Goya

Postada em: 26/01/2020

Intro

do urdu: a suspensão de descrença que ocorre em uma boa história; uma história que parece realidade.

Estava na página 193. Não tinha ideia da razão pela qual sua mente se agarrou àquela informação inútil, mas o fato é que se lembrava.
Recordava-se também perfeitamente do que lia no instante em que foi abordado pela senhora simpática que comandava o estabelecimento onde ele passava as tardes de quinta-feira absorto entre as páginas de seus preciosos livros e goles de café forte demais. Era seu primeiro Salinger, e ele não precisava nem mesmo ter terminado a leitura para saber que aquele seria um de seus livros favoritos: havia muito de Holden Caulfield nele, era o que acreditava. O protagonista sarcástico e sagaz do romance ilustre, O Apanhador no Campo de Centeio, fazia com que se sentisse vivo. Uma parte dele, no entanto, achava que talvez aquilo fosse pretensão demais.

— Deixaram isso pra você, criança. - o sorriso da senhorinha era esperto ao lhe entregar o pacote simples em papel pardo. Era quase como se aqueles olhos antigos demais enxergassem algo para o qual ele era cego.

Um livro - ele soube antes mesmo que seus dedos rasgassem o papel. “O sol é para todos”, dizia a capa. Franziu o cenho, estudando-a, e quando ergueu os olhos para questionar a Sra. Kim acerca do que acreditava ser um engano, ela já havia desaparecido. O rapaz deixou os dedos percorrerem a edição antiga, sentindo a textura do couro em seus dedos, experimentando as páginas, a lombada, o relevo das letras, como um amante a descobrir sua musa.
Abriu o livro com uma curiosidade quase infantil, de quem não tem ideia do que esperar, e foi surpreendido por uma caligrafia bem desenhada em caneta esferográfica azul: a dedicatória conversava com ele.

“Caro Leitor,
Com o seu retrospecto de leituras, muito me admira que pareça tão envolvido por um rebelde sem causa feito Holden Caulfield.
Eu esperava mais de você, honestamente!
Peço que perdoe a intromissão, mas espero que Atticus lhe ensine algo sobre a verdadeira rebeldia: essa, que move o mundo.
Com afeto,
uma Leitora.”


Os olhos do rapaz se ergueram de imediato, vasculhando por trás dos óculos quem teria lhe enviado aquilo, mas sem ter a menor ideia do que procurar. Entre a estranheza e a curiosidade, seus lábios se partiram em um sorriso enviesado e ele fechou o livro como se aquele fosse um segredo precioso demais para ser compartilhado com quem quer que fosse.
Naquela noite, deixou Holden de lado para se aventurar pelas primeiras páginas daquela história que peregrinara até suas mãos, e é até mesmo curioso pensar que o próprio Salinger, em uma das passagens de sua obra, ditou o destino que se traçava ali: “Não é tão mau assim quando tem sol, mas o sol só aparece quando cisma de aparecer.”

Naquele dia, dentro de um café escondido no centro da Seul, o sol se fez - para todos, afinal.

Era quinta-feira de novo.
Definitivamente, nunca uma semana havia demorado tanto assim a passar. era um leitor voraz, mas era surpreendente, até mesmo para ele, o fato de ter demorado apenas um dia para terminar O Sol é para todos. Isso porque não podia esperar pela próxima quinta-feira. Ao fim do livro, ele teve vontade de voltar ao início não só porque a leitura foi uma das mais prazerosas de sua vida, mas porque sentiu que talvez tivesse passado rápido demais por aquele que era, de fato, o personagem mais cativante que já conhecera, Atticus Finch. Com uma pesquisa breve sobre a autora do romance, descobriu que ela só tinha aquele livro publicado em vida, e o fato, apesar de surpreendente, pareceu-lhe fazer muito sentido: aquela era a obra prima pela qual artistas anseiam durante uma vida inteira. Harper Lee cumprira sua missão de forma brilhante. Ele esperava um dia sentir o mesmo.
Não era nem mesmo seu hábito riscar livros, mas naquele caso foi irresistível. Enquanto lia, o rapaz carregava o entre os dentes uma caneta esferográfica, grifando e anotando seus apontamentos página sim, página não. Ao fim da leitura, tinha ali seu volume mais ricamente aproveitado, desde a dedicatória até seus pensamentos finais, rabiscados na última página do livro. Pensamentos estes que lhe torturavam por não poderem ser compartilhados com ninguém, visto que nenhum de seus amigos havia lido a história de Scout, e Jam, e Atticus. O que era mais uma razão pela qual ele ansiava tanto pelo fim daquela semana anormalmente longa, até a próxima quinta feira.
estava de volta ao café, enfim. O rapaz era extremamente metódico no trabalho, e acabava carregando o mesmo comportamento para a vida pessoal. Assim, seguiu sua rotina de forma quase ensaiadas: cumprimentou a Sra. Kim no caixa, para então tirar o casaco pesado, pendurando-o no cabideiro. Passou pelo balcão, e bastou um aceno ao barista para que ele confirmasse seu pedido com um sorriso polido: o mesmo Latte Macchiato de sempre. Tudo seguia o curso perfeitamente normal, até o momento em que se dirigiu à mesa que tomava por hábito, no cantinho menos exposto do local. Naquela tarde, ao invés de tomar o assento de costas para a porta, como de costume, sentou-se de frente, os olhos ávidos em direção à entrada.
Toda vez que o sino no alto da porta soava, os olhos de se erguiam de forma esperançosa, para então caírem novamente em direção à mesa: primeiro, foi uma família com duas crianças, então um grupo de três garotos, e por fim um casal de meia idade. Nada que se parecesse com sua leitora - e ele não fazia nem mesmo ideia de como ela seria. Já eram quatro e meia quando enfim tomou coragem de verbalizar sua curiosidade, chamando a dona do café até a mesa.

— Sra. Kim… - gesticulou respeitosamente, aguardando que ela se aproximasse - Por acaso a senhora sabe se quem deixou o livro na semana passada... - apontou para o volume de capa dura sobre a mesa - Sabe se ela vem? - terminou e, dado o sorriso nos lábios encarquilhados da mulher, seu tom deveria denotar a ansiedade que procurava esconder.
— Oh, criança… - ela chegou o relógio brevemente - Ela deve estar chegando, não é tão pontual quanto você... - soltou uma risada gostosa antes de se virar, deixando um mais esperançoso. Havia sempre a hipótese de que ela não aparecesse, mas ele preferia não pensar nisso, ou teria que imaginar formas de processar aquela leitura sozinho.

Decidiu que esperaria. Esperaria até a noite, se fosse preciso. Abriu o outro livro sobre a mesa, e em pouco tempo estava distraído demais para se dar conta da passagem do tempo.
Ou de qualquer outra coisa, como a garota parada diante da mesa, encarando com um sorriso esperto a ruga de concentração entre as sobrancelhas dele. Ele sempre fazia aquilo quando demorava demais numa página, ela já havia notado.

— Teoria da composição musical…? - disse, empurrando delicadamente a pontinha do livro com um dedo, a fim de ler o título - Uau, você é músico! - exclamou, com um sorriso de admiração. Ela não poderia cantar ou tocar um instrumento para salvar sua vida, então respeitava profundamente aqueles com esse dom.
— Sim… - respondeu de forma cautelosa enquanto a garota tomava a cadeira à sua frente. Ela tinha olhos expressivos e sorriso fácil, o que o prevenia de achar bizarro o fato de ter se sentado ali sem mais, nem menos.
— E então, você gostou? - ela perguntou, dando um gole em seu café sem tirar os olhos dele. Vendo-o demorar a responder, soltou uma risada. Certo, talvez não houvesse nada musical sobre ela… À exceção do riso - Do livro!!
— Oh, é você? - os olhos de se arregalaram um pouco, mas então a percepção daquilo caiu sobre ele e o rapaz se sentiu um idiota. É claro que era ela: o tom graciosamente atrevido da dedicatória era exatamente o mesmo da garota à sua frente. Não poderia haver outra feito ela.
— De nada. - o sorriso dela se alargou antes que ela enfim erguesse o copo de papel que tinha seu nome - , se preferir.
. - ele devolveu o cumprimento é um sorriso um tanto mais tímido - ? - testou o nome, de sonoridade incomum.
— Você se acostuma. - ela riu novamente, ao que o rapaz precisou fazer o mesmo. Céus, ela ficava bonita quando sorria e os cantinhos dos olhos se enrugavam, fazendo seu rosto inteiro se acender. repreendeu o pensamento no momento em que sua mente tentou comparar aquilo com luzes de Natal. Talvez ele estivesse lendo metáforas demais.
— E então, … - cruzou as mãos sobre a mesma, as sobrancelhas se erguendo como se previssem a resposta para sua pergunta - O que achou?

A pergunta, que para outros provocaria apenas alguns minutos de conversa, para eles significou três horas inteiras. contava a ela suas impressões sobre os personagens e devolvia com a análise de quem já relera a obra meia dúzia de vezes. Ela citava seus trechos favoritos, e o rapaz se admirava ao abrir o livro e encontrá-los marcados por ele também. Compartilhavam, inclusive, do sabor particular que tinha a leitura: para ela, estudante de Ciências Sociais, aquele era um modo de pensar a sociedade sobre o olhar do outro. Para ele, músico, cada personagem permitia um novo ponto de vista que lhe rendia uma infinidade de temas e eu-líricos distintos. Livros eram, para ambos, uma extensão de si.
Nenhum dos dois notou a noite cair do lado de fora, ou o café se esvaziar, pouco a pouco. Foi só quando a Sra Kim se aproximou da mesa com um sorriso condescendente que notaram, com desapontamento visível, que chegara a hora de ir.

— Eu me diverti muito, . - foi a primeira a dizer, enquanto caminhavam lado a lado até a porta. A garota ajeitou a alça da bolsa sobre o ombro, encarando as próprias botas antes de erguer o rosto para ele novamente.
— Eu também. Como não fazia há muito tempo, na verdade. - ele se apressou em concordar, pegando o casaco no cabideiro, mexendo no bolso interno com um sorriso secreto - Isso é pra você. - disse, entregando a ela um livro de bolso, decerto lido mais de um par de vezes pelo aspecto das orelhas.
! - ela exclamou, e o sorriso que abriu foi, definitivamente, o preferido do rapaz: havia satisfação em cada linha de expressão no rosto dela, e ele soube ali que nunca haveria para um presente melhor que uma história - Você não precisava… - admirou a capa, a lombada e o título, sentindo cada partezinha com os dedos - Cem anos de solidão.
— Você vai gostar. - ele garantiu, com um sorriso confiante. Quando escolheu o título, naquele dia pela manhã, o fez apenas porque havia algo sobre autores latinos que o cativava profundamente. Agora, conhecendo , ele mal podia esperar para passar um dia inteiro falando sobre o realismo fantástico de Gabo - Está um pouco gasto… - confessou, coçando a nuca, ao reparar que a menina mexia em uma pontinha da orelha no livro, que se soltava.
— Eu gosto de livros com defeitinhos. - foi a vez dela se confessar. Humanizar livros era um hábito peculiar, mas que ela sentia a vontade para dividir com ele - Esse com certeza viveu bastante. - sorriu, passando pela porta aberta que ele segurava para ela.
— Cuide bem dele, então. - devolveu, e o silêncio que se instalou entre os dois pelo primeiro minuto nas últimas horas não foi em nada desconfortável, já que eles não precisaram de palavras para que saíssem dali com uma certeza: aguardavam ansiosamente pela próxima quinta.

Livros citados:
O apanhador no campo de centeio, J. D. Salinger
O sol é para todos, Harper Lee
Cem anos de solidão, Gabriel García Márquez



Primeiro Ato

Aish! - exclamou, maneando a cabeça em descrença - Como você prefere "por quem os sinos dobram?" Nem o próprio Hemingway preferiria, se você perguntasse! - completou, arrancando uma gargalhada de : ele parecia adorável quando começava a argumentar usando o emocional. A garota tomou um gole de café calmamente, aproveitando a cena.
— Já que não podemos perguntar, a não ser que você consiga algum contato com o além… - ela fez o sinal da cruz, arrancando um meio-sorriso do rapaz - Eu fico com a minha opinião. - deu de ombros, ainda sorrindo. Adorava quando compartilhavam das mesmas opiniões, mas era igualmente divertido discordar de apenas para ver como as orelhas dele se ruborizavam proporcionalmente à sua indignação.
— Você ficaria com ela mesmo que ele te dissesse o contrário. - revirou os olhos, resignado: ainda que se conhecessem há pouco mais de um mês, ele podia afirmar aquilo com certeza sobre . A garota era um verdadeiro paradoxo, no qual a delicadeza do exterior se chocava com uma tenacidade invejável quando o assunto era defender suas opiniões e ideais. E, cara, como ele adorava aquilo… - Você pelo menos leu "O velho e o mar"? - lançou seu último argumento.
— Ainda não, mas vou ler. - respondeu, erguendo os braços defensivamente, sem dar chance para que iniciasse ali uma nova argumentação, dessa vez com fundamentos - Aigoo! Eu vou ler, prometo! - garantiu, e o sorriso desconfiado no rosto do rapaz lhe parecia um desafio - Jeon , se eu não tiver lido até semana que vem, você pode pedir o que quiser. - propôs, e o sorriso nos lábios do rapaz se alargou de modo a fazê-la se esquecer, por um momento, do que acabara de fazer. Céus, não era justo que ele parecesse tão bonito numa despretensiosa tarde de outono.
— Feito. - ele concordou, e era sua vez de saborear a própria vitória com um gole de café - Já vou pensando no meu pedido.

Não era segredo para ninguém que tinha um dia favorito na semana. Ainda que os amigos não fizessem ideia do porquê, até mesmo seu humor se alterava de forma notável. Era quinta-feira, mais uma vez, e o rosto do rapaz já demonstrava um pequeno sorriso no momento em que ele chegou ao café, seguindo o que era sua nova rotina. Agora, depois de deixar seu casaco próximo à porta e trocar algumas palavras gentis com de a Sra. Kim, ele seguia até o balcão e pedia, além do clássico latte macchiato, um expresso duplo. Um sorriso secreto tomou conta dos lábios do rapaz enquanto ele caminhava até a mesinha de canto onde, compenetrada demais na leitura, lhe aguardava. Os olhos dela corriam rápido de uma ponta à outra da página, e bastou uma espiadela na capa do livro para que compreendesse o motivo pelo qual a garota tinha os olhos marejados. Aquele livro lhe emocionara, também.

— Parece que alguém não cumpriu o combinado… - cantarolou, enquanto se sentava diante de , deixando o café dela ao alcance de suas mãos. A garota ergueu os olhos de pronto, e o movimento fez com que uma pequena lágrima escapasse, deslizando por sua bochecha apenas por um segundo, já que a varreu rapidamente com o dorso de um dos dedos.
— Aigoo! - a moça protestou, deixando o indicador dentro do livro a fim de marcar a página em que estava, e mostrar a ele a pequena fatia do livro que faltava para que terminasse. Fora uma semana cheia na faculdade, mas ela se havia se esforçado para cumprir o prometido - Eu estou quase acabando!
— Mas ainda não terminou. - declarou a própria vitória, espreguiçando-se na cadeira - Eu disse que não terminaria...
— Você disse essa semana, não até as… - checou as horas no relógio que trazia no pulso, ainda que soubesse desde o início que aquela argumentação era falha. venceu - 16h23 da quinta feira, então...
— Sem desculpas! - antes de se dar conta do próprio gesto, tocou os lábios dela com o indicador, para que se calasse. Foi um instante breve, mas o modo como se encararam fez com que ambos tivessem plena ciência do toque.
— O que você vai querer? - perguntou, assim que afastou a mão, depois de engolir seco. A garota estendeu a mão até o café que ele trouxera, ocupando-se com aquilo para evitar pensar no formigamento que os dedos dele haviam deixado em seus lábios.
— Primeiro me diz o que achou do livro. - o rapaz pediu, trazendo o assunto de volta àquilo que conheciam, ao campo em que se sentiam confortáveis. sorriu, e havia ali um misto de alívio e agradecimento. Ela também parecia precisar respirar.
— É incrível! - soltou, dando vazão a tudo o que queria dizer sobre a obra que ainda tinha nas mãos - Eu realmente choro fácil, mas nossa… - quando ela começou, apoiou o queixo em uma das mãos, deixando que tagarelasse à vontade. Ele adorava o modo como a voz dela subia uma oitava quando estava empolgada, e o modo como chegava a atropelar algumas palavras, como se não quisesse deixar escapar pensamento algum. Céus, ele passaria horas só ouvindo o que ela tivesse para falar - Você nem tá me escutando mais, está? - a garota riu, a certo ponto, ao perceber que ele ainda não tinha dito uma só palavra.
— Estou. - sorriu, bebendo um gole de seu café - Você estava comparando com Moby Dick… - completou, e sorriu: ele estava escutando, sim - E então, é ou não o melhor Hemingway que já leu? - perguntou, com olhos espertos detrás dos óculos de grau.
— Eu ainda não terminei, para ter uma opinião… - a garota tentou desviar do assunto, mas o olhar de lhe dizia que não seria tão fácil assim se livrar daquilo - Argh. Ok. Tire esse sorrisinho do rosto, ou eu não vou dizer. - cruzou os braços diante do tronco, rendendo uma risada ao rapaz. Ele ria baixo, mas com o corpo todo. Era uma alegria quase infantil, algo realmente incrível de se ver.
— Vai sim… - moveu uma das mãos, dando pouca importância aos protestos da garota - Anda, eu quero ouvir....
— É melhor, ok? Eu admito. - ela suspirou, revirando os olhos para a satisfação expressa no rosto dele para então bater de leve com o livro na cabeça do garoto - Aish, não faça com que eu me arrependa...
— Viu? Você fica bonita quando concorda comigo. - o rapaz comentou, admirando o modo como a expressão contrariada da garota não interferia em nada em sua beleza. Pelo contrário, os lábios dela, quando retorcidos em descontentamento, tornavam-se ainda mais tentadores.
— E você fica mais bonito de boca calada. - ela devolveu, fazendo com que o sorriso de se alargasse de forma a transformar seus olhos em fendas pequeninas, mas adoráveis. É, ele ficava ainda mais bonito assim.

— Uau! - exclamou assim que saiu da cafeteria, na companhia de . A garota tinha o rosto inteiramente virado para cima enquanto observava o céu, o que fazia com que ela parecesse ainda menor em comparação a ele - Olha como a noite tá linda! - exclamou, abrindo um sorriso que parecia combinar com as estrelas que, acima dela, poderiam sorrir de volta.
— Eu gosto das noites de outono. - comentou, enfiando as mãos nos bolsos, adotando uma postura despreocupada enquanto observava a mulher a sua frente - É minha estação favorita.
— Combina com você. - enfim deixou de olhar para o céu para focar o rapaz a sua frente que, com a combinação da fraca iluminação urbana e a noite clara, parecia ainda mais bonito que o normal. Definitivamente, combinava com ele: era feito brisa fresca depois de um dia quente, feito chegar em casa e se enrolar no conforto da sua coberta preferida. Era como um bom livro e uma xícara de café. Como o outono - A noite tá muito bonita pra ser desperdiçada... - emendou, antes que ele pudesse questionar o motivo da comparação, ao voltar o olhar para o céu mais uma vez - Eu vou andando hoje.

acenou com a cabeça, incapaz de discordar. O rapaz cobriu a distância de dois passos que o separava de , colocando-se ao lado dela para então espiar também o céu por um momento.

— Aceita companhia? - perguntou, com um meio sorriso de quem já tem sua resposta. Ou que não aceitaria outra contrária.

O caminho até a casa de não era tão curto, mas em meio às conversa e risadas em que se encontravam, nenhum dos dois - como de costume - se deu conta da distância ou do tempo, até estarem diante da porta vermelha do pequeno prédio espremido entre dois gigantes comerciais.

— Eu fico aqui. - a garota apontou, subindo o primeiro degrau que levava à porta - Obrigada por ter me acompanhado, . - ela sorriu, ajeitando os cabelos por não saber o que fazer com as mãos. Sabia que ele fizera aquilo como um ato de gentileza, mas não podia imaginar que, além disso, o fizera por querer prolongar um tanto mais o tempo na companhia dela.
— Não foi nada… - ele abanou a ideia no ar, sorrindo - Nos vemos quinta que vem? - perguntou, uma das sobrancelhas erguidas em um gesto involuntário. Não era como se fosse preciso reafirmar aquilo, já que aquela rotina já parecia incorporada à vida dos dois, mas ainda assim ele perguntava todas as vezes, porque gostava de ouvir. Gostava do modo como ria, acenando com a cabeça mais vezes do que o necessário. Gostava de como ela às vezes batia em seu ombro, como se a pergunta fosse idiota demais. Cara, gostava dela. Cada dia mais.

Como se lesse seus pensamentos, seguiu o roteiro na mente de , rindo enquanto lhe batia de leve, concordando uma dúzia de vezes antes de parar por um momento, fugindo então do roteiro.

— Você quer subir? Podemos comer alguma coisa... - perguntou, e a pergunta saiu tão naturalmente que a resposta de fluiu tão natural quanto.
— Eu adoraria. - o sorriso dele foi a chave para que a garota também sorrisse, ocupando-se enfim de abrir a porta, dando passagem ao rapaz que a seguiu.

Os dois subiram as escadas até o terceiro andar, onde ficava o pequeno apartamento que dividia com uma colega da faculdade. Não era grande, e não tinha luxo algum, mas a garota era simplesmente apaixonada por aquele lugarzinho que era tão seu. Assim que entraram, deixando os sapatos ao lado da porta, sorriu: havia em cada cantinho do apartamento.

— Não é nada demais… - ela encolheu os ombros, compartilhando do calor do sorriso dele.
— É demais! - a interrompeu, tirando o casaco visto que, ali dentro, a temperatura se fundia aos tons quentes do ambiente - Uau… - murmurou, assim que seus olhos pousaram na estante que ocupava uma parede inteira, do lado oposto da sala.
— Divirta-se… - sorriu de modo a mostrar suas covinhas - Kimchi? - perguntou, gesticulando para o outro lado, em direção à cozinha americana. Esperava que ele aceitasse, porque era provavelmente a única coisa que conseguiria preparar em alguns minutos.
— Por mim tá ótimo. - respondeu, enquanto corria os dedos pelos livros na estante, já distraído demais para dar importância a qualquer coisa que fosse - , isso é incrível… - murmurou, abismado, deparando-se com uma coleção de cânones orientais em capa dura e encadernação clássica que, ele tinha certeza, já não estava mais em circulação. Continuou sua excursão por aquele parque de diversões com olhos atentos, que buscavam absorver tudo.
— Eu sei! - a garota exclamou, sorridente como uma mãe orgulhosa de seus filhotes - Pra sua sorte, eu não sou ciumenta, porque sei que vai cuidar bem deles. Pode pegar o que quiser… - ofereceu, e se virou para mostrar o sorriso largo em seu rosto no momento em que puxou da estante o exemplar de Vestígios do Dia antes de se sentar sobre uma almofada no chão.
— O que houve com você…? - ele perguntou baixinho enquanto examinava a capa enrugada do livro com atenção, só então reparando o que fazia ao tratá-lo por "você".
— Ele sofreu um acidente. - sorriu, e algo naquele sorriso comunicava que ela também tinha notado o pequeno deslize de - Derrubei minha garrafa de água nele… - a garota se aproximou com dois bowls coloridos e uma expressão teatralmente trágica no rosto - Vem, vamos comer… - chamou, e aceitou o pote que ela lhe estendia, seguindo a garota com curiosidade quando ela se afastou da mesa de jantar, andando até a varanda.
— Woah… - ele exclamou, admirando a vista e o quão aconchegante aquele lugar parecia, com tapetes coloridos no chão e uma pequena horta na parede. Estava tão distraído, que perdeu o sorriso de : ela era capaz de gastar horas inteiras sentada ali com uma xícara de chá e a mente vazia, e se alegrava sempre que alguém também se sentia acolhido naquele cantinho da casa.
— A noite está bonita demais pra comermos lá dentro. - ela se sentou de pernas cruzadas, aguardando que o rapaz fizesse o mesmo.
— Você está certa… - ele concordou, para então mastigar um pouco de kimchi - Hmmmm, isso tá incrível. - murmurou, pegando logo um tanto mais.
— Eu estou sempre certa. - mordeu um sorriso, começando a comer em seguida, olhando para o belo quadro que eram as luzes da cidade, ainda que a vista mais bonita da noite estivesse, com o perdão do clichê, bem ao seu lado.

— Ninguém prefere Enigma do Príncipe, , cala a boca. - bateu de leve no ombro do rapaz que, deitado ao seu lado, gargalhava, parte pela indignação dela, parte pelas garrafas de soju empilhadas no canto da varanda.
— Snape é o melhor personagem. Enigma é sobre ele. Logo, Enigma melhor livro. Ponto. - ele encadeou seus argumentos, com uma expressão despreocupada que fazia querer arrancar o sorriso nos lábios dele
— Sirius é o melhor personagem. Prisioneiro de Azkaban é sobre ele. Logo, Prisioneiro melhor livro. Ponto. - devolveu, virando o rosto na almofada que dividiam para encará-lo melhor. Os dois se encararam em silêncio por alguns segundos
— Você fica linda quando tá brava. - comentou, tão despretensiosamente quanto parecia fazer tudo na vida, e ouvir aquilo já seria muito se estivessem a uma distância decente. Ali, no entanto, podia ver cada detalhe dos olhos dele e do contorno dos lábios, além de sentir com cada partezinha de seu corpo o calor que vinha dele. Respirou fundo, tentando se livrar da sensação de que estava suspensa em um momento, arrependendo-se no instante em que o cheiro de tomou conta dela.
… - disse baixinho, quando os olhos dele caíram até seus lábios, demorando-se ali de forma tentadora demais para que ela conseguisse se manter calada - Essa é a parte do livro em que você me beija.

As palavras dela pairaram por alguns instantes entre eles, até tocar os lábios de delicadamente com um dos dedos, enquanto se movia um pouquinho mais em direção a ela. Quando sua respiração já estava próxima o suficiente para fazer com que a garota se arrepiasse, ele sorriu.

— Shhhh… - pediu, erguendo os olhos para encontrar os de , encontrando-se no reflexo - Esse era o meu pedido. - completou, e o sorriso permaneceu em seus lábios até que ele encerrasse a distância que os separava dos de , para um beijo digno de cada metáfora que já haviam lido. Ou mais ainda.

Segundo Ato

— Do que você tá rindo? - perguntou, ele próprio abrindo um meio sorriso enquanto secava os cabelos em uma toalha de rosto, num gesto cuja naturalidade dizia muito sobre a relação construída com a garota que, da cama, lhe observava com um sorriso.
— Eu estou sorrindo, é diferente. - corrigiu, pousando sobre o abdome o livro que lia antes de ver o namorado entrar no quarto apenas para se apaixonar, mais uma vez.

Era bem ridículo, na verdade: ver sobre o palco era uma experiência única e a jovem era capaz de reconhecer a mágica do 'efeito idol' que transformava aqueles garotos em seres de beleza quase extraterrestre. A questão é que ela ainda não havia descoberto uma versão do rapaz que lhe encantasse mais do que aquela. Porque com os cabelos molhados e numa desordem adorável, vestindo o moletom que tinha seu cheiro e pronto para dormir ao seu lado a noite inteira, tinha ali o cara mais lindo do mundo inteiro. E, por Deus, como o amava.

— E porque está sorrindo? - a voz do rapper ao imitá-la não escondia o sorriso, apenas para arrancar uma risada de , o que não foi difícil. Nunca era, entre eles. caminhou até a cama, encontrando ao lado da namorada aquele lugar que já era tão seu, jogando-se sobre o travesseiro com um suspiro: depois de um dia cansativo de prática, era reconfortante estar ali naquela redoma de aconchego.
— Sabe que eu amo você assim. - respondeu baixinho, afastando alguns fios de cabelo da testa dele, sem tirar os olhos dos de , que sempre lhe pareceram a parte mais bonita daquele rosto assombrosamente perfeito.
— Eu também - murmurou, cerrando os olhos sob o carinho que ela fazia em seus cabelos, arrancando uma risada da garota diante da resposta - Amo a gente assim, você entendeu. - ele abriu os olhos apenas para revirá-los, abrindo um sorriso enviesado - De verdade, . - sentiu necessidade de reforçar, entrelaçando seus dedos e os admirando por um momento suas mãos juntas, já que até as menores coisas sobre eles não falhavam em levar sua mente a devaneios de inspiração - Eu amo morar com os meninos, você sabe disso. Mas quando eu chego aqui… Eu sinto tanta saudade de você que é como… É como se ficasse mais fácil respirar, entende? - ele se esforçou para explicar o que sentia sem erguer os olhos, já que aquele tipo de declaração ainda escapava arranhando sua garganta, pela falta de hábito. Música era simples, comparado ao ato de expressar em palavras o que sentia ao olhar nos olhos dela.
— Entendo, babe. - garantiu, abrindo um sorriso que atraiu os olhos de novamente para seu rosto, e ela lhe encarou por um momento antes de buscar seus lábios para um beijo manso, que fazia seus corações se aquecerem naquela sensação gostosa do primeiro amor. Não demorou para que sorrisse entre o beijo, num gesto tão típico deles.
— Além disso, os garotos não têm esse seu cheiro… - ele murmurou, partindo o beijo para pousar os lábios sobre o pescoço da namorada, sentindo o perfume que vinha da pele dela e já marcara sua memória como o seu favorito em todo o mundo.
— Ah, é mesmo? - ergueu uma sobrancelha - Nem ? - questionou, sentindo os lábios de se abrirem em um sorriso contra sua pele.
— Ok, talvez ele. - o garoto ergueu os olhos com um sorriso arteiro, entrando na brincadeira sobre o melhor amigo. A relação adorável entre e era, honestamente, uma das coisas que mais alegravam seu coração.
— Aigoo, essa concorrência injusta! - soltou uma gargalhada gostosa, e rolou sobre a namorada, tirando o livro do caminho e alinhando seu rosto ao dela para espelhar em seus lábios o sorriso que preenchia os da garota.
— Ele é mais alto. - brincou, beijando o biquinho que ela fez diante daquela constatação irrefutável - Mas você é mais bonita, não se preocupe. - abriu um sorrisinho, antes de beijá-la mais uma vez - E inteligente. - pontuou com outro beijo, dessa vez no queixo - E incrível. - seguiu pelo mandíbula da garota, a voz soando tão grave que precisou se encolher, com um sorriso.
— Eu vou ter que contar isso pra ele. - a menina riu, deixando que seus dedos brincassem com os cabelos dele enquanto trazia os lábios de até os seus, beijando-os lenta e intimamente, naquele ritmo próprio que era tão deles, como se dissessem ao mundo inteiro que esperasse enquanto desfrutavam da presença um do outro.
— Eu digo que é mentira. - murmurou contra os lábios dela, arrancando uma risada da garota, que o empurrou de cima dela, revirando os olhos.
— Aish, como você é ridículo. - murmurou, pegando o livro que caíra no chão, sem esconder um sorrisinho.
— Você me ama. - ele devolveu com um sorriso despreocupado, afundando-se entre os travesseiro e passando uma das pernas sobre as da garota.
— Mas não devia! - suspirou, resignada, olhando para ele e se deparando com um sorriso largo que fez seu coração se apertar de amor. O riso logo se transformou em um bocejo e olhos apertadinhos de sono - Você… - ela tocou a ponta do nariz do rapaz com o indicador - Precisa descansar.
— Eu posso esperar você… - murmurou, algo sonolento, tentando manter os olhos abertos.
— Não precisa... - afastou a ideia com um gesto - Eu tenho que terminar de com esse rapazinho pra um trabalho de Literatura Ocidental. - apontou para a capa do livro que tinha nas mãos, onde leu “Ratos e Homens”. A garota estendeu a mão até o interruptor, apagando as luzes para acender um abajur de luz tênue logo depois - Boa noite. - ela virou o rosto, tocou os lábios de com os seus levemente, naquela sensação deliciosamente familiar - Sonhe comigo.
— Sempre. - ele murmurou, já de olhos fechados, passando os braços em torno da cintura da garota e se aconchegando a ela, como era sua posição favorita de dormir.
abriu o livro, segurando-o com a mão esquerda, enquanto com a direita embalava, num cafuné, os sonhos de - nos quais ela era a protagonista.

não sabia ao certo o que fez com que despertasse: o som baixinho que vinha de , ou o balanço discreto do corpo dela sob o seu. O rapaz abriu os olhos devagar, acostumando-se à luminosidade fraca do quarto, mas no instante que os pousou sobre a namorada, viu-se completamente desperto. chorava. Era um pranto silencioso e dolorido, com os olhos cerrados e a expressão maltratada, e fez com que o garoto sentisse seu coração de afundar dentro do peito.

, o que foi? - perguntou, sentando-se e a puxando para seu peito.
— E-eu… E-eu não queria te acordar… - ela fungou, escondendo o rosto na curva do pescoço dele e deixando um soluço escapar - Me desculpa.
— Ei, para com isso… - segurou o rosto da garota entre as mãos, com a expressão torturada de preocupação - O que aconteceu? - perguntou, examinando o corpo dela com os olhos e encontrando o problema entre seus dedos: apertava o pequeno livro de bolso contra o peito, tão apertado que os nós dos dedos ficaram brancos - Meu amor… - a expressão dele se abrandou, e ele beijou a testa da garota com um sorriso carinhoso, tirando o livro das mãos dela e o colocando sobre a mesa de cabeceira.
— É t-tão triste. - se deixou abraçar, extravasando a dor que sentira se abater sobre ela nas últimas páginas da história, pegando-a completamente de surpresa. Não havia preparação para aquele fim, e talvez fosse esse o motivo pelo qual ela sentisse o estômago revirado e o coração dolorido - Meu Deus, é como se… Como se eu estivesse quebrada por dentro... - completou, apertando os braços em torno de ainda mais forte, sentindo as lágrimas verterem ainda mais facilmente de seus olhos agora que se sentia acolhida para isso.

a recebeu com carinho em seu peito, deixando que a garota chorasse até perder a voz. Apesar de partir seu coração vê-la assim, essa era uma das coisas mais apaixonantes sobre : ela era capaz sentir tão intensamente a própria dor quanto a dor alheia. Bem como vibrava com a as alegrias dos outros tanto, ou ainda mais, do que valorizava suas próprias.

— Você quer falar sobre isso? - ele perguntou, tirando do rosto dela alguns fios que haviam se grudado sobre as bochechas molhadas de lágrimas. maneou a cabeça negativamente, e ele concordou com um sorriso pequenininho, respeitando-a - Eu vou pegar algo pra você beber, sim? - avisou, deixando um beijo leve sobre a cabeça da garota antes de se levantar da cama. Tão logo saiu do quarto, deparou-se com a figura de , a companheira de apartamento de .
— Ei… - a garota coçou os olhos de sono - Tá tudo bem? - perguntou, soando preocupada.
— Sim. - garantiu, com um sorriso brando - Ela terminou um livro, ficou emocionada. - explicou, e a garota sorriu em compreensão. Pelo menos agora havia quem cumprisse seu papel - Vou fazer um chá pra ela... Você quer também? - perguntou, andando até a pequena cozinha do apartamento.
— Obrigada... - agradeceu, bocejando - Boa noite pra vocês. - acenou, enquanto girava nos calcanhares para voltar até seu quarto.

esperou que a água fervesse por alguns minutos antes de abrir a lata que continha os sachês de chás de , deixando aquela mistura de aromas invadir o ambiente antes mesmo que começar a infusão. O rapaz procurou pelo de ameixa japonesa, que sabia ser o favorito da namorada, e assim que o colocou na água quente, senti o cheiro exótico e tão familiar que sempre associava a ela.
O rapaz voltou ao quarto, encontrando sentada na cama, abraçada aos próprios joelhos. Ela ergueu os olhos para ele e vê-lo lhe tratando com tanto cuidado só fez com que chorasse mais, dado o estado emocional em que se encontrava.

— Obrigada… - agradeceu baixinho assim que ele lhe entregou a xícara, depois de enxugar o choro nas mangas do pijama.
— Bebe, você vai se sentir melhor… - ele garantiu, voltando ao seu lugar na cama e puxando o corpo da namorada para que ela se recostasse em seu peito, de modo que tivesse os braços em torno dela. ainda não atingira o mesmo nível de empatia de , e talvez nunca viesse a chegar lá. Quando se tratava dela, no entanto, ele sentia como se cada uma das emoções da garota refletisse profundamente nas suas, e naquele momento só queria que ela se sentisse aconchegada e protegida, livre para sentir.

Enquanto tomava o chá, sentiu suas emoções se aquietarem, alinhando-se novamente pelo calor da bebida e dos braços de . O casal permaneceu quieto por longos minutos, num daqueles seus silêncios confortáveis dos quais eram feitos, e enquanto se ocupava com um carinho leve na garota, ela se concentrava na respiração dele e buscava limpar a mente para se concentrar na sensação felicidade que lhe preenchia sempre que o tinha por perto.

— Pode dormir… - beijou os cabelos de quando viu as pálpebras dela pesarem. O rapaz a trouxe para ainda mais perto de seu peito, aninhando-a em perto de seu coração - Eu tô aqui com você. - garantiu, e a garota se limitou a beijar a mão dele que estava próxima de seu rosto, deixando escapar uma lágrima. De felicidade, em seu estado mais puro, dessa vez.
— Eu amo você. - murmurou, tão sinceramente que sentiu seu peito doer pela intensidade do sentimento.

Eles não diziam aquilo com frequência, ao contrário do que podia parecer pelo quão apaixonados se mostravam. Talvez fosse essa a questão: apesar de serem amantes das letras, o amor dificilmente passava por elas. Ao contrário, estava nas longas tardes que perdiam conversando sobre literatura, bem como nas manhãs preguiçosas em que disputavam quem conseguia ficar mais tempo sem rir. Nas ligações insistentes de para ter certeza de que ele comia direito em suas viagens, e no fato de sempre trazer os doces preferidos dela quando voltava de uma turnê. Estava na dedicação dela em ser também uma boa amiga para , e no esforço dele para vencer a introspecção e se aproximar de .
Amor, para eles, era um abraço que servia de casa e uma xícara de chá numa madrugada fria.

Terceiro Ato

— Olá, crianças! - saudou, parando diante da pequena horta vertical que se projetava na direção do Sol refletindo os mais diferentes tons de verde - Ugh, vocês me enchem de orgulho, lindas assim… - murmurou, fazendo um carinho nas folhas do hortelã, antes de começar a regar cada um dos vasos, cantando baixinho.

Um pequeno sorriso se abriu nos lábios da garota quando percebeu que aquela era mais um hábito que adquirira simbioticamente de . Enquanto ela conversava com seus livros, ele, além de sempre aparecer com uma nova muda para a horta, perdia um longo tempo conversando com as plantinhas, admirando o modo como elas resistiam feito um sopro de vida em meio ao concreto. E talvez fosse este traço da personalidade de ambos - o fato de encontrarem graça e beleza nas menores coisas da vida - que tornasse seu vínculo tão raro, tão leve ao coração.

— Ei, você… - a garota franziu as sobrancelhas para a muda de alecrim que, escondida no vaso mais próximo da sombra, encontrava-se menos vibrante que as demais - Não ouse, senhorita! - ralhou, tirando-a do lugar para colocá-la mais perto do Sol - me mata se voltar e algo tiver acontecido com você! - sussurrou, regando o vaso com cuidado, quase como num afago - Vejo vocês amanhã! - despediu-se, deixando um último olhar às plantinhas antes de voltar para a sala.

Com os pés descalços e uma roupa confortável, se preparava para seu primeiro Dia Branco com . saíra com o namorado há um par de horas, e estava tão bonita e elegante que parecia uma mãe orgulhosa querendo tirar fotos da amiga antes de seu baile de formatura. Quanto a ela, esperava por para o que seria mais um de seus encontros em casa, longe dos olhos do mundo.
Já fazia duas semanas desde que se encontraram pela última vez, quando ele partiu para uma turnê, e já sentia o friozinho gostoso de ansiedade que seu estômago ainda não aprendera a deixar de sentir sempre que estava prestes reencontrá-lo depois de algum tempo. Assim, a garota se ocupou com uma série de bobagens a fim de se distrair e fazer com que o tempo passasse mais rápido.
Depois de cuidar das plantas, foi a vez de mudar de lugar as polaroides espalhadas pela estante da sala, e a garota não pôde conter um sorriso ao rever as fotos: distraída comendo rámen, as duas espremidas em um frame com sorrisos enormes e olhos pequeninos, deitado na varanda lendo qualquer coisa que lhe deixara com uma ruguinha entre as sobrancelhas, segurando um de cada lado em um abraço de urso, dormindo - havia um par dessas, as preferidas de … Naquele momento, por um breve instante breve, sentiu uma emoção gostosa preencher cada pedacinho de seu corpo: era feito uma gratidão enorme à vida, que se derramou na forma de uma única lágrima que correu por seu rosto até encontrar seu sorriso.
O som da campainha fez com que a garota tivesse um pequeno sobressalto, tal qual fazia seu coração dentro do peito. correu até a porta, e ainda que soubesse que ele a esperava do outro lado, gastou um instante perdida naquele sorriso que a aguardava do outro lado, como se pedisse outro em troca. Aquele era um pedido irrecusável, e no mesmo instante em que seus lábios obedeceram, seus braços envolveram , abraçando-o tão apertado que seus corpos oscilaram por um momento, fazendo com que o rapaz soltasse uma risada grave na curva do pescoço da namorada, entre seus cabelos, que ele afagava com carinho.

— Olá pra você também... - ele murmurou, segurando o rosto de entre as duas mãos e correndo os olhos por cada partezinha dele, como se quisesse se certificar de que tudo estava exatamente do jeitinho que deixara: os olhos grandes e repletos de sonhos, o nariz delicado que se franzia sempre que ele a encarava por tempo demais, a pintinha charmosa que decorava a bochecha direita, e por fim os lábios em formato de coração que pareciam verdadeiros ímãs para os seus - Meu Deus, - ele a abraçou mais apertado ainda, murmurando o restante contra a boca dela, que já tomara para si - que saudade!

não conteve o riso - e Deus sabe o quanto amava quando ela sorria dentro de um beijo - antes de enfim puxá-lo, enfim, para dentro de casa. chutou a porta para fechá-la detrás deles, mais ocupado em aproveitar aquela sensação para o qual a literatura ainda não inventara metáfora acurada o suficiente.

— Você demorou. - quebrou o contato, manhosa, mas sorriu de olhos fechados quando os lábios de se encostaram em sua testa, deixando ali um beijo que transbordava carinho.
— Eu vou te recompensar. - ele sorriu pequenininho, sentando-se no braço do sofá e trazendo a garota para perto por uma das mãos, encaixando-na entre suas pernas, e algo no tom dele deixava ciente de que diria algo sério a seguir - Sinto muito por não poder te levar em algum lugar legal hoje... - lamentou com um afago no rosto da namorada, e o fato de ele estar sentado deixou seu rosto na altura dos olhos de , fazendo com que ela visse perfeitamente o lampejo de tristeza que cintilou detrás daquelas íris escuras e profundas. Ele se magoava com aquilo um tanto mais que ela… Com o fato de não poderem, de fato, ter um relacionamento como todos os outros. Fato é, n
— Ei, ei… - segurou o rosto de , maneando a cabeça uma dúzia de vezes como sempre que queria enfatizar muito alguma coisa, e aquilo por si só já fez um sorriso discreto surgir nos lábios do rapaz - Minha casa é um lugar super legal! - protestou, apenas para ver o sorriso dele se alargar, ainda que revirasse os olhos - Você sabe que não me importo com isso, … É um detalhe tão insignificante perto de todo o resto... - completou, encarando-o por tempo o suficiente para que ele enxergasse ali a verdade em suas palavras.
— Eu devo ter feito algo muito bom pra merecer você. - riu baixo, trazendo-na para perto admirar melhor o sorriso nos lábios dela.
— Você faz, todos os dias. - respondeu, tranquila, e aquele era provavelmente o motivo pelo qual buscava sempre ser quem ela merecia: ainda não descobrira algo no mundo que lhe deixasse mais feliz do que fazê-la sorrir. respirou fundo, trazendo lentamente o rosto dela para perto mais uma vez, sem desconectar seus olhos até que seus lábios se encontrassem em um beijo que não tinha pressa alguma para terminar - Além do mais, estou com tanta saudade que se saíssemos eu provavelmente ia querer voltar logo. - murmurou, e desta vez precisou rir, lembrando-se de que a imprevisibilidade era só mais um dos motivos pelos quais era apaixonado por aquela garota.
— É melhor eu buscar seu presente, então, antes que você me distraia. - argumentou, abrindo um meio sorriso que fez o estômago de se revirar em expectativa. A menina franziu o cenho ao vê-lo sair do apartamento, retornando um segundo depois com as mãos escondendo algo tão pequeno que ela foi capaz de ouvir seu presente antes mesmo de vê-lo. E o modo como seu rosto se acendeu na mais pura alegria, foi algo que jamais seria capaz de apagar de suas retinas.
! - ela exclamou, correndo até o rapaz e espiando dentro das mãos dele, que abrigavam um gatinho preto e tão pequeno que fez o coração de se encolher de amor. O animal ergueu para ela um par de olhos amarelos e curiosos, ronronando baixinho quando a garota o segurou, trazendo-o para perto do peito - Eu não acredito! - exclamou, sentindo os braços dele em torno dela, abrigando-na daquela forma que aquecia seu corpo inteirinho.
— Eu fico longe por muito tempo... - começou a explicar a lógica do presente, quase envergonhado, e não deixou que ele terminasse, abraçando-o de volta com cuidado para manter o gatinho entre eles.
— Eu te amo tanto. - ela destinou ao namorado um olhar carregado de encantamento, e ele não conteve o sorriso em seus lábios quando a abraçou, beijando seus cabelos.
— Eu sei. - sorriu, e não precisava dizer de volta pois havia amor em cada pedacinho de seu rosto enquanto admirava o sorriso de - Vem, vamos mostrar a casa pra ele.

Em poucos minutos, os jovens, que já eram pais cuidadosos de uma coleção de livros e de uma pequena horta, precisaram aprender a cuidar de um filhotinho real. A sala de tinha brinquedos espalhados por todos os lados - providenciara um verdadeiro exagero de itens para gatos - e o pequeno corria de um ao outro com empolgação que colocava os dois humanos que o observavam com respirações ofegantes e sorrisos idênticos no rosto.

— Você precisa escolher um nome pra ele. - pontuou, sorrindo quando o filhote descobriu um novelo de lã, batendo nele de forma adorável.
— O que você acha? - mordeu a parte inteira das bochechas, apoiando os cotovelos no chão para ver melhor o gatinho - Eu gosto de Sirius.
Aish! - o rapaz revirou os olhos, rindo da obsessão da garota pelo personagem - Sirius é um cachorro!
— Essa é a graça! - protestou, cutucando suas costelas antes de começar a brincar com o gato, oferecendo o dedo para que ele tentasse alcançar - Você gosta de Sirius, bebê? - perguntou, fazendo o rapaz segurar um sorriso pela voz fina que usava - Gosta? - continuou, e dessa vez o gato a alcançou com uma mordidinha enfezada - Ai! Ok, Sirius não.
— Eu gosto de Gato. - deu de ombros, vendo a garota revirar os olhos teatralmente.
! Você é mais criativo do que isso! - protestou, partindo-se em um sorriso quando o gatinho andou até ela, parecendo mais carinhoso do que era de se esperar - O que acha de Salem?
— Deve ser o nome de 97% dos gatos pretos desse mundo todo. - o garoto revidou, rindo quando lhe mostrou a língua por não estar ajudando em nada - Ok, que tal Santiago? - propôs, e assistiu com prazer ao modo como os olhos de brilharam em compreensão quando ela reconheceu o nome de um dos protagonistas de O Velho e o Mar.
— Santiago. - ela testou, e seu sorriso dizia que já estava feito - Você gosta, Santi? - e o filhote ronronou baixinho, fazendo com que os dois rissem - Ele gosta. - sorriu, satisfeita - Olha seu filho um pouco que agora eu vou buscar seu presente. - completou, sentindo seu estômago se apertar em expectativa, abrindo um sorriso ansioso diante das sobrancelhas franzidas de .
— A tradição não era eu te dar um presente? - ele questionou, mas a menina já partira em direção ao quarto.
— A tradição é idiota! - gritou, e uma risada escapou dos lábios de .
— Ela é legal, eu prometo… - sussurrou baixinho para Santiago, pegando um dos brinquedinhos para atrair o filhote para perto, distraindo-se o suficiente para só notar a presença de quando ela se sentou novamente ao seu lado, escondendo algo detrás do corpo.
— O que você aprontou? - ele estreitou os olhos, estranhando o fato de morder um sorriso, as bochechas se colorindo em um tom de rosa que ele dificilmente conseguia arrancar dela, mas que adorava.
— Não é um presente, presente. - ela começou a falar, atropelando um pouquinho as palavras, aumentando a curiosidade do rapaz - Não é nada demais, na verdade… É só uma coisa que eu já tinha feito há algum tempo, e… Aish, eu não sei nem porque estou fazendo isso...
. - se virou de frente para a garota para vê-la melhor, colocando Santi no chão para segurar o rosto da namorada com carinho - O que é? - perguntou, com um sorriso doce, e a menina cerrou os olhos, escondendo a vergonha detrás das próprias pálpebras quando lhe entregou um encadernado fino com uma única palavra na capa, quatro letras cujo significado ainda eram um mistério para - Goya? O que é isso?
— Significa "a suspensão de descrença que ocorre em uma boa história". - ela abriu um sorriso pequenininho, amando cada vez mais aquela palavra que descobrira por acaso - É como uma história que, de tão boa, parece real. - completou, e os lábios dele se partiram em um sorriso largo, apaixonando-se tão profundamente quanto ela pelo significado.

Demorou um segundo, mas pôde perceber imediatamente quando ele compreendeu o que tinha entre as mãos, e o que viu nos olhos de foi tão indescritível que ela gostaria de guardar eternamente aquele momento como seu favorito em toda a vida: era a história deles, escrita por ela. Os dedos de foram rápidos em procurar confirmasse suas suspeitas, e a garota assistiu com o lábio inferior preso entre os dentes o momento em que ele chegou na segunda página, encontrando uma pequena dedicatória naquela caligrafia que conhecia tão bem, e que lhe arrancou um sorriso nostálgico e perdidamente apaixonado:

A , por ser o meu final feliz.




Fim.



Nota da autora: Ahhhh, como foi gostoso escrever Goya.
Mais uma história que está comigo há anos, que eu nunca imaginei terminar… Ela é um dos meus enredos mais queridos, justamente por representar algo que pra mim é tão caro: o amor aos livros. Espero que os corações de vocês tenham se aquecido tanto quanto o meu, ao escrever sobre esses dois.
Muito obrigada pela leitura, e não deixe de contar nos comentários o que achou! Faz meu dia mais feliz!
Beijinhos, Belle.




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Nota da Scripter:
Essa fanfic é de total responsabilidade da autora, apenas faço o script. Qualquer erro, somente no e-mail.


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