Finalizada em: 25/01/2015

36.

This is a fight to the death. We will rise again.

atravessou a floresta e voou por cima dos orvalhos até a cidade, pousando em um beco escuro. Suas asas eriçadas estavam afoitas e os músculos de suas omoplatas doíam pelo tanto de força que ele usou para chegar o mais rápido possível no centro de Manhattan. Com os olhos brilhando no escuro, ele apoiou as mãos no cimento frio da parede e olhou apressado para a rua movimentada daquela noite de começo de final de semana, escolhendo quem atacaria — não haveria de ser algum qualquer, mas sim algum ser de sangue virgem, que o desse força suficiente para confrontar Lilith sem que sua derrota, se é que de fato haveria chance de existir, fosse extremamente humilhante.
A ideia inicial não era atacá-la logo que pisasse em sua morada, mas sim talvez depois de alguns minutos de conversa — ele iria confrontá-la em busca da verdade, porque aquelas palavras que o dirigiu realmente o incomodou e gerou certa dúvida.
Dentre os alimentos que passavam não havia muitos seres que realmente aparentavam ter o que ele procurava. Muitas meninas que esbanjavam suas peles desnudas de tecidos e homens que ele não ousaria atacar — não por serem maiores que ele, obviamente, mas porque ele queria algo mais vulnerável, que o lembrasse o que um dia fora para seus olhos demoníacos.
No início, quando se conheceram naquela íntima noite, ela parecia de fato uma garota depressiva vulnerável. Era magra, ossuda, e tinha os pulsos do tamanho certo para serem esmagados contra os dedos dele, para serem imobilizados — e ainda eram; mas ela não era mais aquela garota que não entendia o que acontecia em sua cabeça; entendia, agora, o mundo onde estava metida: um mundo de merda, cheio de demônios esfomeados pelo medo alheio, pela fraqueza e ignorância humana.
Em meio a confusão de corpos adultos, ele encontrou as duas vítimas perfeitas: duas crianças de rua que pediam comida a um manobrista de uma boate qualquer. O homem de terno ordenou que o casal de mendigos fosse embora antes que ele chamasse o serviço social.
abriu um sorriso macabro e se agachou como um felino, sem piscar, sem tirar os olhos de suas presas. As crianças correram para rua, vindo em sua direção.
“Isso, idiotas, corram para cá; facilitem meu trabalho.”
Ele expeliu suas unhas e seus dentes, que estavam maiores devido ao ódio que sentia tanto de e de suas palavras abusadas quanto de sua mãe e suas inúmeras mentiras.
As crianças não eram nem de longe adoráveis. Eram feias e estavam sujas. Seus cabelos estavam sebosos pela falta de limpeza e seus pés estavam tocando o chão molhado pela chuva que caíra durante a tarde. Suas roupas estavam rasgadas e seus dentes estavam prestes a cair. Eram desagradáveis de olhar, principalmente em meio às pessoas arrumadas da noite de Manhattan.
Elas atravessaram o beco em que se escondia, passando bem à sua frente de mãos dadas, reclamando de fome.
Então o ataque fora fácil e bastante rápido. Ele puxou suas pernas e não houve tempo para que elas gritassem, porque ele logo abocanhou seus rostos e puxou a pele suja de suas caras. O sangue espirrou em seu rosto demoníaco consumido pelo ódio, retorcido, enrugado. Ele puxou as extremidades dos braços da menina, arrancando-os de seu corpo, bebendo seu sangue como quem bebe de uma garrafa — quando já seco, o jogou para o lado, sem puxar a pouca carne dos ossos fracos. Fez a mesma coisa com o garoto. Arrancou a cabeça de ambos, erguendo seus corpos molengas, apertando-os para que todo o sangue saísse dos músculos e órgãos, que caíam em seu rosto.
Molhado de sangue, ele passou o antebraço no rosto, limpando o excesso. Respirando ofegante pela pressa que os bebeu, virou-se para trás e escolheu outra vítima. Desta vez, não se importou se era virgem ou não. Puxou o velho senhor lerdo, de bengala, e o mordeu na artéria do pescoço, espirrando sangue nas paredes.
Comeu até se fartar, sentindo-se um carrapato gordo, cheio de sangue e carne alheia.
Então bateu as asas e, pingando sangue, voou de volta para a extremidade da cidade, para a mansão de sua odiada mãe.

A casa estava mais silenciosa que o normal, com as janelas e portas fechadas. O vento frio que vinha do extremo norte anunciava a chuva de verão que vinha rápida, avançando às pressas de volta ao centro daquela iluminada cidade.
postou-se parado no jardim, encarando aquela enorme construção de luzes apagadas. Perguntou-se por um momento se estariam ali, ou se haviam saído para alguma reunião fora dos limites dos Estados Unidos.
Fora aí que um barulho o chamou a atenção. Ele virou sutilmente seu pescoço para a esquerda, com os olhos demoníacos vermelhos atentos a todos os mínimos movimentos dos seres noturnos e sobrenaturais que rondavam aquela casa. Era um vulto e ele se movia devagar entre os arbustos mal aparados que rondavam a casa como uma cerca de proteção. virou-se completamente para aquele manto negro, com as mãos prontas para atacar; soltou um rosnado baixo, mostrando sua raiva, e sentiu o sangue seco repuxar a pele de seus lábios.
O vulto não atacou. Ao contrário de como imaginava, ele saiu lentamente da escuridão e apresentou-se como a figura humana patética de um Richard envelhecido, com mais rugas e mais fios grisalhos. manteve o cenho franzido em impaciência, relaxando suavemente as mãos.
— Onde está todo mundo? — indagou em uma voz rouca, mais grossa que o normal.
— Foram treinar fora daqui; Lilith disse que passaram tempo demais no território. Eu não pude ir, naturalmente — havia um quê de raiva em sua voz, mas era mascarado pela vergonha e insatisfação. quis rir de sua desgraça, mas contentou-se com um curto sorriso de soslaio que logo morreu pelo ódio que tornou a sentir.
— Para onde foram?
— Para uma fazenda no interior da Itália.
Richard passou as coordenadas com precisão. pôde imaginá-lo em pé, próximo da lareira, assistindo aos demônios dialogarem sobre como seriam seus treinamentos para enfrentarem Lúcifer. Depois, talvez no mesmo dia, partiram, deixando-o sozinho às traças daquela mansão reformada, mas novamente abandonada.

voou por quase dez horas sem parar na maior velocidade que suas asas conseguiam aguentar. Parou três ou quatro vezes para recuperar fôlego, então tornou a batê-las com toda a força que conseguia. Chegou à Itália no dia seguinte, quando o sol estava começando a nascer. Antes de ir até o local onde sua mãe estava, precisava recuperar as energias da viagem. Alimentou-se de três crianças que dormiam enfurnadas em suas camas, comendo-as as carnes e os ossos, depois lavou as mãos, o peito e o rosto, a fim de poder alugar um quarto em uma pousadinha qualquer sem que fosse confundido com um assassino em série. Sem prestar atenção nos adornos daquele apartamento, deitou seu corpo cansado na cama, virou-se e dormiu até metade da tarde.

A fazenda era extremamente afastada de Veneza, a cidade mais próxima para comparação. Era tão distante que nenhum italiano poderia reconhecê-la como presente em território da Itália, mas sim em um continente além da Europa. Era extremamente gigantesca, de área para se perder de vista. A casa em si era minúscula, quase como se só coubesse uma saleta, um quarto, um banheiro e uma cozinha; era com paredes brancas e teto azul — algo até um pouco rústico e meigo que contradizia com a figura extremamente maligna e horrível de Lilith. Mas ao redor da casa, sim, o rosto dela estava estampado em um espelho magnífico: havia um campo de treinamento imenso que poderia ser a réplica perfeita — só que um milhão de vezes maior — do que recebia quando era gladiador. Além disso, poças de sangue demoníaco sujavam a terra dura e sem vida que rodeava toda a área da fazenda, deixando o cheiro característico de morte naquele lugar, de forma que todos os animais que antes ali viviam, sejam pássaros ou animais silvestres do pequeno bosque ao extremo leste, fugissem.
Atrás do campo de treinamento havia uma construção baixa, feita de madeira escura e teto plano, onde os demônios repousavam. Aos poucos, ao bater das quatro da tarde, demônios de todas as idades, formas físicas e ambos os sexos começaram a sair daquela construção. Ao ver o primogênito de Lilith, alguns pararam, com respeito e espanto. Ao sorrirem, talvez ao vê-lo pela primeira vez, pôde percebê-los com todos os dentes afiados, unhas pretas do sangue de seus irmãos, provenientes de lutas que venceram, ou machucados que fizeram. Os que já o conhecia seguiram seus caminhos para o campo, tomaram suas armas e se colocaram em posição, começando seus passos de treino. Outros bateram asas e lutaram nos céus. Alguns outros começaram a fazer repetições de movimentos para fortalecer suas fraquezas.
Todos estavam determinados. Era um exército grande.
— Veja quem está aqui, Samael — a voz de sua mãe o fez sentir um arrepio de ódio correr por toda sua espinha. Naquele momento, seus olhos ficaram mais vermelhos sem que ele pudesse controlar; seu cenho e nariz franziram e, simultaneamente, um rosnado escapou de seus lábios contorcidos. Lilith soprou uma risada. — Não é meigo, meu amado escravo? Parece-me como um gato que sente-se ameaçado — ela riu outra vez.
se virou para ela com as garras em posição de ataque.
Lilith estava serena. Pálida como o céu, os cabelos estavam extremamente enrolados, presos em um rabo de cavalo bastante bem feito; ela usava uma calça apertada preta, para treinos, com adornos de penas de corvos, e uma blusa de mangas compridas branca, simples, com um casaco de pele de urso preto, descalça. Seus olhos estavam felinos enquanto o encarava diretamente nas pupilas.
— Creio que viera aqui em busca de algumas respostas — ela sorriu de soslaio, inclinando suavemente o rosto angelical. — Pergunta-me, então, minha prole, que te direi o que desejas saber.
Samael estava parado ao lado dela, com os cabelos brancos e os olhos incrivelmente negros petrificados na figura de . Ele não tinha posição de ataque, assim como sua mãe, mas sabia quais eram as intenções dele. Ela também devia saber.
— Eu quero que você pare de mentir para mim — a voz saíra dura, grossa, de um demônio crescido e enfurecido. Lilith abriu um sorriso perverso e largo, jogando suavemente o pescoço e o queixo para trás. Parecia debochada, mas ao mesmo tempo percebia que, enfim, ele havia amadurecido em relação a ela, já que nunca a havia dirigido tal tom.
— Não creio que em momento algum de tua imensa vida eu tenha de fato mentido a ti, meu amado. Omitir ou moldar acontecimentos de forma que tu não me odeies não faz de mim uma mãe tão má — ela inclinou o pescoço para Samael —, faz Samael?
— Não, minha rainha — ele estava parado com as mãos para trás e, ao responder, não a encarou.
— Samael diz que não, meu querido — ela tornou a encará-lo —, por que não pensas como ele? — ela abaixou suavemente o queixo e sorriu de forma debochada, fazendo-o rosnar novamente ao sentir aquele arrepio de ódio.
— Pandora está morta e antes de morrer contou-me algo — disse ele, encarando-a da mesma forma invasiva. — O que ela disse é verdade?
Lilith o encarou por mais de alguns segundos sem responder. Seu pé desnudo caminhou por aquele solo infértil em direção ao seu filho tão lentamente que o vento era mais alto que seus próprios passos; já a respiração de estava acelerada e pesada, acusando seu ódio e sua ânsia.
Ela tocou suavemente, com a ponta dos dedos, o peitoril do filho, ficando na ponta dos pés para que seus lábios quentes tocassem o lóbulo da orelha dele e ela pudesse sussurrar com sua doce voz:
Sim.
tomou os antebraços de Lilith, unindo seus dedos por tamanha finura, e a jogou no chão com toda a força. O baque do corpo dela contra a terra dura fez seus ossos estalarem, mas o único som que saiu dos lábios dela fora uma risada debochada.
— Tu és tão patético! — ela gritou com voz de demônio, franzindo o rosto enquanto se punha de pé em um pulo, indo em direção a ele com a mão em forma de garra, unhando-o o rosto. — COMO PODERIAS ACREDITAR, MESMO QUE POR UM SEGUNDO, QUE PODERIA EU, RAINHA DO SUBMUNDO, SENTIR ALGO POR UM SER TÃO DESPREZÍVEL COMO TU, ?! UMA ALMA BASTARDA, MESTIÇA, IMUNDA, DE UMA GENTINHA TÃO NOJENTA E SUJA COMO TU!
A cada palavra que ela falava, outro golpe era deferido. Ela ia cada vez com uma mão, em um lugar diferente. O primeiro golpe fora no rosto, arrancando pele, mostrando sangue preto, depois no ombro, no peito, na barriga. ia tentando se esquivar, ia rosnando, ia grunhindo, mas ela era muito mais rápida. Samael não esboçava um mínimo sentimento e, enquanto eles lutavam aqui, o exército ia treinando lá, como se nada estivesse acontecendo.
— Tu és tão burro e ignorante como o resto de tua família — ela disse mais baixo, segurando-o nas extremidades do pescoço. — És tão ignorante e burro como sua mãe.
E então ela o soltou no chão.
— E sabe por que tenho imensa certeza que tu não és filho meu? — ela se virou para ele, franzino suavemente o cenho. — Porque tu és um desistente de merda. Vejas só o que tu tens aqui: nada. Veio para confrontar-me e estás caído no chão como um bosta, um nada. És patético — ela negou com a cabeça, com pena.
Quando ela se virou, estava de pé. As feridas que ela havia feito nele já estavam cicatrizadas graças ao sangue virgem, e agora eram apenas listras negras contra sua pele pálida.
Lilith riu e se virou novamente. correu até ela, pegando-a pelas extremidades pescoço e derrubando-a no chão; cravou suas unhas na carne abaixo das mandíbulas e, com força, puxou para cima. Lilith pôs os pés na cintura dele e, com um empurrão mais forte, sentou-se por cima dele. Ainda que as mãos dele estivessem no pescoço dela, sua força não era tamanha para impedir que ela impulsionasse seus dentes em direção ao pescoço dela. rosnou alto, mordendo-a também quando ela tentou atacar seu pescoço. Expelindo mais as unhas, perfurou a carne do pescoço de Lilith fazendo-a gemer e rir; com uma das mãos, ela deu um soco em seu nariz, fazendo-o virar o rosto e deixar o pescoço vulnerável; ela impulsionou o rosto e o tentou morder, mas ele se esquivou. Ele puxou a mão presa nas extremidades do pescoço dela a fim de quebrar sua traqueia, mas seus ossos eram duros demais; sacudiu-a de um lado para o outro, então, para livrar-se do peso do corpo dela em cima do seu. As pernas de Lilith estavam muito bem presas na cintura dele, machucando.
rosnou, expelindo as asas — estavam enormes, com as penas duras e eriçadas como navalhas. Como um pássaro preso, ele as bateu e colocou em posição de cúpula em suas laterais, afundando as pontas afiadas nas costelas de Lilith. Ela gritou, soltando as pernas de sua cintura. Vendo-se livre, ele as bateu e se livrou dela. Ela se contorceu como uma cobra, curando suas feridas. Olhando-o com ódio e, enfim percebendo que aquela era uma briga de verdade, ela expeliu sua língua de cobra e suas asas de fogo. rosnou para ela, mostrando não ter medo de sua figura demoníaca.
Bastardo maldito!
Lilith voou em encontro a , já o atacando com as garras. Ele, dessa vez, mais atento, se esquivou de todas. Indo para trás dela, atacou-a com um chute nas costas, golpeando-a com uma cotovelada na nuca; segurou-a pelos cabelos de fogo, controlando a dor ao senti-los queimando sua pele, impulsionou seu pescoço para cima e afundou as garras na extremidade de sua mandíbula, sentindo o sangue quente escorrer em direção ao seu pulso.
Lilith gritou novamente, franzindo o cenho de ódio. Ela olhou de soslaio para Samael a perceber algo que , por falta de experiência, não sabia: somente ele era realmente capaz de ferir Lilith. Nenhum outro demônio era capaz de perfurar sua pele com apenas as garras ou segurar seus cabelos em chama sem que sua pele derretesse. Se ele tivesse o treinamento necessário, poderia derrotá-la, e era de vital importância que isso não chegasse aos ouvidos de Lúcifer.
Ela, devolvendo o ataque, abaixou a cabeça e se livrou das garras sem que antes o corte se tornasse maior e mais profundo. Colocando a mão na ferida, ela rosnou com ódio para ele e foi em sua direção com a língua de cobra com o intuito de sugar suas almas. Segurou-o pelo pescoço e o impulsionou para cima. segurou seu pulso com força e desviou o rosto, mantendo a boca bem junta, mordendo os lábios presos em uma linha. Ao segurá-la no pulso, cravou as unhas no espaço entre seus ossos e os puxou para baixo, rompendo sua pele.
Lilith voou em sua direção e segurou as extremidades de seu rosto, esticando a língua em direção de sua boca, com os olhos demoníacos vermelhos brilhando de ódio. impulsionou a cabeça para frente e deu o golpe, desnorteando-a por alguns segundos. Aproveitando aquele tempo, deu um chute em sua costela, ouvindo os ossos estalarem; depois, segurou seus cabelos e puxou sua cabeça em direção ao seu joelho, golpeando-a com toda a força, quebrando seu nariz. Quando ela o olhou de volta, seu rosto estava sujo de sangue preto. Ele deu uma sequência de três socos nela, franzindo o cenho de tanto ódio. Suas asas a golpearam de novo, em várias partes diferentes — ombros, peito, barriga, rosto e perna.
Ele enfiou a mão por dentro de um dos cortes de sua barriga, segurando duas de suas costelas, puxando-as para fora, quebrando-as. Se ele quisesse, a teria matado logo ali — bastava ir um pouco mais para a esquerda e esmagar seu coração.
Lilith urrava de dor.
— Por favor — pediu ela, segurando-o nos pulsos, olhando-o nos olhos —, por favor, meu filho...
— Cala sua boca, filha da puta. Você não é minha mãe! — ele urrou, puxando a mão com força de dentro de seu corpo. Ela gritou com força, de dor. Ele segurou as extremidades de seu rosto com a mão ensanguentada e, com as garras, o perfurou.
O exército parou para ver aquela luta e todos estavam boquiabertos. estava sujo com o sangue de Lilith.
Lilith, a Rainha do Submundo.
sorriu com aquele delicioso massacre. Ela mal conseguia retribuir seus golpes.
Dando outro soco, de baixo para cima, ela perdeu controle de voo e começou a cair. Naquele momento ele envolveu as pernas na cintura dela e pôs as garras em suas asas de fogo bem na extremidade, puxando-as para fora. Sua intenção era arrancá-las. Lilith gritou quando começaram a romper. Ela tentou se defender pondo as mãos no pescoço dele, empurrando-o para cima, e esticando a língua em direção a sua boca para que ela pudesse sugar sua alma, mas a dor de suas asas sendo arrancadas e de todos os outros golpes a fez perder a força.
Quando estavam prestes a ceder, sentiu as mãos de outro demônio em seu pescoço e outras pernas em seu quadril. Mas sem que o quisesse matar, aquele demônio só queria apartar a briga.
Quando foi obrigado a soltá-la, Lilith caiu ao chão como uma fruta podre e mal se moveu, incapaz de se recuperar. Estava com os olhos opacos e os lábios entreabertos. Tinha aparência mais mórbida que o comum.
— Me solta, porra! Me larga! — ele gritava com voz de demônio. Virou-se ainda com os reflexos de luta e segurou o pescoço do demônio, sujando sua pele pálida com o sangue preto de Lilith. Era Samael, com o cenho franzido.
respirava de forma descompassada.
— Você não quer fazer isso.
— Ah, não?! — ele gritou. — Essa filha da puta merece morrer!
— Teu ódio te cega agora.
— Se eu estivesse no lugar dela, você teria me salvado? — ele gritou. Samael não respondeu. — TERIA, CARALHO?!
Então soltou o pescoço dele, o empurrando. Caminhou até Lilith, que já se recuperava, e a chutou a costela quebrada, cuspindo em seu rosto.
Você é patética, seu saco de bosta.


37.

It’s like dark paradise…

Os adornos rústicos contradiziam com a música alta e as drogas injetáveis que se espalhavam pelo chão de madeira de lei. As paredes de pedra e a iluminação fornecida pela chama da imensa lareira, que também aquecia infernalmente aquele ambiente. As meninas dançavam embriagadas, com suas garrafas de vinho pela metade erguidas para cima de suas cabeças louras desequilibradas. se encontrava sentado, encarando o fogo. Segurava as panturrilhas com os antebraços, entrelaçando as mãos, com o cenho franzido e os lábios rijos. Sentiu as mãos doces e frias de uma garota alisarem suas costas, desde as omoplatas até o final de sua lombar, tocando sua nádega nua, apertando-a com a ponta das unhas. Ela soprou uma risada com bafo de uva em sua nuca, fazendo-o girá-la suavemente para encarar suas pupilas extremamente dilatadas. A menina esticou o pescoço e o beijou fervorosamente, segurando sua nuca, entrelaçando com força os dedos nos seus cabelos. Beijava-o com tanta força que seus dentes roçaram, fazendo-o gemer pelo incômodo barulho. Ele esticou sua mão para o pulso da menina, empurrando-o para baixo, puxando o rosto para trás. Ela não cedeu, de forma que ele pusesse mais força. Quando suas bocas se separaram, ela foi para cima novamente. rolou os olhos cristalinos e se levantou, deixando-a jogada perto do fogo. Era perigoso, mas ele estava se fodendo. Logo a comeria — ela e todas as outras oito garotas bêbadas e drogadas que se espalhavam por aquele quarto de hotel.
Seu sistema não estava reagindo bem às substancias que injetou. Seu coração estava acelerado, mas as alucinações que estava tendo não eram nem de longe agradáveis. Via olhos. Olhos grandes, esbugalhados e vermelhos. Eram olhos de demônios furiosos que provavelmente estavam em luta. Seus ouvidos captavam todos os sons de choro e agonia das criaturas noturnas em raios de quilômetros, de forma que ele sentisse todas suas dores e sentisse seu almejo por morte. Sem contar todas as palavras que Lilith proferira em todos seus milênios de vida.
Ele não conseguia sentir nada bom. Tudo que vinha era uma confusão de sentimentos ruins que o fazia desejar o suicídio.
Uma mulher ruiva aproximou-se dele. Ele estava confuso e, mesmo se estivesse sóbrio de todas aquelas doses de bebidas sem nome que tomou, não se lembraria de seu nome. Ela também estava nua e havia uma mordida bastante profunda em seu seio esquerdo, pingando um sangue vermelho escarlate. No momento que a viu, os olhos de percorreram toda sua pele alva nua, parando especialmente naquela linha vermelha. Os dentes de demônio foram expelidos, assim como as garras. Os chifres, ainda que devagar, começaram a sair. A menina jogou o pescoço para trás e permaneceu com os braços soltos ao lado do corpo, completamente dopada.
segurou-a pela cintura estreita e puxou-a com brutalidade de encontro ao seu corpo, fazendo-a gemer. Beijou-a com força a pele do pescoço, arranhando-a com os dentes extremamente afiados — nisso, arrancou-a pedaços de pele, fazendo-a sangrar; ela grunhiu, mas não reagiu ou fugiu — queria aquilo tanto quanto ele. As garras de suas mãos perfuraram-na a pele das costas, fazendo dez cortes profundos que iam ficando ainda mais horrorosos conforme ele ia puxando a mão para a frente do corpo dela, expondo seus órgãos. Antes que ela pudesse expor sua dor, ele mordeu seu pescoço com mais força, explodindo sua veia, bebendo fervorosamente seu sangue.
Naquele momento, ele ficou excitado.
O corpo da menina ficou mole, sem sentidos, então ele a jogou no divã próximo da janela aberta. O pescoço dela ficou deitado no parapeito, de forma que seus cabelos vermelhos bailassem como vento da madrugada e seus olhos drogados ficassem encarado o céu estrelado da Itália.
encaixou-se entre suas pernas e penetrou-a, começando a movimentar-se enquanto continuava a sugar seu sangue.
Ele gemeu com o prazer do sangue drogado.
Tirando a boca de sua jugular, desceu-a para seu seio, sugando o rasgo que ela mesmo tinha feito, acidentalmente, ele havia visto, com a unha. Lambeu algumas vezes, até descer para os rasgos profundos — que já havia se transformado em uma nítida separação do corpo da garota — e começar a comer seus órgãos.
De repente, em meio a música animada e aos risos das meninas que mal notavam a carnificina que fazia com uma de suas amigas, uma delas gritou.
urrou de ódio — ele odiava aquele barulho irritante, principalmente os agudos, de mulheres — e se virou para quem soltara aquele maldito grito.
Ele mostrou os dentes sujos de sangue, rosnando, então, em um pulo, as atacou.

Imersa em uma nuvem de pensamentos suicidas, a vida nunca parecera tão desagradável quanto naquele momento. Com a cabeça recostada no mármore branco de sua estreita banheira, banhada à meia-luz de velas com aroma doce e enjoado, nada bonito corria em sua cabeça.
Tentou recordar-se dos momentos realmente empolgantes das últimas duas semanas, mas nada parecia realmente digno de quaisquer forças da mente para reproduzir em uma lembrança que gerasse um sorriso, por mínimo que fosse. As confusões mentais e os distúrbios, tanto os de sono quanto os de alimentação, tornavam-se mais intensos e repetitivos — ela estava começando a se tornar um zumbi, vítima de sua própria doença de alma e de seu tédio diário em relação à vida.
Desde que saíra da casa dos demônios e viu-se livre de todos eles, sua vida tornou-se monótona. As atividades diárias eram apenas as funções de respirar e existir.
Embora devesse, não estava tão empolgada para o final daquela gestação, tampouco para o que viria depois. Ao mínimo sentia vontade de levantar-se para olhar as mudanças físicas em seu corpo, ou contemplar aquele “milagre” que crescia em seu ventre. Mal sentia vontade de comer.
A falta de vontade a deixava irritada, também, porque sabia que sua vida passava bem diante de seus olhos e nada havia ou haveria de acontecer. Tudo era um grande acúmulo de ódios e frustrações que nunca seriam reparados, a não ser que ela sentisse vontade de fazê-lo — e aquela vontade simplesmente não existia, não naquele momento. A única coisa que ela sentia vontade de fazer era recostar-se àquela banheira e ficar, durante horas, encarando o branco monótono do teto de seu banheiro, escutando apenas o tímido correr da água pelos canos e a respiração falha e muda de seus pulmões. Sua vida limitou-se a esperar a morte chegar — a morte até então representada pelo nascimento, o que era ridiculamente irônico.
Desde aquela discussão, há quase duas semanas e meia, ambos evitaram trocar quaisquer palavras. voltara para seu apartamento em Manhattan como havia falado, até então fechado e zoneado, e retomara sua patética vida de antes: não comia, não dormia, não falava. As poucas vezes que saíra do quarto fora quando o porteiro subia com algumas pilhas de correspondências que começavam a acumular ao lado da porta.
Ela não sabia muito bem o que aconteceria quando voltasse para casa. Provavelmente imaginou que superaria a falta de como se a história deles não tivesse valido nada — ela imaginava que realmente não valia, até certo momento; mas quando se encontrou realmente sozinha, sua ficha caiu. Obviamente sentia falta dele e, ironicamente, de toda aquela movimentação de entra-e-sai de demônios onde quer que ela estivesse — mas seria mesmo a falta do que ela mais odiava que a deixava daquela forma tão moribunda e facilmente irritável? A solidão a modificara e mortificara de uma forma bastante visível e bruta, e só havia se passado dezoito dias desde que eles haviam se separado. Não era somente o fato de estar sozinha, provavelmente.
Arqueando levemente as costas do mármore, sentiu a água fria bailando por cima de sua pele, fazendo-a eriçar-se. Levantou da banheira, puxando seu roupão úmido, amarrando-o na cintura um pouco mais fina. Enrolou os cabelos em uma toalha pequena e saiu do banheiro, caminhando pela sujeira da última presença naquele apartamento: a de Richard, na semana que ele matara sua mãe.
pensou, por um momento, que, talvez, poderia estar possuída novamente. Não tão terrível como da última vez, suas alucinações eram pequenos vultos que, de vez em quando, escorregavam pelas paredes e corriam pelo corredor, rindo de sua desgraça. Nada tão pavoroso quanto pesadelos explícitos, mas ainda assim alucinações. Quando se encontrava acordada de madrugada, ela se perguntava o porquê de toda aquela dor. Perguntava-se se haveria alguma ligação com Alexander, se ele era a causa de todo aquele desconforto — estar distante da alma paterna, já que se tratava de um ser sobrenatural. Ela não sabia, tampouco sentia vontade de procurá-lo para comprovar se as almas sofriam de abstinência uma das outras.
Não diferente das outras noites, ela seguiu até seu quarto e colocou uma roupa qualquer. Libertou os cabelos ainda maiores — agora batiam na cintura — daquela toalha mal cheirosa e a jogou no chão, do lado de seu colchão rasgado.
A situação do apartamento era nojenta e ela reconhecia isso. A confusão, a sujeira e as lembranças eram idênticas às de um asilo abandonado. Era apenas triste e sujo. A luz já havia sido cortada por falta de pagamento — embora tivesse pagado todas as prestações enquanto ela estava hospedada na mansão de Lilith, ele o havia cortado (naturalmente) no exato momento que abandonaram sua morada e partiram para a casa de Pandora — e logo o síndico a despejaria. Aí sim ela estaria completamente fodida. De forma alguma rastejaria de volta para Lilith, pedindo perdão por tê-la confrontado. Queria mais que ela morresse.
O que a deixava com bastante raiva, quando tinha algum momento de lucidez para sentir algo que não fosse ódio ou pena de si mesma era que, em sua concepção, a depressão de sua adolescência havia sido curada no exato momento que Lilith dispersou seus antepassados e a individualizou, tornando-a mais forte e ser único. Aquela dor existencial havia se dissipado junto de todas as suas outras complicações de alma, junto com o ódio e o amor que sentia por sua “família”. O que realmente a deixava puta de ódio era que pensava ter se visto livre daquela maldição. Mas como bom parasita, essa doença não dissipa do corpo do hospedeiro, ela apenas adormece. Adormece por um ou dois meses, então volta com força total. Aquela doença sempre estaria presente dentro dela e sua atual miséria a puxara de volta das entranhas de sua alma, tornando a reagir. Mesmo sabendo que sua vida havia dado uma extrema volta, ela havia caído novamente e, naquele momento, ninguém além dela poderia ajudar.
Nem mesmo Alexander a animava mais, pois ele era como uma bomba-relógio. Ela teria um ano para explodir. só conseguia vê-lo daquela forma, mas o não o odiava ou repudiava, só não sentia-se mais tão empolgada quanto antes.
Ela escorregou o braço para o ventre, tocando a barriga pontuda, acariciando-a apenas uma vez com a ponta das unhas compridas. Imaginou-o por algum momento, sua fisionomia. Seria mais parecido com ou com ela? Teria olhos de demônio ou de humano? Seu sorriso, seria como o do pai?
Ela negou com a cabeça e se ajoelhou, deitando-se em posição fetal. Fechou os olhos e, ouvindo as risadas de suas alucinações, franziu o cenho e encolheu-se ainda mais. Naquele momento, focalizou seus pensamento em , imaginando-o em sua forma de humano.
Sentia tanta falta dele, e mal sabia responder se aquele pensamento era recíproco ou não.

Pouco antes do sol nascer, já havia se livrado de todos os oito corpos. Vestiu-se e partiu pela janela, batendo suas asas a caminho do oeste. Pretendia voar sem parar, o mais rápido que conseguisse, de volta para Manhattan — precisava falar algumas verdades para e não deixaria que uma simples fadiga o impedisse de ir até o outro lado do oceano apenas para vê-la.
Suas asas balançavam-se pesadas para cima e para baixo em uma velocidade aparentemente devagar; seu corpo balançava, subindo e descendo acompanhando o movimento contrário daquelas gigantescas penas aveludadas. As nuvens cor de salmão anunciavam que o sol já nascia — a luz que o iluminava lateralmente deixava seus olhos azuis focalizados no horizonte ainda mais transparentes, de forma que se tornasse ainda mais angelical. Seus dentes ainda estavam expelidos, assim como seus chifres. Ele sentia ódio circulando por suas veias lotadas de sangue alheio, de forma que a ponta de seus dedos tremessem com a simples imagem da possível traição de com William.
Ele o queria morto.
Depois que falasse com iria até aquela medíocre casa e o esquartejaria.
Aquela amaldiçoada pertencia a ele e a ninguém mais; aquele feto que ela gerava era sangue dele e parte dele, quem ela ousava ser para tentar fugir ou se envolver com outro?
O cenho dele franziu e suas mãos se fecharam em punhos — a força que usou era tamanha que os nós ficaram brancos e os músculos de seu antebraço se enrijeceram imediatamente, com as veias saltadas. Ele olhou de soslaio para a imensidão do céu acima de sua cabeça e amaldiçoou o deus que a criou. Amaldiçoou-se por não controlar seu próprio destino, amaldiçoou ainda mais Lilith, por ódio puro daquela mulher. Amaldiçoou , por tê-lo em suas humanas mãos.

Ela tinha os cabelos presos em um coque bastante gordo no topo da cabeça. Estava usando uma calça legging preta e uma blusa de malha cinza, já suja pela quantidade de coisas que se ocupou fazendo no dia.
Não que realmente se importasse com a sujeira de seu apartamento, mas não queria ser despejada.
Logo cedo naquela manhã, seu vizinho, um cinquentão simpático cujo nome ela não se lembrava, bateu a sua porta dizendo que havia se mudado a pouco e gostaria de se apresentar. O olhar do homem correu para dentro do catastrófico apartamento e a visão que ele teve da garota não poderia ser outra: ou era drogada, ou suicida — ao menos estava certo. Mas depois o ocorreu que ela também estava grávida. O assunto logo mudou para a barriga de . Perguntou quem era o pai e onde ele estava, por que não estava ali, a ajudando com os afazeres do apartamento, e por que sua luz havia sido cortada e o pai da criança não fazia nada a respeito — já deveria ser assunto do prédio o fato de estar ao abismo de ser despejada. Para responder, ela não usou muitas palavras. Deu de ombros e disse que ele havia saído para fazer uma viagem a negócios — cujo ela também disse não saber quais, o que não convenceu o cinquentão — e que ela havia voltado para aquele apartamento logo depois de uma discussão — o que era verdade.
O homem ficou com pena — algo que odiava que sentissem dela — e se ofereceu para ajudá-la a arrumar o apartamento. Disse que havia se enviuvado há pouco e que também havia perdido a filha — mais ou menos da idade de , lá para seus vinte anos — em um acidente de carro, enquanto voltavam de Las Vegas, então, por isso, havia herdado bastante dinheiro da falecida, que sentia-se na obrigação de ajudá-la — contou também um monte de histórias sobre caridade e de como havia sido ótimo para sua vida ter se integrado à Igreja, que se sentia muito mais leve e espiritualizado (coisas que não prestou mínima atenção, ouvindo apenas um bando de ruídos).
No final da tarde todos os móveis revirados estavam no container de lixo do final da rua. A casa estava limpa e cheirosa, sem nenhum vidro quebrado ou resquício de que havia tido um massacre ali há apenas seis meses. A cozinha estava utilizável novamente e o quarto de , agora, tinha uma cama nova.
Não estava nas mesmas condições de quando ela o havia comprado com a mãe — um episódio que ela não conseguia se lembrar —, mas estava caminhando para se tornar melhor.
Recee Jay — o vizinho cinquentão — havia ido para seu apartamento tomar um banho e esperava encontrar dali a trinta minutos para comprarem alguns novos móveis para a sala, para o quarto e para a cozinha, já que praticamente tudo fora perdido.
Quando terminou de dobrar algumas roupas dentro de uma sacola para a lavanderia, esticou as costas e pôs a mão na lombar, soltando um alto suspiro. Olhou à sua volta e sorriu com o trabalho que havia feito — a casa parecia até mais clara e extremamente mais ampla sem os móveis. Recee havia pago as contas de luz atrasadas e eles a haviam devolvido, de forma que, depois de quase duas semanas, finalmente ela fosse tomar um merecido banho com água pelando. Ela alargou ainda mais seu sorriso.
Agora que ia comprar novos com Recee, ela poderia mobilhá-lo a seu gosto, de forma que aquele fosse somente seu canto perfeito.
Virou-se nos calcanhares e foi para o banheiro, encostando a porta, deixando um vão para que o vapor não fosse tão grande dentro do banheiro. Fechou o box, pondo-se dentro da banheira estreita, e abriu todo o registro de água quente.
Quando aquele delicioso jato caiu sob seu corpo cansado, ela soltou um gemido de satisfação. Fechou os olhos e botou todo o corpo submerso àquela deliciosa água, deixando que escorresse por cada milímetro de seu corpo frio e um pouco menos exausto de viver.
Lavou os cabelos com tamanha lerdeza, penteando cada mínimo fio enorme que crescia do topo de sua cabeça até o final de sua cintura, negro como as penas das asas daqueles demônios.
Quando lembrou-se deles, seus olhos se abriram. A pele rosada pela água quente tornou-se arisca, ficando arrepiada e alerta. O barulho alto da água caindo no chão mascarava os passos de suas alucinações, de forma que ela começasse a sentir aquele pavor do desconhecido esquentando o interior de seu peito. Colocando a mão no vidro, ela a escorregou para limpas as gotas de água e o vapor que se acumulou.
Esperava ver uma carranca horrorosa sorrindo com os dentes esticados em sua direção e os olhos vermelhos como a chama do Inferno, mas não viu nada. Seu coração batia forte e sua respiração começou a descompassar.
Virou-se de costas para a porta, tentando se controlar. Pegou o sabonete líquido e, extremamente trêmula, o espremeu na mão até que saísse uma quantidade necessária para os braços e barriga. Passou com certa pressa, esfregando apenas até formar uma pequena camada de espuma, depois meteu-se de baixo da água quente, ensurdecendo-se. O cheiro doce de leite com amêndoas inundou o banheiro. Um vento frio a fez pular para ver a porta, que continuava exatamente da mesma forma que ela havia deixado.
— Deus — choramingou, mordendo com força o lábio extremamente vermelho. — Por favor...
Ela respirou fundo novamente, tentando controlar o choro. Tirou com pressa o condicionador do cabelo e se enrolou em sua toalha limpa — já que finalmente havia se dado ao trabalho de abrir o armário e pegar uma nova —, pegando outra para o cabelo ensopado.
Saiu do box trêmula, tanto de frio quanto de medo, e escancarou a porta do banheiro, olhando de um lado para o outro em seu quarto, até o teto, para ver se não havia um demônio ali. Virou-se para o espelho, abrindo-o em busca de seu perfume que passava ainda com a pele molhada — quando ainda se cuidava — e, quando o fechou, viu um vulto correndo de um lado para o outro em seu quarto. A janela estava aberta e o vento de chuva cantava alto dentro de seu quarto — uma sinfonia aterrorizante.
tremeu ainda mais, dando um pulo, soltando o frasco dentro da pia. Sentiu o vulto dançando em seus pés, correndo de um lado para o outro, e depois ouviu sua risada rouca bem atrás de sua nuca.
— Para com isso! — ela gritou, deitando-se em posição fetal no chão. — PARA COM ISSO, SAI DA MINHA CABEÇA! SAI, PORRA, SAI, SAI, SAI!
Ela começou a chorar compulsivamente. A luz piscou um par de vezes, mas ela tinha os olhos fechados e tudo que conseguiu ouvir fora o barulho do interruptor. A porta bateu e abriu novamente. se encolheu mais, mordendo com muita força o lábio. O demônio a tocou nos calcanhares, envolvendo-os completamente, puxando-a bruscamente em direção ao quarto, arranhando-a a pele no chão de madeira recém-limpo, mas ainda com alguns pedaços expostos, como pequenas farpas. Ela gritou de dor e pavor, arregalando os olhos.
O demônio era Lúcifer.
chorou em desespero, sem conseguir se controlar. Soluçava alto em busca de ar, tentando inutilmente controlar as batidas eufóricas de seu coração apavorado.
— Está cheirosa, senhora Burwell.
Ele abriu um sorriso calmo, sem mostrar os dentes.
estava jogada no chão, sem sua toalha, com farpas enfiadas na parte traseira de seu corpo; os pulsos estavam na altura do queixo, estirados para cima, completamente trêmulos; seu busto, barriga, bochechas, lábios e nariz estavam extremamente vermelhos pela água quente.
— Perdoa-me pela entrada, não queria assustá-la... Imagino que tenha sido muito pior de como imaginava que seria — ele tentou segurar uma risada. não conseguia se mover de tanto pavor. — Vejo, de relance, que seu Alexander já está proeminente, não? Veja só o tamanho deste ventre! — ele se ajoelhou do lado de , que contraiu o rosto em medo e o virou para o lado oposto de Lúcifer, chorando ainda mais. Seus pulsos se contraíram um pouco. — Oh, minha querida... — ele tornou a falar com aquele tom que usava quando era Larkin, mas estava apavorada demais para acreditar em sua falsa preocupação.
Ele juntou os lábios em uma linha e os puxou para baixo como se fizesse uma mínima careta de pena; negou com a cabeça e se ergueu novamente, movendo a mão de baixo para cima. sentiu uma mão por baixo de suas costas, erguendo-a. Ela subiu com as costas retas e as pernas e braços moles, sem conseguir se mover. Quando já estava de pé, retomou o controle de seu corpo — encolheu-se, abraçando-se, não de vergonha, mas sim de frio e medo.
Lúcifer abaixou-se e pegou a toalha que antes envolvia seu corpo, esticando-a para . Ela abaixou os olhos azuis para o pano, mas não se moveu para pegá-lo. Lúcifer rolou os olhos e soltou um suspiro irritado.
— Até parece que não sabe quem eu sou, — ele a olhou profundamente nos olhos.
Lúcifer era diferente de Larkin. Realmente, o Diabo tem várias feições.
Naquele momento, Lúcifer tinha cabelos grisalhos curtos, pele caucasiana não muito clara e grandes olhos azuis. Ele usava um terno preto bem cortado, que acentuava seus magros ombros largos. O corpo daquele homem era bastante delineado, mas estava magro, como se ele não se alimentasse direito.
Dando de ombros, ela a largou no chão e se virou de costas para ela. não conseguia respirar direito — o ar entrava e saía como se fosse sólido; havia um nó em sua garganta que a dificultava engolir. Seus ofegos pareciam irritar o Diabo. Ele entrelaçou os dedos na altura do estômago e, no final do quarto, mantendo certa distância, virou-se para ela novamente.
— Minha visita tem um propósito, obviamente — começou, sério, mas com a sombra de um sorriso malicioso abaixo dos lábios finos e levemente pálidos; os grandes olhos também sorriam de forma assustadora. — Queria mostrar-te, criança, como será o parto de seu Anticristo. Não quero assustar-te, de forma alguma, mas acredito que deva informar-te primeiro, para escolher com sabedoria o que desejas fazer, porque tenho opções para ti — ele, enfim, liberou aquele malicioso sorriso, sem mostrar os dentes. Embora não tenha respondido, ele imaginou sua pergunta e a respondeu: — Minhas opções, humana, são bastante opostas. Podes, de forma simples peculiarmente normal, gerar teu “filho” — ele fizera as aspas no ar e voltara a juntar as mãos — e expeli-lo da forma que te mostrarei. Ou... — , ainda com os lábios entreabertos, piscou com mais dificuldade. — Podes entregá-lo para mim agora.
— O quê? — ela conseguiu sussurrar.
— Ah! Ela fala! — ironizou, soltando uma risada alta. O coração de palpitou. Seu medo começou a dissipar, embora ainda bastante forte e fundo em seu peito; ela já conseguia ficar ereta quem suas coxas fraquejassem e a fizessem querer tremer e cair ao chão.
— Não estou grávida nem há...
— Eu sei, quatro meses — ele a interrompeu com outro daqueles sorrisos. sentiu um arrepio irritante crescer no final de sua lombar, fazendo-a eriçar-se. Respirou fundo e, com dificuldade, começou a respirar pelo nariz, travando com força o maxilar para que não ofegasse novamente. — Tenho demônios no Inferno que poderiam com facilidade gerá-lo para mim e poupá-la da terrível dor que será este parto. Digo, porque prevejo-o. Deixe-me mostrá-lo para você, ... — ele se aproximou dela.
Por impulso, ela deveria por um de seus pés para trás, mas, de repente, sentiu uma onda de calor acolhedora vindo dele. Aquela aparência começou a trazer uma estranha sensação de conforto, como a que Larkin trazia. De repente, ela estava relaxada. Seus músculos não estavam mais tensos e aqueles arrepios cessaram. Lúcifer postou-se ao seu lado e o toque da pele dele, extremamente quente, com a dela, extremamente fria, a fez olhá-lo diretamente no rosto sorridente e ficar hipnotizada por alguns milésimos.
Ela só tornou a olhar para o quarto quando um bafo quente empurrou seus cabelos já quase secos para trás, chamando-a a atenção para um mar de sangue vermelho-vivo. O cheiro enjoado e os gritos agonizantes e incessantes de a fizeram franzir o cenho e morder os lábios, apreensiva.
Ela estava deitada no meio daquele sangue todo, nua, com as pernas abertas e as veias do corpo todo saltadas, roxas. Seu rosto estava pálido e seus lábios, extremamente secos e rachados. Seus cabelos estavam sujos de sangue, com algumas mechas esticadas para trás, outras grudadas em seu rosto também sujo. Demônios sem rosto e vultos corriam pelo quarto, andando pelas paredes, aterrorizando-a. O medo estava explícito em seus olhos extremamente pretos — ela os mantinha vagando por todos os lados, apavorada com o que via. Seus joelhos estavam dobrados, as mãos apoiadas na parte frontal da panturrilha. estava em sua forma de demônio, Lilith assistia a tudo com os olhos brilhando, excitados — ela parecia invocar todos aqueles demônios.
— Tire-o de mim! — gritou , com a voz grossa, como se estivesse possuída.
ajoelhou-se no meio de suas pernas e Lilith deu um passo a frente, segurando o lábio, quase sorrindo em tamanha empolgação.
— Mostre-o para mim, ! Eu quero vê-lo! — disse ela, com voz de demônio.
— Você precisa fazer força — disse ele, com a voz séria.
Seu rosto estava completamente diferente de como ela se lembrava — estava embrutecido, cansado e abatido. Seus chifres eram assustadores e tudo aquilo a deixava tensa.
jogou sua cabeça para trás, rodando-a para os lados, sujando ainda mais o rosto de sangue. Sua barriga mexeu, como se Alexander passasse a mão —que, na verdade, eram garras — e a cortasse por dentro. Naquele mesmo momento, uma bola roxa começou a se formar no final de seu útero.
Os olhos dela começaram a virar.
Lilith deu um pulo até sua cabeça, segurando-a ereta. Jogou sua própria para trás e, em voz de demônio, começou um ritual. O peito de se impulsionou para cima com tamanha brutalidade que parecia possível e extremamente fácil partir sua coluna ao meio. A barriga extremamente enorme, roxa e cheia de hematomas estava se mexendo.
— Venha, Anticristo — disse Lilith, rolando os olhos, segurando as têmporas de . — Venha...
As pernas de caíram para o lado. colocou a mão no topo da barriga pontuda e a puxou para baixo enquanto, com a outra mão, puxava-o para fora, enfiando-a dentro dela.
estava tendo hemorragia interna. Aquele sangue que inundava o quarto era seu. Ela estava morrendo. Sua boca seca estava entreaberta e ela não tinha reação. Lilith continuava com os dizeres em latim, cada vez mais alto, movendo seu corpo para frente e para trás. Os demônios do teto e das paredes começaram a se mover em torno daquele parto — era uma cortina negra com cheiro de enxofre e sangue fresco.
despertou, puxando o ar com força. Então começou a urrar de dor.
— Faça força! — ordenou Lilith, em demônio, unhando-a as têmporas. — FAÇA FORÇA, HUMANA!
chorou, tentando fazer força. Era inútil, ela não conseguia. Doía e ela não conseguia mais.
— Por favor — ela chorou mais, negando com a cabeça.
Lilith, com rosto de demônio, apertou-a a cabeça e gritou, repetindo aquelas mesmas palavras. negou, gritando, chorando.
— RASGUE-A! — ela gritou para .
Ele puxou a mão de dentro dela com violência, fazendo-a impulsionar o peito com tamanha dor. Seu braço estava imundo de sangue.
— ELE VAI MORRER! TIRE-O DAÍ AGORA!
Lilith levantou-se e pulou para o lugar de , empurrando-o com brutalidade. Afiou as garras e, em um golpe só, enfiou as cinco no topo da barriga de , contornando toda aquela proeminência. Era ensurdecedor o tanto que ela gritava e chorava —quando foi levantar os braços para impedir que Lilith continuasse, os segurou para cima. Quando terminou de rasgá-la a pele e o músculo, meteu a mão dentro de sua barriga, segurando-a com brutalidade e violência. Puxou Alexander com o mesmo ódio, ouvindo-o chorar a entrar em contato com o oxigênio daquele quarto enfestado de demônios, coberto de sangue amaldiçoado.
Ele era um bebê normal.
Ela esticou os dentes para o cordão umbilical e o mordeu, rasgando-o. Alexander berrava forte.
não tinha mais forças para gritar. Ela estava morrendo.
a soltou e não olhou seu filho. permaneceu parada, com a barriga rasgada.
Lilith entregou o menino para , que o segurou sem muito cuidado e o limpou apenas o rosto. Depois, foi até e fez o mesmo ritual de antes. Os demônios rondavam seu corpo, entrando e saindo pelo buraco de sua barriga. Ela não reagia. Iria mesmo morrer?
A da alucinação tinha os olhos petrificados encarando a real, que não respirava.
Da mesma forma que surgiu, aquele pesadelo se dissipou no ar.
Lúcifer virou-se de fronte para ela e, com um sorriso horrível nos lábios, segurou-a pelos ombros.
— Posso livrar-te de todo esse pesadelo. Preciso apenas que aceite meu presente de tirá-lo de dentro de você e gerá-lo em um de meus demônios. Então, minha querida, aceita minha proposta?
Enquanto olhava quase sem piscar para aonde, antes, havia sua poça de sangue, Larkin a segurava forte pelos antebraços, parecendo impedi-la de cair — seus joelhos estavam fracos e sua respiração, pesada; ela não sabia como reagir à todas aquelas terríveis imagens.
Um vento frio tocou seu corpo, fazendo-a bem lentamente virar o rosto em direção à janela, que estava fechada. As cortinas dançavam como se houvesse, de fato, alguma brisa, mas não havia forma de nenhuma corrente de ar passar por aquela casa. Assustada, ela levantou a cabeça e encarou as paredes, passando os olhos por todos os mínimos espaços de concreto em busca de um segundo demônio. A respiração de Larkin estava começando a se acelerar, conforme ele perdia sua paciência. Ele já abria sua boca para perguntar-lhe uma segunda vez se ela aceitaria sua proposta, até que um vulto extremamente negro e grande o segurou pelos ombros e o empurrou para o chão.
deu um passo para trás e se protegeu com os braços, soltando um grito assustado. Os demônios brigavam rápido demais para que ela pudesse acompanhar direito — tudo que conseguia ver com tamanha clareza eram as imensas presas do demônio que atacara Larkin tentando abocanhar com extrema precisão a jugular do mais velho; depois, Larkin usava suas garras e, urrando de ódio, penetrava-as com força no pescoço do outro, tentando arrancar sua cabeça. Embora o que atacara estivesse em sua forma demoníaca, Larkin permanecia com corpo de humano —apenas suas garras e dentes estavam expelidos.
Ambos urravam e o barulho de seus dentes batendo forte faziam arrepios de medo passar pelo corpo desnudo de — ela acabou por se ajoelhar no chão, tampando forte os ouvidos, tentando se desligar daquela realidade horrível que a puxava para um vão escuro e fundo em sua alma.
Os demônios se separaram — um se postou pregado no alto da parede, com suas asas como navalhas apontadas para o outro, que se encontrava de cabeça para baixo, no teto, mostrando as presas em uma careta contorcida de puro ódio. Larkin — que estava no teto — arrastou-se como uma cobra rápida, atacando novamente o outro. Pegou-o pelos cabelos e puxou sua cabeça para trás, expondo totalmente o pescoço. Em um movimento só, mordeu-o o osso da garganta e começou a puxá-lo. O outro, com as mãos esticadas na direção do mais velho, apertou-o as extremidades dos rins e, com um golpe, perfurou sua pele — Larkin gemeu de dor, quando sua pele era impossível de ser penetrada por qualquer demônio; ele deu um pulo para trás com um buraco no final da costela que pingava sangue preto. O outro demônio, com marcas de dentes na parte frontal do pescoço, o olhou com ódio e, batendo as asas, voou em direção ao maior, penetrando-as em seus ombros, erguendo-o para o teto.
Os olhos do demônio que segurava Larkin para o alto eram de um azul extremamente profundo, embora houvesse uma mistura com vermelho; ele estava se contorcendo em pura ira, querendo matar Larkin.
? — indagou o mais velho, arregalando seus olhos.
Ele urrou.
— Quem é você? — perguntou com voz de demônio.
Larkin parou por um segundo, não respondendo. enfiou mais suas asas nos ossos do demônio, fazendo-o gritar, então repetiu a indagação com mais raiva e mais alto.
— Eu sou teu pai.


38.

Secrets I have held in my heart are harder to hide than I thought.

se controlou pelo segundo que soltava lentamente os ombros de Lúcifer, que, então, postou-se quieto, com os olhos negros fixos na figura do filho que até então era apenas uma imagem distante. ainda estava encolhida no chão, mas, agora, tinha os olhos fixos nos dois demônios que respiravam descompassadamente, ainda exalando ódio por todos os poros. Ela estava boquiaberta e trêmula. O único som que ecoava nas paredes daquele infernal quarto eram as fortes batidas de seu coração assustado e o som de sua respiração.
Lúcifer, em um movimento lento com a cabeça, olhou para o chão, pedindo mudo que eles descessem. demorou mais de um minuto para conciliar aquele pedido, erguendo lentamente o queixo, impondo respeito e desdém. Desceram, enfim, ficando postados um à frente do outro.
Aquela figura de Lúcifer era um pouco mais alto que , de forma que ele necessitasse erguer um pouco os olhos para poder encará-lo profundo nos olhos azuis. Ficaram naquele silêncio sufocante por tempo suficiente, de forma que conseguisse se controlar, puxando a toalha para cobrir seu corpo arrepiado, cobrindo-se até os seios, apoiando os joelhos para levantar.
Aos poucos, foi voltando a sua forma humana. Encolheu os chifres e as garras, mas permaneceu com os dentes bastante afiados e as asas expostas. Ainda estava irritado e não parecia querer se acalmar.
Lúcifer virou-se para .
A garota estava patética e ele não conteve uma pequena risada de deboche. Seu rosto estava pálido e seus lábios, trêmulos. O corpo já estava seco do banho que tomara minutos antes e seu cabelo secara bagunçado e frizado. Seus joelhos ainda estavam encolhidos como uma criança patética que assiste aos pais discutirem. Uma estúpida nostalgia, memórias ocultas na antiga alma que compunha aquele minúsculo corpo. Estava ridícula.
— Presumo que não tenha indagações sobre mim beirando a mente, meu filho, já que encontra-se calado até agora.
A voz de Lúcifer era grossa e soou como um trovão em meio ao silêncio.
— Não é questão de ter perguntas a lhe fazer sobre você ou sobre o que aconteceu no passado, mas questão de saber o que está fazendo aqui, falando com ela — ele olhou com o canto dos olhos extremamente negros para a figura ridícula de .
— Ah — Lúcifer sorriu largo —, eu e sua amaldiçoada temos algumas propostas interessantes um ao outro — ele também olhou para a garota. — Não temos, minha querida?
não conseguiu responder. Os segundos que ambos passaram encarando-a pareceram anos.
— Responda, — disse , firme.
— Ela não tem voz suficiente para esbanjar qualquer palavra que seja, agora — o demônio deu de ombros. — De qualquer forma, o que vim fazer aqui já está feito. Tenho apenas que esperar o período de dezoito horas para conseguir a resposta que desejo, e é apenas isto que lhe dou, humana. Nem uma hora a mais ou a menos. Estarei aqui novamente para colher o que é meu, por direito — ele sorriu, dando um passo para trás.
já abria sua boca para indagar ao pai o que é que ele estava fazendo ali, e que proposta era essa, mas o olhar gélido que Lúcifer o mandou fora suficiente para fazê-lo calar sem ter mais vontade de falar nada. Ele, então, expeliu as asas de morcego e saiu pela janela, voando alto para as nuvens de tempestade.
encolheu-se no chão novamente, abraçando os joelhos. a encarou com certa raiva, franzindo o cenho.
— O que ele estava fazendo aqui? — ele perguntou, então, para ela.
o olhou com os olhos de criança assustada, com as sobrancelhas encolhidas e os lábios trêmulos juntos em uma linha de choro. Ela não tinha, realmente, voz para responder.
— Me responda! — ele gritou. As veias de seu pescoço saltaram e as paredes tremeram. Ela se encolheu mais. — Por que age desta forma? — ele estava perdendo a paciência. As penas de suas asas estavam eriçadas e, em seu corpo, arrepios cortavam seus músculos, fazendo-os tremerem e os pelos, subirem em ondas fortes. — Parece que não sabe quem sou eu, parece que ainda não percebeu o mundo como ele realmente é! Por que sua mente humana te fode tanto, ? Por quê?!
— Lúcifer esteve aqui para me propor um segundo trato... — miou.
Segundo? Qual a porra do seu problema?! Fazer tratos com o Diabo? Você é imbecil, porra?!
— Eu só queria me ver livre da sua mãe e... — ela começaria a chorar.
O que você deu a ele? — seu cenho estava franzido. Ele trouxe uma das mãos até os cabelos compridos da nuca e os puxou com bastante força, erguendo a cabeça para o alto.
mal pôde se lembrar da época que achava aquilo extremamente excitante. Ela precisava se recompor e voltar a ser quem era antes de se afundar, naquela alma, em depressão. Era tudo mais intenso, embora menos confuso, que quando tinha mil almas dentro do corpo.
— Alexander — sussurrou.
— Quê?
— Dei a ele Alexander. Prometi que quando nascesse, seria dele assim que perdesse contato comigo.
— Você é ridícula. É estúpida.
— Eu só queria me ver livre daquele pesadelo! Você não sabe como é, já que vive encurralado embaixo das asas daquela escrota da sua mãe! — ela gritou, colocando-se de pé. Seu medo afundou seu peito e transformou-se, repentinamente, em ódio. Ela estava com os punhos fechados, e percebeu que poderia socá-lo a qualquer momento. Seu útero se remexeu, fazendo-a sentir arrepios de ódio. Seus pelos também se eriçaram.
O rosto de se contorceu em raiva e ele rosnou para .
— Não diga o que não sabe, humana imprestável. Sou capaz de matá-la, se quisesse. Você, minha mãe, Lúcifer, quem for que seja.
— Não... — ela riu, negando com a cabeça. Olhou-o fixamente nos olhos enquanto, guiada por seus instintos, começava a rodeá-lo o corpo. a acompanhava, movendo o queixo. — Você não tem o sangue frio de um demônio convicto para agarrar-me pelo pescoço — ela guiou a mão para tal local, apertando com força, a ponto das pontas dos dedos esbranquiçarem. Seu corpo, nu, aos poucos voltava a tomar cor, tornando-se rosado, de raiva — e sacudir-me até que ele descolasse do corpo e meu sangue amaldiçoado inundasse todas as mínimas partes desse quarto patético, dessa jaula claustrofóbica que em algum momento pensei ser um refúgio agradável de se estar. Mas, veja, pelo menos você tem razão ao dizer que sou estúpida. Estúpida a acreditar que não viria até aqui, encher a porra do meu saco, dizendo, cheio de raiva, que eu sou sua e que devo obedecer suas ordens.
rosnou novamente. Ele estava a um segundo de atacá-la e mostrar a ela que podia, sim, ser capaz de realizar seu desejo de ter a cabeça arrancada. Seus braços tremiam de vontade de batê-la até que ela ficasse roxa.
— Eu realmente duvido, Anticristo, que você tenha coragem, de fato, de fazer o que diz ter vontade — ela tornou a ficar de fronte para ele. Seus olhos estavam menores, encolhidos, e era fácil perceber a pupila muito menor. Ela estava consumida pelo ódio do Anticristo que gerava dentro de si. Era como se ele falasse por ela. — Você, , não passa de uma marionete. Uma marionete de Lilith, tão idiota ao ponto de acreditar que aquele demônio teria qualquer sentimento maternal por você. Em algum momento realmente acreditou nisso? Acreditou que ela gostava de você? — ela encolheu os olhos praticamente inteiros azuis cristalinos.
— Meu assunto com ela já foi resolvido — o ódio preencheu-o por completo ao lembrar da luta que tivera com Lilith. — Só falta resolver o meu com você.
Agora ele havia se transformado num animal. Seu corpo foi ligeiramente impulsionado para frente, de modo que ficasse curvado. As veias de seu corpo estavam arroxeadas, formando caminhos difusos por seu corpo arrepiado de ódio.
deu risada. Uma risada de verdade, que vem do fundo do corpo. Ela impulsionou o pescoço para cima e, em um segundo, as mãos dele estavam enroscadas ali, uma de cada lado, os polegares bem acima do osso da garganta. Ela estava na ponta dos pés, mas ainda ria. Para olhá-lo nos olhos, ela tinha que abaixar os seus, deixando as pálpebras moles.
— Finalmente estamos discutindo nossa ridícula relação, não é, demônio?
impulsionou o corpo para cima e juntou os dois pés na altura dos rins de , empurrando-o para trás. As mãos dele permaneceram em seu pescoço, mas a força bruta que ela havia posto naquele chute o fez amolecer suavemente os dedos. Ela segurou seus pulsos e afundou as unhas na altura de suas veias, puxando-os para as extremidades até que ele a soltasse. Caindo no chão com uma das pernas estendidas para o lado e a outra contraída, ela se arrastou pelo chão, pelo meio das pernas dele, e agarrou o contorno de suas assas, puxando-as para baixo. rosnou de ódio e virou-se para ela, agarrando-a o antebraço. riu para ele, arregalando os olhos. Ela se abaixou de novo, chutando-o a canela e puxando-o para que caísse. A força dela era quase como a dele. caiu, com uma perna para trás, o calcanhar na lombar, e a outra estendida. subiu em cima de seu quadril e segurou seus pulsos, cruzando-os acima de sua cabeça. As asas dele estavam estiradas para o lado, as penas prontas para atacarem as costas dela e a erguer para cima, sacolejando-a como um boneco mole e sem vida, tacando-a pela janela. Mas ele a olhou fundo nos olhos e a raiva foi dissipando.
— Vê, gladiador, que sem prática consigo te pôr no chão, e você, com todos esses milênios de prática, mas consegue deixar-me um roxo? — ela riu para ele. Seus cabelos negros estavam estendidos pelo rosto, cobrindo-o a metade.
impulsionou o corpo para cima e bateu as asas, a segurou pelos pulsos, deixando-a presa, esticada como um animal abatido. Ela riu, mordendo os lábios, e esticou as pernas para chutar-lhe o peito, mas as pernas não o alcançavam.
Passando o olho por seu corpo, ele notou que o útero estava escuro. Segurou-a com apenas uma das mãos, esticando a outra para tal lugar. Colocando a mão estendida, viu que estava realmente muito quente.
uivou de ódio, esticando o pescoço para mordê-lo a orelha. Ele desviou, mas o som dos dentes batendo fora muito alto. Ela queria machucá-lo de verdade.
— Não toque em mim com essas mãos sujas, demônio! — gritou com os olhos esbugalhados.
a soltou com força no chão, mas ela não caiu deitada. Novamente, uma das pernas estava esticada e a outra, contraída, com os braços dando apoio na parte da frente. Ela esticou o pescoço para cima, vendo-o voar no alto do teto de seu quarto. Tirou o cabelo no olho e rosnou para ele.
Aquele era Alexander. Ele havia possuído o corpo dela e era capaz de fazer isso sempre que bem desejasse.
O ódio de deu espaço para a curiosidade. Ele abaixou um pouco o corpo e apoiou a mão nos joelhos, analisando-a como um bicho novo no zoológico. Quando se aproximava demais, ela pulava a fim de arranhá-lo a cara e depois voltava a mesma posição. Então, ela começou a rodeá-lo, andando da mesma forma, esticando as pernas, com o tronco impulsionado para frente e apenas os olhos para cima, olhando-o por baixo das sobrancelhas, os lábios entreabertos, soltando pequenos rosnados. Ao chegar na parte de trás do corpo dele, ela deu outro pulo, agarrando-o o tornozelo, tentando agarrar-se ali com as unhas. Ele se moveu e ela caiu novamente, deixando um rastro de três gotas pretas, de sangue demoníaco, no tendão de sua perna.
— Diga-me, quem és tu? — perguntou , curioso, entretanto firme.
— Conhece-me muito bem — respondeu ela, esticando a cabeça completamente para cima. Seus caninos estavam bem afiados e seus olhos eram duas bolas azuis cristalinas que brilhavam na escuridão, refletindo a pouca luz que restava naquele cômodo. — Desejou-me tão fortemente que enfim fui postado ao corpo de minha mãe, para servir-lhe a uma batalha patética, a qual todos no Submundo conhecem o resultado.
— Não compreendo — ele franziu ligeiramente o cenho. — Deverias ser um feto normal quando ainda dentro dela.
— Pois sou — ela assentiu. — Mas ingênuo é aquele que não se recorda do porquê de minha alma e aonde estou sendo gerado — Alexander ficou de pé, com os braços parados ao lado do corpo. — Veja, entenda os animais. Quando um felino está gerando outros de sua espécie, o animal muda. Torna-se agressivo, pois sente o que está dentro de seu ventre. O feto libera substâncias ao corpo do hospedeiro, de forma que ele mude fisicamente e psicologicamente.
— Não fora isso o que disseram a nós — Alexander apenas sorriu.
Depois, fechou os olhos e todos seus músculos amoleceram, fazendo-a desmaiar.

Quando ela abriu seus olhos, não estava mais em seu apartamento. Aquele quarto era diferente, mas também não pertencia à mansão de Lilith. Antes mesmo que pudesse questionar-se mais ou prestar atenção nos detalhes, para tentar lembrar-se de como fora parar ali, uma fome sobrenatural fez com que seu estômago afundasse em um barulho horrível.
Franzindo o cenho e pondo a mão no alto do órgão, ela empurrou o lençol fino para o lado e pisou no chão de madeira fria daquele lugar. Seguiu pelo quarto ligeiramente escurecido pelas grossas cortinas e abriu a porta bem lentamente, sem querer chamar atenção do demônio que morasse naquela casa. Olhou para os lados antes de pisar o calcanhar no carpete preto do corredor, então seguiu até seu final, guiando-se pela casa desconhecida como se já fosse sua. Passou pela sala gigantesca, composta com os mais diversos aparelhos eletrônicos, adornada em preto e branco, então empurrou a porta de vidro fosco que a levou até a cozinha também muito bem equipada.
O estômago roncou de novo e ela franziu o cenho, sentindo dor de fome.
Ela correu na ponta dos pés até a geladeira e a abriu com uma puxada só. Ali dentro, não havia nada que realmente a chamasse atenção. Sentia fome de carne vermelha — quando piscava, imaginava uma carne grande e grossa, pingando vermelho.
Esticou a mão e pegou, guardado em uma tigela funda de vidro, um frango ainda cru. Enfiou a mão no buraco entre suas pernas e levou-o até a boca, dando uma mordida, puxando com força a pele fria. Mastigou uma ou duas vezes antes de cuspir, fazendo cara de nojo, limpando a boca com o antebraço. Jogou o frango dentro da tigela novamente e abaixou-se nos calcanhares para procurar nos compartimentos de verdura alguma coisa que lhe chamasse atenção. Ali, obviamente, não haviam verduras, mas sim órgãos separados em diversos saquinhos transparentes. Não estavam selecionados com dizeres como “fígado” ou “coração”, mas ela parecia saber muito bem o que era o quê.
Afundado em sangue escuro, ela pegou um saco que aparentava guardar dois fígados — ela tinha certeza, em seu subconsciente, que aquilo não era o fígado de um ruminante.
Ela puxou as extremidades do saco até ele, com facilidade, se romper. O sangue escorreu pelo chão e sujou suas pernas desnudas. Ela puxou aquela cachoeira até o alto de seus lábios e deixou que caísse dentro de sua boca, sujando-a as extremidades e o pescoço. Engoliu tudo de uma vez, deliciando-se com o sabor. Quando o sangue secou parcialmente, ela colocou o saco no chão e puxou o fígado com a mão fechada, deixando sua ponta presa entre o polegar e o indicador. Sem nem hesitar, ela levou o fígado até a boca e deu uma mordida com vontade. Bateu os dentes um par de vezes e engoliu, já o abocanhando novamente, abrindo a mão, pressionando o órgão nos lábios, comendo sem nem parar para respirar, engolindo tudo de uma vez.
Quando um já havia ido, ela esticou a mão para o compartimento novamente e pegou outro saco. Aquilo parecia um rim.
se levantou e colocou o saco com o segundo fígado em cima da pia. Abriu o outro, do rim, e novamente engoliu o sangue.
Por um momento, ergueu os olhos da comida que tanto estava adorando e encarou-se no reflexo do aço posto à frente da bancada.
Seu estado era nojento. Seus cabelos estavam sujos e grudados no pescoço ensanguentado, imundo desde o nariz até o busto. Havia um resquício do fígado cru, de humano, no canto de sua boca, próximo ao queixo. Seus dentes estavam sujos e o gosto do sangue impregnou nas paredes da sua garganta.
soltou os dois sacos na pia, olhando para as mãos completamente ensanguentadas. O nojo tomou conta dela. Sua respiração ficou parcialmente acelerada quando a ânsia subiu por seu corpo inteiro. Ela se debruçou no chão como um animal e, erguendo as costas em um côncavo, vomitou sangue — mas apenas isso; os órgãos não saíam.
— Meu Deus... Que porra está acontecendo comigo?
Ela olhou para o sangue e o estômago voltou a roncar. Ela olhou para cima, vendo parte dos sacos de fácil acesso para seu braço pegá-los novamente.
E ela o fez. Puxou o saco do rim e o pegou em mãos. Sentiu a textura lisa e o frio do órgão morto escorregando por seus dedos, dançando nas extremidades de sua mão. O cheiro era de carne congelada com bastante sangue.
Ela respirou fundo e fechou os olhos. Trouxe o órgão para próximo dos lábios e os roçou bem lentamente, passando a ponta da língua naquela textura diferente.
Então, arregalou os olhos — que novamente estavam inteiramente azul cristalinos — e abocanhou o rim como um animal esfomeado.

Quando acordou novamente, sentiu-se imersa em água quente. Seus olhos estavam cansados e pesados, de forma que fora bastante difícil mantê-los abertos e focados à bagunça ao seu redor. Depois de piscá-los um par de vezes, levantou-se cambaleante, sentindo a cabeça pesar. O que seus olhos captaram a seguir a fez perder completamente o ar: havia sangue para todos os lados. A cozinha estava imersa em uma enxurrada vermelha que lambuzava as paredes, o chão e as bancadas. Seu pescoço, boca, busto e braços estavam sujos e ela mal conseguia se lembrar de como havia conseguido deixá-los de forma tão grotesca. Quase como em um impulso, levou os braços para trás do corpo em busca de apoio para se levantar e sair daquele quadro de terror, mas algo alto e mole a fez tropeçar. Quando virou o torço para trás, afim de olhar o que a havia feito cair, sentiu-se arfar mais uma vez — era dali que vinha aquele sangue todo: o corpo de um homem. Ele não aparentava ter mais de trinta anos, estava obeso e pálido, com a garganta cortada de um lado ao outro. Havia uma poça de sangue fresco contornando seu corpo morto.
Ela não sabia o que tinha acontecido. Havia um homem morto, assassinado, deitado ao seu lado. A cozinha daquele apartamento ainda estranho estava pintada de sangue, assim como ela, e sua memória era um borrão preto.
estava arfando em uma súbita crise de pânico. Não sabia que porra estava acontecendo com ela, além das merdas “naturais” que se seguiam desde que ficara grávida de Alexander.
— Você fez um ótimo trabalho — uma voz surgiu atrás dela.
Parecia distante, embora sussurrasse bem perto de sua orelha. Ela se virou em um pulo, ainda com a boca entreaberta de sua respiração descompassada. A ponta de seus dedos tremiam.
Era . Ele estava apoiado no batenete da cozinha, sem blusa, mostrando ferimentos de luta. Os punhos estavam arroxeados, os nós dos dedos, vermelhos; haviam garras criando caminhos vermelhos por suas costelas, descendo por sua barriga até o osso saltado do ilíaco, ressaltando ainda mais o músculo trabalhado. Seus cabelos estavam ainda compridos, bagunçados para trás. Havia um corte em seu supercílio que pingava sangue demoníaco pela lateral de seu rosto até o canto inferior direito de seu lábio, também cortado, em uma contrastante cor alaranjada. Ele estava segurando os pulsos, acariciando-os, demonstrando sentir certo desconforto ali.
Quando virou o pescoço e o tronco para poder olhá-lo melhor, percebeu seu cabelo completamente melado de sangue, desgrudando de suas costas. Sentiu nojo e asco. Necessitava urgentemente de um banho bem gelado que tirasse aquele fedor quente de ferrugem do sangue daquele cadáver.
— O... O quê? — ela encolheu os olhos e olhou para as mãos. Havia sangue seco ali, fazendo-a lembrar-se subitamente dos órgãos que, agora, estavam dentro de seu estômago. Embora devesse, não sentiu mínima vontade de vomitar, embora imensa repulsa e nojo. Um arrepio passou por sua espinha, fazendo-a fechar os olhos. As imagens eram ainda piores, fazendo-a arregalá-los novamente. Sentiu-se tonta. Tornou a olhar para , vendo-o se virar para seguir para o outro cômodo.
De costas, ela pôde perceber outros machucados. Bem na omoplata, onde a asa saía, a carne estava exposta e havia riscos de sangue demoníaco — algum outro demônio havia tentado arrancá-las. Havia, também, muitos arranhões bastante evidentes em sua nuca, lombar e costelas. Arranhões fortes, que deixaram marcas fortes em carne viva.
tratou de levantar-se logo, afim de segui-lo e sair de perto do cadáver.
— O que aconteceu? Onde você esteve? Que porra aconteceu com você?
soltou uma risada nasalada enquanto se jogava no sofá, soltando um longo suspiro, fechando seus olhos enquanto jogava o pescoço para trás e relaxava.
— chamou-o, sem obter resposta. — !
Ele, bem lentamente, abriu os olhos e a lançou um olhar de puro desdém, molhando os lábios enquanto exalava outro suspiro.
— Você matou aquele cara — ele esticou a mão espalmada para cima enquanto falava sem nenhuma emoção. Ela girou o corpo para trás por um segundo, encarando a barriga flácida do homem que ainda exalava um podre cheiro de sangue e carne morta. Ela se voltou para ele, encarando os hematomas de soco em seus nós das mãos.
— E você, que merda te aconteceu?
— Eu? — ele mesmo se olhou, dando de ombros em seguida. — Estive treinando.
— Treinando com quem? O cara te fodeu.
Ele deu de ombros.
— Baphomet é um bom soldado.
— Baphomet? O com cara de cabra? — franziu o cenho em uma careta, trazendo o rosto para trás, negando rapidamente com a cabeça.
— É um pouco preconceituoso da sua parte denominá-lo de tal forma, mas... Sim, aquele com cara de cabra. E ele não tem cara de cabra, dizem isto por causa de seus chifres sempre presentes e sua... feição.
— Por que está treinando com ele?
— Porque precisamos treinar.
Precisamos?
— Claro — ele a olhou com outro daqueles olhos de desdém. soltou um suspiro irritado. — Embora você tenha liquidado aquele cara em menos de cinco minutos, só consegue essas proezas quando está possuída.
Possuída? — ela arregalou suavemente os olhos.
— Puta merda, será que dá pra parar de falar assim? — ele se levantou em um solavanco, rolando os olhos, irritado. mordeu os lábios e o seguiu pelo apartamento desconhecido. — É, o Anticristo te possui de vez em quando.
— Por quê?
— Eu não sei.
— Por que eu matei aquele cara?
Eu não sei, porra! Talvez você estivesse entediada, sei lá. Encheu a barriga e depois foi procurar alguém para torturar. Demônios fazem isso.
Ela parou subitamente, no meio do corredor, escutando-o bater a porta do banheiro segundos seguintes.
Demônios fazem isso.
Então era isso que ela se tornara? Um demônio?

As criaturas noturnas estavam aguçadas, elétricas, encarando ao redor com os ouvidos atentos e olhos arregalados. A lua cheia brilhava em seu tamanho inimaginável em uma das últimas noites de primavera, onde o céu estava limpo de qualquer outro tipo de luz. Um lobo posicionou-se com o focinho sujo de sangue, lambendo-o instintivamente, ao lado de um demônio que se alimentava do sangue de uma virgem. Ele também estava inquieto. Eles sentiam que precisavam se alimentar, pois, íntimo em suas almas, sabiam que aquele poderia ser seu último alimento para daqui há muitas semanas.
As luzes ofuscantes da cidade e a barulheira noturna não invadia o bosque, o silêncio ali era mortal.
O demônio largou o corpo seco da mulher e se posicionou ao lado do canino, limpando o rosto com o antebraço; encarou a cidade com os olhos piscando rápido, quase em um tique, então expeliu as asas e botou-se a voar novamente, afim de caçar uma segunda ou terceira vez.
O lobo sentou e esperou, sabendo que logo conseguiria mais carniça para se alimentar.


39.

A warring to the prophet, to the liar, to the honest: this is war.

Naquela noite haveria um eclipse solar total. Os pássaros estavam quietos, as criaturas noturnas se escondiam, atentas, enquanto os cientistas preparavam-se afoitos para uma noite espetacular. Estava quente, entretanto, e as janelas dos apartamentos estavam abertas. Demônios estavam com fome, alimentando-se mais que o normal por várias semanas, pressentindo que algo aconteceria.
Eventos como estes, tão espetaculares e raros, têm sombra do sobrenatural, onde demônios e anjos descem à Terra para procriarem com humanos e darem descendência a raças superiores, gerações futuras que contribuirão para a guerra entre os Dois Mundos. Quase como um instinto animalesco, guiados por seus subconscientes, eles mal enxergam o caminho que seguem até encontrarem suas presas, atacando-as em becos escuros, penetrando-as até que, em pouco tempo, tudo estivesse acabado. Eram noites aterrorizantes e quentes.
Com um ventre sobressalente, ela estava sentada no sofá com as pernas cruzadas, encarando as veias por baixo da pele praticamente transparente. Embora corresse todos os dias, era difícil ver uma cor senão branco pálido em .
Desde que se mudaram para aquele apartamento, ela adquirira novos hábitos. Tivera que aprender a se alimentar de forma diferente — embora seu corpo pedisse e ela não reclamasse mais quando lhe serviam fígados crus, cérebros humanos, corações recém tirados de corpos que ainda sangravam quentes — e treinava todos os dias. Não somente sua corrida matinal, o que a fez ser reconhecida como uma das grávidas mais simpáticas da vizinhança, mas também com Baphomet, cujo ela, carinhosamente, chamava de Bode — não que fosse ligada à qualquer tipo de religião, mas, em algum momento de sua vida, a Demonologia esteve presente em seus pensamentos; talvez uma mera curiosidade a fez saber que aquele demônio era conhecido por seu rosto de bode e corpo de homem — ele era responsável pelo encargo dos pecados da humanidade. Era invocado por homens que sacrificavam virgens em rituais de sodomia e zoofilia, a fim de lavar as mãos em seu sangue, em busca de perdão e purificação de almas. Dizia-se que todos os pecados da humanidade eram trazidos no corpo de uma cabra, de forma que, nestes rituais, haveriam de matar o animal, oferecendo-o ao Diabo, de forma que o número de almas condenadas, em seu mundo, crescesse cada vez mais. Baphomet era encarregado de levar estas almas até Lúcifer, quando invocado em tais rituais extremamente macabros.
Ele era um fiel guerreiro ao lado de . Haviam lutado e treinado juntos como gladiadores, eras passadas, e não se reconheciam como irmãos antes. Depois de alguns contatos com ainda fiéis escravos no Inferno, por intermeio de Samael, sem conhecimento de sua mãe, o primogênito pedira ajuda a um de seus melhores soldados, um de seus melhores treinadores. De fato, não somente para ele, mas de maior importância para a proteção de e Alexander. As possessões tornaram-se mais espaçadas e, conforme o tempo, diminuíram a quase zero. Conforme o feto crescia, suas atitudes humanas se tornavam mais proeminentes que as de Anticristo. sempre pensava em manter na cabeça que, dentro dela, ele seria um bebê normal — embora as possessões, os surtos de amnésia e os assassinatos, que ocorreram em alguma frequência, em determinada semana, ela preferiu não perder o controle por uma segunda vez.
Durante um mês, perdera a memória três vezes.
Na primeira, havia acordado em um hospital psiquiátrico, na ala da cozinha, encolhida em um armário. Estava nua e suas mãos estavam sujas de sangue, sem que ela soubesse de quem pertencia. Olhou à sua volta e não percebeu nada que lhe trouxesse à memória qualquer motivo que a trouxe até aquele lugar. Ela se levantou lentamente, apoiando-se nas prateleiras de metal do armário para obter estabilidade, já que sentia as pernas extremamente bambas e falhas. Viu-se nua, com arranhões severos em todo o corpo. Podia perceber certo padrão e, conhecendo-se o suficiente, percebera que ela mesma os havia causado — em surtos de raiva, quando não haviam lâminas por perto, ela puxava seus cabelos e se arranhava a fim de que o ódio que sentia se dissipasse pelos vergões que se formavam por cima do pálido da pele. Depois que saiu do armário, percebera uma poça de sangue absurda no chão branco daquela ala. Haviam arcos de sangue arterial pelas paredes brancas, que morriam conforme o coração parava aos poucos de bater. Vísceras e órgãos estavam jogados pelo chão, com mordidas inacabadas, pedaços mal mastigados que foram jogados fora pelo gosto que não agradava. Por impulso, ela quis chorar, mas controlou-se. Evitou olhar para os corpos dos três cadáveres e seguiu pelo corredor com medo de ser vista. Adentrou o banheiro vazio, tomou um banho, vestiu-se e seguiu para fora do hospital, sendo parada apenas uma vez, por um segurança. Ela mentiu, apressou-se e foi embora para casa.
Na segunda vez, estava deitada ao lado de . Estava sem roupa, com a intimidade doendo. Sentia-se cansada e com calor. Ele dormia profundamente, com a boca entreaberta. Era óbvio que haviam feito sexo, mas ela não conseguia acreditar que ele não notara a diferença. Aquela possessão poderia ter sido a menos agressiva, se ela não tivesse erguido o corpo para tomar um banho. Haviam cinco corpos na sala de estar, duas crianças. Estavam com os olhos azuis transparentes, as bocas roxas entreabertas. Tinham as gargantas cortadas em anéis regulares e estavam nuas, sangrando. Os outros três corpos pertenciam a uma mulher, um homem — ela pensou que poderiam ser os pais — e uma adolescente. A menina estava ainda pior que as crianças. Tinha os cabelos longos, cor de caramelo, enrolados em uma trança feita às pressas — havia sangue seco em cada mínima volta; seus olhos de criança estavam esbugalhados, com as pálpebras arrancadas e comidas, os olhos furados com dedos, afundados para dentro do crânio. Haviam cortes em seu supercílio e lábio, indicando que ela havia sido espancada. Seu corpo estava cheio de vergões de unhas, mordidas profundas, hematomas de socos fortes. Havia uma costela quebrada, com a fratura exposta, ainda pingando sangue. A intimidade estava exposta, vermelha e sangrando. Seus pulsos estavam dilacerados, mostrando-se comidos, estirados para os lados do corpo ao lado das pernas abertas. Os lábios entreabertos mostravam a saliva seca de uma convulsão, talvez por ter a cabeça martelada contra o chão repetidas vezes. Alguém havia mordido seu indicador e o comido, além de ter quebrado todos os demais dedos. Ela havia sido torturada, além de morta. Algum deles queria que ela tivesse a pior experiência de sua vida. remexeu-se ao seu lado e despertou. Quando indagou sobre o ocorrido, ele apenas sorriu e disse que fora uma noite extremamente agradável.
A terceira vez ocorrera há duas semanas. Ela acordou na banheira do apartamento. Não havia nenhum morto e ela não havia sonhado com nada, mas não se lembrava do que o dia havia carregado, de como havia sido o treino, de como a havia olhado. Estava deitada, com a barriga exposta e os cabelos molhados, olhando diretamente para a parede à sua frente, sem nem piscar; seus lábios estavam fechados e sua respiração era bastante tranquila. Embora não parecesse, aquela fora a possessão que mais a assustou, pois a trouxe de volta os sentimentos de confusão e completa perda de controle e sentido de quando seu corpo não pertencia a ela, e sim a um demônio, a uma doença. Sentia-se fraca e estúpida, perdida em suas próprias confusões. Olhou para o lado, encarando o reflexo no espelho. Esticou-se um pouco mais, pegando a calça jeans, e tateou o bolso traseiro em busca do celular. 3:45h. Ela respirou fundo e afundou-se um pouco mais na banheira, escondendo os lábios. Ali, disse que tomaria as rédeas da própria vida novamente e tornaria a controlar tudo à sua volta. Não deixaria que suas emoções prevalecesse em sua vida, deixando-a completamente vulnerável, tosca e inútil. Seria a mulher forte que a vida impôs que ela fosse. Levantou-se da banheira e deixou a água escorrer, esticando seus cabelos até a altura da lombar. Tirou um pé, depois o outro. Enrolou-se na toalha e saiu, com o pé direito, para a vida que ela havia sido destinada.

Eles estavam parados em seu campo de treinamento, encarando, com os olhos encolhidos pelo sol, um pequeno campo de batalha. Era circular, com terra vermelha. À sua volta, além daquilo, tudo que era via eram gigantescas árvores de eucalipto.
O sol brilhava extremamente forte acima de suas cabeças e não havia sequer uma brisa ou uma nuvem que aliviasse aquele terrível calor. podia sentir o suor brilhando em sua testa, enrugando sua feição, fazendo-a sentir um terrível incômodo no meio do peito, onde ondas de calor se acumulavam em algo insuportável. Seus gigantescos cabelos estavam presos em um coque alto no topo de sua cabeça e vários fios estavam soltos, caídos ao redor do rosto pelo exercício que Baphomet propusera algumas horas antes. Ela estava ofegante e com sede. Ao seu lado, estava sem blusa e o suor escorria de seu pescoço por seu abdome ainda mais rijo. Seus ombros, braços e pernas haviam crescido durante aqueles três meses, tornando-se mais definidos e duros; seus cabelos estavam molhados, esticados para trás, e já batiam na altura de seu queixo, crescidos desde o último corte. A barba por fazer o deixava com uma aparência extremamente máscula.
— Preciso avaliá-los em um combate de verdade — disse Baphomet, com sua voz de trovão.
Entre todos os demônios que conhecia, aquele, com certeza, era o único que ela denominaria como de sua espécie. As feições de Baphomet mostravam-se dignas de um ser que não era natural. Ele tinha o rosto pontiagudo e as sobrancelhas repuxadas para cima como se estivesse com raiva, quase em diagonal; tinha o queixo pontudo e o maxilar triangular, em um rosto com ângulos bastante marcantes; os lábios eram finos, vermelhos, e os olhos, amendoados, de cor extremamente preta; seus cílios eram marcados e espessos, de forma que parecesse que ele usava algo para marcá-los e deixá-los mais escuros. O corpo era digno de um lutador profissional — o que, de fato, ele era —, com ombros extremamente largos e bíceps bem definidos. Entretanto, ele trajava bem em um terno.
Baphomet, diferente de , não havia se distanciado das lutas logo após a era dos gladiadores. Seguiu em batalhas mais modernas, mantendo-se escondido da fama. Como demônio vinculado à extrema luxúria e falta de valores, participava de redes de tráfico de mulheres, de crianças e órgãos.
— Você já me viu lutando de verdade — protestou . Ele não queria lutar com Baphomet, não queria matá-lo ou correr o risco de morrer em treinamento.
— Há milhares de anos — ele o lançou um olhar que transbordava tédio. — Trouxe alguns Sem Rostos.
Os Demônios Sem Rostos eram aqueles que não possuíam forma humana. Eles eram conhecidos por seu comportamento impulsivo e completamente insano. Haveria muitos lutando ao lado de Lúcifer, pois Demônios Sem Rostos eram aqueles que já passaram tempo demais no Inferno sem recorrer passagens pela Terra, perdendo contato com qualquer tipo de ser natural.
sentia-se nervosa. No topo de sua barriga volumosa, sentia seu estômago embrulhar e a ponta dos dedos, formigar. Puxou o ar com força pela boca entreaberta e acompanhou, com o cenho franzido, enquanto abria-se no campo de batalha uma fenda de fogo, com cheiro de enxofre. Era uma passagem para o Inferno.
Dali, com uma rapidez fenomenal, uma mão cinza pela desidratação saltou e se pôs para fora da fenda rochosa, sendo seguida por mais outros pares de três. Os Demônios Sem Rostos eram maiores que os outros e tinham asas secas, sem penas, pontiagudas e compridas como a de morcegos. Seus rostos e corpos eram desprovidos de quaisquer tipos de pelos ou cabelos, de forma que parecessem piores do que poderia se lembrar — porque ela já havia sido caçada por um daqueles.
Os quatro demônios estavam inquietos. Olhavam para os três com fome e ódio, seus rostos franzidos. Os corpos desidratados soltavam fumaça, como se estivessem quentes demais. As peles não brilhavam no sol das duas da tarde. Estavam em posição de ataque, com as garras pretas esticadas e os dentes pontiagudos esticados na direção dos demônios em forma de homem.
Embora seus visíveis sentimentos de ódio, pareciam obedecer ao comando do demônio mais novo.
— Ela quem vai lutar primeiro.
gelou. Arregalou os olhos e os desviou do corpo nojento dos demônios para o assustador de Baphomet. Ela não se sentia preparada para tal batalha. não esboçou qualquer emoção que fosse. Ficou parado com as mãos em punhos, olhando para frente.
— Será uma luta corpórea, de duração estimada entre cinco e sete minutos; mais que isso, outros a atacarão e você provavelmente será derrotada. Ponha-se em posição que escolherei seu adversário.
Ela sabia que não poderia pestanejar. Era ridículo perceber que estaria, daqui a alguns minutos, lutando com um demônio, grávida de sete meses. Mesmo com seus diários treinos, ela não se sentia confiante. Sentia que iria morrer.
Em silêncio, escutando apenas as batidas eufóricas de seu coração humano, ela caminhou lentamente até o centro do campo de batalha, passando ao lado dos Demônios Sem Rostos, sem olhá-los. Sentia medo e sabia que eles pressentiam aquilo, se alimentando e fortalecendo. Ela haveria de se recompor o mais rápido que conseguisse, embora não tivesse forças para pensar em algo senão seu corpo sendo dilacerado por um daqueles monstros. Olhando para seus próprios pés desnudos, ela parou e tentou acalmar sua respiração extremamente ofegante. Seu coração fazia seu corpo tremer em expectativa, começando a liberar adrenalina.
Baphomet caminhou com extrema leveza até os demônios. Embora ele medisse mais de 1,90m, os demônios eram bem mais altos e largos que ele. Ele esticou seu dedo em direção a um deles, que bateu as asas e sumiu em meio às árvores.
— A batalha começou. Você tem sete minutos para matá-lo. Use as técnicas de batalha que estamos trabalhando. Se você não o matar, ele o fará.
sentiu o coração bater ainda mais forte contra o peito. Olhou para o céu extremamente claro e não viu nenhum vulto acinzentado, nenhum mínimo movimento de folhas ou barulho que pudesse informar onde o demônio estava. Seus pés estavam tremendo e o medo fazia seu peito queimar. Olhou rápido para , que tinha os olhos concentrados nos movimentos frágeis e débeis que ela fazia. Ele rolou os olhos e negou a cabeça, desaprovando seu medo — ele também podia farejá-lo.
Com tamanha velocidade, um grito estridente e assustador subiu por cima de sua cabeça e garras estavam fincadas em seus ombros. Ela olhou para cima, encarando o rosto extremamente apavorante do demônio. Sentiu pavor, soltando um grito.
— Reaja! — urrou .
Pássaros voaram para se esconder. Não haviam animais por perto.
não sabia o que fazer. Todos os meses de treinamento haviam dissipado de sua cabeça no momento que soubera que a luta havia começado.
O demônio bateu suas asas despenadas para o céu turquesa e sacudiu os ombros de , a fim de quebrá-los. Ela sentiu a dor e a queimação do veneno de suas garras.
Por um segundo, quando seus pés já não mais tocavam o chão, ela sentiu ódio. Sentiu ódio por sua humanidade e sua falta de controle, lembrando-se de sua última possessão e da promessa que havia feito para si mesma.
Respirando fundo, arregalou os olhos e impulsionou o corpo em um balanço, sentindo dor nos ombros ao fazê-lo. Primeiro, o movimento não foi suficiente para que ela conseguisse posicionar as pernas em torno da cintura do demônio, então fez com mais força, indo com as pernas mais para trás. Agarrou-se com força, tendo estabilidade o suficiente para tentar livrar-se das garras em seus ombros. Esticou o braço para cima, agarrando uma das asas; fincou as unhas em seu tendão, puxando-a para baixo com toda força que conseguiu. O demônio desestabilizou, virando um pouco o corpo para a esquerda. Ele esticou o pescoço para baixo e tentou morder o antebraço de , mas ela o puxou. Logo que ele recolheu o rosto, ela fez novamente, com ainda mais força, usando a outra mão. Desta vez, fora capaz de abrir um pequeno buraco com as unhas. O demônio sem rosto uivou de dor, tentando abocanhá-la novamente. Ela enfiou os dedos naquele pequeno buraco e o rasgou para as laterais, sentindo as garras em seus ombros diminuírem a pressão até que se soltassem, sentindo também o demônio desestabilizar ainda mais, até que começasse a cair. Durante a queda, ela se enroscou nele com mais força, guiando-se para suas costas com a viscosidade de uma cobra. Segurou as extremidades de sua mandíbula e as puxou para sua esquerda, a fim que quebrar-lhe o pescoço. O demônio a olhou nos olhos e abriu a boca, esticando a língua áspera, tocando-a no pulso de . Enrolou-se ali como um inseto, puxando-a com tamanha força para seus dentes de felino. Bastou apenas uma mordida para que ela sentisse todo o veneno passeando por seu corpo, ardendo cada mínimo músculo. O baque de seus corpos no chão fez com que ela batesse a nuca, fazendo-a quicar. O demônio logo se recolheu, encolhendo-se no canto do campo de batalha. Recorreu à asa rasgada como um animal que averigua um ferimento, sem compreender muito bem de onde vinha tanta dor.
— Três minutos! — gritou Baphomet.
O demônio encarou com o rosto ainda mais franzido de ódio, enquanto ela tentava se recuperar da queda. Levantando-se cambaleante, ela levou rapidamente o pulso rasgado em direção aos lábios e sugou o veneno, cuspindo-o no chão. Com os lábios ensanguentados, ela encarou o demônio com o mesmo ódio.
— Venha até mim, seu merda.
O demônio correu com as costas curvadas em direção a ela, que soltou um urro enquanto desvencilhava o corpo e pulava em cima de suas asas, agarrando-as pelas bases. Puxou-as com toda a força que continha em seu corpo, sentindo o ventre formigar.
— Não quero sua ajuda, Alexander! — ela gritou, fazendo força.
O demônio tinha as mãos esticadas para trás e tentava inutilmente puxar de suas costas, mas ela desvencilhava de suas garras. O máximo que ele conseguira fora desfazer seu coque, rasgar sua blusa e abrir um rasgo pouco profundo em suas costas, com a garra do indicador.
soltou um grito quando fez ainda mais força nos braços, percebendo que as asas começavam a soltar. O seu grito de força e ódio se entrelaçou ao grito de dor do demônio, que começava a se debater e correr a fim de tirá-la de cima do corpo. Ele se jogou de lado no chão, começando a bater a lateral do corpo, para tirá-la dali. sentia dor, mas não desistiria de arrancar as asas daquele filho da puta. Depois de mais alguns puxões, as asas se desfizeram em dois gigantescos pedaços cinzas e desidratados. Ela soltou um ofego extremamente alto e respirou com dificuldade, rolando para fora das costas do demônio. Largou os dois órgãos no chão, com os cabelos no rosto e a blusa no chão. Seu sangue amaldiçoado pingava por suas costas, mas ela não sentia o ardor de seus cortes.
O demônio se debatia como um animal que agonizava.
As asas são o ponto crucial de qualquer demônio — arranque-as, e será como arrancar as pernas ou os braços de um humano. Seu sangue sairá até que seu coração pare de bater.
Ela caminhou lentamente até ele e segurou-o pelo pescoço, colocando o joelho em seu tronco. O demônio tentou puxar novamente seu pulso para mordê-lo e matá-la, mas deu-lhe um soco no supercílio, fazendo-o perder parte da lucidez, ficando tonto. Depois, virou seu pescoço e o quebrou, finalizando-o.
Levantou-se ofegante, sentindo o corpo inteiro palpitar pela expectativa e o excesso de adrenalina. Arrumou os cabelos para trás das orelhas, encarando o demônio morto. Depois, olhou diretamente para os olhos negros de Baphomet, que não tinha nenhuma expressão no rosto angular.
Eles ficaram se entreolhando por um minuto, em completo silêncio, apenas o som pesado da respiração ofegante dela.
— E então? — ela disse em meio aos ofegos. — Como fui?
— Como você espera enfrentar um exército de demônios com esse corte nas costas? — ele apontou sutilmente para o rasgo em sua pele. Ela não se virou para olhá-lo. — Posso sentir o cheiro de sua maldição há quilômetros. Você será como uma carne crua em meio a milhões de carnívoros — ele negou com a cabeça. — Disse para ter cuidado com os machucados. Este cara nem é um dos mais fodidos que você vai encontrar na armada de Lúcifer; ele é quase como um bebê que acabou de aprender a andar.
— Bem, não pude evitar — tentou se defender, começando a sentir raiva. Tinha derrotado seu primeiro demônio e ele estava reclamando?
— Não pôde? — ele riu com ironia. — Aquele berrinho de humano idiota também foi incontrolável? — ele encarou-a fundo nos olhos, de maneira invasiva. sentiu-se nua e ridícula. — Você o derrotou — prosseguiu —, mas isso não a faz vitoriosa. Sua batalha foi patética. Precisa melhorar, principalmente os reflexos. A força está moderada.
Ela soltou um suspiro derrotado, curvando as costas. Ali, sentiu a primeira dor do corte. Olhou para o pulso dilacerado e sentiu ainda mais raiva. Teria que limpá-lo sozinha. Rolou os olhos e seguiu para sua extrema direita, onde, em meio à floresta de eucaliptos, havia uma pequena instalação com primeiros socorros.
, posicione-se. Espero que sua batalha não seja tão ridícula.
Ela seguiu em linha reta em meio às árvores com ódio de Baphomet. Sabia que suas críticas deveriam ser construtivas, mas só sentia raiva dele. Aquele calor infernal não contribuía em nada. Agora que toda a euforia da batalha havia passado, ela estava sentindo ainda mais calor. O sangue que já havia parado de escorrer por suas costas tinha secado, de forma a ficar grudento e de aspecto um pouco nojento. Os cabelos estavam pregando naquela ferida, fazendo-a sentir ainda mais agonia. Seguiu descalça até a instalação, que ficava a quase quarenta metros do campo de batalha. Quando olhou para trás, pode ter o vislumbre das asas de sobrevoando sua cabeça, com o demônio seguindo-o logo atrás.
Ela rolou os olhos e empurrou a porta da instalação com ódio.
Normalmente, seguiria pelo estreito cômodo até a mesa de madeira e pegaria, bufando, a caixa que continha o álcool e as bolinhas de algodão, com algumas gazes para enfaixar, e faria um curativo extremamente mal feito, já que não teria ajuda. Mas, naquele dia, algo a fez parar — a presença de outro demônio.
Ele era alto e robusto, seus cabelos eram ondulados, castanhos escuros, e os fios estavam bagunçados, crescidos alguns centímetros acima da cabeça, mas que ainda se mostravam respeitosos e dignos de um homem de sua idade — a idade que aparentava ter, lá para a casa dos trinta. Sua pele era parda, um branco pouco bronzeado, com um viço natural de demônio. Quando ele se virou, o coração de parou de bater por alguns segundos: ela nunca se esqueceria daqueles olhos. Eram grandes e acinzentados, com uma ou duas auréolas cor-de-mel. Seus lábios não eram tão fartos, ainda assim grossos, de tom alaranjado, mostrando um suave sorriso felino ao vê-la tão desnorteada.

Aquele era Larkin. O seu Larkin. O homem que conquistara sua confiança, que a ajudara a sobreviver à sua fuga. O Diabo.
— O que você está fazendo aqui? — sua voz soara tão firme que ela mal conseguiu acreditar que realmente tivesse saído dela. A ponta de todos os seus dedos estavam trêmulas.
— Presumo que não tenha sentido minha falta, na manhã seguinte à minha visita — ele manteve o mesmo tom que usava quando a protegia de Lilith, quando buscava conquistar sua confiança para poder ter dela o que lhe interessava: seu Anticristo.
Ela preferiu não responder sua pergunta. Em vez disso, apenas puxou o ar com força para os pulmões, negando com a cabeça, mostrando-se impaciente. Seguiu para a mesa e pegou o kit de primeiros socorros, retirando dali o álcool e as bolinhas de algodão. Despejou o líquido ardente em seu pulso e puxou o ar entredentes para controlar a dor. Aquilo a fez recordar-se de quando praticava automutilação. Limpou o excesso com o algodão, limpando também o sangue seco.
— Deixe-me ajudá-la com isto — disse ele, pegando o algodão da mão dela.
O toque entre suas peles a fez ficar tensa, com as costas retas — o movimento repentino repuxou ainda mais o corte, fazendo-o arder e sangrar. Ele ficava ainda mais bronzeado quando seus longos dedos contornavam o pulso pálido — rosado, pelo sangue — dela.
Não demorou muito para que ele terminasse ambos os curativos. Quando finalizou a bandagem do corte das costas, soltou um suspiro e colocou as grandes mãos nos ombros pálidos e sujos dela, virando-a de fronte a ele. Seus olhos estabeleceram uma estranha e forte conexão. sentia-se estranhamente desconfortável na presença de Larkin, ou Lúcifer, porque sabia ao que sua imagem era vinculada. Ela não conseguia mais olhá-lo da forma que olhava há meses, como mais um demônio em meio de tantos outros — não que fosse reconfortante pensar que o mal encarnado em forma de humano está posto bem à sua frente, mas, ao menos, não era o pior dentre todos eles, com a reputação de mais macabro e perverso.
Encarando aqueles olhos gentis, perguntou-se quantas vezes ele usou seu poder de persuasão sob ela, manipulando-a sem que ao menos tivesse chance de perceber. Por um segundo, sentiu algum indício de raiva, algo que fez seu coração palpitar com certa repulsa, então Larkin sorriu.
— Pequena alma, gostaria de mostrar-te algo.
— Não me chame desta forma — disse fria, olhando-o como uma criança birrenta. Larkin alargou seu sorriso de gato que, embora irônico, continha algo que a fazia recordar-se daquele velho amigo, algo meigo e acolhedor.
Ela se virou para a floresta, onde uma crosta havia se formado no chão. Rochas sinuosas, retorcidas e queimadas, pretas, desciam em espirais em um corredor de escadas que exalava uma fina fumaça preta; ao fundo, havia uma coloração alaranjada que se assemelhava à luz das lareiras da mansão de Lilith. Não havia nenhum som, apenas o estranho silêncio de um porão.
Por algum tempo, ela hesitou. Seus pés grudaram-se ao chão e só quando sentiu a mão de Larkin preenchendo seu bíceps que tornou a realidade, dando um passo em direção à entrada do Inferno.
Ao pisar o pé desnudo no primeiro degrau, sentiu o vapor quente que aquelas rochas exalavam. Foram adentrando àquele corredor que descia regularmente e, ao chegarem em sua metade, a entrada se fechou — as rochas que se abriram, tornaram a se unir em uma pontiaguda e ameaçadora parede.
Caminharam em silêncio, iluminados apenas pela penumbra avermelhada que vinha do fundo daquela escadaria, e, aos poucos, pôde começar a sentir cheiro de enxofre, escutando também o blindar de espadar e os urros de demônios que lutavam — um arrepio cortou sua espinha, fazendo o curativo arder. Larkin pousou a mão no topo de sua lombar, guiando-a para a direita, em outro corredor. Por aquele, no final, já era possível visualizar uma espécie de camarote — circular e côncavo, iluminado pelo calor insuportável de lava, o teto era como um grande lustre de vidro. As rochas contornavam toda aquela área de treinamento, dando visão privilegiada, por todos os ângulos, para quem quisesse assistir àqueles golpes extremamente precisos.
Andaram mais algum par de passos e já era possível visualizar seus demônios guerreiros. Estavam trajando armaduras de combate, pretas, que cobriam seus rostos. Os chifres eram expostos e, quanto maiores, mais alto era o patamar do demônio dentro do exército. Usavam espadas e escudos, defendendo-se com tamanha destreza que mais pareciam gatos. Não estavam treinando, naquele momento, e sim em batalha. Estavam espalhados pelo campo rochoso, com resquícios de poeira acinzentada, e urravam, golpeando uns aos outros. Abaixavam, pulavam e expunham as asas com a mesma velocidade que as recolhiam ou golpeavam os pescoços de seus próprios companheiros. Enfiavam as espadas em alguma brecha de suas armaduras e o sangue demoníaco era perfeitamente visível aos olhos de .
Somente os mais adeptos poderiam lutar ao lado de Lúcifer.
Mais de quinhentos se golpeavam naquele momento. Os rabos esticados como adagas afiadas golpeavam os de trás quando as cabeças enfiavam os chifres nos abdomes e erguiam as pobre criaturas menos prevalecidas para o alto, como touros enfurecidos, jogando-os em cima de outrem. Quando um era morto, logo recolhiam seu corpo e tacavam numa grande chama de cadáveres de demônio, cuja uma gigantesca fumaça preta sumia ao entrar em contato com a lava do teto — suas almas vagavam alguns segundos, então possuíam outro corpo recém chegado, de algum condenado, algum corpo roubado da Terra — ele esperava seu momento de entrar e lutar novamente, mas sem os privilégios de um demônio.
Aquele cujos corpos pertenciam à humanos possuídos ficariam na cavalaria de frente, como peões num xadrez — seriam atacados e mortos primeiro. Depois, os Sem Rostos, que atacariam desenfreadamente qualquer um que não usasse o uniforme da armada de Lúcifer. Em seguida, viriam os com experiência mediana, que sofreram poucos golpes de misericórdia. Por fim, os mais experientes, que ou não sofreram nenhum golpe, ou menos de dois.
Lilith não teria chance contra o exército de Larkin, muito menos e Baphomet com aquele treinamento ridículo com demônios Sem Rosto.
— Pequena alma, eu não queria soar negativo em relação ao treinamento que meu filho está tendo com você, pois vejo resultado — ele se virou para ela, que somente então acordou do transe daquele massacre —, mas sinto informar-lhe que deveria, por inteligência, unir-se a mim. O Anticristo já me pertence e...
— Não — ela o cortou, adquirindo um tom firme. — Ela não te pertence.
Larkin embaraçou-se. Abriu um sorriso sem mostrar os dentes e, lentamente, os exibiu, soltando uma risada nasalada.
— Perdoa-me, acho que não entendi direito.
— Sim, você entendeu muito bem. O Anticristo não te pertence e você sabe muito bem disso — ele puxou o ar com força, empinando sutilmente o queixo. Ainda com aquele mesmo sorriso frígido, perguntou:
— E por que diz isso, pequena alma?
— Porque não fizemos um acordo por escrito, palavras não valem nada quando sob efeito de persuasão de um demônio com tanta experiência.
Ele sorriu abertamente, quase como se feliz. Molhou os lábios e olhou novamente para seus lacaios sendo perfurados, suas almas bailando pelo teto de lava, seus corpos sendo carbonizados até total desfiguração.
— Vejo que andou conversando com alguém, Giansanti.
— Preferi me informar sobre assuntos dos quais estou envolvida. Precisaríamos escrever tal acordo com meu sangue, ao contrário, porque, bem, você é o Diabo, e então assiná-lo. Somente assim ele pertenceria a você. Como não fizemos, ele continua sendo meu — ela quase abriu um sorriso vitorioso, mas o dele a incomodava a ponto de não permitir tal luxo.
— Posso perguntar-lhe com quem se informou? — ele inclinou a cabeça e levantou sugestivamente uma das sobrancelhas.
— Não vejo porque ditar nomes.
— Certo, compreendo — ele assentiu e abaixou a cabeça, tornando a levantá-la para admirar seu exército. — De qualquer forma, gostaria que visse o modo como treinamos, o modo como será exterminada caso prefira estar sozinha nessa batalha, como um elo perdido entre dois antepassados. Sabe muito bem que depois do nascimento de seu Anticristo, sua utilidade para aqueles demônios não será além de alimentícia, como fonte de poder. Em meu exército, seu lugar é garantido como guerreira — ela o encarou nos olhos. — Posso capacitá-la de forma realmente útil para essa batalha, de forma que até mesmo você possa matar Lilith — ela puxou o ar com a ideia daquelas palavras. Larkin percebeu e sorriu. — Sei que a morte da primeira fêmea lhe interessa.
— Não poderia abandonar — murmurou.
— Ah, meu primogênito... Bem, eu o traria para cá também. Basta convencê-lo que é o certo a se fazer. Com o Anticristo, seu sangue e ele, teríamos a pele de Lilith como nosso tapete central.
A ideia a repugnou, embora parecesse estranhamente tentadora.
— O que você faria comigo? — ela molhou os lábios e cruzou os braços, encarando novamente os treinos.
Naquele momento, um outro demônio — muito maior, robusto e com chifres enormes, usando apenas uma calça de couro preto e um chicote — chegou até o meio do salão, dando um grito de ordem para que os demais parassem com os movimentos com as espadas. No mesmo segundo, todos se quietaram e largaram as armas. Ele passou a fazer uma vistoria nos machucados dos que treinavam, anotando seus nomes e suas posições. Depois, com outro urro, todos começaram a lutar em ar, só com as garras e dentes. Ficaram tão próximos de onde e Larkin estava que ela podia sentir a baforada de suas asas bater bem diante de seu rosto.
— Eu a capacitaria para lutar ao lado dos terrestres — disse de forma óbvia. — Eu mesmo faria isso, com minhas técnicas de luta — ela tornou a olhá-lo, franzindo ainda mais o cenho.
— E faria o mesmo com ?
A verdade era que ela não conseguia imaginá-lo no meio daqueles demônios que se abocanhavam, arrancando pedaços uns dos outros sem mínima empatia. Não gostava de imaginá-lo sem um membro, ou com o rosto arrancado por uma daquelas bestas.
Larkin deu de ombros.
— Eu poderia fazê-lo.
— E onde meu sangue entra nessa história?
— Bem... — ele suspirou. — Seria de muito agrado caso você pudesse doar algum litro para nossa armada. Por ser tão puro, tem maior vantagem sob os demais amaldiçoados. Se Lilith tiver a mesma ideia que eu, de usar um sangue amaldiçoado para gerar maior poder aos seus guerreiros, mesmo assim teríamos vantagem, por você ser quem é.
Ela admirou sua sinceridade, assentindo apenas uma vez.
— Isso não os faria confundir o foco e vir para cima de mim, para conseguir mais sangue?
— Lhe garanto que não — ele fora bastante firme na reposta. — Você estará misturada em meio a outros guerreiros e seu cheiro estará difuso em meio a eles. Caso se corte, como de certo ocorrerá, outro esconderá seu rastro. Eu garantirei proteção a você e ao Anticristo.
— Parece bastante tentador — admitiu. — Mas não sei se seu filho concordará com essa proposta.
Larkin sorriu.
— Garanto-lhe que você conseguirá fazê-lo aderir-se a esta ideia.

Eles seguiram pelo mesmo caminho de antes, passando pelas mesmas rochas sinuosas. Durante todo o caminho, ele manteve a mão em sua lombar, guiando-a por trás de seu corpo. Ao chegarem na passagem pontiaguda, ele fez um sinal e ela se abriu. não soube como agradecer aos céus por aquela deliciosa brisa gelada que moldou-se ao seu corpo extremamente quente e úmido do calor daquele centro de treinamento no Inferno. Ela não conseguiria suportar aquela lava.
Larkin deixou-a novamente na casinha de repouso no meio da floresta. Quando estava preparado para voltar, arqueou o indicador e virou-se com um papel escrito em vermelho. Tinha cheiro de ferrugem. sentiu o curativo do pulso esquentar e, quando o olhou, percebeu-o encharcado de sangue.
— Só para garantir — ele riu; um som amargo e, finalmente, assustador.
O contrato não dizia nada além do que tinham combinado.
Em poucas palavras, Larkin propunha que se uniria a ele na batalha contra Lilith, garantindo que o Anticristo também estaria a seu favor. Garantia também que a capacitaria para a batalha e propunha proteção para a mesma durante a luta. Em um parágrafo, relembrava-a da “doação” de sangue para a frota de guerreiros — um litro e meio a cada dois dias de batalha, tempo suficiente para o sangue sair da circulação dos demônios. Na última linha, seu nome e um espaço para assinar.
Ele lhe entregou uma pena com a ponta suja em vermelho.
segurou-a e hesitou, relendo o contrato, procurando erros ou contradições nas entrelinhas. Nada viu.
Por fim, respirou fundo e inclinou-se sobre o papel e assinou.
Burwell Giansanti Colluzi.


40.

'Cause you and I... We’re born to die.

Mais cedo naquela semana, antes que os pássaros acordassem, os olhos de Richard se ergueram para a escuridão. Ele estava com as costas encurvadas e os dedos embaralhados no cabelo sem cuidado, já quase que completamente grisalho. Com as unhas compridas, com pontas quebradas do descuido, ele arranhou as têmporas e enojou o sangue vermelho-cereja que saíra dali.
Aquela não devia ser sua cor.
Amaldiçoava-se todos os dias por ter permitido que a Rainha do Submundo arrancasse sua alma de demônio, incapacitando-o de participar da batalha e de seguir com o resto de sua imortalidade. Agora não passava de uma carne podre que a cada dia que se passava, se decompunha cada vez mais. Naquele dia, desejava poder voltar ao tempo e deixar-se abater, como um animal que implora pela derrota, que esperar a Morte chegar para acolher seu corpo debilitado.
Ele estava tão abandonado quanto àquela mansão comida por roedores e insetos dos mais asquerosos. Sentia-se cada vez mais patético e inútil.
Ergueu-se do chão do porão, virando sutilmente o pescoço para trás. Não via nada além de sua sombra. Molhou os lábios extremamente secos e seguiu para a sala. Encarou a lareira há muito não utilizada e, por um segundo, imaginou-se em meio ao fogo, lutando ao lado de seu Rei, Lúcifer, aquele cuja vingança haveria de ser conseguida.
Lilith não merecia sua alma, não merecia a existência. Tudo que circulava em suas mortais veias era ódio cultivado, dia pós dia, pela primeira fêmea de Adão. Ele faria qualquer coisa para que Lúcifer vencesse.
Com suas poucas forças, ergueu as mãos para os céus e sussurrou as palavras que tão bem conhecia. Fechou os olhos, respirando fundo.
Algo na lareira se remexeu. Uma pequena fagulha foi se erguendo pelas paredes rochosas, quebrando-a em uma linha torta. Richard franziu o cenho e proferiu o ritual mais alto, de forma que sua voz ecoasse nas paredes abandonadas daquela gigantesca mansão. A fagulha foi se transformando em fogo, até que uma parede em chamas houvesse tomado o lugar da de concreto. O calor aquecia seu corpo desalmado, fazendo-o abrir os olhos e sorrir de forma macabra.
Em tantos dias, aquela era a primeira vez que sentia algo se mover em seu peito — o espírito da vingança.
Deu um passo em direção às chamas, sentindo o corpo aquecer e os olhos arderem. Esticou uma das mãos com unhas compridas quebradas sujas e, enfim, tocou o fogo. Não queimou, mas o levou para outra dimensão. Seu corpo foi sendo tomado pelo fogo, queimando suas roupas rasgadas e sujas, sugando-o direto para o Inferno.
Não haveria lugar mais magnífico que aquele.
Richard fora puxado para uma área que nunca antes fora no Mundo Subterrâneo — um local isolado, com altas rochas em colunas que se contorciam pelo fogo que corria por suas entranhas, fazendo um delicioso barulho que se assemelhava a fagulhas e chicotes. Por detrás daquelas rochas, haveriam Sem Rostos devorando almas de humanos condenados. Acima de sua cabeça, a boca do vulcão se contorcia e, se reparasse bem, poderia enxergar a fumaça preta saindo em direção ao céu ainda pálido pela hora da manhã. Abaixo de seus pés descalços e sujos, havia um terreno infértil, de terra seca e quebrada pelo calor. Seu corpo tremia de excitação por estar de volta ao seu mundo, o lugar onde sua antiga alma pertencia.
— Oh, meu Lorde, meu Rei, meu Soberano Satã, receba meu corpo como prova de minha gratidão por teres me recebido em sua morada. Aceite meu corpo como seu, e o tome para benefício próprio. Qualquer que seja teu desejo, eu o aceitarei, eu o aclamarei, e serei eternamente grato por tua extrema bondade.
Ele fechou seus olhos e deixou os braços relaxados, erguendo o pescoço. Deixou que o calor do Inferno penetrasse seu corpo oco e conseguiu sentir a presença de seu Deus. Uma sombra negra disforme se aproximava de seu corpo pelo chão, mais quente que o próprio ambiente. Ergueu-se ainda sem forma e o rodeou, penetrando seu corpo pelos poros sujos de sua pele rachada.
Richard abriu a boca e os olhos quando a alma do Diabo estava dentro de seu corpo. Seus olhos adquiriram o tom azul celeste e seus dentes ficaram mais afiados. Ele tombou o pescoço para o lado, quase encostando a orelha no ombro, e franziu os lábios, em repulsa.
Um corpo de demônio sem alma — sussurrou com a voz extremamente grossa, que raspava nas paredes da garganta. — Como posso usar-te, inútil?
Richard encolheu as sobrancelhas, girando a cabeça para trás. Levou as unhas em direção à lateral do pescoço, unhando-o com força suficiente para as lascas da unha se arrepiarem, quebradas, para cima. O sangue vermelho escorreu pela pele suja.
— Oh, meu Satã, diga-me, por favor, como poderei servir-te. Imploro-te, imploro-te! — ele afundou com mais força as unhas no pescoço, perfurando a pele.
És fraco!
Lúcifer jogou o corpo do demônio desalmado no chão, tombando-o o rosto contra o piso seco. O sangue coloria o amarelo-queimado das envergaduras do chão.
— Conheço-a! — gritou Richard. Sua voz ecoou pelas paredes do Inferno. — Conheço-a, sei onde está! Sei o paradeiro da amaldiçoada e seu feto que será Tua glória! Sou útil, Satã, usa-me!
Lúcifer encurvou as costas de Richard e fez força para parti-la. Estava tão encurvado que o ângulo era grotesco. Seus ossos estalaram e, mesmo sem condições de parar, ele urrou de dor.
Conhece o paradeiro da Víbora Traiçoeira? Não estás mentindo para mim, servo?
— Não poderia, meu Rei! — gritou Richard.
Ele torceu o pescoço apenas uma vez, também em ângulos grotescos, e a sombra disforme de Lúcifer foi exalando por seus poros, deixando seu corpo. Quando exposta por completo, o demônio caiu ao chão, respirando com dificuldade. Os olhos já voltavam para a cor oliva habitual, perfeitos para contemplar a aparição do Diabo bem em frente a seu corpo.
Era magnífico.
— Diga-me onde ela está — ordenou Lúcifer.
— Itália, meu senhor. Está treinando seu exército em vilarejos próximos à Veneza, se alimentando de virgens e esperando o momento que Teu Anticristo se por ao mundo para enfim realizar o Ritual das Almas. Ela conhece teus planos, meu Rei, e usará todas as armas possíveis para conquistar o que és Teu — Lúcifer encolheu os olhos de felino e esticou a cabeça ligeiramente para trás.
— Como sabe destes detalhes, servo?
— Estava como escravo em tua morada, logo depois de ter-me arrancado a alma.
— E por que a primeira fêmea fez isto contigo, servo?
— Fui irracional, Satã.
Lúcifer respirou fundo, acreditando nas palavras daquele desalmado. Para ele, aquela era uma cena ridícula. Um demônio implorando por qualquer mínimo posto em seu exército, colocando-se na ridícula posição de joelhos, quase beijando os pés nus do Diabo.
Ele gostava daquela miséria. Sorriu sutilmente, um leve levantar de lábios.
— Não posso usar-te como guerreiro. Não és tão útil quanto parece, desalmado — e virou-se. Richard ergueu a mão.
— Espere! — Lúcifer sorriu de costas. — Deve haver algo que eu possa fazer para ser-lhe útil, meu senhor. Possua meu corpo, usa meu conhecimento. Farei qualquer coisa para servir-lhe.
— Não há utilidade em seu corpo — virou-se para o miserável. — Não há utilidade em sua mente.
— Por favor, Satã, tira-me esta agonia.
— Posso matar-lhe, se é o que desejas.
— Quero matar a ela, quero que sofra. Deixa-me ser útil com a amaldiçoada. Conheço-a, afeiçoo tua companhia. Permita-lhe qualquer contato, eu a encontrarei ou a farei ir até mim.
Lúcifer ponderou por um segundo, apenas pensando. Por fim, abaixou a cabeça e olhou diretamente nos olhos cheios de ira de Richard, vendo uma pequena fagulha de extrema sinceridade.
— Posso usar-te em uma pequena missão, mas de suma importância. É extremamente necessário que seja capacitado para realizá-la, senão eu, em meu corpo, encontrarei a fêmea para dizer-lhe teu paradeiro, para que a própria maldita seja responsável por tua patética morte.
— Diga, meu Rei, que farei além de meu possível para realizá-la com maio exímio possível.
Lúcifer sorriu.

Mais cedo na manhã do eclipse lunar, assim que terminara sua corrida diária, tomou um merecido banho, demorando-se mais que o normal. Prendeu os cabelos em uma trança solta, que descia até o final de sua lombar e vestiu-se com um vestido rodado, de cor escura que realçava ainda mais sua pele pálida. Desceu as escadas, acenou para o porteiro e, sem hesitar, guiou-se para o outro lado da rua, onde o Camaro de estava estacionado. Acionou as travas de segurança e escorregou a seda pelo couro acinzentado, logo ligando o ar condicionado pelo terrível calor que aquele dia, já tão cedo, exalava. Dirigiu tranquilamente para leste da cidade, afastando-se o máximo que conseguia de todos os prédios, indo a caminho do subúrbio. Ali, seguiu para o norte mais alguns quilômetros, até uma rua de mão única que levava os moradores de Manhattan para a área de Mansões Antigas. Acelerou o carro até estacioná-lo à frente da mansão de seus pesadelos, aquela cuja ela havia jurado nunca mais se aproximar depois de liberta.
Pela primeira vez, hesitou com as mãos no volante, olhando diretamente para a porta escurecida da mansão de Lilith. Estava com um aspecto muito mais assombroso que a última vez que esteve ali, quase seis meses antes. A grama estava irregular e seca e a cor que cobria as paredes, descascada. Algumas janelas estavam abertas, esquecidas pela pressa que os demônios saíram daquele lugar, e o ranger que faziam ao bater da leve brisa que ousava enganar o calor infernal daquela cidade era ainda mais pavoroso que o canto dos corvos pousados nas árvores ao redor da casa, como se esperassem que a Morte voltasse para que pudessem se alimentar com facilidade novamente.
Enfim desligou o carro e abriu a porta. Caminhou com passos firmes até o abandonado jardim, observando, de soslaio, o correr de roedores pelos cantos dos arbustos.
Não fora de se espantar que a porta estivesse aberta. Bastou um leve empurrão para que ela se abrisse completamente.
Era estranho estar ali depois de tanto tempo e ver como aquela linda mansão demoníaca havia se comportado com o passar dos meses. Estava empoeirada, escura e visivelmente abandonada. Em suas lembranças, conseguia ver os demônios do exército de Lilith dançando com seus belíssimos trajes, bem ao centro daquela sala gigantesca, agora habitada por insetos. Havia teias de aranha para todos os lados que ela olhasse.
Seu coração estava comportado. Não batia de forma irregular, tampouco sua respiração havia se alterado. Ela estava chocada com a nostalgia que a preencheu de repente.
Um vulto correu pelo alto das escadas, atraindo seu olhar naquela direção. A silhueta do homem se postou ao centro da escadaria escura, pouco iluminada pela luz que tentava adentrar aquele gigantesco cômodo por cima da poeira que acumulava nos vidros das janelas.
permaneceu parada, com as mãos entrelaçadas no alto de sua volumosa barriga.
Ela precisava de respostas, e sabia que ele poderia ajudá-la. Ele não tinha mais nada a perder.
Richard desceu as escadarias com bastante cautela. Parecia não querer mostrar seu rosto, mantendo-o abaixado durante todos os degraus. Quando postou-se à frente dela, segurou um suspiro de espanto.
Richard estava velho. Havia rugas no canto de seus olhos e no centro de seu cenho; seus lábios, outrora tão atraentes e alaranjados, estavam murchos e sem cor; seu cabelo estava comprido, batendo no queixo, e quase completamente grisalho, ainda com alguns tímidos fios extremamente pretos, ainda bem lisos. Sua pele estava seca e sem cuidado, pálida como a de um idoso doente.
ergueu uma de suas mãos para tocar o rosto daquele demônio. Afagou-o por alguns segundos, até que ele o virasse, constrangido com sua situação.
Se não houvesse agido de forma tão irracional, querendo possuir para seu próprio benefício, sugando todo seu sangue, meses atrás, talvez hoje estaria treinando ao lado de outros demônios, na Itália, pois ainda teria sua alma de ser do submundo. Sem ela, ele estava degenerando como um humano comum. Aparentava ter quase setenta anos e ambos sabiam que ele não viveria mais de cinco.
Richard estava morrendo.
— Agradeço muito por ter aceitado me ajudar — murmurou ela.
— Eu não poderia recusar um pedido seu, Burwell.
Ele abriu um largo sorriso, fazendo o coração de se aquecer. De repente, ela não o via mais como um ser sofrido, mas sim como aquele imponente Richard que a intimidou tanto no primeiro dia que o viu. Aquele com lindos olhos olivas, sorriso imortal, cabelos negros como a mais escura das noites.
Seguiram para a parte de trás da mansão e sentaram-se em cadeiras de madeira empoeiradas. Ela não hesitou em sujar seu vestido, sentou-se e cruzou as pernas, olhando diretamente para os olhos daquele demônio.
— Conte-me o que acredita ser necessário — pediu.
suspirou, então começou a contar. Narrou desde o dia que estava arrumando seu apartamento com Recee Jay até a última possessão de Alexander. Não poupou-o de detalhes, pois queria entender perfeitamente o que estava acontecendo.
Richard, como a maioria dos demônios, foi ensinado sobre a história de Lúcifer, Lilith e . Mas, como também grande parte dos demônios de Lúcifer, ele não acreditava, até ver com os próprios olhos, que aquelas histórias que, desde muito cedo, aprendeu, eram reais.
Assim como as histórias de uma alma roubada para o bem dos pioneiros, havia histórias sobre o Anticristo, mas o verdadeiro, e não o qual acreditavam, antes, ser. Sua mãe, uma poderosa bruxa, o havia contado de eras cujo poderio de Lúcifer não era o mais temível ou macabro — haveria outra criatura, gerada do ventre de uma humana, que seria ainda pior que seu ancestral: ele tomaria a Terra e o Inferno para si, destruindo tudo e todos — seja aliado ou não — que adentrasse em seu caminho. O verdadeiro Anticristo não necessitaria de ajuda em sua conquista, pois seria forte e determinado o suficiente para conseguir o que bem desejasse. Incapaz de reconhecer qualquer tipo de sentimento, a Besta do Ventre Humano poderia facilmente matar sua geradora, caso se mostrasse como uma ameaça. Depois de seis meses desde seu nascimento, o ritual para colocar dentro de sua alma híbrida de humano e demônio a maldição do sangue impuro seria enfim concretizada.
Mas, para ele e muitos outros demônios que também já escutaram aquelas histórias dos lábios de suas mães, eram apenas fictícias imagens de um cérebro criativo, pois o Anticristo não existia. Não existiam relatos no Inferno que um demônio daqueles, mais forte que Lúcifer, estava presente lá ou vagando pela Terra.
Deviam ser apenas histórias.
— Talvez já seja de seu conhecimento que seu corpo, agora, trabalha como o de um animal: seus instintos estão aguçados e você age por eles, sejam éticos para sua criação como humana ou não. O Anticristo libera substâncias em seu corpo que, antes, você não tinha tanto acesso, embora presentes, como a testosterona, o que a faz ficar mais agressiva. Vez em quando essa substância se eleva em níveis absurdos, como, por exemplo, quando você se sente ameaçada. Juntando-se com seus hormônios habituais em determinada situação, seu corpo entra em colapso e você perde consciência, de forma que a outra alma presente em você, ou seja, a do Anticristo, prevaleça nas ações tomadas por seu corpo.
— Mas essas possessões não são mais ocorrentes.
— Você está aprendendo a lidar com isso. Sua alma vai se tornando mais forte na presença de outra, tentando, basicamente, dizer que esse território pertence a ela, e não a outra. O Anticristo, diziam, dentro de você é apenas uma criança normal, que se desenvolve como um bebê humano. Mas, em determinadas situações, como filho de demônio, ele pode, sim, mostrar-se como é — ele parou por um segundo, parecendo pensar. — Mas, me desculpe, sobre isto, não sei muito mais do que já lhe contei. E também não tenho muita certeza sobre o comportamento dele, sendo que parte da alma de é humana. Talvez prevaleça, em alguns momentos, como nele mesmo. Ora mais agressivo, ora mais humano. Talvez haja uma compensação entre a alma humana e a alma de Anticristo dele.
— E sobre Alexander pertencer a Lúcifer? — ela engoliu em seco, lembrando-se de sua promessa. — Não posso entregá-lo, simplesmente, para o Diabo — Richard abriu um daqueles sorrisos que tanto amava.
— Você assinou algum contrato? — ela negou. — Então não é válido. Palavras podem ser induzidas, mal pensadas, guiadas por emoções. Por isso existem contratos tanto no mundo humano quanto no submundo. E haverá de ser feito com seu sangue, para provar que você estava ciente de todo o combinado. Ele não poderá tomar seu filho a não ser que você assine um documento que comprove isto.
assentiu e molhou os lábios, mordendo-os.
Na manhã seguinte da chegada de em seu antigo apartamento, quando Lúcifer disse que iria voltar para ter uma resposta sobre gerar o Anticristo em outro ventre senão o dela, levou-a para outro local, onde Larkin não pudesse encontrá-la com certa facilidade. Ela ainda estava desacordada e fraca pela possessão de Alexander, e, no meio da tarde, quando despertou, ele quis saber exatamente o tipo de acordo que seu pai propôs. Com certa cautela nas palavras, ela explicou. Ele negou com a cabeça e relembrou-a que o Anticristo não poderia se alimentar de outro sangue senão o dela, amaldiçoado puro. Ele não sobreviveria. Larkin sabia disso, mas queria assustá-la e deixá-la vulnerável para um suposto acordo escrito — haveria algum momento que ele deixaria de persuadi-la com palavras e passaria a agir da forma correta, mandando-a assinar um contrato de sangue que dizia que o Anticristo pertenceria a ele, assim que nascesse.
Depois de quase uma semana sem a aparição dele, pensou que Larkin, talvez, houvesse percebido que ela já conhecia as regras de um Pacto.

Já era quase meia-noite quando voltou de sua caçada.
Seus braços e ombros estavam imundos de sangue, assim como parte de seu queixo. Ele havia se lambuzado em sua vítima, praticamente banhando-se de suas entranhas. O sangue endurecia seus cabelos na altura dos ombros, deixando-o com uma aparência macabra, ainda com os dentes expostos.
estava sentada no sofá, encarando a televisão desligada. Seu pensamento estava fixo no Pacto que havia feito com o Diabo.
Ergueu-se com certa dificuldade, apoiando a mão na gigantesca barriga. Seguiu em direção à cozinha, onde o demônio estava. Encarou-o sem blusa, apenas com uma calça jeans já folgada na cintura, deixando evidente que ele apenas a estava usando, sem nada por baixo. Ela molhou os lábios, respirando fundo para tentar encontrar forças para encará-lo nos gélidos olhos de seu pai.
Ele se virou para ela antes do tempo que necessitava para reunir coragem. Ao encará-lo de frente, não conseguiu dizer nada. Sua aparência era grotesca o suficiente, mas, ao mesmo tempo, extremamente máscula, para que ela sentisse coragem de dizer o que havia feito mais cedo naquela tarde.
— Os animas estão afoitos — disse, com a voz grave. — Algo está por vir.
Então passou por ela, como se fosse apenas mais um obstáculo da cozinha, indo em direção ao banheiro, para lavar-se de todo aquele sangue seco.
virou-se nos calcanhares e, ainda segurando a barriga, foi atrás dele.
— Precisamos conversar — disse ela, tentando soar firme.
— Agora não é um bom momento — sua voz estava seca, sem paciência. Ele entrou no banheiro e fez menção de trancar a porta, mas pôs sua mão e o impediu. O olhar que ele direcionou a ela foi extremamente impaciente, até um pouco raivoso. — Eu disse que não é um bom momento.
sabia que seria difícil convencê-lo que o Diabo era o cara bom da história e que ele deveria acreditar em sua versão, mas tentaria até convencê-lo. crescera com uma história, e, de repente, descobriu que era mentira. Embora com raiva, ele não iria juntar-se ao outro lado. Sentia orgulho suficiente para enfrentá-la sozinho e conseguir derrotá-la. Se conseguiria sobreviver era outro parágrafo. Naquele momento, seu ego apenas gritava “mate-a”, depois lidaria com a óbvia perda do corpo daquela humana e, talvez, de seu primogênito.
Quando saiu do banheiro, seus cabelos estavam presos em um rabo-de-cavalo solto, com alguns fios escuros escorrendo-lhe pela face. Estava sem blusa, com uma calça folgada na cintura, mostrando-se ser o único tecido que cobria seu corpo. Estava já com as mãos e os braços limpos e úmidos. Ele passara a tarde lutando com Sem Rostos, na companhia de Baphomet, e parecia irritado, com o cenho franzido e o maxilar travado. Depois que terminou de desembrulhar o fígado, colocou-o em uma tigela e abriu o armário em busca de um copo.
Ele ignorava completamente a presença de sua mulher.
— chamou-o uma vez, com a voz baixa. Ele parou o que estava fazendo, ergueu o queixo até o rosto ficar reto e, lentamente, virou-o para ela. Havia um corte em sua bochecha. — Precisamos conversar.
Ele não proferiu nenhum outro movimento que assentisse, para que ela pudesse começar a falar. Apenas virou-se e voltou a preparar sua comida.
— Eu não quero lutar sozinha nessa batalha. Seria suicídio — ele parou novamente, batendo o pulso no mármore da pia. Fechou os olhos lentamente, rolando-os, e puxou o ar com força para os pulmões. endireitou o corpo frágil e pigarreou, tomando mais coragem. — Fiz um Pacto com Lúcifer onde concordava em lutar ao lado dele, com Alexander, para derrotar Lilith de uma forma inteligente — soltou de uma vez, permanecendo ereta até mesmo quando ele lançou o olhar mais mortal e cheio de ódio que ela já havia visto ser direcionado a ela, por ele.
— Você... O quê?
— Você escutou muito bem o que eu disse. Não acho que seja esperto lutar só com você e Baphomet, com este treinamento ridículo. Seríamos dizimados nos primeiros segundos de guerra. Lúcifer levou-me até o Inferno e mostrou-me o treinamento que está dando aos seus soldados. Seríamos massacrados, assim como os guerreiros de Lilith também serão. Não teríamos lado, morreríamos primeiro. Eu vou lutar do lado dele.
Houve um silêncio absurdo no cômodo. abaixou suavemente a cabeça e pensou naquelas palavras, respirando um pouco descompassado. Enfim, passou a língua no interior da bochecha e levantou o queixo, inclinando-o, soltando uma risada macabra e debochada.
— Você diz que o treinamento é ridículo, que vamos morrer logo nos primeiros segundos, mas quem disse que eu me importo com o que você pensa? — ele a olhou diretamente nos olhos. Ela não respondeu. — Às vezes se esquece de quem sou, — ele negou com a cabeça, cortando o fígado. — Se você foi imbecil o suficiente para acreditar que Lúcifer seria sincero, sinto pena da sua humanidade.
— O que você espera fazer, ? — ela elevou um pouco seu tom de voz, claramente ofendida. — Pretende lutar sozinho, passando pelo exército inteiro de Lilith, para então arrancá-la a cabeça e enfim matá-la? Veja como isto soa irracional. Você, sozinho, contra um milhão de demônios destinados a proteger sua rainha.
— O que te faz acreditar que não sou forte o bastante para derrotá-los?
— Por favor, escute o que está dizendo! Não sei como consegui concordar com essa ideia por tanto tempo...
— Sabe qual é seu problema, ? — ele encolheu os olhos, virando-se completamente para ela. — Você é humana. É facilmente persuadida a acreditar nas palavras do Diabo e é estúpida o suficiente para assinar um Pacto proposto por ele. Desde o começo ele queria seu Anticristo.
— Eu sei disso! — ela franziu o cenho com raiva. — Sei que desde o começo ele quer Alexander, mas não vou lutar sozinha. Você não entende que vai morrer assim que passar pelos peões de Lilith, se conseguir passar por eles?
— Você não entende que estarão ocupados com os outros? Tenho táticas, não sou impulsivo como você.
Naquele momento, ela soltou uma gargalhada irônica. fechou os punhos e travou ainda mais o maxilar, encarando-a na carótida. Queria matá-la.
As almas de estavam preenchidas com ódio. Ele não estava sendo racional, mas sim emocional, e, por isso, não conseguia perceber o que ela estava tentando explicar. A única coisa que desejava, desde o momento que descobriu as mentiras de sua mãe, era arrancá-la a cabeça. Não pensava em absolutamente mais nada.
— Certo — disse ele, enfim, virando-se novamente. — Não pretendo discutir minhas escolhas com você.
já havia puxado fôlego para gritar-lhe uma resposta, mas uma facada em suas costas a fez tombar para frente, segurando um grito mudo no centro da garganta. Aquela facada cortava o baixo de sua costela e queimava seu abdome inteiro, em palpitações agonizantes no baixo do ventre. Ela apoiou a mão na pia, mas escorregou. Seu corpo caiu de lado, fazendo sua cabeça quicar. Virou-se de barriga para cima e, olhando-a com os olhos arregalados, viu ondulações no alto de seu ventre e, por baixo da esturricada regata, unhas que perfuravam, por dentro, seu útero.
olhou àquela cena com o cenho franzido e os olhos arregalados. Seu primeiro movimento após o choque veio quando começou com intensos gritos de pura dor. O sangue começava a escurecer sua pele pálida por baixo do tecido quente da blusa, em hemorragias internas pelos tecidos que as garras do Anticristo faziam dentro de seu corpo.
Ela jogou a cabeça para trás e os olhos afoitos buscavam algum alívio para a dor em qualquer canto daquela infernal cozinha. Outra facada foi inserida, agora do outro lado. O corte queimando e rasgando todo seu interior.
guiou-se para o meio de suas pernas, esticando os joelhos para cima. A entrada da intimidade estava banhada em sangue.
O cheiro de enxofre impregnou-se nas paredes da cozinha. Tão impressionado com as contrações que o Anticristo fazia em , ele mal notou que, bem ali, ao lado de seu corpo, havia sido aberta uma passagem para o Inferno.
Dali, Richard surgiu.
expeliu as garras e saltou em direção ao demônio extremamente vulnerável, que esticou os braços para tentar se defender.
— Fui mandado por teu pai! — gritou Richard.
tentou abocanhar sua carótida, mas o grito de o fez desviar a cabeça para ela novamente. As ondulações feitas pelas garras de Alexander haviam cessado e o sangue parou de escorrer pela entrada de sua intimidade, mas as contrações tornaram-se ainda mais fortes. Ela se contorcia de dor.
Por um momento, o parto havia sido sobrenatural, mas, agora, ele havia tornado sua forma humana, como previsto.
— Fui invocado para ajudá-la! — tornou a gritar, empurrando .
Richard se guiou para o meio das pernas de .
— Não se preocupe — disse ele, olhando em seus olhos —, sei o que devo fazer.
Lilith estava sentada de fronte ao fogo, bebendo sangue virgem. Estava com as pernas cruzadas e o olhar fixo nas chamas. De repente algo dentro de si se remexeu, fazendo-a franzir o cenho e olhar para o lado. As portas da casa estavam fechadas, mas havia algo se movendo nas paredes. Ela se levantou, deixando o copo com sangue no chão. Seguiu pelo corredor e abriu a porta que a levava para a natureza. Ali, a lua começava a ser encoberta pelo sol, em etapas lentas e sombrias. O canto inferior começava a ser escurecido.
Lilith abriu um sorriso sombrio para o acontecimento, então uma risada fúnebre saiu de seus lábios, exibindo seus dentes de demônio e seus cabelos eriçados. Sua pele estava áspera pela expectativa e seu riso fazia os animais da floresta correrem e voarem para longe. Ela soltou os braços ao lado do corpo e sentiu os olhos pegarem fogo. A lua estava sendo encoberta, seu interior tremia de prazer.
— Meu Anticristo! — ela gritou com voz de demônio. — Meu Anticristo está vindo!


41.

The cycle repeated, as explosions broke in the sky.

A lua cheia que pairava sob os corpos ignorantes dos moradores daquela cidade era engolida por uma cascata negra. Os animais da floresta estavam afoitos, uivando eriçados pela energia que aquele fenômeno emanava. Os oito planetas se alinhavam, o Ritual dos Três Mundos estava agindo.
Em meio aos gemidos de adoração que mortais exalavam ao evento, mal conseguiam ouvir os gritos de pavor e extrema dor que soltava dentro das infernais paredes de seu apartamento.
A barriga pontuda de estava apontada para o teto, que, aos poucos, ia ficando ainda mais brilhante pelas luzes fortes do cômodo. Com as pernas posicionadas e o tronco levemente arqueado, ela urrava de dor, jogando sua cabeça para trás. As contrações haviam se tornado mais frequentes, dando cada vez mais indícios que o Anticristo estava preste a tocar solo terrestre. estava de joelhos, próximo ao corpo dela. Segurava seus ombros todas as vezes que, por impulso, arqueava demais o tronco, tentando abraçar os joelhos para amenizar a dor. Havia gotas de suor que escorria por suas têmporas, molhando sua regata. Richard estava com as mãos nos joelhos já desnudos dela, esperando o momento em que o corpo do Anticristo começasse a se mostrar, o momento que ela teria que começar a fazer força.
Diferente da visão que Lúcifer a havia mostrado, não havia uma piscina de sangue em torno de seus corpos, tampouco imagens de demônios sem alma que adentravam seu corpo dilacerado por garras demoníacas. Entretanto, conforme a lua era engolida, a escuridão do lado de fora tornava-se mais assustadora. arregalou seus olhos em busca de conforto, mas não encontrou. Todos ali estavam preocupados com o ser dentro dela, e não com seu estado emocional.
As paredes começaram a tremer no momento em que outra contração, ainda mais forte, a fazia gritar e apertar os olhos, unhando o chão. Uma faca cortava os extremos de sua barriga, que carregava dentro de si uma hemorragia contida, causada pelo instinto de sobrevivência do demônio que a habitava — no momento que fora chamado a nascer, ele haveria de cortar, de dentro para fora, o útero da mãe, para enfim poder sair de lá; mas, como parte de sua alma era humana, ele postou-se em seu lugar de feto e esperou até o momento em que sua mãe o induzisse a sair.
— Aguente um pouco mais — pediu Richard. — Ainda não está na hora.
Sua cabeça intercalava entre a intimidade exposta de e o céu escurecido por detrás das janelas. O momento exato de fazer força deveria ser quando a lua estivesse em seu ápice total.
— Pelo amor de Deus! — gritou , sentindo fios grudarem em seu rosto. Seu pescoço estava banhado em suor e, além das terríveis contrações e do ardor pelos cortes que cicatrizavam, ela sentia ondas de calor que preenchiam todos os mínimos espaços de seu corpo.
Tão desesperador como na visão, a dor começou a ser insuportável. não conseguia mais controlar seus berros, esticando a cabeça para trás toda vez que sentia qualquer mínimo movimento vindo da parte inferior de sua volumosa barriga. Ela arregalou os olhos e, de cabeça para baixo, pôde encarar uma cobra rastejando-se em sua direção. Ela ergueu os ombros, virando mais o pescoço. Havia várias delas.
— Uma cobra — disse, tremendo. — Uma cobra!
— Não há nada aqui — disse , olhando para o mesmo local que ela.
Havia treze cobras rastejando em sua direção. Das mais variadas formas e cores, elas cercavam seu corpo e se guiavam para suas pernas.
gritou de medo, tentando recolhê-las em vão, já que Richard as apertava com força para mantê-las naquela posição. Faltavam apenas alguns segundos para o ápice.
— Talvez os demônios estejam sentindo o nascimento de seu Mal representado em humano — disse Richard, apertando ainda mais as pernas de .
Quando tornou a olhá-la, estava encarando as paredes com horror. Para ela, sangue escorria e aranhas desciam correndo, também em sua direção.
Eram demônios em suas formas de praga.
Lágrimas brotaram nos olhos de e outra contração a fez gritar. Ela ergueu o tronco para cima e tentou respirar com mais facilidade, pesado, mas não conseguia. Uma lágrima escorreu por sua bochecha.
— Tire-o de mim! — gritou, fincando as unhas nas canelas. — Tire-o, TIRE-O!
— Ainda não está na hora! — Richard gritou de volta. Algo rastejou em sua perna.
— Tire as cobras daí! — pediu desesperada.
As cobras estavam sendo representadas pelo demônio fêmea Abyzou, responsável pelos fetos natimortos. Ela não estava ali para matá-lo, mas para doar parte de seu poder. As aranhas ensanguentadas passeavam pelo teto, descendo pelo vidro, andando em seus dedos, também representavam a legião de demônios Ala, que se alimentavam de crianças e eram responsáveis pelas pragas. Aka Manah, de persuadir humanos a agirem contra suas morais — os demônios dos psicopatas —, vinha em forma de sombra, rastejando-se pelas paredes na silhueta de um homem. Belphegor, responsável pela paranoia, orgias, ganância, vinha em forma de tempestade.
A lua estava a um segundo de seu ápice. As nuvens piscaram em trovões e o ecoar estrondoso da Natureza chorou o nascer daquele meio-demônio-meio-humano. A tempestade de Belphegor se uniu às forças naturais e uma tempestade se deu início, caindo como uma cascata de água que afugentou os humanos das ruas.
Os animais noturnos se esconderam, com medo, mas rosnavam para a escuridão em uma posição clara de ataque. Demônios sem obrigações, os que apenas pairavam pelas cidades causando caos, se postavam debaixo da água, encarando o local onde as vibrações paranormais gritavam estrondosamente. Os urros de se entrosaram com os trovões, que cantavam junto ao forte vento.
— Está na hora! — gritou Richard. — Faça força!
não pensou, seu corpo agiu por si: contraiu a barriga com maior força que conseguiu, cessando seus gritos por falta de ar. Um trovão ecoou forte, as cobras levantaram suas cabeças e cuspiram as línguas para fora. O rosto de ficou vermelho e o suor escorreu em dois pares de gotas. A dor latejava sua cabeça, fazendo o pulmão arder. Quando não conseguiu mais segurar o fôlego, parou de fazer força para se recuperar. Com a respiração pesada, jogou a cabeça para trás e sentiu as mãos de em seus ombros, dando apoio.
— De novo! — gritou ele. Mais uma vez, o corpo dela respondeu sozinho.
Alexander não dava indícios de que sairia daquela posição. Com apenas o topo da cabeça a mostra, ele não se movia mais.
— Preciso que faça mais força! — ordenou Richard. Ele olhava diretamente para o corpo da criança, que não se movia.
jogou a cabeça para trás e gritou conforme fazia força, segurando os joelhos.
Os demônios pareciam tomar forma. As aranhas se aglomeraram em uma montanha de patas pretas, enquanto as cobras se embaralhavam em mil fios de cores fortes. A ventania trouxe a água para dentro da cozinha, refrescando o corpo de .
Richard percebera sangue começar a sair, novamente, da intimidade de , contornando a cabeça de Alexander. Ela fez força mais uma vez, então ele se moveu alguns centímetros. Era possível ver a cor arroxeada de sua pele se misturando ao vermelho vívido do sangue amaldiçoado de . O menino estava quase com metade da cabeça para fora. Era preciso que Richard o puxasse, senão ele morreria.
Tu não vais conseguir — sussurrou a voz de Lilith em sua cabeça. — És uma humana de pele fraca e músculos mortais que não são capazes de expelir meu Anticristo.
gritou, botando mais força.
Não serás capaz. Irei tomá-lo como meu. Tomá-lo-ei em meus braços e comerei tua carne apodrecida, dizendo-o que és meu...
jogou a cabeça para trás, gritando. Parou de fazer força e puxou mais fôlego, fazendo mais força.
Nascerás com deficiências. Não respirará. Serás obrigada a fazer um Pacto com o demônio fêmea para que a vida possa ser dado ao teu filho, ao teu Alexander. Ao teu que, assim que vier à vida, se tornará meu...
— Pare! — gritou Richard. — Pare de fazer força!
retomou a consciência, com os olhos cheios de lágrimas, completamente sem ar. Sua respiração estava pesada e seu rosto, extremamente vermelho.
Quando retomou à sua realidade, viu que havia muito sangue atrás de suas coxas, onde Richard estava ajoelhado. Olhou para as próprias mãos espalmadas no chão e notou que estavam úmidas por seu próprio sangue. Formava-se uma pequena posta em torno de seu sangue.
Sua cabeça cambaleou para trás, zonza, e a segurou.
— Será preciso que façamos o parto. Ela não será capaz sozinha.
— Não — sussurrou , olhando em torno.
Os demônios que, antes, estavam ali para presentear seu Anticristo, agora pareciam enfurecidos. A tempestade estava incontrolável e a lua saía de seu pico. As cobras queriam atacar , enquanto as aranhas tomavam forma de sombras e voavam afoitas em torno do corpo cansado de .
Humana inútil — sussurrou uma voz de mulher, com sombra de voz de cobra, em seu ouvido. Ela torceu o pescoço para onde a voz vinha.
Uma mulher com lábios extremamente finos estava raivosa com ela, com os cabelos eriçados e a língua de cobra bailando eriçada. Ela abriu a boca — a mesma abertura de uma peçonhenta — e mostrou os dentes afiados como os do réptil, erguendo-se esguia em zigue-zague.
Não serás capaz — várias outras mulheres, com o mesmo “s” puxado das serpentes, sussurraram em seus ouvidos. — Não serás capaz — sussurraram novamente.
Antes que pudesse pensar no que estava acontecendo, sentiu uma forte pontada latejante de dor em sua intimidade. Richard a havia rasgado com suas unhas para que houvesse mais espaço para o Anticristo.
— Tente outra vez — ordenou Richard.
Mas não respondeu. Estava fraca e via demônios rastejando pelas paredes da mesma forma que na visão de Lúcifer. Terminaria em morte — dali a alguns segundos ela estaria morta. correu os olhos pela sala enxaguada de sangue e água da tempestade, e seus olhos caíram sob o corpo idoso de Richard. Ele estava com as feições preocupadas e, naquela idade, parecia um pai que realmente sentia afeto por sua criança. Depois, voltou-se para , que ainda estava segurando seus ombros.
Ela apoiou a nuca nos próprios ombros e encarou aquele demônio que, para ela, não passava de um anjo. Um anjo caído, amaldiçoado pela ignorância de seres superiores a ele, incapaz de se defender sozinho das maldades de um demônio esfomeado pela vingança, guiado por seus próprios instintos animalescos de se impor acima de todos os outros.
Seus cabelos estavam molhados pela chuva, assim como seu rosto, que esbanjava preocupação. Seus olhos cristalinos pairavam sob a barriga pontiaguda, depois para o sangue, e enfim nos olhos mortais da mulher que morria em seus braços, incapaz de dar à luz a seu próprio filho.
Os demônios enfurecidos urravam de raiva, querendo atacar . Rondavam seu corpo já sem forças, indignados pela posição do Anticristo, que não se movia ou mostrava indícios de que estava vivo.
! — gritou Richard. — Faça força!
Mas ela não o escutava mais. Era um eco distante e tudo que ela conseguia ver, agora, era .
Entretanto ele não estava mais lá, segurando-a o rosto.
Ele se direcionou para o meio das suas pernas, empurrando Richard de lá, e o ordenou que fosse segurar a cabeça de , que já estava caída no chão. Ela vacilava os olhos com pupilas dilatadas pelo teto escurecido pelas sombras de demônios. Richard não hesitou e, olhando-a fundo nos olhos, implorou que aguentasse firme.
expeliu os dentes e afundou a boca no baixo do ventre de — ela não reagiu. Com os lábios e queixo sujos de sangue amaldiçoado, ergueu a ponta da garra do dedo indicador e cortou, camada por camada, os revestimentos que o separava de seu Anticristo. Quando o visualizou, sua posição era grotesca, encolhido com a cabeça virada e o cordão umbilical enrolado no pescoço — ele não estava saindo por defesa, pois sabia que nasceria morto, agindo pela defesa de sua parte de demônio.
Ele encarou aquele bebê por alguns segundos. Ele estava encoberto por uma camada espessa de sangue e muco, e, de repente, tornou a mover-se sozinho. Recolhendo-se novamente para dentro do corpo da mãe, o Anticristo virou-se de barriga para cima e encolheu-se em posição fetal. podia encarar a placenta tocando-o os pés, então encarou-o guiando as garras de demônio — brancas e extremamente afiadas, como dentes de filhotes — para o pescoço. Tentava libertar-se daquilo que o atrapalhava, mas não tinha forças suficientes para rompê-lo. Então esticou novamente seu indicador e cortou-o, puxando o feto pelo pescoço. Quando exposto totalmente ao oxigênio demoníaco que rondava seu minúsculo corpo, o bebê começou a chorar. segurou-o no antebraço e rasgou o cordão com seus próprios dentes, arrancando-o do corpo do bebê. Retirou também a placenta, jogando-a para o lado. Demônios voaram naquela proteção de . Ele levantou-se e ficou encarando seu Anticristo com imenso orgulho.
Era um bebê grande, com mais ou menos cinquenta e dois centímetros, pesando quatro quilos e meio. Tinha cabelos ralos, sujos de sangue, em tom negro, e os olhos escurecidos e apertados pelo choro não denunciavam quem haveria de ter puxado. Tinha dedos compridos, ainda encolhidos, e seu berro era forte e alto.
Algo acendeu dentro de .
estava paralisada, encarando-os com os olhos cheios de lágrimas. Richard segurou seu pescoço e pediu, quase chorando, que ela aguentasse mais alguns minutos. Guiou-se para o útero exposto e tentou unir as camadas novamente, evitando que qualquer demônio insano entrasse ali para possuí-la ou levá-la ao delírio e, consequentemente, à morte.
Ele gritou pela ajuda de , mas ele ainda encarava a seu filho com extrema paixão, quase sem piscar.
Outra trovoada, outra baforada de água no corpo ensanguentado de . Dali surgiu uma sombra vermelha, que logo se ergueu em fogo, tomando a silhueta de outro homem. Ele colocou a mão em cima do ombro de Richard, que o deu espaço para prosseguir. Ali, tocando-a com o dedo em lava, uniu as camadas cortadas de seu corpo, derretendo as extremidades da pele, como se moldasse ferro. se contraiu de dor, arfando pesado enquanto erguia diversas vezes o tronco, com os olhos perdidos. A forma em fogo deu passos em direção a , que protegia seu filho contra seu pescoço, segurando-o e ninando-o enquanto ele gritava de frio.
— Ele não é seu — disse o fogo. — Um dia, ele pertencerá a mim.
se virou com os dentes e chifres expostos, indo atacar quem quer que fosse que o contasse tais blasfêmias, mas o fogo havia se transformado em sombra e retornado à tempestade.
Tudo que restava naquele cômodo ensanguentado era o corpo pálido e cansado de e os olhos afoitos de Richard.

Acordou com uma forte dor de cabeça, sentindo-se pesada. Olhando à sua volta, não via ninguém além dela. O céu acima de seu corpo era de um tom acinzentado, muito diferente dos azuis turquesas que normalmente queimavam seu coro cabeludo nos dias quentes daquele verão em Manhattan. As nuvens tinham um grotesco tom ainda mais acinzentado, quase preto, e ocupavam quase todo o céu. Havia fumaça prejudicando seus pulmões, que buscavam freneticamente algo puro para absorver. Suas mãos estavam apoiadas no centro de sua barriga e, quando as colocou nas laterais de seu quadril em busca de apoio para poder se levantar, sentiu areia rala e dura.
Em que diabos de mundo estava?
Quando se ergueu, estudou mais a sua volta. Os prédios estavam partidos ao meio e os carros, virados de cabeça para baixo. Não havia pássaros voando naquele céu grotesco e, quanto mais ela olhava, mais desconhecia aquele lugar.
Pensou, por um momento, que poderia estar tendo mais uma daquelas visões, parecida com aquela que Pandora a fez viver quando quis mostrar-lhe as provas de que Lilith estava enganando a todos. Mas sentia-se tão pesada e adormecida, como se tivesse acordado de um pesadelo, que não conseguia acreditar que aquilo fosse apenas um sonho. Conseguia até mesmo sentir o cheiro de ferrugem e enxofre no ar — não poderia ser possível ser apenas uma visão.
Ergueu-se com certa dificuldade e encontrou-se praticamente nua. Seu corpo era recoberto apenas por uma regata preta rasgada, mais nada. Pôde perceber, então, a analisar-se, que havia uma nova cicatriz em seu corpo, uma cicatriz diferente de todas que preenchiam todos os espaços de seu corpo. Aquela não era uma cicatriz normal, nem de aspecto quanto de profundidade. Não era uma cicatriz que ela própria pudesse fazer, como a maioria em seu corpo. Era a cicatriz de uma cruz de cabeça para baixo. Começava no meio de sua barriga, em uma linha fina e bastante reta, como se feita por um bisturi médico, e terminava no baixo de seu ventre, em algo mais torto e caseiro. Tentou lembrar-se de como a havia adquirido, mas sua memória não ultrapassava as barreiras gigantes daquele mundo abandonado no qual ela se encontrava agora.
Nua e confusa, soltou um grito em busca de qualquer outra alma viva senão a dela. Silêncio. Estava, de fato, pelo menos na região que seu agudo grito alcançava, sozinha.
Em seu passado, ficar sozinha era algo bastante agradável. Não havia mentiras, suspiros ou rolar de olhos. Não precisava ouvir histórias das quais não se interessava, ou fingir interesse em qualquer pessoa que lhe prestasse atenção. Podia ficar imersa em seu próprio silêncio e dor, sem se incomodar em tentar agradar alguém. Depois dos meses que passara enfurnada na diabólica mansão de Lilith, se acostumara com histórias relacionadas ao sobrenatural e, de fato, se interessava por elas. Estava imersa em uma nova realidade e se forçava a saber mais sobre ela. Agora parecia estranho estar sozinha novamente, como quando passou dias sem a companhia de outro ser vivo, quando havia conseguido sua suposta liberdade, há quase sete meses e meio.
Resolveu caminhar. Passou pelo enorme campo deserto no qual havia acordado e se guiou até um dos prédios abandonados. Não reconhecia nenhum deles. Suspirou e olhou para os céus, percebendo uma espécie de proteção. Não tinha cor, mas ela conseguia ver um tipo de calor irradiando pelas bordas da troposfera. Era algo parecido como quando avistamos o calor subindo de uma rocha quente. Ela olhou mais adiante e percebeu que aquela camada quente revestia todo aquele deserto e terminava longe, quase próximo do horizonte. A partir dali, não se era possível ver mais nada. poderia tentar ir, andando, até o final e ver se era apenas aquilo que revestia aquele mundo destruído, mas preferiu seguir em frente. Entrou no hall de um prédio partido ao meio, em meio aos escombros, e, subitamente, reconheceu-o: aquele era sua antiga casa. Podia visualizá-lo antes daquela destruição toda e viu, com clareza, seu porteiro sorrir-lhe, há muito tempo, e entregar-lhe uma carta, desejando-a que tivesse um bom dia — algo que, na maioria das vezes, não era retribuído com apenas um acenar de cabeça, desejando-o o mesmo.
Aquela cidade destroçada era Manhattan. Aquele era seu futuro após a guerra: destruição total, aniquilação da humanidade. "Destruir para reconstruir".
perdeu o fôlego. Deu um passo instantâneo para trás em busca de qualquer apoio, mas acabou pisando em falso em meio a um buraco e caiu. No momento em que estava de joelhos, com o tornozelo ensanguentado preso entre uma rachadura no chão, ela pôde, finalmente, ouvir um barulho do qual se familiarizava: o bater de asas grandes o suficiente para carregar o peso de um humano — ou, no caso, um demônio.
Virou o pescoço para os céus, em busca de asas pretas, mas, em seu lugar, encontrou-as brancas, ainda que sujas.
O dono do corpo tinha cabelos compridos, em vários tons de louro. Era liso no topo e ondulado nas pontas, mais claro. Era parecido com o cabelo de surfistas. Entretanto, sua pele era pálida como a de qualquer outro demônio, com a exceção das bochechas levemente coradas em um tom quase alaranjado. Tinha lábios finos e bem desenhados, como a boca de uma criança; os olhos eram amendoados e grandes, em um tom caramelo com as bordas verdes escuras. Estava sem blusa e virou-se de costas, deixando evidente que o contorno de suas asas era diferente das asas de demônio — em vez de começarem nas omoplatas, descendo em diagonal em direção dos rins, começavam nas extremidades dos ombros e desciam em linha reta até o começo de sua lombar. Era possível ver o corte por onde as asas saíam e, embora ele não as recolhesse, por estar em, talvez, uma posição de defesa, conseguia perceber que a marca permanecia, mesmo quando elas estavam guardadas. Aquele tipo de asa era marcante, deixando evidente que aquela criatura não deveria ser confundida com um demônio ou com um humano.
Ela pensou que poderia ser um anjo.
Ele se virou em sua direção e ela se abaixou, com medo de ser notada. Mas ele já a havia visto. Caminhou em sua direção com o maxilar quadrado travado, com o cenho franzido. Suas sobrancelhas eram grossas e loiras escuras, cor de trigo, deixando seu rosto ainda mais másculo.
O homem com asas brancas caminhou firmemente até onde ela estava — também diferente da visão de Pandora, as pessoas naquela dimensão podiam vê-la e ter contato com seu corpo.
O homem loiro colocou a mão em sua cicatriz, olhando-a fixamente. Contornou a cruz de cabeça para baixo com a ponta dos dedos sujas de preto, e somente então ela lembrou-se de que estava nua. Não fora uma sensação agradável a de ter um homem naquele porte acariciando-a a barriga enquanto ela estava nua. Entretanto, não sentira medo dele. Percebera que estava tentando ajudar. Colocou os dedos em torno de seu tornozelo e puxou-o com brutalidade. Não conseguiu evitar que a boca emitisse um gemido de reprovação pela dor aguda de uma torção séria, além de um rasgo profundo que exalava sangue. Sangue amaldiçoado. Ela se perguntou se ele a atacaria como a maioria dos demônios.
Porém, ele não o fez. Em vez disso, passou a mão em concha por cima do machucado, que se curou. Ainda palpitava e ardia, mas o corte havia se fechado e o músculo, posto no lugar. Ela o olhou com os olhos confusos recheados de admiração.
Quem era ele? Era queria perguntar, mas faltava-lhe voz.
O homem com asas brancas tornou a ficar de pé. O corpo era rijo e atraente como o de um demônio, mas ela sabia que ele não pertencia àquele grupo de seres sobrenaturais. Queria muito saber seu nome.
Ele a ajudou a levantar-se e abaixou-se em busca de um trapo branco — ou quase branco, pela imensa sujeira — que estava preso em uma barra de ferro. Rasgou-o e amarrou-o pela lateral em sua cintura, de modo que houvesse uma enorme fenda em sua coxa direita. Pelo menos não estava mais completamente nua.
Ele tornou a olhá-la diretamente nos olhos, porém nada disse. Olhou para o céu, que exalava poluição e calor, então deu um passo para trás. queria conversar com ele, mas não conseguia. Era como se algo a impedisse de falar. Sua mente gritava as palavras e ela esperava que, de alguma forma, ele pudesse lê-las e respondê-la em voz alta. No entanto, não aconteceu.
O homem com asas brancas deu outro passo para trás e se distanciou muito. Então olhou para os céus, esticou suas imensas asas brancas para as laterais — em uma envergadura ainda maior que as de , e ela nunca havia visto maior, com quase cinco metros — e abriu os braços em uma cruz. Elas se guiaram para baixo e, com um pulo, ele tornou aos céus em sua sinfonia ritmada de cima e baixo, guiando seu caminho.
As dores de seu corpo se dissiparam pelos poros. Ela olhou novamente para a cruz em sua barriga e viu que havia um líquido viscoso que saía das suas extremidades, algo que parecia pus e sangue. Ela colocou a mão ali, recuando no momento que a dor atiçou-a os músculos e o reflexo de seu sistema nervoso. Queria que o homem voltasse e a curasse daquela dor também, mas ele parecia estar longe.
E aquela parecia uma dor e uma inflamação da qual ele não havia permissão para tratar.

Horas se passaram e ela não saía daquela realidade vazia. A dor em seu ventre parecia piorar a cada segundo que se passava e ela não sabia o que fazer. As bordas da cicatriz estavam inchadas e, ao redor, vermelhas e quentes. O suor escorria por sua testa e têmporas, grudando os cabelos compridos em sua pele, mas ela não sentia calor, e sim calafrios absurdos e uma dor intensa.
Andava sem parar por quase duas horas e meia, em busca do homem de asas brancas, ou de alguém que a pudesse ajudar. Encontrou o hospital abandonado e seguiu para lá. Estava com vários indícios de infecção e não podia fazer nada para se ajudar. Não tinha esperanças de que haveria um médico em prontidão para dar-lhe analgésicos, mas buscava algo que parasse com a dor.
Seguiu pelos corredores de suas lembranças e foi até a farmácia. Havia vidros quebrados para todos os lados e ela tomou cuidado para não arranjar outro ferimento. Seguiu mais ao fundo, onde havia algumas seringas. Buscou uma que não estivesse em tão deplorável estado e voltou-se aos remédios. Valuim, Vicodin, Aspirina. Nenhum desses seria suficiente para fazer a dor passar. Precisava de algo mais forte. Voltou-se novamente para as seringas e, de joelhos, procurou o frasco de Morfina, achando apenas um que não estivesse completamente vazio, perfeitamente colocado em pé, embora as bordas estivessem quebradas. Ela não pensava na higiene do que estaria alfinetando na pele. Sentou-se nos joelhos e buscou um elástico junto aos materiais que estavam jogados ao lado de seu corpo. Ao encontrá-lo, esticou o braço esquerdo e, com a ajuda dos dentes, apertou o elástico para melhorar a visibilidade de suas veias. Respirando pesadamente, encontrou uma. Olhando fixamente para ela, com intuito de não perdê-la, novamente com a boca desatou o selo de proteção da seringa e sugou o líquido que faria sua dor passar. Hesitante, olhou para sua mão e para a cicatriz inflamada em sua barriga. Uma pontada de dor foi suficiente para fazê-la enfiar a agulha em seu braço e depositar todo o conteúdo que jazia ali.
Seu coração acelerou automaticamente, disparando hormônios para controlar a dor alucinante. Sua testa estava encharcada de suor e ela não aguentava mais aquela sensação. Soltou o elástico do braço e esticou a cabeça para trás, respirando pesadamente.
Então, dormiu.

Era manhã do dia seguinte. O Anticristo já tinha os olhos abertos e curiosos para as coisas ao seu redor. Ele havia acabado de acordar e ainda não chorara, impaciente, querendo algo para comer. Havia adormecido nos braços de seu pai, que até então não o havia soltado. Estava petrificado pelos traços de seu maxilar pouco desenvolvido, de suas orelhas, suas penas mãos gordinhas, seu nariz e sua boca. Eram muitos os traços que se pareciam com os dele. Os olhos, embora ainda fossem mudar de cor, também pareciam com os de — um misto de azul com preto, transformando-o em um marinho intenso com leves manchas cristalinas. Tudo dava indícios que ele era um bebê normal, menos seus olhos.
Ele começou a chorar. levantou-se e foi até a geladeira, abrindo-a em busca do leite materno que Richard havia retirado de , ainda desacordada, agora delicadamente posta na cama do quarto principal. Seu machucado estava inflamado e ela mostrava sinais de que não melhoraria tão cedo. Entretanto, não se mostrava muito interessado nela, e sim no bebê, que chorava freneticamente em busca de que alguém o alimentasse. o aninhou mais em seu peito desnudo, dando leve batidinhas em suas costas. O bebê começava a soluçar. Ele despejou o conteúdo suficiente em uma mamadeira azul e, depois, colocou-a em água borbulhante. Depois de alguns minutos, testou seu calor no pulso e, certo que aquela era uma boa temperatura, deitou o Anticristo em seu antebraço, enfiando-lhe delicadamente o bico da mamadeira. O bebê calou-se naquele momento, sugando forte. Seus cílios estavam molhados pelas lágrimas e seus olhos haviam clareado alguns poucos tons. Ele buscava algo para tocar, então ofereceu seu dedo. O bebê aceitou e o segurou com força. Seu rostinho estava avermelhado pela força que havia feito ao chorar.
Richard havia adentrado a sala com os pulmões implorando por ar — ele havia corrido e, em sua atual condição física e idade, aquilo já não era tão mais fácil. Ele havia ido ao Inferno dar notícias sobre o nascimento de seu demônio para Lúcifer, que até então não tinha conhecimento nenhum daquele bebê.
O demônio que juntara as extremidades de havia sido outro.
Richard, mostrando certa confusão, explicou-lhe também que ela estava com uma séria inflamação e perguntou o que poderia ser feito para salvá-la, tendo uma resposta pouco compreensiva, tampouco estimulante.
Ele deveria procurar a bruxa responsável pelo Ritual das Almas, que transformaria aquele pequeno bebê em algo extraordinário.
Richard não sabia quem ela era e, após aquelas poucas palavras, Lúcifer se retirou do ambiente e foi conversar com os líderes dos clãs que participariam da guerra, que cada segundo mais se aproximava com uma força imbatível.
Ele queria que se interessasse pela vida daquela que o lhe entregou aquele bebê, e não somente na pequena vida entre seus braços.
— Preciso que me ajude — disse ele, já com o fôlego recuperado.
não o olhou. O bebê parou de mamar e agora era sua função fazê-lo arrotar.
— Você tem conhecimento da bruxa que realizará o ritual?
Outra vez, sem resposta.
! — ele gritou. Somente então o demônio se virou para ele, com os olhos encolhidos de ódio. — A bruxa do ritual! Você sabe quem ela é?
— Não — disse simplesmente. — Que eu saiba, minha própria mãe o realizaria.
— Não tenho condições de ir até a Itália — rolou os olhos, colocando a mão na testa, empurrando os cabelos. — Preciso que você vá.
— Desista — disse simplesmente e voltou-se novamente ao bebê, virando-se de costas. O Anticristo olhou diretamente para Richard.
— Se você não for, as chances de morrer aumentam muito — ele estava começando a perder a paciência. — Consegue imaginar sua vida sem ela, ?
Ele não respondeu. O bebê arrotou e ele sorriu para as paredes.
— Você é um escroto — disse Richard, virando-se de costas.
Se não ia ajudar, ele próprio procuraria um modo de fazer com que a vida de não fosse levada pela ira e pelo desleixo de dois demônios.

Ela acordou com um solavanco. Sentia-se minimamente melhor. Acima de sua cabeça, conseguia ouvir passos pesados de uma criatura que parecia grande. Levantando-se com certa dificuldade, já não sentindo tantas dores, graças à Morfina, ela foi até o campo deserto que antes se inundava de pessoas em busca de um pouco de diversão. Com fé de ser o homem com asas brancas, ela logo se ergueu nas pontas dos pés para olhá-lo mais uma vez. Só que, para aguçar seu medo, não era um homem, mas sim uma criatura bizarra parecida com os Sem Rostos. Ela já havia se deparado com aquela criatura duas vezes, há muito tempo. A primeira vez fora quando tinha sido internada pela tentativa de suicídio — ela era a psiquiatra — e, a segunda e mais horrorizante, fora quando aquela mesma criatura matara sua amiga Alysha.
Lembrou-se, por um segundo, que Alysha também carregava em suas veias sangue amaldiçoado e não pôde desvencilhar o pensamento de que aquilo era uma grande coincidência.
A criatura a viu. correria se tivesse forças. Em vez disto, deixou-se postada bem à frente daquele monstro de dois metros e meio. Ele não estava agressivo como nas outras vezes. Continha um estranho rosto de paz, como se a observasse de volta. manteve-se quieta, parada, respirando tranquilamente. Talvez fosse a medicação ou talvez não sentisse mais medo daquele tipo de demônio — se é que se tratava de um demônio.
A criatura começou a derreter. Toda a pele acinzentada e áspera foi se desfazendo em uma poça cinza cintilante que lembrava mercúrio derretido, de mesma aparência e, provavelmente, textura. Ela foi se desfazendo como se a máscara que escondesse seu interior fosse retirada. Dali surgiu uma inocente menina de, no máximo, dezesseis anos. Ela tinha feições de anjo, cabelos loiros lisos, compridos, olhos arredondados azuis em um clichê quase absurdo. Tinha lábios finos e rosados e, quando a analisou o corpo miúdo, pôde ver a mesma cicatriz que cortava seu pescoço de um lado ao outro que também aparecia quando estava em sua outra forma.
— Eu quero saber o seu nome — disse a menina. Sua voz era doce e contradizia completamente com a criatura grotesca que antes era.
Burwell Giansanti Colluzi, mulher de Giansanti Colluzi.
— Pertence à família dos primeiros demônios? — a garota encolheu os grandes olhos. — És demônio de sangue amaldiçoado?
— Não sou demônio — disse . Sua voz estava ecoando no lugar deserto. — Sou apenas uma humana amaldiçoada. E como sabe sobre meu sangue? Quem é você e por que matou minha amiga?
A menina ergueu o queixo. Ela era menor que , de forma que até assustava lembrar-se de como um ser tão angelical poderia se transformar em outro tão asqueroso.
— Meu nome é Eugine McGully e meu corpo foi utilizado em um ritual macabro para o bem de demônios. Minha função é matar todos que restaram, para que a ordem seja restabelecida. Minha função é sugar a maldição de todos meus descendentes para que não haja maior estrago.

Richard voltara de uma missão quase inútil. Tinha saído às florestas em busca de alguma de suas conhecidas bruxas, mas quando o eclipse lunar indicou que algo sobrenatural aconteceria, os seres naturais haviam se mudado para o mais distante possível de onde a energia era maior — como seres da natureza, elas não poderiam intervir na guerra, mas sim juntar os pedaços do que restasse e, dele, restabelecer o equilíbrio da melhor forma possível. Todas as que conhecia, antigas amigas de sua mãe — ou até mesmo ela —, já não estavam onde costumavam estar.
Quando voltou para o quarto onde repousava, viu que sua aparência havia piorado drasticamente. Seus cabelos e roupa estavam encharcados de suor, porém ela tremia de frio. Seus lábios estavam em um tom estranho de roxo e seus olhos, cada vez mais fundos. O ferimento já cicatrizado de seu útero expelia pus e sangue pelas beiradas, sendo que seu meio estava recheado de um hematoma gigantesco e grosseiro, misturado de amarelo e roxo — não havia nada que ele, sendo apenas um demônio desalmado, pudesse fazer para ajudá-la.
estava condenada.
Sentou-se no chão, em cima dos joelhos. Colocou a mão na cama e segurou a da humana fragilizada, esperando que, ao menos, um pouco de conforto e atenção lhe fosse servido na hora de sua morte.
A janela do quarto estava aberta e a pouca brisa fazia as cortinas dançarem. Um clarão ofuscou os olhos do demônio que, por instinto, se escondeu.
Richard sentiu uma forte pressão no peito e um distúrbio horrível na cabeça, como se alguém o alfinetasse em diversos pontos dolorosos. Ele girou a cabeça em busca de se libertar daquele ardor, mas parecia piorar. Ele ergueu seus dentes para a criatura que adentrara aquele quarto, avisando que atacaria, mesmo com poucas chances de ganhar. Sua presença gerava incômodo.
Quando retomou a visão, percebera um homem vestido de branco, com os cabelos ondulados loiros esticados por cima dos ombros em algo desajeitado. Era um anjo. As asas brancas em corte reto afirmavam aquilo.
— O que fazes aqui? — indagou Richard, visivelmente perturbado.
— Meu nome é Noah — disse ele — E estou aqui como Anjo da Primeira Hierarquia, direcionado por Miguel para guardá-la e ajudá-la.


42.

Nothing lasts forever.

O tempo não mudava naquela dimensão na qual estava presa. O céu não deixava de ser cinza, monótono e desconfortável. Ela estava em pé em meio de escombros, esperando que Eugine desse o golpe de misericórdia que acabaria com todo aquele sofrimento que carregava todos esses anos. Mas a primeira amaldiçoada mantinha-se parada, com os olhos semicerrados, encarando-a tão profundamente que mal parecia respirar — parecia procurar traços seus em uma humana tão geneticamente parecida com ela, quando tinha seu corpo.
— Você quer me matar — gritou , enfrentando-a. — Então por que não faz de uma vez?
Eugine inclinou suavemente a cabeça para o lado, como um lobo que analisa sua presa antes de atacar.
— Um dia já fui como você — disse ela, ainda encarando-a da mesma forma. — Destemida, abusada, teimosa. Me renderam muitas cicatrizes um comportamento tão bestial.
— Vai ver tem algo relacionado ao gene — ironizou . A queimação na cicatriz de cruz em seu abdome estava cada vez mais forte; o quanto antes Eugine atacasse, melhor seria para ela. — Por favor, acabe com isso.
— Quero explicar-te algo, antes de realizar tal desejo seu.
suspirou, soltando o corpo no chão. Assim que envergou-se para frente, a dor ficou ainda pior. Ela encolheu o rosto e gemeu, começando a sentir gotículas de suor em sua testa e peito. Queria morrer de uma vez.
— Sabe quem sou — continuou Eugine, dando passos em direção à . A outra não se moveu, esperando que, assim, aquela palpitação quente e ardente em sua barriga parasse e, enfim, Eugine metesse um espinho por entre as vertebras de seu pescoço para matá-la de uma só vez. — Já ouvira falar sobre minha história e, agora, entende meu propósito neste mundo: aniquilar uma raça nojenta herdada a partir de mim.
— Como você está viva? — conseguiu perguntar em um sopro. Olhava fixo para os pés sujos metidos na poeira do local, sem encarar de volta a mais velha.
— Minha alma se perdeu na Terra, sem ter por onde vagar. Fui assassinada, algo decorrente de um ritual para fins satânicos, realizado por bruxas e anjos. Não devia ser meu destino final acabar daquela forma, exposta à meia lua, sendo farejada por seres tão repugnantes quanto os subterrâneos. Fiquei presa entre as dimensões, vagando sem rumo por entre corpos joviais e cheios de acontecimentos à serem vividos, sentidos. Não havia nada que pudesse fazer. Então, em meados do século doze, conheci alguém que podia me ver: a primeira mulher de Adão.
Subitamente ergueu seu pescoço; usara tamanha força que perdera certo conforto, ficando ligeiramente tonta, vendo embaçado. Quando conseguiu enxergar Eugine, o ser havia se transformado em uma garota. Ela aparentava ter por volta dos catorze anos, mesmo sabendo que Eugine já pairava os dezessete ao ser morta. Seus cabelos louros encaracolados escorriam por emaranhados de cachos que desciam até próximo de sua costela, armados em uma juba maravilhosamente perfeita. Tinha grandes olhos verdes, tão expressivos que pôde ver com muita facilidade a dor e a repulsa pelos seres que a transformaram em tal ser grotesco, sem corpo presente, sem esperança ou futuro. Seu corpo miúdo, magro e sem curvas estava coberto por um vestido quase transparente, branco, de mangas japonesas — parecia uma gigantesca camisola para alguém tão pequeno. Embora houvesse retomado ao seu antigo corpo, na mente de , ela ainda carregava a gigantesca cicatriz que ia de uma orelha à outra. Não tinha aparência de curada, mas sim algo que acabara de ser feito. Estava vermelho vibrante e, se olhasse bem, poderia ver algumas gotículas irradiando sob a pele pálida.
— Você conheceu Lilith? — indagou , depois de alguns segundos em silêncio.
A garota assentiu.
— A primeira mulher de Adão é bondosa com as que já sofreram. Embora não pudesse recuperar meu verdadeiro corpo — olhou para si própria —, disponibilizou-me uma forma parecida com a qual mais repudio, para que assim pudesse seguir com meu propósito de exterminar tais desprezíveis herdeiros.
Por que ela faria isso? — franziu o cenho. — Se todos os amaldiçoados fossem exterminados, como ela pretendia alimentar-se de tais humanos? A força que ela tanto buscou, todos esses anos, estaria completamente dizimada.
— Embora tenha me dado corpo, feito-me voltar à forma física, a primeira fêmea não honrou com sua palavra de deixar-me enfim em paz. Colocou seres teus atrás de mim para que, assim, obtivesse o paradeiro de tais amaldiçoados e roubá-los antes que eu os pudesse destruir. Sequestrava-os e escondia-os em lugares diferentes para que eu não os pudesse farejar de forma tão fácil e eficaz. Na verdade, ela me usou.
— Seja bem-vinda ao clube, querida — uma queimação de raiva cortou o peito de .
— Farejo poucos, nos dias atuais. Mas teu cheiro é tão forte e tão puro que poderia caçar-te durante eras; sempre descobriria por onde andou — engoliu em seco, lembrando-se de como aquela minúscula garota havia arrancado a cabeça de Alysha com uma facilidade incrível. Aquela minúscula garota com juba de leão. Era ridículo pensar em sua força, quem era, como destruía pessoas e drenava seus sangues para que assim não houvessem mais herdeiros.
Embora devesse, não sentia medo. Não sentia nada além de dor física.
— Entretanto, descobri o paradeiro de diversos amaldiçoados juntos. Normalmente, são atraídos uns pelos outros; a afinidade surge facilmente. Mas este encontro não fora programado por seus genes em comum, mas sim por um demônio, o pior de todos eles.
— Lilith?
— Lúcifer.
prendeu a respiração. Ficaram em silêncio por um minuto, até que a loira voltou a falar.
— Malphas, o mensageiro de Lúcifer, estava ordenado para elevar-se à Terra quando um humano sentisse desejo de vender sua alma para o Satã. Fora uma busca incansável, diversos ignorantes cujo a única vontade era poder e riqueza, até que, enfim, os amaldiçoados começaram a se manifestar. Ele haveria de provar o sangue de cada um que o invocasse para sentir então se deveria levá-lo como recruta ou apenas aprisionar sua alma, direcionada a escravidão no Inferno, após sua morte corpórea. O exército que Malphas criou, com amaldiçoados, se estendeu a quase dois mil homens e mulheres — olhou diretamente para os olhos cristalinos da garota. — Vai ser uma carnificina — e então abriu um sorriso macabro.

Noah estava parado de fronte a menina que queimava em febre, extremamente molhada de suor. Sua face não tinha cor, tampouco seus lábios rachados. A cicatriz tinha um tom forte de roxo e amarelo e exalava um cheiro forte de infecção. Eles haveriam de fazer algo antes que aquilo se espalhasse para seus órgãos vitais e finalmente ela viesse a óbito.
— O que você pretende fazer? — indagou um Richard extremamente incomodado. Noah também não se sentia confortável com a presença daquele pseudodemônio.
— Precisamos abri-la e retirar todo o tecido apodrecido. Precisamos limpá-la. Essa infecção é algo decorrente à alguma maldição de um demônio presente aqui, na hora do parto.
— Eles estavam aqui para presenteá-la — corrigiu o outro, suavemente irritado pelo modo que o primeiro se dirigia àqueles de sua espécie.
— Estavam, de fato — concordou Noah, parando de encarar uma cadavérica para, com o mesmo contragosto, olhar diretamente para o demônio sem alma.
Richard aparentava estar ainda mais velho. As suas rugas de expressão estavam mais aparentes e ele carregava uma aparência suja. Seus cabelos estavam bagunçados e oleosos, brilhantes tanto por seu próprio suor como também pela tempestade da noite passada.
— Mas quando perceberam que ela não estava sendo capaz de fazer a única coisa que lhe fora direcionada, durante toda sua vida, se revoltaram e, algum dentre eles, lhe lançou a infecção. Só podemos limpá-la por dentro. Medicamentos convencionais não adiantarão neste caso, já está muito avançado.
Richard ponderou por um segundo. Abri-la? Limpá-la por dentro? Parecia algo arriscado demais para um cadáver como , naquele momento. Ele se ergueu, sentindo dor ao fazê-lo, e molhou os lábios secos.
— Certo. Como faremos?

encarou Eugine por mais uma vez.
Ela estava dizendo que haveria um exército de amaldiçoados do lado de Lúcifer e que ela o destruiria, sem esquecer de , aquela cuja sempre fora seu primeiro alvo — mas, como estava protegida por demônios, Eugine não fora capaz de alcançá-la tempo suficiente antes.
Já haveria de se defender de demônios extremamente sedentos por seu sangue; haveria de aprender a defender-se não somente deles, mas também de uma alma perdida que queria drenar seu sangue?
Por mais uma vez naquele dia, deveria, mas não sentiu medo. Somente raiva. Não seria um peso morto naquela batalha, um peão cujo é posto à sacrifício logo no primeiro ato. Ela lutaria, Lúcifer prometera proteção e, acima de tudo, prometera ensinar-lhe a lutar como uma verdadeira guerreira demoníaca. Ela haveria de sobreviver a batalha, caso sobrevivesse aquelas dores, e não seria uma garota daquelas, com cabelo de leão, que a destruiria. Se haveria de ser ela, teria de ser logo e agora, aqui.
Eugine seria responsável por levar embora todas aquelas dores.
— Sabe, Eugine, eu admito que adoro te escutar explicar coisas das quais eu realmente tinha dúvida, mas, perdoa-me, estou um pouco cansada. Se quer fazer alguma merda comigo, por favor, seja faça-o logo. Seu falatório me cansou.
Eugine rolou a cabeça para um de seus lados e sua pele começou a apodrecer. A pele foi se desfazendo como se seu corpo tivesse sido afundado em ácido, derretia como cera. Dali, seus ossos e órgãos foram ficando aparentes até que se desfizessem por completo, virando pó acima da carne e pele derretidas.
Uma ventania tomou aquela dimensão. O céu se tornou ainda mais cinza, com diversas nuvens carregadas de água, que já começava a cair. Fora apenas o tempo de erguer seu rosto para os céus que algo a atacou com extrema rapidez. Uma nuvem de fumaça preta, sem forma, embalou seu corpo, erguendo-a para cima, em direção à tempestade. Ela tentou gritar pela dor aguda que teve na cicatriz, quando posta extremamente ereta, mas sua voz havia desaparecido. Em seu lugar, um grosso nó de dor tomou sua garganta, fazendo-a emudecer e lágrimas grossas aparecerem em seus olhos.
nunca chorava por dor física. Se recusara, em todos esses anos, a se render a algo tão estúpido quanto dor física. Mas aquela fora tão arrebatadora e forte que ela não conseguiu suportar. Chorava forte, sem conseguir parar ou respirar, pelo nó. Estava ficando asfixiada. A fumaça adentrou seu corpo pela cicatriz dolorida, então tudo que ela viu fora preto. Seus olhos arderam, como se ainda abertos em meio a uma tempestade de fumaça. A dor ficava pior. Palpitava, ardia, cortava. Era como se estivessem rasgando com os dedos e, para torturá-la, faziam com extrema lentidão.
queria morrer.

Richard segurava em suas mãos um chifre preto que crescia em espiral, cuja ponta extremamente afiada estava suja com sangue e pus. Noah segurava os ombros de enquanto ela convulsionava com os olhos abertos, extremamente escurecidos. Era como se ela estivesse possuída por quem a havia dado a infecção. Retirando o demônio, a dor e a doença também iriam embora.
estava aberta. Seu corpo exalava um cheiro podre de putrefação, deixando claro que o demônio a comia de dentro para fora. Ele ainda não havia saído da primeira camada de seus órgãos, a pele. Estava preso entre a epiderme e a hipoderme, onde a infecção se instalava. A cicatriz ficaria para sempre.
Não era difícil ver pequenos movimentos por baixo do pus de sua pele. Era como se houvesse muitos vermes caminhando por seu dentro de seu corpo.
— Abyzou! — gritou Noah. Sua voz tornou-se grossa, como um guerreiro que anunciava o nome de seu inimigo. Estava com visível raiva a encarar os vermes se remexendo com extrema brutalidade dentro dos tecidos daquela humana.
arregalou seus olhos e seu sorriso tornou-se macabro. Ela girou a cabeça para o lado e gritou, com a mesma fúria.
— Filho de Miguel! Verme, desprezível aborto! — ela cuspiu.
Richard se remexeu. Sentiu algo estranho em sua cabeça, como uma pontada forte bem em sua testa. Seu peito esquentou.
— Saia do corpo desta humana, Abyzou! — gritou ele. Todos ali sabiam que aquilo não adiantaria, realmente.
Richard se concentrou no que acontecia e, enfim, aproximou-se do corpo aberto de , colocando a base do chifre nos vermes, puxando-os. Era uma gosma que não se desfazia. Era o corpo do demônio.
ergueu sua mão e apertou com força o pescoço de Richard, erguendo-a, sentando-se na cama. Seu sangue caiu pelas extremidades de seu corpo aberto, ensopando o lençol também com pus. Era visível a movimentação grotesca em sua pele. Ela tremia a cabeça para os lados em um tique, ainda sorrindo, com os olhos extremamente pretos, que, não somente as pupilas, tornavam-se inteiros de uma só cor. Seu cabelo sujo grudava-se às extremidades de seu rosto e busto, extremamente bagunçado.
Ela apertou com força o pescoço do mais velho, cujos lábios já estavam perdendo cor. Ele apertava com toda sua força o pulso da mulher, mas ela não o soltava.
Noah segurou-a novamente pelos ombros e a empurrou com força para trás. Torceu-a o pulso, quebrando-o, puxando os dedos para que ela o soltasse. Assim o fez, rindo em vez de gritar. A mão estava caída para trás e ela ria absurdamente alto.
Richard caiu para trás, sem conseguir respirar. Tossia e tentava puxar o ar, mas ele simplesmente não vinha.
Noah colocou a mão na infecção da mulher, apertando-a por entre seus dedos divinos. Os vermes moldaram-se, brancos, entre seus dedos.
Então gritou. Mas não era Abyzou, era a própria menina. Noah recuou.
Um bebê começou a chorar.
Do outro lado do cômodo, ouviu-se um murro na parede e um xingo.
Que porra está havendo aqui?! — a cabeça de adentrou o cômodo, deparando-se com total caos.
As mãos de Noah estavam ensanguentadas e sujas de pus, enquanto a de estava caída de lado enquanto a mulher gritava descontroladamente, apertando o braço cujo pulso havia sido quebrado. Ricahrd estava jogado no chão, ainda com a mão no pescoço, e tinha uma estranha coloração azulada.
Ele não perguntou que demônio se tratava. Apenas por ver seus olhos, sabia que aquele era um truque para assustar. Embora o grito realmente fosse de , aquela ainda era Abyzou.
Com o rosto contorcido em raiva, ele marchou com ódio em direção à garota. Tomou-a pelo pescoço e assistiu-a rir novamente, debochando dele. Seu ódio apenas aumentou. Segurou-a pelo pescoço com ainda mais força e esticou a língua para fora, que, assim como sua mãe, transformou-se em língua de cobra, grossa e extremamente áspera, bifurcada. A língua adentrou pela boca risonha da garota que, ao senti-la, arregalou os olhos, que começaram a lacrimejar. A língua passou pela garganta e desceu até o centro do corpo, onde o demônio estava. Puxou-o com extremo ódio, ouvindo-o gritar e agonizar. Tomou a alma para si, estando dentro de seu corpo. tombou desmaiada para o lado.
, então, expeliu seus chifres e suas asas, quase quebrando as paredes do quarto pela extrema força e raiva. Dali, esticou a língua para fora e expeliu a alma preta, ensanguentada, com o corpo miúdo e sujo de uma mulher extremamente pequena. Ele ergueu seu pé e pisou no pescoço dela, ouvindo-a implorar por sua vida. Pisou novamente, com mais força, fazendo careta de ódio. Ainda mantendo o pé preso no pescoço quebrado quase separado do corpo, ele abaixou a cabeça, metendo os chifres em seu abdome. Abriu-o, metendo a mão em suas vísceras. Expeliu as unhas e as puxou para fora, ouvindo-a gritar e agonizar. Jogou-as nas paredes, pintando-as com sangue demoníaco. Fez de novo, até que seu interior estivesse completamente vazio. Fez encarando-a nos olhos, com o pé em seu pescoço. Por fim, ouvindo-a gemer em agonia, pisou novamente em seu pescoço e o separou do corpo. A alma já havia se perdido, agora, o corpo.
Noah encarava tudo aquilo com os olhos arregalados. O filho de Lilith ainda mantinha as asas expelidas, duras como diamantes, com as pontas direcionadas para o corpo morto de Abyzou. Ele exalava ódio. O bebê ainda chorava. Quando voltou-se para o chão, encarou Richard. Ele estava desmaiado.
— disse ele. Incrivelmente, ele olhou. — , precisamos ajudá-lo.
Ele se ajoelhou ao lado do demônio quase morto, segurando-o gentilmente a nuca. Ouviu-se um osso estalar. A traqueia havia sido quebrada.
— Ele não vai viver — disse , que, por algum momento de lucidez, encarou .
Ela estava aberta, suja, com sangue saindo pelos ferimentos de sua cicatriz. Ele a segurou com gentileza e colocou-a de volta na cama. Esticou a mão para uma de suas afinadas penas e puxou um fiapo negro liso. Esticou-o em direção ao ventre cortado dela e, com tamanha gentileza, enfiou a ponta do fiapo de pena. Costurou-a até que estivesse devidamente fechada. Puxou o lençol de seu corpo e o torceu, para que o sangue saísse, colocando-o em direção à sua boca aberta, sem cor. Dali, algumas gotas voltaram a ter contato com as gengivas e bochechas, língua. Ela abriu os olhos com confusão. Piscou um par de vezes até voltar a realmente enxergar. Não reconheceu ninguém de prontidão, tendo de franzir o cenho e encará-los melhor para reconhecê-los.
Aquele era o anjo de sua mente e, o outro, era seu demônio real.
— Ele morreu — disse Noah, olhando para .


43.

You’re just a small bump unborn.

Havia se passado cinco meses desde que acordara de seu coma.
Alexander — este que apenas chamava de Baal, o herdeiro do Inferno — estava dormindo na sala, em um berço improvisado — eles não haviam saído de casa desde aquele dia, para não expô-lo a nenhum tipo de pessoa, demônio, anjo, bruxa, ou qualquer outro ser que não fossem eles dois.
Noah havia ido embora, retornado à sua divindade, no momento que estava quase que completamente recuperada, no meio do segundo mês. Ele se mostrou um ótimo amigo, cujo escutava-a e ria de suas piadas, enquanto ainda se comovia com qualquer movimento diferente vindo de seu anticristo.
A casa havia sido devidamente limpa e reorganizada.
estava de fronte ao espelho, nua, encarando a ponta preta, esticada para cima, do fiapo de pena de . Aquela era a única parte que ainda não havia saído — o resto já tinha sido cortado, conforme ficava esticado para fora da cicatrização que fora bastante rápida. Ela estava perfeitamente saudável e aquele fiapo realmente incomodava. Ela não hesitou em colocar a ponta das unhas ali, unindo-as no ponto preto e, de uma só vez, o puxou. Fora uma pontada insignificante, mas que acarretou sangue. Ele escorreu por sua pele pálida e pingou no chão. acompanhou aquele movimento e, sem se importar, virou-se para o box. A virar-se de lado, percebeu a estranha presença de recostado à porta, com o braço nu para cima.
Ele havia cortado os cabelos, deixando-os como na noite que se conheceram: bem rente à cabeça dos lados e na nuca, com uma maior quantidade acima, bagunçado. Tinha a barba por fazer de dois dias, áspera, e o treinamento — que insistia em fazer, ainda que sozinho, mesmo com os disponíveis de Lúcifer, que treinava diariamente , logo que ela conseguiu se mover — o havia dado mais definição que antes — os ombros, trapézio e bíceps estavam ainda mais inchados e definidos, com um ar extremamente tentador.
Seus olhos haviam adquirido aquela sombra que ela tanto conhecia, aquela cuja ela conhecia tão bem, mas há tanto não via.
— O que está fazendo? — indagou ele. A voz, por tanto não usada, saiu ainda mais grossa que o habitual.
— Estava terminando de tirar este último ponto que estava me incomodando — ela olhou novamente para a linha vermelha em seu abdome marcado por uma cruz invertida. Deu de ombros. — E Baa... Digo, Alexander — ela riu suavemente, deixando as mãos soltas ao lado do corpo nu.
— Está dormindo como um perfeito anjo caído — ele adentrou o banheiro. — Estive pensando... — ele molhou os lábios, encarando a linha vermelha. — Você quase morreu — bem lentamente ele tornou a subir o olhar para ela, diretamente em seus olhos. foi pega de surpresa. Havia dias que ele não a olhava daquela forma.
Embora ainda separados, ela conseguia sentir seu calor. Aquilo a fez ficar visivelmente arrepiada. A sombra de um sorriso malicioso apareceu na metade dos lábios do demônio.
— Não posso negar que estive um pouco interessado em nosso filho — novamente ela perdeu o ar. Ele nunca havia se referido a Alexander daquela forma. —, que esqueci, digamos, um pouco — ele entortou o rosto para a esquerda, exibindo aquele sorriso malicioso — Da minha mulher.
— Bem, não há tanto problema assim — mentiu ela. — Estive bastante entretida com nosso amigo anjo — ela riu divertida, sendo sincera.
Não esperava que aquilo o fosse causar ciúme. Seus olhos estreitaram, assim como seus lábios.
— Ah, vamos lá — disse ela, tocando-o ombro. Ele era quente. Ela sentia falta daquele calor. — Não fique desta forma. Somos somente amigos. Você é meu marido... — ela pensou por um momento, encolhendo os olhos. — Acho que podemos usar esses termos — deu de ombros e tentou se virar, mas ele a segurou pela cintura e a impediu. o olhou interessada, diretamente nos olhos cristalinos.
— Não posso evitar ter ciúme do que é meu — admitiu. — Mas devo-lhe desculpas pelo modo que agi. Nunca imaginei que poderia me apaixonar tão fortemente por um ser que não é presenteado com um par de peitos grandes — ela negou com a cabeça, tentando não rir. Saiu um ronco que o fez rir um sorriso largo, que mostrava todos os dentes. — É verdade, estou sendo sincero — ela assentiu, olhando-o com o queixo abaixado e os olhos para cima, escutando-o. — Ele tem tanto de mim como de você. Acho fascinante perceber todos esses detalhes, dos quais, desculpa, aposto que você não sabe.
— Não? — ele negou. — Então, por favor, demônio, conta-me.
— Ele tem seu nariz — ele apertou-o as extremidades. puxou o rosto para trás, reclamando com um sorriso raivoso. — Tem a cor dos meus cabelos, mas a textura do seu, pesado, macio.
— Ele é um bebê — consertou ela. Ele ignorou.
— Tem a cor da nossa pele junta — ele segurou-a pela mão, entrelaçando seus dedos. Ali havia uma combinação quase perolada. O cinza brilhante dele com o corado tímido dela, um pálido que tentava ter cor nas extremidades. — Tem olhos negros de demônio, mas nele existem pintinhas azuis cristalinas que deixam claro a presença da sua alma ali. Da nossa alma, junta, que o deu forma — ele encarou fundo seus olhos. De repente, soltou uma risada nasalada. — Os pés dele são idênticos aos seus. Um anticristo com pé de mulher — negou com a cabeça, também rindo, tentando esconder a palpitação alta de seu coração.
Deus, como ela o amava. Não conseguia mais viver um dia sequer sem aquele sorriso, aqueles olhos, aquela voz. Sentia-se hipnotizada por ele naquele momento e, para qualquer coisa que ele fizesse, ela continuaria sorrindo.
— Mas as mãos são minhas. Tem dedos compridos e grossos — ele olhou para a própria mão, ainda entrelaçada na dela, na altura de seu peito. — Não consigo deixar de olhá-lo.
— Não posso negar que percebi esse fato com bastante facilidade — ela tentou soar séria, talvez até um pouco raivosa, mas tudo que saíra fora um sopro. Seus rostos estavam próximos demais.
— Não posso negar que temi por sua morte, tampouco que sinto sua falta.
Ele se inclinou em sua direção, diretamente preparado para beijar sua boca, mas virou, indo em direção à mandíbula. Quando os lábios dele tocaram na pele dela, todos seus sentidos ficaram mil vezes mais aguçados. Conseguiu sentir cada toque de ar que moldavam seus corpos, conseguia sentir o calor da pele dele esquentando a sua própria, nas mãos e no rosto. Ele baixou sua trilha de beijos lentos pelo pescoço, criando uma linha até a clavícula, as pintas do busto, o peito nu. Não demorou-se em local algum, apenas continuou seu caminho. Desceu até a cicatriz, já quase ajoelhado no chão, e a contornou suavemente com os dedos. Chegou até a trilha vermelha, então beijou-a com mais fervor, começando a passar a língua por todo aquele traço que descia até sua virilha. Ele segurou seus quadris com delicadeza e beijou a base de sua intimidade.
fechou os olhos e esticou a cabeça para trás.
Ali, ele colocou a mão por entre suas pernas e as abriu, ajoelhando-se completamente no chão. Colocou novamente o rosto em sua virilha e, com a língua, começou a contorná-la de uma extremidade a outra, passando com a mesma pressão no clitóris e em sua entrada, afundando muito pouco a língua dentro dela. ofegou, mordendo os lábios. Depois, voltando a entrada, ele enfiou a língua até sua metade, sentindo o gosto de sua excitação. Levou a língua para o clitóris, dando um beijo que se estendeu para um chupão intenso. Usava a língua em movimentos circulares, acariciando com delicadeza a lateral de seus quadris. Desceu uma delas com a ponta do dedo indicador esticada, provocando cócegas, e, bem lentamente, inseriu-o dentro dela, começando movimentos de vai-e-vem. Parou com a língua pelo momento que mordia seus próprios lábios e a encarava contorcer-se, gemendo silenciosa para não acordar seu filho. Seus olhares se encontraram no momento que ele tornou a boca para o clitóris, começando, também, a penetrar dois de seus dedos, indo fundo, massageando-a por dentro, fazendo movimentos circulares também dentro dela.
deu um passo para trás, afim de apoiar-se na pia, antes que caísse por falta de apoio. Ali, encaixou o quadril no mármore e, com as mãos espalmadas ao seu lado, deu o apoio que faltava para que ele pudesse encará-la completamente encharcada de tesão por ele, vermelha, brilhante. molhou seus próprios lábios, saboreando aquela visão. Por uma segunda vez, tornou a sugar o clitóris com intensidade e rapidez, metendo-lhe os dedos com igual importância. rebolou seu quadril no rosto dele, instigando para que ele continuasse o que estava fazendo. Ambos sentiram-na palpitar. A ardência luxuriosa que começava no meio de seu peito e descia em espiral até seu clitóris estava começando a se formar.
Ele não fora maldoso. Continuou com os movimentos rápidos com a língua, indo para cima e para baixo, de um lado para o outro, chupando-o, beliscando-o suavemente, apertando-o para os lados, beijando-o, até que ela, enfim, gozasse, apertando os dedos dos pés, que se encontravam postos acima dos ombros dele.
Assim que terminou, segurou o tornozelo direito de , beijando com os olhos fechados o peito do pé. Subiu tão lentamente quanto desceu, saboreando cada mínimo espaço de pele que sua mulher tinha arrepiado por ele. Quando chegou novamente ao pescoço, entrelaçou sua mão nos cabelos de sua nuca e a puxou para que as bocas se tocassem. Não fora algo intenso de começo. Começara com um leve toque de lábios, línguas, mordidas em seus inferiores enquanto roçavam os narizes e se saboreavam ainda mais. Ele encaixou seu quadril nas pernas abertas dela, fazendo-a sentir já duro, gritando por atenção.
desceu as mãos pelo abdome rijo e definido dele, parando no cós de sua calça. Desatou os botões e desceu o zíper, começando a acariciá-lo por cima da cueca preta. Não se demorou por fora, colocando logo a mão por dentro, sentindo-o extremamente duro, palpitando em seus dedos. Quando fez o primeiro movimento para cima e para baixo, bem lentamente, escutou-o gemer em seus lábios. O quadril dele moveu-se para frente, forçando-a a fazer mais.
Então o beijo se tornou intenso. A respiração começou a ofegar e as línguas se batiam, enfurecidas. A mão dele deixou de afagá-la a nuca e passou a puxar seu cabelo para baixo, de forma que ela ficasse com o pescoço esticado. Ela continuou com o movimento lento, porém firme, com as mãos, acompanhada pelo quadril dele.
Ela queria senti-lo dentro dela. Queria sentir aquela palpitação quente entrando e saindo por sua intimidade molhada.
parou de beijá-la, puxando seu lábio inferior com força. Ela o puxou, lambeu e mordeu levemente, logo soltando-o. Ele a olhava de uma forma admirada, estudando cada mínimo pedaço de seu rosto.
Tornou a beijá-la a mandíbula, mordendo-a suavemente, sentindo o cheiro da pulsação forte em sua jugular, lambendo-a e chupando-a com tanta força que podia sentir o gosto de seu sangue amaldiçoado. Desceu um pouco mais os beijos, a caminho do seio. Abocanhou-o com vontade, segurando-o com a mão que se mantinha livre, longe da nuca. Apertou-o entre dedos e mordiscou o mamilo, puxando-o tão rapidamente que mal houve tempo de vê-lo, tornando a chupá-lo com vontade, movendo a língua em movimentos rápidos e circulares.
Seu quadril começou a se movimentar com mais rapidez, palpitando ainda mais. esticou o quadril para frente e esfregou a glande de seu membro na entrada encharcada de sua intimidade, indo para cima e para baixo com tamanha lentidão.
urrou baixo, encaixando o membro na entrada, penetrando-a com força apenas uma vez, mantendo-se dentro dela. arfava e ofegava, esperando por mais. Rebolou, ouvindo-o gemer e apertar seu cabelo com força. Tornou a beijá-la, movendo-se novamente, bem devagar, sentindo-a inteira, deslizando dentro dela. Retirava o membro por completo para, então, quando tornava a penetrar, fosse com força até o final, fazendo-a mover o quadril.
Beijavam-se de forma mais leve, agora, sentindo-se o máximo que conseguiam. Fazia tempo que não se tocavam daquela forma, seus corpos sentiam falta um do outro.
Ele, então, soltou-a os cabelos e o rosto, segurando-a com força a cintura, os polegares para frente. Puxou-a para frente com força enquanto via-o penetrar-lhe com força, indo e vindo, agora, com mais rapidez. levou a mão para seu clitóris e o estimulou, chupando os dedos antes. deu espaço para que ela continuasse, sem antes lhe devorar os lábios com extremo tesão.
Ela tinha o corpo esticado para trás, com a nuca na parede, enquanto ele metia com força, puxando-a pela cintura enquanto ela própria se masturbava.
Não demorou muito para que ela gozasse novamente. Um múltiplo de palpitações fortes contra o membro duro dele, que permaneceu dentro enquanto aquele evento ocorria.
se esforçava para não gemer.
Ele a puxou para fora do balcão da pia, colocando-a de costas para ele, com as mãos espalmadas na parede. Enrolou a mão em seu cabelo, puxando-o até a nuca, e esticou o pescoço dela para cima, beijando-a a testa. tinha sua bunda empinada, pronta para que ele fizesse o que desejasse com ela.
, por fim, penetrou-a com força, sem demora. Ali iniciaram-se movimentos contínuos e rápidos de um vai-e-vem interminável. tinha o cenho franzido e o lábio entreaberto, gemendo baixo. O baque de seus corpos estava alto, mas, naquele momento, eles não se importavam. Ele desceu a mão livre de seu pescoço para seu seio, apertando-o com força, puxando o mamilo, então desceu para seu clitóris, começando com rápidos movimentos circulares. Ela havia acabado de ter um orgasmo, ela estava muito sensível. Tudo que ela conseguiu fazer foi soltar um gemido alto e agudo, mordendo com força os lábios para impedir que algo mais alto saísse dali. Estava sensível demais, propenso demais a que houvesse mais um. Ele metia rápido, fazendo seu corpo inteiro tremer. desceu uma das mãos da parede para o pulso dele, para que ele parasse, por apenas um momento, aqueles movimentos. Ela não estava aguentando de tesão. Ele não se importou. Puxou o cabelo dela com mais força, deixando-a com o pescoço ainda mais esticado, e mordeu-a o pescoço, sugando-o. Ela gozou outra vez, sem conseguir evitar, desta vez, gritar.
a soltou, dando passos para trás. Ela, meio sem forças, virou-se e ficou escorada na parede, encarando-o masturbar-se com extrema facilidade, graças à extrema lubrificação dela. Seus olhos estavam felinos, seus lábios carregavam um sorriso extremamente luxurioso. Ele a puxou novamente pela cintura, continuando a se masturbar.
, então, abaixou-se e ficou ajoelhada diante dele. Segurou-o o membro pela grande, massageando-a, e passou a língua desde a base até onde a mão se encontrava, sugando-o pelo mesmo caminho quando voltou. Lambuzou-o com saliva, então procedeu aos movimentos de vai-e-vem, circulares, que ele fazia. Colocou a glande na boca, sugando-a com força enquanto continuava a masturbação.
gemeu e sentiu que ele estava preste a gozar.
Ele, então, puxou-a pelos cabelos e colocou-a com os cotovelos apoiados no balcão da pia, com as pernas abertas para ele. Sem demora, ele a penetrou com força, indo fundo em movimentos rápidos de vai-e-vem. Agarrou-a os cabelos e os puxou, apertando-a a nádega enquanto franzia o cenho e continuava com os rápidos movimentos com o quadril, chocando-os com força.
Então aconteceu. Um gozo saudoso, quente, logo, que arrepiou cada mínimo músculo de seu corpo, que se contraiu em prazer.
Retirando-se de dentro dela, assistiu-a virar-se para ele, os olhos completamente satisfeitos.
— Eu amo você, Giansanti Colluzi — disse ele.

Haviam se passado mais dois verões, sendo véspera do terceiro.
e haviam adquirido o temível costume da humanidade cômoda, que não gostariam de sair. Faziam compras, saíam de casa, caminhavam juntos, iam a restaurantes. Estavam agindo como pessoas normais, cujos olhos nunca haviam assistido nada de sobrenatural durante toda sua existência.
Alexander Baal havia se tornado um pequeno rapaz. Era uma criança grande, forte e sorridente, que brincava com tudo e todos. Gostava de cachorros grandes e não hesitava em esticar a mão para que eles os cheirasse. já o havia prometido uma raça, e já o havia apelidado de Cerbero, o guardião do Inferno — e Baal cobrava, embora, no fundo, soubesse que não haveria de ter um cachorro tão cedo. Era um garoto esperto que não aparentava ter seus quase três anos. Perguntava tudo a sua mãe, não se contentando com respostas vazias. Gostava de saber a função de tudo, como tudo começara e como provavelmente terminaria.
Eles ainda não haviam tocado no assunto sobrenatural com o garoto, tampouco disseram a ele — o que, de fato, seria crueldade — qual sua verdadeira alma. Já havia se passado tanto tempo desde que ele não necessitava mais dos cuidados de que, por um momento, ela imaginou que a guerra não passara de um pesado blefe. Alexander não sabia da existência de demônios, tampouco de uma divindade. Na escolinha que frequentava todos os dias, fora bastante clara para que nenhuma professora tentasse empurrar religiões para o garoto, embora uma velha freira sempre insistisse que é de vital importância para uma criança naquela idade ter contato com Deus.
a ignorava e pedia que apenas respeitasse sua opinião. Quando ela saía pela larga porta, não sabia o que a mulher fazia. Por sorte, Alexander nunca a perguntou nada sobre algum certo homem que morreu crucificado.
havia assumido quase que completamente sua alma humana. Embora ainda insistisse em treinar todos os dias com Baphomet, ele pouco expelia suas asas ou dentes quando não estava na presença do outro demônio.
, como Lúcifer a havia prometido, ainda treinava todos os dias, no Inferno. Ela tinha uma gentil relação com o Satã, que a tratava como a filha que outrora tivera por perto. As batalhas que tinham no Submundo duravam cerca de três horas cada e já era capaz de decepar um Sem Rosto sem muita dificuldade. Eram raras as vezes que ela se machucava e precisava do auxílio de Astaroth, seu protetor — ele era um demônio grande que não saía de sua verdadeira forma por nada. Ela nunca o havia visto como humano. Tinha grandes chifres vermelhos que subiam quase oitenta centímetros acima de sua cabeça, com formato parecido com chifres de touros. Tinha a pele dura e vermelha, pernas de cabra e rosto retorcido em uma constante careta de raiva. Seus dentes eram afiados e duros, compridos, de forma que ele não conseguisse fechar completamente sua boca, mantendo-os aparentes durante todo o tempo. A primeira impressão que teve ao vê-lo fora uma instigante curiosidade. Era maravilhoso não sentir medo de demônios, mas sim acolhida em seus grotescos braços. Era maravilhoso fazer parte do Inferno.
A função de Astaroth era, basicamente, enfrentar qualquer um que não conseguisse, se ele a estivesse atacando ou buscando por seu sangue. O cheiro de sua maldição seria, de fato, confundida com o exército que lutaria ao lado dele.
Logo que soube da real existência do exército de amaldiçoados, como Eugine dissera, sua primeira intuição fora contar a Lúcifer o que ela estava tramando fazer. E realmente o fez, mas não deram-na ouvidos. Lúcifer disse que a existência de Eugine era pífia comparada aos demônios de Lilith, que enfrentariam em um breve tempo. Ele não dizia ao certo quando a guerra aconteceria, e, embora dentro dela houvesse uma enorme esperança de que aqueles treinos fossem apenas uma forma de lazer, alguma parte no fundo da sua alma sabia que saber se defender de tais seres haveria de ser seu melhor aprendizado em toda a vida.
Os amaldiçoados serviriam como fonte de poder para o exército, como era de se imaginar. O que não esperava era que eles também partissem para a batalha, com armaduras de material impenetrável para dentes ou garras demoníacas. Recebiam um treinamento diferenciado, focado somente nos demônios mais fracos, os quais os buscariam primeiro, com intuito de drená-los. Haveriam muitos assim do lado de Lilith, garantiu Lúcifer, pois a primeira mulher de Adão não haveria de ter um exército tão bem preparado como os que ele treinava. Os amaldiçoados seriam, na verdade, uma fonte de distração. Quanto menos demônios na muralha de proteção de sua rainha, mais fácil seria penetrar seu escudo e matá-la para enfim acabar com aquela alma desgraçada.
Não conversavam muito sobre quando o Ritual aconteceria. e , e Lúcifer. Pouco conversavam sobre quando Alexander deixaria de ser aquela adorável criança de olhos pretos com pintas azuis e se tornaria o Anticristo. Ela pouco conseguia imaginá-lo como um demônio mais poderoso que o próprio Satã — e ela já o havia visto lutar, sabendo também que aquela não era uma batalha real, que ele poria muito mais força e ódio em cada golpe quando deferido contra Lilith e seu exército.
Pouco antes daquele horário, no meio da madrugada, ela acordara com um inquietante calor. Sentira cheiro de enxofre e fora guiada às cegas para uma vermelhidão na sala de estar. Ali, encontrara Lúcifer. Ele tinha seus chifres expostos, assim como o rabo, e olhava diretamente para o fogo da lareira, este que, provavelmente, ele havia transformado em uma passagem para o Inferno.
— Nossas táticas de batalhas serão passadas para você e assim que a aurora aparecer. Devemos ser espertos, rápidos, e nos integrarmos dos passos o quanto antes. Lilith já preparou seu exército para um provável ataque, mesmo sem a presença do Anticristo. Demônios sussurram sua ansiedade pela carnificina, precisamos estar preparados.
Ela não conseguiu mais dormir. Deitou-se sob o peito do marido e manteve-se com os olhos arregalados até os primeiros vestígios de luz adentrarem o quarto.
Levantou-se sem pressa, guiando-se para o banheiro. Tomou um demorado banho gelado — nem mesmo o ar-condicionado do quarto estava sendo capaz de deixá-la refrescada o bastante para aquele calor — e prendeu os cabelos molhados em um coque — depois de quase dois anos e meio sem corte, ela finalmente os havia passado a tesoura. Cortou próximo às costelas, em um V bastante acentuado. Brilhavam negros, cheios de vitalidade. Vestiu-se com uma short folgado e uma blusa folgada de mangas japonesas grafite.
Seguiu para o quarto do filho, logo a direita do seu. A porta estava fechada, assim como ela deixara. Hesitou a abrir. Seu peito estava queimando. Respirou fundo, com a mão na maçaneta, e virou-a de uma vez. Encarou o garoto dormir de costas para ela.
Respirou aliviada, então, e adentrou o cômodo, fechando a porta.
Caminhou lentamente até onde ele estava e o encarou.
Alexander Baal estava se tornando um belo homem. Estava com os cabelos lisos cortados bem rente à cabeça, com as pontas da frente esticadas para cima pela finura dos fios. Os olhos eram grandes e expressivos, deixavam sempre muito claro o que ele estava sentindo e as sobrancelhas eram grossas e bem negras, assim como as do pai. Sua boca era muito bem delineada, como a de , mas carregava os lábios grossos da mãe. As mãos, de fato, haviam se tornado cópias idênticas as do pai. Pernas compridas, ombros ligeiramente largos.
Ele aparentava ter quase cinco anos, não três.
Ela esticou as sobrancelhas para cima e sorriu, lembrando-se de que, naquele dia, seu filho completaria três anos.
Era o primeiro dia do verão.
Sorrindo, virou-se de costas, então seu sorriso desapareceu.
Parada próxima à porta estava uma mulher esguia, de pele e rosto perfeitos, de cor de porcelana. Seus cabelos, crespos, desciam até seu ilíaco em uma confusão vermelha e seus olhos brilhavam em imensa excitação. Seu sorriso era macabro.
O peito de explodiu. Aquela angústia que sentira tinha explicação.
Ela quis gritar de ódio.
Alexander acordou, virando-se na cama. Quando abriu os olhos pretos deparou-se com aquela mulher desconhecida, que sorriu ainda mais abertamente. Ela se agachou, esperando que ele fosse cumprimentá-la. Mas ele não o fez. Ficou quieto, sentado na cama, esperando que a mãe falasse algo. Em vez disso, a ruiva se pronunciou:
— Feliz aniversário, Anticristo.


44.

Little one, little one, your soul is purging of love and razor blades, your blood is surging.

A lua brilhava intensamente acima de suas cabeças.
Quando abriu os olhos, não sabia como havia ido para aquele lugar. Sentiu-se desconfortável, com pés e mão atados em uma textura áspera e pouco agradável; seu corpo frio, arrepiado e nu estava jogado em cima de uma pedra lisa, comprida e estreita. Tentou reconhecer tal local, mas nada vinha à sua mente. O frio da noite era timidamente espantado pelo calor intenso do fogo, aceso em tochas espalhadas por uma área circular naquele lugar afastado.
Estavam localizados em uma floresta densa, onde aquele parecia ser o único espaço de terra que recebia luz lunar. Era perfeitamente redondo, com a pedra em que ela estava deitada posta bem ao seu centro.
Era um lugar perfeito para um Ritual.
Assim que o corpo se recuperou do desmaio, conseguiu ouvir algo além de seus pensamentos perturbados: o canto de uma coruja, o correr de um roedor, a respiração ofegante de outrem postado atrás dela, que urrava seu ódio às claridades de um céu sem estrelas. Pouco a pouco, seus sentidos se tornavam aguçados pelo medo que, subitamente, surgira em meio ao seu peito desnudo. Os sons tornavam-se mais altos conforme sua consciência retomava a perfeição. Com a cabeça doendo ao mexer-se, ela procurou esticar os olhos para ver além: era quem urrava.
Ele estava furioso, gritando coisas das quais ela não conseguia compreender, em latim, amaldiçoando quem quer que fosse em sua voz de demônio — e, embora já o tivesse escutado falar naquele tom, soava muito mais ameaçador e tenebroso quando posta em tal situação. Ela buscava de alguma forma tentar entendê-las, mas não havia modo. Seu cenho estava franzido, enrugado por tamanho ódio. As garras estavam expostas, mas não eram capazes de alcançar o que o prendia — algo como fogo, envolto em torno de seus pulsos, cintura, panturrilhas e pés; algo tão forte que nem mesmo com sua imensa força de demônio com raiva não conseguia soltar — assim como os chifres e as asas, que se debatiam de uma forma animalesca. Mesmo com a cabeça postada para frente, encarando sua fonte de maldição, as veias de seu pescoço saltavam intensas, grossas e brilhantes por baixo do suor de sua pele avermelhada.
Ela se voltou para frente. Sua cicatriz em forma de cruz invertida estava brilhando intensamente à luz da lua. Tinha uma cor pálida cintilante, perolada, que dançava junto ao fogo, que a tornava suavemente alaranjada. Ao seu lado, um demônio sem rosto a encarava sem piscar, como se tomasse conta dela. Sua respiração pesada e quente batia próximo ao tríceps estendido para cima dela, em uma posição desconfortável e bastante reveladora. Os olhos dele estavam fixos no caminhar de outra pessoa, que sussurrava baixo palavras, as quais ela também não conseguia entender.
Pouco depois de encarar o demônio, viu o outro. Lilith usava uma saia longa preta que lhe cobria os pés descalços e sujos da terra vermelha do local, sem blusa, com os cabelos vermelhos esticados para frente, tampando-a os seios. Em seus braços, Alexander estava inquieto: tinha os olhos arregalados, assustados, e segurava-lhe o pescoço com força, com medo de ir ao chão. As pernas estavam encavaladas em meio às costelas da avó, que lhe sussurrava canções demoníacas no ouvido, ninando-o a fim de deixá-lo mais confortável.
Somente então, depois de todo aquele tempo, ela se lembrou.
Haviam discutido, logo depois de Lilith dizer que o Ritual estava preste a acontecer. Ela havia gritado, tentado atacar o demônio, mas ela revidou. Dera apenas um bruto golpe em sua cabeça, com o pé, simples para derrubá-la junto ao chão e mantê-la daquela forma pelos minutos que a imobilizava com cordas grossas, envolvendo-as em silver tape. Depois, quando retomou a consciência pela primeira vez, não fora muito capaz de enxergar o que acontecia, mas entendera com perfeição o que estava acontecendo: Lilith e estavam lutando, mas ele não conseguia acompanhar os movimentos da mãe. parecia um pouco lesado, talvez preocupado excessivamente com o que Alexander estava presenciando. O garoto, aliás, gritava desesperadamente em cima de sua cama, chamando o pai e a mãe.
Presentes ali estavam ela, o filho, Lilith, , um Sem Rosto e outro alguém, que ela não conseguia identificar ainda. Estava de costas e usava uma capa com capuz preto. Balançava-se de um lado para o outro, andando lateralmente em relação ao fogo, com as mãos espalmadas para cima, como quem reza.
Quando completou uma volta completa, as chamas se ergueram para até trinta metros acima de suas cabeças, brilhando forte em uma parede que os separava do resto do mundo.
Circulado em torno do mármore que a estendia, haviam desenhado um pentagrama invertido com sangue de almas puras — em relação ao nascimento de uma criança cuja alma é pura e livre do mal.
O cheiro e o calor eram insuportáveis. Havia, além do fogo, carcaças de cabras mortas jogadas sem muito mérito, oferecidas como alimento para quando Alexander se tornasse o Anticristo — cabras representam a sujeira da humanidade e, colocando-as para dentro de si e alimentando-se de suas fraquezas e pecados, Alexander tornaria-se dono de tal sujeira; ele conheceria a fraqueza de seus submissos para, então, poder usá-la a seu favor.
Lilith, depois que derrotasse Lúcifer e se tornasse, então, rainha do Submundo, conquistaria a Terra e destruiria o Segundo Mundo para, assim, então criar um seu. Não satisfeita em derrotar o Demônio, ela queria mostrar ao Ser Superior que Seu mundo não era bom o suficiente para permanecer em pé com ela no poder. Suas criações seriam postas como escravos, alimento, lixo, excretos. Ela seria muito mais superior que qualquer outro ser. Seria muito mais poderosa que qualquer um dos homens que um dia tentaram dominar os três mundos.
Olhando para os céus, encolhendo os olhos pelo calor e pela ardência daquelas chamas, teve o vislumbre da pequena Eugine e seu cabelo de leão. Ela gritava muda, contorcendo-se naquele mesmo local que ela se encontrava agora. Demônios dançavam em sua mente, rindo de sua agonia, alimentando-se de seu medo enquanto bruxas recitavam poesias satanistas que a fariam ter o sangue amaldiçoado para o resto de sua curta existência.
Estavam em um local afastado, na Itália.
Aquele havia sido o local do sacrifício de Eugine.
O sexto participante se virou. A mulher era velha, tinha longos cabelos pretos azulados que desciam até depois de sua cintura. Olhos tão negros quanto a noite, era impossível detectar o que era pupila e o que era íris. O corpo era alto e, pelo contorno forte de seu rosto, ela parecia ser magra. Trajava-se inteira de preto e escondia os pés.
— Katherine, já não chegou o momento? — indagou Lilith, parecendo impaciente.
Katherine ergueu o rosto para a lua e sorriu — os dentes podres e sujos. Ergueu as mãos para o alto, mostrando as unhas também mal cuidadas, quebradas e sujas de musgo, e fechou os olhos, começando a recitar algo em latim. Tinha dedos compridos e enrugados, manchados pelo tempo e pelo descuido. Ela se balançava de um lado para o outro, levando junto de si a barra daquela vestimenta preta. Abaixou a cabeça para o chão, ainda com as mãos para cima. Os animais voaram assustados, cantando a sinfonia pavorosa do temor. sentiu seu corpo inteiro tremer em uma convulsão, seu sangue fervendo, ardendo em suas veias. Quis gritar, mas não havia voz suficiente para expressar tamanha agonia. Crescia desde o peito até o último fio de seus cabelos bagunçados, que dançavam junto com o vento forte daquela perfeita noite para demônios.
A imagem de Eugine desapareceu completamente e ela tentou se encolher com a proximidade das chamas, mas o corpo não respondia. Sentiu uma lágrima cair por sua bochecha e, de soslaio, percebera-a vermelha — seu sangue escorria pelos olhos, ouvidos e nariz. A boca tomou um gosto forte de ferrugem, mas não sentia a respiração se alterar por qualquer líquido que estivesse começando a tomar sua garganta. Os dentes se avermelharam pelas gengivas que sangravam.
urrava descontroladamente.
Lilith deixou Alexander próximo do Sem Rosto, que não se moveu. O garoto encarou, com os olhos arregalados, o corpo nu da mãe, caminhando lentamente em sua direção.
sentiu vontade de chorar. Não podia acreditar que aquela seria a última vez que veria seu filho com tamanha inocência. Não queria que ele a visse de tal forma, sangrando pelas extremidades, sem poder se mover ou falar com ele. Almejava com todas as forças restantes de seu corpo que pudesse, ao menos, sussurrar-lhe que tudo haveria de terminar bem, que aquela noite não passava de um terrível pesadelo e que logo estariam juntos, sentados no sofá, assistindo ao seu desenho preferido. Ela o agarraria com tamanha força que o faria perder o ar, envolvidos em risadas sinceras que não terminariam em poucos segundos. O amaria como se não houvesse outra criatura no mundo com tamanha inocência e perfeição — de fato, haveria? Ela não o deixaria só, de forma alguma, até em seu leito de morte. Viveria mais cem anos, nem se precisasse doar sua alma ao Satã, somente para poder acompanhá-lo em todos os mínimos segundos de sua imensa vida, para poder rir de suas felicidades e consolá-lo no pior de seus pesadelos. Queria que aquele momento não estivesse acontecendo. Queria poder abraçá-lo, mas o corpo não respondia. Estava presa entre ossos e carnes que não correspondiam suas ordens. Respirava e engolia sangue, tentando sobreviver para poder salvar seu filho.
Lilith seguiu até Katherine e começou, junto dela, a recitar ainda mais alto e mais forte, segurando suas mãos unidas, de olhos fechados. Ela levantava sua cabeça para as chamas, enquanto Katherine mantinha-a para baixo. Os olhos de Lilith brilhavam ainda mais vermelhos, completamente possuídos pelo espírito do fogo. Os animais estavam atiçados, remexendo-se em suas casas, uivando, correndo. Queriam presenciar o que estava para acontecer. O demônio fêmea guiou-se para próximo de novamente e, de dentro da saia, retirou uma adaga extremamente afiada.
Com os olhos de demônio e os dentes expostos, ela esticou o braço para cima, segurando a adaga com as duas mãos, e enfiou na coxa da mulher, que, imóvel, chorou mais sangue.
Alexander deu um passo para trás e começou a chorar. Antes analisando a cor extremamente atrativa do sangue de , Lilith virou-se para o garoto e o encarou, completamente insana. Sorriu de forma macabra e passou a adaga por entre os dentes, lambendo o sangue amaldiçoado de sua mãe.
Alexander quis correr, mas o Sem Rosto segurou-o pelos braços e o ergueu até a altura dos de Lilith. A mulher o pegou pela cintura com facilidade, escutando-o gemer e contestar. Ele tentou bater nela, mas a mão ensanguentada de Lilith o segurou e o quietou. Apoiando-o sobre o mármore em que estava, ela o imobilizou com apenas uma mão. Com a outra, guiou-a para o sangue que escorria velozmente por entre o corte e a sujou inteira de vermelho, metendo os dedos por entre as frestas de pele. Levou a mão até a boca do garoto, que não a abriu. Lilith forçou, até que ele, chorando e gritando, lambeu o sangue amaldiçoado da mãe.
Katherine se aproximou e começou a gritar o ritual. Ela deixou Alexander parado em pé em cima do mármore e o segurou a cabeça, este que agora tinha as pupilas extremamente dilatadas, puxando seu cabelo com força para que seu pescoço ficasse imobilizado e esticado totalmente para cima. Dali, mordeu-o a carótida e sugou seu sangue híbrido, cuspindo-o no chão. Com o buraco já feito, o fogo era cortado por sombras pretas que dançavam por entre aquele local, indo e vindo em torno do corpo de e Alexander.
Lilith soltou o garoto. Naquele momento, seu corpo pequeno ficou petrificado. Os olhos arregalados, a boca entreaberta. As sombras dançavam por entre seus membros, que logo desgrudaram da superfície do mármore.
Com a cabeça estirada para trás e os braços abertos, Alexander começou a flutuar. As sombras entraram por entre os furos de seu pescoço e saíram por sua boca, nariz, olhos. Dançavam por entre os contornos de suas pernas e braços, segurando-os para que ele fosse mais para cima. Seus olhos foram lentamente sendo tomados pelo mesmo negro das sombras, indo, pouco a pouco, tomando-o o branco e substituindo-o por mal.
socava o fogo que o prendia, mexendo-se com força para, a todo custo, se soltar. Os pulsos estavam afrouxando, mas a pele queimava com mais rapidez, tornando-se crua.
soluçava, implorando muda para que ambas parassem de falar. Elas olhavam famintas para o corpo da criança, que começava a se debater e gritar de forma muda enquanto as sombras entravam por entre os vãos de seu corpo, possuindo sua alma inocente.
Gritavam fervorosas as palavras tão bem decoradas de um Ritual extremamente sofrido. se debatia com mais força.
Os olhos do garoto se fecharam, assim como sua boca. As sombras haviam sumido, estavam já dentro dele. Ele continuava com a cabeça estirada, flutuando com os braços e pernas soltos.
As mulheres quietaram seus lábios, esperando que o próximo ato acontecesse, olhando com insanidade para a pequena criança. O corpo de parou de queimar, fazendo-a sentir-se leve. Sofrera para manter os olhos abertos, que ainda ardiam pelo sangue, fixados no corpo de seu filho.
Entretanto, um barulho estrondoso de algo forte se rompendo a fizeram desviar os olhos para o lugar onde estava.
Ele havia conseguido se soltar.
Voou como uma besta no pescoço de Katherine e o quebrou com apenas um único golpe, separando-o da cabeça. Jogou-a para além das chamas, encarando Lilith com um ódio que ela nunca vira igual.
O urro de dor que a fêmea soltou fora forte o bastante para afugentar os animais.
— Eu vou matar você! — gritou ele, já voando em sua direção.
Deu apenas dois grandes passos e segurou-a pelo pescoço, batendo sua cabeça repetidas vezes no chão. Segurou-a pelos cabelos de fogo, enrolando-os nos pulsos, erguendo-a com apenas uma das mãos. Com a mão em garra, enfiou-a no meio de suas costelas um par de vezes, sem conseguir romper a pele.
Lilith enfim revidou. Esticou as pernas e golpeou-o no quadril, empurrando-o. Sem que antes ele tocasse o chão, já bateu as asas e foi para perto de Alexander.
— NÃO TOQUE NELE!
Lilith expeliu as suas, de fogo, e voou mais rápido que , agarrando-o pela cintura e jogando-o contra o chão. Deu diversos golpes em seu rosto, socando-o repetidamente. Ele a segurou por um dos pulsos, puxando seu cabelo para que suas cabeças se chocassem com força. Com o impacto, ela cambaleou suavemente. Fora a deixa para que ele se metesse em sua cintura, com um joelho em cada coxa, e mordesse-a o pescoço. Arrancou a pele, cuspindo-a para o lado. Imobilizando-a os pulsos com uma das mãos, ele, com a outra, puxou as veias de seu pescoço até que elas estourassem. Segurou com força sua traqueia e, de uma só vez, tentou arrancá-la.
Falho.
Lilith urrava de ódio e dor, com o cenho completamente franzido em uma careta demoníaca pavorosa. também tinha seu rosto completamente franzido, os chifres expelidos e as asas eriçadas.
Por um momento, largou-a o pescoço e afundou as asas em mil adagas em seu corpo, fazendo incontáveis furos que atravessaram a frente e trás de seu corpo. Lilith agarrou uma delas e, com força, puxou-a até que o osso estalasse. gritou, dando um passo para trás, como um animal acuado.
Ela voou em sua direção, segurando-o pelo braço, jogando-o no chão. Sentou em seu quadril e, da mesma forma que ele, segurou-o pelo pescoço com as duas mãos e apertou com força. Era possível prever a cabeça dele explodindo para fora do corpo.
Por um segundo, ela olhou para os céus.
Alexander não estava mais lá. O Ritual não havia se completado e somente Katherine sabia o resto.
Ela gritou de ódio, procurando o garoto.
não estava mais no mármore.
Naquele momento de descuido, conseguiu se livrar das mãos dela. Voou para cima da parede de chamas, que cedia ao vento, se desfazendo, e encarou-a por cima.
Lilith fervia ódio.
Quando preparava-se para subir e matar o próprio filho, algo em sua cabeça a fez parar. Um apito agudo e extremamente torturante. Parecia explodir todos os mínimos vasos cerebrais existentes em sua cabeça. Ela se agachou no chão e apertou a cabeça enquanto gritava e arranhava as laterais das têmporas a fim de desviar uma dor para a outra. Sangue demoníaco começou a escorrer por seu rosto, pingando no chão de terra vermelha. Seu corpo inteiro começou a tremer e seus músculos, a se contraírem, fazendo-a recolher os braços e pernas em uma paralisia total. Era como se todo seu corpo tivesse uma cãibra de uma só vez. Ela estava encolhida, com as extremidades retorcidas, babando e gritando, girando os olhos de dor.
Tentou olhar o que estava fazendo aquilo, então viu Alexander encarando-a com os olhos de Lúcifer, transparentes e frios. Ele não tinha nenhuma feição, apenas permanecia parado, encarando-a com as mãos entrelaçadas na altura do quadril. Manteve o ar inocente, embora a olhasse com os olhos do avô.
— FILHO DE LÚCIFER! — urrou ela.
estava encolhida, abraçando-se, encarando o filho com o mesmo amor de antes, mas muito temor do que ele era capaz de fazer agora que havia se tornado um ser do qual ela desconhecia.
Lilith estava sendo torturada da pior maneira possível.
— MATE-ME! — gritou ela. — MATE-ME, MATE-ME!
Os olhos dela estavam prestes a explodir.
pousou ao lado da mãe e, deliciado, assistiu enquanto ela se retorcia de dor e agonia, pedindo para morrer. Sorria alegremente, deleitoso com aquela imagem extremamente satisfatória.
— Alexander! — gritou ele, com a voz extremamente grossa e rouca.
Ele olhou para trás e o menino o respeitou com a mesma velocidade de sempre.
Ele ainda era seu filho, não o Anticristo que ela tanto desejava.
Lilith estava ofegante, com o rosto iluminado por sua própria saliva. Os olhos estavam arregalados e vermelhos, havia sangue em seus cantos.
Ela estava a um milésimo da morte.
— É a segunda vez que tenho a oportunidade de te matar — disse ele, bem próximo de seu rosto. — Eu não posso esperar para quando a guerra começar. Não posso esperar para eu mesmo acabar com esse seu caralho de vida.

O Ritual não havia ocorrido como deveria ser. Katherine era a única quem sabia as palavras finais, que tornariam Alexander completamente apático. O Anticristo haveria de ser completamente desprovido de sentimentos, uma máquina completamente insana de ódio e repulsa pela raça humana. Haveria de destruir tudo que tinha vida, a seu bel prazer, e não aceitaria ordens de ninguém, não seria controlado. Sua força seria provida das chamas do Inferno e, enquanto estas continuassem acesas — para o resto da eternidade —, sua força prevaleceria. Era capaz de matar com apenas um olhar penetrante, que derreteria a alma do ser que desejasse — a alma morreria de dentro para fora, se desfazendo em lava, que consumiria o corpo do indivíduo. Nisso, o próprio queimaria de dentro para fora. Os músculos, células e órgãos se deteriorariam em ácido, até que o ser estivesse completamente morto, uma poça vermelha e rosa de sangue e órgãos derretidos. Alexander tinha essa capacidade e, agora, reconhecia isso. Sabia controlar. Entretanto, mantinha seu sentimento por , , e todas as outras pessoas com quem ele já havia tido contato em sua vida humana. Seu corpo se adaptaria aos novos poderes em pouco tempo — se tornaria uma criança mais forte, com músculos mais rígidos e ossos de diamante, assim como os pioneiros e seu pai, quase inquebráveis. Seus olhos seriam como os do avô, completamente frios. Não haveria muita expressão neles, mas seria capaz de controlar qualquer um com o azul insano. Como não completado, o Ritual manteve as pintas pretas de sua nascença, herança de seu pai, da alma da avó.
Alexander tinha todo o poder do Inferno na palma de suas pequenas mãos.

Lilith, depois de quase vinte e três horas, se recuperou completamente. Ainda estava na floresta, rodeada por carnívoros que não conseguiam se aproximar pelo forte cheiro de putrefação demoníaca — um cheiro forte e ácido, impalpável para qualquer tipo de animal. O corpo de demônios não poderia servir de alimento, embora os chamasse, como qualquer carne podre.
Suas feridas estavam fechadas, cobertas por uma finíssima camada de pele nova. O tempo de recuperação completa por sangue virgem já havia passado.
Ela tinha uma gigantesca cicatriz no pescoço e nas costelas. Todo seu corpo estava marcado por furos, providos do ataque das asas de .
Ela se levantou cambaleante, empurrando os cabelos para trás dos ombros enquanto averiguava sua atual situação.
Olhou para os céus e soltou um urro forte e extremamente raivoso, que afugentou todos os animais ali presentes.
Esticou as garras e as asas para fora, gritando ainda mais ao fazê-lo, pela dor. A língua de cobra também foi expelida, seus olhos brilhavam em vermelho, dançando com as chamas do Ritual que não fora realizado.
Lilith saltou em um voo falho, olhando fixamente para o horizonte. Tinha os olhos franzidos em uma careta demoníaca completamente insana, corrompida em ódio.
Se alimentaria de todos que passassem por seu caminho, atacaria, principalmente, crianças. Comeria suas carnes, mastigaria seus ossos, tomaria até a última gota de seu sangue.
Naquela noite, a batalha teria seu início.


45.

This is a call to arms, gather soldiers, time to go to war.

— Eu não consigo fazer isso — soluçou ela, abraçando os joelhos em uma ridícula posição fetal, sentada no sofá. Seu rosto estava vermelho, encharcado por lágrimas que insistiam em permanecer saindo por seus olhos transparentes e vermelhos pelo choro.
O homem passou a mão pelos cabelos já ralos pelo corte, suspirando alto. Fechou os olhos e, com uma mão postada na cintura, abaixou o rosto para o chão.
— Você precisa ficar calma — pediu ele em uma tentativa falha. — Você precisa respirar fundo e ficar calma.
Depois das janelas fechadas, o tempo estava escuro. As nuvens carregavam tamanha água que, quando caísse, não seria de se espantar caso levasse consigo toda a vitalidade daquela cidade aparentemente morta. Manhattan, tão sempre cheia de luzes, estava deserta. Animais voavam para longe, procurando o máximo de alimento que seus estômagos pudessem suportar. Todos pareciam perceber que algo aconteceria aquela noite.
Ela se perguntou se não haveria, para cada uma dessas pessoas, um anjo que lhe sussurrasse aos ouvidos que permanecessem em casa. Talvez algum ser superior, Deus ou quem quer que fosse, houvesse criado aquela tempestade para que os mantivesse aquecidos dentro de suas casas, com as cabeças cobertas pelos edredons, exatamente como se encontrava agora.
Alexander estava dormindo. Tão tranquilo como chegou ao apartamento, manteve-se. No momento que o viu dar o primeiro suspiro de um sonho, desabou em lágrimas que não paravam. já havia perdido sua pequena paciência de demônio.
Estava para acontecer e ele deveria estar devidamente alimentado. Lúcifer já havia sido informado de que Lilith estava fraca e debilitada, que o Ritual não havia dado certo e que Alexander respeitava as ordens dos pais.
se ergueu. Prendeu os cabelos ainda compridos em um coque e limpou o rosto com as duas mãos, de forma bruta, fungando e respirando fundo. Guiou-se para o banheiro e trancou-se ali.
a olhou percorrer o caminho e, quando a porta o impediu de continuar observando-a caminhar, ele se voltou para a janela. Era muito fácil ver os raios que demônios criavam — aquilo não era divino, pois até mesmo ele, sem temer, via rostos e risos. O vento não soprava sua sinfonia noturna diária, mas cantava uma música de batalha. Quando os raios iluminavam os céus, ele via a silhueta de um exército voando por entre as nuvens extremamente acinzentadas, guiando seu caminho para o oeste.
A batalha se daria início daqui há algumas poucas horas. Ele já deveria estar pronto.
Abriu a janela, sentindo o cheiro da morte ecoando pelos vãos dos prédios. Colocou-se agachado no paradeiro, segurando-se nas beiradas. Dali, saltou, expelindo as asas com envergadura maior. Voou alto, procurando uma presa. Não demorou a encontrá-la. Mergulhou completamente rígido em direção a uma mulher que caminhava apressada, segurando algo contra o peito. Ele pousou ereto à sua frente, fazendo-a parar ofegante, com os olhos arregalados. A coisa entre seus braços se remexeu e ela a aninhou, protegendo-a.
não disse nada — não era conveniente brincar com a comida, uma vez que deveria alimentar-se o mais rápido possível, do maior número de gente. Segurou-a pelo pescoço, fazendo o embrulho cair. Antes mesmo de ouvir qualquer coisa senão o barulho de seu desespero, a mulher já estava morta.
O embrulho era um bebê que logo começou a chorar de forma escandalosa.
Ao largar a mãe morta no chão, se voltou à criança. Era parda, com grandes olhos claros. Chorava de forma irritante.
Não pensou muito, apenas a sugou a virilidade. O virgem puro do sangue o fez arrepiar, respirando fundo para controlar o deleite. As penas se tornaram ariscas e arrepiadas, assim como os pelos eriçados de seus braços e nuca. Seu rosto tornou-se mais brilhante, jovem, e os machucados tornaram-se mais invisíveis.
Não sentia remorso. O filho de Lúcifer, herdeiro do inferno, pai do Anticristo, não sentiria remorso por ter tirado a vida de um recém-nascido. A imagem de seu próprio filho, Alexander, veio à tona quando abriu os olhos.
sorriu para a imagem, saltando para caçar mais uma presa.
Ele seria brilhante.

Já se passava das quatro da manhã — hora da força extrema dos demônios.
Havia um exército de Sem Rostos posto à esquerda de uma legião de demônios em suas formas originais, com chifres, asas, dentes, garras. Estavam com o rosto franzido, esperando o momento para que pudessem voar e dar início àquela deliciosa carnificina.
Andando de um lado ao outro, instigando seus seguidores, estava Lilith — mas aquela não era o demônio que a legião conhecia, era uma figura distorcida e errônea do que um dia fora perfeição: tinha marcas não tratadas por todo o corpo, furos e cicatrizes que a sugavam parte da beleza angelical. O cabelo vermelho estava em chamas, eriçado para os lados, tamanho seu ódio a gritar com todos os pulmões, sentindo o gosto do sangue na garganta, que aquela seria a Batalha Eterna. A batalha que os demônios de quatro mil anos lembrariam e espalhariam às suas futuras gerações como a vitória incontestável de Lilith, a primeira mulher de Adão, e seus fiéis seguidores, odiadores daquele que primeiro caiu. Ela ergueu seu braço ossudo aos céus, no momento que um trovão ecoou naquele lugar isolado, esticou as garras e urrou para os céus, sendo seguida por todo seu exército, que batiam as asas em euforia por sangue.
O chão estremeceu, a chuva tornou-se mais forte. Da floresta, demônios corriam junto de seres infernais, filhos de Cérbero — eram grandes como cavalos e largos como elefantes. Tinham oito patas grandes, com garras mais afiadas e grossas que qualquer outro ser demoníaco. Os dentes eram igual gigantescos, empurrados para frente, de tal forma que os seres não conseguiam fechar suas bocas, deixando-as abertas em uma careta enrugada. Seus olhos eram pequenos e refletiam a luz, sendo completamente pretos. Tinham dois buracos no centro do rosto — as narinas. A carcaça era dura como couro envelhecido, recoberta por uma pelagem grossa de cor marrom-escuro. Corriam rápido, ainda que pesados, e soltavam o ar pelos buracos a cada passada. Eram seres grandes e fortes como rinocerontes, mas tinham a agilidade de raposas.
Ao lado dos seres, demônios vinham a pé, correndo com os braços e asas para trás, acompanhados por outros vários que voavam por entre as árvores, esquivando de seus troncos.
Diferentemente dos seguidores de Lilith, os de Lúcifer mantinham suas feições neutras — era impossível distinguir o que estavam pensando.
Um vão se abriu no chão e dali almas perdidas, negras, subiram em espirais, gritando seu choro eterno. Sem Rostos subiram agarrados às rochas alaranjadas, onde o cheiro forte de enxofre impregnava o ar em torno daqueles demônios — eles sorriram ainda mais com a expectativa.
Aos poucos, o exército de Lúcifer foi se posicionando. Os demônios paravam de correr, de voar, quietavam as patas dos seres infernais e encaravam seus inimigos. Postaram-se atrás do vão que se abrira no chão.
Por último, Lúcifer surgiu.
Voava lentamente, quase sem bater suas asas compridas e largas, mais negras que qualquer outra ali presente.
O sangue de Lilith ferveu e ela franziu ainda mais o rosto, sentindo um arrepio de ódio passar por todos os mínimos espaços de seu corpo quente, revirando seus órgãos.
— Olá, mulher — ele disse, sorrindo. Lilith rosnou e deu permissão para ataque.
Não demorou muito mais para que todos os demônios urrassem para a tempestade, colocando-se em posição de ataque. Em um minuto, a batalha se deu início.
Demônios voaram para os céus e, ao fundo de trovões e raios, garras eram afundadas em carnes, dilacerando pedaços e órgãos, que caíam junto à água no rosto dos que permaneciam em chão.
Lilith expeliu suas asas de fogo e manteve o olhar fixo em Lúcifer, que permanecia com aquele sorriso no rosto. Ela gritou e, em um pulo, começou a voar em sua direção. Demônios de Lúcifer voaram para ela, com intuito de protegê-lo — enquanto ele permanecia parado em meio ao ar, acompanhando com os olhos os movimentos rápidos de sua mulher.
Aquela era uma dança maravilhosa. Lilith agarrava-os pelas cabeças, mordendo-os o rosto, a nuca, o pescoço. Puxava, de um lado, o lugar mordido e, do outro, seu próprio rosto. Urrava, cuspindo pedaços de guerreiros. Um deles tentou puxar seu cabelo para baixo, tendo a mão exposta em carne viva. Ela se voltou para ele com uma careta horrenda no rosto, gritando, e mergulhou em seu corpo. Segurou-o com as pernas a cintura e cravou as unhas nas extremidades de seu pescoço, segurando-o com força, tocando com a parte de fora dos dedos sua traqueia. Puxou-o apenas uma vez, com força, até que seu pescoço fosse apenas osso. Dali, cravou os dentes e o puxou, fazendo-o cair numa poça de cadáveres que pouco a pouco tornava-se maior.
Ela não se importava quem estava morrendo, se era seu ou dele, queria apenas matar.
Outros demônios pulavam nela, tentando atingi-la pelas cicatrizes mal curadas — um lugar mais fino, de mais fácil acesso — e sempre que tocavam ali, Lilith sentia dor e ódio ao lembrar-se de quem as havia feito.
Aliás, onde se encontrava seu filho?

saiu do banheiro com o rosto inchado, mas já havia parado de chorar. Não sentia fome ou vontade de sair de casa. Ao sentir um calafrio, olhou para a janela aberta. O vento que saía dali era absurdamente gelado. Caminhou lentamente para fechá-la e, ao olhar para o horizonte, viu fogo.
Havia uma luz alaranjada que contornava a silhueta de seres que voavam rápido, correndo em espirais, se defendendo, golpeando, caindo mortos.
Seu ar saiu pelos pulmões e não voltou mais.
A batalha havia começado.
Ela se virou apressada, correndo até o quarto de Alexander.
Ele não estava mais dormindo em sua cama.

segurava o corpo do menino com força enquanto voava para onde seu instinto o ordenava. Sentia-se forte, sentia a energia que o corpo de Alexander emanava por entre os poros da pele.
Pousaram por entre as árvores em uma distância considerável de onde a batalha acontecia.
segurou com força os ombros mais largos do filho e o olhou diretamente nos olhos de cor diferente. O garoto estava ansioso, dava para perceber. Não parava de se mover e sorria para os troncos, olhando em volta, esperando o momento certo de emanar seus poderes para destruir quem quer que fosse.
Estava ansioso para matar.
— Me escute — disse —, preciso que você preste muita atenção.
O garoto tentou parar, olhar somente para o pai, mas sua distração era muito maior. O barulho dos ossos se chocando, o som agudo dos gritos de dor, os urros de ódio, os corpos caindo, a morte chamando.
tirou de dentro de seu bolso traseiro um saco vermelho vinho. Era sangue virgem, retirando de outro recém-nascido — ele havia se alimentado de meia dúzia deles, atacando uma creche. Sentia-se mais forte que o próprio Satã.
— Você precisa beber tudo — ordenou ele, firme, já sem muita paciência.
Alexander esticou a mão e segurou o que o pai oferecia.
— É quente. O que é? — ele abriu para analisar melhor o conteúdo. Cheirou-o. — Tem cheiro ruim.
— Beba tudo.
— Mas, pai...
Beba tudo, Alexander Baal.
O garoto, então, respirou fundo e segurou o plástico transparente de modo que formasse um tipo de escorregador. Encostou-o nos lábios e tomou o primeiro gole. Seu estômago revirou. Ele franziu com força o cenho e fechou com igual força os olhos.
Bebeu tudo, deixando a boca inteira vermelha pelo sangue.
— Como se sente? — indagou . — Sente-se mais forte?
Alexander não respondeu. Algo dentro de seu corpo começou a vibrar, impedindo-o de falar qualquer coisa. Olhou para trás — para a batalha — e sorriu — os dentes vermelhos tornando-se pavorosos àquela luz.
— Papai, mostre-me quem devo matar primeiro.
sorriu, colocando-se de pé. Não segurou na mão do filho como sempre fizera, apenas trancou os punhos e caminhou por entre a floresta.
Viu, por entre o vão das árvores, que o buraco formado no chão, a entrada para o Inferno, soltava bolas de fogo, atirando-as na direção do exército de Lilith. Asas de demônios derretiam em chamas, fazendo-os cair em meio à roda de outros demônios que os esquartejavam e partiam para outro.
Os filhos de Cérbero corriam e mordiam as costelas dos inimigos, balançando-os como um brinquedo, partindo-os em pedaços. Viravam, com a boca ensanguentada, e corriam para atacar outros.
Um demônio veio correndo na direção deles. Estava assustado, com os olhos arregalados.
Tinha cabelos ralos na cabeça e, embora em sua forma de demônio, era possível imaginá-lo como gente.
e Alexander pararam de andar. Ele deixou que o garoto fizesse o que seu instinto mandava.
Primeiro, Alexander ergueu a mão, fazendo-o cair no chão e colocar as mãos na cabeça. Encolheu-se em posição fetal, incapaz de emitir qualquer som. O rosto estava repuxado em uma careta de dor.
Baal abaixou a mão e o encarou sem feição, inclinando o rosto para um dos lados. Dali, ergueu um pouco o queixo, tornando a deixar o pescoço ereto, e subiu o olhar, levando consigo o demônio que ainda se repuxava por completo.
Ele era muito magro para ser um guerreiro. Provavelmente havia vindo para aproveitar a bagunça, entrar no Inferno novamente, tentar roubar alguma carne, assistir ao show de camarote.
Mas de que adiantava vir, sabendo que seria uma carnificina? Demônio nenhum deveria temer sangue. Demônio nenhum deveria ser fraco, sentir medo.
Pavor? Um sentimento tão banal, tão humano, não deveria partir de qualquer ser sobrenatural que lida com morte, que é a própria morte.
Ele não deveria trajar as asas, carregar os chifres, ter caninos tão afiados.
Alexander o despiu a pele. Arrancou-a como um pano fino que protege o fígado cru de seu almoço — e o imaginou assim, quando começou a sangrar. Puxou-o os caninos com apenas um olhar, deixando-o completamente sem dentes. Depois, as garras e os chifres e, por último, as asas.
Agora, sim, ele podia sentir medo. Não era mais um demônio, mas sim um humano com alma eterna.
Que tipo de ser foge de uma briga?
Alexander não admitiu tal fraqueza.
O demônio estava cru, não era nada além de um disforme preto repuxado em uma posição patética e fraca. Os olhos, talvez a única coisa que ele ainda conseguisse controlar, encaravam ao garoto com muito mais pavor que respeito — e Baal não gostou daquele olhar, então os explodiu.
— Pai, sugue-o a alma — pediu calmamente. — Ele não merece ser o que é.
, então, esticou a língua para fora e chegou perto do demônio. Sugou-o a alma como fizera anos atrás, com o demônio que invadira o corpo de sua mulher.
Depois daquele episódio, poucas foram as vezes que ele realmente precisara usar aquele poder herdado, antes desconhecido. Surgira com a necessidade e tornou-se de fácil acesso após o primeiro uso.
A alma daquele demônio agora se encontrava dentro de seu corpo e, consumindo-a, absorvia seus poderes realmente úteis, se existentes. Ficava mais forte, agressivo, mais demônio.

não queria sair de casa. Permanecia girando em torno da sala, cozinha, quarto, esperando que algum insight a fizesse tomar a decisão certa.
Quanto tornou a sala, com os braços cruzados e os lábios mordidos, desviou por alguns segundos o olhar para o lado de fora.
Havia outro exército caminhando por entre as ruas desertas.
Ela se aproximou rápido, querendo saber o que era.
Pareciam zumbis consumidos por sua morte. Caminhavam sem feição em direção ao nada, todos juntos.
Não havia muitos, entretanto. Um grupo de talvez cem pessoas, talvez cento e vinte. Mulheres, crianças, homens e velhos. Havia de tudo ali.
Eles pararam. Olharam na direção de , que sentiu pavor. Deu um passo para trás, tentando se esconder, mas ele já a haviam visto.
Pouco tempo depois, sua porta fora arrombada. O humano que antes parecia um zumbi tornou-se hostil e rápido, procurando agarrar pela cintura e levá-la para junto dos outros.
Ela sabia se defender, esquivar de quem quer que fosse. Havia sido treinada para aquilo. Esquivou, bateu, chutou, cotovelou. O humano sangrava, mas não parava de persegui-la.
— Você precisa vir conosco! — gritou ele. — Você é uma amaldiçoada!
Então, de repente, lembrou-se da alucinação que tivera com Eugine.
Ela os mataria para terminar de vez com a linhagem de seu sangue.
Quando parou de se defender, o amaldiçoado a agarrou pela cintura e colocou-a no ombro.
segurou-o pelo quadril e puxou o corpo, fazendo-o desequilibrar. Quando caíram, ela o joelhou o queixo, quebrando seu pescoço.
Livre das mãos dele, ouviu mais passos pelo corredor de entrada. Levantou correndo, guiando-se para a escada. Os amaldiçoados a perseguiam, correndo atrás dela.
O pânico deu espaço para a agilidade que adquirira em todos esses anos de treinamento. Correu o mais rápido que suas pernas conseguiam, descendo mais de dois degraus de uma só vez, segurando nos corrimões. Quando um amaldiçoado chegava próximo o suficiente, ou atravessava-a a frente, vindo por baixo, ela erguia as pernas, apoiando as mãos nas extremidades dos apoios, e o golpeava com força o peito.
Eram humanos, quebravam os ossos com muito mais facilidade que qualquer demônio com quem ela já houvera lutado. Quando caíam, ela não parava para golpeá-los mais, apenas seguia por entre seus corpos caídos, que tentavam segurá-la, até chegar ao primeiro andar.
Muitos outros estavam parados do lado de fora, esperando que ela chegasse para trazê-la junto deles. Seguravam as portas, guardando as entradas, e olhavam-na com os olhos vazios.
Estavam hipnotizados por qual imagem? Não haveriam de ser todos amaldiçoados.
Fora então que percebera. Alguém os havia obrigado a ir até o campo de batalha para servir de alimento, de distração. Não eram apenas amaldiçoados, mas seus vizinhos, os cidadãos de Manhattan.
Destruir para reconstruir.
respirou fundo e girou rápido nos calcanhares, seguindo pela entrada dos fundos, da garagem. Ao verem-na correr, os humanos empurraram a porta de vidro até que ela se rompesse, cortando-os as peles frágeis. Seguiram-na por entre os carros, correndo em sua direção.
alcançou a rua, sentindo o bafo frio da noite. Correu até as pernas queimarem, então correu ainda mais.
Precisava alcançar o fogo.
Precisava alcançar e Alexander.


46.

Grab your gun, time to go to hell.

As portas do inferno estavam abertas. Demônios sem alma, sombras, espíritos perdidos e guerreiros de ambos os lados guiavam-se por entre a morte em busca de algo maior para derrotar. Sentiam-se vivos com o cheiro podre de carne queimada, com o sabor ferruginoso e quente do sangue de inimigos. Ardiam em prazer ao ver um ser contorcendo-se em agonia, buscando de alguma forma acabar com tal dor. Demônios uivavam para a lua que se encontrava brilhante, avermelhada, deixando claro para qualquer ser que a visse que uma batalha acontecia, uma carnificina gerada por pioneiros do caos.
Lilith encontrava-se milhas acima de toda a guerra. Observava, agora, seus lacaios morrendo e matando por ela, a seu mandado. Lúcifer não se escondia ou observava, mas matava com as próprias mãos. Em forma de homem, com pouco de sua aparência demoníaca à mostra, ele dilacerava membros dos quais tentavam aproximar-se demais de si.
A tempestade tornava-se mais forte, misturando-se com o sangue que lavava o chão daquele lugar afastado. O som ensurdecedor dos gritos e urros criavam uma sinfonia maravilhosa com os trovões altos que rachavam o céu em uma descarga de energia brilhante. Ela olhou para a escuridão e sorriu deleitosa. Encarou os cabelos molhados de seu esposo, que tinha a mão afundada por entre as costelas de um de seus peões, arrancando seus órgãos para jogá-los em meio a uma montanha de corpos inanimados, e estudou seus movimentos.

Alexander ainda estava por entre as árvores. Sentado nos calcanhares, ele acompanhava enquanto o pai apenas estudava a batalha.
Não era apenas terrivelmente inquietante para ele, mas podia facilmente ser comparado a uma horrível tortura.
queria lutar. Queria poder arrancar a cabeça de quem quer que fosse que entrasse em seu caminho diante à Lilith. Faria o que fosse possível para que ele mesmo a matasse e, diante às tais recordações, sabia que poderia matá-la. Ele, entre todos os demônios, era o único que podia tocá-la sem que os poderes da mais velha o atingissem. Ele desconhecia tais habilidades até as penúltimas lutas corpóreas que tivera com a mãe. Nunca fora necessário provar a si mesmo que a pele da primeira mulher de Adão não derretia e deformava sua pele como as demais; nunca fora preciso que ele estudasse a si mesmo e descobrisse quais eram as heranças que obtivera da mãe.
Aquele era o momento. Embora tarde, ele haveria de descobrir cada mínima semelhança que teria com ela, para que assim pudesse usar todas as mínimas armas possíveis para arrancar todos os órgãos de sua mãe.
Recordava-se do modo que ela se movia. Agarrava-o pela cintura e manipulava-o pelas asas, utilizando-as como adagas para lhe perfurar os ombros, braços e cintura, em busca de imobilizá-lo contra o chão. Desta forma, a capacidade de arrancar-lhe a traqueia e deixá-la aberta para os dentes eram muito maior. Dali, podia também segurá-lo pelos punhos e usar a língua de cobra — que ele havia descoberto possuir também — para sugar-lhe as almas e torná-lo apenas um corpo feito de carne podre, mortal.
No momento que pensava na possibilidade de tornar-se um demônio desalmado, as folhas secas quebraram com passos rápidos. Ele se virou em posição de ataque, enquanto Alexander apenas virou sutilmente o pescoço para trás.
— Há um exército vindo — disse ele. — Muitos estão sendo atraídos para cá.
Ainda em posição, virou os olhos para o filho.
— Do que está falando? Todos já estão aqui e os que faltam surgem do Inferno na hora proposta a eles. Primeiro os peões, depois os guerreiros. Toda batalha infernal comandada por eles toma o mesmo rumo.
— Eu sei — disse o menino. — Não me refiro a demônios.
franziu o cenho.
— Que tipo de ser sobrenatural está sentindo, Baal?
— Não é sobrenatural. São humanos.
Ele se pôs ereto, confuso. Não havia necessidade para pôr-se em alerta.
— Quê?
— Eles estão hipnotizados — disse sem emoção — Por Eugine McGully.

estava perdida. Não encontrava, por entre tantos caminhos escuros, o fogo que tanto brilhava antes. Estava na floresta, molhada pela chuva, e não conseguia mais encontrar o caminho certo a seguir.
Sentia a respiração pesada no peito, as pernas doendo pela corrida intensa que fez, e a cicatriz pulsava em exato desenho de cruz invertida. Ela conseguia sentir o cheiro dos corpos queimando, conseguia sentir o gosto do sangue, a dor na garganta pela fumaça, mas não conseguia enxergá-la. Olhava ao redor com a respiração descompassada, os cabelos grudando-se a face, mas não sabia para onde ir.
Parada, colocou as duas mãos nas extremidades da cabeça e abaixou-a, contraindo-se em um gemido de frustração. Conseguia ouvir sussurros de demônios que buscavam seu filho, buscavam detê-lo ou conquistá-lo para poder tomar o lugar daquele que vencesse. Demônios eram os seres mais egoístas dos quais ela já havia lidado. Nenhum que a sussurrava buscava derrotar o demônio que menos o convencia, mas ocupar seu lugar como Imperador do Inferno. Seus terceiros planos não importavam a ninguém além deles, caso conseguissem, mas a maioria buscava apenas aumentar seu poder.
Os mais próximos de Lúcifer, que somente lutariam quando todos os peões estivessem derrotados, destruiriam Lilith assim que conseguissem. A tática de batalha era simples, como uma caçada: encurralar pelos cantos e atacar de uma única vez. Ela não poderia se defender de dez Generais e suas seguintes legiões de guerreiros.
Os de Lilith tinham uma tática diferenciada. Buscariam atacar e destruir a maior quantidade de seres possíveis, fossem peões ou guerreiros. Quanto mais enfraquecido o exército de Lúcifer, mais fácil seria a abordagem para que a fêmea o matasse com as próprias mãos, para depois deleitar-se em seu sangue e na sua vitória.
Os que sussurravam em seus ouvidos eram terceiros dos quais ela não conseguia sentir os lados. Não poderia dizer com certeza quem eram e de que lado lutavam, mas os sussurros a beira do ouvido tornavam-se cada vez mais altos.
Por seu sangue ser amaldiçoado e a conexão que Katherine havia criado a fazer Alexander beber seu sangue, ela conseguia sentir através do Anticristo. Sua ligação sanguínea, desde a gestação, fazia com que Alexander pudesse possuí-la no momento que bem quisesse. Enquanto não dentro do corpo da mãe, Alexander a deixava sentir; era como se ele escolhesse abrir ou fechar a cortina que a deixava ver e sentir o que ele via e sentia. Desta forma, ela poderia encontrar onde eles estavam.
Em meio ao seu silêncio, já com a respiração controlada, ouviu os passos de corrida dos zumbis que antes a perseguiam. Acima de sua cabeça, por meio as nuvens, um trovão cortou o céu. Por sua luz, ela conseguiu perceber a silhueta de um demônio com asas gigantescas e pontudas.
tentou se esconder. Buscou alguma árvore com a raiz alta o bastante para encobrir seu corpo miúdo e ensopado. Era ridículo e ela sabia disso. Quem quer que fosse aquele demônio, assim que pousasse, se pousasse, a veria com tamanha facilidade.
E ele o fez.
Tinha pernas grossas e extremamente volumosas, coberto apenas por um uniforme de batalha, de forma que ela não conseguisse ver o tom de sua pele. Os cabelos molhados eram compridos e ondulados, batendo na altura de seu queixo sinuoso. As sobrancelhas eram arqueadas e ele parecia estar com raiva.
Era Baphomet.
Ela se levantou das raízes e o encarou como um inseto a um gigante.
— O que está fazendo aqui? — ele perguntou com sua voz de trovão. — Onde está seu protetor?
— Eu não sei — respondeu ela. — Ele não apareceu ainda.
— Há um exército vindo — ele olhou para o oeste. — São muitos humanos caminhando para o fogo.
— Estão hipnotizados por Eugine McGully — contou ela, dizendo tudo de uma vez. — Tentei contar a Lúcifer o que ela pretendia, mas ele não me escutou.
— Eugine McGully? — ele franziu as sobrancelhas, tornando-se ainda mais assustador — A primeira virgem amaldiçoada?
— Sim — disse ela. — Sua pretensão era juntar todos os amaldiçoados que conseguisse para extinguir completamente sua raça.
— Mas não são todos amaldiçoados — disse ele.
— Como não? Disseram que eu precisava me unir a eles porque continha o mesmo tipo de sangue. Eles me perseguiram, eles estão me perseguindo, eles querem que eu-
— ele a interrompeu. — Não é possível que toda Nova Iorque seja amaldiçoada. Todos estão caminhando para a batalha.

— Precisamos melhorar sua defesa — disse , em meio ao silêncio da batalha, que já se tornava comum aos seus ouvidos.
Acima de suas cabeças, ele conseguia ver o vulto de demônios que lutavam no ar. Vez em quando, algumas gotículas de sangue demoníaco uniam-se às grossas gotas da tempestade de brilhavam escuras sobre o pálido de seu rosto iluminado pela luz da lua.
— Tá bom — disse Alexander, sem muita vontade. — O que preciso fazer? Eu quero ir pra lá — apontou para a batalha. — Quero poder matar alguém da mesma forma que fiz aqui — ele olhou diretamente para os olhos de . — Eu gostei, pai — e sorriu.
— Eu entendo como a sensação de matar é deliciosamente excitante, Baal, mas se algum demônio vier te atacar, você precisa saber se defender.
— Eu sei me defender.
— Aposto que não. Você nunca foi treinado para este tipo de coisa e-
Sua fala foi interrompida por um zunindo inquietante na beira do ouvido. Ele apertou a orelha, mas ainda o sentia, cada vez mais alto. Estava deixando-o quente.
— O quê...?
— Eu sei me defender — disse Alexander, levantando-se. — Eu estou pronto para lutar, pai.
O zunindo tornou-se um irritante barulho agudo, agora nas duas orelhas. Sentia uma dor de cabeça infernal, como se seu cérebro estivesse sendo comprimido por uma parede. Seus músculos fadigaram e ele caiu no chão em posição fetal.
— Alexander, pare com isso! — pediu em um gemido. — Pare agora com isso!
— Eu sou forte, pai — ele deu um passo em direção ao demônio. — Eu consegui te derrubar.
E então a dor passou. Tudo se tornou normal de novo.
colocou-se de pé com a respiração ofegante. Olhou, pela primeira vez em todos os anos, com ódio para o filho. Esticou o indicador e, com a voz extremamente firme, ordenou:
Nunca mais faça isto comigo, Alexander Baal. Nunca mais!
— Me ataque — pediu o filho. — Veja se consegue me derrubar também, pai. Vamos brincar.
esticou a mão para o pescoço de Alexander, que desapareceu diante a sua vista.
— Por que não consegue me pegar? — ele disse atrás de si. Desta vez o menino riu. Mas não uma gargalhada mórbida, uma gargalhada de criança. — Pai, o senhor está velho!
— Alexander! — ele gritou, não evitando sorrir. Correu em direção ao filho, que correu para o outro lado.
Alexander invadiu a cabeça do pai e criou vários clones, que o cercavam.
— Qual de nós é seu Baal? — disseram em uníssono. — Qual de nós você deverá atacar?
— Como você faz isso? — perguntou, olhando para todos.
— Sou o Anticristo, pai — os clones foram ficando embaçados, até que se converteram para apenas um: o que estava atrás de . — Posso fazer muitas coisas, e uma delas, com certeza, é me defender.
puxou fôlego para responder ao garoto, mas algo pousou ao seu lado. Um demônio brutamontes de quase dois metros, que carregava nos braços um corpo miúdo e encolhido.
reconheceu seu amigo e, assim que colocou-a no chão, .
Seu coração ficou quente.
— O que você está fazendo aqui? Pensei que havia ficado em casa — disse para a mulher.
— Não pude — ela jogou os braços em torno de seu pescoço, abraçando-o com força. — Há um exército vindo. Um exército de humanos.
— É uma isca — disse Baphomet. — É uma forma de desviar a atenção de ambos os exércitos para sangue, seja amaldiçoado ou não.
— Eugine fez isso — disse . — Ela quer exterminar qualquer possibilidade de existência de amaldiçoados.
— Eu não ligo para eles — disse . — Estou esperando a deixa para que eu possa entrar lá e lutar contra Lilith.
rolou os olhos, mas permaneceu com as mãos entrelaçadas nos cabelos molhados do marido, olhando-o fundo nos olhos.
— Eu consigo te derrubar — disse Alexander, empolgado em realizar toda aquela tortura de novo. Baphomet riu.
— Eu duvido, guri.
— Bem, poderíamos tentar. Me ataque, eu me defenderei.
Baphomet deu de ombros e voou. Mergulharia e o jogaria no chão. Afundaria seu crânio como quem quebra um ovo.
não se importou com aquela cena e tornou a encarar sua mulher. O cheiro de seu corpo misturado à água da tempestade deixava-a extremamente bonita. Os olhos estavam escurecidos pela falta de luz e os lábios estavam ainda mais vermelhos por causa do frio.
— Você é linda — disse ele, em meio a um sorriso.
o olhou e negou com a cabeça.
— Sim, você é. Estamos prestes a encarar uma multidão de demônios, você sabe — ela assentiu, encarando-o ainda nos olhos. — E eu estarei disposto a encarar qualquer um deles — ele molhou e mordeu os lábios — Para te salvar. Você é minha mulher, Burwell, e eu amo você.

Eu me lembro a primeira vez que te vi. É uma lembrança turva, acentuada por dúvidas de uma alma perturbada por seus próprios antepassados, mas consigo recordar-me de todos os teus detalhes cujos prenderam minha atenção a ti.
Primeiro recordo-me dos olhos — eram de um claro azul cristalino, frios como aquela maldita noite em que Blaine me propusera uma festa, que não sentia mínima vontade de participar (falando em meu amigo, o que será que aconteceu com sua alma?); depois da silhueta sombria que cobria-lhe dos pés até o topo dos cabelos curtos, bagunçados pelo vento daquela noite em Bristol. Recordo-me do seu sorriso por ver uma menina — eu tinha apenas dezenove anos! — tão perdida e assustada com sua aparição.
Indago-me se sua mente projeta a mesma imagem que tenho em meus pensamentos.
Eu era uma menina tão miúda, com cicatrizes nos pulsos e um cabelo completamente desgrenhado pelo vento. Minha altura mediana não combinava com meu pouco peso e os ossos ressaltavam ainda mais por conta da pele acinzentada. Já você, não. Contém hoje os mesmos traços másculos e rijos, que me fizeram interessar por você naquela noite e permitir que fossemos juntos a tal amaldiçoada festa. Os ombros largos, hoje talvez um pouco mais acentuados e largos, a pele firme, clara, que deixava à vista as veias dos braços e das mãos. A altura acentuada, o sorriso malicioso, macabro, e a sobrancelha que se levanta timidamente quando diz com tom debochado.
Os meses que se prosseguiram fizeram-me querer a morte mais que qualquer outra vez na vida.
Nunca te odiei, entretanto. Sentia repúdio, medo, angústia, mas nada que lhe fosse negativo. Mas sempre odiei Lilith. Sempre cultivei ódio pela primeira mulher de Adão.
Hoje, nesta noite de lua cheia, prendo-me às memórias que oscilam em brilhos e contrastes, épocas e sentimentos variados. Vejo nosso filho, Alexander Baal, posto ao meu lado, com os olhos completamente negros, tomados pelas pupilas, assim como os seus, que brilham refletindo a luz do fogo que come o bosque pelo qual acontece a maior luta do Submundo.
A luta que definirá o novo Imperador do Inferno.

estava posta por entre as árvores, logo atrás de . Este, por sua vez, já estava desnudo da blusa e dos sapatos, usando apenas a calça jeans. As asas negras estavam abertas e esticadas num arco negro e afiado de quase dois metros de altura, com três de envergadura. Os olhos estavam fixos nos corpos que caíam queimando do céu.
Quando desse o momento certo, ele entraria para começar a lutar. Aqueles ainda eram os peões caindo.
— Preciso que fique aqui durante algum tempo — ele se voltou para a mulher. — Espere pelas ordens de Baphomet e deixe Baal fazer o que sabe. Não o proteja.
Suas ordens eram frias e calculadas, de forma que ela apenas assentisse.
Sua respiração começou a vacilar. Ele já estava em sua posição, com as coxas flexionadas e as asas abertas, olhando para o céu.
, espere! — pediu .
Quando ele se virou, segurou-lhe pelos fios da nuca e colocou-se na ponta dos pés para poder beijá-lo uma última vez. Perdeu o fôlego enquanto seus narizes roçavam, conforme ele descia as mãos dos ossos de suas costelas para a curva de sua cintura, pegando-a no cós da calça. Ela o mordeu o lábio inferior e o puxou para si, ainda com os olhos fechados.
— Tenha cuidado — sussurrou.
Quando abriu os olhos, ele pulou para os céus, indo em direção ao fogo.
virou-se para Alexander e Baphomet, que lutavam entre si. Baphomet tinha as asas em navalhas direcionadas para a garganta do garoto, que apenas o encarava. Ele havia caído de seu voo, indo direto de encontro ao chão. Não sabia ao certo o que tinha acontecido, mas Baal haveria de ter algo relacionado com o zunindo infernal que começara em seus ouvidos. Ele mal conseguia se mover.
— Vamos, garoto! — gritou ele. — É tudo que você consegue fazer, sendo o Anticristo?
As veias de seu pescoço estavam roxas de tão vermelho que estava seu rosto. A cada palavra que proferia, saliva pulava por sua boca. Ele estava fazendo um esforço tremendo para enfrentar uma criança que apenas o encarava com tom de riso nos olhos.
Baphomet ficou de pé, fazendo força para manter-se ereto, começando a caminhar em direção a Baal.
— Chega — ordenou . Nenhum dos dois parou. — CHEGA! — gritou, fazendo eco na floresta.
Alexander obedeceu a mãe e, no momento que desviou os olhos de Baphomet, este soltou pesado o ar que mantinha preso na garganta, relaxando todos os músculos. Embora quisesse, não se ajoelhou no chão para recuperar a força.
Um uivo cortou o curto silêncio. Demônios começaram a sussurrar e a lua avermelhou-se, roubando seu brilho branco. O fogo tornou-se mais agressivo, subindo em paredes de quase quarenta metros. Haviam criado um círculo de fogo que impedia a fuga de qualquer um que fosse.

Os amaldiçoados de Eugine caminhavam juntos, em silêncio. O único som que era proferido por entre seus passos eram os pequenos gravetos que cediam aos seus pés. Encararam o fogo de longe, a luz que acentuava seus olhos mortos, avermelhados e com pupilas dilatadas. Por entre os céus, Eugine surgiu de fronte a eles. Tinha uma figura angelical, apesar do olhar feroz por cima daquele exército de mortos-vivos. Os cabelos de leão estavam ainda mais esvoaçantes, combinando com o vestido perolado de seda que lhe cabia perfeitamente. Os pés tocavam o chão e as veias das mãos e dos braços estavam saltadas em roxo, assim como pequenos capilares abaixo dos olhos.
Ela os encarou em todos os olhos, que não a viam de volta. Estavam petrificados, brilhando em suor por causa do fogo.
Eugine sorriu — abriu os dentes em algo completamente perturbador. E, então, deu espaço para que seu exército seguisse caminho em direção ao fogo, atravessando a parede que Lúcifer havia criado. Os corpos começaram a pegar fogo. O cheiro de carne, roupa e pelos queimados era extremamente forte e chamara atenção de alguns demônios, que mergulharam nos corpos como o último alimento existente. Estavam em sua forma bestial, mas pura e ignorante possível. Os corpos em fogo eram dilacerados e ninguém reagia aos ataques. Atravessavam aos montes e esperavam para serem devorados. Alguns poucos que sobreviviam ao fogo, logo eram abocanhados e esquartejados por demônios sedentos por sangue. Desprotegidos, o exército de ambos os lados sofreu uma imensa perda. O cheiro de carne e sangue era intenso.
sobrevoou os corpos e assistiu enquanto os Chefes de cada Legião se apresentava. Os peões haviam caído. A batalha iria se dar início.
Do lado de Lilith, que os sobrevoava alguns metros acima, estavam quase cem guerreiros, que se dividiam entre homens e mulheres. Do lado de Lúcifer, que os encarava em seu trono, rodeado por bestas Sem Rostos montados em Cérberos, a mesma quantidade estava posta e armada com suas mais poderosas armas, todos em figura puramente demoníaca.
Entre homens e mulheres, alguns das extremidades montavam em bestas que voavam. A aparência era meramente familiar com dragões, mas pegavam fogo e não tinham o rosto definido — eram apenas dentes extremamente afiados. Acima dos corpos mortos de peões e gemidos agonizados de humanos que ainda viviam, e haviam retomado a consciência, alguns outros guerreiros se preparavam em posição de ataque, erguendo os chifres, cerrando os dentes.
Lilith ergueu o braço para cima, esticando o pescoço para trás. Colocou a língua de fogo para fora, fazendo a lua arder em fogo. Todos os demônios urraram, os Cérberos empinaram e as bestas que voavam soltaram rojões de fogos.
Voaram e correram para se atacar.
voou por meio de mordidas, socos, desmembramentos e fogos, indo em direção aos céus. Lilith não o olhava — fitava profundamente o rosto sóbrio de Lúcifer, que mal se movia diante à guerra. batia forte as asas e impulsionava o corpo para cima, querendo alcançar sua mãe, mas algo o fez parar. Um baque forte contra o corpo de outro demônio o fez voar rápido para a esquerda, sentindo-o tentar abocanhar seu pescoço. urrou de ódio, segurando-o pela cintura com os pés. Agarrou-o pelas orelhas e puxou-as para ambos os lados, estourando-as. Empurrou o demônio com os pés, fazendo-o começar a cair. Mergulhou em direção ao corpo negro do demônio de olhos vermelhos e, com o rosto completamente franzido, o abocanhou o alto do pescoço, encaixando os caninos nas laterais de sua traqueia, puxando-a com extrema violência. Ao quebrar-lhe o pescoço, impulsionou novamente os pés para baixo, a fim de jogar o corpo morto do demônio junto ao monte de outros já destruídos.
Ouvia-se nitidamente o som de gemidos fortes, dos humanos ainda vivos, gritos de pavor. O som do fogo consumindo cada vez mais a flora que crescia para as laterais, aumentando o campo de batalha dos demônios. Além, ouvia-se também o som das mordidas, dos socos, dos ossos quebrando. Demônios não gritavam de dor, mas urravam de ódio. Não sentiam nada além de ira.
Outros dois vieram ao encontro de . Um segurou-o pelas asas, colocando ambos os pés em suas costas, a fim de arrancá-las. O outro grudou em sua cintura e apertou os joelhos em suas costelas, segurando-o pelo queixo.
— O filho de Lilith! — gritou um deles, com voz de demônio. — Este é o filho de Lilith!
rosnou e impulsionou a cabeça para frente, acertando em cheio a testa do primeiro demônio. Afrouxando os joelhos no corpo do mais novo, teve a possibilidade de segurá-lo pelas coxas e o tirar de encontro ao seu corpo. Nisso, virou-se para trás e tentou segurar a nuca do que lhe apertava e puxava as asas. Começaram a romper.

Baal se afastou de e Baphomet, que estava alerta para qualquer demônio que aparecesse e tentasse atacar a mulher.
— Não acredito que estamos parados, assistindo a esta merda acontecer — grunhiu ela. — Deveríamos estar lá!
— Estar lá para quê? — Baphomet rolou os olhos. — Você tem ossos de graveto.
— Melhor ter ossos de graveto a ficar assistindo a isso sem fazer merda nenhuma — ela o encarou fundo nos olhos, enfrentando-o pela primeira vez. Não sentiu medo; reconhecia sua posição.
— Onde está o menino? — indagou.
— O quê?
— Baal. Onde ele está?
— Ele está aqu-
Sua frase ficou solta pelo ar quando se virou e não encontrou mais seu filho sentado próximo a qualquer uma das árvores que o rodeavam. Ela passou a mão nos cabelos compridos, puxando-os para trás. Sentiu pavor, começando a desesperar.
— Alexander? — indagou às sombras. — Alexander, onde você está?
— Ele não vai te responder — disse Baphomet. — Fique quieta, sinto cheiro de...
E antes mesmo que ele conseguisse terminar sua frase, seu corpo estava tombado no chão e, por cima dele, um demônio fêmea puxava-lhe os chifres e segurava-o forte com os joelhos cravados em seu quadril.
puxou o fôlego e deu um passo para trás, tentando se proteger sem se afastar muito. E ainda precisava encontrar Alexander.
— EU TE AMALDIÇOO, PUTA MALDITA! — gritou ele, batendo forte suas asas. As folhas secas se agitaram e voaram conforme o barulho do sopro de suas asas tornava-se mais alto.
— Vamos, seu filho da puta! É o máximo que você consegue fazer? — gritou a fêmea.
Usava apenas uma saia rodada de pele de algum animal e suas asas não eram tão grandes quanto as dos outros. Tinha os olhos amendoados grandes, completamente possuídos pela cor preta. As sobrancelhas eram bem marcadas e pequenas, mais escuras que os cabelos enrolados em uma trança que ia até o começo dos seios. Os lábios eram médios, pouco grossos, mas bem delineados. Ela não estava com os chifres e dentes expelidos.
Baphomet colocou as mãos espalmadas no chão e se ergueu com a fêmea ainda presa em seu quadril. Como uma cobra, ela jogou as costas para trás e passou pelo vão das pernas dele, escalando seu corpo. Fincava as unhas na pele de Baphomet como se ele fosse feito de areia. Conseguia ser extremamente ágil e leve em seus movimentos. O maior segurou-a pela cintura e esticou o rosto para abocanhar seu pescoço, mas ela desviou. Segurou-o pela mandíbula e puxou seu rosto de encontro ao dela, dando-o uma cabeçada. Ao ver-se levemente tonto, a fêmea segurou as extremidades de seu pescoço e, tão fácil como se quebra um galho, ela o quebrou o pescoço, matando-o.
Baphomet caiu no chão como uma fruta podre, fazendo extremo barulho por seu pesado corpo. A fêmea se colocou de pé como uma bailarina, rindo para tal situação.
ainda estava petrificada. Tudo ocorrera rápido demais para que ela pudesse assimilar qualquer daqueles golpes.
Ambas se encararam. Os olhos da fêmea estavam tomados por preto e ela sorria.
— Mulher do Herdeiro... — sussurrou, caminhando em sua direção. — É uma honra conhecê-la — e reverenciou-a.
franziu o cenho e esperou que a mulher a olhasse novamente.
— Chamo-me Sophia. Sou viúva de Baphomet, descendente de Atena, a deusa da Sabedoria. Encontro-me posicionada à frente da Guarda de Lúcifer e estou aqui para levar-te para meu Rei.
negou com a cabeça, tentando retomar seu estado normal. Havia se programado para tais eventos, estava acostumada a tudo aquilo. Não era hora para pane!
— S-sou Giansanti, esposa de Giansanti — ela pigarreou. — Preciso encontrar meu filho.
— O Anticristo está na batalha, Giansanti. Você não o viu no meio dos cadáveres?

já havia perdido a conta do número de golpes deferidos no rosto do demônio que ainda o rondava. Estava ofegante, suado, e os músculos tensos carregavam energia e ódio. O demônio negro riu e voou em sua direção, tomando um direto no supercílio, derrubando-o alguns metros. mergulhou ao seu encontro e colocou as mãos em torno de seu pescoço, tentando sufocá-lo. Nenhum deles batia as asas, de forma que caíssem em um tombo de quase sessenta metros. apertava forte os dedos na traqueia do demônio, que ria e não mostrava sinais de falta de ar. Ele colocou os pés espalmados no peito do demônio, empurrando-o e soltando-o enquanto retomava o movimento das asas para voltar ao alto. Ele urrou para os trovões: uma tempestade estava a caminho. O outro voou em sua direção e puxou-lhe a panturrilha, escalando por seu corpo para dar-lhe conjuntos socos no rosto. Um após o outro, não conseguia se defender.
Baal olhava para os céus quando a primeira gota da tempestade caiu sob sua testa. Escorreu pela pele translúcida e morreu a beirada dos cabelos escuros.
Ele fechou seus olhos e abriu os braços, começando a murmurar palavras em latim, iniciando sua participação.
Demônios que ouviram sua maldição voltaram-se para o garoto, sorrindo com a boca escancarada ao vê-lo tão vulnerável.
Outro trovão soou — a tempestade ficara mais forte.
Alexander abriu seus olhos e começou a gritar. As pupilas e a íris foram perdendo tom, deixando seu olho completamente branco.
Um demônio fêmea começou a correr em sua direção. Os pés afundavam em meio aos corpos sem vida, ao sangue e a carne, mas ela estava decidida a atacar o Anticristo. Alexander sequer a percebeu. Estava tão concentrado nas suas palavras que não se importou com a rápida aproximação da fêmea.
Quando estava à poucos metros do menino, seu corpo caiu no chão. estava por cima da fêmea, segurando-a pelos cabelos, batendo sua cabeça repetidas vezes no chão.
— Sai de perto do meu filho, sua escrota filha da puta! — ela soltou uma das mãos para golpear diversos socos no rosto da fêmea.
O maxilar dela se deslocou. O som fez com que , ofegante, parasse de golpeá-la. A fêmea parou de se mover e, bem lentamente, virou o rosto para .
Burwell — a cada sílaba, seu maxilar estralava, e o som dos ossos arrastando eram simplesmente agonizantes. — Você sente falta do seu pai? — a fêmea riu, empurrando de cima de seu colo.
Ela caiu em meio aos corpos e gemeu com o baque, retomando-se em pé.
A fêmea correu em sua direção, gritando. Tinha os olhos esbugalhados e o corpo magro sujo de sangue, além do maxilar deslocado. Pulou em cima de , que logo posicionou as mãos no peitoral da mulher, tentando empurrá-la. Ela guiou uma de suas mãos para o cabelo da fêmea, puxando-o com extrema força. Ela se retorceu para trás e o peso de seu corpo não fora suficiente para permanecer em pé. Continuaram a luta no chão. A fêmea se soltou do corpo de e agachou , segurando com as garras o corpo de um guerreiro. correu em sua direção e pulou em cima dela, escapando de seus dentes. Posicionou as duas pernas em torno de seu quadril e segurou sua testa e o maxilar deslocado, puxando cada um para a outra proximidade. O osso estalou e, por fim, quebrou em uma fratura exposta. A fêmea agarrou a nuca de e a puxou para uma cabeçada, mas conseguiu se esquivar. Suja de sangue e fuligem, confundida em meio às grossas gotas da tempestade, ela deu uma cotovelada na garganta da fêmea, que urrou. Depois, enfiou os dedos pela fratura exposta e buscou por dentro de seu pescoço, segurando-a pelo ombro com o outro braço, sua carótida. Puxou os nervos, veias e artérias com toda força que lhe restava, até que estourassem em um jorro de sangue preto, que ensopou seus dedos.
saiu de cima dela, dando passos para trás. A fêmea se retorcia como uma lagartixa em agonia, tentando estancar o sangue dos vasos lesionados, em vão. Pouco tempo depois, ela estava morta.
desviou os olhos do corpo apodrecido do demônio e se voltou ao seu filho, que olhava fixamente para um vulto no céu. Pouco tempo depois, o corpo de um demônio negro caiu sem a cabeça no chão de mortos.
pousou ao seu lado, com ferimentos, roxos e sangue demoníaco.
Ele encarou pelo curto segundo que a empurrava para o lado e a defendia de outro demônio que veio atacá-la. Caída em meio aos corpos, olhou para Alexander caminhando em sua direção.
— Vamos, mãe. Precisamos encontrar minha avó. Papai quer que eu a busque e a traga para cá, para que assim todos seus seguidores possam vê-la morrer.


47.

Lilith estava posicionada no alto de um morro, assistindo à batalha com os braços cruzados. Não iria se misturar novamente com seus guerreiros e lutar com quem não lhe realmente interessava: Lúcifer. Esperaria até que ele a procurassem para que enfim pudessem batalhar — e ela sabia que o momento seria logo.
Ela assistia enquanto socava repetidas vezes uma fêmea sem mínima experiência e se perguntou, afundada em desdém, quem seria aquela pobre alma demoníaca.
— É um maravilhoso modo de evitar sujar as mãos, minha querida esposa — ela sorriu a reconhecer aquela voz, virando-se lentamente. O fogo a deixava ainda mais bonita.
— Reconheço teu modo de lutar e admiro muito o fato de pôr peões ao sacrifício — disse ela.
— Não poderia jogar meus melhores guerreiros em uma luta tão trivial quanto esta, meu amor — ela arqueou um dos ombros, ainda com os braços cruzados.
— Encara como trivial o fato de estarmos disputando seu trono roubado, meu Rei? — ela arqueou uma das sobrancelhas e ele riu debochado.
— Não se torna uma disputa quando sabemos quem irá permanecer no posto, mulher — ele deu um passo em sua direção, ficando próximo o bastante para sentir o calor de sua pele em chamas. — Tu sabes que nunca conseguirá tomar meu trono, pois não há outro Senhor do Inferno senão eu, primeira mulher de Adão.
Lilith calou-se, mas manteve um sorriso peculiar nos lábios. Arqueou as sobrancelhas e soltou os braços, começando a rondar o corpo de Lúcifer, analisando-o.
Ambos estavam em sua forma humana, sem asas, sem chifres, sem dentes extremamente afiados. Eram dois humanos, homem e mulher, caminhando desnudos pelo negro de uma rocha pontiaguda. Seus cabelos vermelhos dançavam na cintura conforme seus passos e, embora observado, Lúcifer não deixava de fitar a batalha.
havia derrotado a fêmea inexperiente e agora olhava para seu filho.
— Recorda-se daquela pequena alma, minha mulher? — indagou em meio ao silêncio. Lilith parou atrás dele, começando a expelir lentamente as garras. Lúcifer percebera aquele ato, mas permanecera quieto, com a sombra de um sorriso nos lábios rosados. — Recordo-me de sua primeira aparição no Inferno e o riso bastardo de Samael quando lhe contara que deveria treiná-lo para ser o melhor dentre os demônios. Nunca sequer pensamos se ele haveria de ser de fato o Anticristo que buscávamos.
— A bruxa havia sido clara em tuas palavras amaldiçoadas — sussurrou ela, encarando profundamente a veia saltada do pescoço do maior. Ele se virou, fazendo-a molhar os lábios e esticar o queixo para cima. Apesar da mesma linhagem, era óbvia a diferença entre ambos os pioneiros. Lilith parecia uma boneca de porcelana, embora as cicatrizes mal curadas, enquanto Lúcifer tinha porte de gladiador.
— Não pensamos, também, nas qualidades do garoto, antes de sequestrá-lo de minhas entranhas e jogá-lo para este mundo tão pobre de estímulos para um demônio tão criativo quanto Giansanti.
Ela franziu a sobrancelha, esperando-o ouvir falar o que ela tanto temia.
— Não é comigo que há de se preocupar, Lilith — ele abriu um sorriso macabro. — Mas, sim, com seu filho. Ele tem sua alma, minha alma, os pioneiros; do que este demônio é capaz que desconhecemos?

estava exausta. Caminhavam às cegas em meio a pedras, gravetos e sangue, muito sangue, e ela mal sabia por onde estavam indo.
— Alexander, por favor — pediu, sentando-se no chão. Alexander parou de andar e olhou-a com certa pena. — Peça ao seu pai para levar-nos em suas costas, voando. Temos quatro asas, por que diabos estamos caminhando? — jogou o corpo para trás, tirando os cabelos molhados de suor da nuca e da testa.
— Não podemos chegar voando, mãe, eles nos veriam.
— Escute o garoto — disse Sophia. — Ele sabe muito mais que todos nós juntos.
— E aliás, já estamos chegando — murmurou .
— Consegue ouvi-los? — sussurrou Sophie; se sentou, segurando Alexander pelas pernas enquanto ele acariciava seus cabelos.
franziu o cenho e encolheu os olhos.
— Você não? — ele encarou a fêmea ao seu lado, que negou. — Preste atenção. Há murmúrios.
"Siga até o alto do penhasco. Veja-o cair."
Ele repetiu em voz alta o som baixo que rondava sua cabeça.
— Veja-o cair, veja-o cair — entoou, voltando a andar, agora, para leste.
— Não escuto nada — reclamou Sophia, colocando-se atrás dele. estava mais atrás, segurando a mão de Alexander. — Não consigo ouvir nada além da respiração da humana — houve certo desdém em sua voz. ignorou-a, tampouco sentira-se incomodado com aquele comentário com quê malicioso.
— Baal — chamou-o. O garoto correu em encontro ao pai. — Preciso ordenar-te algo — o garoto assentiu. — Não importa quem esteja perdendo — ele o fitou fundo nos olhos —, não quero que me ajude a derrotá-la.
— Mas, pai...
— Não, Alexander Baal. Não cabe às suas mãos esta decisão.
— Mas estou aqui para poupar-te a vida — disse ele. — Você não sabe o que vai acontecer lá. Eu, sim.
franziu o cenho e encarou Sophia, depois Alexander. Deu dois passos em direção aos homens e se ajoelhou ao lado de Alexander.
— O que você viu, Alexander?
Antes que ele pudesse responder, uma flecha de fogo fora lançada em sua direção, acertando-a a lateral do bíceps. Com o impacto, caiu para o lado e gemeu em dor. Alexander encarou o demônio com flechas de fogo que voava por cima de suas cabeças e murmurou algo em uma de suas várias línguas. O demônio começou a pegar fogo, sem grunhir um simples som. Sua pele derretia, caindo aos pedaços, e ele continuava intacto nos céus.
— Ele está aqui! — ouviu-se o grito de Lilith, que voou para os céus, fugindo.
— Ajude-a — ordenou para Sophia, que assentiu e foi de encontro a .
impulsionou o corpo e, em poucos segundos, estava voando o mais rápido que conseguia, seguindo Lilith em um zigue-zague por entre as nuvens que brilhavam em trovões e raios. O som que se escutava, além do grito incessante dos céus e do vento, era a risada de sua mãe.
Ele franziu seu cenho para a escuridão, perdendo-a de vista quando ela mergulhou em meio a uma nuvem carregada, sumindo em meio a raios.
— APAREÇA PARA QUE EU POSSA TE MATAR, SUA COVARDE DE MERDA!
Ele estava estático nos céus, suas asas batendo pesadamente, o vento jogando gotas grossas contra seu corpo pouco machucado. Ele se virou para as extremidades, torcendo o pescoço para procurá-la, mas não a via. Apenas conseguia escutar o som de sua risada debochada.
"Não consegue me ver", ela sussurrou em sua cabeça. "Estou aqui, herdeiro". Ele se virou para trás, de onde o som vinha, mas ela não estava lá. Lilith riu. "Para o outro lado, prole", e ele se virou em um baque.
Lilith riu mais alto e um trovão ecoou forte nos céus.
colocou as duas mãos nas extremidades da cabeça e as apertou. Ela estava fazendo como antes: comunicando-se com ele através de seus pensamentos, corroendo-o a lucidez. Estava perto, podia sentir, mas não conseguia ver.
— SAIA DA MINHA CABEÇA, CARALHO! SAIA DA PORRA DA MINHA CABEÇA E DEIXE COM QUE EU TE MATE, FILHA DA PUTA! APAREÇA, LILITH! APAREÇA!
E antes que pudesse retomar o fôlego pelo urro de ódio, seu corpo sofrera um baque pelas mãos de sua mãe, que gritava e ria. Ela afundou as garras em seus ombros, puxando-o para cima, jogando-o para o alto.
— ERA ISTO QUE QUERIAS? — ela o chutou o alto do estômago, afundando os pés em sua clavícula.
Voou novamente por cima dele, dando um soco por baixo de seu queixo, fazendo-o rodopiar no ar.
— ERA PARA ISTO QUE QUERIA-ME PERTO, HERDEIRO? — seu tom fora de deboche — QUERIAS SENTIR O GOSTO DE SANGUE? — ela gargalhou, dando outro chute, desta vez, em sua testa.
desequilibrou e começou a cair. Ela mergulhou, já esticando a língua de cobra para sugar-lhe a alma e deixá-lo humano novamente. Ali, seria extremamente fácil matá-lo.
— Nunca quis-te como meu — disse ela, com voz de cobra. — NUNCA QUIS-TE, PESTE!
"Bata as asas e afunde."
Era a voz de .
"Bata as asas e afunde."
virou-se no ar e, em posição de mergulho, esticou as asas e as bateu com mais força para cair onde quer que fosse. Não conseguia ver nada além de escuridão e água.
— FUJA! FUJA DA MORTE! EU VOU TE PEGAR, . EU VOU TE PEGAR, PROLE!
Conforme caía, o seu reflexo se tornava cada vez mais próximo. Percebera que cairia em um lago. Afundou na água com um baque estrondoso, indo além da superfície. Mergulhou ainda mais fundo e bateu as pernas para acelerar o movimento, movendo também as asas. Pouco depois, escutou Lilith cair também. O fogo de seus cabelos iluminou a água, de forma que, ainda embaçado, conseguisse ver o que estava acontecendo por debaixo d'água.
Lilith tinha o rosto feroz. Parecia muito mais ameaçadora do que realmente era. Tinha o rosto retorcido e os cabelos esvoaçantes em meio às turvas águas daquele lago.
Ela esticou a língua e cuspiu fogo, acertando-o no estômago. urrou de ódio, subindo para a superfície. Jogou a cabeça para o lado, a fim de tirar o cabelo do rosto e, próximo de sugar oxigênio, Lilith o puxou para a água novamente. Enforcou-o sem muita dificuldade e agarrou-se à cintura dele, fazendo-o afundar. Olhava-o fixamente nos olhos, assistindo-o sufocar.
"As asas", o sussurrou novamente. "Você as pode tocar".
tirou as mãos dos pulsos de Lilith e a tocou as asas de fogo, puxando-as para as extremidades. Deu uma cabeçada lateral na mais velha, mordendo-a a orelha, cuspindo-a na água, sentindo-a morder e arrancar um pedaço de seu colo. Ele gemeu de dor e, com ódio, urrando, puxou-a as asas com mais força até que, simplesmente, se rompessem em algo sem vida: ossos sem cor, sem brilho, sem fogo. As asas de Lilith pareciam um galho de arvore seca.
A mais velha soltou-se dele para a superfície, gritando, completamente enlouquecida. A única coisa que rondava-a fogo, agora, eram os cabelos, ainda maiores e mais vermelhos. Lilith não parava de gritar. O sou rouco e agudo que saía de sua boca era completamente assombroso.
emergiu e a segurou pelos cabelos, enrolando-os na mão. Ergueu-se das águas, colocando as asas para fora, e começou a voar, levando a mulher pelos cabelos. A começar o giro que a jogaria no chão, Lilith esticou as mãos e as garras, cravando-se em seu braço. Ele franziu o cenho e rosnou, voando com mais força para área térrea. Lilith tentava escalar pelo braço de , mas não alcançava estabilidade. Quando achou terra, tacou-a no chão com tamanha força que fizera uma cratera. Afundou e mergulhou no buraco, segurando-a com as pernas em cada extremidade de seu quadril. Preso, golpeou-a sem parar com diversos socos. Batia cada vez em um lado e, a completar um par, golpeou-a com uma cotovelada e uma cabeçada.
O rosto de Lilith estava desfigurado.
Ele deu um pulo para trás e, olhando na direção do lago, conseguiu ver as asas mortas de Lilith voando. Olhou as próprias mãos sujas com o sangue de sua mãe. Não notara nenhum outro machucado senão os causados pelos socos que proferira agora pouco.
Lilith ergueu-se, completamente coberta de sangue. Os cabelos estavam apenas vermelhos, sem fogo.
— Por que não desiste de uma vez? — indagou ele. — Sabe muito bem que sou capaz de matar-te.
Ela riu, jogando a cabeça para trás — um som completamente assombrado.
— Sabe por que dentre tantos escolhemos a tu, Giansanti? — ela o olhou profundamente nos olhos. — Porque eras, dentre todas as almas virgens, a mais brilhante — ela jogou a cabeça para o lado. — A que reluzia de forma mais intensa o brilho do fogo do Inferno, cuja alma já estava predestinada a nos servir. Tu, , és filho do Inferno. És filho das sombras. Tens habilidades das quais outro jamais verá e, tu, jamais descobrirá. Teu filho, o Anticristo, há de temer o poder corrente em tua veia e, logo, fará contigo o que farás comigo — ele travou o maxilar. — Digo-lhe as palavras de teu amaldiçoado pai: — ela riu, jogando a cabeça para trás. — Não és comigo que há de se preocupar, meu querido. Mas, sim, com teu filho.
"Mate-a", disse . "Faça agora".
franziu o cenho e assistiu enquanto Lilith ria para os trovões. Rosnou e colocou-se em posição de voo, agarrando-a novamente pelos cabelos. Agora ela ria histericamente. Levou-a até o meio da batalha e, antes de jogá-la no chão, olhou-a profundo nos olhos.
— Sempre quis que me desejasse como filho — disse, assistindo-a gargalhar. — Mas agora só desejo que queime.
E, assim, balançou-a como uma boneca, primeiro para cima e, depois, para baixo.
O corpo descolou da cabeça e, em suas mãos, ela ainda ria. O som de sua risada ecoava e o sorriso ainda estava na cabeça presa em sua mão.
olhou-a uma última vez.
— Até o Inferno, mãe.
Então a soltou e assistiu ao corpo, junto com a cabeça sorridente, cair em meio aos outros corpos.
Demônios uivaram, colocando-se em posição de voo.
desceu. Não sabia onde , Alexander e Sophia estavam.
Com os punhos fechados e o maxilar travado, encarou a todos os demônios com o cenho franzido.
colocou um dos pés por cima do rosto de Lilith, afundando-a por entre os outros cadáveres. Ergueu um dos punhos e uivou, sendo seguido por outros.
Aquela seria sua legião.
A Legião Giansanti.


PREFÁCIO

Havia se passado catorze meses desde a batalha final. , e Alexander mudaram-se para o interior da Itália, onde ele havia nascido, e agora moravam na mesma fazenda que Lilith queimara há centenas de anos. Ele havia construído um campo de treinamento para Alexander, que voltara a crescer como uma criança normal — tirando os episódios pelos quais o garoto sentia sede de sangue e fome de órgãos crus, sua infância tornava-se estranhamente normal, para o Anticristo; tinha até mesmo um amigo imaginário, cujas conversas ultrapassavam horas durante o dia, denominado Lucius. Os pais pouco se preocuparam com aquelas conversas, já que era propício a idade dele ter a imaginação fértil.
Apesar de denominado novo Soberano do Mundo Subterrâneo, deixara as ordens para Shopia, o demônio fêmea cuja amizade se tornara um tanto quanto extremamente especial e necessária: ela fora denominada Imperatriz do Inferno por Giansanti, que optara por permanecer vivendo na superfície — como parte de sua alma permanecia humana, sua apatia pela Terra, onde fora criado, era estranhamente familiar, de forma que ele não sentisse tamanha vontade de largá-la para residir nas profundezas do Inferno, tampouco deixar com que vivesse o resto da vida sozinha. Aquela simpatia pela moça de sangue amaldiçoado tornava-se cada dia mais impressionante, de forma a ser admirada e contemplada pelos casais subterrâneos e celestiais.
não sentia apenas um amor carnal pela mortal, mas tornava-se algo completamente irracional, um orgulho, poder, alegria por tê-la como sua. A primeira humana capaz de derrotar um demônio com as próprias mãos, mulher do Imperador do Inferno, mãe do Anticristo. Giansanti havia se tornado, para ele, uma deusa. O sentimento genuíno de tê-la como sua mulher, sua submissa, sua esposa, era responsável pela certeza de que ficar na superfície seria a melhor escolha para o resto da vida imortal do primogênito dos pioneiros.
Depois do Anticristo, havia se tornado infértil. As aparições e perda de memória haviam desaparecido, assim como seu temor pelo sobrenatural. Ela sentia, pela primeira vez na vida, que era capaz de sobreviver ao que fosse — e sozinha. Havia se desapegado do passado e sorria para o presente, deixando de pensar no futuro. Havia uma vida inteira a ser vivida com o demônio que a salvara do seu inferno.

Os dias na Itália se tornavam mais quentes conforme o verão se aproximava. Em meio a lençóis bagunçados e a luz da lua crescente, despertou com a boca seca. Olhou para o lado, vendo seu demônio adormecido, respirando tranquilamente. Levantou-se sem fazer mínimo ruído e, caminhando suavemente, guiou-se para o corredor que a levaria para a cozinha.
Olhou de relance para o quarto do filho, ao lado do seu, e percebera a figura de um homem sentado junto à cama de Alexander, assistindo-o sonhar. Franzindo o cenho, ela colocou suavemente a mão na porta e se aproximou para ver melhor.
— Não há motivo para pânico, minha querida. Deixe meu neto dormir.
Então congelou. Reconhecia aquela voz.
Lúcifer? Você está... Você deveria estar morto. Lilith o matou! Assistiram sua queda. Você estava queimando, seu corpo sumiu. Como você...? Como você está vivo?
Em meio à escuridão, ela o viu sorrir.
— Mamãe? — a voz sonolenta de Alexander a fez olhá-lo e vê-lo com os olhos brilhando no escuro. — Você também consegue ver o Lucius?
— O mal nunca morre, pequena alma.


Fim



Nota da autora: Eu não sei como começar a escrever essa ultima nota. Foram tantos meses, tantas inspirações, tantas brigas, tantas mudanças que eu não consigo pensar que HLS finalmente acabou, depois de quase cinquenta capítulos.
Se fosse agradecer a cada uma que me deu impulso para continuar a escrever, teria que nomear todo o grupo que formarmos no wpp, no Facebook (embora, me perdoem, eu nunca entre lá). mas não posso negar a participação de pessoas especiais, e aqui listo sua importância para que HLS se tornasse essa história que é hoje:
Primeiro, não poderia deixar de agradecer à Stephanie. Ela, há quase dois anos, me chamou para escrever uma fic sobre demônios porque sabia que eu sempre tive maior facilidade para escrever algo sobrenatural. Ela confiou em mim e me deu a oportunidade de dar início a este projeto. Conforme o tempo passou, fomos tendo ideias diferentes e pensamentos incoerentes até o ponto que HLS se tornou somente minha, mas não nego a participação dela em vários capítulos cuja minha inspiração se esvaia.
Segundo, tenho alguns nomes em mente: Rafaela Paniago, Mayara Caroline, Sabrina Saraiva, Melissa Vieira, Carol Marinho (e, como já disse, todas as meninas participantes do grupo do wpp). Vocês me inspiraram a continuar mesmo quando não tinham mais ideias para um final que fosse compatível com todo o resto da história. Me estimularam, brigaram comigo, cobraram atualizações. Vocês fazem parte disso e parte de mim.
À minha beta, que sempre fora extremamente carinhosa e atenciosa comigo e minhas extravagâncias demoníacas: muito obrigada pela sua paciência e seu zelo. Eu não poderia ter tido sorte maior em te encontrar.
Às meninas que sempre comentam e me defendem no site: sintam-se esmagadas pelo meu abraço. À todas vocês: muito obrigada por todos esses dias, meses, anos.
HLS não seria absolutamente nada sem vocês.
Quanto a quem me pergunta sobre novos projetos ou antigas histórias, infelizmente não tenho mais nenhuma postada aqui, mas pretendo recomeçar e renovar Cerises, uma que eu já havia postado anteriormente no site. Sobre uma continuação para HLS, não prometo nada, mas deixo essa questão em aberto.
Comecei a escrever HLS com uma ideia em mente, e, depois de quase dois anos, finalizo com mais orgulho que o qual imaginei.
Muito obrigada, meninas.
Nina xx





Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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