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Última atualização: 28/05/2023

Capítulo 1 - Fanfic

Eu estava viciada.
Tudo que eu conseguia pensar era , e mais . Eu passava o dia todo escutando a voz dele, os dedos dele deslizando pelas cordas da guitarra, do baixo, do violão... Esse homem era um verdadeiro gênio musical, ele fazia tudo sozinho. E esse talento dele me deixava em êxtase, eu queria mostrar para o mundo quem era , quem era .
Acabei engolindo aquele nó que incomodava a minha garganta toda vez que eu me apaixonava por mais uma pessoa inssível. Jurei para mim mesma que dessa vez era diferente, que não existia ninguém como , mas, toda vez, juro o mesmo com todas as paixonites que já passaram, então não valia a pena contar para ninguém de novo. Afinal, estar apaixonada de novo não era nenhuma surpresa.
É no mínimo estranho quando você ama uma pessoa famosa. Todo mundo te olha com pena e esses olhares só vão piorando quando isso acontece pelo menos umas 4 vezes por ano, eles evoluem até mesmo para escárnio. Não dava para esperar menos, não é? Eu tenho 25 anos, já passou da hora de crescer e parar de me apaixonar tanto assim, talvez até me apaixonar por uma pessoa de verdade como as pessoas da minha idade. Infelizmente, não consigo. Primeiro ponto: sou teimosa e vou até o fim pelo que gosto. Segundo: eu tenho um pequeno problema que me faz viver assim desde os meus dez anos, quando descobri que o mocinho da novela era mais interessante que os meus coleguinhas da escola. Desde aquele ano, eu venho me apaixonando por tantas pessoas que não consigo mais contar. Pelo o que me lembro, já passei pela fase dos personagens dos filmes da Disney, pelos personagens de novelas nacionais e até mesmo mexicanas, depois vieram os livros e descobri que tinha como me apaixonar por alguém que nunca vai existir.
Depois disso, foi só ladeira abaixo. Descobri as fanfics como uma adolescente normal da minha idade: McFly. Apaixonei-me profundamente por McFly. Nesse meio tempo, me apeguei à música, daí conheci algumas bandas, passei para a One Direction, Never Shout Never, algumas fanfics com bandas famosas de glam metal nos anos 80, me afundei tanto na minha falta de critério que acabei chegando em uma fanfic de black metal.
O que é black metal? É um gênero musical que geralmente amedronta muitas pessoas pelas letras gritadas e histórico macabro. É, quando digo que me afundei nos últimos quase 10 anos, não estou mentindo, praticamente entrei na deep web do mundo das fanfics. Foi em uma dessas com ícones do black metal que o conheci. Um dos precursores do gênero, o pai do black e posteriormente do viking metal. .
Posso dizer que fanfic foi a melhor descoberta da minha vida — depois do , é claro. Fanfic é uma maneira de aliviar todo esse amor doloroso que sinto quando me apaixono, lendo uma fanfic me sinto finalmente livre para superar a fase amor doentio e passar para a fase amor normal. Nesses anos, descobri que é uma necessidade básica, se não fosse pelas fanfics, não sei se conseguiria respirar normalmente — tudo por causa dos meus episódios de paixonite aguda.
Era mais um dia desses em que tinha a impressão de não conseguir respirar direito. Levantei-me da cama após um sonho em que meu subconsciente me alertava da realidade que eu mais evitava: estava morto. Não era de ontem, do mês passado ou sequer do ano anterior. Estávamos em 2019, o coração dele parou em 2004.
Hoje, dois meses antes do aniversário de morte dele, eu sonho que era apenas uma criança no meio de um monte de adultos de roupas pretas, tentando passar para ver de onde vinha aquele som, sabia que era ele, só nunca consegui alcançá-lo, porque ele não existia mais. Interpretei como uma mensagem clara do meu subconsciente me alertando que morreu quando eu apenas tinha 10 anos.
Infelizmente, a vida não respeita seus dias de pesadelos, então eu fiz todo o meu ritual antes de ir para a faculdade com mais falta de vontade do que o normal. Às dez horas, dentro do ônibus vazio, eu o colocava para cantar em meus ouvidos mais uma vez e me absorvia em pensamentos.
não era como todos acreditavam que seria um ídolo do black metal. Não, essa fase dele já tinha passado e ele praticamente a abominou assim que os anos 80 passaram. Desde que ele tinha mudado todo o gênero da banda para a temática viking — devido à sua nacionalidade escandinava —, ele mudou totalmente sua essência. Antes dos anos 90, ele tinha cabelo descuidado e pintado, depois manteve na cor natural: . Usava muita roupa de couro, depois optou mais por peças em jeans e tecido. Até mesmo suas letras evoluíram de gritos desconexos para letras entendíveis. Eu o amo em todas as suas versões, mas é claro que o prefiro desde que ele passou por essa mudança. Ele se tornou mais humano, um sueco comum dos anos 90, se afastando do ideal de ídolo do black metal. Não havia como não se apaixonar.
A pobre apaixonada se chama . Sim, eu. Brasileira, natural de São Paulo capital, mas atualmente moro na Inglaterra há um pouco mais de um ano. Sou bolsista no curso de biologia pela Universidade de Birmingham. Tenho 25 anos e me considero uma garota simplória. Porém, as pessoas não me consideram tão simplória assim por ser filha de pais famosos no Brasil. Meus pais são atores da maior emissora de TV brasileira, vivem pulando de São Paulo para o Rio e outras cidades para gravações. Foi assim durante minha vida inteira, então, quando surgiu a oportunidade para me afastar do Brasil, eu agarrei com unhas e dentes.
Como estudante de biologia, eu faço trabalho voluntário toda terça à tarde no santuário de animais silvestres que também era conhecido por zoológico pela população local. Hoje, o que me deixava mais esperançosa é que, finalmente, eu poderia cuidar do novo elefante-da-savana que tinha chegado no final de semana. O voluntário intercambista — que era meu colega de trabalho e rival — fizera de tudo para ser o primeiro a fazer o relatório sobre o elefante só porque estava curioso para lidar com um elefante dessa idade, visto que os atuais elefantes que moravam por lá tinham, no máximo, 23 anos. Ser quieta tinha suas vantagens, afinal.
Segui para a aula e assim que sentei, nem abri o Instagram que nem todos os dias. Tinha chegado ao ponto de explodir, isso significava que estava na hora de começar a minha procura por fanfics. Eu tinha uma lista grandes de sites onde ler fanfics com famosos não tão conhecidos, por isso abri o primeiro e quando apareceu “nenhum resultado encontrado” não me decepcionei tanto. Seria mesmo um longo dia.

***


Na hora do almoço, eu estava no décimo quarto link e até agora, obviamente, sem sucesso.
Hoje eu tinha companhia dos meus únicos amigos, Shandi e Raj. Eles são trigêmeos, mas Gorty tinha escolhido trabalhar em uma oficina ao invés de entrar na faculdade como os irmãos, então meus únicos contatos com ele foram nas vezes que acompanhei Shandi e Raj até a casa de seus pais.
Shandi era a cópia perfeita da mãe, seu cabelo cacheado ruivo era extremante volumoso e bem cuidado, ela usava óculos redondo dourado, tinha muitas sardas pelo corpo todo e usava aparelho nos dentes. Já Raj era cinco centímetros mais baixo que a irmã, o pai dizia que ele parecia com o avô paterno que era descendente direto de tailandeses, seu cabelo era escuro e preto, seus olhos eram pequenos, as pessoas perguntavam se ele era chinês e algumas vezes ele respondia “sim”, porque não gostava de ter que explicar que nem todo asiático era automaticamente chinês. Já Gorty era idêntico a Shandi.
Apesar de ter contato com os dois quase todos os dias, sou mais próxima de Shandi. Nossos horários se batem mais e ela tem um desafio consigo mesma que é despertar meu lado amoroso. Ela não é a primeira a tentar, no entanto. Até semestre passado, eu me forçava a me relacionar sem compromisso com garotos, saía na balada, ia ao cinema, qualquer coisa que acabasse comigo em uma cama do dormitório masculino. Até que decidi largar essa vida por não me sentir bem. Desde então, Shandi se aproximou mais de mim e acha que preciso ser mais pé no chão. Largar minha fé de viver “uma história de amor louca” com algum ídolo meu para adotar minha fé no amor real. Em minha defesa, eu não quero viver o que ela chama de “uma história de amor louca”, só quero apenas ler uma fanfic que posso me imaginar no lugar da personagem principal e acalmar meu coração. Viver dava muito trabalho.
— Eu vi que você não prestou atenção na aula de hoje — Shandi disse enquanto me via esquentando minha comida no micro-ondas comunitário. Eu ainda mexia no meu celular, procurando furiosamente por sites o nome de . — Continua apaixonada pelo Noah Centineo? — disse em tom de repressão.
Eu levantei os olhos do celular e respondi afirmativamente com a cabeça. Como eu disse antes, não valia a pena contar para alguém. Duas semanas atrás, eu estava realmente apaixonada pelo Noah Centineo. Até que passou rápido, porque eu tive muito material, Noah era o ator do momento e isso foi mais fácil de saciar minha sede.
— Semana que vem tem prova dessa matéria, se você quiser, posso te ajudar a estudar amanhã — ela disse, tirando minha vasilha de dentro do micro-ondas e colocando a dela.
Sorri.
— Você é a melhor — respondi, dando um abraço de lado nela. Eu realmente não podia tirar nota baixa nessa prova, na última tinha sido na média e eu precisava manter notas altas porque era bolsista.
Esse último ano na Universidade foi totalmente diferente do que eu estava acostumada. Tinha estudado desde os 18 anos para conseguir uma bolsa para estudar ao redor do mundo e finalmente aconteceu nos meus 24 anos. Biologia foi minha segunda escolha, quando eu percebi que não conseguiria bolsa para estudar moda do século 20 em um curso de 18 meses na Itália. Shandi sabia das dificuldades em ser bolsista, por isso prestava atenção quando via que eu estava desperta só para me ensinar depois. É, ela era incrível. Shandi foi meu primeiro exemplo verdadeiro de amiga na vida. As outras amizades que tive foram superficiais e não duraram.
— Demoraram tanto que vou ter que ir, tenho uma aula agora — Raj disse quando nos sentamos à mesa. Ele bagunçou o cabelo da irmã e me deu um beijo no rosto. Saiu pelo corredor que conectava o refeitório com o prédio de história. Ao contrário de Shandi, que pegava as mesmas aulas que eu, porque estávamos no mesmo semestre e no mesmo curso, Raj estava no primeiro semestre de história, porque tinha visto que a biologia não era para ele.
— Então, tenho uma surpresa para você — ela disse enquanto colocava macarrão na boca. Levantei as sobrancelhas, esperando que ela desembuchasse. — Eu vi “Para Todos Os Garotos Que Já Amei” ontem. Você estava certa, não tem como não se apaixonar pelo Noah nesse filme, eu até me apaixonaria, se gostasse de homens.
Dei um sorrisinho para disfarçar que eu não estava mais nem aí para o Noah, pelo menos até o próximo filme com ele lançar na Netflix. Ela pareceu não perceber, porque continuou comendo despreocupadamente.
— Eu disse que Noah Centineo era o homem mais bonito atualmente — falei com ênfase na última palavra, me sentindo no dever de acrescentar para não trair o atual homem dos meus sonhos.
— Isso seria verdade se Tom Cruise ainda não estivesse entre nós, por enquanto a fama é dele — ela respondeu, pegando um pouco da mandioca caríssima da minha vasilha. Quis reprimi-la, mas fico com dó dos ingleses que não tiveram o prazer de comer mandioca por uma vida.
— Saudades da minha fase Tom Cruise, as fanfics de daddy e little girl eram bem legais — comentei, recebendo a cara de nojo dela. Shandi gostava de fanfics sobre Crepúsculo, apesar de estarmos em 2019 e não haver mais tantas assim. — Vai me dizer que nunca leu uma fanfic que o Edward era o daddy?
, já falaram que você é estranha hoje? — ela riu.
— Não, esse prazer é exclusivamente seu hoje — também ri, bebericando minha coca-cola.
Comemos em silêncio o resto de nossas refeições, Shandi assistia a vídeos de exploradores em casas abandonadas — o que era nossa atividade favorita para fazer juntas na hora do almoço, principalmente em um dia nublado como aquele. No entanto, recusei seu convite porque estava determinada a ter algum êxito com a minha pesquisa o mais rápido possível.
Site número 15, 16, 17, 18, 19... todos iam sendo riscados da minha lista.

***


Atravessei os portões do zoológico e fui direto para o vestiário colocar meu uniforme de voluntária. Deveria estar mais ansiosa para conhecer o novo morador, mas meus pensamentos agora se alternavam em preocupação com a nota na prova da semana que vem e em não conseguir estudar, porque estava ansiosa demais. Guardei minhas coisas no armário e fiquei um pouco mais animada em tentar me distrair com algo que agregasse no meu futuro. Então, fui até o isolamento do elefante cantarolando, a portinha indicava que o nome dele era Solveig. Lembrei das aulas de intensivo de sueco que estava fazendo duas vezes na semana nas últimas duas semanas, no livro tinha um senhor com esse nome e dizia que Solveig significava “caminho do sol”. O rosto cinza que apareceu de dentro do abrigo mostrava como combinava perfeitamente com esse nome.
— Você e eu vamos ser grandes amigos, porque eu adoro nomes suecos. — murmurei para ele, pegando todas as pastas que foram deixadas no chão com as informações. — Na verdade, eu só conheço um sueco, mas ele é a minha pessoa favorita. O que fazem nomes suecos serem os meus favoritos.
Ele chegou perto do portão que nos separava e me lançou um olhar curioso, como se estivesse entendendo o que eu estava dizendo e realmente interessado. Esse é um dos pontos que os animais sempre ganham. Eles são ótimos ouvintes e sempre parecem te achar o ser mais interessante do universo enquanto você está simplesmente tagarelando aleatoriedades. Eu sempre gostava de considerar aquilo como um convite para continuar verbalizando meus devaneios.
— Vamos ver o que temos aqui — analisei a ficha básica, vi que ele nasceu em uma unidade de conservação de espécies na Índia, que estavam trocando seu ambiente por conta de estresse e que pretendiam reproduzi-lo com uma fêmea local, para depois castrá-lo. A data de nascimento dele era outubro de 1984, ri comigo mesma e ele me encarava com aqueles olhinhos curiosos. — Outubro de 1984 foi quando saiu o primeiro álbum da banda do , seria engraçado se eu não tivesse tentando esquecer dele para o bem da minha ansiedade e vida acadêmica.
Solveig me deu as costas, me deixando com a minha história trágica e indo atrás de comida. Desejei ser ele naquele momento, seria bom esquecer tudo e só ir atrás de comida.
Comecei a trabalhar no relatório, resumindo todas as informações sobre o recém-chegado para só depois analisar o que já tinha no dossiê. Duas horas passaram sem que eu nem percebesse e quando virei a página vi que tinha acabado aquele documento, as folhas envelhecidas do próximo indicavam que seria uma leitura interessante. Virei a página novamente, iniciando, e percebi que eram relatos de pesquisadores e cuidadores que passaram pela vida de Solveig desde seu nascimento.
As duas primeiras páginas foram normais, mas depois alguns começaram a escrever que, na cultura popular, acreditava-se que quem captasse a atenção de Solveig, olhasse em seus olhos e mentalizasse algo, provavelmente veria seus sonhos realizarem. Havia muita gente contando que as visitas de Solveig sempre foram bastante disputadas, todo mundo queria pedir as mais diversas coisas a ele. Quando as pessoas retornavam um tempo depois com seus desejos realizados, sempre traziam algo em forma de agradecimento e afirmavam que o elefante era mesmo mágico.
Com todos os romances que li, eu não duvidei daquilo por nenhum segundo. Sempre via que as mocinhas duvidavam, faziam e não esperavam nada. Já eu, acreditava piamente em Solveig, até mais do que em mim mesma. Afinal de contas, ele tem a pureza dos animais e, por não ter a maldade humana, acredito que criaturas possam mesmo alcançar o nirvana ou algo assim.
Uma onda de felicidade me preencheu e de repente me senti muito grata por ser a primeira ali a ter contato direto com Solveig — a não ser pelos cuidadores que forneceram as necessidades básicas dele durante esses dias. Eu estava na presença de uma celebridade indiana ou melhor: de um animal associado a uma divindade.
Larguei os papeis e o meu notebook em cima do banco em que estava sentada e resolvi tentar a minha própria sorte também. Eu estava desesperada, afinal de contas. Bati no portão de aço e ele veio ao meu encontro com passos lentos, me analisando a cada passada. Nós não estávamos tão perto assim por causa da segurança do isolamento, mas eu consegui ver que sua atenção era minha.
— Bom, Solveig, as pessoas naqueles papeis dizem que você é mágico. — apontei para onde estava meu notebook. — Acho que nenhum desses cientistas que passaram por você levaram esses relatos de visitantes muito a sério. Porém, saiba que, enquanto pesquisadora e cientista, eu acredito e respeito muito você — sorri para ele, mostrando que poderia confiar em mim e olhei em seus olhos que estavam em mim. — Se não for muito incômodo, eu queria achar uma fanfic com aquele cara sueco que te falei. Eu gosto muito dele, ele já morreu e acho que esse é o único jeito de termos alguma chance — soltei uma risadinha. Eu era patética e aposto que Solveig também achava isso lá no fundo, só mantinha aquele olhar curioso para não me deixar sem graça. — Esse deve ter sido o pedido mais idiota que você já recebeu — comentei, baixando a cabeça, talvez quebrando o rito por não ver aquilo se realizando nos olhos dele. Eu percebi que era bobeira pedir isso quando estava tão atolada com outros problemas e sem dar a mínima, por isso senti vergonha de mim mesma.
Voltei ao relatório até dar 19h e não tive mais coragem de conversar com Solveig, até porque ele foi fazer outras coisas que elefantes normais (e não místicos) fazem. Guardei as pastas no meu armário, já que não tinha terminado o relatório, depois coloquei o notebook de volta em sua case para fazer o caminho longo de casa. Na volta do zoológico, para não pegar um trânsito de horas, eu sempre tinha que enfrentar duas linhas do metrô, um ônibus e a caminhada habitual de 10 minutos da parada até minha casa.
Aproveitei aquele tempo no transporte para jogar o nome de nos sites restantes de fanfic e ouvir o quarto álbum inteiro mais uma vez. Era um alívio ouvir a voz dele depois de um dia inteiro de abstinência, senti realmente que era um anjo cantando no meu ouvido — se anjos gritassem ou falassem que hoje é um belo dia para morrer, como na música atual que eu estava escutando, é claro. Vamos considerar que tinha seu jeito único de ser um anjo e eu de acreditar em anjos.
Quando cheguei em casa, eu preparei macarrão instantâneo e coloquei ração na vasilha do Lemmy — meu gato de estimação ingrato que achava que minha colega de apartamento era sua mãe. Ele ainda me pediu sachê, rodeando minhas pernas com seu rabo felpudo, mas Anya tinha escrito em um post-it rosa colado na geladeira que já tinha dado para ele. Depois de ver que eu tinha sacado, ele voltou a me ignorar e a se esconder no quarto da Anya.
Aquela era a hora da verdade, faltava só mais um site da lista. Abri meu computador para poder procurar melhor, digitei o site na barra de pesquisa e, quando abriu, coloquei o nome de e minha mão tremeu na hora de apertar enter. Não tive nem tempo para expectativas, cinco segundos depois a página carregou informando que nenhum resultado havia sido encontrado.
Droga.
Coloquei as mãos na cabeça, pronta para surtar. Senti meu rosto ficar vermelho a ponto de entrar em combustão e era um dos primeiros sinais que eu choraria a qualquer momento. Foram longos dez minutos tentando controlar minha respiração para não ter uma crise de ansiedade, meus olhos passearam pelo pequeno apartamento diversas vezes na tentativa de achar uma solução.
Depois de sentir esse surto inicial ir embora, decidi que não ia me contentar com aquilo. Coloquei a panela cheia de macarrão de lado, me ajeitei na cadeira e ajeitei também meu pijama de natal fora de época. que me aguardasse porque hoje mesmo eu estaria lendo uma cena hot com ele.
Sorri ao pensar nisso, mas senti também meus pelos eriçarem de excitação. Achar aquela fanfic era questão de vida ou morte agora.
Joguei no Google “ fanfic”, apareceram várias que mencionavam músicas de sua banda, mas nenhuma com o próprio. Me concentrei em olhar link por link, quando dei por mim já estava na página 23 de resultados — a última. Os links dessa página eram transcrições de entrevistas que eu tinha visto antes, mas o último era uma página diferente.
A página tinha um fundo preto e letras em vermelho. As letras em vermelho falavam sobre um mito de pessoas que já tinham morrido. Mais para baixo era possível ler que pessoas de décadas e séculos diferentes poderiam ter seu destino atrelados com essas pessoas, as almas gêmeas. Esse erro do destino nunca as permitia serem felizes ou se sentirem realizadas. Depois da história de Solveig, meu apetite com qualquer coisa mística estava a mil, então continuei lendo.

“Se você conheceu a pessoa amada apenas por fotos ou por livros de história e seu coração sofreu com um amor à primeira vista inexplicável, talvez você possa ser mais um atrapalhado pela maldição do tempo.
A lenda diz que é possível alcançar anos em que nem mesmo tinha nascido e continuará com a sua idade atual. Se decidir permanecer naquela data, você envelhecerá normalmente ao lado da pessoa que ama. Mas seu nascimento, sua infância e todas suas memórias serão algo pessoal que nunca terão acontecido com as outras pessoas envolvidas, elas só estarão presentes na sua realidade atual. Ou seja, não poderá haver duas de você.
Se decidir não viver na mesma época que a pessoa amada, abandonando-a, ela mesmo assim lembrará da sua presença e poderá sofrer pelo resto de seus dias com a maldição de amar um viajante do tempo. Há casos aqui reportados que elas enlouqueceram procurando sua alma gêmea e descobrindo que tinham acabado de nascer.
Por isso, é preciso ser cauteloso se deseja prosseguir.
Você deseja saber o segredo?
Prosseguir / Retornar”

Aquele era realmente um site nada convencional, para não dizer outra coisa. Eu não comprei em nada essa história, afinal, há muitas lendas de todos os tipos, de todas os países, religiões etc. Mas nenhuma delas apareciam quando você digitava o nome de alguém que existiu no Google, pensei.
Batuquei os dedos no notebook, a dúvida me consumindo: tentar ou não? Parecia uma história boa, afinal de contas. Bem Outlander. Poderia ser uma fanfic envolvendo Outlander, não? Não faria mal apertar em prosseguir. Não é como se eu pudesse amaldiçoar alguém ou a mim só de clicar em algo em um site.
É, eu não tinha nada a perder.
Apertei em prosseguir e agora era outra página preta, só com os dizeres em branco:

Para efetuar a viagem, digite o nome da pessoa que deseja encontrar, o ano e o local em que deseja estar.

Nome:
Ano:
Local da pessoa:”

Era estranho pensar em qual lugar a pessoa estaria em tal ano, visto que ela poderia se locomover rapidamente e que nem todo mundo saberia onde está a pessoa. Mas, aparentemente, essa era a única pergunta do formulário que não era obrigatória.
Lembrei que tinha uma certeza de onde poderia estar numa data. Era em 1990, quando ele saiu para fazer a promo do novo álbum pela Europa. Passava em seu documentário que eu havia visto um monte de vezes pelo YouTube. O bônus do lugar é que eu sabia o idioma e poderia me comunicar.

Nome:
Ano: 1990
Local da pessoa: Lisboa, Portugal.
Aperte para continuar

Capítulo 2 - Time Warp

— Olá? Estás bem? — escutei uma voz, no meio de muitas, perguntando.
Minha cabeça doía como se eu tivesse levado uma pedrada de uma pedra maior que minha cabeça. Tentei abrir os olhos, mas tinham tantos rostos no meu campo de visão que fechei de novo. A última coisa que eu lembrava era de estar sozinha, sentada na sala da minha casa, e Lemmy no quarto da Anya. Não fazia ideia de como todas essas pessoas tinham entrado ali ou o que estavam fazendo.
— Acho que ela está bem — outra voz comentou. Meus sentidos ficaram em alerta, eu não escutava alguém falando em português sem ser pela tela do computador há um tempo considerável. Por mais que aquele português parecesse bem diferente do que estava acostumada...
Abri os olhos e me levantei rapidamente, me arrependendo logo em seguida, quando minha cabeça piorou e quase bati a testa nos rostos daquelas pessoas que me assistiam.
A memória tinha me atingido com tudo e de uma vez só no segundo seguinte, como se, de repente, minha alma tivesse voltado para o corpo. Lembrei que eu realmente estava em casa e com aquele site estranho aberto, tudo ficou escuro quando apertei o botão. Olhei da esquerda para a direita, tive um sobressalto ao notar as pessoas com cabelos cheios de laquê e bastante fora de moda que me cercavam. Ok, ou eu era sonâmbula e tinha vindo parar no meio de algum desfile do curso de moda da minha faculdade ou, dando razão ao que o site prometeu entregar, eu estava deitada no chão aparentemente no meio de uma rua de Portugal — onde passou em 1990 na promoção do disco novo da época.
O que explicaria o motivo de essas pessoas estarem falando português europeu e indicaria que tinha dado certo.
Minhas mãos começaram a tremer e eu não sabia mais articular as palavras em português para falar com aquelas pessoas. Eles começaram a se aproximar demais de novo, minha cara deveria ser um misto de incredulidade e pavor, podia sentir claramente minha expressão.
— Calma, respire — um homem mais velho com um bigode gigante pediu. — Inspira. Expira. Inspira. Expira.
Obedeci, mas não consegui parar de encarar todas aquelas pessoas e suas roupas tão vintage que pareciam preservadas demais para terem vindas de brechó.
Também temos a opção de terem organizado uma pegadinha comigo de mau gosto, talvez Anya, por eu ter deixado a louça suja na noite anterior. Ela podia ser bem vingativa quando o assunto era limpeza. Só que tudo ali parecia genuíno para ter sido arquitetado pela minha colega de quarto, ela teria que gastar um dinheiro que não tinha para contratar tanta gente e investir uma boa grana nesse figurino. Acho que ela não teria dinheiro nem para o laquê que toda aquela gente estava utilizando, afinal, nós éramos universitárias.
O que me deixa com a outra opção que explicava melhor.
Uma risada nervosa ficou presa na minha garganta enquanto fazia o exercício de respiração. Não podia realmente ter dado certo, não é? As pessoas não apagavam em casa e acordavam vinte e nove anos antes. Eu não posso ser uma viajante no tempo rodeada por todas essas pessoas.
Recuperei um pouco do controle da minha respiração e das minhas funções, seguindo à risca o exercício respiratório do homem. Por isso, coloquei meu cabelo para trás da orelha, tentando processar as palavras novamente.
— Que dia é hoje? — perguntei em português.
— Terça-feira — uma adolescente me respondeu prontamente.
— ‘Tá, mas terça quando? — respondi, ansiosa, soando até um pouco grosseira.
— 5 de maio — outra pessoa respondeu, dessa vez uma mulher loira com um mullet igual das capas de discos que minha vó guardava cuidadosamente em sua casa.
— E o ano? — soei, dessa vez um pouco impaciente demais para aquela conversa. Eu não me dava bem com multidões, ainda mais quando estava tão confusa e todo mundo me olhava assustado demais.
— 1990 — a mulher disse em resposta, depois encarou o homem que me disse para respirar. — Acho que devemos levá-la para o hospital mais próximo.
Puta que pariu. Eu definitivamente tinha viajado no tempo. Eu era Claire Fraser de Outlander fora da ficção. Isso queria dizer que eu estava oficialmente às cegas procurando o meu Jamie.
Ah, droga.
.
Se eu estava em 1990, em Portugal, ele estava vivo. Estávamos respirando o mesmo ar.
Em um pulo fiquei de pé, surpreendendo todo mundo — inclusive a mim mesma.
— Não preciso ir para o hospital. Olhem só, estou ótima. Não se preocupem comigo — forcei um sorriso tentando comprovar, mas deve ter saído mais como uma careta. — Acabei de lembrar que só preciso encontrar uma pessoa. Alguém sabe se hoje tem uma sessão de autógrafos ou algo do tipo com um sueco famoso chamado ?
Todos continuaram me olhando com desconfiança sem falar nada, parecendo até mais perdidos do que eu. O homem do bigode e a mulher que me respondeu ainda me analisavam, provavelmente tomando suas próprias conclusões se deveriam ou não me levar para o hospital. Fiquei cerca de um minuto depois que eu estava encarando-os com esperança de receber alguma resposta. Quando pareceu que eu estava realmente às cegas, um garoto atrás de várias pessoas quebrou o silêncio, dizendo bem baixinho:
— Ele vai estar daqui a duas horas no Dino’s, duas ruas daqui.
Cortei as pessoas que estavam na frente dele e reconhecer sua camiseta da banda de foi um alívio. A sorte estava ao meu lado. Sorri verdadeiramente dessa vez, finalmente algum sinal de que ele estava ali. Eu não estava doida, não era um delírio. Eu estava nos anos 90!
— Você está indo para lá? — perguntei. O garoto parecia ter uns 17 anos. Ele estava todo vestido como se acabasse de sair de uma produção hollywoodiana, calça jeans de lavagem cinza toda furada e desgastada — não era como as que eu via para comprar na H&M que furavam de propósito e vendiam pelo triplo do preço, parecia genuinamente velha. A camiseta era igual a uma das que eu tinha comprado no eBay, só que a tinta preta estava desgastada por lavar com sabão em pó de má qualidade. Por cima, um colete branco com vários patches de bandas antigas dos anos 80. Ele tinha cabelos pretos e olhos chamativos.
— Estava matando tempo enquanto não é hora. Porém, se quiser, posso lhe mostrar o local — ele disse, soando simpático. Minha vontade era de abraçá-lo de tanta felicidade, mas me contentei em sorrir e balançar a cabeça afirmativamente várias vezes. Aos poucos, o aglomerado ia se dissipando atrás dele. A mulher e o homem do bigode já não eram mais vistos.
Eu veria . Não podia ser real. Eu só esperava não acordar naquele momento, me frustraria pelo resto da vida.
Era a primeira vez que eu estava tão perto de conhecer uma das minhas paixões platônicas. Nota mental: eu precisava dar pulinhos de felicidade assim que ficasse sozinha e agradecer qualquer coisa que tenha me trazido até aqui (ou me proporcionado esse sonho louco). As borboletas no meu estômago tinham finalmente aprendido a voar e se sentiam livres para dar cambalhotas, me deixando enjoada de tanta ansiedade.
Andei do lado do garoto, deixando a aglomeração de curiosos para trás, que logo se desfez com cada um seguindo seu destino. As ruas, os carros, o cheiro, era tudo conforme eu imaginei com base nos filmes. As pessoas andando nas calçadas, conversando com a pessoa ao lado e não digitando em seus telefones. Tudo parecia bonito demais para ser verdade, mas milimetricamente pensado para ser mentira.
Virei para o garoto.
— Desculpa, eu nem mesmo perguntei seu nome — notei.
— Ah, é Tiago — ele respondeu, dando um sorrisinho tímido. — E o seu?
— imitei seu sorriso. Ele devia estar me achando muito estranha por estarmos indo para o mesmo lugar e eu estar vestida de pijama natalino enquanto ele estava todo paramentado.
— Nome legal — comentou.
— Obrigada — sorri. — O seu também não é nada mau.
Ele sorriu, concordou com a cabeça e continuou andando ao meu lado em silêncio. Não me incomodei para considerar aquele silêncio desconfortável, a minha atenção estava até mesmo nas pedrinhas do chão enquanto minha mente processava que aquelas ali eram pedrinhas dos anos 90 nas ruas dos anos 90. Afinal, eu aparentemente estava nos anos 90. Dá para acreditar onde eu estava? Ainda estou em choque, sem acreditar totalmente.
Chegando ao lugar, tinha um cartaz enorme informando que aquele seria o dia que o estaria lá, às dezesseis horas. O frio na minha barriga se intensificou e eu engoli em seco. Ainda não tinha fila e nem ninguém esperando do lado de fora, então me sentei em um murinho que ficava perto do vidro da vitrine, onde tinha um monte de exemplares de vinis do disco novo que ele lançou esse ano. Cara, a Shandi não iria acreditar quando eu contasse para ela.
Se um dia eu voltasse a vê-la.
As palavras do site me vieram à mente: “Se decidir não viver na mesma época que a pessoa amada, abandonando-a, ela mesmo assim lembrará da sua presença e poderá sofrer pelo resto de seus dias (...)”.
Suspirei. Era doloroso pensar que nunca mais veria Shandi e Raj. Também era doloroso pensar que teria um leque de possibilidades na minha frente, como: eu poderia nunca encontrar com ou ele nem sequer ligar para mim. Quem dirá chegar a me amar. Imaginar isso também causava um pouquinho de dor. Porém, me deixava mais perto de retornar para casa.
Nada disso importava agora.
— Eu tenho que ir ali buscar alguns amigos antes de começar. Vejo-te mais tarde? — Tiago falou, apontando para trás.
— Tudo bem. Obrigada por me trazer até aqui — nei.
Ele murmurou algo que não entendi pelo forte sotaque e seguiu a rua, sumindo de vista.
Pensei logo que encontrar o caminho pra tinha sido incrivelmente fácil, nós mal andamos cinco minutos. Pensei também que eu poderia aproveitar o fato de estar em 1990, andar por aí para conhecer um pouco e depois retornar para casa, seria o mais seguro a se fazer. Eu poderia até mesmo entrar naquela loja de discos só para conhecê-lo e ir embora. Porém, não sabia como fazer para voltar para 2019, então estava presa ali.
Nunca visitei Lisboa, mas tinha primos que moravam por lá e vivam postando fotos em lugares que lembravam essas ruas, só que versão anos 2010. Era um lugar bonito, digno de várias fotos e de se apaixonar.
Um homem na casa de uns quarenta anos passou bem perto de mim, me assustando a ponto de quase cair do murinho em uma vala que tinha atrás. Ele me segurou pelo cotovelo, apesar de que não tinha tanto risco assim que eu virasse com tudo para trás, mas fiquei grata por diminuir as chances para nulas.
— Perdão — ele disse, assustado, em um inglês carregado de sotaque. Aquele rosto extremamente familiar que já vi milhares de vezes através de uma tela e que tinha traços semelhantes ao de quem vinha me tirando muito o sono. — ‘Tá tudo bem?
Era Börje , pai e produtor do . Ele era dono da produtora que tinha os direitos da banda e os dois trabalhavam juntos. Ninguém sabia que eles eram da mesma família até a morte de ser anunciada na mídia em 2004. Engoli a surpresa e tentei pensar que era um desconhecido, porque afinal de contas, até que era.
— Sim, eu só estava bem distraída. Foi culpa minha — respondi, meio ofegante pela surpresa. Por dentro, querendo morrer por não poder gritar, pular ou comemorar por estar de frente para um membro da família de . Além do mais, Börje era prova de que viajei no tempo, ele nem estava mais vivo em 2019. Estava falando com alguém que já morreu, tecnicamente. Então, sim, o site estava certo e era possível encontrar pessoas que já morreram. Afinal, muitas pessoas que passaram por mim, querendo ou não, tinham fortes chances de não estarem mais vivas quase trinta anos depois.
Levantei do murinho e ele soltou meu braço que ainda apertava suavemente, depois estudou profundamente a minha imagem. Ele já tinha alguns fios grisalhos em meio ao cabelo e seus olhos eram de uma profundidade admirável.
— Por acaso não está com frio? Está ventando muito aqui fora — ele disse, dando um sorrisinho. Olhei meu pijama de natal e minhas pantufas de rena. Patética era o mínimo. O que Tiago não tinha percebido, Börje percebeu. Então minhas bochechas imediatamente coraram e eu quis me jogar na vala por vontade própria. Eu estava mesmo nesses trajes na frente do pai do meu ídolo e no meio da rua? Um pijama fora de moda para a época! Merda, eu estava fora da moda até para onde vim, não era mais Natal, eu só amava aquela combinação por ser tão confortável.
Eu sequer tive tempo de sentir frio de tanta adrenalina desde que acordei aqui, mas, depois do seu comentário, meu corpo abaixou a temperatura em vários graus. Coloquei os braços em volta um do outro em um abraço e olhei para ele totalmente sem graça ao perceber que tinha razão.
Ele soltou uma risada baixa, percebendo tudo.
— Vem, vamos entrar comigo e tomar um café para esquentar — chamou. Ele abriu a porta da loja e me deu passagem. O aquecedor trabalhava, transformando o lugar em uma espécie de caverna aconchegante que fazia a gente relaxar só de pisar ali. Meus olhos passearam pelo local e era simplesmente uma loja só de vinis e fitas — nem os CDs existiam. Nunca entrei e nunca pensei entrar em um lugar desses. Estava além da fantasia. Tudo parecia incrivelmente retrô e me animei com a constatação.
Börje me olhava com curiosidade, contribuindo para o sentimento de forasteira me incomodar. Não era um olhar como recebi quando cheguei à Inglaterra ou viajei internacionalmente, era um que você dá a alguém que vem de um lugar mais longe que a América Latina.
Segui-o até as cortinas pesadas atrás do balcão, separando a loja de um espaço maior com sofás, almofadas em cima do tapete, uma mesinha com vários LPs de aparentemente todos os lançamentos da banda. O lugar não tinha janelas, era iluminado apenas por abajures de luzes amarelas. Tinha jornais e revistas em cima do tampo da mesinha.
— Pode ficar à vontade — ele disse atrás de mim, virei para sorrir em agradecimento. — Como você se chama?
— minha voz saiu esganiçada, pigarrei e repeti. — .
— Bom, , pode ficar à vontade e se sentar onde quiser, vou buscar o café — ele disse, já saindo do lugar. — Ah, sou Börje . Qualquer coisa, pode me gritar.
Assenti, ele passou pelas cortinas em seguida. Eu nem gostava de cafeína, mas tomaria qualquer coisa bebível que ele me desse. Estava extremamente grata por ter encontrado Börje primeiro do que o filho dele, seria a brecha perfeita para treinar minha confiança. Tinha a impressão de que ela seria bastante necessária.
Sentei-me no sofá e fui engolida por ele, era daqueles sofás grandes e fofos que dava a ideia de ser abraçada. Encarei a mesa repleta de revistas de metal e procurei algo de interessante. Puxei um jornal que estava espalhado ali e a primeira coisa que bati o olho foi a data: 5 de maio de 1990. A foto de um Mário Soares bem mais novo do que eu conhecia ilustrava a primeira página e dizia em português “os novos olhares do presidente”.
Eu nem sonhava em nascer em 1990, meus pais nem tinham se conhecido ainda.
É, sou mesmo uma viajante do tempo. Bem típica, aliás. Eu não tinha nada comigo, nem mesmo meu celular no bolso ou uma nota fiscal com a data de 2019 para comprovar que estava falando a verdade. Então não podia falar a verdade para ninguém enquanto não pudesse provar. Não tinha nem dinheiro, porque estava usando pijama. O que levava ao mais importante: não tinha para onde ir, estava completamente jogada à minha própria sorte e teria que me virar não sei como.
Suspirei e coloquei o jornal no lugar que estava. Peguei a cópia novinha do último disco lançado e que estava sendo promovido atualmente. Uau. Isso daria inveja em qualquer colecionador em 2019. Aquele era meu álbum favorito, acho que, além de ser genial, também se deve ao fato de estar em seu auge aos 24 anos. Ele estava absurdamente lindo, por isso me preocupava com minha reação. Como disse anteriormente, sou apaixonada por todas suas fases, mas ele tinha acabado de assumir sua essência, parado de usar tanto couro e... Bom, toda fã tem sua fase favorita.
não sabia da grandiosidade dessa nova fase da banda, o quanto ela foi importante a longo prazo para a carreira dele, foi aqui que ele finalmente criou e consolidou o viking metal. O cara criou sozinho um gênero musical novinho! Queria poder mostrar para ele tudo isso, descrever com detalhes o quanto ele ainda era respeitado de onde vim, depois de quase quinze anos da sua morte. Não sei se é algo que o de vinte e poucos anos entenderia. Provavelmente não. Provavelmente ninguém entenderia se me ouvisse falar que sou do século 21, então precisava guardar esse segredo enquanto estivesse lá.
Fiquei mais um tempo no meu surto de fã, admirando os vinis novinhos — que eu não tinha em casa, porque eram caríssimos, aliás —, até que Börje entrou de novo no ambiente, trazendo uma bandeja com bule, xícaras e um prato com biscoitos. Meu estômago roncou só de sentir o cheiro do café quentinho.
— Trouxe biscoitos, caso esteja com fome — informou, colocando tudo em cima da mesinha de centro. Sentei-me na ponta do sofá e agradeci. Não sei por que Börje estava sendo tão prestativo com uma desconhecida, mas era extremamente grata por ter atraído sua atenção sem querer e ter vindo parar aqui dentro. Facilitou minha vida.
Ele me entregou algumas roupas que estavam em seu ombro e botas que estavam na sua outra mão.
— Peguei essas roupas, caso você queira se trocar. Já vou logo avisando que são o dobro do seu tamanho, mas, pelo menos, vão te manter quente — ele sorriu com simpatia. — A bota talvez sirva melhor, porque comprei para minha filha.
— Não precisava, de verdade — comentei e me levantei com receio para procurar pelo banheiro. — Mas obrigada. — Ele sorriu. Entrei no ambiente e claramente o banheiro era habitado por homens, por causa da desorganização e do fedor. O metal é um gênero musical muito machista desde os primórdios, então não me admirava que a maior parte dos clientes da loja fosse formado por seres do sexo masculino.
Eu estava me sentindo mal por usar as botas da filha de Börje, mas ele me ofereceu de tão bom grado com aquele sorriso simpático, que fiquei sem graça de rejeitar. No fim, também seria melhor me trocar e tentar me encaixar melhor aqui. Já me sentia uma alienígena pelos olhares que recebi do pai de , vestir esse pijama quando começasse a chegar um monte de jovem headbanger* para me julgar pioraria essa sensação em cem por cento.
Quando saí do banheiro, meu cabelo estava molhado com a água da pia e totalmente para trás — não foi difícil imitar o penteado famoso daquela época, visto que meu cabelo estava bem acima dos ombros. Tive que enrolar as pernas da calça e apertar bem o cinto que ele tinha me dado para que não caísse, mesmo assim, o jeans escuro ficou apertado nos meus quadris por ser masculino, mas nada que o tornasse inutilizável. A camiseta de manga longa preta da banda de teve que ser erguida até meus cotovelos. Já a bota era realmente do meu tamanho. A imagem refletida no espelho do banheiro mostrava que claramente as roupas não eram minhas, mas eram mais apresentáveis do que meu pijama.
Procurei por Börje para agradecer e não o achei. Resolvi, então, voltar para o lugar dos sofás para comer e beber o que tinha levado para mim. Meu estômago roncava, mas me lembro de ter me sentido sem fome antes de deixar minha casa, então não sei quanto tempo perdi fazendo a viagem.
Puxei a cortina para entrar e tinha alguém no sofá onde eu estava. Quando aqueles olhos me encararam, não teve uma parte do meu corpo que não ficasse gelada e retesada.
— Ahm... Olá? — ele me analisou minuciosamente, fazendo minha pele arrepiar. — Espera, essas são as minhas roupas? — perguntou, parecendo meio ofendido e divertido ao mesmo tempo.
Era . estava ali. Aquela voz era dele, estava saindo de sua boca e ela estava se mexendo conforme as palavras saíam. Ele existia em carne e osso bem na minha frente.
Derrubei o pijama que carregava dobrado em meus braços.
Fale ou faça algo, .
— E-e-e-eu... — gaguejei tanto que até senti babar um pouco. Tampei a boca com a mão, me sentindo patética e incrédula. Poderia dizer que era como se eu estivesse vendo um fantasma, mas eu realmente estava vendo um.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— Ai-meu-Deus-vou-desmaiar — foi tudo que eu consegui dizer antes de sentir tudo escurecer pela segunda vez em menos de 24 horas.

***


Abri meus olhos pensando nesse sonho esquisito. Provavelmente, eu tinha ido dormir escutando música de novo e por isso sonhei com . Estava ficando bastante preocupada com a frequência que ele estava aparecendo nos meus sonhos ultimamente. Porém, sorri, me lembrando da sensação ao ver aqueles olhos pessoalmente. Até que foi um bom sonho. O teto que estava no meu campo de visão parecia mesmo com o da sala da minha casa, então levantei o tronco em uma mistura de alívio e confusão.
Cocei a cabeça. Deveria considerar voltar para a terapia, aquilo estava bem intenso até mesmo para mim, que era acostumada a ter essas paixonites. O próximo passo era não saber mais distinguir sonho da realidade, já que meus sonhos também estavam se tornando reais demais.
Levantei o olhar e pisquei várias vezes, tentando entender o que estava bem na minha frente. Não, não, não. Esfreguei os olhos para ver se assentava a visão ou acordava — o que acontecesse primeiro —, na outra ponta do sofá bebendo café e lendo o jornal parecia extremamente real. Se estava vendo pessoas mortas... então eu poderia estar morta também.
Soltei um grito. Não consegui pensar antes de soltá-lo, foi automático. Me arrependi logo em seguida.
Ele quase derrubou o conteúdo da xícara em si mesmo e finalmente retribuiu meu olhar com fúria, colocando o jornal e a porcelana em cima da mesinha. Virou o tronco para me encarar.
— Qual o seu problema, hein? — ele resmungou em um inglês com sotaque leve, depois checou a regata preta para ver se não tinha sido arruinada pelo café que quase derrubou.
— Eu morri? — perguntei, olhando fixamente seus olhos a ponto de me enxergar neles. Me arrastei a ponto de ficar próxima dele no sofá.
Ele definitivamente parecia real. Só não podia ser. não podia ser real, eu sabia que ele tinha morrido, Börje morreu, então eu provavelmente assinei meu atestado de morte ontem. Quer dizer, sei lá, qualquer coisa que faça sentido. Meu cérebro estava simplesmente desesperado à procura da razão. Ergui minha mão e toquei seu rosto. Senti sua postura endurecer e ele me lançar um olhar assustado de canto de olho.
— O quê? — ele perguntou de volta com incredulidade enquanto eu puxava a pele de sua bochecha entre meus dedos, conferindo se não era alguém usando uma máscara. — Ai!
Não era, mas não havia espaço para sentir vergonha agora.
— Eu ‘tô morta, ? É por isso que você veio até aqui, para me dar a notícia — respondi, arrancando bem rápido minha mão de sua bochecha e jogando o corpo para trás. — Mas eu não vou! Eu não vou a lugar algum!
Não posso acreditar que morri aos 25 anos de idade, sem aproveitar nada da vida. Deveria ter escutado Shandi e passado menos tempo fantasiando. Deveria ter passado mais tempo com meus pais... meus pais! Como eles vão reagir quando souberem que morri no meio da sala do meu apartamento depois de apertar um botão. Quer dizer, eu morri assim, não é?
— Ai, meu Deus. Como eu morri? — verbalizei.
— O quê? — ele repetiu com a mesma incredulidade agora misturado com um toque de ofensa. — Quem te deixou entrar aqui, garota? Você é completamente maluca!
— O seu... — travei na hora, cerrei os olhos. Pensando bem, se aquilo fosse verdade, ele não poderia saber que eu sabia que o Börje era o pai dele. Eu não era amiga íntima da família e nem tinha informações o suficiente para fingir ser. Então, precisava evitar que sabia demais sobre ele também, pelo bem do meu mais novo segredo. — O Börje.
— Você conhece o Börje? Foi ele quem te deu minhas roupas? — perguntou, desmontando um pouco a pose defensiva e a compreensão banhando gradativamente os olhos . Balancei a cabeça em concordância. — Estranho, ele não me falou nada — coçou o queixo. — Você está bem? Quer que eu chame, sei lá, uma ambulância? Não acho muito normal desmaiar e depois acordar achando que morreu.
A ameaça de ir parar no hospital pela segunda vez me fez despertar para o que estava acontecendo. Era melhor começar a agir como uma pessoa normal e não correr o risco de ir parar na ala psiquiátrica — já que tudo estava conspirando para que eles achassem que eu deveria ter fugido de uma.
— Não, acho que estou bem — respondi, segurando minha cabeça, tentando entender que não era delírio, que escrever o nome dele naquele site tinha realmente me trazido para essa realidade. Eu sabia que corria o risco de estar nos anos 90 mesmo enquanto Tiago me trazia para cá, ao ver Börje e olhando a data no jornal, mas vê-lo só tornou tudo mais fantasioso. estar morto vinha sendo um problema que me abraçava e andava comigo feito um velho conhecido nas últimas semanas, então não conseguia entender como ele poderia estar vivo. Na minha cabeça, estar nos anos 90 fazia mais sentido do que ele estar respirando. De repente, me senti incrivelmente cansada. — Só... Quanto tempo eu fiquei desacordada?
— Quase uma hora — ele olhou para o relógio na parede.
— Ah — murmurei, observando e admirando cada detalhe dele. Ele era lindo e imponente, muito mais que imaginei. Sua presença passava muita segurança e charme. Os olhos , os fios daquele cabelo que parecia muito sedoso, cada singelo ponto daquele homem à minha frente me inspirava. Eu não era boa em nada e nunca senti necessidade em ser, mas, de repente, por causa dele, queria pintar quadros, escrever músicas, livros e poesias, e olhá-lo para sempre. Ele me analisava de volta e parecia curioso, é claro que estava, toquei seu rosto antes de me apresentar. Eu sou tão destrambelhada. Tentando corrigir a situação, acrescentei: — Me chamo .
Ele concordou com a cabeça, continuando com a sua análise por mais alguns segundos.
— respondeu, estendendo a mão na minha direção em cumprimento. Peguei sua mão e parecia que tinha uma corrente elétrica ali nas nossas peles, como se estivéssemos começando a fazer história com apenas aquele toque. Céus, era difícil ser fanfiqueira e apaixonada.
Ele soltou minha mão, voltou a pegar a xícara e o jornal. A minha mão ficou ali, pendendo no ar, e senti minha boca escancarada fazendo par, formando uma expressão boba.
Pela normalidade que voltou a reagir e prevalecer no ambiente, ele estava itando mais minha presença e perdoando minha reação exagerada desde que mencionei o nome de Börje. Isso se devia ao fato de e Börje, além da relação de pai e filho e do trabalho, também serem melhores amigos, até onde eu sabia.
Eu também precisava passar naturalidade e confiança, não podia ficar ali encarando-o com pupilas em formato de corações e correr o risco de estragar tudo. Se eu estava ali, precisava começar a dançar conforme a música. Peguei outra xícara de café na bandeja que o Börje tinha colocado ali, servi um pouco de café e um pouco de leite para não atacar tanto a ansiedade, coloquei o açúcar e bebi, tentando não virar a cabeça para encarar . Eu já nem sentia mais fome, mas comi um biscoito nervosamente pela situação.
Estava bebendo café com o . A minha paixonite mais improvável de encontrar. Ele era o único da minha gigante lista que havia falecido. E, por incrível que pareça, aparentemente o único com quem troquei algumas palavras, por causa de uma viagem no tempo que aparentemente concordei em fazer. Que. Coisa. Doida.
Segundo a “maldição” da viagem, se eu estava ali era porque tinha chances de ser minha alma gêmea, certo? Bem, foi o que entendi. Meu coração lerou só de pensar nessa possibilidade. Se ele fosse mesmo, acho que tudo faria sentido agora, me apaixonar por todas aquelas pessoas até chegar nele... até chegar naquela página da internet, naquele dia. Agora ficava a dúvida: seria obra do destino ou do meu pedido para Solveig?
Börje entrou pela cortina, interrompendo meus devaneios, me lançou um sorriso e depois se virou para o próprio filho. Vendo os dois no mesmo ambiente, era possível notar que havia muitas semelhanças físicas, então eles deveriam se esforçar muito para esconder que eram pai e filho. Na verdade, inteiro sempre foi um mistério para todo mundo, acho que ele se divertia com isso e acabava nem sendo um esforço tão grande. É por isso que ele se apresentou pelo stage name e não por , ele gostava do personagem que havia criado, podia sentir pelo modo como falou.
— Ainda lendo isso e não entendendo uma palavra? — Börje perguntou para ele, que desviou os olhos do jornal para encará-lo.
— Tenho a esperança de que comece a fazer sentido uma hora — respondeu, se referindo ao jornal em português que eu estava segurando momentos antes. — Quem é a garota? — falou em sueco, provavelmente para eu não entender, mas teve o efeito contrário. Já sei um bocado de sueco por causa do intensivo que fiz na faculdade e ele que foi minha inspiração para fazer aquelas aulas.
Börje sorriu de lado e se sentou no sofá do outro lado da mesinha. Notei que eles tinham basicamente o mesmo sorriso, apesar de lábios diferentes. Os lábios de Börje eram mais finos e os de um pouquinho mais cheios.
— Acho que a sabe português, quem sabe ela não possa te ajudar com isso? — sondou a pergunta dele, mas em inglês, para que eu entendesse.
Engoli em seco quando os dois me olharam. Estava visivelmente me sentindo pressionada por estar sentada com e Börje . Me ajeitei no sofá, tomando coragem para responder o questionamento.
— Sim, eu sei — falei. estendeu o jornal, a página 5 falava sobre um jogador de futebol, em português de Portugal “futebolista”. Mas o que prendeu mesmo minha atenção foi a palavra “gozar” em um sentido diferente que usávamos no Brasil e, como eu tinha zero maturidade, eu soltei uma risada alta e impensada. Tratei logo de corrigi-la, pigarreando e querendo me fuzilar. Você prometeu que ia agir normalmente. — Um tal de Albano Narciso Pereira morreu dia 5 de março e aqui é uma coluna relembrando alguns momentos dele.
Eles me olhavam com divertimento mal disfarçado e questionando o motivo de ter rido da morte de uma pessoa.
— É que no Brasil “gozar” é usado assim com outro sentido — expliquei, devolvendo o jornal para .
— Você é do Brasil? — Börje perguntou. Balancei a cabeça afirmativamente. — E o que faz tão longe de casa?
Foi uma pergunta bem repentina, acho que parecia que ele estava puxando assunto e tentando me conhecer, mas eu não tinha como responder. Não mesmo. Não poderia contar que fazia faculdade na Inglaterra, porque isso ficou em 2019, no momento não tinha nem lugar para passar a noite. Nem um passaporte eu tinha.
Pensa, , pensa.
— Eu fugi de casa. — Fui para o lado mais óbvio. — E fiz check-in em um hotel que se revelou ser uma farsa, por isso acabei na rua de pijamas. — Isso deveria servir também para encobrir o passaporte e a falta de mala.
Vi, através da visão periférica, virar a cabeça feito um cachorrinho curioso. Börje se mantinha impassível, como se eu estivesse dizendo algo tão inocente como brincar de esconde-esconde com meus pais.
— Por quê? — foi quem perguntou, se referindo à primeira parte da minha fala.
Droga, por que eu poderia ter fugido de casa? Por que eu percorri milhares de quilômetros para fugir? Eu simplesmente não sabia. Pensei por alguns segundos que podem ter virado minutos. Até que uma ideia — que parecia genial, porque isso me garantiria algum lugar para dormir — passou pela minha cabeça. Assim que eu abri a boca e as palavras saíram, me arrependi pela segunda vez no dia.
— Estou grávida — anunciei, deixando o ar mais pesado.
Eu realmente estava lendo fanfic demais.
Um silêncio se instaurou por alguns segundos entre nós três, o café esfriava dentro da minha xícara em cima da mesinha. Börje foi o primeiro a reagir com seu sorriso tão formidável.
— Que incrível! — Börje disse, agora como se fosse a melhor coisa do mundo. Bom, deveria ser para quem queria e não para alguém que estava mentindo. — Você veio morar com o pai do bebê ou algo do tipo?
Pigarreei. Não tinha como voltar atrás na mentira, então...
— Hm... Sim, é dele — apontei para , minhas pernas tremiam e eu tentei disfarçar, tampando com os braços.
me olhou, sério, e depois olhou para o pai com surpresa. Börje tinha transformado completamente suas feições, o sorriso desmanchou e o cenho franziu. Ele retribuiu o olhar do filho com olhos acusatórios.
Essa era a cena mais vergonhosa da minha existência. Mais vergonhosa do que minha primeira apresentação de teatro, da primeira vez que me fotografaram de biquíni na praia por causa dos meus pais ou de segundos atrás que apareci no meio da rua com meu pijama natalino.
— Ele não se lembra de mim, m-mas — respirei fundo, tentando controlar minha respiração para continuar com a mentira. Eu não costumava ser boa mentirosa, então é por isso essa estava custando sair. Minha mente estava em completo pane. — Há dois meses a gente se conheceu e bom... Até entendo você não lembrar de mim, porque estava visivelmente bêbado.
me olhava fixo a ponto de não piscar. É impossível dizer o que ele pensava, porque ele não demonstrava emoção alguma. Eu tive medo de olhar de novo nos olhos dele. Eram olhos bastante incisivos, então era questão de segundo para vacilar na minha mentira tão frágil.
— Isso é sério? — Börje questionou. Engoli em seco e assenti tremulamente em resposta.
— Realmente, eu não me lembro — ele finalmente respondeu, parecendo estar em um transe.
Ao que tudo indicava, funcionou. Eu esperava. Precisava me aproximar dele de alguma forma, não saberia se conseguiria pensar em outra forma antes que eles me botassem na rua.
— Nossa — Börje murmurou na minha frente. — Bem que desconfiei que tinha algo errado quando te vi lá na frente antes de todo mundo chegar com aqueles trajes, mas não imaginei que seria algo tão... grandioso — ele arqueou as duas sobrancelhas enquanto fitava o chão. Alguns segundos depois, se levantou. — É melhor deixar vocês conversarem.
Ele saiu, fechando as cortinas pesadas para que pudéssemos ficar ainda mais sozinhos. Se fosse possível tremer mais do que eu estava tremendo sem ter um piripaque, com certeza meu corpo trataria de providenciar. Minha respiração estava começando a ficar rápida, mas eu tentei me concentrar em não a deixar ser audível. Não sabia nem como prosseguir com essa mentira, por que fui inventar logo isso? Que vontade de me estapear. Grávida do ídolo? Sério mesmo que isso era o melhor que você poderia inventar, ?
Ele tinha ndido um cigarro e continuava tomando seu café, olhando para o nada. O retrato perfeito da calma. Nós dois éramos os opostos no momento, eu estava tendo um ataque e ele exercitava o seu Buda interior.
Ele não disse uma palavra enquanto eu encarava o ponteiro marcar cada segundo daqueles 21 minutos e 32 segundos que restavam para dar quatro horas. Nada. Ele só bebeu mais café e fumou outro cigarro enquanto olhava para o nada.
Quatro e um, ele se levantou do sofá, deixou a xícara na mesinha, abaixou a cabeça para olhar para mim.
— Podemos conversar depois que eu terminar a sessão de autógrafos? — ouvi sua voz perguntar.
Balancei a cabeça, concordando. Qualquer coisa para me livrar da sua presença um pouco ou explodiria de ansiedade. Ele passou por mim e saiu.
Finalmente pude voltar a respirar.




*Headbanger é a denominação utilizada para fãs do gênero musical metal.

Capítulo 3 - Dealin’ With The Devil

Enquanto ele trabalhava, fiquei absorta em pensamentos. Concluí que deveria ter deixado a senha do meu armário do estágio anotada, porque eles teriam um trabalho arrombando o cadeado para pegar as informações de Solveig quando dessem minha falta. Eu deixei tudo para trás sem explicação nenhuma, sem uma mensagem, como se tivesse simplesmente esvaído — que foi o que aconteceu, eu me teletransportei para cá.
Tinha medo da repercussão que poderia dar, já conseguia imaginar as manchetes no jornal da faculdade: “estudante estrangeira desaparecida e última vez vista em seu apartamento ao redor do campus”. Talvez colocassem a Scotland Yard atrás de mim como em uma fanfic que li há um tempão.
Nah, eu não era tão importante assim para ativar a polícia de Londres.
Meus pais iriam surtar, obviamente. Colocariam Shandi e Anya para surtar junto ou vice-versa. Quem desse minha falta primeiro.
Se não tivesse duvidado do que dizia o site, poderia pelo menos ter escrito uma carta para a Anya entregar a eles antes de entrar nessa realidade maluca. Bem, agora não resta nada a se fazer. Lidaria com as consequências quando voltasse.
Estava o observando, de longe e sentada em um banquinho, conversar com os mais diversos tipos de fãs e assinar LPs, fitas, camisetas e papéis. Ele fazia tudo isso com um sorriso no rosto e eu sorria feito uma trouxa, tentando salvar essa cena na minha memória. Olhando assim tão perfeito em minha frente, não me convencia de que não podia mesmo ser um sonho.
Börje me chamou algumas vezes para ajudar alguns fãs que queriam falar com , mas se atrapalhavam entre o português e o inglês. Eu traduzia sem dirigir o olhar a ele e saía de cena o mais rápido possível. Se íamos conversar, então eu lidaria com tudo aquilo depois.
Isso me fez pensar na possibilidade que ele falaria que não assumiria o filho não-existente e eu teria que dormir na rua de qualquer forma. Se ele quisesse assumir, eu também não sabia o que fazer quando os dias passassem e minha barriga continuasse do mesmo jeito. Demoraria, é claro. Ele não iria perceber tão cedo, barrigas de grávidas demoram a aparecer. Só que exames aparecem em poucas semanas.
Balançava meus pés impacientemente enquanto esperava o resto das pessoas irem embora. Börje tinha me arranjado aquele banquinho que segurava a porta para não ficar indo para trás da cortina e voltando. Era uma maneira bem eficaz também de ter uma visão privilegiada do filho dele. Eu já sabia o jeito que mexia no cabelo — e quais ocasiões ele fazia isso: perguntas pessoais, turnê ou show. Nunca aconteceu um show da banda oficialmente. Apesar de que, em suas respostas, sempre dizia que ia voltar para a Suécia para gravar o vídeo de duas músicas do álbum novo que demorariam bastante, depois retornaria para uma turnê.
Nunca ficou claro se ele considerava mesmo fazer esses shows, se o rumor que circulou depois da sua morte era real e ele já sabia que tinha algo de errado com seu coração que o impedia de subir em um palco ou se ele nunca nem cogitou fazer show mesmo por vontade. Quando dizia que era um mistério, estava falando sério. Era um saco ser fã dele.
Já fazia horas que estávamos ali e ele não sentou por um segundo, dava para ver em seu rosto que o cansaço começava a tomar conta. Perdi as contas de quantas vezes eu controlei o impulso de ir chamá-lo para fazer uma pausa ou alertar seu pai para que o forçasse, mas não tinha intimidade o suficiente para isso. Börje cuidava para que pelo menos ele sempre tivesse água — o que já me aliviava.
Minha cabeça estava uma mistura de pensamentos que variavam de “o que fazer para o pai do meu filho-que-não-existe acreditar na minha gravidez-que-não-existe”, “o desespero que meus pais, Shandi e Raj vão sentir quando perceberem que sumi” e “a falta que vou sentir de 2019”. Ou seja, a ansiedade só crescia. No entanto, não era uma ansiedade ruim que nem sempre senti a minha vida inteira, eu estava finalmente feliz a ponto de querer saltitar e gritar, mas também chorar de desespero. Agora que já estava há algumas horas em 1990, estava começando a sentir um contentamento com o que estava acontecendo.
Depois de um tempo ali, ouvi a voz de chamar o meu nome em cima de mim e levantei a cabeça para olhá-lo.
— Tem um restaurante no final da rua. Podemos comer, se você tiver com fome, e aproveitar para conversar — ele disse, olhando para baixo, porque eu estava no banquinho. Notei que seu cabelo emoldurava muito bem seu rosto. Minhas mãos coçavam para pegar em um fiozinho que fosse, mas me limitei a escondê-las atrás das costas antes que fizessem algo que me envergonhasse de novo.
— Tudo bem — respondi, sem ter muito o que dizer. Eu iria para onde ele quisesse me levar. Não tenho hora para voltar para casa, porque não tenho nem casa.
— Vou pegar minhas coisas e avisar ao Börje, então. Já volto — comentou, dando as costas.
Ele tinha um jeito único de andar, era minimamente desengonçado e altamente charmoso (e não estava nem dizendo isso porque era apaixonada por ele, acreditem em mim). Era mais um detalhe dele que exalava o charme que mencionei enquanto estávamos no sofá.
Levantei do banquinho e na mesma hora vi as últimas pessoas que estavam saindo pela porta, Tiago era uma delas. nei para ele e ele acabou desviando para falar comigo.
— Oi! — saudei, assim que ele chegou perto.
— Olá! — ele disse, sorrindo. — Achei que tivesse ido embora. Você é amiga dos donos da loja?
— Ah, não. Eu ‘tô com o , na verdade — justifiquei. Será que ele acharia ruim por eu ter contado isso para Tiago? Afinal, estou aqui só o esperando.
Tiago pareceu surpreso.
— És namorada do ?! — ele exclamou, colocando a mão no rosto. — és mesmo uma rapariga cheia de surpresas.
— Não! — quase gritei. — Não sou namorada dele — deixei bem claro, com medo que chegasse aos ouvidos do dito cujo que estávamos em um relacionamento. — Só estou com ele não-romanticamente, se é que essa palavra existe — pigarreei e resolvi mudar de assunto antes que eu entregasse algum detalhe crucial pelo nervosismo. — Posso tentar falar com ele para apresentar vocês algum dia desses, fora desse ambiente todo. O que acha? Como forma de agradecimento por me trazer aqui.
Eu nem conhecia direito e já estava armando um encontro com um fã. Só podia ter pedido o juízo. Se Tiago resolvesse me cobrar depois e me desse um pé na bunda, estava lascada.
— Giro! — ele respondeu, animado.
— Me passa seu telefone. Acho que daqui a uns dias ele deve voltar para a Suécia ou ir para outro país, mas posso tentar dar um jeito — falei, com base no que sabia do seu documentário que vi em 2019 e no que o ouvi falando hoje. Pelo visto, terei que me apoiar em todo meu conhecimento sobre e escutá-lo com atenção para sobreviver.
Esperei ele me entregar o celular, mas ele virou para arrancar um pedaço do papel que tinha no bolso e rabiscar o telefone com uma caneta que tinha usado para ganhar o autógrafo. Não era comum as pessoas possuírem um telefone celular em 1990, eu deveria me lembrar constantemente disso.
Os amigos chamavam por ele lá fora.
— Tenho que ir. — Ele me entregou o papel. — Espero mesmo te encontrar mais vezes.
— Também espero! — nei e guardei o papel no bolso da calça que nem era minha.
Tiago saiu andando com os amigos, sumindo mais uma vez de vista. Fiz um amigo mais rápido aqui do que na minha época. Sorri, orgulhosa, ao constatar isso.
apareceu de novo, dessa vez com uma jaqueta de couro preta em cima da camisa e carregando outra no ombro com os dedos.
— Ele vai levar minha mala para o hotel, então aproveitei para pegar isso para você — ele me estendeu a outra jaqueta.
— Não precisa, já peguei muita roupa sua para um dia só — recusei.
— Por isso você precisa dela, para completar o visual — sorriu e senti o sorriso brotando na minha boca instantaneamente. Estava feito boba o vendo sorrir. Peguei a jaqueta e a coloquei.
Quase tive um treco quando ela me vestiu por completo. O cheiro dele me envolvia, como se ele estivesse me afundando em um abraço quentinho. Fechei os olhos e suguei o ar feito uma viciada, me deixando levar por essa fantasia e aproveitando aquele cheiro de homem cheiroso. O cheiro dele era de algum shampoo adocicado e desodorante masculino. Quando cheguei perto dele mais cedo, não tinha sentido tão presente assim, mas agora que estava cercada por itens dele, eu queria esse cheiro todo em mim para sempre.
Quando abri os olhos, ele me olhava com aquele sorriso de quando tem algo estranho e engraçado acontecendo na sua frente, como me olhou quando apareci vestindo suas roupas. Eu não me incomodava de bancar a palhaça agora, desde que me mantivesse abastecida com aquele cheiro.
— Vamos? — ele chamou.
Concordei com a cabeça e o segui pelas portas da loja.
Andamos lado a lado sem falar nada. fumava e observava a rua, eu fingia não o estar observando.
Meu corpo todo estava em alerta a qualquer movimento dele e respondia como se tivesse sido chamado quando ele apenas erguia a mão para ajeitar o cabelo. Reagia até quando ele erguia o cigarro até os lábios. Por vários momentos, não pude controlar a vontade de ser um cigarro.
Pensar nisso não estava me ajudando a manter o silêncio. Vez ou outra tive que apertar o passo por ficar perdida em todo o autocontrole que estava reunindo.
Um pouco menos de dez minutos de caminhada depois, entramos pela porta do restaurante que estava quentinho e sem vento de chuva. Receberam-nos, pediu uma mesa para dois em inglês que permitisse fumantes e imediatamente nos conduziram para uma perto da janela da rua — que estava fechada por conta da chuva, mas permitia ver a vista.
Ele se sentou de costas para a parede e ao seu lado tinha um abajur que refletia a luz, realçando seus olhos. Esses malditos olhos seriam minha perdição, eu tinha certeza.
A garçonete nos entregou dois cardápios e nos deixou sozinhos.
— O que você vai querer? — perguntei a ele. — Porque vou querer o mesmo, não estou acostumada com comidas dessa... estirpe.
Ele sorriu.
— Hm... Talvez esse bacalhau a brás? — ele estendeu o cardápio na mesa e apontou para que eu pudesse ver. — Li em um livro de turismo daqui de Portugal que é um dos pratos mais famosos. Para acompanhar, acho que a alheira de mirandela, que também quero provar.
— Tudo bem, por mim — sorri, tentando levar a confiança para nossa conversa.
Ele chamou a garçonete levantando a mão. Para beber, ele pediu vinho verde e eu pedi uma garrafa de coca-cola de cereja. Talvez não fosse a melhor combinação com a comida, mas era isso ou beber água. Não estava em posição de arriscar minha sobriedade com uma gota sequer de álcool. Além do mais, eu tinha escutado muito sobre a coca de cereja dos anos 90, então nada mais justo do que provar no meu primeiro dia ali.
A chuva começou a cair com tudo enquanto eu olhava pela janela.
— Então... — ele disse e já soube que estava indo direto ao assunto para o qual estávamos reunidos ali. — Eu não queria falar na frente do meu produtor, porque se quiser podemos discutir o melhor para esse bebê. Mas não é meu, tenho absoluta certeza — falou com calma, não em tom acusatório ou repreensivo como era esperado quando descobrisse que era mentira. Porém, mesmo assim engoli em seco. A minha mentira frágil desmoronando bem debaixo do meu nariz. — Sei disso porque faz algum tempo que não bebo para perder totalmente a consciência. Então tenho plena ciência de cada mulher com quem dormi. Eu teria lembrado de você. — Ele alcançou o maço de cigarros dentro da jaqueta que pousava no encosto da cadeira e ndeu um. — Só que acho que, para inventar isso, você deve estar precisando de ajuda e não vou negá-la. Quero apenas que me conte por que escolheu a mim.
É... Eu devia ter imaginado que ele não acreditaria. Até porque lembro de ter lido uma entrevista que ele dizia que, no começo da banda, eles eram muito novos para pensar em dormir com as milhares de garotas que surgiam e sempre estavam bêbados demais. E, agora, claro que o de 24 anos tinha passado dessa fase — ele era muito focado na carreira, a banda era um projeto exclusivamente dele desde o ano passado.
Suspirei, deixando minhas costas descansarem no encosto da cadeira de madeira. Era melhor falar logo a verdade porque não podia sustentar a mentira por mais tempo, era horrível nisso e realmente precisava de ajuda. Se ele não quisesse mais me ajudar por causa dessa mentira, o que me restava era itar e ver o que poderia fazer a partir daí.
— ‘Tá, você tem razão — admiti. — Não tem bebê nenhum, nem seu e nem de ninguém — pontuei, mexendo nervosamente no zíper da jaqueta. — Sou só eu. Mas não tenho para onde ir, realmente larguei tudo para vir até aqui.
Não era mentira, eu tinha largado tudo por ele. Seria melhor se simplesmente começasse a usar verdades adaptadas a partir de agora, mentira apenas para os casos estritamente necessários. Ele parecia surpreso ao ouvir isso, e percebi porque olhava dentro dos olhos dele, o seu rosto continuava a demonstrar nenhuma emoção.
— Gastei meu último dinheiro com a passagem de avião — menti, mas só para que ele se situasse e pareceu finalmente convincente. — Com toda a situação do hotel, eu não tenho nem mais passaporte ou roupas, então você pode entender meu desespero — arquitetei essa “verdade adaptada”, esperando que ele realmente se convencesse. — Não posso contar o motivo que me fez fugir de casa, mas soube que você estaria por aqui e planejava passar na sua sessão de autógrafos, então calhou de ser no mesmo dia que fui posta para fora do hotel. — Mordi o lábio inferior. — Desculpa por ter mentido, não quero me aproveitar de você, só tenho algumas razões pelas quais não quero voltar para casa.
Essas razões consistem em: não quero mais viver em uma realidade onde você não exista. Completei, mentalmente.
Ele me observava, atento, enquanto fumava. Tanta gente fumava em 1990 que basicamente a área de fumantes era todo o restaurante e a fumaça presa no ambiente me deixava meio intoxicada.
— E você quer minha ajuda para não voltar, é isso? — disse, batendo com os dedos no cigarro, em cima do cinzeiro, para tirar o excesso de cinza da ponta.
Não pensei nessa parte.
— Erm... — Fiquei com um pouco de receio de parecer folgada, mas era a única alternativa. — Acho que sim, mas só até conseguir um emprego e juntar dinheiro o suficiente para me manter — disse, com vergonha de pedir isso para qualquer pessoa, mas especialmente para meu ídolo. — Eu posso ser proveitosa! Sei que você precisa de alguém para te ajudar ao longo da promo do disco novo, posso falar com o Börje para ser sua assistente full-time. É só uma ideia. — Fiz questão de acrescentar essa última parte.
Sua mão repousava abaixo do maxilar e seus olhos observavam a janela, pensativo. Dizer que tive medo da sua resposta seria minimizar o que estava sentindo, parecia que as borboletas no meu estômago estavam forçando sua saída pela minha boca enquanto ele parecia pensar. Aquele seria meu fim ou meu começo nos anos 90, então tinha muito com o que me preocupar.
— Ok, me parece um bom plano — disse, por fim. Arqueei minhas sobrancelhas em surpresa. Ok, isso tinha sido relativamente fácil para quem pensou que seria a parte mais difícil.
Depois da minha reação inicial, sorri de lado. Minha vontade era de simplesmente voar nos braços dele e apertá-lo até sentir que agradeci o suficiente. É claro que não faria isso, não iria jogar a chance que foi me dada no ralo tão fácil.
— Então temos um acordo? — perguntei. Ele concordou, mexeu no cabelo e retribuiu o sorrisinho de lado. Estendi minha mão para ele e demos um aperto, oficializando o acordo. Minha pele reagiu a dele novamente, por isso fui eu quem recolheu a mão primeiro e com certo receio. Como disse anteriormente, sou fanfiqueira, então pensei que era apenas figurativo esse contato que vivem descrevendo, mas a pele dele estava me provando que não. O choque existia e era assustador pensar na dimensão que aquele pequeno contato provocava em mim.
Ele apagou o cigarro no cinzeiro quando trouxeram a comida e as bebidas. Ao terminarem de colocar todas as porções em cima da mesa, ele pegou o prato que estenderam para ele e me entregou.
— Obrigada — agradeci, sentindo o sangue se concentrar exclusivamente no meu rosto. Foi uma coisa inocente, por que estava corando?
— Sem problemas — ele respondeu, servindo o próprio prato.
Após ele terminar, servi o meu. Começamos a comer e reparei que ele me olhava, retribuí o olhar, sem saber o motivo de estar me encarando. Será que minha boca estava suja? Passei o guardanapo de pano por ela.
— Vou pedir para o Börje te passar a minha agenda amanhã de manhã — quebrou o silêncio. — Então escolha um horário livre para que possamos comprar roupas para você. É melhor andar com roupas mais... Ahm... digamos que confortáveis quando me acompanhar em entrevistas e outros compromissos.
Larguei o guardanapo e olhei para as roupas dele que eu vestia. Eram roupas que claramente ficavam grandes em mim e por isso engraçadas. Por mais que eu tenha feito um bom trabalho tentando disfarçar que não eram minhas, as pessoas que cruzaram o meu caminho devem ter entendido tudo. Corei de novo ao pensar em Tiago perguntando se eu era namorada de , pudera...
— Bom, estou confortável. Porém, você tem razão, não posso usá-las para sempre — respondi, tomando minha coca-cola de cereja que concluí ser a melhor bebida que já provei. — Obrigada, — agradeci, ele arqueou uma sobrancelha enquanto mastigava. — Obrigada por concordar com isso tudo e se dispor a me ajudar, sei que é meio maluco. Eu tenho 25 anos, fugi de casa e vim até Börje de pijama. Ainda contei essa história absurda de gravidez. — Larguei o garfo e escondi meu rosto com ambas as mãos, pensando que o que parecia tão bom plano agora vinha se provando um motivo para me envergonhar tanto. — Enfim, você não precisava me ajudar e mesmo assim o fez. Então, nunca serei grata o suficiente.
— Tudo bem, eu já fugi de casa antes algumas vezes, mas não fui tão longe quanto você. Deve estar sendo difícil — ele disse, continuando a comer.
Ah, você não conseguiria acreditar se eu te contasse.
Concordei com a cabeça e olhei para a janela.
Aquele parecia até mesmo um encontro, para quem nos visse lá da rua e não soubesse que tínhamos acabado de nos conhecer pessoalmente. É engraçado pensar que não sabia nada sobre mim, já que eu sabia coisas bem importantes sobre ele.
Acho que, se o amor platônico tivesse uma cara, com certeza seria a minha. Ele estava sentado do outro lado da mesa em toda sua glória, tudo que eu pensava era em não vacilar e dar uma de fã obcecada, mas a cada minuto se provava mais difícil executar essa tarefa. Ainda mais porque ele continuava a jogar aquele inferno de cabelo lindo para trás com um charme desnecessário.
Assim que terminamos de comer, ele pagou a conta com cheque — sim, com um cheque! — e nos levantamos, indo para a porta. Ele não quis saber mais sobre mim, nem eu quis saber sobre ele. Quer dizer, seria natural que ele quisesse saber mais sobre mim para ter certeza de que não estava empregando uma serial killer, mas ele parecia cansado demais para pensar em fazer perguntas. Pude ver só pelas suas feições.
— Para onde estamos indo? — perguntei, para confirmar que ele não era um louco me carregando para algum cativeiro.
— Para o hotel — explicou e concluí que era óbvio esperar que fôssemos para onde ele estava hospedado. — Apesar de que eu estou duvidando que um táxi vá parar para a gente com essa chuva — ele comentou.
E ele estava certo, esperamos por uns 30 minutos debaixo da fachada do restaurante. Por sorte, a jaqueta de couro dele estava tampando o vento forte daquela tempestade noturna. Fiquei pensando em como faria, acho que iria sugerir que ele descontasse de um possível pagamento o preço do hotel, já que precisaria dormir em algum lugar e não tinha dinheiro agora para pagar. Viajar no tempo era uma enrascada quando você era leiga, mas estava gostando de estar ao lado do homem que admiro.
— Tenho uma ideia, mas você precisa correr agora e rápido — ele interrompeu meus pensamentos, olhando em direção à chuva.
— Por... — Não tive a chance de continuar a pergunta, ele pegou na minha mão e me puxou para correr em direção ao relento. Corremos e pingos violentos de chuva ricocheteavam em meu rosto. Ele virou para mim, sorrindo, já com o cabelo e o rosto encharcados. Meu coração errou algumas batidas com toda a certeza.
— Mais rápido, ! — ele gritou e me puxou mais ainda em direção à chuva que nos maltratava. Eu só entendi o que estávamos fazendo quando consegui ver em qual direção estávamos correndo, tinha um táxi parado com uns três passageiros desembarcando mais à frente.
A cada passo nosso, uma poça de água espirrava. Não tinha uma parte minha que não estivesse molhada, eu comecei a rir de gargalhar. Era uma felicidade boba, mas eu não me lembrava da última vez que tinha tomado banho de chuva por vontade própria, mas naquele momento eu estava fazendo isso com nesse mundo incrivelmente velho.

***


abriu a porta com a chave, logo em seguida colocando-a no interruptor e ligando a luz e ar-condicionado do quarto inteiro. Ele entrou e me deu passagem, depois fechou a porta atrás de mim.
— Bom, se você quiser privacidade, eu posso dormir com o Börje na casa do amigo em que ele ‘tá hospedado. É que realmente esse era o último quarto, o hotel ‘tá cheio para uma convenção. — Coçou a nuca.
Passeei meus olhos pelo local, era realmente um quarto pequeno e sem privacidade para dois desconhecidos, mas eu não iria mandá-lo sair do quarto que ele mesmo pagou. Na verdade, estava adorando a ideia de ficar presa com ele por mais um tempinho.
— Não, ‘tá tudo bem. Obrigada por me deixar ficar aqui — falei.
Ele concordou com a cabeça e pegou uma toalha no banheiro, secando o cabelo e o rosto. Peguei a que estava em cima da cama e tentei secar um pouco as roupas que eu vestia.
Acho que nunca fiquei sozinha com um homem em um quarto de hotel sem ser para fins sexuais ou que não fosse da minha família. A atmosfera logo mudou para mim. Ele estava abaixado, mexendo na mala, e eu olhava fixamente o tecido molhado grudando na pele de suas costas, pensando em como seria ver aquele abdômen desnudo pessoalmente. Quando eu tinha encontrado fotos dele dos anos 80 sem camiseta, já tinha sido um choque, afinal, eu era uma fã e era . Ele era gostoso e sabia que era. Salvei todas no meu celular para admirar no ônibus, foram muitas horas gastas fazendo isso. Então, eu conhecia aquela barriga e me causava calafrios bons só de imaginá-la na minha frente. Mesmo que ela tivesse coberta pelo tecido da camiseta, sabia o que esperar.
Era melhor eu guardar esse tipo de pensamento na parte mais sombria, escura e distante do meu cérebro de novo, porque não era muito confiável pensar essas coisas com ele molhado na minha frente.
— Pode ir primeiro — ele me estendeu uma muda de roupas e apontou com a cabeça para o banheiro.
— Obrigada — eu disse, logo em seguida me trancando longe daquele homem.
Ele devia me achar patética com esse tanto de “obrigada”, parecia que a única coisa que eu sabia fazer era agradecer.
Suspirei, me encostando na porta.
Qualquer força divina, me ajude. Eu estou tendo o sonho mais louco da minha vida.
Comecei a desdobrar as roupas da pilha que ele tinha me dado, uma camisa do Motörhead desgastada e uma samba-canção listrada em preto e vermelho. Mais uma vez, eu teria que me virar com as roupas dele.
Entrei no chuveiro e abri só o registro quente. Era bem século 20 ter um registro para água fria e outro para água quente, no meu apartamento inglês era apenas um que cumpria as duas funções. Eu lembro de quando era criança e ficava indecisa do quanto abrir de cada, mas a maioria não funcionava os dois no Brasil, então era água escaldante ou gelada, sem meio termo. Aquele funcionava bem, porque a água estava tão quente que começou a pinicar minha pele. Deixei isso acontecer, para ver se esquecia todos os pensamentos que o envolviam sem camisa embaralhados com a confusão de estar em 1990 que ainda rondavam minha mente. Lavei o cabelo com shampoo e condicionador do hotel, depois me esfreguei com o sabonete.
Claro que não rolaria nada entre nós dois. Porém, só de estar ali, sozinha, com ele, me deixava aflita pela chance.
Para. Se controla.
Esfreguei mais a pele que insistia em se arrepiar ao imaginar seu peitoral nu.
Esquece isso.
Eu não deveria estar pensando nessas coisas enquanto estava perdida em um ano que nem nasci ainda. Deveria era estar preocupada em como acordar e sair dali. Se isso fosse um sonho, não teria nada de normal a cada segundo que se passava. Temia muito pela minha sanidade.
Sequei o cabelo com o secador preso na parede e tentei secar um pouco minhas roupas de baixo no aquecedor de toalhas para poder reutilizá-las. Vesti suas roupas e dessa vez serviram um pouco melhor, até porque não era uma calça que cobria suas pernas maiores do que as minhas.
Saí do banheiro e ele tinha aberto um pouco da janela para fumar. Na sua mão, tinha um livro que dava para ver que ele lia antes que eu abrisse a porta. Agora eu era alvo de sua atenção.
— Ficaram melhores do que as outras — eu disse, coçando nervosamente a nuca como ele tinha feito minutos antes.
— Tenho que concordar.
Coloquei as peças molhadas para secar no aquecedor do quarto. Ele voltou a ler o livro. No chão, tinha um cobertor estendido, um travesseiro e uma manta dobrada. Parecia confortável, então me abaixei para me deitar.
— O que está fazendo? — ele perguntou, me assustando.
— Me deitando? — falei em um tom óbvio e ele franziu a testa.
— Não, não. Quem vai dormir aí sou eu.
— Claro que não! Você já fez muito por mim hoje, eu não poderia roubar a sua cama. Pode deixar que eu durmo aqui — respondi, já me ajeitando em cima do cobertor.
— Você ‘tá roubando minha cama deitando aí — ele riu. — Eu insisto que você fique na cama de verdade. Jamais conseguiria dormir, sabendo que deixei uma mulher deitar no chão enquanto estou em uma cama, seria totalmente mal-educado da minha parte.
Já que ele queria assim, eu não iria retrucar mais. Estava mesmo morrendo por uma cama de verdade, com toda a loucura que passei naquele dia. Parecia um bom lugar para cair no sono e sonhar outra coisa que não envolvesse meu ídolo morto. Deitei na cama de casal e todas as minhas juntas gritaram “aleluia”. Era uma daquelas camas que parecia que você estava deitado na nuvem. Soltei um gemido de satisfação e ele me olhou, usando o sorriso de “te acho muito estranha”. Hoje o prazer de me achar estranha não foi exclusivamente de Shandi, como costumava ser.
Ele terminou de fumar e pousou o livro em cima da TV, pegando sua própria muda de roupa e se trancando no banheiro.
Eu adorava livros. E eu sabia que recebia livros de um autor de ficção envolvendo mitologia nórdica e fantasia. Ele tinha escrito a música principal do álbum com base no ambiente que se passava esses livros, inclusive a que ele transformaria em um vídeo. Fiquei num impasse interno entre ir ou não até a televisão para pegar o livro. Metade de mim dizia para não ir, porque não era da minha conta e para não ser tão curiosa assim. A outra metade queria levantar e cheirar o livro para ver se tinha cheiro de livro ou de — sendo que os dois cheiros eram os favoritos do meu nariz.
Vou.
Não vou.
Vou.
Não vou.
Vou.
Não vou.
Vou.
Não vou.
Vou.
Não vou.
Levantei e deitei tantas vezes que, quando levantei, quase corri para pegar o livro de ansiedade. Olhei aquela capa preta, digna de sebo do mundo de 2019. Não deu tempo nem de levá-lo até meu nariz, tinha terminado e abria a porta do banheiro, me pegando no flagra.
Devolvi o livro e comecei a fingir que estava ligando a televisão. O problema é que eu não sabia mexer em TVs de girar o botão, então paguei de maluca mais uma vez.
— Quer ajuda? — ele perguntou ao me ver apanhando com os botões.
— Sim, eu nunca mexi em uma dessas — respondi, me afastando para ele ligar o aparelho. Ele ligou apertando o botão, era só apertar.
— Eu não sabia que no Brasil não tinha televisões.
Engraçadinho.
Deitei de novo, sem responder à provocação, tentando prestar atenção em um jornal português enquanto o cheiro de um muito cheiroso invadia meu nariz sem pedir licença.
— Meu Deus, como você ‘tá cheiroso — falei, sem perceber que isso ia sair da minha boca e não continuar nos meus pensamentos.
Eu me surpreendi com o som que ecoou pelo quarto. Uma gargalhada. Essa era a primeira vez que eu o ouvia gargalhando, também ri, esquecendo a vergonha por ter falado isso e sendo grata porque tinha provocado aquela reação.
— Obrigado — ele respondeu.
— Não era para ter verbalizado isso, mas por nada — comentei, rindo, e, em seguida, escondendo meu rosto com a mão, depois abrindo os dedos para fitá-lo.
— Tudo bem, posso fingir que não escutei — ele piscou, penteando o cabelo molhado com uma escova que estava em sua mala.
Se ele soubesse o perigo de piscar para mim quando eu estava tendo pensamentos tão estranhos, pediria é que eu fingisse que não vi aquilo.
Ele usava uma camiseta verde-escuro e uma calça de moletom preta que realçava seu bumbum típico de europeu. Não posso mentir que era grande coisa, mas qualquer mínimo detalhe dele estava me deixando doida — e olha que nunca tive uma libido tão boa assim, na maioria das vezes eu tinha que me forçar a sair e sentir atração.
Enrolei-me todinha no edredom pesado, de forma a não conseguir fugir dali e me atirar nele. Já ele, foi se deitar na cama improvisada do chão, carregando o livro de capa preta consigo.
— ‘Tá lendo o quê? — perguntei para ele, resolvendo usar a abordagem mais convencional do que olhar escondido. Até porque a primeira opção não tinha dado certo e eu era curiosa, não conseguiria dormir enquanto não soubesse o que ele estava lendo.
— Um livro que um americano muito legal me enviou. ‘Tô relendo para poder escrever o roteiro de um vídeo — ouvi a voz dele responder, não conseguia o ver.
— A música principal do álbum — comentei baixinho.
— Sim, como você sabe? — ele perguntou, curioso.
Eu não sabia que aquilo era um segredo ainda.
Eu ouvi você explicando para as pessoas no Dino’s — improvisei.
— Ah, é verdade.
Suspirei. Essa foi por pouco.
— Esse vídeo... Você fez algum contrato com uma gravadora ou vai fazer por conta própria? — perguntei, só para confirmar o que eu já sabia.
— Gravadoras têm muita burocracia, quero fazer algo em que eu tenha o controle.
Então era verdade o que eu soube, ele iria desembolsar 5 mil dólares do próprio bolso para gravar esse vídeo. Os responsáveis pela gravação iriam sumir com 60 horas de gravação e retornar para ele só umas 3 depois de muito tempo, nunca o dando a chance de rever e escolher as melhores partes sozinho.
Não sei se eu tinha a capacidade de interferir em coisas que eu sabia que iriam acontecer e nem se poderia fazer isso, então preferi ficar quieta para não revelar que sabia demais.
Eu via as imagens da TV e não prestava atenção, tentando juntar tudo o que sabia sobre viagem no tempo com base no que li e vi até sumir do meu apartamento na Inglaterra.
Um tempo depois, finalmente peguei no sono, desejando que aquilo não fosse um sonho e que o outro dia ainda fosse 1990 e não mais um dia sem graça em 2019.

Capítulo 4 - Ace of Spades

Estendi minha mão para pegar meu celular. Quando aproximei o objeto do rosto, percebi que estava ligado na tomada e era um relógio de cabeceira que marcava 9 horas da manhã. Devolvi o objeto para o lugar e me sentei, coçando os olhos. Olhando ao redor, logo percebi que aquele não era meu quarto e não era o ano que acordei no dia anterior. Imediatamente um sorriso apareceu no meu rosto 一 detalhe: eu nunca acordava feliz. Não sou mal-humorada quando acordo, apenas uma pessoa que se sente sempre sonolenta. No entanto, o motivo da minha felicidade era estar em mais um dia de 1990.
Lancei-me do outro lado da cama para ver se ainda estava ali, mas não tinha mais cama improvisada. Tudo estava dobrado perfeitamente em cima da mesinha que ficava embaixo da janela. Um papel amarelo jazia ali também.
Provavelmente, ele tinha deixado um bilhete, já que não existia mensagem no iMessage ou WhatsApp.
Levantei e peguei o papel rasgado das páginas amarelas.

Estou no restaurante dando uma entrevista. Desça para tomar café, Börje está esperando por você.
- .

Espreguicei-me. Tinha sido uma noite bem-dormida, sem sonhos e eu me sentia extremamente descansada. Pensei que ia demorar a dormir por causa da presença do , mas o cansaço realmente tinha me pegado de jeito.
As roupas que eu tinha deixado no aquecedor estavam secas e prontas para serem usadas novamente. Escovei os dentes com a escova descartável que o hotel tinha fornecido, penteei o cabelo com a escova que com certeza pertencia a por causa da quantidade de cabelo que havia ali e deixei o quarto. Ele tinha os fios mais bonitos que já tinha visto, reluzia de longe e era uma das características que mais chamavam atenção quando o observava de longe. Tive que me controlar para não surtar enquanto segurava a escova que escovava aquele cabelo incrível.
Quando cheguei ao restaurante do hotel, a primeira pessoa que vi foi justamente . Ele estava de costas, falando e gesticulando com uma mulher que apontava um gravador para a boca dele.
Börje nava para mim em uma mesa afastada ao meu lado direito.
一 Bom dia! 一 ele disse quando cheguei perto. 一 Dormiu bem?
一 Bom dia 一 sorri. 一 Mais do que bem.
一 Que bom. Fico feliz em te ver de novo, principalmente porque sei que agora vai ser uma figura recorrente 一 sorriu. 一 me contou que você precisava de um emprego e de um lugar para ficar, por isso te contratou.
Ele não demonstrou nenhum estranhamento, o que indicava que ele itou bem também.
一 Sim, foi muito gentil da parte dele 一 respondi, arrastando uma cadeira e me sentando na mesa, de frente para ele.
一 E sinto muito pelo bebê. 一 Ficou sério de repente. 一 Ele me contou que perdeu antes de chegar aqui, mas que ficou com medo de contar.
Virei a cabeça, confusa. Por que será que tinha dito isso para ele?
一 Ah, tudo bem. Já é algo que superei 一 dei uma resposta neutra. Depois, se me lembrasse, eu iria perguntar o que ele tinha dito especificamente para Börje, assim eu poderia corroborar com mais uma “verdade adaptada”. 一 Ele disse que você iria me passar a agenda, então vamos ao trabalho.
一 Sim, sim. Você pode comer algo enquanto te passo 一 ele disse, apontando para a mesa gigante no canto cheia de comida. 一 Imagino que esteja com fome.
Concordei com a cabeça e fui me servir. Passei o olho em super concentrado na mulher. De repente, uma sensação de dèja vu me invadiu. Olhei de volta para a mesa do Börje, uma câmera antiga jazia ali em cima e eu não tinha percebido antes. De repente, tudo fez sentido, já tinha visto uma cena no documentário gravada por Börje de dando essa entrevista. A mulher tinha o rosto bem característico, então me lembro com perfeição de todo o cenário.
O documentário tinha sido gravado durante a promoção do disco atual, ou seja, ao longo de 1990, durante a passagem de por vários países europeus. E, depois desse dèja vu, sentia que praticamente tinha mergulhado dentro desse documentário.
Eu, de fato, estava em 1990 e cada vez mais a ficha estava caindo.
Não estava muito preparada para ficar tendo visões de cenas que já tinha visto. Era estranho e me deixava tonta, parecia que eu ainda era uma mera espectadora, mas agora eu me movia, sentia cheiro e vivia aquela realidade.
Retornei à mesa, pousei o prato e a xícara no tampo, sentando-me em seguida. Apontei para a câmera que jazia ali.
一 Posso te ajudar a gravar o 一 falei para Börje. Eu estava curiosa para ver se mais cenas apareciam em 2019 no documentário quando eu voltasse. Cenas gravadas por mim.
Ele assentiu prontamente e começou a me ensinar a mexer em todas as configurações da câmera, o que era bem difícil, porque tinham coisas ali que nem precisávamos mexer mais 一 era simplesmente automático. Ele disse que iríamos nos revezar para gravar , já que ele tinha outra câmera e eu podia ficar com essa.
Finalizei meus ovos mexidos e bebi meu suco de laranja enquanto Börje me ensinava tudo sobre a agenda do filho dele. Desde como falar com hotéis para repassarem as ligações com entrevistas ao quarto, até deixar espaços livres na agenda para conhecer a cidade, porque gostava de sair esporadicamente. A agenda dele era bem tranquila, nada comparada a um bicho de sete cabeças como imaginava que seria a de um artista gigante, tipo o Harry Styles.
Meu Deus. Harry Styles não tinha nem nascido ainda.
Fiquei triste por não poder ouvir a voz aveludada dele pelos próximos vinte anos. Já tive um crush platônico no Harry também, quando gostei da One Direction. Tinham muitas fanfics Larry que eram ótimas, ocuparam parte do meu tempo durante alguns meses.
se sentou entre nós dois, carregando consigo uma xícara transparente de café com leite.
一 Olá 一 Börje disse e ele nou com a cabeça, cumprimentando-o de volta. 一 Já passei tudo para ela, inclusive as configurações da câmera para ela me ajudar a gravar você.
一 Perfeito 一 ele respondeu, bebendo o conteúdo da xícara. 一 E como ficou o que te pedi ontem?
Ele tinha virado para mim.
Lembrei que ele tinha falado para pegarmos um espaço livre e comprar roupas para mim, então vasculhei nervosamente a agenda de capa vermelha que Börje tinha me entregado.
一 Tem um tempo livre agora, até quatro da tarde.
一 Você já acabou de comer? 一 perguntou, concordei com a cabeça. Ele bebeu rápido todo o resto do café com leite. 一 Então vamos.

***


Andando pela loja, percebi que tudo aquilo parecia o figurino dos personagens de Friends e também de Buffy The Vampire Slayer. Era absolutamente incrível ver toda a mudança. Não conhecia as lojas de departamento de Portugal, mas tinha certeza de que as que passamos não existiam mais ou trocaram de nome ao longo dos quase 30 anos que se passaram.
Se em 2019 eu tinha dificuldade para encontrar calças que se adequassem ao meu corpo na Europa, imagina nessa década em que o padrão era extremamente diferente. O biotipo europeu era muito destoante da variedade de corpos que havia no Brasil. A globalização só se aprofundou mais na segunda metade dos anos 90 e, principalmente, nos anos 2000, quando um número bem maior de pessoas conseguiram imigrar de outros continentes e montar uma vida nova na Europa, se bem me lembrava.
Ele tinha me dito para escolher várias roupas, porque teríamos um longo caminho para a promoção do álbum novo. Então, peguei blusas de gola alta com e sem manga, vestidos de verão e de inverno, meias-calças, saias, calças jeans e plissadas, casacos e mais um monte de coisas necessárias para formar um guarda-roupa do zero.
Enquanto eu estava na saga de provar todas essas roupas, ele me esperava sentado no banco junto com vários outros homens que também esperavam suas mulheres nos provadores. Constatar isso me fez sorrir, porque pude me iludir momentaneamente que namorava meu ídolo.
Só que, na realidade, agora sou sua assistente e ele era um cara muito bondoso por acolher uma sem-teto.
一 Terminei. 一 Saí do provador carregando várias sacolas de loja com roupas.
Ele tirou os olhos do livro de capa preta que lia, se levantou, pegou algumas sacolas para me ajudar e fomos para a fila do caixa.
一 Como foi a entrevista de hoje cedo? 一 quebrei o silêncio.
一 Hm... normal 一 ele respondeu, olhando para as pessoas na nossa frente.
一 Normal como? 一 insisti, querendo conhecê-lo.
一 Mesmas perguntas, mesmo papo de “onde estão os outros músicos da banda?” e esse tipo de babaquice.
一 Não gosta muito de trabalhar em grupo, hein? 一 dei um empurrãozinho nele com o ombro, brincando com o fato de ser um lobo solitário em sua banda.
一 Não, não gosto muito de pessoas interrompendo o ciclo natural que eu levo na minha vida. 一 Senti que de alguma forma essa foi uma indireta e um aviso. 一 Fazer música em grupo só me atrapalha, não posso trabalhar de madrugada, porque tenho que esperar os outros, e essa é a hora que justamente tenho mais inspiração, depois de... 一 pigarreou, meio tímido, meio de ego inflado 一 sair com alguma mulher. Então, é, prefiro eu mesmo trabalhar no meu tempo e tomar minhas próprias decisões.
Desmanchei o sorriso e fiz cara feia.
一 Parece algo que você diria mesmo 一 resmunguei, baixinho, me lembrando das respostas ácidas que dava nas entrevistas sobre mulheres e inspirações. Ouvi-lo falando sobre sua vida sexual me causou uma onda de ciúmes nada agradável. Eu não deveria estar sentindo ciúmes, isso era perigoso.
Ele soltou uma risadinha sarcástica, indicando que ouviu o que praticamente sussurrei.
一 Não vai me dizer que você acompanha essas merdas que soltam sobre mim? 一 perguntou.
一 Pode-se dizer que sim 一 respondi, já com um pé atrás de onde aquela conversa nos levaria e pelo tom sarcástico dele.
一 Pura merda da pior qualidade 一 ele disse, ainda sem olhar para mim, e sorrindo. 一 Eu não respondo praticamente nada da minha vida pessoal que seja cem por cento verdade. Me ajuda a manter minha identidade em segredo.
Seu tom presunçoso serviu para me fazer acordar um pouco. Eu andava flutuando muito sobre estar com meu ídolo e acabei me esquecendo que ele não se esforçava para ser perfeito, ele se esforçava para ser misterioso. Isso era horrível para os fãs, visto que ele morreria cedo demais e ficaríamos com quase nada de material. Fora que sou uma crítica assídua desse comportamento dele, acho digno de um babaca.
一 E o que você esperava? Que a gente não acreditasse? Você não fala nada sobre si e eu sou uma fã que quer saber tudo sobre o meu artista favorito, é assim que eles ganham o seu público. E isso faz parte de ser um artista completo, . Você que tem que mudar sua imagem e não deixar espaço para que façam isso 一 respondi, andando até a moça do caixa e deixando um absorto para trás. 一 Mas não precisa se preocupar, a gente pode trabalhar nisso juntos, fiz alguns cursos de marketing na... na... biblioteca.
Me segurei na hora de falar “na internet”, ele apenas soltou uma risadinha baixa e andou até mim, sem responder. Não saberia dizer se ele soube ou não que tinha a intenção de retrucar, mas com certeza não, ele só permaneceu olhando para a frente com um meio sorriso. Claro que a minha ideia era mirabolante, falar mais sobre ele mesmo? Sem chances, ele não facilitaria que formassem uma pessoa por trás de quem ele criou, que tinha coisas básicas como um nome, um apelido, um endereço e até mesmo um aniversário.
Fiquei sem graça por ser o motivo dele desembolsar todo aquele dinheiro, mas jurei que iria ressarci-lo assim que recebesse meu primeiro salário. Ele pagou e saiu carregando todas as minhas sacolas, encontramos Börje do lado de fora da loja.
一 Ah, aí estão vocês! 一 ele sorriu para a gente e encarou as sacolas na mão do filho. 一 Precisa ir em mais alguma loja, ? 一 Börje me perguntou. Neguei com a cabeça. Fiz questão de pegar tudo nessa loja para montar uma mala da estação. Era primavera, mas já estava bem quente aqui em Portugal, se assemelhando muito ao Brasil. 一 Então, vamos, tenho uma coisa para mostrar para vocês.
Saímos do shopping e fomos a pé até uma pequena galeria de lojas que tinha ali perto. Entramos em mais uma daquelas lojas de vinis, fitas cassetes, camisetas e outras roupas alternativas. Poucas pessoas estavam ali, mexendo em algo nas prateleiras.
一 Olhem 一 Börje apontou para uma parede em exposição com várias cópias do vinil do disco novo da banda de , em cima escrito em português “Lançamentos”. Tinham camisetas também e alguns patches para costurar em coletes. 一 Falei com o dono da loja e combinamos uma sessão de conversa com os fãs amanhã. Se puder colocar na agenda, 一 piscou para mim.
Virei-me para procurá-la no bolso de trás da calça e anotei o que ele falava na hora exata.
já olhava outros discos do Black Sabbath enquanto eu terminava de registrar o compromisso. De alguma forma, parecia estar cansado de prestigiar e admirar seu próprio trabalho. Cheguei perto dele quando acabei. Ao saber que estaria aqui amanhã, seria uma oportunidade perfeita para que conhecesse Tiago.
一 Eu conheci um garoto ontem que é seu fã, ele me ajudou a chegar à loja para te encontrar 一 falei, encarando seus dedos deslizando pelas pontas dos vinis. 一 Me sinto meio que em débito com ele por esse favor, então... Será que posso convidá-lo para conversar contigo antes dessa sessão de amanhã?
一 Claro. Você que controla a minha agenda agora, eu só te obedeço 一 falou sem me olhar.
Olhei para o outro lado para sorrir. Mal cheguei e ele já queria acatar minhas ordens. Bem, aquela viagem no tempo seria até que fácil, então. Virei-me de novo para ele e ele estava mais perto de mim, ainda passando os olhos pelos discos. Fiz uma nova análise minuciosa dele. Seus olhos concentrados, seu nariz que se encaixava bem em seu rosto, sua boca bem delineada e sua pele bronzeada pelo sol da primavera. Ele era tão jovem, um ano mais novo que eu. Lembranças de fotos de um mais velho me invadiram, um dia ele não teria mais cabelos tão cheios, nem olhos sem marcas da idade e adotaria um cavanhaque para complementar o visual 一 um quase quatorze anos mais velho do que o atual. Se atualmente ele tinha 24, nessas fotos ele estava no final dos 30. Definitivamente envelheceria bastante durante esses anos, mas de uma forma boa e não estava falando isso por ser apaixonada por ele. Eu juro.
Ele olhava para os discos totalmente alheio às imagens que passavam pela minha cabeça e de como envelheceria. Afinal, ele só era um homem comum. Eu também não sabia como envelheceria e ficaria assustada se soubesse que alguém que apareceu do nada na minha vida dissesse que saberia até o dia que eu iria morrer. Seria errado contar detalhes da vida dele que ele nem sabia ainda? Eu poderia interferir e mudar o futuro ou estar ali estava premeditado assim que consegui viajar no tempo? Eram tantas perguntas... Não conseguia definitivamente pensar naquilo naquele momento. Estava saltitante demais para começar a me preocupar com a morte dele e questões relacionadas à viagem no tempo. Tinha certeza de que, assim que as coisas se rtassem mais, eu começaria a correr atrás.
Sentia como se fosse uma pendência minha tentar alertá-lo do que iria acontecer enquanto viajante, só precisava arranjar um jeito de falar isso.
Peguei um LP do Motörhead, aparentemente aquele era o último de estúdio lançado, visto que a etiqueta apontava o ano de 1987. O próximo era um dos meus favoritos, mas só lançaria em ‘91. O meu favorito mesmo era o The World is Yours, de 2010, um que nunca conheceria.
一 Você gosta? 一 perguntei para ele para espantar meu pensamento mórbido e para conhecê-lo mais. Para variar, eu já sabia que era certo que ele gostava de Motörhead, porque era uma das poucas bandas que o vi falando em entrevistas. Porém, não sabia de sua preferência pelos álbuns.
一 Sim. Não é meu disco favorito, mas é bom 一 respondeu, ainda sem me olhar.
一 Entendo perfeitamente, vai ser difícil algum superar o No Remorse. Mas vão ter alguns que se igualarão a ele. 一 Ele olhou para mim e eu imediatamente acrescentei. 一 Eu acho.
Como não demonstrava emoções tão facilmente, eu julguei que ele não percebeu mais um pequeno deslize meu. Era extremamente difícil falar tão no passado; se fosse na segunda metade dos anos 90, eu já teria mais domínio, mas a gente tinha acabado de sair dos anos 80 e algumas coisas ainda se confundiam na minha cabeça. Com certeza, tenho muito a aprender pela frente.
一 Reconheço a importância do No Remorse, mas, por incrível que pareça, não é o meu favorito. Na verdade, se eu tivesse que fazer um ranking, o No Remorse seria meu quinto favorito. Em quarto lugar, o Orgasmatron 一 ele procurou no meio dos LPs 一, em terceiro, Overkill. Em segundo, Motorhead. E finalmente em primeiro... 一 tirou um vinil e me entregou. 一 Esta obra de arte.
Era o of Spades, de 1980. Como fui esquecer que aquele disco já existia? Eu era uma grande fã de Motörhead, não me apaixonei com veemência que nem o fiz pelo sujeito à minha frente, mas gostava muito de escutar. Aparentemente, compartilhava do gosto popular, porque, até em 2019, as pessoas preferiam o of Spades.
一 O of Spades? 一 perguntei, me controlando para não fazer cara feia por achar superestimado.
Ele concordou com a cabeça. Não dei muita fé para o vinil que segurava porque um detalhe de nossa conversa na loja de departamento me passou pela cabeça, então decidi, depois de um momento de silêncio, voltar ao assunto.
一 Por que você escolheu ? 一 perguntei.
一 Eu precisava de um nome só para a banda. Quando tive que escolher um stage name, preferi que fosse um que quase ninguém tivesse escutado antes. 一 Ele olhou para mim de novo e pude contar todos os traços que formavam os seus olhos extremamente .
Mordi o lábio inferior. Eu sabia o motivo por trás do nome, porque o vi falando sobre isso em uma entrevista via telefone no final dos anos 90, mas o ouvir falando pessoalmente sem o ruído do telefone tornava tudo mais real.
一 E então, você prefere que eu te chame de ou de ? 一 perguntei, guardando o disco que eu mesma tirei ali do meio.
一 Pode me chamar como quiser. geralmente me chamam os meus amigos de muito tempo ou pessoas mais próximas. , todos que me conhecem pela minha música.
Não estava lá para forçar intimidade com ele. Eu tinha um emprego para manter, afinal de contas.
一 Bom, eu te conheço inicialmente pela sua música, então vou ficar com 一 respondi, optando por manter as coisas mais “profissionais”. Ele ainda segurava e analisava o disco. 一 Estou um pouco decepcionada com seu gosto musical, no entanto. O of Spades não é bom o bastante nem para entrar no meu top five 一 comentei com um sorriso provocador.
Ele sorriu de lado e se virou para mim, me analisando de cima a baixo. Tive vontade de me esconder com as mãos, mas mantive a postura para passar confiança.
一 Acho que você não ouviu direito. Deveria tentar de novo.
Ele se virou para os discos de novo e guardou o exemplar que segurava. Bufei, duvidando dele. Eu discordava totalmente do ranking dele, porque, para mim, eu ordenaria: The World is Yours, Kiss of Death, Motörizer, No Remorse e o Iron Fist. Nada de of Spades. Ele não tinha moral para me contestar, porque não conheceu os três primeiros, mas tenho certeza de que, se conhecesse, mudaria sua opinião.
Börje parou no meio de nós dois.
一 A convenção acabou hoje de manhã e ao longo do dia vai vagar alguns quartos. Quer que eu arranje um para você, ?
Concordei com a cabeça. Um pouco de privacidade, para começar, seria muito bom.
一 Ótimo. Então, vamos indo? 一 chamou nós dois.
一 Na verdade, podem ir sem mim. Eu vou dar uma volta por aí 一 se manifestou.
Pensei em voltar atrás e ir com ele, mas pareceria muito grudenta para alguém que ele conheceu há menos de 24 horas e sabia como ele precisava ficar sozinho às vezes 一 só os introvertidos se entendem. Além disso, seria um tempo legal para que eu me organizasse no meu novo papel de assistente até o compromisso de quatro horas.
Börje pegou as sacolas de roupas que tinha deixado no chão para mexer nos discos, me virei para ir embora e deixei os dois conversando.
Eu carregava três sacolas e Börje me encontrou do lado de fora para podermos pegar um táxi e ir embora. O taxista não falava inglês, então tive que me comunicar em português com ele enquanto Börje mexia no interior de seu pager. Ele murmurou algo sobre estar com problema, então havia aberto com uma chave de fenda e agora cutucava algo.
Seguimos viagem até o hotel em silêncio, Börje gostava de conversar, mas parecia muito entretido. Não me incomodei. A presença dele e de não era enfadonha 一 mesmo que eu fosse uma pessoa bem tímida e com dificuldade de fazer amigos, eu me sentia até que confortável com eles dois. Não estava tendo que fazer esforço para me inserir, talvez porque fosse bem introvertido. Já Börje, parecia saber lidar bem com pessoas que tentavam socializar e que não tinham o mínimo talento para isso.
Era irreal demais para uma pessoa do século 21, onde todos eram desconfiados o tempo todo ou desacreditados da bondade humana, pensar que eles viram o meu desespero de não ter para onde ir e me acolheram como se já me conhecessem. Talvez, se uma pessoa aparecesse para mim dessa maneira em que apareci, eu acharia que era golpe ou uma piada de muito mau-gosto.
Quando paramos de frente ao hotel, Börje me informou que ele tinha me registrado como hóspede de manhã, então eu não teria dificuldade em pegar a chave na recepção enquanto não tinha a minha. Além disso, almoçaria com alguns amigos hoje, então eu poderia pedir o serviço de quarto, já que o restaurante do hotel estaria fechado para comer presencialmente por causa da finalização da tal convenção. Börje me buscaria um pouco antes das quatro, sempre dava um jeito de aparecer nos locais apesar de não saber a língua.
Balancei a cabeça, concordando com tudo com pressa para liberar o taxista que esperava pacientemente. Quando ele terminou, peguei todas as sacolas e saí do táxi.
Pouco depois que eu tinha entrado no quarto, um funcionário do hotel veio me trazer uma mala novinha da loja deles e um envelope com o nome de .
Abri o envelope e tinha um bilhete escrito em uma máquina de escrever na folha com o timbre do hotel. Ou seja, foi digitado por algum funcionário.

“Lembrei depois que você saiu que não te vi pegando mala para guardar todas essas roupas. Estou enviando um pouco de dinheiro também, caso queira sair e comprar algo para você. No entanto, recomendo que compre na loja do hotel, porque vai tudo para a conta do quarto e você não precisaria contar... você sabe, moedas”.

Eu não lembrava que precisava guardar as roupas em algum lugar e depois locomover quando saíssemos dali. Sorri com o bilhete e com a memória dele.
Ele tinha rtado precisamente, ainda precisava comprar coisas de uso pessoal que todo ser humano necessitava e fiquei com vergonha de pedi-los para passar em uma farmácia ou em um mercado. Disquei o número da recepção e listei os itens que precisava, o serviço cobria um funcionário ir até algum lugar para conseguir os que não tinham.
Guardei o bilhete em um dos zíperes que tinham dentro da mala junto com o outro que ele tinha me escrito pela manhã. O dinheiro guardei dentro da bolsa que tinha comprado para me acompanhar para cima e para baixo. Dentro dessa bolsa, cabia a câmera de filmagem, a agenda e todos as milhões de coisas que eu viesse precisar enquanto assistente.
Dobrei as roupas novas e as guardei na mala vermelha, deixei uma de fora para vestir essa tarde. Um vestido xadrez preto e azul colado que ia até as canelas, um casaco folgado e fofinho cinza, botas pretas que peguei emprestada da filha de Börje 一 acho que vou ter que acabar comprando botas novas para ela.
Eu era oficialmente uma garota dos anos 90 vestida a caráter, com roupas sofisticadas para a época. Não estava nada mal para uma assistente também, mesmo que meu chefe se vestisse como um rockstar e, eu, o oposto.
Eu não investia em roupas com frequência em 2019. Ultimamente, eu vinha preferindo as camisetas largas que encomendava do site do merchandise oficial e algumas do eBay. Só naquele momento vi que valia a pena investir. Precisava passar despercebida como alguém com quem trabalharia, não como alguém que namoraria. Um deslize meu com uma roupa, as revistas de metal e as fanzines começariam a dizer que andava com a namorada a tiracolo.
Ok, já era a segunda vez que pensava na palavra “namorar” e ele juntos. Talvez, a viagem no tempo estivesse me deixando esperançosa demais. Primeiro, tinha que organizar os pensamentos no lugar, me lembrar da maldição que poderia fazê-lo sofrer, e também precisava ter em mente que precisava voltar para casa alguma hora, porque aquele tempo não me pertencia, e que ele poderia nunca me ver nesse sentido.
Naquela tarde, antes de me arrumar, passei o tempo estudando a agenda enquanto comia, depois repassei várias informações de coordenadas que Börje tinha me dado pela manhã, anotando-as em alguns papéis avulsos da agenda.
Meu coração errou as batidas quando bateram à porta pela primeira vez com a comida e depois com todos os meus pedidos. Eu sabia que era muito cedo e que eu precisava me dar um tempo, mas me irritava profundamente o meu corpo reagir daquela forma à mera ideia de entrando naquele quarto. O quarto que era dele e eu teria que ficar até vagar outro, então precisava controlar minha imaginação fértil.
Tinha 25 anos e não 15, pelo amor de Deus! Por que estava fantasiando tanto? Aquilo era a realidade, ele não abriria a porta com um pontapé e me daria um beijo cinematográfico.
Mas bem que poderia.
Suspirei.
Seria difícil começar do zero, com nenhuma garantia que eu me tornasse algo para ele. Eu ficaria feliz só sendo amiga dele, por mais improvável que esse pensamento parecesse naquele momento.
Droga, como era agoniante saber o futuro dele e do mundo, mas não saber nada sobre o meu.
Tomei banho e me vesti, passei um pouco de maquiagem que não ficasse tão à la 2019 一 o que consistia em sombra cintilante, pó e batom vinho. Passeei pelos canais da TV, esperando Börje vir me buscar.
Sentia que o meu maior problema era vir gastando muito tempo pensando em e não em como sobreviver em 1990 até saber como voltaria para casa. E isso era algo que precisava mudar imediatamente, se quisesse continuar ali.

Capítulo 5 - A Question of Lust

Börje me elogiou assim que atingi seu campo de visão. Ele me chamou de “bonita” em sueco e eu fiquei toda me achando, é claro.
Ele nem me conhecia, mas tinha aquele brilho no olhar e jeito de falar como se tivesse me visto crescer todos os 25 anos e me tornado o que sou hoje. Senti isso desde quando ele me viu sentada de pijama naquela mureta. Era como se o rosto dele me fosse familiar a vida inteira. Conhecia pessoas que tinham esse traço, como meu avô tinha. Geralmente elas eram as mais simpáticas, por isso me sentia segura perto dele.
Quando chegamos lá, já estava dentro de um estúdio de televisão. Eram tantos cabos pelo caminho, câmeras e pessoas para lá e para cá, que fiquei tonta.
Börje pareceu perceber meu desconforto pelo excesso de informações e explicou:
一 Nós vamos divulgar o disco novo em um canal de TV português sobre música.
As pessoas começaram a me ver ali ao lado de Börje e entender que eu também estava trabalhando com o artista.
Todo aquele ambiente me parecia tão não-. Ele deveria estar desconfortável também, apesar de estar aparentando certa normalidade. Tinha uma luz branca forte em seu rosto que parecia machucar seus olhos e ele tentava enxergar além dela para entender o que acontecia, então decidi que aquela seria oficialmente a minha primeira tarefa.
一 Olá 一 parei uma pessoa que caminhava por ali com um fone de ouvido. 一 Quem é o responsável pela iluminação?
一 Pode ser eu 一 ele disse, aparentemente nervoso.
一 Você pode desligar enquanto não está gravando? Não queremos que o artista fique cego 一 sorri, tentando ser simpática.
Ele deu uma risadinha nervosa e afirmou com a cabeça, saindo logo em seguida.
Börje alternava um olhar orgulhoso em minha direção e em analisar papéis que seriam a pauta. Ele não disse nada, mas sabia que aquilo indicava que eu estava no caminho certo.
Quando a luz diminuiu, pareceu aliviado e finalmente nos enxergou ali. Vi que ele analisou rapidamente minhas roupas e parecia um pouquinho impressionado com a mudança. Bom, para ser sincera, eu tinha realmente me superado na esperança de, pelo menos, provocar uma pequena reação dele quando me visse 一 e, pelo visto, eu tinha conseguido. Aquilo subiu um pouco minha autoestima e, para espantar a vergonha que ameaçava me levar correndo dali para me esconder no banheiro mais próximo, eu andei até ele.
Ele estava sentado em um sofá baixo, que me fazia parecer alta em pé perto dele. Seu olhar profundo ainda me analisava enquanto eu fazia o caminho que nos separava. Meus passos demonstravam falsa confiança ao ser analisada daquela forma.
一 Oi. Melhor sem a luz? 一 perguntei, tentando soar natural. 一 Pedi para que diminuíssem.
一 Com certeza. Você me salvou, meus olhos estavam derretendo 一 ele sorriu. 一 Gostei da roupa, parece que finalmente rtou no seu tamanho 一 disse em um tom brincalhão.
Soltei uma risada. É claro que ele não iria perdoar o fato de eu ter usado suas roupas, era engraçadinho demais para isso.
一 É, acho que não iria pegar bem, em um lugar desses, uma assistente aparecer usando as roupas que são claramente do artista. Pensariam que passei a noite com ele 一 pisquei um olho, entrando no joguinho dele. Ele sorriu, galante.
一 Mas você passou a noite com ele 一 piscou de volta. 一 Está bonita, 一 acrescentou, desta vez olhando dentro dos meus olhos.
Soltei uma gargalhada escandalosa, por causa da vergonha que me dominou como uma onda. Além da sua provocação, foi uma reação ao seu elogio. Não era boa em receber elogios, ainda mais quando vinham de quem eu admirava, ficava totalmente sem graça.
一 Obrigada 一 respondi, meio desconcertada por ter atraído olhares que eu não queria. Ele apenas sorriu de lado.
Uma mulher apareceu do meu lado, carregando um ponto de microfone para colocar nele. Usei isso como minha deixa para sair e voltar ao meu lugar atrás das câmeras.
Börje me mandou alterar a ordem de algumas perguntas e remover outras que eram sobre a vida pessoal de 一 como seu nome verdadeiro ou se ele curtia mulheres vivas ou mortas. Bom, é o que dá ser um ícone do black metal. Eram perguntas extremamente invasivas e inconvenientes, mas até que a segunda era engraçadinha e teria me arrancado boas risadas vê-lo respondendo. Conversei com algumas pessoas e elas me garantiram que iriam tirar imediatamente do roteiro, porque o programa iria ao ar logo mais. Todo mundo corria de um lado para o outro, menos eu, Börje e , que estava sentado olhando toda a loucura acontecer com certa curiosidade.
Quando o programa foi ao ar, eu estava dispersa, anotando na agenda as perguntas que não deveriam ser feitas em futuras entrevistas e as que não se incomodava em dizer que não responderia. Na verdade, Börje me disse que não passava muito o olho em roteiros de entrevistas, principalmente para fanzines 一 o que aprendi que eram revistas pequenas feitas por fãs 一, por isso que, às vezes, acabava respondendo coisas mirabolantes quando perguntavam. A princípio, a ideia era evitá-las antes que fossem feitas e eu me concentraria em tirá-las do script, a menos que fossem insistentes e perguntassem mesmo assim.
Ele não parecia nem um pouco nervoso por estar de frente às câmeras, respondia as perguntas tranquilamente e, mesmo agora, a luz não era tão forte a ponto de atrapalhar sua visão. A primeira vez que ele me olhou de relance, ergui os polegares e dei um sorriso enorme para mostrar que ele estava mandando bem, mas foi mais cômico do que apoio, porque ele se segurou para não rir e continuar prestando atenção no que o entrevistador estava falando.
Nas outras vezes que ele me olhou, mais porque eu estava no campo de visão quando ele pensava e falava, eu apenas dei alguns sorrisinhos sem que me comprometesse de novo. Eu ficava toda destrambelhada quando estava perto de quem tinha interesse, era incrível a quantidade de vergonha que conseguia passar em tão pouco tempo.
Ele tinha essa mania de ficar passando a mão no cabelo e jogando para trás, eu ainda não sabia se me dava aflição porque atraía oleosidade ou se achava charmoso, porque era (e para cte). O cabelo dele não era nada oleoso, só para constar. Tinha a impressão de que ele era extremamente cuidadoso e lavava todos os dias. Afinal, eu já havia comprovado que ele cheirava a shampoo.
Peguei a câmera de dentro da bolsa e liguei, filmei todo o set de filmagem e ele dando entrevista por trás das câmeras que o filmavam. Börje apareceu, nando para a câmera, me fazendo sorrir.
Por um momento, até me esqueci que não era mesmo desse século. Esqueci que tinha familiares e amigos me esperando de volta no meu tempo e apenas agi conforme o presente. Enquanto eu me afundava nessa melancolia da probabilidade de um dia ter que partir, terminou sua entrevista. Guardei a câmera de volta, voltamos para o hotel e Börje me explicou estratégias de divulgação pelo resto do dia no lobby. tinha saído para andar pela cidade de novo.
Pela noite, eu ainda não tinha um quarto. Os dois saíram para jantar com o amigo que estava hospedando o mais velho. Fui convidada, mas eu não quis ir. Preferi ficar sozinha por um tempo para organizar a mente.
Observei a banheira encher enquanto cheirava o shampoo de . Percebi que era dali que vinha quase dois terços do cheiro dele na primeira vez que inspirei. De repente, quis me afogar no líquido. Eu estava certa, ele era muito cheiroso. Seu cheiro era viciante, estava completamente vidrada pelo ar vindo de dentro da embalagem toda vez que apertava. Aquele parecia um shampoo qualquer de mercado, mas, só de saber que estava ligado a ele, se tornou o meu cheiro favorito no mundo.
Guardando o shampoo a contragosto, voltei minha atenção de volta à banheira. Joguei um pouco de sabonete líquido na água para dar um pouco de espuma e cheiro. Me permiti relaxar um pouco, porque ter trabalhado me deixou exausta. Ser assistente não era nada como trabalhar como voluntária no zoológico. Lá, eu só precisava lidar com a minha rixa com o intercambista e uma vez por semana com a nossa supervisora. Aqui, precisava lidar com o cara mais gostoso do planeta Terra. O cara por quem era apaixonada. O cara que estava me abrigando.
Por que não pensei nisso antes de apertar naquele link? Por que geralmente as pessoas não pensam antes de viajar no tempo? Por que raios estava ali? Seria minha alma gêmea? Eram tantas perguntas unidas com a situação que me exauriram no dia anterior e naquele momento também. Talvez a confusão mental fosse o jetlag de quem viajava no tempo.
Ao terminar meu banho depois de ficar de molho por uns bons minutos, vesti meu pijama novo. O meu de Natal era totalmente fora de estação, então acabei comprando dois conjuntos com short e blusa de cetim. Telefonei para a recepção do hotel vir buscar as roupas dele que usei para lavar. Enquanto eles não chegavam, peguei o jornal de para me inteirar das notícias de 1990 e fui ler deitada na cama. Ele entrou no quarto quando eu devia estar na página 6 sobre a liberdade do Nelson Mandela.
Desviei os olhos das páginas para fitá-lo enquanto esvaziava o conteúdo dos bolsos e colocava tudo em cima da TV.
一 Oi 一 saudei-o. 一 Achei que demoraria mais 一 comentei, sem saber ao certo quanto tempo fiquei na banheira.
一 Olá 一 sorriu. 一 Eu não bebo mais para ficar bêbado, então a graça acaba para mim quando a comida termina 一 explicou, agora tirando as botas.
Sorri de volta. Falando em comida, acabei nem comendo porque ainda estava lotada do almoço, mas tinha a impressão de que essa sensação não iria durar até o dia seguinte. Não queria encher mais o saco dos funcionários do hotel enquanto não viessem buscar as roupas, por isso optei por voltar a ler o jornal. Ele foi fumar na janela. Era cômico estar em um quarto preso com meu ídolo e sem ter certeza do que poderia falar. Não poderia ser intrusiva demais e nem dar na cara que sabia demais, então, por isso, o silêncio se instaurou no ambiente.
Anya era fumante, por isso a fumaça não me incomodava mais tanto assim como antes. Enquanto meus olhos não estivessem em sua boca e no filtro do cigarro, também não era mais um problema para mim. Ele terminou de fumar e entrou no banheiro.
Só ao senti-lo deixar o quarto, percebi que segurava o ar. Notei também que sua presença dentro desse quarto de hotel me instigava muito. Não sabia o que eram todas aquelas sensações que estavam despertando meu corpo, mas sabia identificar uma: o desejo. era bonito, era cheiroso, era inteligente e meu cérebro estava bem ciente do seu traço mulherengo. Lá no fundo, eu tinha esperanças em me tornar uma mulher que ele dizia que saía e depois se inspirava. Porém, toda vez que o pensamento surgia, tratava logo de o mandar embora.
Apesar de ter me elogiado hoje, eu e ele não começamos com o pé direito nesse sentido. Sentia que mentir sobre uma gravidez sem nem ter dormido com ele tornaram as coisas estranhas entre nós dois nesse quesito. Ou, talvez, pelo fato de ter sentido empatia pela minha situação, ele não tenha investido em mim; ou porque agora trabalho para ele; ou só porque não faço seu estilo; ou...
Tentei voltar para o Mandela, mas minha mente continuou me distraindo, até que batidas na porta ecoaram pelo quarto. Reuni as roupas que separei e a abri. A camareira tinha um saco grande transparente com a etiqueta do número do quarto e apenas se limitou a estendê-lo para mim, e coloquei todas as peças lá dentro.
Fechei a porta assim que saiu. Pretendia voltar para a cama, mas acabei tropeçando no carpete desnivelado e...
Um peito muito firme me amparou. Só tinha mais uma pessoa no quarto, então, quando meus olhos chegaram até o rosto de , meus lábios abriram para arfar pela proximidade. Seu cabelo molhado emanava o cheiro que me inebriou momentos atrás. Ele sorriu de lado, provavelmente ao se dar conta da minha aproximação repentina.
一 Cuidado, . Não vá se machucar 一 murmurou e me afastou com suas mãos nos meus pulsos. Meus braços, minhas mãos e toda a parte da frente do meu corpo o tocavam por cima da camiseta do pijama. Quando colocou distância entre a gente, todos os meus membros formigaram em protesto.
O que diabos ele quis dizer com essa frase tão simples e dita de forma tão irônica? E o jeito que ele falou meu nome? Ele pronunciava meu nome de um jeito tão diferente, como se fosse a palavra mais bonita do mundo!
一 D-Desculpa 一 pedi, ainda meio zonza por ter ido parar logo em cima dele. Quando é que ele tinha chegado ali?
一 Sem problemas, mas toma cuidado da próxima vez 一 ele disse enquanto continuava dobrando as roupas em sua mala, mas parou para me olhar. Seus olhos faiscaram com diversão em minha direção. 一 Eu posso não estar por perto para te impedir de chegar ao chão. 一 E piscou. Piscou! piscou para mim pela segunda vez no dia! E quando só tinha nós dois em um quarto muito pequeno.
Antes que eu pudesse me controlar, uma risada irrompeu pela minha garganta pela segunda vez no dia. Não era para ela sair, é claro, mas ele não precisava saber disso. Precisava contornar a situação o mais rápido possível porque ele estava sorrindo, sem entender nada.
一 Bom, ainda bem que você está por perto agora. Meus joelhos agradecem 一 falei, indo me deitar de novo e passando por ele, que ainda me olhava com diversão. 一 Eu sou muito desastrada, então qualquer oportunidade para cair, derrubar ou quebrar, não dispenso 一 tagarelei, com certo nervosismo.
Senti seu olhar queimando minhas costas quando passei. Me enfiei debaixo do cobertor e ele ainda estava parado, me olhando com o mesmo sorriso.
一 O que foi? 一 perguntei, logo em seguida mordendo o lábio inferior com receio de ser o alvo da sua atenção.
一 Nada, é só que você tem uma risada bem única 一 comentou e voltou a virar para dobrar suas roupas. Estremeci ao ouvi-lo falando da minha risada. 一 Então, não conseguiram outro quarto?
一 Não, infelizmente a empresa pagou para eles passarem mais uma noite depois da finalização da convenção.
一 Quer dizer que você está presa comigo mais um dia? 一 Seu tom era brincalhão, mas estremeci novamente. Eu estava presa com ele, no mesmo quarto, o desejando.
一 É. Estou te incomodando? 一 perguntei e depois engoli em seco. Caso estivesse, fodeu. Não tinha nem para onde ir, teria que dormir no corredor.
一 Claro que não. É divertido te ter por perto, você é bem calorosa. Bem contrário ao que estou acostumado. 一 Fechou o zíper da mala e se virou para mim. De repente, me senti pequena demais sob seus olhos. Ele disse que eu era calorosa porque o divirto com minhas trapalhadas, tenho certeza. Tive vontade de rir do seu comentário, mas me controlei, já tinha rido demais por um dia. 一 Já que reclamou que não sou sincero com meus fãs, como você me vê depois de passar dois dias comigo?
一 Hmm... 一 pensei. Minha mente praticamente cuspiu as palavras diretamente para a minha garganta: bonito, gostoso, cheiroso e intrigante. 一 Ainda misterioso demais. Tem alguns pequenos detalhes que não fariam mal revelar, como seu signo ou seus passatempos. Por exemplo, você lê bastante, eu não sabia disso.
Ele sorriu e começou a arrumar sua cama improvisada no chão.
一 Bom, meu signo é aquário 一 falou. 一 E sim, um dos meus passatempos favoritos é ler, assim como escutar música clássica, tocar guitarra e escrever.
Sorri, ao perceber o que ele estava fazendo. Ele sabia que eu era sua fã, então estava se dispondo a responder minhas perguntas.
一 Qual é a sua comida favorita? 一 perguntei, disposta a seguir com aquilo.
一 Pizza, mas gosto muito de massa em geral. 一 Se abaixou para terminar de ajeitar e depois ficou de pé de novo. 一 Tenho uma ideia. Você pode me perguntar qualquer coisa, desde que me prometa que não contará a ninguém. Assim, eu posso te perguntar o que quero também.
Concordei com a cabeça, ansiosa. Esse era o auge da minha vida de fã, então não poderia me culpar por ficar emocionada.
一 Eu prometo 一 verbalizei.
一 Ok. 一 Ele derrubou o travesseiro e depois se deitou. 一 Como é o seu país?
Eu esperava uma pergunta mais complexa e pessoal, então me surpreendi. Olhei para o teto iluminado pela luz amarela do abajur, já que ele estava fora do meu campo de visão, e tentei resumir o Brasil.
一 É muito diferente da Europa. Apesar de ser quente o verão daqui, lá é mais ou tão quente o ano inteiro. Nós costumamos reclamar muito do calor, mas basta botar o pé para fora do país para sentir falta 一 sorri ao lembrar do meu primeiro ano e inverno em Birmingham. 一 Você disse que sou calorosa, mas acho que é uma característica nossa. Acho que o calor é o que nos torna pessoas tão intensas e calorosas, sabe? Ah, também há muita desigualdade social, só que isso não é bonito de se dizer.
Ele riu.
一 Se as pessoas são como você, então me parece um bom país para se morar 一 disse e senti meu coração tolo palpitar com esperanças de que fosse outro elogio. 一 Sua vez.
一 E como é o seu? 一 questionei a pergunta que já estava pronta na minha cabeça.
一 Os países daqui da Europa são bem parecidos, esteticamente falando. Mas... para resumir, pode-se dizer que é tão frio quanto o seu é quente 一 respondeu e senti que ele ainda sorria. 一 E qual a sua comida favorita?
Pensei nessa pergunta. Eu gostava muito de café-da-manhã, especialmente um que minha avó preparava para mim quando era criança. Desde que ela me apresentou, aos seis anos, se tornou minha comida favorita.
一 Achocolatado e pão tostado com queijo 一 respondi, sentindo saudades da minha avó. 一 Qual sua banda favorita?
Ele pareceu pensar por um instante.
一 KISS, mas mais por memória afetiva. Eu costumava fingir que era o Frehley quando era mais novo por causa da guitarra 一 respondeu e o escutei se mexendo no chão. 一 Já estou sem criatividade 一 ele riu e me peguei rindo junto. 一 Ok, vamos ver... 一 pensou um pouco. 一 Posso invadir um pouco sua privacidade?
一 Isso é uma pergunta? 一 brinquei, sentindo meu corpo tremer por debaixo do cobertor com a ansiedade que me afligia. Se ele precisou me perguntar antes, devia ser finalmente algo pessoal. 一 Devo contar como uma?
一 Não. 一 De novo, tive a impressão que ele sorria. 一 ‘Tá, lá vai... Você deixou um namorado quando fugiu de casa? 一 foi direto ao ponto.
Pelo jeito como perguntou, ele parecia achar que eu fugi por causa de um namorado.
一 Não. Eu nunca namorei, mas também não estava saindo com ninguém quando deixei minha casa 一 tratei logo de responder. 一 E você? Tem uma namorada?
一 No momento, não. Também não estou saindo exclusivamente com ninguém. 一 Ele pareceu pensar de novo. 一 Quando foi a última vez que você saiu com alguém?
一 Há uns três meses, eu acho. 一 Me acovardei em retribuir a pergunta porque não tinha certeza se era algo que queria mesmo saber, mas precisava fazer outra pergunta. 一 Como foi sua primeira vez?
Ouvi uma risada sacana ecoar pelo quarto e me toquei do que perguntei. Meu Deus. Eu que invadi sua privacidade com essa pergunta audaciosa. Me perguntei se realmente não era uma adolescente ainda para pensar logo nisso. Para que queria saber como ele perdeu a virgindade? Quis retirar o que perguntei, mas ele foi mais rápido em sua resposta:
一 Eu tinha quatorze anos e foi com minha primeira namorada. Nós dois não sabíamos de nada. Não é como se eu pudesse simplesmente caminhar até a locadora e alugar o primeiro cassete de pornô, como hoje em dia. Então foi uma merda. Eu acabei finalizando antes de conseguir achar o lugar certo 一 ele riu e eu o acompanhei. 一 Ei, nada de tirar isso desse quarto. Eu tenho uma reputação a manter! Sou um novo homem agora. 一 Mais uma risada, mas dessa vez não o acompanhei.
Sorri de lado ao imaginá-lo mais novo, tentando ter sua primeira experiência sexual. É realmente uma pena que Shandi e Raj não estejam aqui, isso renderia umas boas risadas. Iria fazer uma nota mental para contá-los assim que nos encontrássemos de novo. Essa história era boa demais para morrer comigo. Primeiro, eu teria que apresentar a eles, mostrá-los suas entrevistas e, depois de contextualizados, entenderiam a importância daquela confissão. gostava de pagar de comedor. Eu não duvidava que fosse, mas...
一 E a sua? 一 perguntou, interrompendo meus pensamentos.
Droga. Não calculei que ele poderia retribuir a pergunta. Por que logo eu fiz questão de levar aquelas perguntas para a conotação sexual? Era eu que estava me reprimindo por causa dele e não me toquei que aquele campo poderia ser perigoso.
一 Foi ruim também. Eu tinha acabado de fazer dezoito e me convidaram para uma festa cheia de pessoas que deviam ter minha idade atual. Estava meio revoltada com meus pais e o primeiro garoto que veio dar em cima de mim, dei estia 一 fiz uma careta ao me lembrar da cena. 一 Ele mal ligou quando eu falei que era virgem, fez tudo em prol de si mesmo e depois me largou sozinha no quarto de um desconhecido que era dono da festa.
Eu estava brava com meus pais por não estarem presentes nem no aniversário de 18 anos da própria filha. Então, entrei no Fbook e vasculhei alguns eventos que aconteceriam no dia. Parecia uma festa de jovens perdidos, nada como as de república que tinha em mente. Não tinha garotos fortes que jogavam futebol americano, apenas garotos que gostavam muito de drogas sintéticas e bebida barata. Foi um pesadelo.
一 Que imbecil 一 ele disse, parecendo genuinamente indignado. 一 Saber tratar uma mulher é o básico. Sinto muito por ter passado por isso. Espero que as outras vezes não tenham sido tão traumatizantes assim.
Sorri minimamente. Ele não tinha nada a ver, então não precisava dizer que sentia muito, mesmo assim o fez.
一 Não foram. Quer dizer, os homens não são tão carinhosos assim com casos de uma noite só, imagino que namorando sejam melhores. Mas é... foram melhores do que o da primeira 一 comentei.
一 Concordo. Não entendo o porquê, no entanto. Não acho que é preciso estar namorando para falar umas palavras bonitas, levar para jantar, fazer algo romântico ou só oferecer uma boa noite de sexo 一 falou e a mesma adolescente interior que me levou a fazer a pergunta sobre primeira vez sentiu suas bochechas esquentarem. 一 Sou adepto da ideia de uma noite só, porque posso me reinventar e tirar mais inspiração.
一 Então você é um homem de uma noite só? 一 perguntei.
Ele riu baixinho.
一 Na maioria das vezes, sim. Algumas vezes, eu saio mais de uma noite e talvez nos tornemos exclusivos. Não tenho nada contra namorar, já tive até um tempo atrás, mas não tenho mais. Só deixo me levar 一 revelou e suspirou. 一 E você? É uma mulher de uma noite só?
Parei um pouco e pensei antes de dar essa resposta. No entanto, não sabia o motivo de ter feito aquilo. Só havia uma resposta para a pergunta, visto que eu não havia namorado por não achar graça em pessoas mundanas.
一 Sim, eu sou. Não gosto de deixar espaço para arrependimentos 一 respondi e depois mordi o lábio inferior. Não tinha mais tanta convicção assim que as palavras deixaram minha boca. Eu estava desejando-o e não o queria só por uma noite. Não, uma noite não seria suficiente para aplacar o desejo que vinha nutrindo. Afinal, não era de ontem.
一 Hmmm. Por um lado, isso é bom.
Nossas perguntas acabaram por aqui, os poucos minutos que fiquei em silêncio serviram para ele começar a roncar. Meu estômago o acompanhou, porém não tive coragem de me mexer para pedir serviço de quarto e correr o risco de o acordar. Ele já tinha abdicado da própria cama, então não merecia ser perturbado.
Minha mente flutuou para o que ele quis dizer com sua última fala. Não parecia ter segundas intenções, eu achava. Também não parecia inocente, assim como tudo que ele falava. Era uma fala simples, mas que deu um nó no meu cérebro inebriado. Não sei se ele perguntou dando a entender um possível nós dois, mas eu com certeza respondi no geral. O que me levou a outro questionamento: se algo acontecesse, será que eu me arrependeria de não o querer só por uma noite? Bem, eu esperava muito que não. Estávamos presos um ao outro por um tempo, querendo ou não.

Capítulo 6 - Love In An Elevator

Os eventos começaram a acontecer com uma rapidez impressionante desde a manhã seguinte às perguntas que acordei sem no quarto mais uma vez. Consegui meu próprio quarto também no dia seguinte e tratei de mover minhas coisas para o quarto em outro andar enquanto ele estava pela cidade. Em pouco tempo, já tinha uma mala cheia e muito pesada. Foi difícil arrastá-la pelo caminho, sem ter dobrado uma roupa sequer e simplesmente ter socado tudo lá dentro.
conheceu Tiago antes da sessão de autógrafos. Eu gravei tudo para que ficasse registrado a emoção do garoto naquelas três horas exclusivas que eles ficaram conversando. Dei espaço para eles conversarem livremente e fui me sentar na outra extremidade do saguão do hotel. Börje só chegou na hora que tínhamos de seguir para a sessão de autógrafos.
Vi Fernando Ferreira 一 de uma banda portuguesa de metal gótico que eu particularmente gostava muito 一 em pessoa com apenas dezesseis anos ao lado de Tiago. Foi difícil me controlar para não dar um ataque de fã, mas azucrinar um adolescente com perguntas do tipo “de onde vocês tiraram a inspiração para aquele primeiro álbum, afinal?” quando ele nem tinha escrito ou formado a banda seria bizarro.
Muitos garotos passaram por nós esse dia, os tratava como amigos enquanto eles estavam claramente nervosos. Para resumir, era no mínimo fofo de se ver.
Ele não me procurou e no seguinte havia uns espaços na agenda que Börje deixou livres para o filho conhecer a cidade. Então, utilizei-os para passar quase o dia todo na área comum do hotel, analisando as pessoas, seus costumes, as revistas disponíveis, a programação na TV. Foi um dia de imersão no século 20 para mim.
A cada segundo que passava, me surpreendia mais por ainda estar ali. De alguma forma, pensei que iria embora depois do primeiro dia, para se assemelhar a um sonho. Porém, a maldição era clara quando dizia que juntaria duas pessoas que foram separadas pelo destino com a viagem no tempo e tinha a impressão de que talvez eu acabasse não voltando para casa. Ainda não sabia como me sentia quanto a isso, não estava disposta a deixar para sempre meus costumes, minha família e meus amigos para viver rumo ao desconhecido. No entanto, vinha procurando evitar um pouco esse pensamento pela ansiedade que me causava.
Infelizmente, meu desejo vinha crescendo e piorava quando estava perto dele. A culpa, em maior parte, se devia aos meses de abstinência que estavam ajudando a pesar a situação. Me sentia prestes a implodir, para ser bem sincera. A sensação era totalmente nova para mim, nunca senti essa necessidade de estar com alguém, apenas obrigação. Então, me preocupava não saber lidar muito bem com o que vinha crescendo dentro de mim.
Börje me pediu para entrar em contato com a embaixada do Brasil ao me ouvir falando que perdi meu passaporte. Nós viajaríamos no dia seguinte, então tive que pedir uma autorização através do fax do hotel para poder embarcar para a Inglaterra e depois para a Suécia, que seria onde eu resolveria minha documentação final. Seria uma burocracia para resolver minha documentação quando chegasse em Estocolmo 一 a cidade onde e Börje nasceram e viviam 一, mas definitivamente era um problema que queria me preocupar depois.
De manhã cedinho, voamos para Londres só de passagem, porque e Börje tinham vários amigos por lá e estavam indo encontrar com alguns. Em meio a muitas tarefas e compromissos, tinha toda aquela bagagem de ainda não estar no meu habitat natural. Eu me sentia exausta de passar esses últimos dias assim e não era a única, a julgar pelas olheiras deles, mas teríamos uma pequena folga aqui.
Passei o dia todo trancada no meu quarto de hotel, organizando a agenda, tirando os compromissos passados enquanto eles visitavam esses amigos. Para compensar o cansaço de ultimamente, eles decidiram se reunir em um bar naquela noite quente e me chamaram. Não iria mentir, eu fui só para ficar perto de . Eu mal o conhecia, mas sentia falta de ficar perto dele e só percebi depois de passar algumas horas no voo com Börje no meio de nós dois. Estava totalmente apaixonada e, enquanto me arrumava para ir até o bar, fiquei assustada com o quanto esse sentimento estava evoluindo depressa. Eu já o amava desde 2019, mas estar apaixonada assim era extremamente avassalador e inédito.
Quando cheguei sozinha de táxi, entrei no local e logo nou diretamente de uma mesa cheia. Aproximei-me. Börje foi o primeiro a me cumprimentar com um abraço, depois beijou os dois lados da minha bochecha, me deixando paralisada pelo contato. Toquei minha bochecha direita bem onde ele tinha plantado o beijo e meu cérebro apenas emitiu uma única resposta: Wow.
一 Pessoal, essa é a 一 disse, com o braço nos meus ombros, me deixando banhada por ele. Não que eu estivesse preocupada, minha atenção ainda estava nas minhas bochechas beijadas e no que aquilo pareceu despertar entre minhas pernas. As pessoas naram para mim e eu nei de volta com a mão que estava no rosto. Ele se sentou de novo na ponta do banco estofado típico de pubs antigos. 一 Vem, senta aqui. 一 Procurei com o olho e não encontrei lugar algum para ocupar.
Arregalei os olhos enquanto olhava para algumas mulheres da mesa e constatava que elas estavam sentadas no colo dos homens. Ele não podia estar falando sério. Corei ao me imaginar sentada no colo dele. Eu não podia, podia? A resposta era não, absolutamente não.
? 一 ele me chamou. Encarei-o, mortificada. As outras pessoas já conversavam, inclusive Börje na outra ponta da mesa. 一 Não vai querer se sentar? 一 Sua mão estava espalmada em um espacinho restante do estofado, mostrando que eu estava ficando com a imaginação bem fértil. Sentei-me ao seu lado, me amaldiçoando por estar reagindo assim.
Eram cinco caras, cinco garotas que pareciam ser namoradas deles, eu, Börje e . Eles eram diferentes, usavam cabelos de poodle e tinham toda aquela vibe glam metal dos anos 80. As garotas pareciam barbies da época, corpos de modelos dos anos 90 e extremamente loiras, com exceção de uma com o cabelo pintado de vermelho que estava claramente interessada em .
Alguns minutos depois, eu o observava conversar e, de repente, ele se virou para mim, sorrindo de alguma piada que lhe contaram. Fiquei totalmente vidrada pela proximidade. Eu podia visualizar os pontinhos de barba que ameaçavam aparecer.
一 O que vai querer? 一 perguntou só para que eu o ouvisse.
Você.
Balancei a cabeça para espantar o pensamento.
一 Água, com muito gelo 一 respondi, ainda encarando seus lábios, totalmente hipnotizada.
Ele assentiu e chamou o garçom com os dedos, quebrando nosso contato visual. Na verdade, era mais seguro pedir um caminhão pipa para apagar meu incêndio interior.
Nós três parecíamos visualmente deslocados ali, mas os dois se divertiam e riam bastante com eles. Eu me concentrei em observar a garota de cabelo vermelho sentada no colo de um e dando mole logo para outro. Não sou dona de , mas ela estava com o amigo dele! Aquilo era extremamente bizarro. E sim... eu estava com ciúmes. Com muito ciúmes.
Börje acabou voltando para o hotel meia noite, acusando ser velho demais para ter uma noitada completa com outros jovens, me deixando sozinha com seu filho e o resto da mesa que bebia. A verdade era que eu nunca gostei muito de bebida, mas aturava algumas, tipo tequila. E, naquele dia, eu larguei minha água, que basicamente se tornou gelo derretido, para virar alguns shots depois da meia noite 一 só para tentar me inserir no meio deles.
Eu não estava nem um pouco perto de ficar bêbada. Tinha plena consciência do que falava e fazia, mas minhas atitudes estavam mais impulsivas, algumas das minhas sensações estavam dormentes e outras completamente sas. O desejo que vinha reprimindo todos aqueles dias era uma das coisas que estavam sas feito a Times Square.
Foi assim que eu tomei a sequência de atitudes impensadas a seguir.
一 E se formos embora? 一 perguntei baixinho. Para minha surpresa, ele escutou e se virou para mim.
一 Já quer voltar para o hotel? 一 confirmou, seu hálito batendo no meu rosto.
Por que hoje tudo nele está me provocando?
一 Sim 一 respondi e não sustentei seu olhar, com medo do que poderia acontecer caso o fizesse.
Nós dois voltamos para o hotel de táxi em silêncio e eu estava basicamente subindo pelas paredes. Tinha a leve impressão de que isso era resultado dos beijos nas bochechas. Ah, e também da tequila, é claro.
Ao chegar ao hotel, percebi que estava aparentemente normal, mas, aos meus olhos, aquele cabelo levemente bagunçado de quem bebeu, seu olhar cansado e disperso, e aquele cheiro de vinho misturado com nicotina o deixavam irresistível. Esse combo foi o culpado por me fazer mudar o que eu deveria ter feito: apertar o botão 3 e 5 no elevador. Apertei só o 5, que era o andar do quarto dele. Ele me olhou, sem entender, e eu soube que meu autocontrole foi para o inferno naquele momento, quando ele simplesmente perguntou:
一 O que está fazendo?
Eu o ataquei.
Dei os dois passos que nos separavam e não esperei, apenas o puxei para se abaixar e colei nossos lábios. Não pensei no que estava fazendo, só pensei em calar o desejo que me ensurdecia. Beijei-o com vontade, com cólera, com paixão. Ele demorou alguns segundos para começar a retribuir da mesma forma, e, de algum jeito, eu soube que seus olhos estavam arregalados de surpresa enquanto os meus estavam cerrados. Eu não queria olhá-lo e correr o risco de perceber o que estava acontecendo, o quão errado viria a ser assim que eu me desse conta.
Quando abriu a boca e deu passagem livre para a minha língua, eu gemi em deleite. O gosto dele era exatamente o vinho e tabaco misturados com algo a mais, algo único. Suas mãos calejadas pelas cordas da guitarra tocaram minha cintura por cima da blusa e deslizaram, parando em minhas coxas, forçando-as para cima. Logo entendi o que ele queria e enrosquei minhas pernas em seu tronco, reduzindo nossa diferença de altura.
O elevador apitou, indicando que tinha chegado ao andar, mas nós dois estávamos muito ocupados para reagir. Ele me prensou contra a parede fina e sua língua começou a exigir o máximo da habilidade da minha. Minhas mãos deslizaram pelos seus braços cobertos pela jaqueta que havia me emprestado no outro dia, e puxei-o pela lapela para mais perto. Eu queria mais. Eu precisava de mais. Seus dedos, que sustentavam meu peso, apertaram minhas coxas, mostrando que me entendia muito bem.
Ele passou pela porta do elevador enquanto ainda me beijava. Abri seu pescoço para me segurar e ele se pôs a procurar pelas chaves nos bolsos. Sem suas mãos em minhas coxas, meu corpo deslizou um pouco para baixo a ponto de unir nossas virilhas. Por mais que houvesse o meu jeans e o dele no meio do caminho, foi tão repentino e mostrou que ele já estava pronto para qualquer coisa que viesse resultar dessa nossa escapada. Seus lábios deixaram os meus e um gemido rouco escapou por eles. Pisquei os olhos, assimilando o que veio dele. Era o som mais bonito do mundo. Sua voz era incrível, sua gargalhada era magnífica, mas seu gemido era tão libidinoso e gracioso ao mesmo tempo, que me fizeram parar para admirar. Ele abriu os olhos para procurar o motivo da minha pausa e sorriu ao me olhar.
Um sorriso absurdamente lindo.
一 O que foi? 一 perguntou com a voz rouca, os lábios inchados e manchados com o meu batom.
Uma parte do meu cérebro despertou ao ouvi-lo falando, eu sabia que estava me agarrando com meu chefe. Outra parte, a maior, a que vinha sofrendo, a que se dispôs a viajar durante os anos que nos separavam através de um site suspeito, estava simplesmente se agarrando com meu ídolo. Então, mandei a razão para o mesmo lugar que meu autocontrole. Apertei minhas pernas em volta da sua cintura e pressionei nossas virilhas de novo, sentindo o frio do material da porta nas costas enquanto ele jogava a cabeça para trás e me agraciava com mais um gemido.
一 Oh, céus. Você é perfeito 一 confessei, sem nem perceber o que saía da minha boca, e comecei a distribuir beijos pelo seu pescoço à mostra. Ele soltou uma risadinha baixa e sacana, depois me pressionou mais ainda contra a porta e me deu uma prova concreta da sua excitação, se esfregando em mim. Foi a minha vez de gemer, mas não fechei os meus olhos, fiz olhando no abismo dos seus .
一 Você me acha perfeito? 一 perguntou, dessa vez com um sorriso de lado que exalava puro charme e luxúria.
一 Acho 一 admiti, embrenhando meus dedos em seu cabelo que era tão sedoso quanto imaginei. Imitei seu sorriso. 一 Mas só quando sua boca está na minha.
Amanhã...
Amanhã eu deixo para pensar nessa pequena confissão, se eu me lembrar.
Ele me observou, seu sorriso se desmanchando, seus olhos descendo para meus lábios vagarosamente ao mesmo tempo que suas pupilas dilatavam.
一 Eu vou te beijar e te levar para o meu quarto. Se você não quiser isso, por favor, diga agora 一 murmurou.
Nós dois sabíamos que, no segundo que ele enfiasse a chave na tranca e colocasse nós dois para dentro do quarto, não seriam mais alguns amassos. Eu precisaria continuar convivendo com ele, teria que fingir quando isso terminasse que foi o suficiente, que não aconteceria de novo em prol do profissionalismo. Ele estava ciente disso, por isso havia me perguntado e em parte sabia que também era por causa do “arrependimento” que falei no outro dia. Estaria eu disposta a tratá-lo como mais um caso de uma noite? Analisei-o, suas pupilas dilatadas, suas bochechas coradas, sua respiração lerada, sua ereção contra o tecido da calça jeans. Era inegável que o queria também, visto que fui eu quem começou essa nossa dança perigosa por estar sofrendo com o desejo latente. Seria um desperdício parar, para mim e para ele. Se eu parasse, sabia que acabaria tendo uma recaída e fazendo de novo, até ter o que queria. Então, sim, eu podia fazer isso agora.
一 Me leva para dentro 一 pedi, acariciando seu cabelo incrivelmente macio.
Ele soltou o ar que segurava e fechou os olhos, parecendo aliviado. De certa forma, também estava e com expectativas do que poderia acontecer a partir daquele momento. Sem me soltar, colocou a chave e girou. Senti a porta que me apoiava se mover e depois seus lábios voltaram aos meus. Com certeza eu não esqueceria seus beijos tão facilmente quanto esperava, não quando sua língua acariciava a minha com tanta avidez ou quando parei e pensei em seu gosto tão deliciosamente diferente de tudo que já tinha provado. Entreguei-me tanto àquele beijo que me assustei ao sentir o colchão embaixo de mim. Ele pareceu não perceber, seus beijos desceram pelo meu queixo, maxilar, pescoço e logo estavam no decote da minha blusa. Eu estava beirando o desespero para tê-lo, não suportaria preliminar alguma agora. Alcancei o cós da sua calça, desabotoei e desci o zíper. Foi o suficiente para ele parar de beijar a curva dos meus seios e me encarar.
Um olhar foi o suficiente. Ele se levantou e começou a se despir. A luz que entrava pelo quarto era exclusivamente do poste atrás da persiana, mas ainda assim pude observá-lo tirar primeiro a jaqueta, depois a camiseta, a calça jeans, a cueca, até não sobrar nada o cobrindo. Não posso dizer com propriedade como era vê-lo nu por causa da parca iluminação, mas, pelo pouco que vi, tive certeza de que foi meticulosamente esculpido por Odin. Ele se aproximou, se encaixou no meio das minhas pernas, apoiou-se em uma mão e voltou a me beijar. Sua língua pediu passagem e eu concedi. Senti sua outra mão pousar na minha nuca e depois me puxar pra cima, me deixando sentada. Logo ele trabalhou em me despir, passou a blusa pelos meus braços, abriu o sutiã com uma facilidade notável e depois o jogou pelo quarto.
Minhas mãos passearam pelas suas costas, enquanto ele ainda me beijava, depois pela sua barriga e finalmente seu peito rijo que havia me apoiado no outro dia. Tocar era tão diferente de imaginar, eu lembrava quando o tinha visto sem camiseta pelas fotos, como meus dedos deslizaram pela tela do celular enquanto minha imaginação flutuava. Sua pele debaixo da minha palma parecia em brasa e era tão firme. Ele era meu. Por um momento, mas era.
Ele parecia dolorosamente envergado para poder me beijar, então deitei as costas no colchão mais uma vez e o trouxe comigo pelos braços. Ele se deitou por cima de mim, sua ereção tão perto do lugar que mais clamava por ela. A minha maldita calça jeans ainda estava ali e nos separava. Coloquei minha mão entre nossos corpos para tirá-la, acabei esbarrando nele e arrancando um gemido sôfrego. Ele parecia duro a ponto de incomodar. Parou de me beijar para arrancar a calça e a calcinha com certa ferocidade, atirando-as longe como fez com as outras peças. Depois, encaixou-se na minha entrada. Não havia como voltar dali.
? 一 chamei-o antes que ele pudesse dar início.
一 Sim? 一 Sua voz saiu mais rouca do que antes.
一 Só uma noite, certo? 一 perguntei, para garantir que ficamos entendidos. 一 Amanhã você volta a ser meu chefe.
一 Certo. Uma noite 一 confirmou.
E então ele empurrou os quadris, entrando em mim. Eu gritei. Ele estagnou no mesmo segundo, aparentemente achando que estava me machucando pelo som que emiti, mas foi de pura surpresa e prazer. Prendi os pés ao redor de seus glúteos e fiz força para que ele continuasse. De início, pude sentir seu receio, mas depois ele cedeu e continuou. Quando ele entrou totalmente em mim, me senti literalmente no céu. Foi como se tudo, de repente, estivesse certo e não houvesse nenhum problema no mundo. Sei que é egoísta pensar assim, mas naquele momento não conseguia pensar em nada melhor para descrever sem soar mesquinho da minha parte. Enquanto havia pessoas morrendo, havia pessoas vivendo e eu sentia que finalmente era uma delas. Ah, e como, de repente, era bom viver os anos 90.
Ele começou a se movimentar, arrancando gemidos de nós dois. De olhos bem abertos, vislumbrando o seu rosto, só consegui concluir que nós tínhamos o encaixe perfeito e que seria um desperdício não levar isso até o fim. Pude perceber que eu não estava muito longe do clímax, mas ele foi com calma. Segurava atrás dos meus joelhos e fazia um carinho ali. Seus quadris giravam, se enterravam fundo em mim e depois repetiam. Voltei a beijá-lo por estar viciada em seu gosto e por querer tê-lo por completo. Embrenhei meus dedos em seu cabelo, o trouxe para mais perto e aprofundei o beijo. Seus movimentos acabaram por ficar mais rápidos, acompanhando sua língua que travava uma batalha contra a minha e simplesmente foi demais para mim. Separei nossos lábios, minhas ancas foram de encontro com as suas e finalmente me senti atingindo o ponto máximo. Gemi seu nome como se fosse um segredo. E era, afinal. O fato de ninguém poder saber e amanhã termos que fingir que não aconteceu só tornava aquilo mais deliciosamente proibido.
Ele só conseguiu dar mais algumas estocadas até me seguir e tirar a tempo de ejacular na minha barriga. Seu corpo caiu ao lado do meu na cama e por alguns segundos o único som no quarto era o de nós dois tentando normalizar a respiração.
一 Foi bom para você? 一 perguntou, ofegante.
一 Sim. E para você? 一 perguntei, meio envergonhada por estar conversando depois de termos feito tudo isso.
一 Foi incrível 一 ele respondeu e depositou um beijo em meu ombro. 一 Estou tão cansado. Se importa se eu dormir um pouco?
Sorri, me empatizando pelo seu cansaço.
一 Tudo bem, eu também estou morta de cansaço. Nós andamos trabalhando muito, não é? 一 tentei soar natural, trazendo o assunto que temos em comum.
一 Para caralho. 一 Ele se virou para mim, seu polegar e indicador trouxeram meu queixo em sua direção. Observei-o através da penumbra. 一 Não precisa voltar para o seu quarto, se não quiser. Na verdade, eu adoraria que você dormisse comigo esta noite.
Não era muito o que eu tinha em mente depois de dizer que era só uma noite. Geralmente, eu fazia o que tinha para fazer, vestia minhas roupas e saía fora ou vice-versa.
Porém, seu tom foi tão doce e amável que bastou para me convencer. Fora que essa não era nada como as outras vezes. Eu estava tão apaixonada, que tinha a impressão de que sofreria caso ele me pedisse para ir embora. Não adiantava ficar ali, tentando mentir para mim mesma.
一 Posso dormir aqui 一 sussurrei. 一 Só preciso me limpar primeiro.
一 Ok. 一 Selou nossos lábios rapidamente. 一 Te esperarei aqui.
Levantei-me e fui até o banheiro. Tomei um banho para lavar a barriga e tirar um pouco do suor, mas sem molhar o cabelo. Meus pensamentos estavam nublados, sentia que estava adiando-os até acordar no dia seguinte e me dar conta do que fizera. E é claro: do que faria para esconder o que estava começando a sentir. Fora de cogitação deixar as coisas como estavam antes de tudo isso. Foi exatamente para evitar isso que fui até o fim.
Uma noite. Você só precisava de uma noite.
Repeti mentalmente enquanto voltava para o quarto. Optei por ficar sem roupa mesmo, aproveitando que estava escuro. Ele já dormia pela sua respiração pesada, mas sua mão estava espalmada onde eu estava deitada antes. Levantei seu braço, me deitei por baixo e pousei sua mão de volta na altura do meu estômago. Aquilo era íntimo demais e tinha a impressão de que eu deveria estar me incomodando, mas estava adorando cada segundo. Ele se remexeu, seus dedos deslizaram pela minha pele nua da barriga até a cintura e me trouxeram para mais perto dele.
一 Boa noite, 一 murmurou no meu ouvido com a voz embargada pelo sono.
一 Boa noite, 一 murmurei de volta, fechando os olhos.

***


Acordei com alguém batendo suavemente na porta. estava do meu lado, me fazendo lembrar que eu estava em seu quarto devido aos acontecimentos de ontem. Ele levantou e vestiu bem rápido uma calça de pijama, em seguida checando para ver se eu estava coberta o suficiente para abrir a porta.
一 Você não vai acreditar no que aconteceu. 一 Ouvi a voz animada de Börje, absorvendo as palavras com meu conhecimento medíocre em sueco. 一 Consegui adiantar nossas passagens para hoje. Vamos poder ficar alguns dias a mais em casa.
一 Bacana. Que horas é o voo? 一 perguntou , também em sueco, mas sem a mesma animação.
一 Daqui a duas horas, te acordei com antecedência para você poder ir acordar a .
Meu coração lerou quando ele disse meu nome. Por favor, aconteça o que acontecer, só não me veja aqui, sem roupas e dormindo com seu filho.
一 Ok, vou me preparar e a acordo 一 respondeu.
一 Espero vocês lá embaixo 一 despediu-se.
一 Beleza 一 disse.
A porta fechou. Soltei o ar que estava segurando, cobri o rosto com o cobertor. Essa foi por pouco. Imagina se ele me visse aqui! Eu nem teria cara para olhar para ele mais. Para quem corre o risco de ir parar na rua, eu andava arriscando demais. Praticamente rindo na cara do perigo.
Ele voltou ao meu encontro, parou ao meu lado e eu tirei o cobertor para olhá-lo.
一 Bom dia 一 ele disse e me deu um selinho. 一 Nós vamos para Estocolmo mais cedo. Se arrume, porque o voo é em duas horas e Börje está nos esperando lá embaixo 一 ele resumiu a conversa, achando que eu não tinha entendido ou escutado. Nós só íamos para a Suécia amanhã porque Börje só tinha conseguido passagens para esse dia, mas fiquei feliz e ansiosa que íamos para a casa deles mais cedo. Estava curiosa, afinal.
一 Bom dia 一 sorri ao vê-lo com o cabelo bagunçado pelo travesseiro, o tronco nu e a calça ao avesso. 一 Ele não percebeu que estou aqui, ? 一 perguntei para confirmar.
一 Não 一 ele sorriu de volta. 一 Ele pode até ter achado que tinha alguma mulher aqui por causa das roupas no chão, mas não desconfiou que era você.
Ai, meu Deus! As roupas! Fitei o sutiã branco bem perto do batente da porta e senti meu rosto esquentar.
一 Fique tranquila. Eu o conheço. Se ele tivesse achado que era você, eu perceberia de cara 一 garantiu. Eu suspirei e concordei com a cabeça, me sentindo mais confiante. 一 Vou tomar banho, você vem?
Espreguicei-me.
一 Pode ir, eu vou voltar para o meu quarto 一 declarei. Eu odiava ficar pelada durante o dia a ponto de revelar cada pedaço meu, tenho muitas inseguranças. Tomar banho com ele me enlouqueceria. Ele assentiu, sem demonstrar nenhuma emoção e saiu.
tinha entrado no banheiro e ligado o chuveiro, essa era minha deixa para voltar para o meu quarto e evitar um clima estranho depois de uma noite íntima demais. A partir daquele momento, aquilo nunca tinha acontecido e nem iria acontecer de novo. Principalmente chamá-lo de perfeito. Infelizmente, eu achava que essa seria uma lembrança que ficaria na nossa cabeça por um tempo. Porém, não podia chorar pelo leite derramado, mas trabalhar para não o derramar mais? Isso eu poderia e iria.
Catei minhas roupas do chão e as vesti, pensando se deveria deixar um bilhete pra ele. Decidi que sim, na escrivaninha tinha um bloco de papéis e caneta ao lado do telefone.
“Cumprindo com a minha palavra: nada aconteceu. Te espero lá embaixo, chefe.”
Não assinei, não é como se ele não soubesse de quem era.

Capítulo 7 - New Way Home

Eles voltaram pra Suécia, eu estava ali pela primeira vez. Estocolmo era linda e diferente dos outros países que visitamos, possuía mais verde e a temperatura era mais baixa — características de país nórdico que sempre associei na minha cabeça. Eu estava apaixonada por cada detalhe daquela cidade, era como se eu estivesse em processo de redescobrir minha nova casa naquele local. Mesmo que tivesse minutos que o avião tenha pousado, o sentimento de pertencimento estava presente tão forte que aumentava minha ansiedade pelo que estava por vir. Tudo me encantava, desde a marca do século 20 nos prédios envelhecidos com mãos de tintas de cores escuras que não eram mais apropriadas na minha época até o modo que todo mundo ali parecia muito alto e bonito.
Filmei todo o caminho do aeroporto para a casa dos , onde iríamos almoçar com a esposa de Börje e os irmãos de — a irmã dele ficaria famosa no futuro e ele produziria sua música, mas, por enquanto, ninguém sabia da existência dela porque aparentemente ela era só uma adolescente. Eu também fingiria que não sabia quem era ela, vinha cada vez mais me tornando profissional nisso. Acho que quando se é viajante do tempo, você está o tempo todo sobrevivendo, mas, enquanto está tudo correndo bem, o processo de sobreviver se torna natural. É por isso que sentia que estava me tornando profissional em fingir e as “meias verdades” saíam com naturalidade que quase poderia chamá-las de mentiras — o que me intrigava. Será que eu estava me tornando uma boa mentirosa?
O bairro era muito bem localizado com um comércio local bom e um parque pequeno ali perto. A casa era linda e grande. De primeira, o que se via era um jardim muito bem conservado, com plantas diversas — eu não entendo muito de plantas, mas sei dizer se elas são bem-cuidadas e aquelas definitivamente eram —, tinha espaço para duas árvores que pareciam bem floridas por causa da primavera iminente. Ao entrar na casa, o hall continha vários casacos pendurados que pareciam resquícios do inverno, já que estávamos usando apenas blusas de manga longa, e o chão era branco meticulosamente limpo. Börje nos conduziu para a sala de estar, onde tinha uma lareira limpa; na parede ao lado da lareira, uma TV que deveria ser cara pela quantidade de polegadas para a época, dois sofás que ficavam nas pontas do cômodo não-ocupadas e uma mesinha de centro com um tapete persa sob ela. Fui apresentada primeiramente à mulher de Börje que deveria ser apenas uns sete ou oito anos mais velha que eu, Karin, que não falava inglês fluentemente ainda, então me arrisquei com algumas palavras em sueco — surpreendendo , Börje e a mim mesma. Ela me fitou com olhos amorosos quando viu que eu conseguia formar frases na língua dela e não precisávamos dos dois traduzindo.
Depois que Börje e Karin deixaram a sala de estar, foi se sentar no sofá, eu o acompanhei me sentando em outro. Nós não tínhamos conversado muito naquele dia depois que saí do quarto, mas não porque estávamos nos estranhando, era por não ter nada que precisasse mais ser dito sobre o que aconteceu. Sentia que para ele era: “ok, nós dormimos juntos.” Para mim, internamente era: “eu dormi com meu ídolo, que também é meu chefe e agora estou conhecendo a família dele.” Estava completamente surtada, estava me controlando para ficar quieta porque sabia que quem estabeleceu isso fui eu, mas sabia que, se o assunto fosse minimamente abordado, seria capaz de explodir.
Ele pegou uma revista e Karin perguntou se eu queria beber Fläderblom. Eu itei, rezando para não ser bebida alcoólica, porque o estrago ontem foi o suficiente para o resto da vida. Eu não poderia arriscar acabar com a casca que criei com dificuldade falando de novo como ele era perfeito e tascando outro beijo nele.
Por mais que a oferta fosse tentadora, não. Só uma noite, era tudo que eu precisava.
— Você quer um pouco, ? — ela perguntou para ele, mostrando que também se referia a ele por e não . Lembrei que ele disse que as pessoas mais próximas usavam seu nome e me senti bem por ter conseguido estabelecer pelo menos essa barreira segura entre a gente. Eu o chamei de desde que o conheci, lá em 2019, também era mais natural continuar o chamando assim.
— Sim. Por favor — ele respondeu, voltando os olhos para a revista.
A casa era tão linda por dentro quanto era por fora, era possível perceber que a família dele era bem de vida. Porém, curiosamente não tinha uma foto em família. Tinha fotos de viagens, Börje e Karin juntos, mas nada de foto que continha os outros três membros. De alguma forma, isso me cheirava a frieza europeia.
— Não é como se eles fossem fugir! — Uma voz diferente soou pela casa, eu olhei para trás na direção do som que vinha da escada e dei de cara com uma adolescente que era a cara do . Logo atrás dela vinha outro garoto mais novo que era a cara dele também. Levantei-me para cumprimentá-los.
— Olá — a menina disse, em sueco, com um sorriso e estendendo a mão para mim. Levantei do sofá e apertei a mão dela. — Lilly.
— respondi, sorrindo de volta e soltando sua mão.
— Andreas — o garoto falou, tímido. Ergueu a mão e eu também apertei a dele. — Mas, se quiser, pode chamar de Dre. É como todo mundo geralmente me chama.
— Prazer em conhecer vocês — comentei em sueco.
— Seu sotaque é bonitinho, de onde é? — ela perguntou. O garoto passou a cumprimentar animadamente o irmão mais velho e era bizarro como um era a cara do outro. Aqueles três ali perto um do outro era impossível mentir e falar que eles não eram da mesma família. Börje e até valiam a tentativa. Apesar de que os genes de Börje eram bem fortes, seus filhos eram cópias dele.
— Brasil — comentei, me sentando de novo no sofá. Ela me acompanhou, sentando-se no sofá na ponta oposta a que estava.
— Ah! Uma brasileira! Dre! — chamou, elevando a voz e se virando para eles. — Ela é brasileira, você perdeu a aposta — ela falou para o irmão, que fez uma carranca e olhou para ela. — Regras são regras.
Ele veio até ela, entregou duas cédulas que estavam em seu bolso.
— O que vocês apostaram? — perguntei, com curiosidade.
— Melhor não perguntar isso — advertiu em inglês, mas ainda soando divertido.
Lilly deu uma risadinha sapeca, Andreas estava bravo ainda por ter perdido a aposta e se sentou no braço do sofá ao lado do irmão.
— Como assim? — questionei.
— A gente apostou se a próxima namorada dele seria outra sueca. Eu disse que ele está ficando famoso demais para isso, ainda mais fazendo uma tour para promover o disco novo, mas o Dre acha que ele é chato demais para sair da zona de conforto e arrumar uma estrangeira — Lilly explicou em inglês. Eu abri a boca, impressionada demais para falar qualquer coisa, e fechei de novo. Eles achavam que eu estava namorando o irmão mais velho deles?
bufou, desdenhando, e sem negar que estávamos tendo algo.
— Mas faz sentido mesmo, você é um chato. Aposto que foi ela quem tomou a iniciativa — Lilly disse para ele.
— Parem de gracinha, estão deixando a nossa convidada sem graça — Börje disse, passando pela sala.
— Está tudo bem — respondi, sentindo meu rosto queimar. Por que não conseguia negar também? Uma parte de mim, a parte apaixonada por , estava até gostando da sensação de ouvir aquilo. Eu estava pisando, ou melhor, sapateando no que estabeleci ontem.
Uma noite, . Você teve uma noite.
— Ouvi dizer que os brasileiros não têm vergonha de nada! É verdade? — ela perguntou.
— Não. Por que a gente não teria? — perguntei com certo ultraje por estar me sentindo envergonhada naquele segundo pelo que estava rolando ali.
— Minha professora de inglês disse que vocês sambam usando biquínis bem pequenos, que mostram coisas que os europeus nem sonham que têm — ela respondeu.
— Isso é no carnaval, mas nem todo mundo participa. Eu não participo. — Admiro o feriado, mas nunca fui de ir para bloquinhos quando morava no Brasil. Eu preferia eventos mais privados, pela fama dos meus pais e de ser fotografada fazendo algo fora da curva da normalidade. Apesar de que os paparazzis não viviam atrás de mim porque não ando muito com minha mãe ou meu pai e, se não estou com eles, sou apenas uma garota normal. Não sou como a Sasha, filha da Xuxa, que também é famosa.
— Carnival? — ela chutou para o termo que eles mais conheciam.
— Não, carnaval — falei com entonação no segundo “a”. — É nesse feriado, que é uma grande festa colorida, que as pessoas geralmente sambam. No resto dos dias, não é tão normal sambar. A menos que esteja tocando samba, é claro — expliquei.
— Carna...val? — ela disse de um jeito engraçado. Confirmei com a cabeça, sorrindo. — Depois você pode me falar mais desse evento?
— Claro — sorri, simpática.
Börje serviu copos para nós quatro, em seguida voltou para a cozinha. Dei um gole e percebi que era algo próximo de um suco, muito gostoso, uma mistura de doce e cítrico. Lilly me encarava enquanto pousava o copo em sua coxa.
— Então... Como você seduziu meu irmão? — ela perguntou indo direto ao assunto com certa inocência.
Quase cuspi o líquido todo que estava na minha boca.
— Lilly — censurou. Andreas ria da minha reação e tentava esconder com a mão.
Meu Deus! Ela era bem direta, hein? Coloquei o copo no descansa-copos.
— Ahm... Eu não.... — gaguejei, sem nem saber o que responder. (ou eu deveria dizer “traidor”?) após censurá-la, deu de ombros e voltou a discutir algo da revista com Andreas, que parava de rir aos poucos.
Ela olhou para os dois e depois ficou bem perto de mim, colocou a mão no meu cabelo como se fosse contar um segredo.
— Você gosta dele,? — ela sussurrou no meu ouvido. Mostrando que sabia que nós não namorávamos, mas que algo pairava no ar. Eu olhei meio sem graça para ela, mas não disse nada. — Tudo bem, eu também sou mulher. — Se afastou um pouco, dando um sorriso triunfante. — Vocês já se beijaram?
Fiz que sim com a cabeça. Não acreditava que estava tendo aquela conversa com uma adolescente, ainda por cima com a irmã do meu ídolo, mas tinha algo naqueles olhos que estavam me fazendo falar a verdade. Algo também relacionado com minha vontade de explodir.
— E já...? — ela disse se referindo àquilo. Arregalei os olhos, olhei para para me certificar de que ele não estava nem perto de ouvir essa conversa. Ela pareceu entender tudo. — Entendi, já. Nossa. — Ela estava visivelmente surpresa. — Como foi?
Olhei para ela, aqueles mesmos olhos familiares me encaravam curiosos e incisivos. Eu estava tonta e nauseada por conta de como aquela conversa evoluiu rápido demais, de carnaval para o que aconteceu ontem à noite. Estava escrito na minha testa, por acaso? Tinha um anúncio dizendo “eu dormi com ele ontem”? Não era possível que aquela menina era sagaz a esse ponto. Tentei pensar numa resposta para dar para uma adolescente, mas não sabia como fazer isso sem ser uma tarada. Era o irmão dela!
— Todo mundo para a mesa! — Börje gritou de outro cômodo. Minha vontade era beijá-lo por ter me livrado daquela conversa constrangedora.
— Depois continuamos — Lilly avisou e piscou um olho.
Se dependesse de mim, iria fazer o máximo para que não.
O almoço era rökt lax — fatias de salmão com batata cozida, endro e molho branco. Eu conhecia aquele prato muito bem, tinha um restaurante sueco perto do meu apartamento em Birmingham, eu comia lá quando tinha dinheiro e queria ostentar fazendo um agrado para mim mesma. Parecia realmente um outro tempo pensar em pequenas coisas assim que costumavam ser normais. Comemos em silêncio, Börje estava em uma ponta da mesa e Karin na outra, como bons chefes de família. Andreas estava de frente para mim, Lilly ao seu lado e eu estava no outro lado da mesa perto de . Ela não tirava os olhos de mim e dele, provavelmente arquitetando o que ia falar a seguir para me matar de vergonha.
— Como vocês dois se conheceram? — ela perguntou, mostrando que eu tinha razão.
Enfiei uma grande quantidade de batata na boca para não ter que responder. Aquela menina ia me fazer ter um ataque de vergonha.
— Nos conhecemos em Portugal. — Foi quem abriu a boca para respondê-la em sueco. — Ela era uma fã que não tinha para onde ir. Por isso, ela precisava de emprego e de um lugar para ficar. A gente conversou e agora ela está trabalhando como minha assistente. Satisfeita ou vai perguntar mais alguma coisa que faça a garota levantar e sair correndo de tanto desconforto? — disse com severidade.
Engoli o bolo de batata que quase ficou preso na minha garganta. Lilly soltou uma risada debochada e notei que seu sorriso parecia muito com o dele. O resto comia tranquilamente, como se o possível embate fosse algo corriqueiro.
— Assistente... Que caridoso. Uma pessoa aparece falando que não tem teto, você imediatamente oferece o seu teto — ela respondeu também em sueco.
Achei meio rude a forma com que ela falou, mas concordava. Era meio improvável que alguém me itasse da forma com que ele itou, ainda mais por eu ser sua fã e ter mentido logo de cara. Bom, eu não me itaria, se estivesse no lugar dele.
— E você acha que eu deveria ter feito o quê? — rebateu, ainda impassível. — Era alguém precisando de ajuda e eu podia ajudar.
— Não, era uma mulher precisando de ajuda e é claro que você se prontificou a ajudar — falou com um toque de sarcasmo pingando em seu tom de voz.
Meu rosto imediatamente esquentou.
— Lilly, pare imediatamente, isso é desagradável — interveio Börje em inglês, erguendo os olhos de seu prato. — Além do mais, eles se conheciam de antes, a fugiu de casa porque estava grávida do e acabou perdendo o bebê no caminho.
Solucei, nervosa demais com aquela mentira emergindo das profundezas do inferno. Foi isso que ele contou para acobertar minha história maluca? e Börje comiam tranquilamente. Lilly, Andreas e Karin me olhavam como se eu tivesse um peixe morto na cabeça.
— Eu... sinto muito — ela disse, sem saber como agir e se acreditava naquela história.
— Foi um erro e não vai voltar a acontecer — respondeu.
Essa, com certeza, foi uma resposta grosseira. Tive a impressão de que ele falava sobre nós dois, dando um basta no que realmente poderia resultar de ontem à noite. Não sei dizer o motivo para estar me sentindo magoada, mas eu estava.
Comemos e esperamos até a última pessoa terminar — no caso, Andreas, que ainda me observava como se tivesse algo morto na minha cabeça, principalmente depois da declaração de Börje. Bebíamos café na sala de estar, a mesma que estávamos antes de irmos almoçar. Em algum ponto, Lilly me carregou para o seu quarto levando a xícara cheia, sob o olhar feio de seu irmão mais velho. Ele deveria ter me salvado enquanto era tempo, mas apenas me observou.
— Vamos continuar nossa conversa — ela disse, fechando a porta.
— Ahm, Lilly... não me leve a mal, mas é que o seu irmão não parece gostar muito que a gente fique conversando sobre nós dois — falei. Ah, e porque eu acabei de presenciar um embate lá embaixo de vocês dois por minha causa e você foi muito grosseira. Com razão, mas ainda grosseira. Completei mentalmente.
— Ele é um idiota, não ligue para ele. Você é tipo luz que me apareceu no fim do poço, porque eu tenho 17 anos e não tenho ninguém para conversar sobre sexo. Karin e eu não temos tanta intimidade assim e eu prefiro alguém mais jovem que me entenda — ela disse tudo rápido demais. Karin era bem jovem, mas entendi que ela simbolizava a madrasta e não a amiga para Lilly.
— É o seu irmão, você não vai querer ouvir essas coisas sendo que o cara em questão é ele — justifiquei.
— Melhor meu irmão do que meu pai, confie em mim. — Ela se sentou na cama. Analisei o quarto e era um cômodo típico para adolescentes, as paredes e algumas decorações eram rosa, havia pôsteres de ídolos dos anos 80. Tinha uma escrivaninha bagunçada com vários papéis, no chão tinha uma pilha de roupas e um guarda-roupa tombando com a bagunça de dentro.
Eu já tinha passado por aquilo e sabia muito bem que era confortável estar assim no próprio quarto porque, quando se é adolescente, você se sente bagunçado o tempo todo.
Ela pediu para que eu me sentasse na cama de solteiro com lençol cor de rosa e seus olhos se tornaram pidões quando viram que eu estava relutante em me entregar. Ela parecia o maldito gato de botas. Para manter uma distância segura daqueles olhos, arrastei a cadeira da escrivaninha. Ela recolheu rapidamente as roupas que estavam ali, jogando tudo no chão.
— ‘Tá. O que você quer saber? — perguntei, me rendendo. Ela parecia realmente contar comigo para o assunto em questão.
— Dói? — ela perguntou, inocentemente. Abraçada com uma joaninha de pelúcia.
— Na primeira vez sim, depois não. Por isso, você tem que procurar alguém que te respeite...
— Blá, blá, blá — ela me interrompeu revirando os olhos. — Disso já sei, . Nunca abriria minhas pernas para um babaca. Não precisa falar que nem uma adulta.
Concordei com a cabeça, tinha que me acostumar com esse jeito dela de falar tudo na cara. Nunca gostei muito de pessoas assim, mas, por incrível que pareça, com ela não me causava repulsa. Só me fazia querer entendê-la mais.
— Você era virgem quando conheceu meu irmão? — ela perguntou com inocência.
— Não — respondi, me controlando para não fazer uma careta ao relembrar minha primeira vez.
— Ele foi bom para você?
Senti minhas bochechas esquentarem, agora flashes da noite passada ressurgiram e eu deixei com que invadissem minha visão. Eu disse que estava prestes a explodir e que aconteceria, se o assunto fosse abordado; era por isso que nem relutei a responder:
— Muito — falei, pensativa, e definitivamente querendo repetir. Por mais que eu tenha dito que nada mudaria e prometido que seria só uma noite, ele foi bom demais, e eu não era de ferro.
Ela soltou uma risadinha afetada.
— Foi só uma vez?
— Sim. E será a única.
— Hmmm... — ela parou um pouco e me analisou. — Deixa eu ver se entendi. Vocês fizeram e você acabou perdendo o bebê, é isso? — perguntou. Assenti, sentindo meu rosto ficando vermelho pela mentira. É, eu não tinha me tornado boa mentirosa. Ela pareceu não notar minha pele pegando fogo. — Agora você é a assistente dele, depois de se envolverem. — Coçou o queixo. — Isso não vai funcionar, já parou para pensar que vão morar na mesma casa? Só você e ele.
Não. Não tinha parado pra pensar, porque, para mim, ele ainda morava nessa casa com a família. Me senti inocente por pensar que um homem de 24 anos, em 1990 e independente financeiramente, moraria com o pai.
— Escute. Não é bem assim — ensaiei outra mentira para convencer a nós duas. — Nós estávamos sob efeito de álcool quando aconteceu, tornando toda a atmosfera atípica.
O nó de excitação abaixo do meu umbigo que estava me incomodando provava que tudo não passava de mentira. Não foi atípico nada, eu o desejava desde que cheguei aqui. Porém, sabendo do que ele era capaz de me fazer sentir, tudo estava pior.
— Mas você gosta dele — ela sorriu de lado.
Ok, eu não podia negar isso para ela porque não estava com paciência para mergulhar em um diálogo que precisaria mentir mais ainda para convencê-la e que só iria acabar quando uma de nós duas cedesse. Lilly não parecia ser do tipo que cedia.
— Sei disfarçar — me limitei a dizer apenas isso. — Pode guardar esse segredo, certo?
Ela concordou com a cabeça, pensativa demais de novo. Bem, esperava que ela realmente guardasse, não queria que ele pensasse que nutri sentimentos depois da nossa primeira e única vez, porque, provavelmente, é o que passará pela sua cabeça. Isso resultaria em uma grande confusão.
— Agora que você já percebeu que Börje é nosso pai, estou falando isso porque sei que ele não deve ter te falado, vou te contar uma coisa: ele tinha treze anos quando nossos pais se separaram. Foi uma situação muito maluca, tivemos que nos separar também — quebrou o silêncio que deve ter durado mais ou menos um minuto. Suspirou. — Ele, Dre e meu pai se mudaram para um apartamento. Eu fiquei com minha mãe. E, droga, ela era uma péssima mãe — o tom de voz dela ficou meio triste e afetado. — Péssima mesmo. Ela não me queria mais e me mandou morar com eles pouco tempo depois. Nunca tive um referencial feminino na minha vida, eu só tinha sete anos e cuidou de mim e de Dre enquanto nosso pai trabalhava feito um condenado para nos sustentar.
Suspirei, com pena dela. Eu não fazia ideia de como era me sentir assim, meus pais não foram lá muito presentes durante a minha vida, mas querendo ou não eles ainda estavam ali de algum jeito. Ao ver os olhos tristes dela, percebi que pelo menos meus pais tentavam me encaixar na agenda lotada deles às vezes.
— Sinto muito — falei, sinceramente.
— Está tudo bem — ela enxugou uma lágrima que insistia em cair. — Deve estar me achando maluca por falar isso para uma menina que acabei de conhecer, mas quero chamar sua atenção porque vocês vão morar na mesma casa e meu irmão é minha vida. Eu quero vê-lo feliz — sorriu minimamente. — Bem, acho que está faltando mesmo um toque feminino para transformar aquele viciado em trabalho em homem de verdade.
Sorri e peguei a mão dela. Ela ainda achava que nós ficaríamos juntos pela forma que falou a última frase, mas, ao contrário de quando estávamos lá embaixo, agora eu precisava negar. Pelo bem do emocional dela. Eu não faria promessas de me comprometer romanticamente porque nem sei se ele me queria ou o que estava sentindo. Afinal, fui eu quem impôs essa barreira entre a gente, para não dar espaço para arrependimentos.
— Não posso me comprometer com isso no quesito romântico, mas pode contar comigo para tentar fazer isso como uma amiga — respondi.
— E caímos em um questionamento importante — ela semicerrou os olhos. — Será mesmo que vocês vão conseguir ficar só amigos? — ela perguntou, se levantando. Imitei-a. Abriu os olhos de novo e sorriu. — Obrigada, . E desculpa por ter sido grosseira lá embaixo — disse e eu concordei com a cabeça, mostrando que estava tudo bem. Não guardaria mágoas de uma adolescente, ainda mais a irmã do meu ídolo. — Vou reservar algumas perguntas para a próxima vez que nos vermos. Se prepare, porque vão ser piores — brincou.
Nós duas rimos e descemos as escadas.
estava de pé, acompanhando com o olhar nós duas descermos as escadas.
— Qual foi o tipo de lavagem cerebral que ela fez dessa vez? — perguntou.
— A gente só estava falando coisas de mulher, seu bobão — ela respondeu.
Ele semicerrou os olhos para ela, igualzinho ao que ela tinha acabado de fazer para mim. Foi bizarro ver o quanto os dois eram parecidos.
— Sei — respondeu, desconfiado. — Vocês deixaram tudo certo lá, ?
Ele perguntou para os dois irmãos. Os dois responderam positivamente e deram de ombros.
— Então vamos? — ele perguntou para mim, eu concordei com a cabeça e me despedi de todos da casa, exceto por Börje, que ia levar a gente.
morava mais no centro de Estocolmo ainda, onde a cidade tinha mais cara de capital e mais prédios “novos”. Ele carregou a mala dele e a minha escada acima, depois destrancou a porta e entrou. Respirei fundo antes de encarar o que me esperava. É só por um tempo, até eu conseguir um espaço só meu.
Entrei no apartamento e fechei a porta, trancando logo em seguida.
Era isso, eu estava oficialmente morando com meu ídolo.

***


O apartamento dele era claramente masculino pelo pouco que observei do corredor, assim que fechei a porta. Um cachorro pulou em mim no momento em que entrei, foi um pulo tão alto que acabei pegando-o nos meus braços. Ele era de porte médio, então o segurei toda desengonçada enquanto ele lambia todo o meu rosto.
— Esse daí é o Solveig — falou.
Eu olhei para em choque. Quê? Solveig? Igual ao elefante Solveig? Isso era uma brincadeira, só pode ser. Talvez uma infeliz coincidência? Não podia significar nada.
As paranoias da minha cabeça gritavam: destino, divindades, maldição.
O cachorro branco e cinza me olhava animado, como se tivesse extremamente feliz por me conhecer e totalmente alheio à minha preocupação. Fiz carinho em sua cabeça e dei um beijinho no focinho dele que retribuiu com mais lambidas.
— Bom, pode ficar à vontade, porque agora a casa também é sua — disse entrando mais ainda na casa. — Você pode ficar com o quarto.
Segui-o. Passei pela sala — o cômodo tinha muitas informações, uma TV antiga com um videocassete, um móvel de madeira escura ao redor dela com inúmeros vinis e fitas cassete, um toca disco e um som toca fitas em uma prateleira acima da televisão, um sofá xadrez pequeno comparado ao de Börje. O chão possuía carpete e a cozinha era americana; do lado do sofá, uma pequena varanda do outro lado da porta de vidro. Em seguida, passei por um quarto no corredor que aparentemente era o estúdio dele porque era possível ver alguns instrumentos de relance pela fresta aberta da porta, um banheiro do lado contrário da parede. Entrei no quarto que ele estava. Ali tinha uma cama de casal, mesas de cabeceira, guarda-roupa, em um lado da parede uma TV de girar o botão — a qual eu já sabia que não me dava bem — e, ao lado, a porta do banheiro. Tudo meticulosamente no lugar, mas tive a impressão de que nem sempre era assim e alguém que não foi ele organizou tudo. Provavelmente Lilly.
— E você vai dormir onde? — perguntei.
— No sofá — ele respondeu, tirando algumas coisas do guarda-roupa. — Toalha — estendeu para mim e eu a peguei. — Os lençóis da cama são novos, pedi para Lilly trocar anteontem.
— Você vai abdicar da sua própria cama de novo? — perguntei com certo divertimento.
— A menos que você queira dormir comigo de novo — sorriu de lado e voltou a se virar para mexer no guarda-roupa. Tinha que admitir que foi uma boa piadinha, mas meu corpo manifestou que levou a sério e que queria muito.
Trancar-me no quarto me faria ficar longe dele. Eu não confiava mais em mim mesma, então seria o melhor.
Ele guardou a mala no guarda-roupa e tirou algumas coisas para conseguir se virar sem entrar muito no quarto, por enquanto. Fechou a porta quando saiu e eu finalmente me joguei na cama. Aquilo seria definitivamente complicado. Toda vez que ele passava por mim eu lembrava de como era sentir as mãos dele passando por mim, a forma que ele me olhou e a textura do cabelo dele nas minhas mãos. Faria qualquer coisa para repetir aquilo, mas não podia. Era totalmente errado. Dessa vez, tinha até mesmo um motivo para ser errado: eu precisava de um teto e como ficaria ali se ele simplesmente cansasse de mim? E se eu não tivesse sido boa o suficiente para ele e ele se arrependesse depois?
Lágrimas encheram meus olhos e cegaram minha visão. Não acreditava que eu estava chorando por uma noite! Eu nunca fiz isso antes. Ele não tinha obrigação emocional nenhuma comigo. Quantas pessoas não dormem umas com as outras e simplesmente fica por isso mesmo? Eu faço isso! — ou eu deveria dizer “fazia”? Depois da noite passada, acho que não vou querer me envolver com mais ninguém. E, afinal, eu sabia que não seria fácil fazer com que ele me correspondesse, não era só cair do céu na vida do garoto, dormir juntos e pronto.
Estava sendo tão mesquinha que até mesmo esqueci o motivo de estar na sua vida e em sua casa: meu emprego. Se nós ficássemos juntos para valer, eu perderia meu trabalho. Não daria para separar as duas coisas e nosso trabalho seria prejudicado. Então era melhor jogar no mais seguro.
Mas incomodava tanto.
Lembrei do site que falava sobre as almas gêmeas e as lágrimas começaram a deslizar pelo meu rosto.
Contrariando o que ele dizia, achava que minha missão ali não era ser um par romântico para e sim alguém para mudar o passado. Tudo conspirava para que eu parasse de buscar uma atração romântica vinda dele, como: meu emprego, morar com ele, nossa recaída, o fato de eu não saber se vou embora, sua morte precoce. Se aquela maldição estivesse mesmo certa, eu o faria sofrer voltando para meu tempo, caso ele venha a me amar um dia. Então, eu tinha que mudar totalmente minha abordagem para tentar salvá-lo. Precisava ser apenas sua assistente e começar a observá-lo de perto, ao mesmo tempo que construía minha vida do zero nesse país novo. Quando me mudei para a Inglaterra, senti que estava construindo minha vida do zero, mas agora, olhando para o teto do quarto do meu ídolo que me fez viajar vinte e nove anos, a sensação é totalmente inédita. Eu precisava salvá-lo, essa era minha única certeza.
E é... Eu ia me ater a isso.
Não vou dizer que o esqueceria por completo, porque é impossível, mas faria o possível para esquecer o seu toque e seus beijos.
E rezar para que desse certo.

Capítulo 8 - Heart of Glass

Dormir depois de chorar era uma das coisas que mais me aconteciam. Meus olhos acordavam inchados, meu nariz ficava vermelho e entupido, mas a vontade de chorar pelo menos ia embora.
Aparentemente, era para eu tomar uma parte do guarda-roupa, já que ele tinha tirado algumas roupas propositalmente para eu colocar as minhas. Então organizei-as, sem invadir muito o espaço dele.
Peguei uma muda de roupa e outras coisas para poder tomar banho. Lavei o cabelo e me ensaboei preguiçosamente. Adiando o momento que eu teria de sair do quarto para não parecer antissocial. Porém, tem uma hora que não tem jeito, então abri a porta e deixei minha toca.
Já era noite, parecia oito horas pelo sol que começava a se pôr no horário de verão e não estava na sala, nem em algum lugar visível da casa. Refiz meu caminho e a porta do estúdio estava fechada. Tudo indicava que ele estava lá, era ali que toda a magia acontecia. Grudei meu ouvido na porta e ouvi ele dedilhando o violão em uma melodia conhecida, And I Love Her dos Beatles. Ele parava um pouco, depois continuava — provavelmente divagando.
Eu não iria incomodá-lo, é claro.
Procurei Solveig — que com fé era apenas um cachorrinho inocente e não uma divindade que me jogaria para o século 19 —, mas ele não estava em nenhum lugar visível. Provavelmente estava com seu pai. Desci para procurar algum restaurante pelas redondezas e para clarear a mente também. Era uma noite típica da primavera nos anos 90, as pessoas conversavam alto pelas ruas com seus estilos de roupas, suas gírias, seus trejeitos. Pareciam todas procurar uma nova aventura, era uma década jovem. Eu definitivamente não me sentia em casa, onde todos andavam por aí com os olhos em seus smartphones e pareciam grosseiros demais.
Tinha um mercado ali perto que vendia kebab, pedi quatro e, enquanto ficava pronto, andei pelos corredores para comprar algumas coisas para conseguir fazer algumas receitas.
Os itens nos mercados eram diferentes do que eu estava acostumada, a maioria das marcas ou produtos não existia e tive que procurar alternativas. No final, deu certo e paguei com o dinheiro que ele me deu quando me contratou e que eu havia trocado na casa de câmbio do aeroporto. Depois fui embora. Ainda bem que as coisas nessa época eram incrivelmente baratas, então o dinheiro rendeu e sobrou até que bastante.
Quando voltei para o apartamento, ele estava no mesmo lugar. Resolvi assistir televisão na sala para esperá-lo, até que já passava de meia-noite e minha barriga roncava. Levantei-me e fui comer sozinha.
Comi devagar, esperando por ele. No entanto, ele não apareceu. Arrumei tudo e deixei a sacola com os outros dois em cima da pia para ele ver quando sentisse fome, desliguei a TV e fui dormir. De repente, me senti incrivelmente solitária e ele me pedindo para dormir com ele na noite passada invadiu meu pensamento, tratei logo de espantar o sentimento.
De manhã, eu acordei bem cedo para fazer geleia e panquecas no estilo americano. Lembrei que ele gostava por causa de uma das músicas do segundo álbum solo, que seria lançado só em 1997. Ele estava dormindo na sala, virado para o lado do encosto, deveria ser desconfortável, porque boa parte das pernas dele sequer cabiam no sofá.
Quando estava tudo pronto e eu estava limpando a bagunça que fiz, ele entrou pela porta da cozinha com o cabelo bagunçado e vestindo uma calça de pijama listrada e uma camiseta do Aerosmith.
— Que cheiro é esse? — ele perguntou, espiando.
— Não está reconhecendo? — perguntei, jogando o pano de prato em cima da bancada e tirando o prato de cima da comida. — Panqueca com geleia de morango.
— Nunca comi, mas parece ser gostoso — comentou, analisando as panquecas.
— Como assim nunca comeu? Você disse na... Ah — falei rápido e depois surgiu a possibilidade na minha mente de que talvez fosse eu. Naquela música, poderia ser eu quem fazia panquecas e geleia para ele. Uau. Será?
Era melhor eu ficar calada.
Se fosse o caso, isso dizia muito. Minha presença ali naquele século já estava premeditada desde o começo. Solveig entrou pulando na cozinha, pegava uma vasilha cheia de ração no armário para servir o pote dele, alheio à minha cara de choque com a revelação. Servi um pouco das panquecas para ele em outro prato.
— Obrigado — ele disse, pegando o prato e se sentando na bancada da cozinha. Cutuquei um pouco da minha, mas de repente fiquei sem fome com a chance de ser a pessoa que ele falava na música.
Eu lembro claramente que ele falava que sentia falta do dias das panquecas com geleia, que desejava que a pessoa estivesse bem. Nosso futuro juntos não poderia mesmo ser nada promissor, combinava perfeitamente com o que a maldição prometia. Ele sofria naquela música e queria desaparecer, senti angústia pela possibilidade de ser eu a magoá-lo daquele jeito.
Isso só serviu para corroborar o plano de tentar não me aproximar romanticamente dele de ontem. Eu poderia fazer com que ele não passasse por isso. Se fosse realmente eu na música, obviamente. Só poderia responder por mim e deixar viver uma vida normal, como se nada entre nós tivesse acontecido. Se ele tivesse que sofrer, que sofresse por alguém da mesma época dele, não uma viajante como eu.
Apesar de que, depois do almoço de ontem, uma parte minha gritava que ele nunca se apaixonaria por alguém como eu. Ele deveria ter consciência de que foi apenas uma noite, devo ter sido só mais uma na sua lista. Então, apenas mais uma coincidência, assim como Solveig ter o mesmo nome do elefante mágico que provavelmente me jogou aqui. Eu não iria parar no século 19, não iria se apaixonar por mim e em breve irei embora depois de ter certeza de que ele estava salvo. Assim que eu descobrir como fazer para sair daqui.
— Isso daqui é muito bom — ele comentou de boca cheia.
É, estou dolorosamente ciente de que essa comida o agrada até demais. Dei um sorriso amarelo. O único barulho audível era Solveig comendo a ração.
— Você pode dar uma volta pela cidade, se quiser. Não precisa ficar esperando por mim, não sou a melhor companhia quando entro em processo criativo — ele disse, devorando o restinho das panquecas de uma vez só. Ele as comeu tão rápido que mal consegui acompanhar.
— Na verdade, eu tenho algo em mente para você hoje — anunciei, tomando a liberdade que ele me deu de organizar sua agenda. — Vamos ao médico checar a sua saúde — falei como se eu fosse a agente dele, não a garota que morava com ele.
— Eu tenho 24 anos, não 60 — respondeu, deixando bem claro o que pensei anteriormente.
No entanto, estou irredutível.
— Ah, é? Então por que você tem problemas de saúde que te impedem de fazer algumas coisas? — cruzei os braços, me impondo.
— Como assim? — ele franziu o cenho.
— Você sabe o que estou falando. Do seu problema no coração.
Ele ficou sério, seus olhos ficaram nublados imediatamente.
— Como você sabe disso? Nunca contei para ninguém — sua voz engrossou.
Falei sem pensar, é claro. E me lasquei, não dava nem para falar que Lilly tinha me contado. Eu nem sabia que ele já sabia. Joguei verde. As pessoas começaram a falar isso depois que ele morreu, então era verdade.
— Circula um rumor por aí que você não faz shows porque tem problema no coração — revelei o que sabia.
— Hm — ele me analisou, dava para ver que ele não acreditou, mas também não queria continuar aquele assunto. — Não é totalmente verdade, mas não quero falar sobre isso. E não posso ir hoje, estarei ocupado.
, você vai. Sua agenda está praticamente vazia pelos próximos dias — rebati, autoritária.
— Por isso que vou usá-los para trabalhar compondo — ele respondeu, levantando e deixando o prato na pia. Ele ia saindo, mas o puxei pelo pulso.
— Por favor — pedi, olhando sinceramente no fundo dos olhos dele. Ele sustentou o olhar e parecia estar enfrentando uma batalha interna.
... — ele soprou, baixinho, em aviso.
— Por favor, ? — arrisquei seu nome com toda a meiguice que eu tinha guardada para situações como essa.
Ele suspirou e fechou os olhos. Quando abriu, estavam nos habituais, mas com um brilho diferente. Usei aquela estratégia só para convencê-lo e aparentemente tive sucesso. Virei a cabeça, esperando uma resposta.
— Ok, eu vou. Mas só se você me prometer que vai tentar fazer panquecas com geleia todas as manhãs.
— Tudo bem, parece justo — sorri e larguei o pulso dele. — Temos que sair daqui a 30 minutos para dar tempo de conseguir um táxi...
— Relaxa, eu tenho carro. Não precisamos pegar táxi aqui.
— Então te dou 40 minutos para estar pronto aqui na minha frente — falei, autoritária.
Ele saiu. Ouvi-o resmungando na sala, o que me fez rir. Olhei pra Solveig que estava sentado do lado da ração de boca aberta, parecendo estar sorrindo também e pisquei um olho para ele. Estávamos começando a fazer progressos, afinal.

***


Entramos no Volvo cinza conversível consideravelmente novo para a época. Claramente já tinha uns anos de uso e era um modelo do início dos anos 80, mas ainda era bem arrumado e parecia clássico. Ele engatou a ré e tirou o carro da baliza na rua. Ligou o rádio, a voz do locutor pairou no ar, coincidentemente tocaria a seguir Drive do The Cars. Conhecia muito bem essa música, ela era uma das minhas favoritas dos anos 80, escutei-a sem parar durante um bom tempo. dirigia tranquilamente, totalmente alheio à animação que me dominava a cada segundo. Em um surto repentino, girei a manivela e abri o vidro inteiro.
Nós entramos em uma rodovia vazia, coloquei minha cabeça para fora para admirar a paisagem de um país nórdico que era simplesmente de tirar o fôlego. Todo aquele verde intocado nos morros que passavam pela janela me encantava. A sensação foi a de finalmente estar no lugar certo na hora certa.
— Baixa a capota — pedi, colocando a cabeça para dentro.
— O quê? — ele perguntou, aumentando a voz por cima do vento que entrava pela minha janela aberta.
— É um conversível, não é? — perguntei mais alto, ele assentiu. — Então baixa a capota.
A música começou ao mesmo tempo em que ele apertou um botão no painel e senti o vento chicotear meu rosto de uma só vez. Soltei um gritinho de surpresa, arrancando uma risada dele. O velocímetro marcava 90km/h e subia a cada segundo. Aumentei o som do rádio e coloquei os braços para cima. Meu cabelo perdendo toda a ordem que estabeleci poucos minutos antes na frente do espelho do banheiro.
— Eu estou em um Volvo conversível na Suécia! — gritei e depois ri. Completei mentalmente: e nos anos 90!. Ele soltou uma risada gostosa enquanto segurava o volante, depois me lançou um olhar indecifrável com um sorriso de lado.
O olhar dele me fez sentir tantas coisas, eu queria falar sobre nós. Eu queria que houvesse um “nós” para falar, mas só existia eu, a viajante do tempo apaixonada, e ele, o meu ídolo que precisava ser salvo. Então, antes de abrir minha boca para falar qualquer coisa que pudesse comprometer a minha estadia em 1990, abri-a para gritar a letra da música:
Who’s gonna drive you home tonight? — cantei.
O assisti reprimir um sorriso, sendo o bom misterioso que era.
Ao chegarmos ao hospital, colocaram-no para fazer todos os tipos de exames conhecidos para saber como estava o coração dele. Passamos o dia inteiro fazendo isso, andando para lá e para cá. No final da tarde, voltamos ao médico, que analisou exame por exame.
— É, dá para ver que você tem arritmia cardíaca. Os pacientes com esse tipo de doença costumam tomar alguns medicamentos, então vou te receitar. É um teste, pode dar certo como não pode dar — o médico disse em inglês por minha causa.
— Como assim pode dar certo ou não dar? Como saberemos se não der certo? — perguntei com a voz afetada.
— Eu vou... — disse, fazendo uma careta e deitando a cabeça no ombro para mostrar que morreria. Não gostei nada e ele riu.
— Olha, costuma dar certo. Vamos observar — disse o médico para mim.
— Não, não, não. Preciso de cem por cento de certeza — eu disse, olhando para , meio desesperada.
— Calma, senão quem vai acabar tendo um ataque é você — ele disse, ainda risonho demais.
Ele não estava entendendo a gravidade da situação, ele poderia morrer se não desse certo. O que seria de no passado sem ? Se ele morresse, eu falharia na minha missão mais importante e não conseguiria viver com a culpa no futuro. Isso se conseguisse voltar para o futuro!
O médico prescreveu a receita, logo depois entregou umas caixas de amostra grátis dos remédios para ele. Qualquer coisa poderia procurá-lo, então anotei o nome, o número do escritório e da residência dele na agenda vermelha dos compromissos de . Azar o do médico se falou isso só para ser educado, eu definitivamente iria ligar se ele soltasse um “ai” fora do normal.
Saindo do hospital, me convidou para irmos em um restaurante e aproveitar para dar uma volta na cidade. Aceitei prontamente, é claro.
Ele parou o carro longe porque o caminho era de barco e andando. Quando o barco parou, pedi para ele ir na frente que iria procurar algo na bolsa, ele relutou um pouco, mas depois seguiu. Eu pesquei a câmera e filmei todo o lugar — sei que era para filmá-lo fazendo a promoção do disco novo, mas achei que o momento todo após o lançamento do álbum merecia ficar gravado. Era um dos melhores da vida dele — dava para perceber claramente —, ele era jovem e estava no auge da carreira, tinha transformado a banda em um projeto dele e faria o que quisesse dali em diante. O rótulo de “precursor do black metal” tinha ficado para trás. agora usava jeans, pulseiras, colares, anéis, tênis e seu cabelo natural.
Eu não poderia estar mais apaixonada.
Não conseguia decidir o que era pior: estar apaixonada por ele sem nunca poder conhecê-lo ou estar apaixonada com ele estando na minha frente e não poder tocá-lo. Meus dedos coçavam para se entrelaçarem no cabelo dele. Eu queria tanto poder sentir seu toque de novo. O mero pensamento me irritava. Era um mau sinal. Significa que estou vulnerável, que poderia ter outra recaída e acabar com tudo o que vim lutando para seguir.
Estávamos na pequena ilha de Gamla Stan, mais especificamente na Österlånggatan, uma das ruas mais famosas do mundo. A rua era estreita, chão de tijolos, regada a prédios antigos em volta que continham lojas dos mais variados tipos, mais para frente era possível ver algumas árvores. Pelo que sei, era nessa ilha que ficava o palácio real. Filmei todos os casais que passavam ali, juntinhos, e o quanto destoava deles andando sozinho enquanto fumava com uma das mãos no bolso da jaqueta.
Depois de alguns minutos andando, ele se virou em minha direção, viu a filmadora, parou e sorriu. Apontando para trás, onde estava a estátua de São Jorge e o Dragão da Gamla Stan.
— O que meu guia particular tem a me dizer sobre esse monumento? — falei, sorrindo, e o olhando pela lente. Pessoas nos cercavam e encaravam a câmera, ele não parecia dar a mínima, por isso eu também não dei.
— Aqui temos mais uma estátua, a mesma merda de sempre — comentou, sorrindo. Ele prendeu o cigarro entre os lábios e me chamou com o dedo indicador. Aquilo tinha sido sexy para cacete. Feito um cordeirinho inocente, dei os quinze passos que nos separaram meio que no automático. Filmei seu rosto de perto. — Como está meu cabelo? — ele sussurrou, passando as mãos pelos fios e depois os jogando para trás.
Gargalhei alto, fazendo-o rir também. Ele pegou a filmadora da minha mão e apontou para mim.
— Sabia que você fica linda sorrindo assim? — ele perguntou, sorrindo e me olhando pela lente.
Senti o sangue subir pelas minhas bochechas.
— Para, assim eu fico sem graça — falei, a voz soando como um miado.
— Mas é verdade. Você tem um sorriso bonito.
Eu soltei mais uma das minhas gargalhadas espalhafatosas, morrendo de vergonha por estar derretida por um galanteador.
— Chega, me dá essa câmera de volta. Você que é a estrela aqui — tentei alcançar, mas ele subiu o braço para eu não conseguir. — ! Me dá isso agora! — pulei para tentar alcançar e ele ria de mim, com o cigarro no canto da boca. — Me dá! — pulei mais algumas vezes.
— É só pegar — ele respondeu, me fazendo querer socar sua maldita cara bonitinha. Dei mais alguns pulinhos. — Ande, , pegue!
, é você? — ouvi uma voz atrás de mim, eu e ele paramos o momento imaturidade para ver quem era a dona da voz. Ele ficou sério de repente, me entregando a filmadora. Peguei-a e depois me virei para ver a mulher que esperava uma resposta.
Era uma mulher muito bonita. Seu cabelo era de um loiro quase branco e escorrido, não tinha um fiozinho fora do lugar. Os olhos eram azuis que variavam para verde, sua pele parecia um veludo e seu sorriso era de uma simetria invejável. Típica mulher perfeita que tinha na minha década. A diferença é que ela usava mom jeans bem característico, cinto e uma camiseta do Black Sabbath.
— Natalia, que coincidência — ele respondeu, jogando o resto do cigarro no chão e pisando. Eu coloquei a tampa na lente da câmera com um tapa forte demais, demonstrando o quão rápido o ciúme me dominou. Eles pareceram não perceber, se encaravam e eu me senti a patinha feia ali entre os dois. Até porque, sobre beleza, ela era tipo uma valquíria com seus mais de 1 metro e 80 centímetros e ele um deus nórdico. Senti que eu estava sobrando ali.
— Pois é! Achei que você nem estava na Suécia, a última vez que nos falamos estava indo começar a sua promo.
— Ainda está rolando, mas tirei uns dias de folga para produzir — ele respondeu.
— E como está o Börje?
— Do mesmo jeito, mas com alguns fios de cabelo a menos do que na última vez que você o viu — brincou.
Essa brincadeirinha a fez rir, os olhos dele brilharam e me irritaram a ponto de soltar em português:
— Esse é o seu futuro também.
Os dois olharam para mim, finalmente notando a minha presença. Ela me olhava como uma mulher adulta olha para uma criancinha.
— Essa é a , minha nova assistente. E essa é Natalia, uma amiga de muito tempo — ele nos apresentou.
Sorri minimamente — parecia uma careta, para falar a verdade —, apertando a mão que ela me oferecia.
— Prazer em conhecê-la, Sônia — ela disse, sorrindo igual a uma Barbie, até o mesmo nível de falsidade. Era claro que ela tinha errado meu nome de propósito.
— É . E é um prazer também — respondi em inglês, não gastaria o meu suado sueco com ela que nem se dignou a falar meu nome certo. Ela soltou minha mão.
— Até que enfim você e Börje arrumaram uma assistente, já estava passando da hora de pararem de se ocupar com essas coisas banais e focar no que é importante — ela disse para ele, em sueco. Fechei a cara, ela ia ver só quem era a banal... — Agora você terá mais tempo para se divertir.
está se provando muito eficiente no que faz e é uma pessoa incrível, o que me ajuda bastante — ele tentou contornar o que ela disse, me elogiando, mas não adiantava. Eu já a odiava por errar meu nome e me menosprezar.
De repente, eu não queria mais continuar ali e correr o risco de ser diminuída de novo.
— E como gerenciadora das suas coisas banais, digo que temos que ir — falei, em inglês, mas sabia que ela me entendia perfeitamente. Por isso fiz questão de frisar o “coisas banais”, para mostrar a ela que eu estava entendendo tudo, não importava qual das duas línguas ela escolhesse usar.
— Ah, tudo bem. Eu te ligo para a gente marcar nosso encontro habitual — ela beijou o rosto de , meio que passando por cima de mim que estava na frente dele. Eu fiquei tão vermelha de raiva que quase senti minhas orelhas liberando fumaça que nem nos desenhos animados. Não sei como me controlei naquela hora, mas graças aos céus consegui. — Tchau, . Foi bacana te conhecer — ela disse, a palavra soando o contrário.
Ela saiu andando rápido na direção que viemos antes. Eu espumava tanto que preferi sair andando na frente, sem falar nada. Meu passeio tinha sido arruinado por essa sujeita, agora eu só queria ir embora.
— O restaurante é para o outro lado — ele comentou, me alcançando fácil demais.
— Estou voltando para o barco — respondi, ríspida.
— Já quer voltar para casa? Sem nem almoçar? — ele parou de andar, o que me fez parar junto para respondê-lo.
— Sim. Estou sem fome — declarei.
Ele franziu o cenho, me analisando. Eu desviei o olhar e cruzei os braços na frente do peito, sem paciência para qualquer tipo de joguinho.
— Está com ciúmes? — ele arriscou, tentando entrar no meu campo de visão.
— De quê? — respondi, ainda evitando-o. — Não tenho motivo algum para ter ciúme.
— Me dá a filmadora de novo — ele pediu.
— Por quê? — me virei para ele com curiosidade.
— Vou filmar sua cara de ciúmes para provar que você está se roendo.
Olhei para ele de cara feia.
— Não vou te dar para essa finalidade — retruquei. Eu queria gritar com ele, mas sabia que ele não tinha nada a ver com meu ciúme e minha raiva por ter sido diminuída.
Ele chegou bem perto de mim.
Com’on. Você não faz coisas banais, . Não precisa acreditar em mim, mas olhar para Börje. Ele até que gostava muito de ser minha assistente — ele sorriu. — Se ele concordou e te confiou essa posição, é porque viu que tinha potencial.
Ele passou o braço pelos meus ombros e me virou na outra direção. Todos os meus sentidos gritaram com sua proximidade repentina, mas eu estava concentrada demais em ficar com raiva.
Eu mal cheguei na Suécia e tive meu emprego — que jurei que era incrível — menosprezado pela irmã e a amiga dele. Aquilo atingiu uma fraqueza minha. Ele não me apresentou como “a outra amiga”, ele me apresentou como “a assistente”. Reconheço que tenho que ser grata por ele ter me dado esse mínimo lugar na vida dele — de poder trabalhar e morar em sua casa. Eu sou grata. Porém, sinto que falta algo importante entre a gente, algo que era para ter acontecido antes de termos dormido juntos, algo crucial para que eu possa salvá-lo. Uma aproximação. E talvez fosse tarde demais.
A saudade de casa e da minha antiga vida ficou latente demais, lá eu era estudante, voluntária, amiga e filha; aqui eu sou assistente dele e só. Um papel descartável e “banal”. Eu queria importar de novo. Aqui tenho que pensar cuidadosamente em tudo que faria e eu nem sabia como começar a reverter essa sensação.
A postura que essa mulher adotou comigo foi algo que piorou meu estado de espírito. De Lilly, escolhi não guardar mágoas, mas essa tal de Natalia parecia fazer questão de que eu guardasse. Parecia me enxergar como oponente, sendo que nem ameaça eu oferecia por não ser nem amiga de .
Ela era linda e parecia ter algo com ele. É, e definitivamente estou com ciúmes de novo. Será possível mesmo que terei ciúmes de todas as garotas que olharem para ele com olhos desejosos? Se for, eu estava em apuros.
— Vamos, esqueça isso, ok? Tenho certeza de que ela não falou para te magoar — ele começou a andar, me levando junto. — E seu guia aqui tem um restaurante para mostrar que vai te deixar de queixo caído.
Eu cedi, é claro, mas não totalmente. Apenas o acompanhei, deixando seu braço nos meus ombros, enlaçando sua cintura e andando de uma forma mais íntima do que era recomendável para nossa relação. Ele falava curiosidades sobre a ilha Gamla Stan e a importância dela para a Suécia, eu ouvia tudo, mas só conseguia pensar que eu estava realmente com ciúmes porque eu não tinha a menor chance perto dela.
Porém, assim era melhor, certo? Eu deveria estar satisfeita. Que sofresse e escrevesse canções sobre as mulheres dos anos 90, seguindo o curso normal de sua vida. Não por mim que sou uma forasteira e carrego uma maldição comigo. Por mais que eu esteja indubitavelmente sofrendo por não o ter, estamos melhor assim.
Só de lembrar da maldição e do incidente da música hoje de manhã, aliados à presença da Natalia, sinto enjoo.
Andamos mais um pouco com a mesma vista de prédios antigos através da Österlånggatan — aquela parte da cidade era conhecida como cidade antiga, conforme informou . O restaurante chamava Den Gyldene Freden, eu lembro de o ter visto nas aulas de sueco, era um dos restaurantes mais antigos com o interior inalterado.
— Ele foi construído em 1722 — comentou enquanto entrávamos e via minha exaltação ao analisar o lugar. O interior era adorável. A mesa e as cadeiras eram de madeira pintado de tinta escura, a cortina das janelas e a toalha branca suavizavam o ambiente. Um lustre estava pendurado no meio do cômodo que estavam as mesas. Na mesa que nos conduziram a sentar, tinha um instrumento de cordas pendurado na parede em cima da minha cabeça.
O lugar tinha uma iluminação suave, por isso um dos funcionários acendeu a vela que ficava no candelabro em cima da mesa. Eu observava discretamente como a chama banhava os seus fios de cabelo e dava um ar romântico a ele que passou tanto tempo tentando se desvencilhar desse tipo de imagem. Ele me olhou de volta, o amarelo da vela refletiu em seus olhos e pareciam que estavam em chamas. De repente, tive a impressão de que ele me deseja tanto quanto eu o desejava. Que, para ele, não foi suficiente só uma noite, assim como para mim. E que ele parecia estar começando a me olhar com a mesma admiração que eu estava o olhando sob a luz da vela. Minha respiração ficou ofegante e larguei o guardanapo em cima do prato com certa força.
— O que foi? — ele perguntou, saindo do transe.
— Preciso ir ao banheiro — anunciei.
Saí correndo, fechei a porta do banheiro e me encostei nela. Agradeci mentalmente por estar vago ou eu não saberia o que fazer.
É isso que dá tanta fanfic na cabeça, uma hora iria me deixar biruta assim. Andei até a pia e molhei o pescoço. Encarei a figura no espelho, os olhos esbugalhados que me fitavam com puro medo. Medo de não conseguir salvá-lo, de ser o motivo daquela música, de morar com ele, do que eu acabei de ver em seus olhos.
Quando tomei coragem para deixar o banheiro, consegui tocar o resto da refeição como se nada estivesse acontecendo dentro de mim, como se eu não estivesse engolindo todas as minhas emoções. Porém, a partir desse momento, eu decidi impor mais uma barreira para o nosso bem.

Capítulo 9 - Killing me softly with his song

(N/A: A título de curiosidade, a música que ela se refere nesse capítulo como “Laid my eyes on you” existe, se chama “Deep” e é do personagem principal original).

Eu procurei ser a assistente que ele precisava. Apesar de estar claramente o evitando e azedando o pouco que construímos desde minha chegada. Ele percebeu, é óbvio, e passou a falar cada vez menos comigo, me dando espaço. Eu via que ele não entendia essa barreira que impus, mas respeitava, assim como me respeitou depois da nossa noite de descuido. Aos poucos, nós nos tornamos desconhecidos que viviam juntos e me senti como se estivesse invadindo sua privacidade continuando ali.
Eu estava assustada, tinha que admitir. Aquele olhar que ele me lançou foi o suficiente para fazer todo o meu sistema de alerta entrar em curto-circuito. Durante esse tempo de distanciamento, eu nunca me esqueci de ver refletido na sua íris os possíveis caminhos que poderíamos traçar a partir daquele momento. Era como se ele estivesse mostrando para mim que estava pronto para o que quer que eu decidisse fazer conosco. Foi assustador ver que eu carregava o peso dos seus sentimentos quando não dava conta nem do peso dos meus. Além de que, só eu que sabia que nós não poderíamos ser o que ele possivelmente viria a querer.
Eu reconhecia que a culpa tinha sido minha. Fui eu que dei o primeiro passo dormindo com ele e praticamente tropecei nos demais, demonstrando ciúmes. Não consegui ser paciente, deixei-me levar inconscientemente pelo que estava escrito no site sobre almas gêmeas e aquela baboseira toda. Deveria ter desconfiado que não existia tal coisa, ainda mais quando se é viajante do tempo e precisa se adaptar a simplesmente tudo. Ele tinha uma vida antes de mim! Eu simplesmente não podia entrar na vida dele e o fazer se apegar para depois sumir. Não podia. Não era certo.
De uma hora para outra, eu tinha muitas responsabilidades e aquilo estava me matando. Então esse tempo foi bom para refletir e acalmar os ânimos. Foi ruim porque eu realmente sentia falta dele e estava me matando ficar em silêncio.
Eu tendia a fazer isso mesmo, me afastar quando ficava demais para mim, mas nunca contei que sentiria falta dele tanto assim quando a gente nem se conhecia direito. Porém, ao vê-lo todos os dias, eu sentia a urgência de ter mais. Queria conhecê-lo, desvendá-lo, me afundar nele. O que me restou, no entanto, foi uma melancolia irritante.
Solveig ficava comigo o dia inteiro e era o único que me animava dentro do apartamento. Sobre o trabalho, eu e Börje organizamos tudo para o próximo destino da promo, mas simplesmente, depois de dias de trabalho árduo, ele me disse que havia ligado e falado que preferia tirar mais um tempo para compor.
Ele tinha ligado para Börje sem nem falar comigo antes, que vivia na mesma casa que ele. Fiquei um pouco magoada depois disso e considerei procurar meios para voltar para 2019. Quer dizer, tinha que ter meios de voltar, certo? A maldição era clara quando dizia que, se eu voltasse, ele sofreria. Não achava que ele iria sofrer se visse que sumi, me encarreguei de o fazer ignorar minha presença nos meses que se passaram, então não era tarde demais.
No entanto, o que me fez voltar atrás era não querer desistir tão fácil por sentir que tinha mais a aproveitar dessa década antes de voltar para casa. Não havia feito quase nada ainda, não queria voltar carregando pouca lembrança. Precisava ser uma experiência mais intensa e relevante. Caramba, eu estava nos anos 90! Eu tinha voltado no tempo. Tinha que ter histórias melhores para contar.
Não parecia que estávamos um com raiva do outro, ele só trabalhava o dia inteiro trancado. Isso foi se tornando nossa rotina. Portanto, depois que ele deu essa pausa na promo, me ofereci para trabalhar na produtora de Börje, para não ficar sem o que fazer e tornar minha existência aqui mais proveitosa.
Eu entrava às nove da manhã e só saía quando estava escurecendo. Ele estava dormindo todo torto no sofá, então, pelo menos antes de sair, me prestava ao papel de fazer as panquecas com geleia de morango, afinal havia prometido para ele para o fazer ir à consulta aquele dia. Quando eu chegava, ele estava no estúdio particular. Alguns dias, depois do trabalho, quando ele não estava ouvindo música alta e parecia quieto demais, grudava meu ouvido na porta e o ouvia tocando algum instrumento ou cantarolando. Coisas assim ajudavam a manter meu coração quentinho.
Nos finais de semana, geralmente eu ficava no quarto, assistindo TV, com Solveig deitado ao meu lado, limpava a casa para clarear a mente e às vezes saía. costumava sair e não retornava por mais de 24 horas. Ah, e eu sabia muito bem o motivo. Ele estava com outras mulheres. Não podia culpá-lo por ir atrás de outras, já que não tínhamos nada. Se eu o amava, tinha que deixá-lo livre para conhecer outras e me manter aqui só para salvá-lo. Porém, eu não podia deixar de sofrer e desejar que fosse eu.
Depois de uma lavagem cerebral da MTV, eu chorava até mesmo por causa de Careless Whisper do George Michael. Esse era o nível da minha fossa.
Depois de três meses com a sensação de estar anestesiada e cada vez menos pertencente àquele lugar, decidi não ficar me martirizando com toda a bagagem emocional que criei. Eu precisava viver, precisava criar essas lembranças para contar para Shandi e Raj quando voltasse. Era sábado, mais um dia que ele não estava em casa, então coloquei a fita do No Future UK? bem alto no som da sala e comecei a dançar enquanto limpava a casa. Precisava também me sentir eu mesma, pelo menos um pouco. Solveig pulava e latia junto comigo, como eu disse: ele era o melhor companheiro.
Limpei a casa inteira, até que só restou o estúdio. Eu nunca tinha limpado o estúdio, porque achava que isso poderia incomodar o dono dele, era seu único local de privacidade, assim como ele me fornecia o quarto como meu próprio templo, entrando lá raramente. No entanto, sabia que aquele lugar deveria estar sujo, nunca o vi limpar e pensei que seria legal da minha parte ao menos fazer isso.
A porta estava entreaberta, o cachorro passou correndo para dentro do cômodo enquanto eu espiava pela fresta. Chamei-o de volta, mas ele tinha sumido do meu campo de visão. Abri a porta inteira, analisando tudo antes de dar o primeiro passo. Não sabia o motivo pelo qual estava com medo de entrar. Ele nem estava em casa e não era como se fosse brigar comigo por entrar.
Peguei todos os materiais de limpeza e fui em frente em um súbito surto de coragem.
Lá dentro era tão abafado. Quando se entrava, o que mais chamava atenção inicialmente eram os instrumentos. Vários instrumentos que não eram o seu foco estavam espalhados pelo quarto: flauta, violino, teclado, violoncelo e ao fundo tinha uma bateria. Nas cinco prateleiras ao lado da porta, via-se várias pastas-arquivo.
Totalmente dentro do quarto, consegui visualizar seu violão, o baixo e a guitarra que estavam presos nos suportes na parede atrás da porta. Como eram seus instrumentos mais usados, ele tinha pelo menos o trabalho de pendurá-los, pelo que pude concluir.
Me aproximei de onde ficavam os que ele mais usava e a ficha caiu. Eu estava no lugar onde meu ídolo trabalhava. Toquei na guitarra com os dedos trêmulos, eu tinha visto fotos dela. Uma Ibanez Destroyer II que era originalmente cor candy apple red, mas, após várias mãos de spray, passou a ser preta. Pessoalmente era ainda mais bonita e... épica. Ele havia feito história com aquele instrumento. Até comprar uma Gibson ao longo dos anos 90, aquela guitarra tinha participado de todos os álbuns que ele gravou. Estava tremendo um pouco com a sensação de tocá-la por me sentir tão perto do que um dia pareceu tão longe. Era só uma postagem no Tumblr e estava sentindo com as pontas dos meus dedos.
tinha aprendido a tocar inicialmente bateria com oito anos de idade. Porém, aos quatorze anos, ele se apaixonou pela guitarra e sua maior inspiração foi o guitarrista do KISS que agora me encarava do pôster na parede do lado direito. Ele era muito fã de KISS, da formação original que continha o Criss e o Frehley, depois disso, passou a considerar uma porcaria. Sei disso não pelo conhecimento que adquiri pesquisando em 2019 e sim porque venho o estudando de longe ao longo desses meses. O último disco que ele tinha era o Creatures of the Night e estava praticamente intocado, ao contrário do restante da discografia que estava gasta.
Ele tinha levado o toca-discos para o estúdio e pude aprender ainda mais sobre seu gosto pelo som que vinha de dentro daquele quarto. Eu nunca tinha me considerado uma pessoa muito musical, mas andava ligada intimamente à música depois que cheguei em 1990, porque, além de viver com um músico, tudo ali gritava isso. A MTV tinha começado seus anos de ouro, todo lugar tinha um rádio tocando os últimos sucessos e até o jornal tinha uma seção para falar sobre shows e lançamentos. O único defeito de Estocolmo era não ter muitas lojas de discos ainda e as que haviam não tinham tanta variedade. Acreditava que a maior parte da coleção de tenha vindo das suas viagens ao exterior.
Voltando minha atenção ao quarto: na mesa perto da porta tinham vários papéis espalhados, palhetas e uma caneta. Esvaziei o lixo que transbordava com papéis amassados, pensando se deveria organizar a mesa dele. Não sei se era invadir demais a privacidade dele olhar o que vinha se dedicando tanto para ter que adiar os próximos destinos da promo, mas eu estava me coçando de curiosidade.
— Foda-se, já estou aqui dentro mesmo — falei, tocando os papeis e organizando para ver o que estava escrito.
Aparentemente, ele tinha começado a escrever algumas músicas para o próximo álbum, inclusive a que era a minha favorita desse álbum estava ali em cima — senti calafrios de poder ver a música assim, quando não passava de rabiscos e letras no papel. Meu lado de fã dava cambalhotas de emoção.
Mais para trás estavam algumas músicas que ele iria dividir entre o primeiro e o segundo álbum solo — sem o selo da banda e sim com o nome do próprio . Eram quatro com títulos conhecidos e uma música desconhecida com o nome de “Laid my eyes on you”.
Peguei o papel, ele não tinha escrito tudo, eram poucos versos.
Eu reconheceria essa música em qualquer lugar, mesmo que tivesse com outro nome. Ela mexia tanto comigo que sabia exatamente cada palavra na minha cabeça. Estava bastante incompleta ainda, mas eu me lembrava perfeitamente e era uma letra bastante romântica — por incrível que pareça, já que estamos falando de um homem que ficou famoso por ser um ícone do black metal —, como se ele se declarasse para alguém, falando os sentimentos dele e até sobre destino. Ainda no meu surto de coragem, pensei que ele saberia que eu mexera ali, então resolvi ajudá-lo — se fosse para me dar bronca, daria de qualquer jeito.
Peguei um lápis e uma nota adesiva e escrevi alguns dos trechos que estavam faltando. Parando para pensar, era como se meu sentimento jorrasse em cada palavra que escrevia e se minha presença ali já estivesse premeditada, as consequências dos meus atos poderiam ser notadas no futuro. O que queria dizer — para resumir — é que talvez, só talvez, eu poderia ter participação em uma das minhas músicas favoritas da vida. A forma como as coisas se conectavam me deixava meio confusa, mas não podia deixar de notar que tudo isso poderia vir a ser verdade. A música, com toda certeza, não era sobre mim porque ele não me via de um modo romântico desde o dia do restaurante que comecei a afastá-lo, mas senti um pouco de ciúmes em não ser a dona dos grandes olhos que ele mencionava e do sorriso gentil. Ele disse que gostava do meu sorriso, que eu ficava linda sorrindo daquele jeito, pensei. Aparentemente, ele arranjou uma nova mulher para dizer que o sorriso dela era lindo, talvez a Natalia? Eu nunca saberia, mas também não deixei de sentir ciúmes.
Grudei em cima do papel. Meu cérebro gritando que fiz merda ao interferir em uma música dele, mas foi por um bem maior. Ele, com certeza, quebraria a cabeça para tentar continuar e só complementei com poucas coisas para dar um empurrãozinho.
Limpei o chão e passei o espanador nos instrumentos. Ao final, estava tudo bem cheiroso e no lugar. Procurei não pensar muito no que fizera, senão daria meia volta e arrancaria aquela nota adesiva. Apenas chamei Solveig, que saiu debaixo da mesa todo desengonçado. Talvez, nossa familiaridade se desse ao fato de sermos dois desastrados.

***


O telefone tocou enquanto eu assistia uma reprise de um dos filmes do Elvis. Corri para atendê-lo antes que caísse na secretária eletrônica.
— Oi, . É a Lilly — a voz disse assim que atendi.
— Oi, Lilly! Aconteceu alguma coisa? — falei, já eram onze da noite e fiquei um pouco assustada.
— Bem... Sim.
— Você não vai poder me encontrar amanhã? — chutei. Nós tínhamos marcado de nos encontrar amanhã com muita antecedência, então logo estranhei.
Não, está tudo certo para amanhã. É que... — ela suspirou. — O ‘tá aqui e ele ‘tá bêbado. Tipo, muito.
Gelei, ele me disse que não era de beber mais assim na primeira vez que nós conversamos e eu sabia que era verdade. Afinal, minha mentira da gravidez não tinha funcionado exatamente por esse motivo. Quer dizer, gostava de pensar assim e não que era absurdo demais porque me mataria de vergonha.
— Meu pai saiu com a Karin e vão passar o final de semana todo fora. Eu não ia te ligar, mas só tem eu e o Andreas aqui para segurá-lo e não está adiantando muito. Tem como você vir?
Não pensei duas vezes, é claro. Fiquei preocupada com eles três e uma parte egoísta minha queria usar isso como oportunidade para fugir da rotina chata que eu mesma criei. Era dia de mudança, certo? Eu podia falar com ele...
— Sim, tenta distraí-lo que já chego aí. Beijo — desliguei o telefone. Não tive nem tempo para refletir o que um bêbado poderia significar, apenas coloquei duas vasilhas de comida para Solveig e duas de água fresca. Peguei algumas roupas de que estavam no guarda-roupa do quarto e algumas minhas, caso fôssemos precisar, depois peguei o remédio do coração que estava no escritório. Arrumei tudo em uma bolsa.
— Seja um bom menino e não faça cocô na sala que limpei hoje — falei para Solveig antes de fechar a porta e descer para pegar o táxi. Solveig odiava ficar sozinho por longos períodos e sempre acabava fazendo cocô no meio da sala, mesmo que tenha saído para passear antes.
Eu tinha ido na casa dos algumas vezes depois daquele dia para levar alguns documentos para Börje e para encontrar a Lilly, quando já passava do horário do expediente. Então eu soube exatamente como dar as coordenadas para o taxista.
Lilly e eu nos aproximamos ao longo desse tempo e vinha me divertindo com sua personalidade forte. Ela era minha primeira amiga de verdade em 1990. Nossa amizade era tão diferente e nova para mim, se assemelhava muito as de filmes dos anos 2000, nós saíamos para fazer compras, ir ao cinema, comer, fofocar sobre os outros — também fazíamos muito isso no telefone. Aos poucos, ela estava se tornando essencial e um dos motivos fortes para que eu não procurasse meios de deixar o século 20.
Meu corpo tremia de ansiedade, a vista passava como um borrão pelos meus olhos o caminho todo.
Quando o carro parou, eu vi o carro de parado de qualquer jeito na rua e a porta da casa totalmente aberta. Paguei o taxista, peguei a bolsa com os itens essenciais e pulei do carro. Vozes exaltadas vinham lá de dentro, então eu me pus a percorrer o jardim a passos rápidos.
Ele estava deitado no tapete da sala de estar, Andreas e Lilly em pé, o cercando.
— Ela chegou — Andreas anunciou, olhando para mim.
Lilly e também se viraram. Três pares de olhos azuis iguaizinhos me encaravam, seria engraçado se a situação não fosse trágica.
— Não acredito que você a chamou mesmo. Eu disse que estava tudo bem! — resmungou e deitou de novo a cabeça no tapete.
— Calado! — Lilly gritou com ele, vindo na minha direção. — Desculpa te fazer passar por isso, sério. Ele está insuportável, ficava falando que ia voltar para casa dirigindo.
Arregalei os olhos. Ele queria morrer, por acaso?
— Eu disse que você ia vir para cá e ele se jogou no chão para fazer birra — ela explicou.
Ele encarava o teto com um olhar perdido. Andreas o observava com o olhar cansado, como se aquela fosse uma cena que já foi bastante recorrente.
— Dre veio dirigindo do bar para cá — Lilly explicou. Andreas tinha acabado de tirar a carteira, pelo que fiquei sabendo por ela, então explicava o jeito que o carro estava estacionado lá fora.
Eles não mereciam passar por essa situação, mesmo que demonstrassem normalidade, as feições deles só contribuíam para que eu concluísse isso. Então precisava agir rápido. Não me incomodava em ter que lidar com ele. Depois desse tempo de convivência silenciosa, sentia que de alguma forma podia e queria cuidar de .
— Me arruma café — eu pedi para ela, andando até o culpado da confusão. — Você, arruma uma cama para ele e coloca essa bolsa em cima — falei para Andreas. Os dois obedeceram sem falar nada. — E você, espero que esteja com vergonha desse teatro todo — comentei, me ajoelhando ao seu lado.
Ele soltou uma risadinha bêbada e fechou os olhos. Nunca o vi tão cansado e entorpecido antes, nem fedendo a uísque como se tivesse tomado banho com uma garrafa.
— O que é? — resmunguei, sentindo o mau-humor me dominar depois que meu nariz farejou o cheiro de bebida. Era isso que ele vinha fazendo todo sábado?
— Se eu soubesse que isso faria você falar comigo que nem uma pessoa normal, eu teria feito antes — falou em meio a mais risadinhas e abrindo os olhos que estavam em uma tonalidade diferente.
— Não é engraçado, . Você deixou seus irmãos preocupados — censurei-o. — Por que fez isso?
— Porque eu sou um maldito covarde. — Fungou. — Era o único jeito de tomar coragem para falar com você — respondeu e fez uma careta como se a declaração o machucasse. Eu não vinha sendo um poço de coragem também, então imitei sua careta.
— Bem, você conseguiu, estou aqui agora — respondi, esperando ouvir algumas palavras depois desse tempo todo que não eram sobre trivialidades da casa.
— Eu sei, e não consigo pensar em nada para te dizer — ele disse e depois riu. — Não é ridículo?
Eu sabia bem como ele se sentia, então sorri minimamente em compreensão. Ter milhões de coisas para dizer e de repente não ter mais nada só porque a pessoa em questão está em sua frente. Oras, eu estava nessa situação também. O convenci a levantar e me acompanhar até o andar de cima, onde Andreas preparava o que pedi. Ele cambaleou algumas vezes, mas eu o tinha pelo braço, então consegui evitar uma tragédia. A cada dois passos nossos, ele ria mais ainda e, ao ver minha expressão, pedia desculpa.
Andreas me chamou até o que parecia ser o quarto de visitas, havia uma cama de casal gigante e mobília de luxo — como o resto da casa. O chão era de um carpete fofo e rosa bebê, tinha um guarda-roupa de uma ponta da parede até a outra, janelas amplas com cortinas de linho e uma televisão em cima da cômoda na parede ao lado da porta. A cama estava pronta, mas Andreas sugeriu que o colocasse no banho antes, para que ele ficasse um pouco menos bêbado e não vomitasse.
Eu esperava os dois do lado de fora, sentada na cama. Pensando em outra abordagem para utilizar com ele que não nos deixasse tão próximos, mas que não o fizesse recorrer a outros meios para chamar minha atenção. Qualquer coisa que eu arquitetava, trazia consequências que eu não queria o submeter por minha causa.
Andreas abriu a porta do banheiro, com uma carranca aparente e estresse que tomou conta do ar. Uma parte minha sabia que não seria boa ideia colocar para tomar banho estando tão bêbado, mas pensei que, como Andreas tinha mais experiência com ele assim, sabia mais do que eu.
— Ele não me obedece, quer que você entre — anunciou, sem paciência. — Boa sorte, vou ajudar Lilly.
E saiu.
Me deixando com a fera que jazia naquele banheiro. Respirei fundo e entrei, sem pensar muito. Se o fizesse, sairia correndo daquela casa. Não podia, no entanto, porque queria ajudar Andreas e Lilly.
Ele estava sentado na tampa do vaso, tentando prender o cabelo, usando nada mais do que roupa íntima.
Oh, Deus me ajude.
Peguei o elástico de sua mão e prendi o cabelo dele em um coque alto, a banheira estava quase transbordando, então desliguei a água e pedi para ele entrar. Ele não quis, claro, seria fácil demais. Tirei meus chinelos, minhas meias, casaco e entrei na banheira com o resto das minhas roupas, era mais fácil se pelo menos um de nós estivesse com mais peças.
A água estava fria, o que era compreensível pela intenção do banho. Ele entrou logo depois de mim, me seguindo e mostrando que tinha dado certo. Ficamos um de frente para o outro e pude ver o real motivo de ter me seguido, ele me olhava com desejo aparente.
— Devo estar tão bêbado que estou sonhando com você em uma banheira comigo — ele quebrou o silêncio. — Se for, eu não quero acordar.
Tentei controlar o sorriso que ameaçava brotar nos meus lábios, eu não podia dar a entender que não estava brava com todo o showzinho dele e nem parecer que estava imersa no momento mais do que queria. Caso parecesse, ele acharia que o estava dando passe livre para começar com as investidas e não sabia se teria coragem de negar. Foram meses de carência de novo depois daquela noite no hotel, então me dava um desconto de estar por um fio.
Ele me olhava com malícia e um sorriso de lado, parecendo um predador que farejava minha tentativa de ter o controle da situação. Era exatamente o que eu estava tentando evitar alguns segundos atrás. Ele era um espertinho e só tinha um jeito de lidar com esse tipo de cara. Peguei a ducha e liguei, no mais forte, a água fria na cara dele.
Fy fan, isso ‘tá gelado demais! — ele gritou, metade em sueco e metade em inglês, enquanto pulava e a água transbordava, molhando o chão. Passou as palmas das mãos nos olhos para tentar espantar a água dos olhos. — Para, ! Você vai me afogar!
Desliguei a ducha, tentando manter minha pose de séria. Não tinha a menor chance de afogá-lo assim, só se ele estivesse em coma alcoólico e sem poder se defender. Mesmo que por dentro eu estivesse morrendo de rir, me limitei a fitá-lo com nada mais que um sorriso de lado em resposta ao seu.
— É para você aprender a não beber mais — falei. Ele ainda esfregava os olhos com as mãos. — Agora tome banho, .
— Céus, não acredito que você fez isso! — resmungou, me olhando finalmente. — Me dá essa merda aqui — tentou pegar o chuveiro da minha mão.
Fiz que ia ligar a ducha de novo e ele enfiou as mãos na frente, falando “não, não, não”. Joguei a bucha e o sabonete em sua direção como indireta para se esfregar. Ele fedia muito a uísque e cigarro, de uma maneira nada sensual. Eu deveria agradecê-lo porque era um dos motivos que estava me mantendo longe e meu autocontrole intacto. Ele me obedeceu e o fez com mais concentração do que o necessário, ele passava a bucha tão devagar por cada pedaço de pele que me amaldiçoei por pensar que deveria agradecê-lo e não o socar.
Até que ficou insuportável, fui obrigada a pegar a bucha e o sabão de volta e fazer eu mesma. Ele fechou os olhos enquanto eu tentava esfregar suas costas contra a banheira.
— Hm... posso até te perdoar pela água gelada se você continuar esfregando — ele gemeu e tive que prender meu lábio para não sorrir. Estava para nascer outra pessoa que esfregava as costas do próprio chefe no banho e gostava de ouvi-lo gemendo de satisfação. Talvez porque me lembrava bem como ele gemia em outras situações...
Esse não era um pensamento nada seguro.
Terminei e enxaguei com a ducha, ele não reclamou da temperatura da água dessa vez. Tinha certeza de que havia se tocado que o melhor era ficar sóbrio de novo.
Como eu estava sentada no assento de dentro da banheira e ele estava sentado na parte mais funda, nós dois estávamos na mesma altura — o que nos fez encarar um ao outro por alguns minutos.
... — ele murmurou com desejo.
... — eu murmurei em aviso.
— Me chama de de novo, nem que seja só por hoje — ele pediu, estendendo a mão para tocar meu pé debaixo da água e quebrando minha pose que estava pendendo por um fiapo.
— soprei, sem conseguir disfarçar que estava derretida pelo seu toque. Se ele me pedisse para chamá-lo de mestre, eu o chamaria, contanto que continuasse subindo aqueles incríveis dedos calejados pela minha pele debaixo d’água.
Mordi o lábio inferior, pensando que estava sendo fácil demais para quem foi a responsável pelo nosso distanciamento de meses e para alguém que estava cuidando de um bêbado.
— É incrível como seu sotaque faz qualquer palavra soar como poesia, baby — ele disse, erguendo meu pé e plantando um beijo nos dedos. Pisquei os olhos excessivamente. Ele me chamou de baby? Espera. Engoli em seco. Ele estava usando todo seu charme para me atrair? — Já faz tanto tempo que não te sinto tão perto assim. — Beijou meu calcanhar. Oh, estava funcionando. — Só consigo me lembrar do dia que você me agarrou dentro daquele elevador e o quanto foi delicioso. — Beijou minha panturrilha. — Ah, se você soubesse o quanto eu gostei... — beijou meu joelho — ...não pediria para que eu esquecesse como é te ter, . — Plantou um beijo na parte interna da minha coxa e eu me controlei para não levantar os quadris em sua direção. Aquilo estava bom demais, demais mesmo, por isso eu precisava dar um basta.
Recolhi minha perna ao perceber que aquela conversa estava se tornando perigosa demais. Ele revirou os olhos quando o fiz. Levantei-me antes que meu subconsciente me levasse para os braços dele. estava bêbado e eu estava considerando me jogar nos braços dele depois daquele charme barato, só podia ter ficado mesmo louca. Em tese, o dia do hotel nem era para ser lembrado e ele não deveria trazê-lo à tona, não foi o que conversamos.
Antes que eu pudesse sair, no entanto, ele me puxou pelo pulso e seus olhos suplicaram para que eu ficasse. Eu não podia, meu medo de quebrar nossa distância tão fácil me ajudava a enxergar o quão absurdo seria me entregar agora. Fora que ele estava bêbado! Saí da banheira sem lançá-lo um último olhar, me sentindo a vadia mais sangue frio do mundo.
Tentei me secar, mas meu short jeans e minha blusa de malha estavam arruinados. Através da visão periférica, pude vê-lo com a cabeça parcialmente encostada na parede, me observando.
Deixei o banheiro, para que ele pudesse sair e vestir a roupa que entreguei para Andreas. Troquei a minha no quarto, agradecendo mentalmente a mim por ter pensado na probabilidade de precisarmos de uma muda a mais. O ouvi tirando o ralo, a água da banheira descendo pelo encanamento e depois o barulho de escova de dentes batendo contra a louça da pia.
Encontrei com Lilly trazendo uma bandeja com uma garrafa de café, xícara e um pratinho de biscoitos açucarados — o que me deixou nostálgica ao lembrar do meu primeiro dia em 1990, em Lisboa, quando seu pai trouxera o mesmo para mim. Nem parecia que se passaram meses desde que cheguei ali, aquela situação com tinha feito os dias parecerem iguais e emendados um no outro, me fazendo perder a noção de tempo.
Pedi a ela que deixasse comigo dali para frente e que poderiam ir dormir sem se preocupar. Ela avisou que Andreas tinha arrumado uma cama para mim em seu quarto, já que iria ficar com o quarto de visitas. Depois foi embora.
Entrei no quarto de novo e ele estava deitado na cama, devidamente vestido. Para a minha sorte e para o meu azar, simultaneamente.
Parecia estar muito puto e mais sóbrio, pelo menos. Entreguei a xícara com café para ele e ofereci os biscoitos, ele pegou alguns e eu peguei o restante para ocupar minha boca antes que quebrasse o silêncio com mais alguma peripécia típica de quando ficava nervosa. A presença dele começou a me intimidar de novo, talvez por causa dos meses que não trocamos muitas palavras.
Ele terminou, em silêncio, e eu organizei tudo de volta na bandeja. Antes que eu pudesse pegá-la para levar para a cozinha, ele me segurou pela blusa do pijama assim como fizera com meu pulso antes. Fitei-o enquanto parecia travar uma batalha contra todo seu orgulho por ter sido negado na primeira vez e estar ali insistindo de novo.
— Eu não quero ficar sozinho — ele disse, por fim, com olhos suplicantes.
... — me interrompi com o olhar feio que ele me lançou, pigarreei e depois corrigi: — , eu tenho que ir para o quarto da sua irmã.
— Não — ele suspirou e largou minha blusa. — Fica comigo.
Suspirei, tentando botar um pouco de oxigênio misturado com juízo dentro de mim. Era um saco ter sempre a voz da razão que impedia o que nós dois queríamos tanto, mas não tinha opção, precisava ser firme para poupá-lo.
— Nós não podemos dormir no mesmo quarto — concluí.
— Por quê? A gente já fez isso — ele explicou como se fosse óbvio.
— Não é a mesma situação, tudo mudou. E seus irmãos vão pensar o que de nós dois?
Definitivamente não queria ser malvista pelos , só de imaginá-los me julgando como outra garota que passou pela mão do já sentia calafrios. Isso poderia afetar diretamente meu trabalho e, na minha situação, não estava podendo correr riscos.
— Eles não estão nem aí, sabem que eu provavelmente insisti para que ficasse aqui comigo porque estou bêbado.
Até parece que não conhecia a irmã mais nova dele e não desconfiasse que ela tenha me arrancado algumas confirmações sobre nosso relacionamento. A mente de Lilly era tão afiada quanto sua língua. Acho que era até óbvio pela facilidade que ela entendeu tudo, me perguntava se era por causa das outras namoradas dele. Eu não iria falar sobre esse assunto com ele, também não queria correr o risco de que ele fugisse para beber mais, então seria melhor ficar ali pelo menos até ele adormecer.
Peguei um comprimido da caixa do remédio de coração dele que trouxe comigo e o entreguei.
— Merda, você realmente pensa em tudo — ele disse, bebendo o comprimido com a água da jarra que Andreas deixou na cômoda.
É, eu pensava em tudo, inclusive nele — e excessivamente.
Liguei a TV e estava passando uma série policial do começo dos anos 80, nem me dei o trabalho de procurar outro canal, porque era só para preencher o silêncio.
Eu poderia fazer isso sem derrubar toda a barreira de segurança que criei em volta de mim, não é?
Céus, eu esperava que sim.
Ergui o cobertor e me posicionei debaixo, descansando a cabeça no travesseiro ao lado do dele. Ele parecia genuinamente feliz, como na última vez que saímos juntos antes daquela amiga dele chegar. Eu também tinha vontade de me embebedar a cada instante que pensava o quanto eles dois combinavam e pareciam íntimos, porque era doloroso. Será que era doloroso para ele também? Não a questão com a Natalia, mas pensar em mim e esse distanciamento? Afinal, ele disse que beber era o único modo de tomar coragem para falar comigo. A maior parte de mim estava decepcionada porque ele ficou bêbado mesmo depois de dizer que não costumava mais fazer isto, mas tinha aquela pequena parte egoísta que ficou se achando por ser o motivo.
— O que foi? — perguntei enquanto ele me assistia com aquele coque ridículo no topo da cabeça. Ergui minhas mãos e comecei a desmanchá-lo.
— Não sei se me lembro da última vez que uma mulher dormiu ao meu lado sem segundas intenções — ele confidenciou, seu rosto perto do meu.
— Eu pensei quase a mesma coisa no dia que dormimos naquele quarto de hotel — soltei uma risada enquanto minhas mãos trabalhavam desenrolando o elástico do seu cabelo. Mechas caíram em cascata no travesseiro, trazendo o cheiro de frutas do shampoo que ele usava.
— Estou me sentindo um garoto — reclamou, fazendo um bico.
— Você ainda é um garoto, , só tem 24 anos — respondi, passando a mão para ajeitar a ondulação que ficou no seu cabelo.
— É... Eu sou só um garoto dormindo ao lado de uma garota, afinal de contas. — Ele pareceu refletir enquanto eu ainda arrumava seu cabelo. — Acho que esse é o tipo de situação que uma mãe deveria ensinar para o filho. Vai existir uma garota que te faça dormir ao lado dela sem querer nada e te deixar confuso. A minha poderia ter me ensinado algo ao invés de ter se ocupado sendo ridícula me xingando daquele jeito — suspirou, um pouco mais exaltado, provavelmente por estar falando dela. — Digo que precisa ser a mãe a ensinar isso, porque acho que meu pai nunca teria a sensibilidade de pensar em uma situação assim antes da Karin.
— Ah, ... — eu enrosquei meus braços ao redor do seu pescoço, encostando a minha testa na dele em um gesto automático e sentindo minha pele arrepiar pelo contato. Eu queria tanto que tudo fosse diferente para eles três, que a mãe deles tivesse pelo menos mantido contato depois da separação e tentado ser melhor. Não fazia ideia de como era ter pais separados, quem dirá ser negligenciado por um deles. Minha mãe era cruel, às vezes, e um pouco ausente por ser uma atriz famosa, mas não na mesma proporção. Foi a mesma coisa que pensei com a Lilly aquele dia e prometi a ela que iria cuidar dele, eu falhei miseravelmente e o pensamento me fazia querer chorar. Era insuportável não fazer nada, por isso o segurei nos meus braços para poder mostrar, pelo menos, que estava ali.
— Eu tenho toda essa merda emocional que sempre me deu certeza da minha escolha em não ter filhos. Atuar um pouco como uma espécie de pai dos meus irmãos mais novos contribuiu bastante — ele continuou, me fazendo abrir os olhos e vê-lo tão perto, seu hálito soprando meu rosto e me fazendo prestar bastante atenção. — Nunca confiei em nenhuma mulher para ser mãe, mas... — franziu a testa — ...de alguma forma, confio em você.
— O que você quer dizer? — murmurei, com o cenho franzido.
— Não tenho certeza se isso não vai soar estranho, mas você é organizada, dedicada, bondosa e doce mesmo quando está brava. Tudo que minha mãe não foi. — Prendeu os lábios em uma linha fina, parecendo em dúvida com o que estava prestes a dizer — Se, um dia, eu tiver filhos, espero que seja com alguém assim como você. Acho que não faz muito sentido, ?
Eu me senti… honrada? Lisonjeada? Não tenho certeza se entendi bem, se ele disse que serei uma boa mãe em geral ou uma boa mãe para os filhos dele. ‘Tá, ele disse que queria uma mulher com minhas qualidades para ter filhos, significava, então, que talvez estivesse dizendo que queria ter filhos comigo, certo? Ou com outra que tivesse as mesmas qualidades. Ai, meu Deus!
Fiquei confusa com aquela fala, mas positivamente. Ainda não me decidira, talvez eu devesse conversar com Lilly, que o entendia melhor.
— Desculpa, não queria jogar esse fardo em cima de você — ele riu. — Parece até que estou te pedindo para ser mãe dos meus filhos que nem quero e a gente mal se conhece. — Soluçou. — Ignore isso, só estou… bêbado. Muito bêbado.
Fiquei sem fala, não sabia se aquela conversa era de alguém bêbado, de algum jeito parecia séria demais. Senti como se ele tivesse pensado nesse assunto durante os meses que mal nos falamos e esperado a oportunidade perfeita para me dizer. Porém, ao mesmo tempo, não o via pensando nisso sóbrio. Ele sempre pareceu ocupado demais até para notar minha presença naquela casa.
— Não sei o motivo de confiar tanto em você desde que te vi pela primeira vez. Caramba, eu te deixei entrar na minha vida sem nem saber quem você era. — Fitou o teto e seus olhos estavam vermelhos. — Isso não é comum, a Lilly estava certa em estranhar aquele dia. Mas acho que não me arrependo, gosto de saber que você está em casa, me sinto menos solitário, mesmo que não conversemos.
Eu concordava, ele nem sabia meu nome direito e me deixou ser sua assistente, morar em sua casa. Ele até tinha me deixado conhecer seus irmãos, a casa da sua família e sua vida de verdade. Isso era demais, sabia muito bem. Sempre estive ciente da minha sorte de o ter inspirado confiança para me acolher. Então me senti na necessidade de agradecê-lo verbalmente, já que limpando a casa ou fazendo comida eram minhas formas silenciosas.
— Obrigada por me acolher — eu disse, chegando meu rosto perto do dele de novo para colocar sinceridade nas palavras. Ele se virou para me encarar e nossos narizes se tocaram. Controlei o impulso de me sobressaltar e nos afastar. Estávamos só conversando, então não precisava manter distância. Pelo menos, era isso que meu cérebro entorpecido com sua proximidade concluiu.
Ele riu baixinho.
— Acho que sou eu quem deve te agradecer por tudo que tem feito, por cair de paraquedas na minha vida — ele disse e roçou os lábios nos meus devagar. Não era um beijo de verdade, era algo natural por estarmos perto demais, mas meu coração que batia rápido interpretou totalmente errado. — Eu sinto que deveríamos conversar mais, que você deveria me deixar entrar na sua vida e não me afastar como tem feito. Te dei um tempo, mesmo sem saber do que precisava, mas me sinto sufocado e com vontade de te conhecer... de te questionar. É por isso que bebi, a bebida geralmente me deixa mais tagarela e livre — riu como um bobo e meu coração errou uma batida com a fofura do gesto. — Meu plano era chegar em casa e conversar, mas acabei bebendo além da conta. Andreas estava lá e me trouxe para cá, ainda bem que nos encontramos no fim. — Beijou a ponta do meu nariz, ainda sorrindo. — Eu disse que falava demais.
— É, tenho que concordar — sorri com timidez pelo beijo do nariz e por estar ouvindo informações que soavam íntimas demais para o nosso relacionamento decadente. Espantei a vergonha e acrescentei: — Nunca mais beba assim ou, ao invés de conversarmos, vou te estapear e te colocar na água gelada até ficar sóbrio de novo.
Eu poderia ter falado para ele os motivos da minha distância, mas ainda tinha tanto medo de compartilhar e ele desconfiar dos meus sentimentos. Precisava de mais tempo. Não sei se ele não falou com a intenção de ouvir uma explicação e uma promessa que tudo mudaria ou se apenas ignorou. Limitou-se a sorrir minimamente e se mexer, quebrando nosso contato. Deitou-se direito para assistir à televisão, pondo um fim à nossa conversa.
Provavelmente, ele esperava uma resposta diferente mesmo, mas não estava pronta, então só estiquei o braço e acariciei seu cabelo, rezando para que ele me desse mais tempo e não se incomodasse com minha apatia. Meu receio era que desistisse de mim e me expulsasse da sua vida depois dessas confissões. Não queria ir embora ainda, não queria deixá-lo, eu o amava e meu corpo ainda implorava pelo dele. Só precisava aprender uma maneira nova de lidar com ele, sem correr o risco de mostrar meus sentimentos e assustá-lo ou pior: com que ele me corresponda.
Ele não demorou a adormecer, pelo visto a bebida também o deixava sonolento. Porém, esperei um tempo para ter certeza de que ele estava inconsciente enquanto o fitava. Sua expressão era pura tranquilidade, me dando inveja. Desde que cheguei em 1990, me tornei confusa demais. Apesar da minha facilidade para dormir, toda noite eu remoía minhas atitudes com ele, a saudade de casa, minha confusão por estar em outra década etc., etc., etc. Eram tantos pensamentos.
Achava que o estava afetando com essa confusão de sentimentos. É, eu realmente devia uma resposta a ele, mas, como era um segredo, teria que ser enquanto estava dormindo.
— Eu te amo, é por isso que preciso me manter distante — murmurei, olhando seu rosto iluminado pela luz da televisão. — Ainda preciso aprender como viver aqui, com você, sem levantar suspeitas de que sou uma viajante do tempo. Não tenho para onde ir, então tenho que ser cuidadosa ao extremo. Desculpa — engoli em seco, pensando no momento da banheira e em como estava por pouco de sucumbir tão fácil. — Estou por um triz, sabe? Me lembro bem do seu toque quando dormimos juntos, apesar de prometer que nada mudaria. Tudo mudou dentro de mim, sim. Você ser tão lindo pessoalmente e interessante não ajuda em nada. Logo hoje, você resolveu ser sincero, me elogiar, diz que me vê como uma pessoa boa, ou seja lá o que aquilo signifique... Diz que te deixei menos solitário, tudo de uma vez, depois de três meses que acreditei que estava destruindo seu interesse. Isso é demais para mim, não estou pronta para resistir ainda, . Sou fraca, carente e completamente apaixonada por você. Bom, essa é a minha resposta e a verdade.
Ele não moveu um dedo, apenas continuou a respirar tranquilamente enquanto dormia. Era melhor assim. Minha mente estava tranquila por ter respondido e revelado meus sentimentos. Porém, não me sentia disposta a sair dali e fugir para o quarto de Lilly. Estava simplesmente congelada ao lado dele, tentando digerir tudo o que o bêbado revelou.

Capítulo 10 - Days like this

Quando abri meus olhos, entrou no meu campo de visão logo de cara. Pelo visto, eu estava sendo observada há um tempo. Não sei se foi isso que me fez despertar ou se foi a iluminação do sol que começava a dar sinais pela cortina aberta. Suas mãos estavam em cima do travesseiro, amparando sua bochecha, seus olhos estavam atentos.
— Que horas são? — perguntei, coçando os olhos com sono, ainda absorvendo onde estava. Depois de acordar em vários lugares ao longo desses meses, meu cérebro estava encontrando dificuldades em se situar quando minhas pálpebras se abriam.
— Acho que sete — ele respondeu, sem mexer nada além dos lábios.
O dia realmente tinha acabado de nascer através das cortinas de linho, como eu havia notado ao acordar, e era parte responsável pela cor tão profunda dos olhos dele.
Me espreguicei, não devia ter dormido nem três horas direito.
— Por que já está acordado? — indaguei, voltando a me ajeitar para encará-lo da mesma forma.
Ele deu de ombros.
— Tenho insônia — ele explicou e abriu um sorriso galanteador. — Acho que hoje, exclusivamente, foi culpa sua. Talvez minha consciência tenha me acordado porque quisesse te ver dormindo.
Sorri. Ele era mesmo um conquistador barato, mas, juntando isso à sua beleza, deveria ser mortal para qualquer ser que sentisse atração pelo sexo masculino.
— Falando assim, soa até piegas — respondi, um pouco envergonhada.
Ele soltou uma risadinha baixa e se aproximou calmamente até nossos corpos estarem colados. Estagnei no lugar, esperando com curiosidade seu próximo movimento e tentando assimilar sua proximidade. Será que ele lembrava o que me disse ontem? Se lembrasse, em tese, tudo estaria mais estranho entre nós. Ou não. Ele disse que bebeu para ter coragem de falar comigo, então isso daqui deveria ser a continuação de ontem. Seus lábios calaram meus pensamentos e me fizeram arregalar os olhos. Ai, meu Deus, ele me beijou! Meu corpo logo despertou reconhecendo o dele. Não foi um beijo beijo, só um selinho, mas definitivamente mais notável que o roçar de nossas bocas ontem. Estou em completo pânico. Ele não percebeu quando parou, no entanto.
— Fica comigo só hoje — pediu. — Depois de tudo que te falei ontem, eu só te peço isso, um dia para matar minha saudade.
... — comecei, em aviso, e sem saber o que dizer ao certo. Ele disse que tinha saudades de mim, não era minha culpa estar desconcertada.
— corrigiu, pegando minha cintura por baixo do lençol com sua mão possessiva.
, você é meu chefe e nós entramos em acordo que seria só aquela vez, sem mudar nada — adverti, conseguindo milagrosamente tirar palavras que faziam sentido juntas do meu cérebro que parecia gelatina com seu toque.
— Só por um dia, baby, ignore tudo e eu vou fazer ser bom para nós dois — ele disse, deslizando as mãos e adentrando a barra da camiseta para tocar minhas costelas. Todos os meus poros se arrepiaram em resposta e tive que me concentrar para manter meus olhos bem abertos. — Estou tão louco por você e já tem um tempo.
Em um segundo, ele estava na curva do meu ombro beijando meu pescoço e tirando o resto da minha sanidade. Ele estava louco... por mim? Não podia ser. Sem chances de acreditar naquilo depois de perceber que ele era só um paquerador, não é? Não é? Questionei meu corpo que me traía conforme ele descia os beijos pelo meu colo. Ele podia ter qualquer mulher que quisesse, o que me levava a pensar: estava tão carente a ponto de mentir ou podia ser mesmo verdade? Me recompus um pouco para tirá-lo da minha pele e voltar a nos encararmos.
— Desde quando você está sentindo isso? — questionei, querendo que conversássemos mais ou eu acabaria cedendo.
Ele suspirou e se afastou um pouco, encarando um ponto atrás de mim. Suas mãos ainda estavam nas minhas costelas, provocando um formigamento ligado diretamente ao meio das minhas pernas, porém tolerável.
— Não sei, mas você tem essa coisa de fisgar as pessoas como se sempre tivesse por aqui. Eu não consigo entender o que é isso e estou ficando louco tentando. Fico mais louco ainda sentindo seu cheiro, te vendo acordar mais cedo só para preparar panquecas para mim, o jeito que você conversa com Solveig e aquela música que você cantarola tomando banho, ela fica na minha cabeça o dia inteiro...
My Heart... So Blue? — interrompi-o, pensando alto. Achei que ele não me escutava. Era uma música do Erasure de 1986 que tocava na rádio todos os dias religiosamente enquanto eu estava na produtora, eu amava esse álbum desde o meu tempo.
— É esse o nome da música? — ele perguntou, anuí em resposta. — Então finalmente vou parar de ficar com essa porra de música na cabeça e poder ouvi-la inteira. — Ele riu de olhos fechados. Acompanhei sua risada.
— É do Erasure — comentei, ainda rindo.
— Acho uma bandinha brega, mas estou disposto a dar uma chance só por causa dessa música e por você. — Ele parou de rir e ficou sério. — Você me atrai, , não sei quando e nem como, mas sinto essa atração estranha por você.
Não conseguiria descrever tudo que passou pela minha mente, porque foi um turbilhão de pensamentos e sensações que não acompanhei. Senti que ele não estava tentando me cantar, que, se eu o negasse, doeria mais do que um fora comum. Ah, Deus sabe que não queria negá-lo mais uma vez. Por que ele não poderia ter facilitado e desistido? Me incomodava profundamente vê-lo daquele jeito, me desejando, sendo sincero, esperando algo de mim depois de meses que me recolhi em um casulo para evitar tudo isso. Incomodava mais do que tentar visualizá-lo sofrendo no futuro. Eu era uma egoísta de merda.
E a justificativa era simples: eu também precisava dele.
Não podia mais suportar aquela resistência, precisava apenas de um dia para recuperar minhas forças. Um dia com ele.
Eu tive uma noite, agora precisava de um dia. Seria um passo até não conseguir mais parar...
Os olhos dele brilhavam em expectativa, como uma criança em uma loja de brinquedos.
Foda-se a razão.
— Só hoje — cedi. Ele não esperou nem dois segundos para colar nossas bocas.
Era um beijo cheio de necessidade, a impressão é que ele queria conferir se estava tudo ali mesmo, se era como ele lembrava. Cada parte que tocava despertava imediatamente e de novo enquanto sua língua exigia o máximo da minha. Eu não esperava por isso, pensei que ele me daria um tempo para pelo menos acordar, mas ele estava decidido a não perder tempo. Acabei por demorar a corresponder os movimentos hábeis da sua boca.
Desceu as mãos para minha cintura e colou nossos corpos mais uma vez — me fazendo sentir toda a extensão da sua excitação. A lembrança vívida da última vez, de quando finalmente nos conectamos da maneira mais intimista possível, veio à minha mente e me causou calafrios de ansiedade para senti-lo de novo.
Deslizei minha mão para dentro de sua calça e o toquei. Oh, ele realmente me desejava. Partiu o beijo para gemer de olhos fechados quando minha mão começou a se movimentar com curiosidade. Se virou para se deitar com as costas totalmente no colchão, provavelmente para aproveitar melhor. Deslizei para junto dele e aumentei a velocidade dos meus movimentos.
Enquanto eu o admirava reagindo deliciosamente ao meu toque, a porta rangeu e ele reagiu antes de mim, me escondendo debaixo do lençol.
Misericórdia, nós tínhamos acabado de sermos pegos no flagra!
Segurei a risada escandalosa que tentava a todo custo sair enquanto me mantinha imóvel grudada a ele.
— Lilly! — ele vociferou. — Será possível mesmo?! Quantas vezes eu já te disse para bater antes de entrar?
— Achei que você ainda estivesse dormindo, por isso não bati — ela explicou com a voz trêmula, provavelmente por ele ter sido tão grosseiro logo de cara.
— O que você quer? — ele rosnou.
— A não foi para o meu quarto, ela está aqui?
Bom, eu não poderia ter desaparecido, ? Não tinha mal ela saber que dormi na mesma cama que ele, como disse ontem. Então, em outro surto de coragem menos de 24 horas depois, coloquei a cabeça para fora do lençol, mostrando que sim.
— Ah... — ela disse, mas parecendo entender não o que eu pretendia, mas tudo. — Merda.
A porta bateu e ouvi os passos dela correndo no corredor. Tirei minha mão que ainda segurava a ereção dele. Cara, aquilo não era nada bom... Nós estávamos no quarto de hóspedes da casa da família dele! Eu deveria ter previsto que não aparecer ontem a faria procurar por mim. Mais um pouco, era perigoso ela me pegar em cima dele no ato em si. Estremeci com o pensamento.
— Quase certeza que a gente acabou de traumatizar sua irmã — comentei, me sentando na cama.
— Só a Lilly mesmo para entrar no quarto em uma hora dessas. — Ele colocou o travesseiro no rosto, em um ato revoltado e excitado demais. — É uma habilidade que ninguém tem.
— Vamos atrás dela — chamei, sentindo meus lábios se curvarem em um sorriso. Desmanchei na mesma hora que me dei conta que estava sorrindo em uma situação desesperadora daquelas.
— Preciso me acalmar primeiro — ele resmungou, ainda com o rosto enterrado no travesseiro.
Me desvencilhei do lençol, sem poder continuar ali o esperando, sabendo que Lilly estava traumatizada. Acho que ele nem queria mais minha companhia, afinal não poderia ajudá-lo nesse quesito agora e provavelmente minha presença só pioraria.
Demorou algum tempo até que ele se sentisse em condições de se mexer, enquanto isso, troquei de roupa, me arrumei no banheiro e o deixei no quarto.
Eu me sentia uma mãe caminhando para o quarto da filha prestes a ter outra conversa inevitável. Juntei toda minha paciência e bati à porta duas vezes. Ela abriu um pouco e conferiu quem era. Por um breve momento, achei que não me deixaria entrar, mas, quando me viu, ela me puxou para dentro e trancou.
— Sinto muito, eu não fazia ideia... — ela choramingou. — Céus, eu preferia ter morrido sem presenciar isso.
A coitada não parecia saber nem como reagir, se sentia envergonhada por ter interrompido ou traumatizada por imaginar o que interrompeu. Era possível enxergar em seus olhos assustados.
— Calma — pedi. — A gente não estava fazendo nada...
Ela me lançou um olhar de pura descrença, aquela garota sabia algumas coisas demais e outras de menos. Quer dizer, ela não era boba, já tinha 16 anos e nessa idade nós já estamos dominadas pelos hormônios. Ao mesmo tempo que penso que ela é nova demais por ser a irmãzinha do garoto que gosto, também penso nela como alguém da minha idade quando saímos e conversamos. Era um tanto quanto esquisito.
— ...ainda — completei depois da sua cara de descrença. A diferença daquele momento para a nossa primeira conversa é que nós já tínhamos uma certa intimidade e éramos consideravelmente amigas, então não me sentia mais tão envergonhada em falar de nós dois.
A expressão dela se transformou em puro nojo, mas os olhos azuis brilharam em curiosidade. Ela se sentou na cama.
— Vocês fizeram? — ela jogou no ar para que eu captasse. Lilly, apesar de ser esperta, ainda tinha receio de usar palavras como uma adolescente mesmo.
— Não, ele só me pediu para ficar, não aconteceu nada. A gente apenas dormiu — falei, para tranquilizá-la. Ela parecia um pouco descrente ainda, mas eu sustentei seu olhar como forma de garantir que era verdade e eu não iria esconder nada dela (só detalhes, para o bem da sua saúde mental).
Lilly era o meu único referencial de amiga ali. Ela me tratava diferente de Shandi, meu único referencial de amiga nos meus tempos. É claro que as duas eram diferentes, Lilly era tão sagaz e sacava as coisas mais rápido. Tinha o dom de saber tudo antes que qualquer palavra fosse dita. Enquanto Shandi era mais duvidosa, sarcástica e não fazia tanta questão de saber de algo se você a despistasse com plena certeza. No entanto, as duas tinham algo em comum: foram as primeiras a se aproximarem de mim. Eu era tímida na faculdade e Shandi acabou dando um jeito de furar minha bolha ao me ver lendo fanfic, depois trouxe Raj para o nosso círculo, mas sempre nossa amizade se limitou ao campus. Usualmente eu visitava a casa de sua família e, ela, meu apartamento. Já Lilly, depois daquele dia que disse ter ficado feliz em ter finalmente uma garota mais velha para conversar, basicamente me tratou como sua irmã e me apresentou a tudo na cidade. Por isso, sentia que tinha minha idade, mas, quando a ligava ao seu irmão mais velho, parecia que ela ainda usava maria chiquinhas e andava por aí com seu ursinho de pelúcia.
Para resumir, se não fosse por Lilly, eu teria passado os últimos meses trancada em casa com , sem conhecer nada de Estocolmo. Então, já era muito grata a ela. Por isso que dizia que ela era um dos motivos para não voltar para 2019 ainda.
Comecei a desfazer a cama que Andreas tinha preparado para mim e ela me olhava, pensando no que me perguntaria, só que dessa vez tomando cuidado para pensar no que ela queria realmente saber e o que ela não queria de jeito nenhum. Minha vontade era de rir ao constatar isso.
— Meu irmão é romântico? — ela perguntou, cautelosa.
— Ele é um conquistador, você sabe... — falei e ela concordou. Pensei nele falando que estava louco por mim, pelo meu cheiro, pela música que cantava no banho e em tudo de ontem à noite. — Mas acho que sim, ele deve ser um daqueles bêbados românticos — completei, agora sem olhá-la e ainda dobrando o cobertor.
Ela riu.
— Ele é um daqueles bêbados chatos, isso sim — comentou. — Você disse que não ia mais se envolver com ele nas últimas vezes que nos encontramos, o que te fez mudar de ideia?
Suspirei. Eu estava determinada a ser sincera com ela, então prossegui:
— Ontem, quando íamos dormir, ele começou a divagar e acabou me contando que não queria ter filhos por causa da mãe de vocês.
Percebi que ela estremeceu só pela menção da mulher que havia os machucado tanto. Quase me arrependi, mas sabia que ela não me deixaria em paz enquanto não terminasse de contar tudo.
Ela pareceu perceber minha hesitação, então balançou a cabeça, pedindo que eu continuasse.
— Ele disse... — puxei o ar, tomando coragem para contar aquilo sem... Sei lá, ainda não sabia como me sentia em relação àquilo — que se um dia fosse ter filhos, ele queria alguém tipo eu para ser a mãe. Porque ele confia em mim.
Lilly arregalou os olhos e abriu a boca, ficou assim por uns trinta segundos depois que terminei de falar. Até que ela soltou um gritinho, me pegando desavisada e causando um sobressalto. Já percebera que ela fazia isso quando algo muito bom ou muito ruim acontecia, aconteceu duas vezes nesse meio tempo.
A menina caiu com as costas no colchão da cama. Não sei dizer o que estava sentindo, porque ela grunhia enquanto balançava as pernas no ar.
Eu me aproximei, com cuidado, para não causar mais estragos. Ela sorria, encarando o teto.
Ah, era só a típica excitação adolescente.
Finalmente sorri junto com ela e me sentei na beirada da sua cama.
— Ah, amiga... Ele está considerando ser pai por sua causa — ela disse, em êxtase. — O turrão do meu irmão mais velho! Eu nem acredito... Me diz que depois disso você decidiu ter um bebê. Com ele. E eu serei a tia! — falou, emendando tudo.
— Claro que não, eu ainda sou a assistente dele. Não é uma... — Fanfic. Engoli a palavra contemporânea demais que lutava para sair. — Um conto de fadas, Lilly. Não estou pronta para ser mãe, muito menos de um garoto que mal conheço e não é nem meu namorado. Até ontem, a gente mal trocava duas palavras — falei rápido demais e em um tom afetado. A ideia era totalmente maluca e sem noção, eu duvidava que fosse esse sentido que ele estivesse querendo dizer.
Ela se levantou em um pulo e se sentou de frente para mim, ultrajada.
! — ela gritou, eu tampei a boca dela com a mão, indicando que era para falar baixo. O outro irmão dela dormia no quarto ao lado. — Desculpa — tirei minha mão. — Não acredito que você vai continuar negando depois disso. Eu mesma nunca imaginei o meu próprio irmão falando essas coisas, se Dre souber que o falou isso, você vai entender o quão improvável é.
— Ele mesmo reconheceu que estava bêbado e falando coisas sem sentido — respondi, me recusando a acreditar no que ela estava dizendo, por isso completei: — Aposto que deve dizer isso para outras também.
Eu não acreditava nisso, na verdade. Foi intenso demais e ele disse que vinha querendo conversar comigo, lembro que senti que ele tinha guardado aquelas palavras ao longo daquele tempo, mesmo que depois eu tenha concluído que parecia papo de bêbado. Ele disse que confiava em mim como nunca confiou em mulher nenhuma. Porém, falei que ele dizia isso para outras mulheres com a intenção de querer acreditar para o bem da minha sanidade e da nossa relação profissional (agora, em frangalhos). No entanto, ela me provou que eu estava dizendo sandices ao me dar um tapa no braço.
— Outch! — reclamei.
— É claro que ele não fala esse tipo de coisa bêbado, sua bobona! Senão, ele teria um monte de filhos espalhados pelo mundo! Do jeito que as mulheres gostam daquele feioso, não ia demorar a aparecer uma querendo ter um bebê dele — retrucou, me fazendo concordar com ela nesse aspecto. Até onde eu sei, ele morreu sem herdeiros e provavelmente a culpa era da sua mãe, não da falta de alguém para querer ter um filho dele. Ainda mais porque ele tinha ótimos genes, como a beleza, o talento...
Espera, por que estávamos discutindo uma possível mãe para ter um bebê do meu ídolo? E por que logo eu estava encabeçando a lista? Ele mesmo disse que não tinha intenção de jogar esse fardo em cima de mim!
— Lilly, não posso ter um filho agora — expliquei com paciência. Sobre a mentira de estar grávida e ter pedido o bebê, ela já sabia que não era verdade depois que ficamos amigas. Infelizmente, Lilly era doida por bebês e ficou um pouco indignada quando teve a confirmação, por isso estava levando esse assunto tão a sério. — Ainda mais com seu irmão! Quero manter meu emprego e isso seria agir com falta de ética.
Ela soltou uma risadinha de escárnio.
— Ah, é? E por que você estava com a mão dentro da calça dele agora mesmo? — ela soltou com um sorriso perverso emoldurando seu belo rosto.
Eu estava errada sobre todas as outras vezes que ela me colocou contra a parede, essa com certeza foi a mais desconcertante. Se tivesse como me esconder agora, eu não pensaria duas vezes.
— Co-como você sabe disso? — gaguejei, mortificada. Esse era o detalhe que eu preferi deixar de fora.
— Dá para saber pela forma que o lençol estava quando você apareceu — ela falou como se fosse óbvio e sem importância. — Agora me responde.
Engoli em seco, tentando não deixar minha voz trêmula e seguir com a naturalidade que Lilly estava tratando aquilo. Eu me dispus a ser sincera como amiga com ela pelo que vivemos cultivando nos últimos tempos, mas era mais fácil no pensamento do que na realidade quando ela me questionava assim.
— Ele me pediu para ignorarmos tudo só por hoje, eu meio que concordei.
Ela bateu a palma da mão na testa, mostrando que aquilo não era uma boa ideia. Nenhuma novidade, não é como se eu não soubesse ou pudesse fazer algo diferente.
— Bom, acho que tem duas alternativas: ou ele vai sacar que você está totalmente apaixonada e não vai tolerar quando voltar a tratá-lo daquele jeito ou você não vai conseguir mais parar — ela disse, me olhando com reprovação. Ela sabia também que eu o estava afastando depois do episódio de ciúmes e pelo medo de mostrar que estava apaixonada demais. — Bom, vamos ver no que isso vai resultar. Nós marcamos nosso compromisso de hoje para outro dia, que tal?
Concordei com a cabeça. Eu não queria cancelar, eu me divertia muito com ela. Algumas vezes, quando saíamos, nós falávamos do irmão dela e arquitetávamos planos — geralmente ela arquitetava e eu falava que não daria certo, porque eu e ele não tínhamos e nem teríamos nada. Mas Lilly era Lilly, ela colocou na cabeça que nós dois éramos perfeitos um para o outro e não desistiria. Eu até que gostava disso, ela daria uma boa fanfiqueira pelos plots que arquitetava.
Como boa cupido, ela cedeu o horário com tranquilidade para ele. Ela costumava me ligar umas dez horas, quando eu pegava o telefone e puxava o fio até o quarto para fofocarmos, então provavelmente eu teria que descrever o dia de hoje mais tarde.
Nós duas descemos as escadas, enquanto estava lendo o jornal novo de pernas cruzadas em um dos sofás da sala de estar. Seu cabelo estava molhado e penteado para trás, ele mastigava os amendoins que ficavam perto das bebidas, mas que agora estavam na mesinha de centro.
Ele ergueu os olhos e nos viu, depois voltou a atenção para o papel. Parecia que ele conseguira se recuperar bem, provavelmente com a ajuda de um banho gelado.
Estremeci um pouco ao lembrar que ele teria o dia de hoje para mim. Então, nós voltaríamos para casa e nada seria igual ao que costumava ser. As borboletas no meu estômago me mostravam o quanto estávamos nervosas com essa constatação.
Despedi-me de Lilly, enquanto ele terminava de ler o jornal. Ela sussurrou as coordenadas: dez horas ela iria dar três toques no telefone, se eu não atendesse, era para ligar depois, já eu apenas dava um toque e, se ela não atendesse, provavelmente o telefone estava no quarto de Andreas.
Sorri e concordei veemente, seria legal ter algo novo para contar só para variar.

***


Ele não falou durante o trajeto para o apartamento, apenas colocou uma fita com músicas do Aerosmith para preencher o silêncio, mas sua mão estava na minha coxa enquanto dirigia — o que tornou a situação até que confortável.
Quando abri a porta com minha chave, Solveig não parecia tão animado. Ele bocejou, se alongou e depois veio dar um “oi” preguiçoso para nós, como se nos culpasse pelo horário. Bom, pelo menos não tinha deixado um cocô de presente.
o colocou na varanda para tomar um sol e para usar o jornal no chão caso estivesse apertado demais até o passeio, depois fechou a porta. Sua mão ainda estava no trinco quando ele levantou os olhos para me observar e notei suas pupilas dilatadas. Nós mal havíamos pisado em casa e ele me comia com os olhos, mostrando que queria desesperadamente continuar o que havíamos começado de manhã. Pelo modo que meu corpo reagiu em resposta, eu também já não estava mais disposta a perder tempo.
Soltei a bolsa no chão, entendendo tudo o que iria acontecer nos próximos segundos. Ele deu passos rápidos até me encontrar e nos beijamos de novo como se nossas vidas dependessem daquilo — eu sentia que provavelmente dependiam sim, era a minha dose necessária para poder continuar convivendo com ele. Para quando dormisse no quarto dele, sozinha, pudesse pelo menos me contentar com a lembrança.
Ele me ergueu pelas coxas, andou comigo enroscada em seu quadril até que eu estivesse sentada no balcão da cozinha e nossos rostos de frente um para o outro, na altura certa. Nos beijamos por mais alguns minutos, mas nós dois estávamos impacientes. Ele desceu os beijos pelo meu pescoço e pelo meu colo, tirando toda a roupa dali e jogando longe para que pudesse beijar cada pedacinho que antes estava coberto.
Eu o queria e queria agora. Por isso, peguei seu queixo com os dedos e o trouxe de volta para o meu rosto, de forma a olhar nos olhos dele — que talvez fossem minha parte favorita, ainda estava em processo de decisão. Não dava para decidir uma parte favorita tão fácil quando a pessoa em questão é seu ídolo.
Desabotoei o jeans dele, enquanto nos olhávamos fixamente, deslizei minha mão pela segunda vez no dia para segurá-lo. E lá estava ele, quente, pulsante e viril para mim de novo. Ele apertou as pálpebras, como se meu toque tornasse a ereção insuportável. Trouxe-o para perto com minhas pernas em volta da sua cintura, sem nunca soltar a parte dele que mais me clamava. Sua cabeça estava do lado da minha, o que me facilitou sussurrar diretamente em seu ouvido:
— Faça ser bom para nós dois.
Foi o tempo calculado de levantar um pouco a saia e afastar a roupa íntima — quando terminei a frase, coloquei-o dentro de mim.
Ele soluçou e gemeu ao mesmo tempo, prova de que o surpreendi como planejei. Senti seu tronco se afastando, e seus olhos me fitando como se eu fosse a mulher mais cheia de surpresas e incrível do mundo, enquanto começava a se movimentar para me convencer que, para ele, eu era mesmo.
Suas investidas se tornaram em um piscar de olhos tão urgentes, tão profundas e tão rápidas que eu tive de me apoiar com os cotovelos no granito. Eu não achei ruim, precisava dele exatamente daquele jeito e com aquela intensidade para esquecer da loucura que estava fazendo, além de calar meu desejo ensurdecedor que me incendiava desde a primeira vez que o senti no meio das minhas pernas. Ele começou a apertar minha cintura com força e achei que era um sinal de que estava perto do ápice. Desgrudei meus olhos de seu rosto contorcido pelo prazer, só para olhar sua mão possessiva cravada na pele da minha cintura. Era como se ele me reivindicasse com aquele toque. Eu não pertencia a ele, não era nenhuma propriedade e definitivamente não pretendia deixar que homem algum me tratasse daquele jeito, nem que fosse meu ídolo que tivesse me feito viajar quase 30 anos para encontrá-lo. Porém, naquele momento, eu era dele. Enquanto ele me apertava, rosnava e estocava com fervor no balcão da cozinha, eu era dele.
Ah, se era.
Eu passei meus braços ao redor do seu pescoço e gritei o nome dele, como prova disso:
!
Sabia que me escutar gritando o que ele me pediu na noite anterior foi a sua perdição. Ele tentou sair de mim para ejacular fora assim como a primeira vez, mas o prendi com meus braços e pernas para aproveitar mais o momento.
— ele gemeu baixinho e sedutoramente no meu ouvido. Se eu não tivesse acabado de ter um orgasmo, com certeza o seguiria depois disso. gemendo era algo que nunca iria se apagar da minha mente — quiçá gemendo meu nome.
Depois de passar o efeito inebriante, ele se afastou do meu abraço de forma a nos encararmos. Tinha o cenho franzido, formando uma ruguinha entre as duas sobrancelhas que me tentava a tocá-la.
— Você... me... prendeu — ele disse pausadamente e assustado.
Eu ri, ele devia estar achando que interpretei literalmente o que me disse ontem.
— Eu tomo pílula — expliquei. É claro que eu falei sério para a Lilly que não estava pronta para ser mãe, por isso me precavi depois da nossa primeira noite inconsequente no hotel. Ficou claro, para mim, que mesmo dando o meu máximo para afastá-lo, nós poderíamos acabar nos atracando de novo em algum ponto e coito interrompido não é lá muito confiável. Eu estava estudando para ser uma bióloga, era vergonhoso pensar que utilizei esse método uma vez na vida, sabendo bem que continha espermatozoide no líquido pré-ejaculatório. Então, resolvi marcar uma consulta com uma ginecologista e começar a tomar pílula assim que consegui meus documentos aqui, era bom para controlar minhas cólicas também, que costumavam ser intensas.
Sua expressão suavizou e ele finalmente pôde soltar todo o ar que prendia. Não será hoje que você se tornará papai, . Eu podia parecer aproveitadora pelo modo que cheguei em sua vida, mas garantia que não era. Então, sei que ele falou aquilo ontem só para dizer que confiava em mim, mesmo que tenha me causado dúvida e Lilly tenha me dito o contrário hoje. Como eu disse, nunca pensei em ser mãe, só tinha 25 anos e sentia que não estava na hora ainda. Queria que, quando acontecesse, pelo menos fosse com alguém que eu amasse e me retribuísse. Ele só estava atraído, como disse.
Desci do balcão e ajeitei minhas roupas. Depois, com ajuda dele, fiz panquecas com a geleia de morango, que comprei no mercado ontem, para nós dois. Era tão engraçado ser seu prato favorito e ele associar a mim por apresentá-lo, sendo que, na verdade, aprendi essa combinação exatamente porque ele falava em sua música. Eu ainda ficava confusa como estava tudo se encaixando.
Deixei-o comendo no balcão — que nós limpamos, claro — para ir tomar banho. Antes de entrar no banheiro, liguei o rádio e My Heart... So Blue do Erasure era anunciada, sorri e deixei tocar enquanto trancava a porta. Ouvi-o aumentar o volume do aparelho na sala, mas o suficiente para me ouvir. Eu não era nenhuma cantora como ele, então timidamente comecei a cantar ao me despir e continuei depois de ligar o chuveiro. Não sei porquê, mas eu sabia que ele estava ouvindo atentamente com um sorriso no rosto do outro lado da porta. Isso me fez feliz por um momento.

***


Eu estava sentada no chão, Solveig estava deitado de bolinha no meu colo. estava em um banquinho da cozinha que era bem baixinho — o que era engraçado porque suas pernas eram enormes.
Ele tinha concordado, depois de muita insistência, em cantar uma música para mim. Então, pedi a do último álbum que mais ficava bonita em sua voz. Sabia bem que ele não gostava de cantar as próprias músicas ou escutá-las porque era muito crítico com seu próprio trabalho, mas eu era fã dele e não poderia perder a oportunidade.
Por isso, estava ali com o violão em um banquinho ridiculamente pequeno demais para ele, mudando a afinação enquanto eu o observava. A ansiedade tomou conta de mim porque não sabia o que esperar, se seria muito diferente da versão do estúdio, se seria igual, se minha opinião mudaria, se eu teria que fingir que gostei.
Ele tinha prendido a parte da frente do cabelo para trás, com uma presilha, em um penteado que eu julgava se assemelhar muito a um dos elfos do Tolkien. Me lembrava de ser seu penteado favorito no documentário em homenagem a ele.
Estava vestido com short jeans e regata preta — um de verão nos últimos dias da estação. O clima começaria a mudar em setembro na Europa e agosto tinha acabado de começar.
Ele passou o dedo no violão, a primeira nota que me arrancou dos meus devaneios. Sua voz acompanhou e minha pele se arrepiou de expectativa.
O alívio me dominou ao me certificar de que era a voz que eu passei tanto tempo escutando nos fones de ouvido, ela soava diferente só pelo ambiente não ser tão abafado quanto um estúdio. Mas era aquela voz que me acompanhava ao longo do dia e da noite em 2019, vinha dele e era perfeita.
A música agora estava perdida para mim. Nunca seria a mesma coisa, agora que eu conhecia a sensação de ouvi-lo cantando na minha frente. Eu queria que ele cantando para mim fosse meu primeiro pensamento quando pensasse nela quando eu voltasse para 2019. A sua concentração e dedicação me encantavam, ele cantou com a alma. Não foi algo descuidado ou preguiçoso por só ter eu ali assistindo. Foi realmente bonito de se ver.
Ele terminou e eu deveria ter uma cara de boba estampada ou minhas pupilas viraram corações, porque ele sorriu quando me dirigiu o olhar.
— Foi tão ruim assim? — ele perguntou com vergonha.
Eu toquei meu rosto com os dedos, só para me certificar de que não estava sonhando no meu apartamento em Birmingham.
— E-eu... — gaguejei, impressionada demais ainda. — Não sei se queria que o mundo todo pudesse ouvir isso ou se sou egoísta demais para dividir.
Sua risada masculina reverberou, o que me fez despertar um pouco do transe. Ele encostou o violão na parede, depois se ajoelhou no chão, vindo na minha direção. Sua mão amparou minha mandíbula e, segurando meu rosto, ele me beijou calmamente. Os movimentos de sua língua eram suaves e seu polegar fazia carinho em minha bochecha.
— Às vezes esqueço que você é minha fã — ele comentou, depois de partir o beijo. — Obrigado.
— Pelo quê? — perguntei com um sorriso e acariciei sua bochecha macia de barba recém-feita.
— Por ser minha fã. — Beijou a ponta do meu nariz. — Antes de você falar aquilo no outro dia, eu não me dei conta de que poderia ser o artista favorito de alguém. Quer dizer, eu sabia que a banda era a favorita de muitos meninos porque recebo muitas cartas falando isso, também que se inspiram na minha atitude merda dos anos 80. Porém, desde que eu resolvi mudar e ser mais como eu mesmo, pensei que a atenção ficaria só na banda e eu seria só uma consequência do trabalho. — Seu polegar começou a acariciar meu lábio inferior e nossos olhos estavam em uma conexão assustadoramente inquebrável. — Eu só não imaginei que no mundo tivesse alguém como você, que joga verdades na minha cara, me acusando de ser um péssimo artista, ou que gosta tanto da minha voz a ponto de, na primeira oportunidade, me pedir para cantar uma música minha. Então, sim, obrigado por ser minha fã.
O sorriso que senti meus lábios formarem foi de puro derretimento. Nunca imaginei que alguém me agradeceria pelo que eu fazia de melhor: ser fã. Ainda mais ele, que não me enxergava só como uma fã, mas também como sua assistente, a pessoa com quem dividia seu apartamento etc.
Solveig se espreguiçou no meu colo, provavelmente achando ruim nossa proximidade. Estávamos dignos do nojo que Solveig nos lançava mesmo. Se eu conhecesse um pouquinho mais, duvidaria da atração que mencionei mais cedo e chutaria que existia algo a mais pelo modo que estava me tratando. Porém, é claro que estava colocando expectativas demais pensando isso. Não sabia como ele tratava as outras...
Tentarei não pensar nas “outras”.
Minha cabeça insistia em lembrar que eu teria de pôr um ponto final nisso em algum ponto do dia. Porém, por enquanto, eu iria aproveitar cada momento. Seize the day.
Decidimos sair para dar uma volta pela cidade, colocamos a coleira em Solveig e o levamos também. Andamos pelo parque de mãos dadas. Eu estava totalmente rendida, romanticamente falando.
Ele segurou Solveig enquanto eu me arriscava a falar sueco com o vendedor da barraca de sorvete. Ouvi-o rindo junto com o homem mais velho quando troquei uma palavra semelhante por uma parte do corpo humano que eu nem sabia que tinha esse nome até agora. Porém, em tese, fui até bem. Consegui sair de lá com duas casquinhas de sabores que não foram os que eu tinha em mente. Entreguei uma para que arqueou uma sobrancelha.
— Eu queria de baunilha — comentou, rindo e analisando o sorvete. — E não... verde.
A julgar pela cor e textura, deveria ser de pistache ou de menta. Era quase a mesma coisa, não?
— Tenho sorte de voltar com sorvetes e não com qualquer outra coisa estranha que ele tivesse lá — sorri, provando o meu e sentindo o gosto de morango. Eu pedi chocolate branco, mas gosto de morango também. — Ainda bem que, além de sorveteiro, ele não é um traficante ou agora você estaria segurando algum tipo de droga que a gente nunca ouviu falar.
Ele soltou uma risada baixa e breve, seus olhos azuis encaravam meus lábios no sorvete com certa obscenidade. Afastei o sorvete da minha boca, com um pouco de vergonha e pareceu o despertar.
— Deixe-me provar o seu — ele pediu. Antes que eu erguesse o sorvete para lhe oferecer, sua boca já estava na minha e sua língua deslizou pelos meus lábios que antes observava. Arregalei meus olhos minimamente com a surpresa. Não era o que eu tinha em mente. Não durou muito, ele logo se afastou porque Solveig ainda estava em sua mão e nós ainda estávamos no meio da passagem do parque. — É, eu prefiro morango a sabor verde.
Soltei uma gargalhada meio escandalosa. Ele nem tinha provado o seu para saber do que era. Entreguei o meu e peguei o dele. Eu gostava muito de sorvete, então o verde não me intimidava. Contanto que não fosse de cupuaçu, estava satisfeita.
Sentamo-nos no banco ali perto, ele enrolou a guia de Solveig no pé para que ficasse com as mãos livres. Tomei o sorvete de menta enquanto observava as pessoas passeando e vivendo mais um domingo de 1990 em Estocolmo. A esse ponto, as roupas, os cortes de cabelo e as atividades diferentes tinham se tornado algo completamente rotineiro, mas às vezes ainda me pegava refletindo. Tudo parecia mais fácil, apesar de termos avançado nas tecnologias que tornaram nossa vida mais cômoda, as relações e a conversa fluíam com facilidade admirável. As pessoas pareciam mais felizes em interagir, em se conhecer e encontrar. Tiro por mim e por Lilly, que andamos saindo mais do que saí em 25 anos com todos meus outros amigos.
— É de que, afinal? — ele perguntou, atraindo minha atenção. Percebi que ele estava falando do sorvete depois de alguns segundos.
— Menta — respondi, notando que ele tinha acabado o seu devido a ausência da casquinha em qualquer lugar visível. — Quer provar de novo? — sugeri, surpreendendo até a mim mesma com a audácia.
Ele sorriu de lado e se arrastou para perto de mim. Me preparei para o beijo, mas ele só riu e lambeu o sorvete que estava quase no fim da minha mão. Fiquei frustrada e acho que minha expressão não me deixou esconder isso. Fiz papel de boba esperando-o me beijar e, de repente, estava sentindo muita vergonha por aquilo. Não costumava fazer investidas, então era o suficiente para me desestruturar.
Fiz menção de jogar o resto no lixo, já que não era muito fã de comer a casquinha com o restante, e também porque estava irritada com o sorvete, mas ele parou minha mão no meio do caminho da lixeira que estava atrás dele. Pegou o sorvete e enfiou o indicador ali, depois espalhou o sorvete pela minha boca. Eu o observei com completa descrença enquanto repetia por mais três vezes, até que meus lábios estivessem lambuzados. Jogou o resto na lixeira e limpou o que sobrou dos dedos no short jeans. Me senti uma palhaça ali com a boca cheia de sorvete até ele se aproximar de novo, passar as mãos pelas minhas coxas desnudas fazendo a pele arrepiar, depois lamber o sorvete devagar enquanto olhava nos meus olhos. Era uma cena totalmente imprópria para um parque no domingo à tarde, onde crianças corriam para lá e para cá, mas ninguém deu a mínima. Tenho certeza de que, em 2019, nós teríamos sido parados por pais irritados. Era para eu estar achando nojento também ou ainda estar irritada, mas meu sorriso de lado mostrava o quanto estava apreciando ser provada por ele.
Quando dei por mim, sua língua já estava dentro da minha boca convidando a minha para se juntar a ela. Por mais que eu estivesse meio travada devido a possibilidade de estar sendo observada, retribuí, sentindo o gosto de morango e o quanto sua língua estava gelada. Era um tanto quanto diferente e bom devido a sensação térmica. Ele agarrou minha nuca para aprofundar o beijo. Sua outra mão que continuou acariciando minha coxa pegou meus tornozelos e apoiou minhas pernas em seu colo. Ficamos ainda mais perto assim. O nó de excitação no meu ventre se tornou notável, estava caminhando para o insuportável em estar tão perto e o beijando em local público. Minhas mãos encontraram o cabelo sedoso e desfrutei de seu sabor que lentamente ia sumindo, dando lugar ao sabor de tabaco usual.
Solveig latiu, arrancando nós dois do momento. Encarei-o, tentando entender o que estava acontecendo, um homem ruivo se aproximou tampando o sol que vinha em nossa direção.
— Meu cachorro pode brincar com o de vocês? — perguntou em inglês com forte sotaque americano. Pensei que ele falaria algo sobre eu estar quase totalmente no colo do homem à minha frente, mas não. concordou com a cabeça e o homem apenas soltou a guia da peitoral do seu pastor alemão.
Ele ainda tentou voltar a me beijar, mas apesar de o desconhecido estar entretido com os dois cachorros brincando, eu tive o bom senso de me incomodar.
— Quer voltar para casa? — sugeriu. — Só um pouquinho, antes de irmos jantar fora mais tarde.
— Você quer me levar para jantar fora? — perguntei enquanto flashes da nossa última refeição em um restaurante passaram diante dos meus olhos. A luz de vela nos olhos dele, depois eu tomando a decisão de me afastar e iniciando o que estávamos esquecendo hoje. Uma memória que não cheirava nada bem.
— Por quê? — ele perguntou, provavelmente devido a minha expressão. — Prefere comer em casa?
Tirei minhas mãos do seu cabelo e suspirei. Será que ele iria interpretar mal se eu preferisse? Realmente não queria me lembrar, ainda estava muito fresco na minha mente e seria um estalar de dedos até me dar conta do que estava fazendo.
— Sim, prefiro — respondi, mordendo o lábio inferior.
— Tudo bem, então. Eu passo lá mais tarde para pegar — respondeu. Suas mãos começaram a passear pelas minhas pernas até que uma delas tocasse minha cintura. Ele enterrou o rosto no meu pescoço e mordeu de leve provocando uma sequência de arrepios por todo meu corpo.
, não — falei, tentando estabelecer um controle dos meus sentidos que insistiam em me trair. Nós estávamos indo longe demais no meio do parque durante o dia, tinham crianças passando e o dono do cachorro estava logo atrás.
— Ninguém se importa — ele comentou, alcançando o lóbulo da minha orelha e me fazendo quase pular do banco com a sensação da sua língua ali. — São só alguns amassos, baby.
— Não é possível que não se importem — respondi, tentando afastá-lo pelo peito. Aquilo não entrava na minha cabeça, por mais que ninguém tenha vindo nos incomodar. Ele deixou o meu lóbulo em paz e virou o tronco para encarar o dono do cachorro.
— Ei — chamou o homem. O americano que estava ajoelhado na grama perto do seu cachorro e de Solveig encarou de volta. — Você se incomoda em presenciar um casal se beijando no parque?
O americano franziu o cenho, suas sobrancelhas quase escondendo seus olhos verdes. Era uma pergunta estranha para se escutar de um desconhecido e era maluco por tê-la feito. Mentiria se dissesse que não estava com vontade de estapeá-lo por levar nossa conversa para o dono do cachorro e ainda se referir a nós como um casal. Por mais que estivéssemos fazendo coisas de... casal.
— Ahm... Não — ele respondeu, com um sorriso vacilante. — É claro que não.
Os dois iniciaram uma conversa depois disso e eu caí nos meus devaneios.
Apesar de parecer, nem tudo do século 20 eram flores. Por mais que eu enxergasse 1990, a maior parte do tempo, como um lugar fantástico, não era tanto assim. Tinha muito preconceito e muitos padrões que em 2019 foram superados.
Em uma loja de departamentos, já sofri julgamento por meu corpo não ser como o das mulheres da época quando pedi um número maior da saia que experimentei. Quase chorei, porque me lembrei da minha mãe, que era fruto dessa criação deste século, então sempre foi exigente com esportes e alimentação para nos manter dentro de um peso considerado ideal. Só não chorei na hora por causa da Lilly, que me defendeu feito uma leoa protegendo seu filhote. Eu estava acostumada a engolir isso em silêncio na infância, mas vê-la intercedendo por mim foi incrível.
Enfim, também sofri preconceito por ser latina. Os suecos só estavam acostumados a receberem europeus e estado-unidenses, e não brasileiros. Era estranho crescer em um mundo globalizado e em um estalar de dedos estar em um mundo que ainda está se preparando para a globalização.
Eu enxergava ali como um lugar formidável por olhar através de olhos apaixonados de uma viajante do tempo. Quer dizer, eu viajei décadas para viver o que meus pais viveram na juventude, o que as pessoas diziam ter saudade e estava conhecendo um mundo completamente diferente. Não era só viajar para outro país, como fiz quando mudei para a Inglaterra, era voltar no tempo. No entanto, reconhecia que havia muitos defeitos...
? — me chamou. O americano já não nos olhava mais, prova de que provavelmente fiquei presa nos meus pensamentos por alguns minutos. — Podemos voltar a nos beijar agora? — pediu com olhos suplicantes.
Ok, já que sabia que as pessoas dos anos 90 não ligavam para demonstrações de afeto de pessoas, mesmo perto de crianças, tinha algo a mais. Um fator que me incomodou na fala do próprio e em mim também por estar concordando com tudo o que ele estava me oferecendo até agora. Nós não somos nenhum “casal” para fazer isso no meio do parque. Eu estive de acordo em dar uma trégua, me mostrar que poderia ser bom para nós dois, mas foi no quesito sexual. Não estava sendo insensível por concluir aquilo, na verdade, era por me importar com meus sentimentos que pensava daquele jeito. Para ele, o que estávamos fazendo era só mais um joguinho de sedução, para mim, era chegar à beira de ser correspondida. Ter esperanças quando não queria ter nada. Eu estava caindo na sua armadilha direitinho, nossos beijos de manhã, sua mão na minha coxa, sexo no balcão da cozinha, ouvindo-o cantando e tocando para mim, me agradecendo por ser sua fã, lambendo sorvete da minha boca e dando amassos no parque. Tudo aquilo era ilusão demais para o meu pobre coração apaixonado, tinha medo de quando fosse para voltar à normalidade de nós dois separados, eu acabasse sucumbindo e não conseguindo.
— Na verdade, eu acho que quero voltar pra casa — falei, finalmente. Ele apenas assentiu, sem demonstrar sentimento algum e desenrolou a guia de Solveig que estava toda embolada no banco.
Nós nos despedimos do americano e de seu cachorro, depois andamos até em casa. Agora sem mãos dadas. O parque ficava perto da nossa rua, então não demoramos nem cinco minutos. Ele não parecia perceber o silêncio constrangedor que se instaurou, acho que vinha de dentro de mim depois da minha conclusão. não era muito de brigar ou de questionar, por isso que disse que teve que beber para se soltar na noite anterior. Os escandinavos eram assim, fechados demais, com exceção de Lilly, é claro. Börje, Karin e Andreas também tinham essa característica bem forte, por isso não fui muito questionada por aparecer de repente com uma história absurda que nem era verdade. Era bom, olhando por esse lado. Porém, tudo que quis nesses meses era que ele me questionasse e brigássemos pela minha decisão. O que ganhei? Espaço. Assim como ele estava fazendo agora.
Ao entrar no apartamento, estava decidida a ignorar esse espaço e continuar com o nosso joguinho sexual, antes que nosso dia de trégua acabasse. Ele tirou a coleira de Solveig que saiu andando feliz para seu lugar favorito de novo: a varanda.
Prensei-o contra a parede de frente para cozinha.
— Pode voltar a me beijar agora — respondi sua pergunta de minutos atrás, tirando a coleira de sua mão e jogando no chão da cozinha.
— É por isso que quis voltar para casa? — ele resolveu me questionar logo agora que eu estava quase implorando para ser beijada. Seu sorriso de lado estava ali. — Eu já te provei que ninguém liga se estamos nos beijando.
— Não — menti.
Não vou explicar que, secretamente, primeiro: não quero andar por aí de casalzinho porque doía meu coração essa amostra grátis de algo que não poderia ter; segundo: tinha muito medo das duas alternativas que Lilly me deu mais cedo; e terceiro: também não queria que tudo fugisse do controle que lutei para estabelecer aqueles meses. Por isso, tinha uma resposta plausível pronta.
— Não quero ficar de amassos por aí, . É um desperdício de tempo. Não sou mais um affair seu, você não precisa me conquistar, eu concordei em ter esse dia extraordinário porque preciso de sexo e você é especialista nesse quesito. — Me controlei para não engolir em seco ao botar essa mentira horrenda para fora. Para quem não sabia mentir direito, estava me superando. — Não precisamos de demonstrações públicas de afeto. Você é meu chefe e moro na sua casa por enquanto, então temos de ter limites. Só me beije e tire minha roupa antes que nosso dia acabe.
Um brilho meio ofendido passou pelos seus olhos azuis que me fitavam quase sem piscar. Eu o tinha negado, afinal, mesmo sabendo que ele poderia nutrir algo pequeno por mim depois do que vinha acontecendo desde a noite de anterior e que isso o machucaria. Não esperei mesmo que ele se sentiria assim ao me ouvir falando “verdades”. No entanto, o brilho surgiu e se foi muito rápido. Ele me puxou pelos ombros e agora eu que estava prensada contra a parede.
— Por que não disse antes? — ele perguntou enquanto desabotoava o meu short. — Essa é a minha parte favorita. Se eu soubesse antes, teria passado o dia todo te comendo.
Nunca o ouvi utilizar esse tipo de linguajar perto de mim. Foi uma surpresa ao constatar que meu nó de excitação respondeu positivamente a ele. É essa exata versão que quero hoje. A que está mais concentrada em me comer, não a que fica me elogiando e beijando no parque. Essa me ilude demais.
Sem qualquer aviso, ele enfiou a mão por dentro da barra do short e invadiu o tecido da calcinha com seus dedos hábeis. O desejo que se apossou de mim era poderoso e veio como uma onda gigante, se espalhando por cada nervo. Segurei em seus antebraços para não deixar meus joelhos cederem. Dois de seus dedos me penetraram e o dedão passou a me provocar. Eu senti no toque sua determinação para dar o que pedi e me enlouquecer de tabela por ter negligenciado suas investidas românticas. Gemi quando seus dedos alcançaram uma parte necessitada minha, que eu nem sabia que existia porque ninguém tocou lá.
— É isso que você quer, baby? Que eu te faça gozar? — ele perguntou com a boca colada no meu ouvido. Sua outra mão acariciou meu cabelo. Assenti com certa dificuldade por estar tão perto do ápice. — Ah, então é isso que você quer. Se você não fosse tão teimosa, eu poderia fazer todos os dias, já que moramos debaixo do mesmo teto. Porém, você insiste em estragar tudo falando que precisamos de limites, que sou seu chefe...
Não estava no humor para ouvi-lo tagarelar depois de todo o silêncio, foram meses de silêncio. Porém, também estava incapacitada de contestar.
— Você é má, . Muito, muito, muito má. E meninas más precisam de outro tipo de tratamento — ele disse e recolheu sua mão de dentro do meu short. Protestei com um gemido sôfrego. Ele queria me castigar, é isso? Encarei-o com toda a indignação dentro do meu ser, sem entender nada, ele apenas soltou uma risadinha sacana e depois atacou minha boca. Atacou com certa violência, diga-se de passagem. Assim como fiz com ele no dia do hotel. Me recusei a retribuir no começo, só pela frustração que me causou. Porém, ele continuou me beijando com força e suas mãos puxaram minhas coxas para enlaçar sua cintura. Vacilei por um momento e parti meus lábios, permitindo com que sua língua entrasse.
Ele cambaleou comigo até a parede do corredor para me ajeitar. Tirou a boca da minha e me fitou com olhos semicerrados. Se depois de insistir tanto para me beijar, ele achava que se livraria assim tão fácil, não mesmo. Puxei seu lábio inferior com minha boca e cravei meus dentes na pele, querendo castigá-lo pelo que fez comigo. Não o machuquei, não saiu sangue e nem nada. Foi só uma mordida bem bruta. Pelo seu sorrisinho, ele entendeu minha motivação por trás do gesto e voltou a me beijar. Bom, eu era má, não era? Então estava agindo conforme mandava o manual. Era engraçado porque mal sabia ele que estabelecer limites e distância são minhas tentativas de poupar a nós dois. Eu que carregava o peso de saber demais nas costas por ser uma viajante do tempo enquanto ele ficava tranquilo na sombra da inocência. Era eu que, a qualquer deslize, podia fazê-lo cansar de mim, ficar sem emprego, sofrer... Então, sim, era necessário limites e respeito entre nós.
Ele me jogou na cama com tudo, depois começou a se despir.
Não conseguia vê-lo direito porque as persianas estavam fechadas, mas senti suas mãos arrancarem peça por peça do que eu vestia com certa brutalidade que só me excitou mais.
— O que você está fazendo? — perguntei, obviamente sem pensar antes de fazer essa pergunta imbecil. Ele tirou a própria roupa e depois a minha, o que eu achava que ia fazer? Dormir? Bom, não duvido nada depois que ele me deixou na mão na sala poucos minutos atrás...
Ele soltou outra risadinha baixinha e sacana, mas que o fez parecer perigoso. Pena que na lista de todas as coisas que temo atualmente, um pelado definitivamente não estava incluso. Suas mãos me trouxeram para a beira da cama, ele pegou meus tornozelos e abriu minhas pernas. Em outros momentos, eu sentiria vergonha por estar assim, mas neste segundo meu cérebro estava concentrado demais na sensação de que ele provocava estando no ponto que mais clamava por sua atenção.
— Estou te obedecendo, princesa — respondeu, se enterrando em mim calmamente e me arrancando um gemido de satisfação. — Apenas te dando o tratamento que ofereço para meninas más. Eu sou o especialista, não é mesmo?
Ele não foi calmo em seguida, seus quadris investiram com tudo antes de chegar até o final. Eu soltei um gritinho misturado com gemido pela invasão. Céus! A facilidade, a brutalidade e a surpresa daquela invasão me deram a impressão de senti-lo na boca do estômago. Foi profundo no sentido cru da palavra. Começou a se movimentar com rapidez, sem me dar tempo para digerir.
— Surpresa? — ele perguntou e eu soube que seu sorriso de lado mais canalha possível estava lá.
— Cala a boca e me mostra do que você é capaz, — falei, levemente irritada por ele estar se achando.
Suas mãos me puxaram para cima pela cintura para tirar um pouco minhas costas do colchão e me adequar à altura dele. Eu mantive minhas pernas assim como deixou porque, por mais vergonhosa que fosse pensar nessa posição, ela era vantajosa para o ângulo da penetração e estava instigada para ver o que ele poderia me proporcionar. Queria descobrir do que e de como gosta. Sentia-me tão inocente ao pensar em todas as mulheres que passaram pelas suas mãos...
Seu dedão voltou a provocar meu clitóris e minha visão ficou turva pelo prazer. Oh, se esse era o jeito que tratava uma menina má, eu jurava que nunca mais seria boa. Seria uma megera, uma filha da puta, qualquer coisa que o fizesse prolongar aquela sensação e não me deixasse atingir o ápice naquele momento.
Ele se curvou, sem diminuir a velocidade do dedo e dos quadris.
— Estou fazendo um bom uso do seu tempo agora? — ele sussurrou contra meu rosto. Girou os quadris, me fazendo alucinar. — Responda — soou autoritário.
— S-Sim — respondi com medo de que ele parasse.
— Então deixa vir — pediu.
— Não posso — falei de olhos fechados, sentindo meu corpo começar a formigar querendo atender ao seu pedido. — Não quero que termine agora.
Ele soltou outra risadinha.
— Mas você vai. Só tenho um dia, não é? Então não me faça perder o meu tempo, . — Aumentou a velocidade do seu dedão. Arqueei as costas, sentindo o orgasmo começando. Não. Não posso. Torci os dedos dos pés para me segurar. Não dari esse gostinho para ele. — Pare de teimosia — pediu com a voz rouca.
— Não! — praticamente gritei. Ele começou a se movimentar devagar, girando os quadris e indo mais fundo, me enlouquecendo. Então parou para começar de novo. Gemi feito uma gata no cio querendo mais, mais e mais. Toda minha barreira ruindo bem na minha frente. — Droga, .
Meu corpo começou a convulsionar violentamente, lutando para que eu parasse de me segurar. Ele se curvou e percebi que ele também estava perto pela forma que ofegava no espaço entre meu pescoço e ombro. Sua boca começou a sugar a minha pele e eu gritei de novo. Deixei-o me conduzir para o frenesi que estava me cercando esse tempo todo. Urrei debaixo dele com o que me possuiu. Segurar só deixou o orgasmo mais intenso, poderoso e lascivo.
Ele soltou resmungos desconexos no meu ouvido e me seguiu, confirmando minhas desconfianças de que estava perto também. Meus olhos mal conseguiam ficar abertos e meu corpo estava em um nível de relaxamento profundo de que nunca esteve desde minha chegada. Eu arriscaria até em dizer desde que tive idade para começar a pensar demais com minha mente ansiosa. Ele saiu de dentro de mim e foi se limpar no banheiro.
Senti saudades do seu peso, do seu calor e do seu cheiro. Tudo junto. O que sentia por ele era perigoso, exagerado, sufocante. Somado ao que sabia sobre seu futuro e de onde vim, se tornava até doentio. Eu estava o usando enquanto escondia tudo dele. Ele não fazia ideia de que era vinte e sete anos mais velho que eu. era mais velho até que meus pais! E cá estava eu tratando tudo de novo como se fôssemos mais um casinho, como se eu pertencesse a 1990.
Que merda estava fazendo?
Foi uma falha gigante da minha parte ter deixado esse dia ocorrer, ainda mais depois do quão íntimo foram as declarações de ontem. Eu era muito babaca. Depois de tudo que aconteceu, a sensação era unicamente de que eu o usei, sabendo de tudo.
Ele passou por mim e foi catar suas roupas, parecendo estar prestes a me deixar ali sozinha, repleta dele.
— Aonde você vai? — perguntei, me sentando na cama e me cobrindo com o lençol enquanto ele ligava a luz.
— Sair — ele respondeu como se não fizesse diferença, mas o modo com que tensionava os músculos revelava que estava estressado.
— Eu pensei que nós iríamos passar o dia juntos — comentei com cautela, tentando fazer um reconhecimento do campo que estava me metendo. Eu nunca o vi bravo.
— E passamos. São oito da noite agora. Eu te satisfiz, , como você pediu. E, bom, como você não me quer mais para nada, não vejo sentido em ficar aí nessa cama contigo ou passar o resto da noite. Vou procurar outra mulher que me queira por completo, desde a parte da conquista até a parte de a levar para a cama para que eu possa ficar satisfeito — explicou, me fazendo arregalar os olhos em descrença e causando o sentimento de ter sido chutada como um cachorrinho. Ele finalmente me olhou ao ficar com a postura ereta e parecia sério demais enquanto se vestia. — Eu fui sincero ontem à noite para quebrar esse clima todo que você criou em cima da gente, mas tenho que concordar que é melhor daquele jeito. Você é tão confusa e complicada. Quando acho que está a fim de mim, você fala que quer apenas foder. — Ele suspirou. — Ainda insiste em relembrar que trabalha para mim, cara, isso me irrita tanto. Como se não estivesse rolando algo entre a gente desde aquele dia no hotel, e adivinha só? O dia que você que tomou a iniciativa! Honestamente, eu perdi a paciência. Te dei o seu espaço esses meses, não foi? Então, agora, preciso do meu para digerir essa indignação que estou sentindo pelo seu fora — ele disse e terminou de vestir a camiseta que era a última peça que faltava. Estava esperando-o finalizar para poder decidir como me sentia, mas, se fosse para definir algo naquele momento, eu diria que choque. — Não se preocupe, nada vai mudar para você que já vive assim por três meses sem nem ao menos se importar. — Me lançou um sorriso amargo. — Hoje foi um dia extraordinário. Assim como foi no hotel, não é? Então, considere esse meu bilhete de que nada aconteceu.
Então, ele se foi. E eu fiquei ali, tentando assimilar aquelas palavras. Eu que cheguei a achar que ele não se importava com o que estava fazendo a ponto de não demonstrar emoções todo esse tempo. Porém, ele sentia e sentia muito. Além das palavras, os olhos dele demonstravam a mágoa que infligi.
Meu chão tinha desmoronado. Ele finalmente tinha falado e isso mudava tudo.
Ele achava que eu não me importava esses meses? Foi por me importar muito que me afastei! Nós dois tínhamos uma ideia bem deturpada um do outro. Isso, com certeza, era resultado da nossa falta de conhecimento e comunicação um com o outro. Eu o conhecia como artista na ponta da língua, mas como pessoa...
Tinha que urgentemente parar de tratar como o artista inatingível e passar a vê-lo como um homem palpável que tinha sentimentos. Só que eu não sabia nem por onde começar a fazer isso.
Eu já vinha desconfiando que ele não gostava de que eu ficasse relembrando que trabalhava para ele. Eu entendia. Para ele, aparentemente não mudava nada entre nós dois. Mas, para mim, aquele emprego era necessário para minha permanência aqui ao lado dele. Para salvá-lo. Se eu largaria meu cargo de assistente e assumiria o posto de uma possível namorada? Provavelmente. Porém, só se eu não soubesse demais, se eu não fosse amaldiçoada por vir do futuro, se eu não tivesse tido sinais de que minha missão aqui era outra, se eu não precisasse permanecer perto dele sem ter medo de colocar tudo a perder.
Droga. Ele já estava sofrendo por minha causa. Nós realmente precisávamos de limites para que aquilo não acontecesse de novo. Ter concordado com esse dia foi um erro gigante. Eu achei que pudesse contornar tudo com aquela fala para não me machucar, mas acabei o machucando.
Eu sempre fui meio irresponsável com os sentimentos de outros garotos que me relacionei, mas eles não deram muita importância, porque nunca dei brecha para que eles se apaixonassem, afinal, eu mesma não me lembrava de estar apaixonada por alguém. Porém, agora os sentimentos de outra pessoa que importava demais para mim estavam ali e... Eu estava tão confusa. Me sentia tão sozinha nessa, tendo que tomar decisões responsáveis depois de passar 25 anos as evitando. Não queria deixar marcas piores nele quando precisasse ir embora. Queria que ele olhasse para trás e lembrasse daquela menina doida que era sua fã, que “caiu de paraquedas” em sua vida e que sumiu na mesma proporção. Não a que enfiou uma estaca em seu coração ao ir embora.
Eu era patética. Estava nua, na cama dele, chorando depois de escutá-lo falar que iria atrás de outra mulher. Não tinha o direito de me sentir ofendida pelas suas palavras, mesmo assim sentia. Nós não tínhamos nada, eu deixei bem claro com aquela escolha de palavras. Mas doía. Eu queria que ele pudesse segurar minha mão, beijar em público, me tocar todos os dias até me levar para o céu... Queria até mais do que ele.
Meu Deus! E ele...
Ele achava que eu estava a fim dele! E enquanto eu estava preocupada em esconder meus ciúmes para não demonstrar que sentia nada, ele sabia. Eu era uma tonta, era claro que ele saberia, fui eu quem começou com toda essa aproximação. Praticamente desperdicei três meses que poderia estar usando para conhecê-lo, me retraindo, com medo que ele percebesse e ele já sabia. Aparentemente, ele não sabia da dimensão do meu sentimento e creio que estava segura nesse quesito depois de hoje. Nós só precisávamos nos afastar de novo, tudo se estabeleceria, porque iria dá-lo seu tempo.
Afinal, qual escolha eu tinha depois que ele deu o meu?


Continua...



Nota da autora: Finalmente ele abriu a boca e botou pra fora o que sentia haha só demorou nove capítulos e uma garrafa de uísque para ele conseguir. Mas a Sonne também não está ajudando em nada, o coitado se abriu depois de meses de silêncio e só recebeu o que não queria. Não é à toa que ele ficou bem bravo e soltou umas verdades. Deixei o nome da música original que ela interferiu como uma Nota da Autora fixa no início do Capítulo 9, porque, de todas as músicas da carreira solo do Quorthon, a que mais define Sonne + Ace é Deep, com certeza! Foi a primeira música que utilizei como inspiração para escrever ORT20C e é daí que saíram os olhos grandes e castanhos da pp.





Nota da beta: É , gostaria de te defender, mas tá um pouquinho difícil depois dessa hahahaha ansiosa pelo desenrolar de tudo isso ❤️


Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.

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