acordado. Se estivesse, não seria por muito tempo, então apressou-se em buscar o aparelho. Ao desconectá-lo do carregador, a tela se iluminou e uma notificação de Madson surgiu na tela. não deveria ler por diversos motivos, ainda assim não conseguiu evitar. “Última noite como namorado e namorada, volte logo”.
quase podia sentir o choro avançando de seu peito para a garganta, queimando dolorosamente tudo por onde passava. Respirou fundo duas ou três vezes, seu controle emocional funcionado precariamente depois de todo o álcool. Quando teve certeza de que não ia chorar, pelo menos não naquele momento, levantou-se e levou o celular para .
A conversa entre ele e Madson não pareceu agradável, mas tentou não prestar atenção, preferia não ouvir caso decidisse declarar palavras ébrias e românticas à futura esposa. Ao invés disso, colocou a vitrola de na tomada e escolheu um disco de sua pequena nova coleção. Tinha um terço dos que estavam na casa dela, por outro lado, estavam mais conservados. Não pareciam ser ouvidos com frequência.
– Quem é o velho agora? – Ela provocou, sentando-se no chão da sacada, de frente para ele e contra o vento. sorriu, abrindo os olhos preguiçosamente.
– Quem diria... – Disparou, cruzando os braços desajeitadamente. – Você e eu sentados aqui, na minha despedida de solteiro.
– Quem diria... – concordou e torceu pra que ele escolhesse qualquer outro assunto para ser discutido. Qualquer dos tópicos confortáveis que gostavam de falar. Livros, música, filmes... Nunca sobre eles.
– Daqui dezoito horas eu estarei casado... – Continuou o rapaz, os olhos perdidos na noite. quis que ele pegasse no sono, assim, de repente, como havia feito no táxi. – Daqui um tempo você também estará. – Os olhos dela fugiram dos dele, que agora focavam seu rosto pacientemente. – Ou você e Tom ainda não pensaram nisso? – torceu pra que tivessem pensado e assim não seria ele o único responsável por aquele “nunca mais” piscando por trás de seus olhos.
– ... – Ela precisou aclarar a garganta para ganhar tempo, pensando em como daria aquela notícia. – Eu e Tom, nós... Não estamos mais juntos.
– Como é? – E então sentiu como se o chão abaixo dele estivesse abrindo e o levando, em queda livre, para lugar nenhum. – Por que não me disse?
– Só... – E negou com a cabeça, e para foi como reviver a cena da noite em que soube que ela e Tom estavam namorando.
– “Não é importante?” – Ela ergueu o rosto, quase ouvindo a própria voz naquela noite de 2009. – Há quanto tempo?
– Pouco mais de 10 meses... 10 ou 11...
– 10 ou 11 meses, ? – A mente ébria de fazendo os cálculos o mais rápido que podia. Agosto. Dois meses antes de pedir Madson em casamento.
– Acho que sim... – Ela precisava de um cigarro.
– Faz um ano que você rompeu seu relacionamento de seis anos e você não achou importante me contar? – Para , aquela acusação soou quase como uma provocação, ela podia sentir o peito se enchendo de ressentimento.
– Mal estávamos nos falando, ! – Argumentou, desafinada. O rapaz sorriu nervoso, descruzando os braços para puxar os cabelos pra trás.
– Eu achei que estivéssemos acima disso! Achei que você soubesse que pode contar comigo!
– Mesmo que você só falasse comigo quando eu telefonasse ou mandasse e-mails? – A voz dela, mesmo trêmula, soou tão precisa quanto o golpe de uma espada. Touché! – Você se lembra de ter ligado pra mim no dia do meu aniversário, no ano passado? – E revirou todos os cantos em busca daquela lembrança. Não havia uma. – Você não ligou e naquela noite Tom me pediu em casamento... – sentiu como se o coração tivesse dado uma pirueta mal elaborada e caído com as costelas na quina de algum móvel. – E eu te liguei uma madrugada inteira, porque embora não fizesse nenhum sentido, eu não conseguia parar de pensar naquela noite em que assistimos “O Exorcista”. Você lembra? – E ele se lembrava, mas não esperou por sua resposta. – Eu estava aterrorizada e liguei pra você porque não conseguia dormir, então você abriu sites de curiosidades e erros de gravação, você leu cada item para me mostrar que era só um filme e que eu não precisava ter medo... – pausou, sentindo-se zonza e só depois de uma ruidosa lufada de ar, continuou: – Quando Tom me pediu em casamento e eu me vi obrigada a dizer sim... , a última vez que eu havia me sentido tão apavorada foi naquela noite, do Exorcista. Eu te liguei e torci pra que você tivesse algumas palavras para me confortar, me garantir que estava tudo bem... – era uma chorona de primeira, mas descobriu com o tempo que nunca se acostumaria com seu pranto. Pegou-se em ruínas outra vez diante de suas lágrimas. – Me convencer de que eu estava fazendo a coisa certa... Mas seu celular estava desligado e ficou desligado pelos próximos dias todos. Então quatro meses mais tarde você me ligou, dizendo que tinha sido assaltado e trocado o número, mas aparentemente se esqueceu de me avisar... Você disse que queria meu endereço...
– Para te enviar meu convite de casamento... – concluiu e sua voz era apenas um sussurro aflito.
– Eu decidi terminar com ele. Cinco ou seis dias depois do pedido... – E já havia pensado naquela história um milhão de vezes, mas nunca verbalizado. – Porque não era justo com nenhum de nós... – Ela lambeu os lábios, o gosto salgado das lágrimas impregnou em sua língua. – Eu nunca planejei casamentos ou vida à dois, mas eu esperava que se algum dia isso chegasse a acontecer, seria com alguém de quem eu não precisasse esconder nenhum dos meus lados, com quem eu me sentisse à vontade para contar sobre o meu dia, ou sobre algo muito mais pessoal. Alguém com quem eu pudesse transar de luzes acesas... – respirou fundo, tentando se desfazer da angústia que espremia seu peito. – E não era só medo de dar errado, embora fosse isso também. Eu só queria me sentir entusiasmada com a ideia, apesar de tudo. Mas não havia nada disso entre eu e Tom e se não conseguimos construir em seis anos de relacionamento, não construiríamos em dez anos de casamento.
– Sinto muito, ... – E ele sentia. Por tantas coisas diferentes que ele poderia passar o resto da noite listando todas elas. – Eu gostaria de ter atendido ao seu telefonema.
– Está tudo bem... – Ela estava sendo honesta, notou na maneira como ela ergueu o rosto e encarou o dele, enxugando as próprias lágrimas. – Eu estou melhor sem ele e ele deu a maior sorte de escapar dessa bagunça que eu sou... Você sabe... – Ela riu, mas seu queixo continuava tremendo de comoção.
– Gosto imenso da sua bagunça... – Confidenciou e embora não fosse um segredo, os olhos de fugiram dos dele com desconcerto.
– Por que você desapareceu, ? – Ela sussurrou e se parecia mais com uma pergunta retórica do que algo a ser respondido.
– , me mudar pra cá foi a coisa mais difícil que eu já fiz em toda minha vida... – Admitiu e embora aquela fosse a conversa mais dolorosa que tinha em anos, havia sentido falta daquela cumplicidade entre eles. – E ainda assim eu vim, então você consegue imaginar o quanto viver lá estava insustentável naquele momento? Eu não podia mais, ... – E embora não tivesse visto chorar muitas vezes, reconheceu imediatamente os sinais. – Só de lembrar daquela angústia, estava me consumindo... Convencer meu pai a ir aos tratamentos e acompanhá-lo sem saber o que poderia acontecer, observar enquanto ele se alimentava, sempre com aquela impressão horrível de que ele poderia engasgar e sem ter certeza de que eu poderia ajudar... E minha mãe... Sempre à beira de um colapso, sem dormir ou comer, perdendo peso e saúde... E eu, impotente, , eu nunca tinha sentido nada parecido... Era como se eu fosse um completo inútil... – Ele precisou respirar fundo, mas respirar fundo não resolveu. – Eu tinha essa esperança de que quando você voltasse de Leeds, talvez as coisas voltassem a fazer sentido e recuperassem a leveza de sempre... Você fazia com que eu me sentisse esperançoso... Como todas as vezes que eu passava horas tentando organizar meu cubo mágico, pra você chegar no fim da tarde e solucionar em vinte minutos... – soluçou contra o punho, pressionado na boca, os olhos escondidos sob os cílios molhados. – Mas você estava sempre ocupada e tinha Tom, então você passava muito tempo em Leeds... E eu não te culpo por isso, por nada disso... Eu nem poderia, porque eu nunca tive essa conversa com você antes... Eu nunca te disse o quanto precisava de você... Eu só... Fiquei esgotado, de energia e de perspectivas... Eu precisava... Eu só... Precisava sair de lá.
– Você foi tão egoísta, ! – Aquela acusação pesou no coração do rapaz. Ele fechou os olhos e aceitou, pois sentia que merecia. – Você simplesmente fugiu... E nunca voltou, , você nunca voltou! – E essa era a parte que mais doía, ambos sabiam disso.
– Eu não consegui...
– Você não tentou! – Era um grito. E encontrava beleza mesmo no lado tempestuoso de . – Seus pais precisavam de você, eu precisava de você, mas você estava preocupado demais com o quanto você precisava de você mesmo, não é? Sua mãe também estava esgotada de energia e perspectivas, e esse era o motivo pelo qual ela não comia ou dormia, ela também não sabia o que fazer, ou tinha forças pra isso... Sozinha e culpada... E seu pai, quem você acha que é para se ver mais esgotado de energia e perspectivas que ele, ? – Ela quis interromper quando as lágrimas dele começaram a cair com mais frequência, sua mão pálida limpando as antigas para dar espaço às novas. – Ele era quem tinha menos perspectivas de vocês três, desmotivado por um tratamento que demorava a dar resultados, dependendo de você para ir ao banheiro ou tomar banho, sendo assistido enquanto comia, com a sensação horrível de que poderia engasgar a qualquer momento e sequer tinha a certeza de que ele ou você poderiam resolver de alguma forma...
– ... – Ele sussurrou, a dor se espalhando, de seu coração para todo o seu corpo.
– É bom, não é? Ir embora, fingir que não está deixando nada pra trás... Parece esperançoso pra mim... – arfou, tão sem fôlego quanto ele parecia estar. E embaixo das lágrimas, dele e as suas próprias, o reconheceu. Seu melhor amigo, encolhido no canto daquela sacada como se quisesse se proteger de uma surra. – Oh, ... – Soprou, erguendo-se nos próprios joelhos e atraindo-o para um abraço. – Oh, meu Deus, me desculpa... Você sabe que eu não levo jeito para broncas...
– Você é durona, poopface... – Ele murmurou e mesmo as palavras mais simples ganhavam um tom de ebriedade naquele momento.
– Alguém tem que fazer o trabalho sujo... – Eles fizeram um caminho por entre todo o desconsolo e sorriram.
deixou-se ser abraçado, porque não se julgava capaz de recusar qualquer conforto depois de ser despido de suas defesas todas. Uma criança perdida no meio da própria confusão, sendo engolida pela culpa de não ter agido como deveria, mas com o peso de ser um adulto e precisar lidar com as consequências de suas escolhas.
Nenhum videogame para ser tirado de seu poder, seu castigo era lidar com o desapontamento nos olhos de quem amava.
E apesar de ter sido a despertar sua dor, que de tão intensa pareceu física, ele estava feliz que também fosse ela ali, encontrando seu aspecto miserável, embaixo das máscaras que vinha usando. Podia finalmente ser quem era, mesmo que naquele momento fosse alguém de quem não se orgulhava.
sentou-se ao lado dele, mantendo um braço ao seu redor e o sentiu no contato de seus corpos, enquanto ele se acalmava. Livrando-se aos poucos da tremedeira, dos espasmos, recuperando-se da vertigem da bebida e dos sintomas da hipotensão.
Ela, exausta, gostou de ver o sol começando a despontar no céu. Era sábado. O tão-nada-esperado sábado. E de alguma maneira ela olhou pra ele com otimismo. Depois da loucura de todos os últimos dias, estavam a um passo de voltar à normalidade – talvez mais dolorosa e menos brilhante, mas ao menos familiar.
– Vem, vamos deitar... – Ela convidou, erguendo-se antes dele, que já parecia adormecido em seu ombro há um tempo. – Pelo menos uma ou duas horinhas... É o dia do seu casamento, meu amigo.
sorriu com desassossego e aceitou a ajuda de para se levantar. Andaram juntos até o quarto e livraram-se de suas jaquetas e calçados antes de se acomodarem na cama, que parecia ainda mais confortável depois do tempo que passaram sentados no chão.
Deitaram próximos e, de tão próximos, suas testas quase se encostavam, mas bêbados e cansados pouco se incomodaram com a ansiedade que isso provocava. observou o rosto adormecido de , sua pele manchada de vermelho em pontos diferentes. Pálpebras, nariz, boca. Quis voltar atrás e ter mantido sua opinião velada, mas afugentou o pensamento e a culpa, fazia parte de seu papel de melhor amiga contribuir para o bem-estar dele, mesmo que isso implicasse em um mal-estar momentâneo.
Não era a única pessoa durona ali, se recuperaria.
– ... – Ele chamou, num sussurro. Não abriu os olhos ou se moveu, apenas respirou fundo e bem devagar. – Madson acha que eu sou apaixonado por você... – E sentiu como se estivesse na descida de uma das montanhas-russas do parque que haviam visitado. Seu coração agitou-se e não achava que houvesse algo no mundo capaz de fazer com que seu corpo parasse de tremer. – E eu também acho que eu sou.
Capítulo 13
16 de Julho de 2016 – Los Angeles, Califórnia, USA
Havia um milhão de confidências agitadas na cabeça de se manifestando, pedindo para serem escolhidas, fazendo uma fila para serem ditas, uma a uma, da mais antiga à mais recente. E ao invés disso, ela não se moveu e fechou os olhos para caso abrisse os dele e a flagrasse desperta. Com sorte, no dia seguinte ele não se lembraria daquela declaração tardia e ela poderia voltar para Sheffield fingindo que não estava abrindo mão do que poderia ser o amor da sua vida.
Ela não conseguiu dormir, então chorou pelas próximas duas horas. Seu estômago estava enjoado, sua cabeça doía e havia essa debilidade interna e física que a fazia tremer por completo. Parecia ressaca, mas era ansiedade.
Levantou-se antes do despertador cumprir sua função e arrastou-se para o banheiro. O reencontro com sua imagem no espelho foi desagradável. Usou o lacinho de cabelo que estava em seu bolso para enrolar o cabelo num coque desgrenhado. Lavou o rosto vezes o suficiente para conseguir livrar-se da maquiagem borrada.
– ?
A voz de fez com que seus joelhos vacilassem. Antes de responder, engoliu o choro e tentou aclarar a garganta sem fazer nenhum ruído. “Precisamos ir”, ele convidou com clara urgência.
, péssima atriz que ambos sabiam que era, decidiu não encará-lo ao se cruzarem na porta do banheiro. estranhou, mas não tanto. Havia aquela lembrança, nublada e imprecisa, dentre tantas outras da noite anterior, de uma declaração que não deveria ter sido feita – talvez dez anos atrás, mas não horas antes de sua cerimônia de casamento.
Talvez fosse um sonho, ele tentou se convencer porque fazia com que se sentisse menos aflito. Ao vê-la pela primeira vez no dia, porém, soube: não era um sonho.
Quando ele saiu do banheiro, já estava pronta para partir – coturnos calçados, jaqueta vestida, mochila nos ombros. Uma pressa que sentia também em si, tão forte quanto o desconforto que era estar próximo a ela depois de sua confissão ébria e irrefletida.
Ele perguntou se ela gostaria de comer algo, mas foi sincera. “É melhor não demorarmos mais”. sabia que não tinha relação nenhuma com a mensagem zangada que havia recebido de Madson pela manhã. sequer sabia sobre ela. Era mais como a súplica por uma distância saudável, pois nenhum dos dois sabia lidar com a ansiedade crescente daquela manhã.
– Achei que tinha desistido! – Madson disparou logo que e chegaram ao corredor dos quartos. A noiva, ainda que claramente contrariada, deixou escapar um sorriso zombeteiro.
– Me desculpa, Mad... A culpa foi minha! – adiantou-se, fazendo uma careta. – Bebi demais e estraguei a noite... – a observou com curiosidade e gratidão.
– Tudo bem, ... – Anuiu a outra e parecia a única confortável com aquela reunião inesperada. – Estaremos esperando você na suíte dos meus pais, fizeram esse grande salão de beleza por lá, para arrumar as madrinhas e convidadas especiais... – Madson soltou uma piscadela divertida, depois inclinou-se para beijar a boca de . – E você, , vá tomar um banho... Está fedendo maconha, álcool e vômito... – O rapaz sorriu sem conseguir erguer os olhos em direção à futura esposa porque, especificamente naquele momento, não conseguia fazê-lo com tanto amor quanto gostaria. – Nos vemos no altar.
– Sim, senhora. – E quando Madson se afastou eles voltaram a caminhar hesitantes e débeis em direção ao quarto de . Ela não pretendia parar e fazer qualquer tipo de despedida dolorida e (des)necessária, mas a impediu de entrar, segurando sua mão. Delicado, mas preciso.
– , não... – Ela pediu, ainda de costas para ele. Os olhos cheios d’água e dor.
– ...
– ... Por favor... – Sussurrou e ele podia senti-la gélida e trêmula entre seus dedos – Por favor.
olhou para suas mãos e não parecia certo que andassem separadas quando ficavam tão bem juntas. , porém, tomou a iniciativa de começar a desvencilhar-se, escorrendo por entre seus dedos que, sem opção, afrouxaram e deixaram que ela partisse.
E dessa vez, diferente de todos os últimos anos, era definitivo.
trancou a porta o mais rápido que pôde e não por medo de que ele entrasse, mas por medo de que ela mesma saísse e se lançasse aos joelhos, implorando que ele fosse só dela e de mais ninguém.
Ao virar-se, por trás das lágrimas que turvavam sua visão, reconheceu a figura maternal de Stella, sentada na beirada de sua cama como se esperasse por aquele momento.
correu pra ela, enrolando-se no seu abraço e chorando em seu peito como uma criança desamparada. “Tudo bem, meu amor...” era tudo o que dizia com uma esperança reconfortante, porque não queria dar conselhos ou despejar julgamentos. Ela só queria que tivesse onde chorar sua dor, até estar pronta para o que restava do dia e dos anos sem .
– Eu vou preparar um banho pra você, o que acha? – Stella perguntou quando, tempo depois, o pranto de soava mais ameno. – Precisamos comer algo para irmos nos arrumar em algumas horas – e a menina chacoalhou a cabeça como quem concorda, enxugando o próprio rosto com a calma que começava a surgir dentro dela de algum lugar... – Por que não estende seu vestido enquanto isso?
ouviu o barulho do espelho se partindo – o baque, o rápido trincar de suas partículas, os estilhaços se espalhando sobre toda a bancada da pia e chão ao redor. A dor veio depois, aguda e prazerosa ao mesmo tempo. Um alivio momentâneo ao não ver mais sua imagem miserável para em seguida ser jogado de volta ao dissabor do arrependimento que era não ter se declarado nenhuma das vezes que planejara fazê-lo.
E ainda que houvesse rejeição, ainda que não pudesse retribuir, ao menos haveria a certeza de que, se não estavam juntos, era porque o amor às vezes é injustamente unilateral.
Naquele momento, com seu coração tão estourado quanto sua mão, ele não tinha certeza de nada. E que dor era a de não ter certeza de nada.
– Ah, aí estão vocês! – Madson exclamou, seu cabelo preso em um coque bonito e volumoso, rodeado por uma tiara brilhante que particularmente não gostava, mas parecia ideal para a noiva que andava apressada em direção a elas. – Lilly, essa é minha sogra, Stella... E essa é , amiga de infância do .
– É um prazer... – Lilly exclamou sem deixar de trançar habilmente as mechas de cabelo de uma das madrinhas. – Vocês já sabem o que vão querer?
– Oh, não... – Stella respondeu com um sorriso amigável. – Vou confiar em você.
– E pode confiar! – Madson garantiu, com aquele sorriso grande e entusiasmado. – E você, ?
– Pensei num milagre... – Brincou a moça, obrigando seu bom humor a se manifestar.
– Não se preocupe, daremos um jeito!
fechou os olhos quando a auxiliar de Lilly começou a secar seus cabelos, o sopro aquecido fazendo com que se sentisse confortável e sonolenta – exceto pelos momentos em que seu couro cabeludo era acidentalmente queimado ou os fios enroscavam na escova, fazendo com que se lembrasse porque ia tão pouco em salões de beleza.
Ela conferiu, minutos depois, os fios na altura dos ombros, ondulados e organizados para o lado num penteado simples. Combinava com ela tanto quanto a maquiagem, olhos pouco carregados e batom vermelho escuro. Foi sugestão de uma das madrinhas que e Stella fossem se vestir para tirar uma foto com Madson, agora que faltava pouco até a noiva ficar pronta.
retirou o vestido de dentro da capa protetora. Era um tom mais escuro de azul marinho e, embora curto, pesava mais do que parecia por conta da pedraria delicada que fora aplicada por todo o busto e ombros. Um sorriso carinhoso curvou seus lábios quando recordou-se da mãe chegando com a peça pendurada em um cabide. “Não aceito não como resposta!”, estabeleceu Martha e não recusou.
Os primeiros minutos com ele no corpo foram de puro incômodo por falta de costume ou ansiedade, ela não sabia ao certo. Depois habituou-se com o comprimento da saia evasê, com as pedras bordadas sobre o tule em seus ombros, com as costas expostas pelo decote. E, sentada na beirada da cama enquanto calçava o peeptoe nude, descobriu que seu desassossego não tinha nada a ver com o que vestia, embora fosse um bom disfarce.
Já estava saindo quando lembrou-se de colocar o celular e os cigarros dentro da clutch, que também havia sido presente da mãe. Os olhos distraídos quase não perceberam a chamada perdida de . E ela não achou que fosse ser capaz de ignorar, mas temeu que ouvi-lo, independente do que tivesse a dizer, fosse fazê-la voltar à condição vulnerável em que se encontrava poucas horas antes.
Fechou os olhos, depois a bolsa. E então deixou seu quarto pra trás.
Sentada em um chaise no canto da suíte, convencendo Stella de que estava linda com sua maquiagem, observou Madson deixar o banheiro onde estava terminando de se arrumar. O vestido, de um branco puríssimo, parecia ter sido cuidadosamente costurado em seu corpo. Havia tanta ansiedade em seus olhos mareados quanto alegria em seu sorriso imenso.
Estavam em meio a uma sessão de fotografias, da qual desejou não participar, quando a cerimonialista enfiou a cabeça porta adentro.
– Pessoal, me desculpem... Alguém viu o ? – Madson olhou para cada um dos rostos presentes no quarto, mas ninguém tinha a resposta que ela queria. – Preciso conversar com ele sobre alguns detalhes!
– Das duas, uma... – começou a noiva – Ou ele fugiu, ou está fumando escondido... Nesse caso, tomara que esteja fumando... – Os demais riram, mas um sinal vermelho irrompeu a cabeça de , sua mão correndo rapidamente para a bolsa que trazia.
– Posso procurar por ele, se quiser... – Se ofereceu, torcendo pra que sua voz não soasse tão trêmula quanto suas pernas estavam. Havia desconcerto no rosto de Madson, mas havia também uma confiança que fazia com que se sentisse demasiado injusta.
– Se encontrá-lo e conseguir arrastá-lo até o altar, o maior pedaço de bolo é seu... – Brincou Mad, soltando um riso nervoso.
– Fica tranquila, trago ele pelos cabelos, se necessário – garantiu e Madson tinha sua palavra. Saiu do quarto com pressa e conforme atravessava o corredor retornou a ligação de . Mal tocou uma vez.
– , onde você está?
– , onde você está? – Ela soprou entredentes.
– Pegue todas as suas coisas e me encontre na garagem...
– O quê? , me escuta, estão de procurando para... – Primeiro ela achou que a ligação tinha caído, para depois ter certeza de que ele quem havia desligado. – , seu grande, grande idiota!
Em passos largos e apressados alcançou a porta de saída. Verificou ligeiramente se havia alguém no redor antes de livrar-se de seus saltos e correr o mais rápido que pôde em direção à garagem, onde havia deixado Lizzy mais cedo quando chegaram.
Aturdida com a urgência na voz de , cruzou o jardim, ouvindo seus próprios passos pesados, a respiração forte e os pensamentos confusos que ziguezagueavam por sua cabeça.
“Abre essa merda” exigiu e, ao levantar suas mãos com a intenção de espalmar a porta, a mesma começou a erguer-se. Assim que encontrou espaço suficiente, esgueirou-se para dentro da garagem. adiantou-se em fechá-los ali e, somente quando a porta estava completamente abaixada, esticou-se para acender as luzes de iluminação débil e amarelada.
Havia pelo menos cinco peças diferentes compondo o fraque de . Ainda assim ele sentiu-se despido sob o olhar apreensivo de .
– , o que está havendo? – O coração dele aquietou-se no instante em que viu-se na presença dela. – O que você fez na mão? – Seus olhos verificaram o curativo mal feito e, sem saber o que exatamente deveria responder, apenas negou com a cabeça. – ?
– Não posso ir. – Disparou, com uma calma que não combinava em nada com aquela decisão extremista – Não posso...
– Como é? – E , longe de se compadecer da figura atormentada do melhor amigo, soltou seus sapatos e levou as mãos na cintura. A figura imponente não se adequava direito a sua miudeza. sorriu em meio à tragédia. – , olha pra mim... Você está ansioso, ouvi dizer que é normal ficar assim horas antes do casamento... – E enquanto ela se aproximava e buscava palavras que pudessem ajudá-lo, ele quis dizer que ela estava linda.
– Madson disse que eu não deveria entrar naquele altar pela metade... – Contou, a voz vacilante como se mal pudesse aguentar o peso das confissões que ainda restava fazer. – E passar esses últimos dias do seu lado... , não existe um terço de mim que queira fazer isso! – A moça parou onde estava e fechou seus olhos, como se pudesse atenuar sua aflição ao desaparecer com a imagem dele. Não funcionou. – Não se sinta culpada, por favor. Não é culpa sua. Sou eu... – se levantou, perfazendo a distância que o separava de . Ela queria se afastar, grandemente arrependida da decisão de ir até ali. – Eu amo Madson, acredite... Do contrário eu não teria considerado a ideia de dividir com ela minha vida. Mas, , o que eu sinto por ela é injustamente insuficiente! Eu queria poder amá-la com todo o meu coração, mas aparentemente ele ficou sem espaço muito tempo atrás.
– Não faça isso... – pediu, num sussurro indeciso. Assustadoramente tentada a ouvir o que ele tinha a dizer ao menos uma vez antes de deixá-lo ir.
– Eu não consigo chegar à conclusão do que é mais injusto... – Ele buscou a resposta nos olhos de , que era sempre mais sensata que ele. Não encontrou nada além de desassossego. – Deixá-la no altar é horrível, é provavelmente a pior coisa que eu já pensei em fazer em toda minha vida... Mas quão ruim seria oferecer à Madson centenas de dias de desamor? O que eu posso oferecer a ela além de um pouco do muito que ela está buscando nessa relação? Frustrá-la, dia após dia e após dia... Sem nenhuma perspectiva de mudança. Não acho que eu vá amá-la mais amanhã ou depois. Talvez, ao invés disso, eu a ame cada dia menos... – O silêncio de era desesperadoramente ambíguo, desejou que ainda pudesse saber exatamente o que ela estava pensando, mas não podia. – Como eu poderia ir até lá em meia hora e prometer ser fiel a ela quando estou aqui, agora, te convidando para fugirmos juntos? – prendeu a respiração, sem saber onde enfiar a euforia que aquela proposta havia causado. – Como posso ir até lá e improvisar os votos que eu sequer escrevi se agora estou aqui sugerindo de irmos o mais rápido possível até um aeroporto, pegar o primeiro avião com duas poltronas disponíveis... Poderíamos ir para o Japão ou uma cidadezinha qualquer da Suíça... Eu iria para qualquer lugar com você, , se você dissesse que sim.
– Não vamos a lugar nenhum, ... – Ela estabeleceu, contrariando todos os desejos gritantes de seu coração. – Você só está ansioso e agindo como um louco...
– Não, ... Não estou ansioso ou louco. Eu estou apaixonado por você. – E negou com a cabeça, afastando-se um passo, depois outro, incapaz de verbalizar quão aterrorizante era ouvir aquela declaração a menos de uma hora de perdê-lo para sempre. – Há dez anos... Ou onze... – cedeu um sorriso consternado e apesar de todo o mal-estar havia também um alívio amenizando sua angústia. – Não sei ao certo... É difícil dizer exatamente quando foi, não é? Talvez tenha sido logo que te conheci, daquele jeito meio infantil de se apaixonar que as crianças têm... – Ele desejou que ela parasse de caminhar às cegas para longe dele. Que abrisse os olhos e lhe sorrisse, deixasse que ele segurasse seu rosto e beijasse sua boca. – Ou em uma daquelas tardes no Duran, assistindo você viajar para mais longe a cada música... Talvez enquanto eu lia no parque e você fingia estar ouvindo, mas estava dormindo. Eu sempre soube... – , tremendo dos pés à cabeça, escorou seu corpo na porta da garagem, desejando que conseguisse atravessá-la e correr para longe o suficiente, até que os braços de não parecessem o lugar para onde gostaria de ir naquele momento. – Pode ter sido ainda em uma daquelas noites no observatório, enquanto você dançava Franz Ferdinand, completamente chapada... Com aquele corte de cabelo que era péssimo, mas ficava lindo em você... E eu poderia até pensar no Glastonbury de 2005, mas , me lembro de uma centena de situações anteriores que eu quis beijá-la como você me beijou aquela noite...
– Por que agora, ? – perguntou, num fio de voz. – Por que hoje?
– Por muito tempo tive medo do que você iria pensar, . Tive medo que você pensasse que, de repente, eu estava por perto só para conseguir, algum dia, ficar com você... Nunca, nem por um minuto, pense nisso, ... – Ela concordou com a cabeça e encolheu-se um pouco mais quando se acercou alguns passos. – Quando eu decidi que deveria abrir o jogo, ficou tarde demais.
– No casamento da minha mãe? – Ele não respondeu e não precisava responder. Suas mãos seguraram, delicadamente, o rosto de .
– Eu não consigo parar de pensar que... Se eu não tivesse sido assaltado e você tivesse me ligado aquela noite e dito que você e Tom tinham terminado... Eu jamais teria pedido Madson em casamento e não pensaria uma única vez antes de juntar todas as minhas coisas e pegar o primeiro voo para a Inglaterra...
– ... – E aquela era a coisa mais difícil que já tinha feito, mesmo antes de fazê-lo. – Você foi assaltado. E eu não consegui te ligar. Você pediu Madson em casamento... É tarde demais, .
– , não...
– Sim! – E havia tanta convicção em sua voz que soube, não tinha qualquer argumento contra o que ela dizia. – Não podemos fazer isso... Você não pode fazer isso... – Ele soltou seu rosto e colocou-se a ouvir, não parecia haver outra opção. – E não porque tem um casamento milionário bem ali do outro lado do jardim, mas porque existe essa mulher incrível lá em cima, que passaria o resto da vida se perguntando que diabos há de errado com ela para ter sido cruelmente deixada no altar... – respirou fundo e, com o choro controlado, continuou: – Ela entraria em novos relacionamentos, mas sempre só até a beiradinha, porque desenvolveria um pavor incontrolável do que poderia estar esperando por ela num mergulho... Nunca mais, , nunca mais se sentiria boa o suficiente para alguém... E não, ela talvez nunca chegasse a perceber que o grande babaca foi você... – Os lábios de se curvaram num sorriso dolorido e perturbado. – Você sabe por que deixou que ela escolhesse cada detalhe desse casamento? Desde a cor dos guardanapos, até o seu fraque? – E com a mesma delicadeza de suas palavras, apoiou as mãos no rosto de , como se quisesse mantê-lo ali, na realidade da qual estava tentando fugir. – Não é porque você não se importa com essas minúcias, ou porque não achava que saberia escolher algo legal... É porque esse é o sonho da Madson, ... E você, como a pessoa bonita que é, abriu mão de qualquer uma de suas preferências ou preocupações para que tudo saísse do jeito que ela esperava, mesmo que você tivesse que usar essa flor ridícula na sua lapela... – Um riso fraco e confuso lhes escapou, tentando encontrar-se em meio a tanta dor. – Ela está linda... Tão linda, , que eu realmente não sei o que ela está fazendo com você... – A gargalhada espontânea do rapaz fez parecer que aquele não era o momento mais penoso da vida de ambos. – Vocês vão ficar bem, acredite em mim... E mesmo que não acredite, você vai precisar tentar e arriscar, porque eu não vou deixar que você saia daqui se não for direto para o altar... – E maneou a cabeça uma única vez, concordando com o que ela dizia. o atraiu para um abraço, segurando-o perto de si como se nunca fosse deixá-lo, de fato, ir.
– Eu te amo... – confessou e pela primeira vez não falava com a -melhor-amiga, mas com a -amor-de-sua-vida.
– , por favor... – Ela pediu, o peito apertado demais para a quantidade de amor que havia em seu coração.
– Me desculpa... – fungou e desfrutou em silêncio daquele abraço que se parecia tanto com uma despedida.
– Você vem? – perguntou, soltando-se dele e indo buscar os sapatos.
– ... – E ela atentou-se a ele, enquanto calçava os saltos, apoiada na lateral de Lizzy. – Caso eu não tivesse sido assaltado, e você tivesse conseguido me ligar, e eu tivesse pego o primeiro avião para a Inglaterra... – lamentou pelo desencontro e também pelo rosto de , cheio de uma esperança que não deveria estar ali.
– Somos ótimos amigos, ... É só isso o que somos... Agora vamos, você já está atrasado!
O sol estava começando sua despedida, melancólica para uns, gloriosa para outros. A iluminação alaranjada refletindo no lilás azulado do céu de verão. Ele logo perderia suas cores abertas, ganhando tons fechados até encher-se de escuridão – exceto pelas estrelas, que logo dariam o ar da graça.
E era exatamente naquele aspecto de metamorfose que Madson planejou a cerimônia, ela achava bonita a ideia de que a mudança do dia para a noite poderia representar, também, a transformação da relação entre eles após os votos.
Os convidados já estavam acomodados e uma Stella comovida colocou-se a ajeitar ansiosamente a gravata do filho, mesmo sabendo que não havia nada a ser arrumado ali. Ele estava incrível, ela pensou ao vê-lo e repetiu isso a ele vezes o suficiente enquanto se preparavam para entrar.
Haviam velas dentro de pequenas cúpulas de vidro, espalhadas por todo o jardim e margeando o tapete branco que os levaria ao altar. Somente quanto todas elas foram acesas, a banda começou a tocar uma versão instrumental de Can’t Help Falling In Love, do Elvis Presley. ofereceu seu braço a Stella, aceitando seu porvir.
tinha razão, Madson estava linda.
E , que não tolerava injustiças, julgou-se o pior dos seres humanos. Parado ali, assistindo aquela grande mulher caminhar em direção a ele, que não tinha certeza de quanto poderia oferecer do muito que ela esperava e merecia.
Se tivesse se lembrado de escrever seus votos, diria que a felicidade dela estaria sempre acima da sua. E sabia que não havia verdade maior que essa. Ele jamais seria tão feliz quanto Madson, mas não pretendia deixá-la descobrir e esse era seu compromisso com ela.
– Existem momentos difíceis na vida de um pai... – Stephen discursou, quando convidado. O microfone em uma mão, a taça de champanhe na outra. – E existe o brinde de casamento de sua única filha... – Os convidados riram, porque era o que se esperava deles. – Um brinde à Madson e ... Que haja amor.
E ergueu seu whisky, encontrando o que restava de sua coragem para torcer: que houvesse amor, mesmo quando não houvesse tanta paixão.
Que nunca perdesse a paciência com o vinho caro com cheiro de inseto, ou se entediasse quando Madson quisesse ouvir James Morrisson. Que ele parasse de fumar escondido, porque era importante para Madson que pudesse confiar nele.
Que ela nunca, em nenhuma situação, desconfiasse que ele havia chegado tão perto de desistir. Ou descobrisse, por um descuido, que não era a mulher da vida dele.
Alguém precisava sair ileso daquela tragédia.
Que fosse Madson.
brindou a isso.
– Não vai dançar, ? – Robert perguntou e soou mais preocupado do que pretendia.
– Acho que não é uma boa ideia... – A moça respondeu e mesmo seu tom brincalhão soou deplorável. – Muito whisky para um salto tão alto.
, assim como um objeto de adorno, foi carregado para todos os cantos da festa. Cumprimentou mais gente do que conhecia e tirou mais fotos do que gostaria.
Sorriu mais do que achou ser capaz.
Esgotado, pegou-se imaginando o momento em que a banda se despediria e aquelas luzes coloridas seriam desligadas. Se acomodariam na cama de casal e ele fingiria estar bêbado demais para transar, então poderia finalmente despedir-se daquele dia que havia sido longo demais.
– Você se lembra daquela história que me contou... – Madson gritou para , sua voz soando acima da música. – Que você e iam em algumas festas para roubar bebidas... Não me lembro bem...
– Hm... Sim... – Ele respondeu e, ainda que não soubesse o motivo de Madson ter invocado aquela lembrança, sentiu-se desconfortável. – Um de nós distraía o pessoal dançando muito mal, o outro pegava a bebida... – Madson riu e, assim como havia feito da primeira vez que ouvira a história, tentou construir a cena em sua cabeça.
– Espere aqui...
– Mad?
a assistiu deixá-lo pra trás e atravessar o salão, serpenteando despreocupadamente por entre as pessoas, as poucas que ainda tinham energia no fim da noite.
Atônito, ele observou Madson inclinar-se na direção de e pouco depois rebocá-la de sua cadeira, ignorando seus protestos constrangidos. Estava descalça e os cachos artificiais tinham se desfeito, deixando seu cabelo com um aspecto puramente desarrumado. Seus olhos corriam para todos os lados e seus lábios se curvaram num sorriso nervoso.
se perguntou se era o único a notar a ironia daquela cena, quando Madson os posicionou um de frente para o outro.
– Pensei em roubar uma garrafa de qualquer coisa... Talvez possam me ajudar.
Seus olhos, tomados pelo desconforto, se encararam e se perderam repetidas vezes pelos próximos minutos. Não acharam que houvesse qualquer coisa que pudesse atenuar o embaraço. Mas Lisztomania era quase um hino de seus anos de glória e sua introdução soou como um convite. Sem nenhuma das hesitações dos últimos dias e fartos do peso daquele dia, encontraram-se às escondidas naquele espaço inventado, onde podiam ser infinitos. Um mundo inteiro resumindo-se a eles dois.
Eles começaram a rir antes de começarem a dançar. Os mesmos movimentos estranhos e desarranjados de anos atrás. A mesma diversão em cantarolar aquela letra, tão familiar e significativa para ambos.
e outra vez.
Mergulhados nas lembranças de todas aquelas noites desenfreadas, dançando na sala de algum desconhecido apenas para conseguir uma garrafa de vodka e então poderem sair de lá e ser quem queriam ser, em qualquer lugar da cidade onde pudessem se esconder um no outro, bêbados e sozinhos. Apaixonados de mansinho.
Cantando, plenos pulmões, enquanto dirigia rápido demais pelas ruas vazias.
Gargalhando de qualquer coisa.
Jovens e intensos, experimentando aquela esperança que parecia ser infindável.
O mundo costumava parecer menos assustador quanto estavam juntos.
Que estranho era vê-los dançar tão mal – e, Deus, como dançavam mal – e ainda assim não deixar de ver a beleza que havia e que vinha de dentro para fora.
E enquanto saltitavam – uma confusão de braços, pernas e sorrisos – e cantarolavam repetidamente “time to show love, time to show love”, Stella chorou. Porque e eram seu casal favorito, ainda que nunca tivessem sido um casal de verdade.
E Madson também chorou, porque, como dizia a música, era “hora de mostrar o amor” e havia tanto amor... Havia mais amor no simples dançar de ao redor de do que nos votos de casamento que trocaram mais cedo.
Do que em todas as vezes que ele beijava sua boca, afagava seus cabelos, ou encarava seus olhos irredutivelmente até fazê-la rir.
E o brinde de falhou.
Ninguém saiu ileso daquela tragédia.
Havia um milhão de confidências agitadas na cabeça de se manifestando, pedindo para serem escolhidas, fazendo uma fila para serem ditas, uma a uma, da mais antiga à mais recente. E ao invés disso, ela não se moveu e fechou os olhos para caso abrisse os dele e a flagrasse desperta. Com sorte, no dia seguinte ele não se lembraria daquela declaração tardia e ela poderia voltar para Sheffield fingindo que não estava abrindo mão do que poderia ser o amor da sua vida.
Ela não conseguiu dormir, então chorou pelas próximas duas horas. Seu estômago estava enjoado, sua cabeça doía e havia essa debilidade interna e física que a fazia tremer por completo. Parecia ressaca, mas era ansiedade.
Levantou-se antes do despertador cumprir sua função e arrastou-se para o banheiro. O reencontro com sua imagem no espelho foi desagradável. Usou o lacinho de cabelo que estava em seu bolso para enrolar o cabelo num coque desgrenhado. Lavou o rosto vezes o suficiente para conseguir livrar-se da maquiagem borrada.
– ?
A voz de fez com que seus joelhos vacilassem. Antes de responder, engoliu o choro e tentou aclarar a garganta sem fazer nenhum ruído. “Precisamos ir”, ele convidou com clara urgência.
, péssima atriz que ambos sabiam que era, decidiu não encará-lo ao se cruzarem na porta do banheiro. estranhou, mas não tanto. Havia aquela lembrança, nublada e imprecisa, dentre tantas outras da noite anterior, de uma declaração que não deveria ter sido feita – talvez dez anos atrás, mas não horas antes de sua cerimônia de casamento.
Talvez fosse um sonho, ele tentou se convencer porque fazia com que se sentisse menos aflito. Ao vê-la pela primeira vez no dia, porém, soube: não era um sonho.
Quando ele saiu do banheiro, já estava pronta para partir – coturnos calçados, jaqueta vestida, mochila nos ombros. Uma pressa que sentia também em si, tão forte quanto o desconforto que era estar próximo a ela depois de sua confissão ébria e irrefletida.
Ele perguntou se ela gostaria de comer algo, mas foi sincera. “É melhor não demorarmos mais”. sabia que não tinha relação nenhuma com a mensagem zangada que havia recebido de Madson pela manhã. sequer sabia sobre ela. Era mais como a súplica por uma distância saudável, pois nenhum dos dois sabia lidar com a ansiedade crescente daquela manhã.
– Achei que tinha desistido! – Madson disparou logo que e chegaram ao corredor dos quartos. A noiva, ainda que claramente contrariada, deixou escapar um sorriso zombeteiro.
– Me desculpa, Mad... A culpa foi minha! – adiantou-se, fazendo uma careta. – Bebi demais e estraguei a noite... – a observou com curiosidade e gratidão.
– Tudo bem, ... – Anuiu a outra e parecia a única confortável com aquela reunião inesperada. – Estaremos esperando você na suíte dos meus pais, fizeram esse grande salão de beleza por lá, para arrumar as madrinhas e convidadas especiais... – Madson soltou uma piscadela divertida, depois inclinou-se para beijar a boca de . – E você, , vá tomar um banho... Está fedendo maconha, álcool e vômito... – O rapaz sorriu sem conseguir erguer os olhos em direção à futura esposa porque, especificamente naquele momento, não conseguia fazê-lo com tanto amor quanto gostaria. – Nos vemos no altar.
– Sim, senhora. – E quando Madson se afastou eles voltaram a caminhar hesitantes e débeis em direção ao quarto de . Ela não pretendia parar e fazer qualquer tipo de despedida dolorida e (des)necessária, mas a impediu de entrar, segurando sua mão. Delicado, mas preciso.
– , não... – Ela pediu, ainda de costas para ele. Os olhos cheios d’água e dor.
– ...
– ... Por favor... – Sussurrou e ele podia senti-la gélida e trêmula entre seus dedos – Por favor.
olhou para suas mãos e não parecia certo que andassem separadas quando ficavam tão bem juntas. , porém, tomou a iniciativa de começar a desvencilhar-se, escorrendo por entre seus dedos que, sem opção, afrouxaram e deixaram que ela partisse.
E dessa vez, diferente de todos os últimos anos, era definitivo.
trancou a porta o mais rápido que pôde e não por medo de que ele entrasse, mas por medo de que ela mesma saísse e se lançasse aos joelhos, implorando que ele fosse só dela e de mais ninguém.
Ao virar-se, por trás das lágrimas que turvavam sua visão, reconheceu a figura maternal de Stella, sentada na beirada de sua cama como se esperasse por aquele momento.
correu pra ela, enrolando-se no seu abraço e chorando em seu peito como uma criança desamparada. “Tudo bem, meu amor...” era tudo o que dizia com uma esperança reconfortante, porque não queria dar conselhos ou despejar julgamentos. Ela só queria que tivesse onde chorar sua dor, até estar pronta para o que restava do dia e dos anos sem .
– Eu vou preparar um banho pra você, o que acha? – Stella perguntou quando, tempo depois, o pranto de soava mais ameno. – Precisamos comer algo para irmos nos arrumar em algumas horas – e a menina chacoalhou a cabeça como quem concorda, enxugando o próprio rosto com a calma que começava a surgir dentro dela de algum lugar... – Por que não estende seu vestido enquanto isso?
ouviu o barulho do espelho se partindo – o baque, o rápido trincar de suas partículas, os estilhaços se espalhando sobre toda a bancada da pia e chão ao redor. A dor veio depois, aguda e prazerosa ao mesmo tempo. Um alivio momentâneo ao não ver mais sua imagem miserável para em seguida ser jogado de volta ao dissabor do arrependimento que era não ter se declarado nenhuma das vezes que planejara fazê-lo.
E ainda que houvesse rejeição, ainda que não pudesse retribuir, ao menos haveria a certeza de que, se não estavam juntos, era porque o amor às vezes é injustamente unilateral.
Naquele momento, com seu coração tão estourado quanto sua mão, ele não tinha certeza de nada. E que dor era a de não ter certeza de nada.
– Ah, aí estão vocês! – Madson exclamou, seu cabelo preso em um coque bonito e volumoso, rodeado por uma tiara brilhante que particularmente não gostava, mas parecia ideal para a noiva que andava apressada em direção a elas. – Lilly, essa é minha sogra, Stella... E essa é , amiga de infância do .
– É um prazer... – Lilly exclamou sem deixar de trançar habilmente as mechas de cabelo de uma das madrinhas. – Vocês já sabem o que vão querer?
– Oh, não... – Stella respondeu com um sorriso amigável. – Vou confiar em você.
– E pode confiar! – Madson garantiu, com aquele sorriso grande e entusiasmado. – E você, ?
– Pensei num milagre... – Brincou a moça, obrigando seu bom humor a se manifestar.
– Não se preocupe, daremos um jeito!
fechou os olhos quando a auxiliar de Lilly começou a secar seus cabelos, o sopro aquecido fazendo com que se sentisse confortável e sonolenta – exceto pelos momentos em que seu couro cabeludo era acidentalmente queimado ou os fios enroscavam na escova, fazendo com que se lembrasse porque ia tão pouco em salões de beleza.
Ela conferiu, minutos depois, os fios na altura dos ombros, ondulados e organizados para o lado num penteado simples. Combinava com ela tanto quanto a maquiagem, olhos pouco carregados e batom vermelho escuro. Foi sugestão de uma das madrinhas que e Stella fossem se vestir para tirar uma foto com Madson, agora que faltava pouco até a noiva ficar pronta.
retirou o vestido de dentro da capa protetora. Era um tom mais escuro de azul marinho e, embora curto, pesava mais do que parecia por conta da pedraria delicada que fora aplicada por todo o busto e ombros. Um sorriso carinhoso curvou seus lábios quando recordou-se da mãe chegando com a peça pendurada em um cabide. “Não aceito não como resposta!”, estabeleceu Martha e não recusou.
Os primeiros minutos com ele no corpo foram de puro incômodo por falta de costume ou ansiedade, ela não sabia ao certo. Depois habituou-se com o comprimento da saia evasê, com as pedras bordadas sobre o tule em seus ombros, com as costas expostas pelo decote. E, sentada na beirada da cama enquanto calçava o peeptoe nude, descobriu que seu desassossego não tinha nada a ver com o que vestia, embora fosse um bom disfarce.
Já estava saindo quando lembrou-se de colocar o celular e os cigarros dentro da clutch, que também havia sido presente da mãe. Os olhos distraídos quase não perceberam a chamada perdida de . E ela não achou que fosse ser capaz de ignorar, mas temeu que ouvi-lo, independente do que tivesse a dizer, fosse fazê-la voltar à condição vulnerável em que se encontrava poucas horas antes.
Fechou os olhos, depois a bolsa. E então deixou seu quarto pra trás.
Sentada em um chaise no canto da suíte, convencendo Stella de que estava linda com sua maquiagem, observou Madson deixar o banheiro onde estava terminando de se arrumar. O vestido, de um branco puríssimo, parecia ter sido cuidadosamente costurado em seu corpo. Havia tanta ansiedade em seus olhos mareados quanto alegria em seu sorriso imenso.
Estavam em meio a uma sessão de fotografias, da qual desejou não participar, quando a cerimonialista enfiou a cabeça porta adentro.
– Pessoal, me desculpem... Alguém viu o ? – Madson olhou para cada um dos rostos presentes no quarto, mas ninguém tinha a resposta que ela queria. – Preciso conversar com ele sobre alguns detalhes!
– Das duas, uma... – começou a noiva – Ou ele fugiu, ou está fumando escondido... Nesse caso, tomara que esteja fumando... – Os demais riram, mas um sinal vermelho irrompeu a cabeça de , sua mão correndo rapidamente para a bolsa que trazia.
– Posso procurar por ele, se quiser... – Se ofereceu, torcendo pra que sua voz não soasse tão trêmula quanto suas pernas estavam. Havia desconcerto no rosto de Madson, mas havia também uma confiança que fazia com que se sentisse demasiado injusta.
– Se encontrá-lo e conseguir arrastá-lo até o altar, o maior pedaço de bolo é seu... – Brincou Mad, soltando um riso nervoso.
– Fica tranquila, trago ele pelos cabelos, se necessário – garantiu e Madson tinha sua palavra. Saiu do quarto com pressa e conforme atravessava o corredor retornou a ligação de . Mal tocou uma vez.
– , onde você está?
– , onde você está? – Ela soprou entredentes.
– Pegue todas as suas coisas e me encontre na garagem...
– O quê? , me escuta, estão de procurando para... – Primeiro ela achou que a ligação tinha caído, para depois ter certeza de que ele quem havia desligado. – , seu grande, grande idiota!
Em passos largos e apressados alcançou a porta de saída. Verificou ligeiramente se havia alguém no redor antes de livrar-se de seus saltos e correr o mais rápido que pôde em direção à garagem, onde havia deixado Lizzy mais cedo quando chegaram.
Aturdida com a urgência na voz de , cruzou o jardim, ouvindo seus próprios passos pesados, a respiração forte e os pensamentos confusos que ziguezagueavam por sua cabeça.
“Abre essa merda” exigiu e, ao levantar suas mãos com a intenção de espalmar a porta, a mesma começou a erguer-se. Assim que encontrou espaço suficiente, esgueirou-se para dentro da garagem. adiantou-se em fechá-los ali e, somente quando a porta estava completamente abaixada, esticou-se para acender as luzes de iluminação débil e amarelada.
Havia pelo menos cinco peças diferentes compondo o fraque de . Ainda assim ele sentiu-se despido sob o olhar apreensivo de .
– , o que está havendo? – O coração dele aquietou-se no instante em que viu-se na presença dela. – O que você fez na mão? – Seus olhos verificaram o curativo mal feito e, sem saber o que exatamente deveria responder, apenas negou com a cabeça. – ?
– Não posso ir. – Disparou, com uma calma que não combinava em nada com aquela decisão extremista – Não posso...
– Como é? – E , longe de se compadecer da figura atormentada do melhor amigo, soltou seus sapatos e levou as mãos na cintura. A figura imponente não se adequava direito a sua miudeza. sorriu em meio à tragédia. – , olha pra mim... Você está ansioso, ouvi dizer que é normal ficar assim horas antes do casamento... – E enquanto ela se aproximava e buscava palavras que pudessem ajudá-lo, ele quis dizer que ela estava linda.
– Madson disse que eu não deveria entrar naquele altar pela metade... – Contou, a voz vacilante como se mal pudesse aguentar o peso das confissões que ainda restava fazer. – E passar esses últimos dias do seu lado... , não existe um terço de mim que queira fazer isso! – A moça parou onde estava e fechou seus olhos, como se pudesse atenuar sua aflição ao desaparecer com a imagem dele. Não funcionou. – Não se sinta culpada, por favor. Não é culpa sua. Sou eu... – se levantou, perfazendo a distância que o separava de . Ela queria se afastar, grandemente arrependida da decisão de ir até ali. – Eu amo Madson, acredite... Do contrário eu não teria considerado a ideia de dividir com ela minha vida. Mas, , o que eu sinto por ela é injustamente insuficiente! Eu queria poder amá-la com todo o meu coração, mas aparentemente ele ficou sem espaço muito tempo atrás.
– Não faça isso... – pediu, num sussurro indeciso. Assustadoramente tentada a ouvir o que ele tinha a dizer ao menos uma vez antes de deixá-lo ir.
– Eu não consigo chegar à conclusão do que é mais injusto... – Ele buscou a resposta nos olhos de , que era sempre mais sensata que ele. Não encontrou nada além de desassossego. – Deixá-la no altar é horrível, é provavelmente a pior coisa que eu já pensei em fazer em toda minha vida... Mas quão ruim seria oferecer à Madson centenas de dias de desamor? O que eu posso oferecer a ela além de um pouco do muito que ela está buscando nessa relação? Frustrá-la, dia após dia e após dia... Sem nenhuma perspectiva de mudança. Não acho que eu vá amá-la mais amanhã ou depois. Talvez, ao invés disso, eu a ame cada dia menos... – O silêncio de era desesperadoramente ambíguo, desejou que ainda pudesse saber exatamente o que ela estava pensando, mas não podia. – Como eu poderia ir até lá em meia hora e prometer ser fiel a ela quando estou aqui, agora, te convidando para fugirmos juntos? – prendeu a respiração, sem saber onde enfiar a euforia que aquela proposta havia causado. – Como posso ir até lá e improvisar os votos que eu sequer escrevi se agora estou aqui sugerindo de irmos o mais rápido possível até um aeroporto, pegar o primeiro avião com duas poltronas disponíveis... Poderíamos ir para o Japão ou uma cidadezinha qualquer da Suíça... Eu iria para qualquer lugar com você, , se você dissesse que sim.
– Não vamos a lugar nenhum, ... – Ela estabeleceu, contrariando todos os desejos gritantes de seu coração. – Você só está ansioso e agindo como um louco...
– Não, ... Não estou ansioso ou louco. Eu estou apaixonado por você. – E negou com a cabeça, afastando-se um passo, depois outro, incapaz de verbalizar quão aterrorizante era ouvir aquela declaração a menos de uma hora de perdê-lo para sempre. – Há dez anos... Ou onze... – cedeu um sorriso consternado e apesar de todo o mal-estar havia também um alívio amenizando sua angústia. – Não sei ao certo... É difícil dizer exatamente quando foi, não é? Talvez tenha sido logo que te conheci, daquele jeito meio infantil de se apaixonar que as crianças têm... – Ele desejou que ela parasse de caminhar às cegas para longe dele. Que abrisse os olhos e lhe sorrisse, deixasse que ele segurasse seu rosto e beijasse sua boca. – Ou em uma daquelas tardes no Duran, assistindo você viajar para mais longe a cada música... Talvez enquanto eu lia no parque e você fingia estar ouvindo, mas estava dormindo. Eu sempre soube... – , tremendo dos pés à cabeça, escorou seu corpo na porta da garagem, desejando que conseguisse atravessá-la e correr para longe o suficiente, até que os braços de não parecessem o lugar para onde gostaria de ir naquele momento. – Pode ter sido ainda em uma daquelas noites no observatório, enquanto você dançava Franz Ferdinand, completamente chapada... Com aquele corte de cabelo que era péssimo, mas ficava lindo em você... E eu poderia até pensar no Glastonbury de 2005, mas , me lembro de uma centena de situações anteriores que eu quis beijá-la como você me beijou aquela noite...
– Por que agora, ? – perguntou, num fio de voz. – Por que hoje?
– Por muito tempo tive medo do que você iria pensar, . Tive medo que você pensasse que, de repente, eu estava por perto só para conseguir, algum dia, ficar com você... Nunca, nem por um minuto, pense nisso, ... – Ela concordou com a cabeça e encolheu-se um pouco mais quando se acercou alguns passos. – Quando eu decidi que deveria abrir o jogo, ficou tarde demais.
– No casamento da minha mãe? – Ele não respondeu e não precisava responder. Suas mãos seguraram, delicadamente, o rosto de .
– Eu não consigo parar de pensar que... Se eu não tivesse sido assaltado e você tivesse me ligado aquela noite e dito que você e Tom tinham terminado... Eu jamais teria pedido Madson em casamento e não pensaria uma única vez antes de juntar todas as minhas coisas e pegar o primeiro voo para a Inglaterra...
– ... – E aquela era a coisa mais difícil que já tinha feito, mesmo antes de fazê-lo. – Você foi assaltado. E eu não consegui te ligar. Você pediu Madson em casamento... É tarde demais, .
– , não...
– Sim! – E havia tanta convicção em sua voz que soube, não tinha qualquer argumento contra o que ela dizia. – Não podemos fazer isso... Você não pode fazer isso... – Ele soltou seu rosto e colocou-se a ouvir, não parecia haver outra opção. – E não porque tem um casamento milionário bem ali do outro lado do jardim, mas porque existe essa mulher incrível lá em cima, que passaria o resto da vida se perguntando que diabos há de errado com ela para ter sido cruelmente deixada no altar... – respirou fundo e, com o choro controlado, continuou: – Ela entraria em novos relacionamentos, mas sempre só até a beiradinha, porque desenvolveria um pavor incontrolável do que poderia estar esperando por ela num mergulho... Nunca mais, , nunca mais se sentiria boa o suficiente para alguém... E não, ela talvez nunca chegasse a perceber que o grande babaca foi você... – Os lábios de se curvaram num sorriso dolorido e perturbado. – Você sabe por que deixou que ela escolhesse cada detalhe desse casamento? Desde a cor dos guardanapos, até o seu fraque? – E com a mesma delicadeza de suas palavras, apoiou as mãos no rosto de , como se quisesse mantê-lo ali, na realidade da qual estava tentando fugir. – Não é porque você não se importa com essas minúcias, ou porque não achava que saberia escolher algo legal... É porque esse é o sonho da Madson, ... E você, como a pessoa bonita que é, abriu mão de qualquer uma de suas preferências ou preocupações para que tudo saísse do jeito que ela esperava, mesmo que você tivesse que usar essa flor ridícula na sua lapela... – Um riso fraco e confuso lhes escapou, tentando encontrar-se em meio a tanta dor. – Ela está linda... Tão linda, , que eu realmente não sei o que ela está fazendo com você... – A gargalhada espontânea do rapaz fez parecer que aquele não era o momento mais penoso da vida de ambos. – Vocês vão ficar bem, acredite em mim... E mesmo que não acredite, você vai precisar tentar e arriscar, porque eu não vou deixar que você saia daqui se não for direto para o altar... – E maneou a cabeça uma única vez, concordando com o que ela dizia. o atraiu para um abraço, segurando-o perto de si como se nunca fosse deixá-lo, de fato, ir.
– Eu te amo... – confessou e pela primeira vez não falava com a -melhor-amiga, mas com a -amor-de-sua-vida.
– , por favor... – Ela pediu, o peito apertado demais para a quantidade de amor que havia em seu coração.
– Me desculpa... – fungou e desfrutou em silêncio daquele abraço que se parecia tanto com uma despedida.
– Você vem? – perguntou, soltando-se dele e indo buscar os sapatos.
– ... – E ela atentou-se a ele, enquanto calçava os saltos, apoiada na lateral de Lizzy. – Caso eu não tivesse sido assaltado, e você tivesse conseguido me ligar, e eu tivesse pego o primeiro avião para a Inglaterra... – lamentou pelo desencontro e também pelo rosto de , cheio de uma esperança que não deveria estar ali.
– Somos ótimos amigos, ... É só isso o que somos... Agora vamos, você já está atrasado!
O sol estava começando sua despedida, melancólica para uns, gloriosa para outros. A iluminação alaranjada refletindo no lilás azulado do céu de verão. Ele logo perderia suas cores abertas, ganhando tons fechados até encher-se de escuridão – exceto pelas estrelas, que logo dariam o ar da graça.
E era exatamente naquele aspecto de metamorfose que Madson planejou a cerimônia, ela achava bonita a ideia de que a mudança do dia para a noite poderia representar, também, a transformação da relação entre eles após os votos.
Os convidados já estavam acomodados e uma Stella comovida colocou-se a ajeitar ansiosamente a gravata do filho, mesmo sabendo que não havia nada a ser arrumado ali. Ele estava incrível, ela pensou ao vê-lo e repetiu isso a ele vezes o suficiente enquanto se preparavam para entrar.
Haviam velas dentro de pequenas cúpulas de vidro, espalhadas por todo o jardim e margeando o tapete branco que os levaria ao altar. Somente quanto todas elas foram acesas, a banda começou a tocar uma versão instrumental de Can’t Help Falling In Love, do Elvis Presley. ofereceu seu braço a Stella, aceitando seu porvir.
tinha razão, Madson estava linda.
E , que não tolerava injustiças, julgou-se o pior dos seres humanos. Parado ali, assistindo aquela grande mulher caminhar em direção a ele, que não tinha certeza de quanto poderia oferecer do muito que ela esperava e merecia.
Se tivesse se lembrado de escrever seus votos, diria que a felicidade dela estaria sempre acima da sua. E sabia que não havia verdade maior que essa. Ele jamais seria tão feliz quanto Madson, mas não pretendia deixá-la descobrir e esse era seu compromisso com ela.
– Existem momentos difíceis na vida de um pai... – Stephen discursou, quando convidado. O microfone em uma mão, a taça de champanhe na outra. – E existe o brinde de casamento de sua única filha... – Os convidados riram, porque era o que se esperava deles. – Um brinde à Madson e ... Que haja amor.
E ergueu seu whisky, encontrando o que restava de sua coragem para torcer: que houvesse amor, mesmo quando não houvesse tanta paixão.
Que nunca perdesse a paciência com o vinho caro com cheiro de inseto, ou se entediasse quando Madson quisesse ouvir James Morrisson. Que ele parasse de fumar escondido, porque era importante para Madson que pudesse confiar nele.
Que ela nunca, em nenhuma situação, desconfiasse que ele havia chegado tão perto de desistir. Ou descobrisse, por um descuido, que não era a mulher da vida dele.
Alguém precisava sair ileso daquela tragédia.
Que fosse Madson.
brindou a isso.
– Não vai dançar, ? – Robert perguntou e soou mais preocupado do que pretendia.
– Acho que não é uma boa ideia... – A moça respondeu e mesmo seu tom brincalhão soou deplorável. – Muito whisky para um salto tão alto.
, assim como um objeto de adorno, foi carregado para todos os cantos da festa. Cumprimentou mais gente do que conhecia e tirou mais fotos do que gostaria.
Sorriu mais do que achou ser capaz.
Esgotado, pegou-se imaginando o momento em que a banda se despediria e aquelas luzes coloridas seriam desligadas. Se acomodariam na cama de casal e ele fingiria estar bêbado demais para transar, então poderia finalmente despedir-se daquele dia que havia sido longo demais.
– Você se lembra daquela história que me contou... – Madson gritou para , sua voz soando acima da música. – Que você e iam em algumas festas para roubar bebidas... Não me lembro bem...
– Hm... Sim... – Ele respondeu e, ainda que não soubesse o motivo de Madson ter invocado aquela lembrança, sentiu-se desconfortável. – Um de nós distraía o pessoal dançando muito mal, o outro pegava a bebida... – Madson riu e, assim como havia feito da primeira vez que ouvira a história, tentou construir a cena em sua cabeça.
– Espere aqui...
– Mad?
a assistiu deixá-lo pra trás e atravessar o salão, serpenteando despreocupadamente por entre as pessoas, as poucas que ainda tinham energia no fim da noite.
Atônito, ele observou Madson inclinar-se na direção de e pouco depois rebocá-la de sua cadeira, ignorando seus protestos constrangidos. Estava descalça e os cachos artificiais tinham se desfeito, deixando seu cabelo com um aspecto puramente desarrumado. Seus olhos corriam para todos os lados e seus lábios se curvaram num sorriso nervoso.
se perguntou se era o único a notar a ironia daquela cena, quando Madson os posicionou um de frente para o outro.
– Pensei em roubar uma garrafa de qualquer coisa... Talvez possam me ajudar.
Seus olhos, tomados pelo desconforto, se encararam e se perderam repetidas vezes pelos próximos minutos. Não acharam que houvesse qualquer coisa que pudesse atenuar o embaraço. Mas Lisztomania era quase um hino de seus anos de glória e sua introdução soou como um convite. Sem nenhuma das hesitações dos últimos dias e fartos do peso daquele dia, encontraram-se às escondidas naquele espaço inventado, onde podiam ser infinitos. Um mundo inteiro resumindo-se a eles dois.
Eles começaram a rir antes de começarem a dançar. Os mesmos movimentos estranhos e desarranjados de anos atrás. A mesma diversão em cantarolar aquela letra, tão familiar e significativa para ambos.
e outra vez.
Mergulhados nas lembranças de todas aquelas noites desenfreadas, dançando na sala de algum desconhecido apenas para conseguir uma garrafa de vodka e então poderem sair de lá e ser quem queriam ser, em qualquer lugar da cidade onde pudessem se esconder um no outro, bêbados e sozinhos. Apaixonados de mansinho.
Cantando, plenos pulmões, enquanto dirigia rápido demais pelas ruas vazias.
Gargalhando de qualquer coisa.
Jovens e intensos, experimentando aquela esperança que parecia ser infindável.
O mundo costumava parecer menos assustador quanto estavam juntos.
Que estranho era vê-los dançar tão mal – e, Deus, como dançavam mal – e ainda assim não deixar de ver a beleza que havia e que vinha de dentro para fora.
E enquanto saltitavam – uma confusão de braços, pernas e sorrisos – e cantarolavam repetidamente “time to show love, time to show love”, Stella chorou. Porque e eram seu casal favorito, ainda que nunca tivessem sido um casal de verdade.
E Madson também chorou, porque, como dizia a música, era “hora de mostrar o amor” e havia tanto amor... Havia mais amor no simples dançar de ao redor de do que nos votos de casamento que trocaram mais cedo.
Do que em todas as vezes que ele beijava sua boca, afagava seus cabelos, ou encarava seus olhos irredutivelmente até fazê-la rir.
E o brinde de falhou.
Ninguém saiu ileso daquela tragédia.
Epílogo
19 de Fevereiro de 2018 – Sheffield, South Yorkshire, UK
livrou-se dos óculos de grau e esfregou os olhos, cansados da leitura constante. Fechou o arquivo do romance que estivera avaliando ao longo de todo seu expediente e, como havia prometido ao chefe, enviou um e-mail a Louis, o editor que ficaria responsável pela obra daquele momento em diante, com todas as informações que ele poderia precisar.
Desligou aquele computador que agora já não poderia chamar de seu. Gastou um tempo verificando as gavetas e armários da sala, para a qual não voltaria na próxima semana, mas decidiu que não queria levar nada. Poderia ser útil para alguém quando para ela seria apenas uma bagunça a mais.
Antes de sair, deu mais uma olhadela no cômodo onde passara todo os seus últimos anos. Tentou forçar uma nostalgia antecipada ou algo parecido com isso. Tudo o que sentia, porém, era satisfação. Talvez sentisse saudades em algum momento, mas não ainda.
Atravessou o curto corredor, pensando se deveria passar pela sala de cada um de seus colegas de trabalho, para uma daquelas despedidas que todo mundo fingia que ser indesejada, mas era só indiferente.
talvez estivesse enganada a seu respeito e ao pensar que não estava deixando pra trás nada além de uma presença quase desapercebida. Teve de reconhecer isso ao encontrar todos os funcionários da editora esperando por ela na recepção. Não havia bolos, faixas ou gritaria. Apenas sorrisos verdadeiros e uma inesperada salva de palmas. Ela não sabia se pelos seus anos de trabalho ou se por ter a coragem que todos eles não tinham.
Não fugiu das despedidas e daquele clima de intimidade artificial.
Com um alívio excepcional, deixou Pennine.
Abriu o cadeado da corrente que mantinha sua bicicleta em segurança e colocou-se a pedalar. Primeiro muito rápido, como se corresse o risco de ser sugada de volta para dentro da editora. Ou como se seu comodismo fosse fazê-la ficar. Depois num ritmo mais ameno, ao perceber que, àquela altura, nada poderia fazê-la desistir.
Apreciou o caminho de todos os dias com mais tranquilidade e atenção. Reparando em todas as coisas que a automaticidade fazia passar desapercebido. Havia algo tão bom crescendo em seu peito que pegou-se rindo sozinha. Ridicularizou-se por isso, mas não conseguiu deixar de rir um pouco mais.
Em casa, deixou o cachecol e um de seus casacos pendurado no mancebo e quando já estava no meio do caminho até seu quarto, retornou para buscá-los. Deixou ambos sobre a cama, junto às roupas dobradas que ainda não sabia se colocaria ou não na mala.
Livrou-se das botas, meias e calça jeans, decidindo entre tomar um banho ou uma taça de vinho.
Andou até a cozinha e avaliou preguiçosamente o que tinha na geladeira, o estômago reclamando de fome. Ele teria que ter paciência, ela pensou, enquanto cortava alguns pedaços daquele jeito que ela não tinha certeza se ainda estava dentro da validade.
Sentou-se na bancada da pia e chacoalhou as pernas nuas, bebericando o vinho tinto e engolindo alguns pedaços de queijo para enganar sua fome, enquanto curtia sua liberdade.
– Alô?
– , que horas você vem? – Martha perguntou, soando afobada. riu, fechando a torneira de sua banheira.
– Preciso mesmo ir? – Brincou, sabendo que isso zangaria sua mãe.
– Claro que você precisa! Não seja ingrata! Stella e Robert chegam às oito! – Disparou, tudo de uma vez.
– Mãe! – protestou, soltando um longo suspiro pesaroso. – Você disse que não seria como uma despedida!
- Eu disse que não seria como uma festa! Não se preocupe... Somos só nós cinco! – Garantiu Martha.
– Ok... Vou tentar chegar às oito.
Quanto sofrimento pode caber em um só coração?
Esse parecia ter sido o desafio de ao voltar de Los Angeles. Cabia muito, ela descobriu. Mais do que ela estava esperando e muito mais do que ela podia administrar naquele momento. Chorou todos os dias ao longo de suas férias. Martha dizia que ela encontraria “alguém especial” e não achava que esse era o problema. Nunca havia sentido medo de ficar sozinha, de nunca se casar ou ter filhos. Não era disso que se tratava.
continuaria a amar , intensa e dolorosamente, pelo resto de seus dias, mas nunca explicitamente. Sempre à distância, às escuras. Era disso que se tratava.
Não se importava se nunca encontrasse alguém com quem quisesse dividir sua vida pelo resto da vida. Se importava apenas que, caso encontrasse, não fosse .
Depois de secar muito mal os cabelos, vestiu, sob a saia preta, a meia calça mais grossa que encontrou em suas gavetas desorganizadas. Alcançou um suéter palha que ainda não havia colocado na mala e o cachecol vinho que usava mais cedo. Mal terminou de amarrar os cadarços de seu coturno quando o táxi buzinou. Pendurou um sobretudo no antebraço e a bolsa em seu ombro, antes de correr em direção à porta.
– Está atrasada... – Martha soprou ao recebê-la.
– São oito e quinze! – sussurrou de volta e, com um sorriso carinhoso, envolveu o corpo da mãe num abraço. – Robert e Stella já chegaram?
– Sim, estão na sala com Allan... – Martha respondeu, avançando com ela para dentro da casa. – Vá até lá, eu vou buscar uma taça pra você.
– Ok!
gostaria que aquela despedida fosse tão fácil quanto a que havia vivenciado na editora. Sorrisos e abraços dos quais não sentiria falta no dia seguinte. Nenhuma nostalgia ou tristeza.
Era impossível, ela bem sabia disso.
– Olá! – Saudou com o entusiasmo que esperavam dela.
– Hey! – Allan saltou de sua poltrona e veio para um abraço amigável, depois foi a vez de Stella, por último Robert.
– Me desculpem o atraso, minha mãe disse pra eu não aparecer com o cabelo sujo aqui... – Brincou e todos sabiam que era mentira.
– Tudo bem, nós te perdoamos por isso... – Robert se manifestou, divertido. – Já está tudo pronto?
– Mais ou menos... Minha mala está que é pura desordem... – Confessou, sentando-se no sofá restante depois de largar sua bolsa no aparador. – Eu tinha ideia do que levar, agora que andei pesquisando nem sei mais... Acho que vou com a roupa do corpo e só...
– De jeito nenhum! – Martha protestou, seu pavor arrancou um riso dos demais. – Eu estou velha, , meu coração não aguenta muitas emoções...
– Ah, por favor... – Reclamou a moça, abanando a mão livre enquanto, com a outra, aceitava sua taça de vinho. – Você é exagerada, Martha, my dear.
– Como foi o último dia na editora? – Allan interessou-se.
– Me aplaudiram, mas não é surpresa para ninguém, certo? – Ela brincou, com aquela mania de fazer piada de todos os seus desconfortos.
– Não mesmo... – Stella disparou, com honestidade. – Eles sabem a grande profissional que estão perdendo...
– Ah, Stella... – murmurou, desviando os olhos para o próprio vinho. – Enfim, foi legal... Meu chefe fez uma carta de recomendação caso eu volte e queira procurar por algum emprego na mesma área...
– Como é? "Caso eu volte"? – Martha disparou, os olhos bem abertos.
– É modo de dizer, mãe, não posso viver pelo mundo para sempre... – A moça explicou, risonha.
– , por favor... – Allan pediu, em tom divertido. – Sou eu quem vou ficar e cuidar da ansiedade dela, seja mais cuidadosa... – Os cinco gargalharam e a mais nova levantou-se para conectar um pendrive na TV.
– Vocês já pediram a pizza? – Quis saber, escolhendo uma de suas playlists para rodar. – Minha última refeição foi um Casu Marzu feito em casa...
– Meu Deus, ! – Martha murmurou, enquanto os outros três desmanchavam-se em gargalhadas divertidas. – Pare de comer queijo estragado, isso vai te matar de intoxicação um dia.
– Mãe, pessoas pagam caro por esses queijos podres, ninguém nunca morreu por isso... – Ela provocou, voltando para perto da mulher. – Eu prometo que vou parar...
– Por Deus... – Martha suspirou, alcançando seu vinho na mesa de centro.
– E a casa, , decidiu o que fazer? – Robert perguntou, interessado.
– Eu decidi não manter o aluguel, seria um gasto desnecessário... – Contou, retirando o sobretudo e pendurando no encosto do sofá. – Por falar nisso, mãe, o caminhão de frete vai trazer pra cá o que eu não vou doar, é pouca coisa... E preciso que você devolva a chave para o dono da casa, na semana que vem.
– Você não podia ter adiado essa viagem para a semana que vem? Para ao menos conseguir se organizar melhor... – Martha argumentou e por conta de seus pedidos já havia adiado “essa viagem” por um mês inteiro.
– Não mais, mãe... – E sorriu, na tentativa de confortá-la. – Vai dar tudo certo!
– Não me diga que vou ter que cuidar do seu rato... – Martha pediu, fechando os olhos com um calafrio percorrendo sua coluna.
– Não é um rato, Martha, e o nome dele é Mr. Jones! – corrigiu, fingindo indignação. – Dei ele para Hanna, filha do meu chefe.
– Graças a Deus! – Suspirou a mãe, com alívio. – Vou preparar alguns aperitivos, já que está com fome... A pizza pode demorar.
– Não precisa, mãe... – tratou de se manifestar. – Eu espero a pizza...
– Deixe de bobeira, num minuto eu trago... – E Allan rapidamente se prontificou a ajudar.
– Tem falado com , ? – Robert perguntou, Stella, apesar de ter se distraído com seu celular por um minuto, ergueu os olhos atentamente na direção de . Seu coração acostumado a disparar na tentativa de atender ao nome de . Ela deu um longo gole em seu vinho antes de responder.
– Não... Quer dizer... – Ela tentou calcular há quanto tempo não se falavam, mas mal conseguia se recordar. – Trocamos um e-mail de Natal, eu acho... – Era mentira, mas gostaria que Robert e Stella acreditassem que ainda tinham contato – Como... Ele está?
– Está bem... – O homem limitou-se a dizer e depois, com um sorriso assimétrico, acrescentou: – Quer dizer que agora ficarei alguns meses sem clube do livro?
– Ah, mas você não se preocupe, segunda ou terça minha encomenda chega no seu endereço...
– Como é?
– Espere e verá! – Ela disparou, deixando claro que não diria mais do que aquilo.
Distraído entre os aperitivos que Allan e Martha trouxeram e uma notícia bizarra e engraçada que Stella havia lido mais cedo, se arrastaram por uma hora inteira.
, de repente alheia ao que estavam falando, lembrou-se de todas aquelas reuniões que faziam pouco antes de ir embora. Elas continuaram acontecendo e eram claramente muito bem vindas, mas nunca a mesma coisa. Sobrava sempre um espaço, que não era físico, mas tão visível e dolorido como se fosse.
– Pizza!
disparou ao ouvir a campainha. Saltou do sofá onde estava e deixou sua taça na mesa de centro, aceitando o dinheiro que Martha lhe oferecia enquanto já se direcionava à saída da sala de estar.
Cantarolou pelo caminho, com a mesma sensação prazerosa que havia tido mais cedo, agora intensificada pelo álcool. Riu de si mesma e dessa vez não julgou a própria atitude. Permitiu-se à tolice, pois ela parecia imensamente agradável naquele momento.
puxou a porta em sua direção, os olhos correndo pela figura do lado de fora numa fração de segundos. E, tão rápido quanto, começou a tremer. Aquele não era o entregador de pizzas.
– É aqui que tá acontecendo uma festa de despedida?
Em contraste à figura petrificada de , dentro dela era como se um milhão de pessoas gritassem, todas ao mesmo tempo, fazendo seu interior vibrar por completo. Seu coração palpitava com tamanha ansiedade que parecia exigir dela mais do que poderia oferecer. Não achava que algum dia seria a garota que, de tão apaixonada, ficava zonza e sem fôlego, mas viu-se obrigada a segurar mais firme na maçaneta para lidar com a vertigem repentina.
– Eu espero que você esteja com as pizzas, !
E gostou de como ele ignorou seu sarcasmo e o fato de não se verem há mais de um ano, atraindo seu corpo para o abraço mais apertado no qual ela já havia estado. O único em que ela gostaria de estar.
podia sentir seu coração pulsando dentro do peito, como não pulsava por ninguém mais além de . Era como se fosse treinado para atender unicamente aos seus comandos – fosse sua voz, sua gargalhada ou o cheiro característico de seus cabelos. Meu Deus, era pateticamente apaixonado por ela.
Seus braços se estreitaram ao redor dela, como se nunca fosse deixá-la sair dali, atormentado por todas as vezes que deixou e acabou por perdê-la de vista.
– Não acredito que está aqui... – confidenciou, tão baixo que não tinha certeza se ela queria que ele tivesse ouvido.
– Bem aqui...
– Há quanto tempo? – Ela quis saber, soltando-se dele e enxugando o rosto muito rapidamente.
– Quase uma semana... – contou, seus lábios se curvando num sorriso culposo.
– Eu não acredito! Eles todos sabiam, certo? – E apontou para dentro com o polegar, referindo-se aos que esperavam por eles na sala de estar. – Eu odeio vocês! Seu pai, aquele grande mentiroso, perguntando se eu tinha falado com você ultimamente! – O rapaz riu e precisou se esforçar para não abraçá-la outra vez.
– Eles não têm culpa, eu pedi... – Confessou, achando graça na árdua tentativa dela de parecer brava.
– Não é muito justo... Eu estou indo viajar, podíamos ter aproveitado esses últimos dias... – E, com medo que ele interpretasse da maneira errada, acrescentou: – Você sabe, só... Andar por aí, hm... Como fazíamos antigamente... – sorriu, divertindo-se com o embaraço de . Era algo novo. E como era raro esbarrar em algo que ainda fosse novo entre eles.
– Não precisamos ter pressa, poopface. – Garantiu e sem dar a ela chance de fazer qualquer pergunta, concluiu: – As pizzas estão no carro, me ajuda a pegar?
Lizzy estava estacionada do outro lado da rua e se perguntou quanto gastava para transportar a caminhonete de um País a outro, mas foi como se o vento gélido daquela noite soprasse todos os seus pensamentos, substituindo um por outro antes mesmo de serem concluídos. A ansiedade fazendo com as palavras girassem tão rapidamente que ela duvidou que conseguisse elaborar uma frase inteira naquele momento.
Pensou em perguntar sobre Madson, mas foi tomada pela tentação de fingir que ela nunca havia existido. Que nunca tinha partido. E que aquela era apenas uma daquelas sextas de pizzas, vinho e maratona de seus filmes favoritos. lembrou-se do sentimento agradável que havia tido ao pedalar de volta pra casa, ou alguns minutos atrás enquanto caminhava até a porta – parecia uma piada perto do que sentia agora.
– Não finjam que não sabiam sobre isso...
Martha, mal contendo as próprias lágrimas, levantou-se para abraçar . Não vê-lo há anos fez com que ela sentisse como se estivesse sendo arrastada para o passado, de volta a uma época em que era comum vê-lo ali, naquela sala de jantar ou em qualquer outro cômodo da casa.
encheu sua taça de vinho e esvaziou com a mesma rapidez, aliviando a escassez de sua boca e garganta provocada pela ansiedade. Fingiu não notar o olhar curioso e comovido de Stella e Robert, sentando-se no lugar que escolheu para ser seu enquanto exigia, aflita, “por Deus, pare de tremer, aja como uma adulta”.
– Um brinde... – Martha começou, mas precisou respirar fundo e aclarar a garganta antes de continuar. – À essa mulher corajosa que é minha filha... Que essa viagem seja a coisa mais bonita que você já viveu e que você aproveite cada minuto dela da melhor maneira possível... E que logo você esteja de volta para a mamãe... – E, dito isso, ergueu sua taça. riu emocionada21 e acompanhou o gesto da mãe.
– À ... – completou, com um sorriso discreto.
– À .
Havia um sorriso verdadeiro nos lábios de cada um deles e também essa reunião de mãos no centro da mesa, junto ao tilintar delicado das taças de vidro, apoiando o brinde feito por Martha. E, com a visão confusa pelas lágrimas, reconheceu a mão de em meio a todas as outras. Foi então que, desorientada em meio ao rebuliço de sentimentos que a perpassavam, notou: a aliança que costumava ficar no anelar esquerdo de , naquela noite, não estava ali.
Entre uma garfada e outra, os olhos de arriscavam-se e corriam para o canto, tentando observar o rosto, de repente muito sério, de . Ela costumava comer muito devagar, mas durante o jantar algumas vezes ela parecia ter se esquecido de que havia um pedaço de pizza em seu prato.
sentiu uma sensação fria atravessá-la por dentro, como se houvesse uma janela em cada extremidade de seu corpo, e de repente fossem escancaradas por uma ventania inesperada. Patético que a causa de sua aflição fosse o simples esbarrar do joelho de no seu, sob a mesa. Se entreolharam e embora ela quisesse sorrir, sorriso nenhum lhe ocorreu.
Observou o rosto maduro de , os cabelos que ele parecia ter esquecido de cortar ultimamente, os olhos um tom mais claro do marrom corriqueiro. Ele curvou os lábios num sorriso curioso e diligente que fez todo o vinho daquela garrafa parecer muito pouco.
– Quem quer sobremesa?
imaginou a si mesmo com aquele relógio da parede em mãos, ajustando seus ponteiros, acelerando as horas, pulando a sobremesa e a conversa descontraída na qual se perderiam pelo que restava da noite. Havia esse assunto pendente entre ele e , um discurso completando seus dezoito anos dentro do peito, um amor que agora já era maior de idade e bem sabia o que queria pra si. E diferente de , que esperaria por ela mais vinte anos caso se fizesse necessário, aquela conversa entre eles não poderia esperar mais uma noite sequer.
torceu na direção contrária. Desejou que a noite se arrastasse, bem devagar e preguiçosamente. Que houvesse dezenas de garrafas de vinho a serem abertas e uma caixa daqueles charutos de Allan, que ele só acendia em datas comemorativas. Ficou na esperança de que todos se esquecessem das horas, que o cansaço nunca chegasse, que não precisassem ir embora. Não antes de sossegar aquela saudade dolorida em seu peito.
Quase conseguia prever a cena de si mesma, rolando na cama madrugada afora, longe de conciliar o sono, pensando e se torturando com todas as palavras que gostaria de ter dito, os abraços que gostaria de ter dado, mas não teve tempo ou coragem. O grande dilema de sua relação com arrastando-se pelos anos, assombrava-os outra vez.
Passava 01h30 quando Stella convidou Robert para irem pra casa. E enquanto se despediam, podia sentir a angústia inflando como um balão, espremendo-se em seu peito, entalando em sua garganta.
, a caminho da porta, penteava os cabelos pra trás e repetia um mantra encorajador “diga, , diga, vamos lá, é só dizer”. De soslaio, observou o rosto sorridente de enquanto assistia Martha e Stella combinarem um almoço para o dia seguinte. Outra festa de despedida porque ninguém de fato queria se despedir.
– Você está de carro? – ele disparou, como quem solta todo o ar numa única golfada. ergueu os olhos, atenta e esperançosa.
– Não – respondeu, voz e coração vacilantes.
– Eu te levo.
Ela queria contestar por pura polidez, mas desistiu. Queria a companhia dele mais do que queria ser educada.
Com as pernas tão instáveis quanto as de um boneco inflável, apressou-se em buscar seu casaco e a bolsa, enrolou rapidamente o cachecol em seu pescoço e sorveu o que restava de seu vinho, antes de abandonar a taça na mesa de centro e encontrar-se com do lado de fora da casa.
Despediu-se de Allan e Martha e quase podia ouvir os comentários entusiasmados e maliciosos que a mãe gostaria de fazer em seu ouvido, mas não fez. Estavam todos em seu sorriso e naquela piscadela perversa que lançou em sua direção.
– Eu tinha me esquecido de como faz frio aqui! – comentou quando acomodaram-se na cabine da caminhonete. – Minhas mãos estão congeladas! – E ele só não insistiu pra que conferisse porque elas também estavam cobertas de um suor ansioso.
– Tinha me esquecido de que agora você é um rapaz da Califórnia! – provocou, soltou uma risada espontânea enquanto dava partida e ligava o aquecedor velho da Chevy.
– Talvez eu tenha que me acostumar com os dias gelados da Inglaterra outra vez... – Confidenciou, como se aquela informação fosse algo irrelevante. quase podia sentir o ressecar gradativo de sua garganta.
– Como assim? – Perguntou com medo de morrer de felicidade para depois descobrir que havia sido um mal entendido.
– Estou voltando para Sheffield... – Ele contou e antes de começar a dirigir, deu uma olhadela para o rosto surpreso da mulher ao seu lado. – E, inclusive, aluguei sua casa. Espero que não se importe.
– Você... O quê? É sério? – Certificou-se mais uma vez porque não queria correr o risco de estar sendo enganada.
– Sim, mas quando você voltar pode ficar com ela... – “Ou podemos ficar nela juntos” pensou em dizer, mas achou que era cedo demais. Havia, agora sem dúvidas, muita noite pela frente.
– Oh, não, você vai pegar seus discos de volta? – Disparou com diversão, quando conseguiu controlar a respiração entrecortada. deu risada e atreveu-se a esticar sua mão para brincar com a dela, esquecida sobre o próprio colo.
– Pois não tenha dúvidas disso – Ela sorriu, apreciando o toque gelado dos dedos ossudos de nos seus, entrelaçando-os num gesto pouco familiar, mas muito bem vindo. – Está cansada?
– Não... – Respondeu tão rapidamente que não tinha certeza se tinha ou não interrompido o que ele ia dizendo. – O que tem em mente?
– Em mente, não muito... – Comentou, os olhos atenciosamente voltados para o caminho que percorriam. – Mas no meu pendrive tenho uma playlist incrível e embaixo do banco tenho uma garrafa inteira do seu whisky favorito... – sorriu, porque mal podia deixar de fazê-lo.
– Eu conheço esse observatório desativado...
– Que coincidência, eu costumava ir lá todos os fins de semana com essa minha melhor amiga...
– E o que houve depois? – perguntou e sentiu os dedos de estreitarem-se ao redor dos seus.
– Eu descumpri as regras de toda boa amizade... Me apaixonei perdidamente por ela.
O observatório ficava pelos arredores de Sheffield no alto de uma colina. E ainda que, há muito tempo, a entrada fosse proibida, havia um fácil acesso graças aos anos de funcionamento. e nem sequer se recordavam de, em algum momento, terem visitado o observatório enquanto aberto ao público.
Levava dez minutos de estrada até chegar à trilha, que nunca havia sido asfaltada. Mais seis ou sete minutos naquele caminho íngreme de terra até alcançarem o pico da colina. procurou por um espaço plaino antes de estacionar. A caçamba de Lizzy voltada para as luzes da cidade morro abaixo.
carregou consigo a mochila de com o whisky e os copos plásticos. Ele livrou-se da lona que cobria a traseira da caminhonete, depois desenrolou o colchonete para forrar o piso irregular e a manta grossa que havia se lembrado de trazer.
– Costumávamos ser mais primitivos, ... – Ela brincou, aceitando a ajuda dele para subir na traseira da Chevy. – Colchonete? Lizzy está decepcionada.
– Ela está tão velha quanto nós estamos, , ela entende... – A moça gargalhou, sua risada soando entrecortada por conta do vento. abriu as pequenas janelas de vidro na lataria que os separava da cabine, a música fez-se mais alta desde então.
– Meu Deus, quanto tempo não venho aqui... – observou, ainda sem sentar-se. O vento sacolejando delicadamente seu corpo. – A vista é tão familiar quanto o rosto da minha mãe! – E parou ao seu lado, o braço encostado no dela, os olhos perdidos no mesmo cenário.
– Qual foi a última vez que veio? – Ele perguntou, seu mindinho enroscando-se no dela, porque sentira tanta falta de seu toque que agora não queria perder seu tempo longe dela.
– A última vez que você veio... – confidenciou, tão baixinho que o vento criou lacunas por entre as palavras, e precisou trabalhar um tempo em cima da frase antes de conseguir compreendê-la. Então sorriu. – Seria muito estranho vir até aqui sem você... – Ela admitiu, porque havia se mantido no raso por muito tempo, era hora de permitir-se um mergulho.
– Consigo pensar em um milhão de coisas que só fazem sentido quando estou com você, .
– Seus últimos anos devem ter sido um saco... – Ela disparou, brincalhona e sentiu o corpo de vibrar num riso espontâneo.
– Você não poderia estar mais certa... – E então olhou para trás, pra onde estavam o colchonete e a manta. – Está ansiosa para sua viagem? – Perguntou enquanto se ajoelhava e alcançava a mochila, retirando dela a garrafa de whisky e os copos plásticos.
– Estou! – admitiu e virou-se para se aproximar, sentando-se sobre o colchonete e encostando-se na lataria que repartia caçamba e cabine. – Mas tentei não pensar muito nisso, ou ia pirar!
– Faltam menos de vinte e quatro horas agora... – provocou, despejando uma generosa dose de whisky em um copo, que estendeu para ela logo depois. – Talvez já possa começar a pirar.
– Estou me poupando para quando faltar apenas cinco ou seis horas, então entrarei em parafuso, pensarei em desistir, vou chorar de medo por uma hora inteira, desfazer e refazer minha mala pensando ter esquecido algo... – ria, sentando-se ao lado dela. – Sabe, essas coisas que pessoas normais fazem antes de viajar.
– Claro, isso acontece comigo sempre... – Brincou, cheio da ironia que sentia falta nas outras pessoas. – Está valendo outro brinde?
– Agora é minha vez! – Ela estabeleceu e ergueu seu copo em direção ao dele. – Um brinde ao seu retorno à Sheffield, de onde você nunca deveria ter saído! – gargalhou divertidamente, arrancando um sorriso em meio à expressão sarcástica de .
– Um brinde ao meu retorno à Sheffield, de onde eu nunca deveria ter saído! – E tomaram o primeiro sorvo da noite, adorando e odiando o arrepio estranho na mandíbula. – Pra onde você vai primeiro?
– Vou para o Brasil... – contou e encostou-se a ele com uma liberdade recém recuperada. precisou de um tempo para voltar a respirar normalmente. – Eu perdi o Carnaval, mas vai valer a pena porque vou pegar o restinho do Verão... E dizem que faz calor até Maio...
– Quanto tempo pretende ficar lá?
– Quatro semanas, depois vou para o Peru... – E pausou para tomar um gole de seu whisky, tentando amenizar a crescente ansiedade com a simples menção de seu roteiro. – De lá sigo para a Bolívia, então Chile, Uruguai e por último Argentina... – suspirou junto com ela, compartilhando de seu entusiasmo. – E aí volto para cá.
– São seis meses? – concordou com a cabeça, a boca escondida em seu copo. – Vai ser uma grande experiência, poopface.
– Tenho certeza que sim... – E deu uma risadinha antes de continuar. – Aprendi a hablar un poco de español! – gargalhou, gostando de seu sotaque e de como ela se enrolava em cada uma daquelas palavras. – Espero que seja o suficiente para que eu consiga sobreviver.
– Tenha um dicionário sempre com você por via das dúvidas... – concordou com a cabeça, um riso fácil de quem já bebeu demais ou está feliz demais. – Podemos nos programar para irmos juntos da próxima vez... Com um roteiro diferente, é claro.
– Detesto te decepcionar, mas eu só tinha um carro para vender...
– Mas ainda tem dois rins... – Os dois gargalharam e, caramba, como soavam bem rindo juntos.
, com tanta vista pela frente, escolheu observar o rosto de , enquanto ela cantarolava distraidamente um Indie Folk que ele tinha incluído em sua playlist unicamente para agradá-la.
percebia o olhar dele sobre si, examinando-a tão lenta e atenciosamente que ela quase podia sentir sua pele se aquecendo por onde seus olhos passavam. Tinha certeza de que suas bochechas ganhavam um tom mais rubro a cada minuto, até ela finalmente se cansar e acomodar seus olhos nos dele.
– Em que momento da noite vamos falar sobre Madson? – disparou, destemida. arqueou as sobrancelhas, surpreso, depois cedeu um sorriso.
– No momento em que você quiser falar sobre Madson... – Estabeleceu e embora não tivesse certeza de que estava pronto para aquela conversa, gostaria mesmo de tentar.
– O que houve entre vocês? – , num gesto involuntário, levou o polegar no anelar, como se pretendesse girar a aliança que não estava mais ali. o acompanhou levar o copo na boca e engolir o que restava de seu whisky num único gole.
– Nós... hm... Terminamos... Agora já fazem quase quatro meses... – fez os cálculos rapidamente. Haviam se separado um ano e dois meses depois de se casarem.
– Eu sinto muito, ... – E ela sentia. Por e ainda mais por Madson.
– Está tudo bem, na medida do possível. – Ele garantiu e alcançou a garrafa para servir-se um pouco mais de bebida.
– Você quer falar sobre isso? – perguntou, deixando espaço para que ele ficasse à vontade para escolher entre falar ou não. Ela sabia que não era do tipo que desabafava, mas gostaria que ele conseguisse dividir com ela seu pesar.
– Eu não estou exatamente triste, ... – Comentou, sem conseguir encará-la. – E acho que essa é a pior parte, não é? Eu gostaria de estar triste... – Ela não soube o que dizer, então apenas maneou a cabeça num gesto positivo, incentivando-o a continuar, caso quisesse. – As coisas não estavam indo bem... Talvez não estivessem indo bem desde o início, mas houveram alguns... Algumas contrariedades para as quais não estávamos preparados – E, novamente, esperou. bebericou seu whisky e levou alguns segundos escolhendo por onde começar, antes de retomar a fala. – Em Agosto, logo que nos casamos, fomos viajar em lua de mel... Em nossa primeira noite, Madson bebeu demais e contou que havia parado com o anticoncepcional há pelo menos três meses, mas não havia dito antes porque achou que eu me aborreceria. Eu fiquei zangado na hora e talvez estivesse sendo injusto... Sempre escondi os cigarros e às vezes fingia concordar com coisas que eu não concordava de fato... Enfim, não foi esse o problema, conversamos por toda a madrugada e eu compreendi seu comportamento, às vezes eu não dou muito espaço para esse tipo de conversa. Não é por querer, eu nunca percebo... – manteve seu copo na boca, disfarçando a surpresa e o mal estar repentino causados por aquela revelação. – Madson é dois anos mais velha, já estava com trinta e dois e, por ser filha única, ela queria mais que um, talvez três, era o que dizia... Precisávamos nos apressar! – E seu tom de voz continha exatamente o mesmo desespero que o abateu quando Madson despejou aquilo sobre ele “precisamos nos apressar!”. Ele ainda podia ouvir sua voz. – Não estava em meus planos... Deus sabe como eu tenho medo de ser um péssimo pai, mas eu concordei. Não parecia se quer algo a ser discutido, o sonho dela era ser mãe, eu precisava respeitar e aceitar isso... – respirou fundo, queria um cigarro. – No início as coisas corriam bem, nossa rotina era a mesma, não fazíamos mais ou menos sexo do que antes, mas depois dos dois primeiros meses, as coisas começaram a ficar estranhas... Madson ficava extremamente frustrada ao menstruar e eu acabava ficando também... Era como se eu estivesse falhando um mês após o outro... Fomos ficando obcecados. É uma palavra horrível, não é? Obcecados... – quase podia sentir sua aflição preenchendo o próprio peito. – E de repente, sem perceber, só estávamos transando em seu período fértil, tínhamos um calendário para seguir e algumas posições que supostamente facilitariam a fecundação... Eu aguentei firme, , o máximo que pude... Eu não deixei que ela percebesse o quanto eu estava esgotado daquela situação, porque eu sabia o quanto ela também estava esgotada... – Ele respirou pesadamente e umedeceu a garganta escassa com um pouco de whisky. – Então eu sugeri que fizéssemos exames, porque já faziam quatro meses que estávamos tentando, sete contando com os meses que eu desconhecia suas tentativas... Ela concordou, mas nunca estava disposta a ir, era como se não quisesse descobrir caso algo estivesse errado. Ela não estava preparada. Eu também não acho que estava, mas eu fui... – A respiração de não completou e sua coluna começou a se desenrolar em alerta, como se conseguisse prever o que estava por vir. Entreabriu os lábios ao mesmo tempo em que concluiu. – Eu sou infértil.
– Oh, ... – Ela soprou, bem baixinho, com receio de que ele se sentisse mal por sua compaixão.
– Descobrimos em Janeiro, não foi qualquer tipo de acidente... Aparentemente é algo que nasceu comigo. Tenho uma quantidade insuficiente de espermatozoides... – Ele continuou. Parecia menos ansioso naquele momento, como se a pior parte já tivesse passado. Lambeu os lábios ressecados do frio e então continuou: – E apesar de assisti-la chorar por horas a fio, eu estava feliz que o problema fosse comigo. Me dispus a fazer qualquer tratamento e estava disposto a adotar ou aceitar que ela recebesse o espermatozoide de qualquer cara do mundo, caso ela quisesse fazer uma inseminação. Madson não quis... E, passados dois meses da descoberta, o fim era iminente, . – Eles se entreolharam pela primeira vez desde que ele começara seu relato. Os olhos dela sossegaram os dele por um instante. – Eu fiquei do lado dela o tempo todo e dei meu melhor pra que ela nunca sequer desconfiasse que ocupava um lugar limitado no meu coração... Mas eu deixei de ser suficiente pra ela. Eu não podia dar a ela os três filhos que sonhava. Eu não podia dar nem um... Então eu cheguei em casa, depois de dois dias viajando a trabalho, e ela tinha arrumado as malas. Estava só esperando que eu chegasse para se despedir... – E por mais que quisesse dizer algo, sentiu que não conhecia palavras o suficiente confortá-lo. – Mad acredita em todas essas coisas de destino... E admitiu que esse era o motivo pelo qual não iria aceitar nenhum dos métodos propostos por mim... Disse que se fosse pra eu dar um filho a ela, então eu não seria infértil. Ela também disse ter percebido, desde o dia em que casamos, que as coisas pareciam embaralhadas, algo não estava certo... E que quando nos incentivou a dançar, hm... Você e eu, sua intenção era fazer com que nos despedíssemos de uma vez por todas... – começou a tremer, como se algo dentro dela vibrasse. Seu coração, talvez. – Mas percebeu que isso não era possível e que dali em diante começou a perceber que talvez eu não pudesse ser o homem certo pra ela ou que ela seria algum dia a mulher certa pra mim... – E, de alguma forma, os olhos de contaram o resto daquela história antes mesmo que ele conseguisse verbalizá-la. – Então foi embora e me presenteou com uma passagem para Sheffield. Eu adiei a data pelos quatro últimos meses, porque eu não sabia como chegar aqui e te contar tudo isso... Porque eu sei que talvez não seja o que você queira ouvir... Talvez fosse mais romântico se eu dissesse que o casamento ia bem, mas que eu não consegui ficar sem você e eu não podia dizer isso... Porque embora eu sentisse sua falta mais do que qualquer outra coisa, eu assumi um compromisso com Madson e não podia falhar... Então eu sinto muito, , sinto muito que talvez faça parecer que te deixei de lado e que só estou aqui agora porque meu casamento não deu certo. Eu sinto muito que talvez você se sinta como uma segunda opção... Acredite, não é a verdade...
– ... – Ela chamou, seu tom era baixo, mas preciso. quis afugentar todas aquelas lágrimas que embaçavam os olhos dela naquele instante. – Quando conversamos na garagem e eu o convenci a ficar e se casar, eu tinha comigo a certeza do que estava fazendo. Eu sabia, , que no momento em que você dissesse sim a ela, você teria dito sim a ela e levaria esse compromisso muito a sério. Eu sabia que você não ligaria, ou mandaria mensagens que não fossem unicamente amigáveis. Eu sabia que você não desistiria na primeira oportunidade ou correria pra mim quando as coisas ficassem difíceis... – arfou, respirando precariamente, engasgado com a própria ansiedade. – Porque esse é quem você é e eu não poderia te admirar mais... – cedeu um sorriso e uma lágrima lhe escapou. , num gesto involuntário, a enxugou com seu polegar. – É de uma nobreza enorme essa sua tentativa constante de não decepcionar ninguém, mesmo que isso sacrifique sua felicidade... E tá certo que eu não entendo muito de romances, mas não sei se consigo pensar em algo que seja mais romântico do que isso, .
– Você, ... Meu Deus, você é tão linda. – Ele murmurou e arquejou com o cansaço de ter guardado aquilo consigo por tanto tempo. Ela fechou os olhos úmidos, deleitando-se na massagem gentil que ele fazia em seu rosto. – Não conheço pessoa tão bonita quanto você.
– Talvez você precise dar uma olhada no espelho...
Ela disse tão baixo que soou como um segredo e agora estavam tão próximos que ele não precisou fazer qualquer esforço para ouvi-la.
abriu os olhos quando a respiração dele soprou seu rosto, morna e trepidante. curvou os lábios, num sorriso que não tinha outra definição senão carinhoso. Seu olhar desviou do dela, correndo para encontrar sua boca entreaberta. Com o polegar, ele tocou seu lábio inferior, cobrindo a pequena fissura quase cicatrizada, consequência dos dias de frio rigoroso. Depois correu com a ponta dos dedos por sua bochecha, arrastando para trás da orelha uma mecha do cabelo dela trazida pelo vento.
Agora, tão perto, seus olhos só conseguiam ver um ao outro. Variavam do esquerdo para o direito, se encontrando e desencontrando graciosamente. prendeu a respiração quando os dedos gélidos de percorreram o caminho até sua nuca e fechou os olhos pouco depois, quando ele já havia fechado os dele.
suspirou antes de descansar sua boca na dela. Gentil e curioso, provou seus lábios pela segunda vez em uma vida inteira. O superior, depois o inferior, sem pressa apesar do tempo perdido.
, de coração eufórico e fôlego nenhum, delineou a boca de com sua língua, como se convidasse a dele para um encontro – ainda tímidas e desconfiadas, se tocaram, cercando uma à outra. Pouco depois, como boas amantes, se entrelaçaram sem a menor pretensão de se afastarem outra vez algum dia.
Havia uma ânsia contida na maneira como tateou as costas de , atraindo-a para perto, como se toda a proximidade ainda não fosse o suficiente. Ela o enlaçou pelos ombros, tentando eliminar qualquer distância que ainda houvesse entre eles.
– Uhn... – soprou, quando separou o beijo para conseguir respirar. a observou com curiosidade, o batom vinho borrado e os cabelos desalinhados. – Acho que ainda foi bem estranho... – Ele começou a rir, tentando limpar as manchas de batom ao redor dos lábios dela.
– Devemos ser só amigos? – Arriscou, brincalhão.
– De jeito nenhum! – disparou enquanto se acomodava nos braços de , cedendo um sorriso divertido. – Devemos tentar outra vez!
– Depois de novo? – Ele perguntou, suas mãos buscando pelo quadril dela sob o casaco grosso que usava.
– Sim e então de novo! – Eles riram, com a ponta de seus narizes se esbarrando gentilmente.
E, naquela noite, não se refugiaram em seu esconderijo fabuloso, tão belíssima era a realidade que se apresentava e a crescente esperança no futuro que estava ali, escondido nos braços um do outro.
Não temeram o tamanho do mundo.
Não pensaram sobre o passado de .
E tampouco sobre a viagem de .
Não deram importância ao vento cortante, ou à rapidez com que a noite estava se esgotando.
Apenas se beijaram por horas a fio.
E beberam uma parte do whisky favorito de .
Cantaram bem alto um hit do Franz Ferdinand.
Foram a melhor versão de e que poderiam ser.
Com a deliciosa novidade que era poderem se amar às claras.
– Droga...
soprou por entre os dentes. A mão trêmula, enfiada em sua bolsa, tateava todos os cantos à procura da chave de casa. riu em seu pescoço e beijou a curva atrás de sua orelha, sem ajudar em nada e atrapalhando muito. A moça fechou os olhos, desejando que pudessem se teletransportar porta adentro.
A chuva, apesar de seu aspecto delicado, fez com que se apressassem a descer a colina, antes que a estrada se tornasse um lamaçal. Perfizeram o caminho mais rápido até a casa de . Um pouco bêbados. Muito excitados.
– Achei! – comemorou, agitando um molho de chaves em sua mão. achando graça em seu entusiasmo, manteve-se pacientemente atrás dela, segurando sua cintura entre as mãos firmes.
trancou a porta, aliviada com o calor confortável que fazia dentro de casa. Não acendeu as luzes, o dia estava por clarear e ela gostava da penumbra. a assistiu se acercar, depois de deixar seu casaco e a bolsa no mancebo. Ele tentou definir aquele sorriso em seu rosto, estava no caminho entre o carinho e a perversão e gostou de saber que, dentre seus tantos sorrisos, havia um que ele ainda não conhecia.
Na ponta dos pés, alcançou sua boca outra vez e, enquanto permitia que ela o conduzisse por corredores que ele pouco conhecia, lembrou-se do quão ansioso estava em sua primeira transa – não se comparava ao que sentia naquele momento.
O quarto dela estava ainda mais aquecido e ele gostou de como tudo ali tinha seu perfume.
apoiou o corpo de contra a porta, agora fechada e correu suas mãos trêmulas sob o suéter que ela usava, tocando sua cintura e as costas nuas. Ela arfou contra sua boca e aproveitou o desencontro de seus lábios para tracejar com beijos todo o caminho até seu pescoço.
, segura entre os braços dele, deitou sua cabeça para trás. Seus sentidos indo e voltando, numa sensação assustadoramente deliciosa de estar à beira da inércia.
Soltando pouco a pouco os ombros de , onde estivera agarrada nos últimos minutos, a menina o ajudou a se livrar do casaco que usava, depois espalmou seu peito e o empurrou apenas o suficiente para que conseguisse vê-lo. Zonza, beijou sua boca outra vez e começou a caminhar, na tentativa de conduzi-lo até a cama. a segurou por perto, achando tudo adorável, desde o enrolar preguiçoso e sedutor de sua língua, até os tropeços dos pés dela nos seus.
Com as mãos nos ombros de , o orientou a sentar-se na beirada do colchão, para depois acomodar-se em seu colo. E com o quadril entre as coxas dela, teve certeza de que havia encontrado seu lugar no mundo.
Sob o olhar abrasador de , ela retirou o próprio suéter. O colar com o qual ele havia lhe presenteado há tanto tempo estava pendurado delicadamente ao redor de seu pescoço, fazendo com que se lembrasse de que aquele momento havia se atrasado alguns anos.
aproximou-se, deixando um beijo no colo de , logo abaixo dos pingentes que o enfeitavam. Sentiu o peito dela pulsar, sua respiração forte e ruidosa diante do carinho íntimo, os dedos arrastando-se por sua nuca, enroscando-se aos seus cabelos.
Ele acariciou suas costas, apreciando a pele eriçada sob suas palmas antes de colocar-se a desacolchetar seu sutiã. Devorou seus seios e o que parecia ser o resto de seu equilíbrio. , em êxtase, ronronou seu nome. sorriu contra sua pele e se afastou para que ela conseguisse retirar sua camiseta. Depois, segurando-a contra seu corpo, a deitou sobre as roupas que em algum momento tinham sido cuidadosamente dobradas e deixadas ali.
O chão pareceu um bom lugar para elas naquele momento.
Com um sorriso lascivo, assistiu desamarrar os cadarços de seus coturnos, para depois livrar-se deles. Apreciou o caminho que as mãos dele fizeram por suas pernas, escondendo-se sob sua saia e agarrando o cós de sua meia calça. Fechou os olhos, aproveitando o alívio que era se livrar daquela peça.
precisou sentar-se na beirada da cama para retirar os próprios coturnos e meias e no momento em que voltou-se para , as pernas nuas dela enrolaram-se em seu quadril, rendendo-o contra o colchão. Ele riu e acariciou suas coxas, deixando morrer um suspiro em seus lábios, resposta ao roce sinuoso do corpo dela contra sua ereção.
Enquanto se despiam das poucas peças que ainda cobriam seus corpos e trocavam um beijo urgente que confidenciava o quanto haviam esperado por aquele momento, descobriam-se. Como uma viagem ao desconhecido, suas mãos visitavam lugares por onde nunca haviam passado em todos aqueles anos. Experimentaram-se, com curiosidade e paciência.
Os olhos de , nublados de prazer, embaralhavam a imagem do corpo de sobre o seu, cobrindo apenas parcialmente a claridade pálida que esgueirava-se pela grande janela atrás dela, propagando-se pelo cômodo, margeando seu corpo com luz. Ela parecia especialmente linda, quase sobre-humana, em sua nudez.
serpenteava, hora com a cabeça caída pra trás, hora encarando-o de um jeito que fazia com que se sentisse imerso no tesão mais intenso e no amor mais puro que já havia provado.
E então era ele. O alguém com quem transaria de luzes acesas.
Não havia dúvidas quando seu nome escapava por entre os lábios inchados de , num gemido fascinante.
Naquela noite e talvez pelo resto de sua vida.
.
Trêmula, despejou-se sobre ele. Podia sentir, do lado direito de seu peito, o coração dele pulsar. Por um instante era como ter dois corações. E talvez essa fosse a melhor definição do que sentia por ele, como se vivessem um dentro do outro e quem sabe por isso fosse tão difícil dissociá-los e mal sabiam o que fazer quando não estavam por perto.
Perigoso, mas tão atrativo.
acariciou suas costas nuas, e ambos ficaram em silêncio todo o tempo enquanto tentavam normalizar a respiração. Pareceu uma eternidade. Uma adorável eternidade. rolou para o lado e apoiou a cabeça em seu ombro, sua mão desenhando palavras na barriga encolhida de , torcendo pra que ele conseguisse descobrir o que ela queria dizer sem de fato dizer.
– Quanto tempo perdemos... – Era a única que conseguia pensar naquele momento, desabafando sua frustração momentânea.
– Não pense nisso... – Ela pediu, pois não queria ser arrastada para fora da beleza que era estar nos braços dele.
– Podíamos estar transando há dez anos! – Argumentou, a gargalhada de fazendo com que seu coração se agitasse no peito. – Brincadeira.
– Não é brincadeira, nada! – Acusou e foi a vez de desmanchar-se num riso espontâneo.
– Tem razão, não é. – Ele virou o rosto em direção ao dela, e ergueu a cabeça para conseguir observá-lo.
– Você já parou para pensar que talvez Madson estivesse certa? – E embora não parecesse uma boa hora para Madson ser citada, esperou para ver onde queria chegar. – E que talvez as coisas aconteçam da maneira como têm que acontecer? Talvez não funcionasse, caso tivéssemos ficado juntos desde a época em que nos apaixonamos... Talvez não conseguíssemos ter uma relação saudável, por algum ou muitos motivos diferentes. Quem sabe transássemos no Glastonbury e fosse de fato muito esquisito, afinal, éramos melhores amigos e tão doentiamente dependentes um do outro... – a ouviu atentamente e gostava de sua perspectiva otimista. – No fim, talvez precisássemos desse tempo longe, para desconstruirmos um pouco da imagem que tínhamos um do outro e da nossa amizade... E então nos esbarrarmos outra vez agora... Como uma espécie de preparação.
– Gosto de pensar assim. – Confessou, brincando com uma mecha do cabelo alvoroçado de .
– Além do mais, temos uns anos de sexo pela frente, não precisamos nos desesperar... – riu, a ponta dos dedos fazendo caminho pelo braço despido de , para depois segurar sua cintura.
– Subtraia os próximos seis meses... – Comentou ele e ela tinha quase certeza de que ele pretendia fazer um beicinho, depois desistiu.
– Vem comigo! – Ela convidou e seu entusiasmo fazia parecer fácil. suspirou e apoiou um braço sob a cabeça.
– Está muito em cima da hora, poopface. – Lamentou e ela sabia que ele tinha razão, mas não queria deixá-lo pra trás. – Vai passar rápido... Só, por favor, não volte de lá casada com um Argentino! Basta aquele babaca do Tom.
– Do qual... , você copiou o cabelo.
– Não fiz isso.
– Você super fez isso! – Os dois gargalharam, porque tinha mesmo feito isso.
– Eu sou patético! – Anuiu, o indicador desenhando qualquer coisa na coxa dela, que cobria confortavelmente seu quadril.
– Tão apaixonado, pobrezinho... – provocou, gostando de finalmente poder citar coisas daquele tipo com toda a liberdade almejada.
– É muito feio zombar assim. – Ele reclamou, mas não estava verdadeiramente constrangido.
– Sabe de uma coisa... – E deslizando sobre o corpo dele, nivelou seus rostos, os olhos se observaram exatamente na mesma altura. – Eu amo você. Há anos!
– Hm, não é muito cedo para falar de amor? Acabamos de trans... ! – Ele exclamou, em meio a uma gargalhada divertida e a tentativa de impedir que ela se levantasse, como pretendia. – Vem aqui... – pediu, ainda risonho, seus corpos se enroscando outra vez sob o edredom.
– Eu amo você só como amigo a partir de agora! – Ela protestou, escondendo um riso no canto dos lábios.
– Grande mentira... – acusou, esbarrando o nariz no dela antes de beijá-la gentilmente. – Eu nem acredito que você está aqui comigo... – Ele murmurou contra os lábios de , compartilhando sua euforia. – Eu mal posso esperar para viver o resto da minha vida com você.
– Não há nada que soe melhor do que isso...
Então enfiaram-se sob os cobertores e transaram mais uma vez. De mansinho e com ainda menos pressa do que antes, desfrutando de cada minuto daquele prazer desmedido.
Dormiram e acordaram juntos. E, conformados com o claro atraso para o almoço de Stella, tomaram um banho em companhia um do outro. ajudou com o que faltava organizar em sua mala e só quando não tinham mais pretexto para ficarem por ali, sendo só dois, aceitaram o fato de que precisavam ir.
E que engraçado a alegria exacerbada, e quase desconcertante, de todos os quatro ao vê-los juntos. E dessa vez, para além das costumeiras piadas internas, brincadeiras íntimas de sempre e sorrisos que diziam muito, também havia aquela troca sutil de carinhos. brincando com os cabelos de , ela retribuindo com um ligeiro afago em seu joelho. Um beijinho aqui, outro ali.
Que belíssimo casal eram e . Desde antes de serem um casal, talvez.
– Quer entrar? – perguntou e torceu pra que ficasse. Temeu que a solidão a arrastasse para pensamentos malquistos.
– Não posso, prometi a minha mãe que deixaria ela escolher alguns dos meus móveis novos... – E esboçou uma careta. riu e acomodou-se mais perto, escorando-se no ombro dele. – Eu venho me despedir mais tarde.
– Oh, não venha... – Pediu a moça, olhos fechados pra que ele talvez não percebesse seus anseios. – Mentira, venha.
– Não sou como você que foge de despedidas, ... – E ela sabia que, embora agora estivesse fazendo piadas sobre o ocorrido, não era algo com o qual ele havia lidado.
– Certo... Eu te espero aqui mais tarde... – Murmurou e roubou-lhe um beijo rápido antes de saltar da Chevy. Já havia fechado a porta e dado dois passos para longe quando, subitamente, retornou e observou através da janela. Ele baixou o vidro com curiosidade. – Eu estava lá, ...
– Onde?
– No aeroporto, quando você foi para Los Angeles... Eu estava lá.
– ... – Ele soou tão confuso quanto realmente estava.
– Eu fui até lá para me despedir, mas eu não pude... Não tinha coragem de dizer pessoalmente que não estava preparada para me mudar, mesmo que eu não me lembrasse de outra coisa que tivesse desejado tanto quanto ir embora com você e ainda hoje não lembro... – sentiu como se o coração estivesse vacilando batida sim, batida não. Quis dizer algo, mas pegou-se sem fala. – Eu fui até lá e assisti você por duas horas inteiras, até seu embarque... Eu sei o quanto era importante pra você que eu tivesse ao menos aparecido para me despedir, mas, se possível, ... Me perdoe por isso.
– Não vamos mais pensar sobre nada disso, ... – Ele pediu e havia um sorriso genuíno curvando seus lábios. – E, a partir de agora, sem mais acovardamentos. Temos um acordo?
– Temos um acordo, . – Com um sorriso e uma piscadela, se despediu.
recolheu todas as roupas que ela e haviam atirado ao chão para ganhar espaço na cama, depois espalhou-se por seu colchão e, sentindo-se um tanto patética, esfregou o nariz pelos cobertores e travesseiros, bisbilhotando atrás de algo que tivesse segurando o perfume de . Sorriu. Depois sorriu mais um pouco.
Diferente do que estava esperando das horas que antecediam sua viagem, não pirou. Preparou um banho de banheira, onde ficou imersa por muito tempo, até a água começar a perder temperatura e obrigá-la a afugentar-se em seu roupão.
Arrumou a mala com mais paciência e cuidado do que havia tido em todos os últimos dias. Bebericou o que restava do vinho que abrira tarde passada e ao final sua perna já estava menos agitada, seu coração menos sôfrego.
Chorou de mansinho, porque não conseguia evitar sentir-se frágil. Não era e sabia disso. Havia levado anos até se convencer e agora eram raras as vezes que via a si mesma com uma miudeza nociva. Apesar disso, não passou perto de desistir, como havia desistido de Los Angeles. E sequer cogitou a possibilidade, como quando mudou-se tão hesitante para Leeds.
Determinada e imensamente feliz, sorriu para seu reflexo no espelho do banheiro antes de voltar para o quarto.
Seu fôlego se esgotou de uma só vez quando, ao cruzar a porta, deparou-se com a presença de . Suprimiu um grito assustado, fazendo com que ele soasse como um soluço. O rapaz riu com carinho, levantando-se da beirada da cama.
– Que diabos, ? Você quase me matou de susto! – Sem dizer nada, o rapaz amparou seu rosto com ambas as mãos, seus ombros estavam encolhidos quando ele se curvou para beijar, muito suavemente, a boca de .
– ... – Ele chamou, contra os lábios dela, depois afastou-se apenas o suficiente para conseguir ver seus olhos, mas eles estavam fechados. – Estive pensando sobre todos os nossos desencontros... E sobre aquele um milhão de coisas que só fazem sentido quanto com você... – o observou pacientemente, desejando veemente poder prever onde ele queria chegar. – E sobre meus últimos anos terem sido um saco... – suspirou e descansou seus lábios nos dela mais uma vez, depois se afastou e deleitou-se no olhar atônito de enquanto se curvava, apoiando um de seus joelhos no chão.
– , o que está... O que está fazendo? – Disparou, as palavras atropelando umas às outras – Levanta já daí!
– ... – chamou e com um sorriso cheio de diversão retirou do bolso de trás de seu jeans uma passagem. – Quer mochilar comigo?
– Seu-grande-idiota! – gritou e deixou que ele a erguesse do chão num abraço estreito, aconchegando uma gargalhada na curva do pescoço de .
– Esse é seu jeitinho adorável de dizer sim, poopface? – o observou, com a respiração irregular e o coração em festa.
– Eu aceito.
E, de repente, pela primeira vez, o mundo é que ficou pequeno demais para e .
livrou-se dos óculos de grau e esfregou os olhos, cansados da leitura constante. Fechou o arquivo do romance que estivera avaliando ao longo de todo seu expediente e, como havia prometido ao chefe, enviou um e-mail a Louis, o editor que ficaria responsável pela obra daquele momento em diante, com todas as informações que ele poderia precisar.
Desligou aquele computador que agora já não poderia chamar de seu. Gastou um tempo verificando as gavetas e armários da sala, para a qual não voltaria na próxima semana, mas decidiu que não queria levar nada. Poderia ser útil para alguém quando para ela seria apenas uma bagunça a mais.
Antes de sair, deu mais uma olhadela no cômodo onde passara todo os seus últimos anos. Tentou forçar uma nostalgia antecipada ou algo parecido com isso. Tudo o que sentia, porém, era satisfação. Talvez sentisse saudades em algum momento, mas não ainda.
Atravessou o curto corredor, pensando se deveria passar pela sala de cada um de seus colegas de trabalho, para uma daquelas despedidas que todo mundo fingia que ser indesejada, mas era só indiferente.
talvez estivesse enganada a seu respeito e ao pensar que não estava deixando pra trás nada além de uma presença quase desapercebida. Teve de reconhecer isso ao encontrar todos os funcionários da editora esperando por ela na recepção. Não havia bolos, faixas ou gritaria. Apenas sorrisos verdadeiros e uma inesperada salva de palmas. Ela não sabia se pelos seus anos de trabalho ou se por ter a coragem que todos eles não tinham.
Não fugiu das despedidas e daquele clima de intimidade artificial.
Com um alívio excepcional, deixou Pennine.
Abriu o cadeado da corrente que mantinha sua bicicleta em segurança e colocou-se a pedalar. Primeiro muito rápido, como se corresse o risco de ser sugada de volta para dentro da editora. Ou como se seu comodismo fosse fazê-la ficar. Depois num ritmo mais ameno, ao perceber que, àquela altura, nada poderia fazê-la desistir.
Apreciou o caminho de todos os dias com mais tranquilidade e atenção. Reparando em todas as coisas que a automaticidade fazia passar desapercebido. Havia algo tão bom crescendo em seu peito que pegou-se rindo sozinha. Ridicularizou-se por isso, mas não conseguiu deixar de rir um pouco mais.
Em casa, deixou o cachecol e um de seus casacos pendurado no mancebo e quando já estava no meio do caminho até seu quarto, retornou para buscá-los. Deixou ambos sobre a cama, junto às roupas dobradas que ainda não sabia se colocaria ou não na mala.
Livrou-se das botas, meias e calça jeans, decidindo entre tomar um banho ou uma taça de vinho.
Andou até a cozinha e avaliou preguiçosamente o que tinha na geladeira, o estômago reclamando de fome. Ele teria que ter paciência, ela pensou, enquanto cortava alguns pedaços daquele jeito que ela não tinha certeza se ainda estava dentro da validade.
Sentou-se na bancada da pia e chacoalhou as pernas nuas, bebericando o vinho tinto e engolindo alguns pedaços de queijo para enganar sua fome, enquanto curtia sua liberdade.
– Alô?
– , que horas você vem? – Martha perguntou, soando afobada. riu, fechando a torneira de sua banheira.
– Preciso mesmo ir? – Brincou, sabendo que isso zangaria sua mãe.
– Claro que você precisa! Não seja ingrata! Stella e Robert chegam às oito! – Disparou, tudo de uma vez.
– Mãe! – protestou, soltando um longo suspiro pesaroso. – Você disse que não seria como uma despedida!
- Eu disse que não seria como uma festa! Não se preocupe... Somos só nós cinco! – Garantiu Martha.
– Ok... Vou tentar chegar às oito.
Quanto sofrimento pode caber em um só coração?
Esse parecia ter sido o desafio de ao voltar de Los Angeles. Cabia muito, ela descobriu. Mais do que ela estava esperando e muito mais do que ela podia administrar naquele momento. Chorou todos os dias ao longo de suas férias. Martha dizia que ela encontraria “alguém especial” e não achava que esse era o problema. Nunca havia sentido medo de ficar sozinha, de nunca se casar ou ter filhos. Não era disso que se tratava.
continuaria a amar , intensa e dolorosamente, pelo resto de seus dias, mas nunca explicitamente. Sempre à distância, às escuras. Era disso que se tratava.
Não se importava se nunca encontrasse alguém com quem quisesse dividir sua vida pelo resto da vida. Se importava apenas que, caso encontrasse, não fosse .
Depois de secar muito mal os cabelos, vestiu, sob a saia preta, a meia calça mais grossa que encontrou em suas gavetas desorganizadas. Alcançou um suéter palha que ainda não havia colocado na mala e o cachecol vinho que usava mais cedo. Mal terminou de amarrar os cadarços de seu coturno quando o táxi buzinou. Pendurou um sobretudo no antebraço e a bolsa em seu ombro, antes de correr em direção à porta.
– Está atrasada... – Martha soprou ao recebê-la.
– São oito e quinze! – sussurrou de volta e, com um sorriso carinhoso, envolveu o corpo da mãe num abraço. – Robert e Stella já chegaram?
– Sim, estão na sala com Allan... – Martha respondeu, avançando com ela para dentro da casa. – Vá até lá, eu vou buscar uma taça pra você.
– Ok!
gostaria que aquela despedida fosse tão fácil quanto a que havia vivenciado na editora. Sorrisos e abraços dos quais não sentiria falta no dia seguinte. Nenhuma nostalgia ou tristeza.
Era impossível, ela bem sabia disso.
– Olá! – Saudou com o entusiasmo que esperavam dela.
– Hey! – Allan saltou de sua poltrona e veio para um abraço amigável, depois foi a vez de Stella, por último Robert.
– Me desculpem o atraso, minha mãe disse pra eu não aparecer com o cabelo sujo aqui... – Brincou e todos sabiam que era mentira.
– Tudo bem, nós te perdoamos por isso... – Robert se manifestou, divertido. – Já está tudo pronto?
– Mais ou menos... Minha mala está que é pura desordem... – Confessou, sentando-se no sofá restante depois de largar sua bolsa no aparador. – Eu tinha ideia do que levar, agora que andei pesquisando nem sei mais... Acho que vou com a roupa do corpo e só...
– De jeito nenhum! – Martha protestou, seu pavor arrancou um riso dos demais. – Eu estou velha, , meu coração não aguenta muitas emoções...
– Ah, por favor... – Reclamou a moça, abanando a mão livre enquanto, com a outra, aceitava sua taça de vinho. – Você é exagerada, Martha, my dear.
– Como foi o último dia na editora? – Allan interessou-se.
– Me aplaudiram, mas não é surpresa para ninguém, certo? – Ela brincou, com aquela mania de fazer piada de todos os seus desconfortos.
– Não mesmo... – Stella disparou, com honestidade. – Eles sabem a grande profissional que estão perdendo...
– Ah, Stella... – murmurou, desviando os olhos para o próprio vinho. – Enfim, foi legal... Meu chefe fez uma carta de recomendação caso eu volte e queira procurar por algum emprego na mesma área...
– Como é? "Caso eu volte"? – Martha disparou, os olhos bem abertos.
– É modo de dizer, mãe, não posso viver pelo mundo para sempre... – A moça explicou, risonha.
– , por favor... – Allan pediu, em tom divertido. – Sou eu quem vou ficar e cuidar da ansiedade dela, seja mais cuidadosa... – Os cinco gargalharam e a mais nova levantou-se para conectar um pendrive na TV.
– Vocês já pediram a pizza? – Quis saber, escolhendo uma de suas playlists para rodar. – Minha última refeição foi um Casu Marzu feito em casa...
– Meu Deus, ! – Martha murmurou, enquanto os outros três desmanchavam-se em gargalhadas divertidas. – Pare de comer queijo estragado, isso vai te matar de intoxicação um dia.
– Mãe, pessoas pagam caro por esses queijos podres, ninguém nunca morreu por isso... – Ela provocou, voltando para perto da mulher. – Eu prometo que vou parar...
– Por Deus... – Martha suspirou, alcançando seu vinho na mesa de centro.
– E a casa, , decidiu o que fazer? – Robert perguntou, interessado.
– Eu decidi não manter o aluguel, seria um gasto desnecessário... – Contou, retirando o sobretudo e pendurando no encosto do sofá. – Por falar nisso, mãe, o caminhão de frete vai trazer pra cá o que eu não vou doar, é pouca coisa... E preciso que você devolva a chave para o dono da casa, na semana que vem.
– Você não podia ter adiado essa viagem para a semana que vem? Para ao menos conseguir se organizar melhor... – Martha argumentou e por conta de seus pedidos já havia adiado “essa viagem” por um mês inteiro.
– Não mais, mãe... – E sorriu, na tentativa de confortá-la. – Vai dar tudo certo!
– Não me diga que vou ter que cuidar do seu rato... – Martha pediu, fechando os olhos com um calafrio percorrendo sua coluna.
– Não é um rato, Martha, e o nome dele é Mr. Jones! – corrigiu, fingindo indignação. – Dei ele para Hanna, filha do meu chefe.
– Graças a Deus! – Suspirou a mãe, com alívio. – Vou preparar alguns aperitivos, já que está com fome... A pizza pode demorar.
– Não precisa, mãe... – tratou de se manifestar. – Eu espero a pizza...
– Deixe de bobeira, num minuto eu trago... – E Allan rapidamente se prontificou a ajudar.
– Tem falado com , ? – Robert perguntou, Stella, apesar de ter se distraído com seu celular por um minuto, ergueu os olhos atentamente na direção de . Seu coração acostumado a disparar na tentativa de atender ao nome de . Ela deu um longo gole em seu vinho antes de responder.
– Não... Quer dizer... – Ela tentou calcular há quanto tempo não se falavam, mas mal conseguia se recordar. – Trocamos um e-mail de Natal, eu acho... – Era mentira, mas gostaria que Robert e Stella acreditassem que ainda tinham contato – Como... Ele está?
– Está bem... – O homem limitou-se a dizer e depois, com um sorriso assimétrico, acrescentou: – Quer dizer que agora ficarei alguns meses sem clube do livro?
– Ah, mas você não se preocupe, segunda ou terça minha encomenda chega no seu endereço...
– Como é?
– Espere e verá! – Ela disparou, deixando claro que não diria mais do que aquilo.
Distraído entre os aperitivos que Allan e Martha trouxeram e uma notícia bizarra e engraçada que Stella havia lido mais cedo, se arrastaram por uma hora inteira.
, de repente alheia ao que estavam falando, lembrou-se de todas aquelas reuniões que faziam pouco antes de ir embora. Elas continuaram acontecendo e eram claramente muito bem vindas, mas nunca a mesma coisa. Sobrava sempre um espaço, que não era físico, mas tão visível e dolorido como se fosse.
– Pizza!
disparou ao ouvir a campainha. Saltou do sofá onde estava e deixou sua taça na mesa de centro, aceitando o dinheiro que Martha lhe oferecia enquanto já se direcionava à saída da sala de estar.
Cantarolou pelo caminho, com a mesma sensação prazerosa que havia tido mais cedo, agora intensificada pelo álcool. Riu de si mesma e dessa vez não julgou a própria atitude. Permitiu-se à tolice, pois ela parecia imensamente agradável naquele momento.
puxou a porta em sua direção, os olhos correndo pela figura do lado de fora numa fração de segundos. E, tão rápido quanto, começou a tremer. Aquele não era o entregador de pizzas.
– É aqui que tá acontecendo uma festa de despedida?
Em contraste à figura petrificada de , dentro dela era como se um milhão de pessoas gritassem, todas ao mesmo tempo, fazendo seu interior vibrar por completo. Seu coração palpitava com tamanha ansiedade que parecia exigir dela mais do que poderia oferecer. Não achava que algum dia seria a garota que, de tão apaixonada, ficava zonza e sem fôlego, mas viu-se obrigada a segurar mais firme na maçaneta para lidar com a vertigem repentina.
– Eu espero que você esteja com as pizzas, !
E gostou de como ele ignorou seu sarcasmo e o fato de não se verem há mais de um ano, atraindo seu corpo para o abraço mais apertado no qual ela já havia estado. O único em que ela gostaria de estar.
podia sentir seu coração pulsando dentro do peito, como não pulsava por ninguém mais além de . Era como se fosse treinado para atender unicamente aos seus comandos – fosse sua voz, sua gargalhada ou o cheiro característico de seus cabelos. Meu Deus, era pateticamente apaixonado por ela.
Seus braços se estreitaram ao redor dela, como se nunca fosse deixá-la sair dali, atormentado por todas as vezes que deixou e acabou por perdê-la de vista.
– Não acredito que está aqui... – confidenciou, tão baixo que não tinha certeza se ela queria que ele tivesse ouvido.
– Bem aqui...
– Há quanto tempo? – Ela quis saber, soltando-se dele e enxugando o rosto muito rapidamente.
– Quase uma semana... – contou, seus lábios se curvando num sorriso culposo.
– Eu não acredito! Eles todos sabiam, certo? – E apontou para dentro com o polegar, referindo-se aos que esperavam por eles na sala de estar. – Eu odeio vocês! Seu pai, aquele grande mentiroso, perguntando se eu tinha falado com você ultimamente! – O rapaz riu e precisou se esforçar para não abraçá-la outra vez.
– Eles não têm culpa, eu pedi... – Confessou, achando graça na árdua tentativa dela de parecer brava.
– Não é muito justo... Eu estou indo viajar, podíamos ter aproveitado esses últimos dias... – E, com medo que ele interpretasse da maneira errada, acrescentou: – Você sabe, só... Andar por aí, hm... Como fazíamos antigamente... – sorriu, divertindo-se com o embaraço de . Era algo novo. E como era raro esbarrar em algo que ainda fosse novo entre eles.
– Não precisamos ter pressa, poopface. – Garantiu e sem dar a ela chance de fazer qualquer pergunta, concluiu: – As pizzas estão no carro, me ajuda a pegar?
Lizzy estava estacionada do outro lado da rua e se perguntou quanto gastava para transportar a caminhonete de um País a outro, mas foi como se o vento gélido daquela noite soprasse todos os seus pensamentos, substituindo um por outro antes mesmo de serem concluídos. A ansiedade fazendo com as palavras girassem tão rapidamente que ela duvidou que conseguisse elaborar uma frase inteira naquele momento.
Pensou em perguntar sobre Madson, mas foi tomada pela tentação de fingir que ela nunca havia existido. Que nunca tinha partido. E que aquela era apenas uma daquelas sextas de pizzas, vinho e maratona de seus filmes favoritos. lembrou-se do sentimento agradável que havia tido ao pedalar de volta pra casa, ou alguns minutos atrás enquanto caminhava até a porta – parecia uma piada perto do que sentia agora.
– Não finjam que não sabiam sobre isso...
Martha, mal contendo as próprias lágrimas, levantou-se para abraçar . Não vê-lo há anos fez com que ela sentisse como se estivesse sendo arrastada para o passado, de volta a uma época em que era comum vê-lo ali, naquela sala de jantar ou em qualquer outro cômodo da casa.
encheu sua taça de vinho e esvaziou com a mesma rapidez, aliviando a escassez de sua boca e garganta provocada pela ansiedade. Fingiu não notar o olhar curioso e comovido de Stella e Robert, sentando-se no lugar que escolheu para ser seu enquanto exigia, aflita, “por Deus, pare de tremer, aja como uma adulta”.
– Um brinde... – Martha começou, mas precisou respirar fundo e aclarar a garganta antes de continuar. – À essa mulher corajosa que é minha filha... Que essa viagem seja a coisa mais bonita que você já viveu e que você aproveite cada minuto dela da melhor maneira possível... E que logo você esteja de volta para a mamãe... – E, dito isso, ergueu sua taça. riu emocionada21 e acompanhou o gesto da mãe.
– À ... – completou, com um sorriso discreto.
– À .
Havia um sorriso verdadeiro nos lábios de cada um deles e também essa reunião de mãos no centro da mesa, junto ao tilintar delicado das taças de vidro, apoiando o brinde feito por Martha. E, com a visão confusa pelas lágrimas, reconheceu a mão de em meio a todas as outras. Foi então que, desorientada em meio ao rebuliço de sentimentos que a perpassavam, notou: a aliança que costumava ficar no anelar esquerdo de , naquela noite, não estava ali.
Entre uma garfada e outra, os olhos de arriscavam-se e corriam para o canto, tentando observar o rosto, de repente muito sério, de . Ela costumava comer muito devagar, mas durante o jantar algumas vezes ela parecia ter se esquecido de que havia um pedaço de pizza em seu prato.
sentiu uma sensação fria atravessá-la por dentro, como se houvesse uma janela em cada extremidade de seu corpo, e de repente fossem escancaradas por uma ventania inesperada. Patético que a causa de sua aflição fosse o simples esbarrar do joelho de no seu, sob a mesa. Se entreolharam e embora ela quisesse sorrir, sorriso nenhum lhe ocorreu.
Observou o rosto maduro de , os cabelos que ele parecia ter esquecido de cortar ultimamente, os olhos um tom mais claro do marrom corriqueiro. Ele curvou os lábios num sorriso curioso e diligente que fez todo o vinho daquela garrafa parecer muito pouco.
– Quem quer sobremesa?
imaginou a si mesmo com aquele relógio da parede em mãos, ajustando seus ponteiros, acelerando as horas, pulando a sobremesa e a conversa descontraída na qual se perderiam pelo que restava da noite. Havia esse assunto pendente entre ele e , um discurso completando seus dezoito anos dentro do peito, um amor que agora já era maior de idade e bem sabia o que queria pra si. E diferente de , que esperaria por ela mais vinte anos caso se fizesse necessário, aquela conversa entre eles não poderia esperar mais uma noite sequer.
torceu na direção contrária. Desejou que a noite se arrastasse, bem devagar e preguiçosamente. Que houvesse dezenas de garrafas de vinho a serem abertas e uma caixa daqueles charutos de Allan, que ele só acendia em datas comemorativas. Ficou na esperança de que todos se esquecessem das horas, que o cansaço nunca chegasse, que não precisassem ir embora. Não antes de sossegar aquela saudade dolorida em seu peito.
Quase conseguia prever a cena de si mesma, rolando na cama madrugada afora, longe de conciliar o sono, pensando e se torturando com todas as palavras que gostaria de ter dito, os abraços que gostaria de ter dado, mas não teve tempo ou coragem. O grande dilema de sua relação com arrastando-se pelos anos, assombrava-os outra vez.
Passava 01h30 quando Stella convidou Robert para irem pra casa. E enquanto se despediam, podia sentir a angústia inflando como um balão, espremendo-se em seu peito, entalando em sua garganta.
, a caminho da porta, penteava os cabelos pra trás e repetia um mantra encorajador “diga, , diga, vamos lá, é só dizer”. De soslaio, observou o rosto sorridente de enquanto assistia Martha e Stella combinarem um almoço para o dia seguinte. Outra festa de despedida porque ninguém de fato queria se despedir.
– Você está de carro? – ele disparou, como quem solta todo o ar numa única golfada. ergueu os olhos, atenta e esperançosa.
– Não – respondeu, voz e coração vacilantes.
– Eu te levo.
Ela queria contestar por pura polidez, mas desistiu. Queria a companhia dele mais do que queria ser educada.
Com as pernas tão instáveis quanto as de um boneco inflável, apressou-se em buscar seu casaco e a bolsa, enrolou rapidamente o cachecol em seu pescoço e sorveu o que restava de seu vinho, antes de abandonar a taça na mesa de centro e encontrar-se com do lado de fora da casa.
Despediu-se de Allan e Martha e quase podia ouvir os comentários entusiasmados e maliciosos que a mãe gostaria de fazer em seu ouvido, mas não fez. Estavam todos em seu sorriso e naquela piscadela perversa que lançou em sua direção.
– Eu tinha me esquecido de como faz frio aqui! – comentou quando acomodaram-se na cabine da caminhonete. – Minhas mãos estão congeladas! – E ele só não insistiu pra que conferisse porque elas também estavam cobertas de um suor ansioso.
– Tinha me esquecido de que agora você é um rapaz da Califórnia! – provocou, soltou uma risada espontânea enquanto dava partida e ligava o aquecedor velho da Chevy.
– Talvez eu tenha que me acostumar com os dias gelados da Inglaterra outra vez... – Confidenciou, como se aquela informação fosse algo irrelevante. quase podia sentir o ressecar gradativo de sua garganta.
– Como assim? – Perguntou com medo de morrer de felicidade para depois descobrir que havia sido um mal entendido.
– Estou voltando para Sheffield... – Ele contou e antes de começar a dirigir, deu uma olhadela para o rosto surpreso da mulher ao seu lado. – E, inclusive, aluguei sua casa. Espero que não se importe.
– Você... O quê? É sério? – Certificou-se mais uma vez porque não queria correr o risco de estar sendo enganada.
– Sim, mas quando você voltar pode ficar com ela... – “Ou podemos ficar nela juntos” pensou em dizer, mas achou que era cedo demais. Havia, agora sem dúvidas, muita noite pela frente.
– Oh, não, você vai pegar seus discos de volta? – Disparou com diversão, quando conseguiu controlar a respiração entrecortada. deu risada e atreveu-se a esticar sua mão para brincar com a dela, esquecida sobre o próprio colo.
– Pois não tenha dúvidas disso – Ela sorriu, apreciando o toque gelado dos dedos ossudos de nos seus, entrelaçando-os num gesto pouco familiar, mas muito bem vindo. – Está cansada?
– Não... – Respondeu tão rapidamente que não tinha certeza se tinha ou não interrompido o que ele ia dizendo. – O que tem em mente?
– Em mente, não muito... – Comentou, os olhos atenciosamente voltados para o caminho que percorriam. – Mas no meu pendrive tenho uma playlist incrível e embaixo do banco tenho uma garrafa inteira do seu whisky favorito... – sorriu, porque mal podia deixar de fazê-lo.
– Eu conheço esse observatório desativado...
– Que coincidência, eu costumava ir lá todos os fins de semana com essa minha melhor amiga...
– E o que houve depois? – perguntou e sentiu os dedos de estreitarem-se ao redor dos seus.
– Eu descumpri as regras de toda boa amizade... Me apaixonei perdidamente por ela.
O observatório ficava pelos arredores de Sheffield no alto de uma colina. E ainda que, há muito tempo, a entrada fosse proibida, havia um fácil acesso graças aos anos de funcionamento. e nem sequer se recordavam de, em algum momento, terem visitado o observatório enquanto aberto ao público.
Levava dez minutos de estrada até chegar à trilha, que nunca havia sido asfaltada. Mais seis ou sete minutos naquele caminho íngreme de terra até alcançarem o pico da colina. procurou por um espaço plaino antes de estacionar. A caçamba de Lizzy voltada para as luzes da cidade morro abaixo.
carregou consigo a mochila de com o whisky e os copos plásticos. Ele livrou-se da lona que cobria a traseira da caminhonete, depois desenrolou o colchonete para forrar o piso irregular e a manta grossa que havia se lembrado de trazer.
– Costumávamos ser mais primitivos, ... – Ela brincou, aceitando a ajuda dele para subir na traseira da Chevy. – Colchonete? Lizzy está decepcionada.
– Ela está tão velha quanto nós estamos, , ela entende... – A moça gargalhou, sua risada soando entrecortada por conta do vento. abriu as pequenas janelas de vidro na lataria que os separava da cabine, a música fez-se mais alta desde então.
– Meu Deus, quanto tempo não venho aqui... – observou, ainda sem sentar-se. O vento sacolejando delicadamente seu corpo. – A vista é tão familiar quanto o rosto da minha mãe! – E parou ao seu lado, o braço encostado no dela, os olhos perdidos no mesmo cenário.
– Qual foi a última vez que veio? – Ele perguntou, seu mindinho enroscando-se no dela, porque sentira tanta falta de seu toque que agora não queria perder seu tempo longe dela.
– A última vez que você veio... – confidenciou, tão baixinho que o vento criou lacunas por entre as palavras, e precisou trabalhar um tempo em cima da frase antes de conseguir compreendê-la. Então sorriu. – Seria muito estranho vir até aqui sem você... – Ela admitiu, porque havia se mantido no raso por muito tempo, era hora de permitir-se um mergulho.
– Consigo pensar em um milhão de coisas que só fazem sentido quando estou com você, .
– Seus últimos anos devem ter sido um saco... – Ela disparou, brincalhona e sentiu o corpo de vibrar num riso espontâneo.
– Você não poderia estar mais certa... – E então olhou para trás, pra onde estavam o colchonete e a manta. – Está ansiosa para sua viagem? – Perguntou enquanto se ajoelhava e alcançava a mochila, retirando dela a garrafa de whisky e os copos plásticos.
– Estou! – admitiu e virou-se para se aproximar, sentando-se sobre o colchonete e encostando-se na lataria que repartia caçamba e cabine. – Mas tentei não pensar muito nisso, ou ia pirar!
– Faltam menos de vinte e quatro horas agora... – provocou, despejando uma generosa dose de whisky em um copo, que estendeu para ela logo depois. – Talvez já possa começar a pirar.
– Estou me poupando para quando faltar apenas cinco ou seis horas, então entrarei em parafuso, pensarei em desistir, vou chorar de medo por uma hora inteira, desfazer e refazer minha mala pensando ter esquecido algo... – ria, sentando-se ao lado dela. – Sabe, essas coisas que pessoas normais fazem antes de viajar.
– Claro, isso acontece comigo sempre... – Brincou, cheio da ironia que sentia falta nas outras pessoas. – Está valendo outro brinde?
– Agora é minha vez! – Ela estabeleceu e ergueu seu copo em direção ao dele. – Um brinde ao seu retorno à Sheffield, de onde você nunca deveria ter saído! – gargalhou divertidamente, arrancando um sorriso em meio à expressão sarcástica de .
– Um brinde ao meu retorno à Sheffield, de onde eu nunca deveria ter saído! – E tomaram o primeiro sorvo da noite, adorando e odiando o arrepio estranho na mandíbula. – Pra onde você vai primeiro?
– Vou para o Brasil... – contou e encostou-se a ele com uma liberdade recém recuperada. precisou de um tempo para voltar a respirar normalmente. – Eu perdi o Carnaval, mas vai valer a pena porque vou pegar o restinho do Verão... E dizem que faz calor até Maio...
– Quanto tempo pretende ficar lá?
– Quatro semanas, depois vou para o Peru... – E pausou para tomar um gole de seu whisky, tentando amenizar a crescente ansiedade com a simples menção de seu roteiro. – De lá sigo para a Bolívia, então Chile, Uruguai e por último Argentina... – suspirou junto com ela, compartilhando de seu entusiasmo. – E aí volto para cá.
– São seis meses? – concordou com a cabeça, a boca escondida em seu copo. – Vai ser uma grande experiência, poopface.
– Tenho certeza que sim... – E deu uma risadinha antes de continuar. – Aprendi a hablar un poco de español! – gargalhou, gostando de seu sotaque e de como ela se enrolava em cada uma daquelas palavras. – Espero que seja o suficiente para que eu consiga sobreviver.
– Tenha um dicionário sempre com você por via das dúvidas... – concordou com a cabeça, um riso fácil de quem já bebeu demais ou está feliz demais. – Podemos nos programar para irmos juntos da próxima vez... Com um roteiro diferente, é claro.
– Detesto te decepcionar, mas eu só tinha um carro para vender...
– Mas ainda tem dois rins... – Os dois gargalharam e, caramba, como soavam bem rindo juntos.
, com tanta vista pela frente, escolheu observar o rosto de , enquanto ela cantarolava distraidamente um Indie Folk que ele tinha incluído em sua playlist unicamente para agradá-la.
percebia o olhar dele sobre si, examinando-a tão lenta e atenciosamente que ela quase podia sentir sua pele se aquecendo por onde seus olhos passavam. Tinha certeza de que suas bochechas ganhavam um tom mais rubro a cada minuto, até ela finalmente se cansar e acomodar seus olhos nos dele.
– Em que momento da noite vamos falar sobre Madson? – disparou, destemida. arqueou as sobrancelhas, surpreso, depois cedeu um sorriso.
– No momento em que você quiser falar sobre Madson... – Estabeleceu e embora não tivesse certeza de que estava pronto para aquela conversa, gostaria mesmo de tentar.
– O que houve entre vocês? – , num gesto involuntário, levou o polegar no anelar, como se pretendesse girar a aliança que não estava mais ali. o acompanhou levar o copo na boca e engolir o que restava de seu whisky num único gole.
– Nós... hm... Terminamos... Agora já fazem quase quatro meses... – fez os cálculos rapidamente. Haviam se separado um ano e dois meses depois de se casarem.
– Eu sinto muito, ... – E ela sentia. Por e ainda mais por Madson.
– Está tudo bem, na medida do possível. – Ele garantiu e alcançou a garrafa para servir-se um pouco mais de bebida.
– Você quer falar sobre isso? – perguntou, deixando espaço para que ele ficasse à vontade para escolher entre falar ou não. Ela sabia que não era do tipo que desabafava, mas gostaria que ele conseguisse dividir com ela seu pesar.
– Eu não estou exatamente triste, ... – Comentou, sem conseguir encará-la. – E acho que essa é a pior parte, não é? Eu gostaria de estar triste... – Ela não soube o que dizer, então apenas maneou a cabeça num gesto positivo, incentivando-o a continuar, caso quisesse. – As coisas não estavam indo bem... Talvez não estivessem indo bem desde o início, mas houveram alguns... Algumas contrariedades para as quais não estávamos preparados – E, novamente, esperou. bebericou seu whisky e levou alguns segundos escolhendo por onde começar, antes de retomar a fala. – Em Agosto, logo que nos casamos, fomos viajar em lua de mel... Em nossa primeira noite, Madson bebeu demais e contou que havia parado com o anticoncepcional há pelo menos três meses, mas não havia dito antes porque achou que eu me aborreceria. Eu fiquei zangado na hora e talvez estivesse sendo injusto... Sempre escondi os cigarros e às vezes fingia concordar com coisas que eu não concordava de fato... Enfim, não foi esse o problema, conversamos por toda a madrugada e eu compreendi seu comportamento, às vezes eu não dou muito espaço para esse tipo de conversa. Não é por querer, eu nunca percebo... – manteve seu copo na boca, disfarçando a surpresa e o mal estar repentino causados por aquela revelação. – Madson é dois anos mais velha, já estava com trinta e dois e, por ser filha única, ela queria mais que um, talvez três, era o que dizia... Precisávamos nos apressar! – E seu tom de voz continha exatamente o mesmo desespero que o abateu quando Madson despejou aquilo sobre ele “precisamos nos apressar!”. Ele ainda podia ouvir sua voz. – Não estava em meus planos... Deus sabe como eu tenho medo de ser um péssimo pai, mas eu concordei. Não parecia se quer algo a ser discutido, o sonho dela era ser mãe, eu precisava respeitar e aceitar isso... – respirou fundo, queria um cigarro. – No início as coisas corriam bem, nossa rotina era a mesma, não fazíamos mais ou menos sexo do que antes, mas depois dos dois primeiros meses, as coisas começaram a ficar estranhas... Madson ficava extremamente frustrada ao menstruar e eu acabava ficando também... Era como se eu estivesse falhando um mês após o outro... Fomos ficando obcecados. É uma palavra horrível, não é? Obcecados... – quase podia sentir sua aflição preenchendo o próprio peito. – E de repente, sem perceber, só estávamos transando em seu período fértil, tínhamos um calendário para seguir e algumas posições que supostamente facilitariam a fecundação... Eu aguentei firme, , o máximo que pude... Eu não deixei que ela percebesse o quanto eu estava esgotado daquela situação, porque eu sabia o quanto ela também estava esgotada... – Ele respirou pesadamente e umedeceu a garganta escassa com um pouco de whisky. – Então eu sugeri que fizéssemos exames, porque já faziam quatro meses que estávamos tentando, sete contando com os meses que eu desconhecia suas tentativas... Ela concordou, mas nunca estava disposta a ir, era como se não quisesse descobrir caso algo estivesse errado. Ela não estava preparada. Eu também não acho que estava, mas eu fui... – A respiração de não completou e sua coluna começou a se desenrolar em alerta, como se conseguisse prever o que estava por vir. Entreabriu os lábios ao mesmo tempo em que concluiu. – Eu sou infértil.
– Oh, ... – Ela soprou, bem baixinho, com receio de que ele se sentisse mal por sua compaixão.
– Descobrimos em Janeiro, não foi qualquer tipo de acidente... Aparentemente é algo que nasceu comigo. Tenho uma quantidade insuficiente de espermatozoides... – Ele continuou. Parecia menos ansioso naquele momento, como se a pior parte já tivesse passado. Lambeu os lábios ressecados do frio e então continuou: – E apesar de assisti-la chorar por horas a fio, eu estava feliz que o problema fosse comigo. Me dispus a fazer qualquer tratamento e estava disposto a adotar ou aceitar que ela recebesse o espermatozoide de qualquer cara do mundo, caso ela quisesse fazer uma inseminação. Madson não quis... E, passados dois meses da descoberta, o fim era iminente, . – Eles se entreolharam pela primeira vez desde que ele começara seu relato. Os olhos dela sossegaram os dele por um instante. – Eu fiquei do lado dela o tempo todo e dei meu melhor pra que ela nunca sequer desconfiasse que ocupava um lugar limitado no meu coração... Mas eu deixei de ser suficiente pra ela. Eu não podia dar a ela os três filhos que sonhava. Eu não podia dar nem um... Então eu cheguei em casa, depois de dois dias viajando a trabalho, e ela tinha arrumado as malas. Estava só esperando que eu chegasse para se despedir... – E por mais que quisesse dizer algo, sentiu que não conhecia palavras o suficiente confortá-lo. – Mad acredita em todas essas coisas de destino... E admitiu que esse era o motivo pelo qual não iria aceitar nenhum dos métodos propostos por mim... Disse que se fosse pra eu dar um filho a ela, então eu não seria infértil. Ela também disse ter percebido, desde o dia em que casamos, que as coisas pareciam embaralhadas, algo não estava certo... E que quando nos incentivou a dançar, hm... Você e eu, sua intenção era fazer com que nos despedíssemos de uma vez por todas... – começou a tremer, como se algo dentro dela vibrasse. Seu coração, talvez. – Mas percebeu que isso não era possível e que dali em diante começou a perceber que talvez eu não pudesse ser o homem certo pra ela ou que ela seria algum dia a mulher certa pra mim... – E, de alguma forma, os olhos de contaram o resto daquela história antes mesmo que ele conseguisse verbalizá-la. – Então foi embora e me presenteou com uma passagem para Sheffield. Eu adiei a data pelos quatro últimos meses, porque eu não sabia como chegar aqui e te contar tudo isso... Porque eu sei que talvez não seja o que você queira ouvir... Talvez fosse mais romântico se eu dissesse que o casamento ia bem, mas que eu não consegui ficar sem você e eu não podia dizer isso... Porque embora eu sentisse sua falta mais do que qualquer outra coisa, eu assumi um compromisso com Madson e não podia falhar... Então eu sinto muito, , sinto muito que talvez faça parecer que te deixei de lado e que só estou aqui agora porque meu casamento não deu certo. Eu sinto muito que talvez você se sinta como uma segunda opção... Acredite, não é a verdade...
– ... – Ela chamou, seu tom era baixo, mas preciso. quis afugentar todas aquelas lágrimas que embaçavam os olhos dela naquele instante. – Quando conversamos na garagem e eu o convenci a ficar e se casar, eu tinha comigo a certeza do que estava fazendo. Eu sabia, , que no momento em que você dissesse sim a ela, você teria dito sim a ela e levaria esse compromisso muito a sério. Eu sabia que você não ligaria, ou mandaria mensagens que não fossem unicamente amigáveis. Eu sabia que você não desistiria na primeira oportunidade ou correria pra mim quando as coisas ficassem difíceis... – arfou, respirando precariamente, engasgado com a própria ansiedade. – Porque esse é quem você é e eu não poderia te admirar mais... – cedeu um sorriso e uma lágrima lhe escapou. , num gesto involuntário, a enxugou com seu polegar. – É de uma nobreza enorme essa sua tentativa constante de não decepcionar ninguém, mesmo que isso sacrifique sua felicidade... E tá certo que eu não entendo muito de romances, mas não sei se consigo pensar em algo que seja mais romântico do que isso, .
– Você, ... Meu Deus, você é tão linda. – Ele murmurou e arquejou com o cansaço de ter guardado aquilo consigo por tanto tempo. Ela fechou os olhos úmidos, deleitando-se na massagem gentil que ele fazia em seu rosto. – Não conheço pessoa tão bonita quanto você.
– Talvez você precise dar uma olhada no espelho...
Ela disse tão baixo que soou como um segredo e agora estavam tão próximos que ele não precisou fazer qualquer esforço para ouvi-la.
abriu os olhos quando a respiração dele soprou seu rosto, morna e trepidante. curvou os lábios, num sorriso que não tinha outra definição senão carinhoso. Seu olhar desviou do dela, correndo para encontrar sua boca entreaberta. Com o polegar, ele tocou seu lábio inferior, cobrindo a pequena fissura quase cicatrizada, consequência dos dias de frio rigoroso. Depois correu com a ponta dos dedos por sua bochecha, arrastando para trás da orelha uma mecha do cabelo dela trazida pelo vento.
Agora, tão perto, seus olhos só conseguiam ver um ao outro. Variavam do esquerdo para o direito, se encontrando e desencontrando graciosamente. prendeu a respiração quando os dedos gélidos de percorreram o caminho até sua nuca e fechou os olhos pouco depois, quando ele já havia fechado os dele.
suspirou antes de descansar sua boca na dela. Gentil e curioso, provou seus lábios pela segunda vez em uma vida inteira. O superior, depois o inferior, sem pressa apesar do tempo perdido.
, de coração eufórico e fôlego nenhum, delineou a boca de com sua língua, como se convidasse a dele para um encontro – ainda tímidas e desconfiadas, se tocaram, cercando uma à outra. Pouco depois, como boas amantes, se entrelaçaram sem a menor pretensão de se afastarem outra vez algum dia.
Havia uma ânsia contida na maneira como tateou as costas de , atraindo-a para perto, como se toda a proximidade ainda não fosse o suficiente. Ela o enlaçou pelos ombros, tentando eliminar qualquer distância que ainda houvesse entre eles.
– Uhn... – soprou, quando separou o beijo para conseguir respirar. a observou com curiosidade, o batom vinho borrado e os cabelos desalinhados. – Acho que ainda foi bem estranho... – Ele começou a rir, tentando limpar as manchas de batom ao redor dos lábios dela.
– Devemos ser só amigos? – Arriscou, brincalhão.
– De jeito nenhum! – disparou enquanto se acomodava nos braços de , cedendo um sorriso divertido. – Devemos tentar outra vez!
– Depois de novo? – Ele perguntou, suas mãos buscando pelo quadril dela sob o casaco grosso que usava.
– Sim e então de novo! – Eles riram, com a ponta de seus narizes se esbarrando gentilmente.
E, naquela noite, não se refugiaram em seu esconderijo fabuloso, tão belíssima era a realidade que se apresentava e a crescente esperança no futuro que estava ali, escondido nos braços um do outro.
Não temeram o tamanho do mundo.
Não pensaram sobre o passado de .
E tampouco sobre a viagem de .
Não deram importância ao vento cortante, ou à rapidez com que a noite estava se esgotando.
Apenas se beijaram por horas a fio.
E beberam uma parte do whisky favorito de .
Cantaram bem alto um hit do Franz Ferdinand.
Foram a melhor versão de e que poderiam ser.
Com a deliciosa novidade que era poderem se amar às claras.
– Droga...
soprou por entre os dentes. A mão trêmula, enfiada em sua bolsa, tateava todos os cantos à procura da chave de casa. riu em seu pescoço e beijou a curva atrás de sua orelha, sem ajudar em nada e atrapalhando muito. A moça fechou os olhos, desejando que pudessem se teletransportar porta adentro.
A chuva, apesar de seu aspecto delicado, fez com que se apressassem a descer a colina, antes que a estrada se tornasse um lamaçal. Perfizeram o caminho mais rápido até a casa de . Um pouco bêbados. Muito excitados.
– Achei! – comemorou, agitando um molho de chaves em sua mão. achando graça em seu entusiasmo, manteve-se pacientemente atrás dela, segurando sua cintura entre as mãos firmes.
trancou a porta, aliviada com o calor confortável que fazia dentro de casa. Não acendeu as luzes, o dia estava por clarear e ela gostava da penumbra. a assistiu se acercar, depois de deixar seu casaco e a bolsa no mancebo. Ele tentou definir aquele sorriso em seu rosto, estava no caminho entre o carinho e a perversão e gostou de saber que, dentre seus tantos sorrisos, havia um que ele ainda não conhecia.
Na ponta dos pés, alcançou sua boca outra vez e, enquanto permitia que ela o conduzisse por corredores que ele pouco conhecia, lembrou-se do quão ansioso estava em sua primeira transa – não se comparava ao que sentia naquele momento.
O quarto dela estava ainda mais aquecido e ele gostou de como tudo ali tinha seu perfume.
apoiou o corpo de contra a porta, agora fechada e correu suas mãos trêmulas sob o suéter que ela usava, tocando sua cintura e as costas nuas. Ela arfou contra sua boca e aproveitou o desencontro de seus lábios para tracejar com beijos todo o caminho até seu pescoço.
, segura entre os braços dele, deitou sua cabeça para trás. Seus sentidos indo e voltando, numa sensação assustadoramente deliciosa de estar à beira da inércia.
Soltando pouco a pouco os ombros de , onde estivera agarrada nos últimos minutos, a menina o ajudou a se livrar do casaco que usava, depois espalmou seu peito e o empurrou apenas o suficiente para que conseguisse vê-lo. Zonza, beijou sua boca outra vez e começou a caminhar, na tentativa de conduzi-lo até a cama. a segurou por perto, achando tudo adorável, desde o enrolar preguiçoso e sedutor de sua língua, até os tropeços dos pés dela nos seus.
Com as mãos nos ombros de , o orientou a sentar-se na beirada do colchão, para depois acomodar-se em seu colo. E com o quadril entre as coxas dela, teve certeza de que havia encontrado seu lugar no mundo.
Sob o olhar abrasador de , ela retirou o próprio suéter. O colar com o qual ele havia lhe presenteado há tanto tempo estava pendurado delicadamente ao redor de seu pescoço, fazendo com que se lembrasse de que aquele momento havia se atrasado alguns anos.
aproximou-se, deixando um beijo no colo de , logo abaixo dos pingentes que o enfeitavam. Sentiu o peito dela pulsar, sua respiração forte e ruidosa diante do carinho íntimo, os dedos arrastando-se por sua nuca, enroscando-se aos seus cabelos.
Ele acariciou suas costas, apreciando a pele eriçada sob suas palmas antes de colocar-se a desacolchetar seu sutiã. Devorou seus seios e o que parecia ser o resto de seu equilíbrio. , em êxtase, ronronou seu nome. sorriu contra sua pele e se afastou para que ela conseguisse retirar sua camiseta. Depois, segurando-a contra seu corpo, a deitou sobre as roupas que em algum momento tinham sido cuidadosamente dobradas e deixadas ali.
O chão pareceu um bom lugar para elas naquele momento.
Com um sorriso lascivo, assistiu desamarrar os cadarços de seus coturnos, para depois livrar-se deles. Apreciou o caminho que as mãos dele fizeram por suas pernas, escondendo-se sob sua saia e agarrando o cós de sua meia calça. Fechou os olhos, aproveitando o alívio que era se livrar daquela peça.
precisou sentar-se na beirada da cama para retirar os próprios coturnos e meias e no momento em que voltou-se para , as pernas nuas dela enrolaram-se em seu quadril, rendendo-o contra o colchão. Ele riu e acariciou suas coxas, deixando morrer um suspiro em seus lábios, resposta ao roce sinuoso do corpo dela contra sua ereção.
Enquanto se despiam das poucas peças que ainda cobriam seus corpos e trocavam um beijo urgente que confidenciava o quanto haviam esperado por aquele momento, descobriam-se. Como uma viagem ao desconhecido, suas mãos visitavam lugares por onde nunca haviam passado em todos aqueles anos. Experimentaram-se, com curiosidade e paciência.
Os olhos de , nublados de prazer, embaralhavam a imagem do corpo de sobre o seu, cobrindo apenas parcialmente a claridade pálida que esgueirava-se pela grande janela atrás dela, propagando-se pelo cômodo, margeando seu corpo com luz. Ela parecia especialmente linda, quase sobre-humana, em sua nudez.
serpenteava, hora com a cabeça caída pra trás, hora encarando-o de um jeito que fazia com que se sentisse imerso no tesão mais intenso e no amor mais puro que já havia provado.
E então era ele. O alguém com quem transaria de luzes acesas.
Não havia dúvidas quando seu nome escapava por entre os lábios inchados de , num gemido fascinante.
Naquela noite e talvez pelo resto de sua vida.
.
Trêmula, despejou-se sobre ele. Podia sentir, do lado direito de seu peito, o coração dele pulsar. Por um instante era como ter dois corações. E talvez essa fosse a melhor definição do que sentia por ele, como se vivessem um dentro do outro e quem sabe por isso fosse tão difícil dissociá-los e mal sabiam o que fazer quando não estavam por perto.
Perigoso, mas tão atrativo.
acariciou suas costas nuas, e ambos ficaram em silêncio todo o tempo enquanto tentavam normalizar a respiração. Pareceu uma eternidade. Uma adorável eternidade. rolou para o lado e apoiou a cabeça em seu ombro, sua mão desenhando palavras na barriga encolhida de , torcendo pra que ele conseguisse descobrir o que ela queria dizer sem de fato dizer.
– Quanto tempo perdemos... – Era a única que conseguia pensar naquele momento, desabafando sua frustração momentânea.
– Não pense nisso... – Ela pediu, pois não queria ser arrastada para fora da beleza que era estar nos braços dele.
– Podíamos estar transando há dez anos! – Argumentou, a gargalhada de fazendo com que seu coração se agitasse no peito. – Brincadeira.
– Não é brincadeira, nada! – Acusou e foi a vez de desmanchar-se num riso espontâneo.
– Tem razão, não é. – Ele virou o rosto em direção ao dela, e ergueu a cabeça para conseguir observá-lo.
– Você já parou para pensar que talvez Madson estivesse certa? – E embora não parecesse uma boa hora para Madson ser citada, esperou para ver onde queria chegar. – E que talvez as coisas aconteçam da maneira como têm que acontecer? Talvez não funcionasse, caso tivéssemos ficado juntos desde a época em que nos apaixonamos... Talvez não conseguíssemos ter uma relação saudável, por algum ou muitos motivos diferentes. Quem sabe transássemos no Glastonbury e fosse de fato muito esquisito, afinal, éramos melhores amigos e tão doentiamente dependentes um do outro... – a ouviu atentamente e gostava de sua perspectiva otimista. – No fim, talvez precisássemos desse tempo longe, para desconstruirmos um pouco da imagem que tínhamos um do outro e da nossa amizade... E então nos esbarrarmos outra vez agora... Como uma espécie de preparação.
– Gosto de pensar assim. – Confessou, brincando com uma mecha do cabelo alvoroçado de .
– Além do mais, temos uns anos de sexo pela frente, não precisamos nos desesperar... – riu, a ponta dos dedos fazendo caminho pelo braço despido de , para depois segurar sua cintura.
– Subtraia os próximos seis meses... – Comentou ele e ela tinha quase certeza de que ele pretendia fazer um beicinho, depois desistiu.
– Vem comigo! – Ela convidou e seu entusiasmo fazia parecer fácil. suspirou e apoiou um braço sob a cabeça.
– Está muito em cima da hora, poopface. – Lamentou e ela sabia que ele tinha razão, mas não queria deixá-lo pra trás. – Vai passar rápido... Só, por favor, não volte de lá casada com um Argentino! Basta aquele babaca do Tom.
– Do qual... , você copiou o cabelo.
– Não fiz isso.
– Você super fez isso! – Os dois gargalharam, porque tinha mesmo feito isso.
– Eu sou patético! – Anuiu, o indicador desenhando qualquer coisa na coxa dela, que cobria confortavelmente seu quadril.
– Tão apaixonado, pobrezinho... – provocou, gostando de finalmente poder citar coisas daquele tipo com toda a liberdade almejada.
– É muito feio zombar assim. – Ele reclamou, mas não estava verdadeiramente constrangido.
– Sabe de uma coisa... – E deslizando sobre o corpo dele, nivelou seus rostos, os olhos se observaram exatamente na mesma altura. – Eu amo você. Há anos!
– Hm, não é muito cedo para falar de amor? Acabamos de trans... ! – Ele exclamou, em meio a uma gargalhada divertida e a tentativa de impedir que ela se levantasse, como pretendia. – Vem aqui... – pediu, ainda risonho, seus corpos se enroscando outra vez sob o edredom.
– Eu amo você só como amigo a partir de agora! – Ela protestou, escondendo um riso no canto dos lábios.
– Grande mentira... – acusou, esbarrando o nariz no dela antes de beijá-la gentilmente. – Eu nem acredito que você está aqui comigo... – Ele murmurou contra os lábios de , compartilhando sua euforia. – Eu mal posso esperar para viver o resto da minha vida com você.
– Não há nada que soe melhor do que isso...
Então enfiaram-se sob os cobertores e transaram mais uma vez. De mansinho e com ainda menos pressa do que antes, desfrutando de cada minuto daquele prazer desmedido.
Dormiram e acordaram juntos. E, conformados com o claro atraso para o almoço de Stella, tomaram um banho em companhia um do outro. ajudou com o que faltava organizar em sua mala e só quando não tinham mais pretexto para ficarem por ali, sendo só dois, aceitaram o fato de que precisavam ir.
E que engraçado a alegria exacerbada, e quase desconcertante, de todos os quatro ao vê-los juntos. E dessa vez, para além das costumeiras piadas internas, brincadeiras íntimas de sempre e sorrisos que diziam muito, também havia aquela troca sutil de carinhos. brincando com os cabelos de , ela retribuindo com um ligeiro afago em seu joelho. Um beijinho aqui, outro ali.
Que belíssimo casal eram e . Desde antes de serem um casal, talvez.
– Quer entrar? – perguntou e torceu pra que ficasse. Temeu que a solidão a arrastasse para pensamentos malquistos.
– Não posso, prometi a minha mãe que deixaria ela escolher alguns dos meus móveis novos... – E esboçou uma careta. riu e acomodou-se mais perto, escorando-se no ombro dele. – Eu venho me despedir mais tarde.
– Oh, não venha... – Pediu a moça, olhos fechados pra que ele talvez não percebesse seus anseios. – Mentira, venha.
– Não sou como você que foge de despedidas, ... – E ela sabia que, embora agora estivesse fazendo piadas sobre o ocorrido, não era algo com o qual ele havia lidado.
– Certo... Eu te espero aqui mais tarde... – Murmurou e roubou-lhe um beijo rápido antes de saltar da Chevy. Já havia fechado a porta e dado dois passos para longe quando, subitamente, retornou e observou através da janela. Ele baixou o vidro com curiosidade. – Eu estava lá, ...
– Onde?
– No aeroporto, quando você foi para Los Angeles... Eu estava lá.
– ... – Ele soou tão confuso quanto realmente estava.
– Eu fui até lá para me despedir, mas eu não pude... Não tinha coragem de dizer pessoalmente que não estava preparada para me mudar, mesmo que eu não me lembrasse de outra coisa que tivesse desejado tanto quanto ir embora com você e ainda hoje não lembro... – sentiu como se o coração estivesse vacilando batida sim, batida não. Quis dizer algo, mas pegou-se sem fala. – Eu fui até lá e assisti você por duas horas inteiras, até seu embarque... Eu sei o quanto era importante pra você que eu tivesse ao menos aparecido para me despedir, mas, se possível, ... Me perdoe por isso.
– Não vamos mais pensar sobre nada disso, ... – Ele pediu e havia um sorriso genuíno curvando seus lábios. – E, a partir de agora, sem mais acovardamentos. Temos um acordo?
– Temos um acordo, . – Com um sorriso e uma piscadela, se despediu.
recolheu todas as roupas que ela e haviam atirado ao chão para ganhar espaço na cama, depois espalhou-se por seu colchão e, sentindo-se um tanto patética, esfregou o nariz pelos cobertores e travesseiros, bisbilhotando atrás de algo que tivesse segurando o perfume de . Sorriu. Depois sorriu mais um pouco.
Diferente do que estava esperando das horas que antecediam sua viagem, não pirou. Preparou um banho de banheira, onde ficou imersa por muito tempo, até a água começar a perder temperatura e obrigá-la a afugentar-se em seu roupão.
Arrumou a mala com mais paciência e cuidado do que havia tido em todos os últimos dias. Bebericou o que restava do vinho que abrira tarde passada e ao final sua perna já estava menos agitada, seu coração menos sôfrego.
Chorou de mansinho, porque não conseguia evitar sentir-se frágil. Não era e sabia disso. Havia levado anos até se convencer e agora eram raras as vezes que via a si mesma com uma miudeza nociva. Apesar disso, não passou perto de desistir, como havia desistido de Los Angeles. E sequer cogitou a possibilidade, como quando mudou-se tão hesitante para Leeds.
Determinada e imensamente feliz, sorriu para seu reflexo no espelho do banheiro antes de voltar para o quarto.
Seu fôlego se esgotou de uma só vez quando, ao cruzar a porta, deparou-se com a presença de . Suprimiu um grito assustado, fazendo com que ele soasse como um soluço. O rapaz riu com carinho, levantando-se da beirada da cama.
– Que diabos, ? Você quase me matou de susto! – Sem dizer nada, o rapaz amparou seu rosto com ambas as mãos, seus ombros estavam encolhidos quando ele se curvou para beijar, muito suavemente, a boca de .
– ... – Ele chamou, contra os lábios dela, depois afastou-se apenas o suficiente para conseguir ver seus olhos, mas eles estavam fechados. – Estive pensando sobre todos os nossos desencontros... E sobre aquele um milhão de coisas que só fazem sentido quanto com você... – o observou pacientemente, desejando veemente poder prever onde ele queria chegar. – E sobre meus últimos anos terem sido um saco... – suspirou e descansou seus lábios nos dela mais uma vez, depois se afastou e deleitou-se no olhar atônito de enquanto se curvava, apoiando um de seus joelhos no chão.
– , o que está... O que está fazendo? – Disparou, as palavras atropelando umas às outras – Levanta já daí!
– ... – chamou e com um sorriso cheio de diversão retirou do bolso de trás de seu jeans uma passagem. – Quer mochilar comigo?
– Seu-grande-idiota! – gritou e deixou que ele a erguesse do chão num abraço estreito, aconchegando uma gargalhada na curva do pescoço de .
– Esse é seu jeitinho adorável de dizer sim, poopface? – o observou, com a respiração irregular e o coração em festa.
– Eu aceito.
E, de repente, pela primeira vez, o mundo é que ficou pequeno demais para e .
Fim
Nota da autora: Não faz mal para ninguém um final feliz, não é verdade?
Parece que chegamos ao fim dessa caminhada juntos e eu gostaria de agradecer imenso à todos que passearam comigo por Sheffield, que deram voltinhas e mais voltinhas na Miss Lizzy, que curtiram os shows do Glastonbury de 2005, que agonizaram com todas as palavras não ditas, e os desencontros, e aqueles dias tão frios mesmo em uma Califórnia tão quente. Obrigada, pessoal, por terem dado uma chance a mim e à Friendzone, obrigada desde já a todos que ainda vão passar por aqui – e eu espero que sejam muitos.
Eu espero, de todo meu coração, ter proporcionado a vocês uma leitura prazerosa, que Friendzone tenha sido significativa para cada um de vocês daquele jeito singular que as coisas são significativas para a gente. Espero que ela tenha trazido algo de novo, uma emoção, uma reflexão e que vocês se lembrem dela com frequência por conta disso. E aí sim, meta cumprida para mim!
Vou deixar um super obrigada à Mari, que esteve disposta esse tempo todo para receber e revisar a história com todo cuidado e dedicação e à equipe do FFOBS por nos proporcionar esse espaço riquíssimo, com histórias incríveis! Enfim, muito obrigada, mais uma vez, a todos os comentários e todo o carinho que vocês colocaram nos comentários e na presença de vocês.
Um beijo enorme e até a próxima (que seja em breve).
<3
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Parece que chegamos ao fim dessa caminhada juntos e eu gostaria de agradecer imenso à todos que passearam comigo por Sheffield, que deram voltinhas e mais voltinhas na Miss Lizzy, que curtiram os shows do Glastonbury de 2005, que agonizaram com todas as palavras não ditas, e os desencontros, e aqueles dias tão frios mesmo em uma Califórnia tão quente. Obrigada, pessoal, por terem dado uma chance a mim e à Friendzone, obrigada desde já a todos que ainda vão passar por aqui – e eu espero que sejam muitos.
Eu espero, de todo meu coração, ter proporcionado a vocês uma leitura prazerosa, que Friendzone tenha sido significativa para cada um de vocês daquele jeito singular que as coisas são significativas para a gente. Espero que ela tenha trazido algo de novo, uma emoção, uma reflexão e que vocês se lembrem dela com frequência por conta disso. E aí sim, meta cumprida para mim!
Vou deixar um super obrigada à Mari, que esteve disposta esse tempo todo para receber e revisar a história com todo cuidado e dedicação e à equipe do FFOBS por nos proporcionar esse espaço riquíssimo, com histórias incríveis! Enfim, muito obrigada, mais uma vez, a todos os comentários e todo o carinho que vocês colocaram nos comentários e na presença de vocês.
Um beijo enorme e até a próxima (que seja em breve).
<3