Última atualização: 19/06/2020

Capítulo único

Sexta-feira, 25.02.2000
Bilber, Oklahoma


Era a primeira vez em dezessete anos que Liza Baker frequentava a noite de Oklahoma sozinha. As ruas, conhecidas por toda uma vida, soavam quase intimidadoras à sombra do luar que percorria toda a cidade. Ela carregava a velha mochila escolar e andava a passos de tartaruga. Não tinha nenhuma pressa. Desejava postergar o momento o máximo possível, como sempre fazia quando saboreava os melhores prazeres da vida.
Tudo começou com aquela estranha ligação, uma semana antes, quando estava saindo do consultório da Dra Spencer. Liza não era uma garota popular e não conseguia pensar em ninguém mais com acesso a seu telefone pessoal, além dos seus pais e de seu melhor amigo, Scott Lee.
No entanto, a voz dissera coisas muito bonitas. Estava ali para salvá-la. Nada mais seria como antes, de jeito nenhum. A voz, seja lá de quem fosse, também desejava encontrá-la numa sexta à noite, no ginásio da Bilber High School, quando os treinos de futebol já tivessem terminado. Insistia que sua vida mudaria, que as coisas seriam diferentes de agora em diante. Mas era um segredo que ela deveria guardar: absolutamente ninguém além dela mesma poderia saber do encontro.
Liza não se preocupou em perguntar o nome, a idade e nem mesmo de onde se conheciam, porque aqueles eram fatos triviais. Havia algo de grande naquilo tudo, algo que não podia ser comparado a nada mais que vivera antes. E, por isso, sorriu radiante ao encostar as mãos no grande portão de ferro, da escola que era seu lar e inferno há quase três anos.
A voz recomendara levar guarnições na mochila. Reconhecia a dificuldade em arranjá-las dentro de uma semana, mas havia certa urgência para que o encontro fosse um sucesso. Isso obrigara Liza a furtar os próprios pais e até mesmo alguns dos vizinhos, mas valia tudo pela grandeza do que estava por vir.
Ao entrar no ginásio Bilber, assim como a voz dissera tempos antes, reconheceu todos os rostos que continuavam no lugar. Jack Royther, Coline Rudson, Martin Johnson, Norman Keller, Jack Van Hooter e, por último, mas não antes de sentir um grande aperto no coração, encontrou o rosto de sua amada Hannah Jean.
Era verdade, afinal. Ela a amava! Desejou aquele corpo e sonhou com ele tantas vezes que sequer poderia contar. Demorou muito, na verdade, anos, até que decidisse enviar-lhe um cartão no dia dos namorados. Não achou que escrevera mal e, além do mais, o cartão não fora nada barato. No entanto, de alguma forma, os colegas descobriram que havia sido ela. E, agora, todas as noites Liza dormia acompanhada daquelas feridas em forma de palavras

(HÁ HÁ HÁ, não sabia que colavam velcro lá no hospício de onde essa maluca saiu, se bem que de alguma forma elas tinham que se ocupar, mas, ei, não esqueça de tirar uma foto se resolver dar uma chance a ela, Hannah, sabe como é, uma caridade no dia dos namorados sempre cai bem, mas é melhor tomar cuidado se quiser enfiar a boca lá, hein, deve haver umas teias bem grandes naquela buceta peluda, ah-meu-deus, e quem é que iria querer enfiar a boca naquilo, quem ia querer, QUEM IA QUERER, HÁ HÁ HÁ).

Sua terapeuta, Dra Spencer, certa vez lhe dissera que o amor não era fácil, mas que um dia surgiria como uma longa tempestade em tempos de deserto. Liza acreditou naquelas palavras por muito tempo, mas hoje achava tudo uma grande bobagem. Ninguém jamais a amaria, ninguém além da voz. E a voz lhe dizia que essa era hora, a hora do ponto final. Ela iria obedecê-la.
E foi quando se percebeu exatamente ao seu lado, a voz sussurrando-lhe ao ouvido, o hálito fresco e quente fazendo Liza se sentir acolhida como nunca antes na vida. Ouvir aquele sussurro, assim, no canto do ouvido, foi suficiente para trazer a coragem de enfrentar todos os seus medos. E eles estavam ali, bem diante de seus olhos, sem sequer prestar qualquer atenção a ela, que tirava uma 38 da mochila, disposta a assinalar um ponto final na história de todos eles.
E quando a canção começou, a canção que a voz gentilmente chamara de ra-tá-tá-tá, Liza pensou que, talvez, só por um instante, estivesse vivendo uma longa tempestade após um mar de deserto. Aquilo era, afinal, amor, amor ao som de uma única nota, ra-tá-tá-tá.
A canção continuaria entonando pela Escola Bilber, longa e incessantemente, até que Scott Lee impedisse Liza Baker de finalizar sua própria história, com uma grande nota no céu boca e os miolos espalhados pela arquibancada do ginásio.
Mas, antes disso, Liza retomou brevemente a consciência de si mesma e se perguntou o que a tinha levado até ali, numa noite de sexta-feira, quando provavelmente deveria estar sentada com seus pais no culto das 20:00 na Paróquia de Bilber.
Já não reconhecia a arma em suas mãos, a roupa suada pelo esforço físico, nem mesmo o sangue jorrado por cada centímetro onde, muito pouco tempo antes, seis adolescentes haviam fumado um baseado, discutido sobre quais universidades iriam aplicar, com quem ainda gostariam de transar e sobre sonhos que nunca chegariam a se concretizar.
Ainda imersa na própria consciência, Liza voltou-se ao seu primeiro dia na Bilber High School, após longos anos de educação doméstica, com um diagnóstico de esquizofrenia paranoide nas mãos, sorrindo porque sua psiquiatra fora convencida de que seria seguro se ela frequentasse uma escola comum, juntamente com outros jovens.
Ela também havia se comprometido a seguir com a medicação, o que de fato aconteceu durante dois anos, até Lizza que se viu diante de Hannah Jean - com seus longos cabelos negros, maquiagem escura e pearcing na sobrancelha direita pela - e decidiu que estava na hora de parar. Scott lhe dissera que não era uma boa ideia largar o tratamento de uma hora para outra, mas Liza já não ligava para a opinião de Scott, assim como também não ligava para a de qualquer outra pessoa que não fosse Hannah Jean.
Pouco tempo depois, ela ainda tomaria coragem de um bilhetinho no armário de HJ. Não tinha certeza se ela era lésbica, mas com toda certeza do mundo havia alguns sinais e Liza decidiu também deixar o número do ICQ, só para arriscar. Alguns dias depois, para sua surpresa, HJ a chamou para uma conversa no instantâneo. Queria que marcassem de se encontrar no posto da rodovia sete, durante o sábado à tarde.
Então, tudo voltou a fazer sentido e ela lembrou-se de um posto de gasolina vazio, de como Hannah Jean e todos os rapazes do futebol a haviam humilhado naquelas últimas semanas. Lembrou-se da 38 do pai escondida no cofre do escritório, da espingarda do Sr. Balton pendurada o fundo da garagem, de como guardou-as cuidadosamente na mochila e seguiu até a Escola Bilber, onde colocaria um fim a tudo e a todos, até que sentiu um grande impacto nas suas costas e foi de encontro ao chão, a arma ainda segura entre os dedos e o nariz agora ensanguentado.
Então chorou. Não de arrependimento, não de medo. Hannah e os outros mereciam o fim que tiveram, não havia sombra de dúvidas, mas não pensara nada a respeito de Scott Lee. E, no entanto, ele estava aqui, o rosto lívido como o de um fantasma.
“Puta que pariu, Liza... Por que...?”
Mas não havia nada a ser dito. O sangue do seu nariz escorria pela roupa, deixando tudo do seu pescoço para baixo inundado por um vermelho vivo. Liza só queria corrigir as partes que ainda não estavam escarlates, como uma criança ingênua em seu jogo de colorir.
Pinte o círculo da cor certa, Scott. Pinte, pinte, pinte!”, mas Scott não parecia ouvi-la.
Continuava ali, imóvel, como o menininho bobo incrédulo que ele era. Sempre acreditando nela, sempre sendo o amigo dos bons conselhos que Liza jamais seguiria.
Ele apertou as mãos, como sempre fazia quando estava nervoso.
“Mamãe me disse para tomar cuidado com você, mas sabe como sou, vim o mais rápido que pude...”.
“Cale a boca, Scott”
“Mas preferia não ter vindo, Liza. Preferia nunca saber realmente o que aconteceu e que você estivesse no chão, como os outros. E então eu poderia culpar alguém por tudo isso...”
“Eu quero ouvi-la pela última vez e você está estragando tudo. CALE A PORRA DA BOCA”.
“Não há ninguém além de nós dois aqui, Liza. Assim como nunca houve nada com Hannah Jean...”.
“PARE”
“Ela debochava de você, ela e todos os outros. Você... você parou as medicações e então... Não sei, criou um relacionamento que nunca existiu, mensagens que nunca foram trocadas. E, aquele cartão, Liza, aquele cartão... Como você deixou tudo chegar tão longe, por que não voltou aos remédios?”.
“PARE COM ESSA PORRA, SCOTT”.
“Eu pensei que ligar para você aquele dia... Dizer que tudo passaria... Que as coisas ficariam bem...
“PARE”
“... Eu achei, na minha arrogância, que poderia dar um jeito, que se você tivesse alguém, nem que fosse um completo babaca como eu, as coisas ficariam melhores”.
“VOCÊ ESTÁ ESTRAGANDO TUDO, PORRA”.
“Eu pensei em fazer uma surpresa, trazer algumas guarnições, sair com você durante a noite, fazer desse lugar uma lembrança boa e colocar um ponto final em tudo que passou. Mas, puta que pariu, Liza, o que você trouxe nessa mochila...”
“ESSA É A ÚLTIMA VEZ QUE AVISO, SCOTT. CALE A PORRA DESSA BOCA OU VOU ATIRAR”.
“Não me importo em morrer, não depois de tudo que eu vi. Eu... sinceramente prefiro ir”.
O Ra-tá-tá-tá ressoou uma, duas, seis vezes, e o corpo de Scott Lee jazeu imóvel pelo ginásio. Ainda estava vivo, mas Liza podia notar sua respiração cada vez mais irregular, o sangue escorrendo pelas arquibancadas numa espécie de cachoeira vermelha.
“ONDE ELA ESTÁ?”
Mas só havia o silêncio... e morte.
“EU... POR FAVOR, VOLTE, EU PRECISO DE VOCÊ... EU... EU NÃO QUERIA... EU NÃO QUERIA QUE ELE FOSSE...”
As mãos tremiam, a arma ainda se recusando a ir em direção à cabeça.
“MAS ELE VEIO, ELE VEIO, PORRA, ELE VEIO, ELE VEIO, ELE VEIO, E, AH, EU NÃO PODIA LIDAR COM ISSO, NÃO PODIA, NÃO QUERIA, NÃO, NÃO, POR QUE, MEU DEUS, POR QUÊ?”
Ela fechou os olhos, ouvindo o pesar de botas e berros em direção a ela.
“EU QUERO TANTO IR, MAS COMO SE CHEGA LÁ, MEU DEUS, COMO DAR UM FIM A ISSO, COMO CONHECER A ESCURIDÃO, COMO... EU... NÃO... CONSIGO... CADÊ... POR FAVOR, VOLTE...”.
Um policial berrou. Dezessete armas apontavam em direção a ela.
"EU PRECISO OUVIR DE VOCÊ, PRECISO SABER SE AINDA ME QUER AO SEU LADO... DEPOIS DE TUDO ISSO... DEPOIS DO QUE FIZ... EU PRECISO, PRECISO TANTO... ONDE VOCÊ ESTÁ... PRECISO OUVIR A SUA VOZ".
Um Ra-tá-tá-tá ecoou pela última vez no e Liza Baker jazeu como um boneco de palha nas arquibancadas do ginásio Bilber.
No dia seguinte, quando estivesse estampado nos maiores noticiários dos Estados Unidos, todos saberiam que uma garota de dezessete anos abrira fogo no ginásio de uma escola, ao sul de Oklahoma, deixando seis adolescentes mortos e outro gravemente ferido.
Não se ouviram mais vozes.
Full stop.
Ra-tá-tá-tá.





Fim.



Nota da autora: Olá, pessoal. Tudo bem com vocês? Essa é uma história diferente de tudo que já escrevi antes. Foi levemente inspirada no relato de Michael Carneal, um adolescente de 14 anos que sofria de esquizofrenia paranoide e abriu fogo contra alunos de uma escola americana. Confesso que o processo de escrita, apesar de surpreendentemente rápido, me deixou um pouco abalada. Apesar de tudo, espero que tirem algum proveito dessa história que mexeu tanto comigo. Beijo a todos e um ótimo dia!





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