Finalizada em: 23/04/2018

Capítulo Único

– O tempo é fluido aqui! – eu a ouvi dizer e soube quem ela era no momento em que a vi.
Assim como soube que ela traria consigo meu inferno particular.
Estava claro que a partir de agora eu pertencia àquele lugar.

Me vi em uma sala comprida, e, na outra extremidade, ela me aguardava. Nas paredes da sala havia alguns objetos e uma grande variedade de imagens familiares. Estar ali não parecia sensato e com toda certeza era longe de ser reconfortante. Como poderia ser curada ali? Queria voltar pela porta em que entrei e me distanciar, mas ela parecia querer me inspecionar mais de perto.
– Chegue até aqui, ! – ordenou, e eu me aproximei.
A figura em minha frente era esquelética e estava nua. Tinha cicatrizes profundas, que pareciam fruto de um açoite ocorrido em um passado distante. Seus lábios eram finos, sua pele rachada e seu rosto duro. Seus olhos frios e sem expressão pareciam ter ido longe demais e visto mais do que deveriam. Sob seu olhar, eu me senti invadida, como se ela fosse capaz de enxergar completamente de dentro para fora, como se conhecesse cada parte do que carregava dentro de mim, como se soubesse intimamente como eu havia chegado ali.
– O que acontece agora? – eu perguntei, receosa.
– Agora... – disse ela com uma voz que não demonstrava sofrimento nem deleite, somente uma horripilante e neutra resignação – Você será torturada.
– Por quanto tempo?
Balançou a cabeça e não me respondeu, ela apenas aproximou-se lentamente da parede, arrancou um objeto dali juntamente com alguns registros fotográficos que enfeitavam o lugar frio e cinzento. Cruzou a sala e lançou as imagens em um braseiro fumegante que estava localizado no meio do recinto. Depois de alguns minutos, segurou o objeto que havia pegado, um açoite de arame farpado, e, com reverência, pôs as pontas dela sobre o braseiro e observou, enquanto o açoite aquecia nas brasas que minhas lembranças formavam.
– Isso é desumano.
– Sim, você tem razão!
As pontas do açoite ganharam um brilho alaranjado, os registros do meu passado se dissiparam sobrando deles apenas um líquido grosso e pegajoso, que grudava no arame que seria usado contra mim. Ela apanhou o açoite com uma de suas mãos e me encarou, antes de erguer o braço para desferir em mim o primeiro golpe, ela disse:
– Você sentirá saudade deste momento, pois a próxima parte é pior.
E então desceu o açoite, e suas pontas quentes atingiram minhas costas com um estalo, rasgaram minhas roupas coloridas, dilaceraram minha pele e partiram meu coração. O líquido grosso de minhas memórias escorreu do objeto e misturou-se ao meu sangue. E, pela primeira e não última vez naquela sala, gritei.
Haviam sido doze anos ao lado de , por isso haviam doze instrumentos repousados nas paredes, assim como quatro mil trezentas e oitenta imagens de cada dia nosso, cobrindo desde o teto até o chão. E, com o tempo, cada um dos objetos foi utilizado e cada uma das lembranças lançadas no braseiro. Quando me tocavam: queimavam, cortavam, estraçalhavam e dilaceravam tudo em mim.
Por fim, quando o último objeto foi recolocado na sua devida posição e não havia mais memórias para alimentar o fogo nem produzir aquele líquido doloroso que grudava nos grilhões, abri meus lábios rachados e perguntei, soluçando:
– E agora?
– Agora começa a pior parte, .

E, de fato, começou... Cada coisa que eu fiz e que teria sido melhor não ter feito. Cada pequena mágoa e grande mágoa. Cada mentira que contei – a mim mesma, aos outros e a . Cada uma dessas coisas foi arrancada de mim, detalhe por detalhe, centímetro por centímetro. Ela descascava a crosta do esquecimento e tirava tudo até sobrar somente a verdade, e isso doía mais que qualquer outra coisa que havia feito a mim antes.
– Conte o que você pensou quando o viu indo embora. – exigiu ela.
– Eu... Eu... Eu pensei que meu coração iria se partir.
– Sua mentirosa! Não, não foi isso que pensou! – contestou ela e dirigiu seu olhar para mim, que me vi forçada a desviar meus olhos para poder respondê-la sem mentir.
– Eu pensei: “Pelo menos agora não precisarei contar para ele que eu sempre desejei dormir com o outro”.
E, assim, ela desconstruiu todo o relacionamento que eu havia vivenciado com , ano por ano, mês por mês, dia por dia, momento por momento, um instante após o outro. Isso levou algumas horas, não sei dizer exatamente quantas, talvez cem ou talvez mil delas, pois parece que tínhamos todo o tempo do universo naquela sala.
Lá pelo fim, percebi que ela tinha razão: Aquilo era pior que a tortura física.
Mas acabou.

Só que quando acabou, começou outra vez.
E com uma consciência de mim mesma que eu não tinha da primeira vez, tudo se tornou ainda pior, porque agora, enquanto falava, eu me odiava.
Não havia mais mentiras nem evasivas, nem espaço para nada que não fosse mágoa, sofrimento e ressentimento. Eu falava de forma nítida e sem hesitação, não chorava nem soluçava mais. E quando terminei, o que pareceu mil horas depois, rezei para que aquele demônio voltasse para a parede e pegasse a faca de escalpelar, o sufocador ou o açoite novamente, mas ela não fez isso.
– De novo! – ordenou. E quando a ouvi dizer isso, gritei. Gritei desesperadamente. Gritei por misericórdia. Gritei suplicando piedade. Mas quando finalmente me calei, ela repetiu calmamente: – De novo, !
Dessa vez, foi como descascar uma cebola, repassei minha vida, camada por camada, e aprendi sobre as consequências de tudo. Percebi o resultado das coisas que fiz e disse, notei que estava cega quando tomei certas atitudes, tomei conhecimento da maneira como infligira mágoa aos que estavam ao meu redor, enxerguei os danos que causei no homem que só soube me amar e que fora a melhor pessoa que eu havia conhecido, encontrado e visto na minha vida. E aquilo me trouxe a lição mais difícil que aprendi.
Mesmo assim, ouvi novamente a mesma ordem anterior:
– De novo!
Eu agachei no chão, ao lado do braseiro, balançando o corpo de leve, encolhida, e contei toda a minha história, sem omitir nada, enfrentando tudo, de coração aberto. Quando acabei, fiquei ali sentada, de olhos fechados, esperando que a voz dissesse “De novo!”. Porém, nada foi dito. Só havia silêncio.

Não sei descrever quanto tempo se passou, mas sei que fiquei ali ouvindo barulhos, percebendo coisas saírem e entrarem, uma movimentação de objetos ao meu redor e o odor de um aroma diferente preencher o ar. Até que, de repente, houve um clarão e também um estrondoso trovão, e, então, o frio começou a invadir o lugar.
Lentamente abri meus olhos, fiquei de pé e percebi: haviam objetos limpos e lembranças novas nas paredes dali, mas, fora isso, eu estava completamente sozinha.
Na outra ponta da sala havia uma porta, que enquanto observava se abriu. Uma mulher de roupas coloridas entrou por ela e deu alguns passos hesitantes pela sala, mas quando me viu, parou de caminhar. Havia medo em seu rosto, também receio, e até certo ponto inocência.
– Por favor, você poderia me ajudar? Mandaram que eu viesse aqui porque estou ferida. – sua voz era carregada por uma aflição inocente, mas, de uma forma, eu sabia que ela estava escondendo algo – Você vai me ajudar? Quanto tempo demorará até que eu fique curada?
Ao vê-la ali, eu finalmente entendi e por isso abri um leve sorriso com meus lábios rachados e lhe disse:
–Então, a primeira coisa que precisa entender é que... – Fui posicionando-me esquelética e nua, enquanto a nova versão de mim me encarava aflita. Passei os dedos por algumas das lembranças da nossa história com um novo homem de rosto bonito e inocente, que eu ainda não conhecia, mas que em breve saberia exatamente quem era. Da parede, arranquei três retratos e um açoite, e com uma expressão dura e resignada eu lhe disse:
– O tempo é fluido aqui!


Fim.



Nota da autora: Sem nota.


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