Capítulo 1
A Berlin Gesundbrunnen Station era bonita e organizada. Claro, não se comparava à estação grandiosa de Frankfurt, mas possuía seu próprio charme, algo intimista e acolhedor que chamava atenção para si. Durante a Segunda Guerra Mundial o local havia sido completamente destruído pelo bombardeio e as viagens de trem à longas distâncias foram interrompidas e sofreram longos anos de espera até a queda do Muro de Berlim, quando a estação finalmente recebeu total renovação. A construção era um lembrete dos tempos difíceis e um símbolo de superação para a nova geração.
Era muito cedo. Poucos passantes se dirigiam à bilheteria ou caminhavam livremente pelos corredores e escadarias. null observa o movimento, um copo de chocolate quente em mãos — um que adquirira em uma cafeteria segundos depois de chegar à estação, pois morria de sono e não tinha se alimentado — e uma mala de tamanho razoável acompanhada de uma bolsa de colo. Para qualquer pessoa de bom senso era fácil notar na face da jovem adulta diversos sentimentos mistos. A insegurança era o mais perceptível.
Respirou fundo, caminhando até a plataforma 7, onde seu trem a esperava. Naquele dia, devido ao feriado natalino que ocorreria em cinco dias, a estação forneceu um plano diferente de viagem, com paradas em vários destinos para fins turísticos. Apesar de não fazer questão e de odiar viagens longas, null não recusou a oferta — afinal a passagem foi um presente de sua melhor amiga null — e assim chegaria a Amsterdam, sua cidade natal onde ainda residem seus pais.
Para a garota, voltar para casa após dois anos seria o ato mais difícil que realizaria. Recordava-se plenamente do dia em que decidiu sair de casa. Tinha dezoito anos na época, mas só tomou coragem — e reuniu dinheiro o suficiente — aos 20. Seus pais possuíam uma boa casa no interior de Amsterdam e sua família era popularmente conhecida na região pela indústria null de leite e derivados. null era a filha do meio — tinha dois irmãos mais velhos gêmeos Aaij e Reinder e uma irmã mais nova chamada Kollen. Desde a infância, apesar dos desejos de seus pais, null nunca almejou um cargo no negócio da família. Pelo contrário, a calmaria do campo lhe enfadava e preferia a sensação de aventura que incontáveis viagens poderiam proporcionar.
Foi por esta razão que começou a escrever. Fazia com que seus personagens conhecessem lugares incríveis e vivessem o inimaginável. O hobby logo se tornou sua maior paixão e assim, ao terminar a escola, decidiu estudar em outra província e em seguida, morar em outro país. O resultado foi caótico, bem como previa. Acabou por ter uma grande discussão com seus pais que culminou em uma partida apressada e na falta de comunicação entre eles durante dois anos inteiros.
Entretanto o sonho da escrita logo se provou desafiador. Editoras constantemente fechando a porta em sua face, ninguém disposto a ler seus projetos, seus contos mal vendiam. Fora obrigada a trabalhar como jornalista freelancer para pagar suas contas — que eram muitas — e assim sobreviver mais um dia. Começou a receber diversas mensagens e ligações de Reinder, todas elas pedindo que ela abandonasse suas ideias malucas e voltasse para casa. Mas ela não poderia fazê-lo. Havia prometido a si mesma que faria seu sonho se tornar realidade e só então voltaria bem sucedida para sua família. Mas estava ficando cada vez mais cansada e impaciente.
null estava profundamente preocupada com seu estado. Conheceram-se logo quando null participou de sua primeira entrevista em uma editora. null era secretária e a consolou quando ao final, após null ter passado o dia inteiro sem comer apenas para essa entrevista, nada deu certo e ela acabou por chorar compulsivamente. Desde então null tem sido sua firme companheira e sempre lhe ajuda a manter o ânimo. Porém quando null foi dispensada pelo principal comprador das notícias que escrevia, o que a deixou completamente sem saída, null não lhe permitiu discutir. E então ali estava ela, sentada em um banco da estação, o celular carregando silenciosamente, bebendo as últimas gotas de seu chocolate.
Ajustou novamente seu cachecol. Apesar de alguns tímidos raios de sol, a temperatura era de apenas -3 graus. Olhou para a placa de horários. Dois minutos para chegada. O chão abaixo de seus pés começa a tremer e as pessoas começam a se reunir ao seu redor. Estava na hora.
— Afastem-se da borda. Trem se aproximando. — alertava um aviso luminoso.
E rapidamente ele estava ali. Todos os passageiros amontoaram-se à espera de entrar. null não tinha pressa. Seu coração pesava de medo e arrependimento e a vontade de ficar aumentava a cada segundo. Pressionava seu bilhete de entrada com bastante força e o papel se contorcia entre seus dedos. Deixou que todos fossem se acomodando em seus lugares, respirou fundo mais uma vez. Sentia que aquele momento era uma sentença de morte a todos os seus sonhos. Não poderia mais voltar. Não poderia provar a todos que tinha conseguido.
Deu o primeiro passo para dentro do trem. Um funcionário parado contra o portal de entrada lhe lançou um olhar reprovador ao receber seu bilhete em frangalhos e ao confirmar sua veracidade lhe indicou sua fileira com um aceno de mão distraído. null murmurou um pedido de desculpas e olhou em volta enquanto ajustava seus óculos. Muitas famílias estavam reunidas ali. O trem era de um estilo mais antigo e charmoso. Os passageiros sentam-se de frente um para o outro, com mesas entre eles. As poltronas eram acolchoadas e mulheres serviam bebidas e alimentos. Ali era quase uma primeira classe. null bufou ao pensar nisso. null adorava gastar dinheiro sem necessidade.
Procurou pelo número no seu bilhete. 14B. Ficava quase no centro do trem. Guardou sua bolsa de colo próxima a si. Sua mala já tinha sido guardada no lugar adequado e não havia mais muito que fazer. Retirou o seu caderno da bolsa e posicionou sua caneta sobre um espaço em branco. Sua mente não trabalhava muito bem. Alguns rabiscos já ocupavam o outro verso da folha, mas nada de produtivo saía.
— Bom dia!
null ergueu a cabeça muito levemente para a sombra que lhe cobria e se assustou. Ele era enorme. Entrava com dificuldade no espaço entre a cadeira e a mesa, que eram próximas demais para suas pernas longas. Carregava uma mochila que descansava em seus ombros muito largos e sua camisa cor de creme de gola alta estava desalinhada sob o casaco escuro. Aparentava estar em seus vinte e poucos anos, mas null não podia afirmar. Sua pele era limpa e brilhosa demais, e os cabelos negros e lisos como seda. Suas pálpebras se curvam graciosamente como um leque contra sua marca d’água. Asiático.
— Acredito que interrompi sua escrita. É um diário?
null negou com a cabeça, mas aceitou seu aperto de mão. Suas palavras eram carregadas de um sotaque leve e divertido. null não costumava gostar de pessoas intrometidas, principalmente daquelas que xeretam em sua escrita, mas decidiu ser um pouco gentil com o rapaz, afinal seria um longo percurso em sua companhia. Um desentendimento poderia tornar aquela viagem ainda pior.
— Ah, então talvez um livro? Me desculpe, eu sou meio curioso demais às vezes. Uma mania chata que peguei devido ao meu trabalho. A propósito, sou null null… Ou apenas null.
null estava com o braço apoiado na mesa. Havia retirado um óculos arredondado da bolsa e um exemplar de Grandes Esperanças de Charles Dickens. null piscou. Não via alguém ler clássicos há um bom tempo salvo ela mesma e null, que era apaixonada por Jane Austen.
— Sou null… null — ela responde, colocando os cabelos atrás da orelha. Eles haviam crescido bastante desde que saíra de casa e caíam como cascatas castanhas em suas costas. — E sim, meu trabalho é escrever livros… É o que eu faço a maior parte do tempo.
Os olhos de null brilharam, claramente entusiasmado com o pequeno detalhe revelado por ela.
— Seria pedir demais ler alguma publicação sua? Apenas me diga o nome e eu pesquiso na internet…
— Eu não tenho livros publicados. Nenhuma editora aceitou meus projetos. Apenas alguns contos em formato de ebook que não fazem sucesso algum. — ela sorri de lado, mas null não acompanha. Ele franze a testa.
— As coisas nunca acontecem como desejamos não é?
null acena com a cabeça, mas sua atenção já tinha sido desviada para a janela do trem, seus olhos acompanhando os edifícios que eram deixados para trás e davam lugar aos campos verdes e casas campestres, tão parecidas com as da região em que havia nascido. No verão, diferentes cores tomavam os céus naquele horário, e null sempre tinha amado analisar a mistura de tons, as nuvens contornadas de magenta a medida que o crepúsculo surgia. Sua mente fluía de pensamentos poderosos e rápidos, que escapavam através de sua caneta para o papel em sua adolescência. Aaij subiria todo o monte até chegar ao local que null havia escolhido para ser seu refúgio e reclamaria por sua demora, por seu ócio. Ela estava acostumada a essa rotina, a acordar e dormir em segurança, a ter as palavras tão facilmente para si como respirar.
Mas Nova York, seu lar atual, era completamente diferente. Tinha todas as características de cidade grande que ela amava, os prédios longos, as lojas de conveniência vinte e quatro horas, as praças limpas, as pessoas preenchendo as vielas. Entretanto, algo dentro de null não conseguia se encaixar completamente nem assimilar as novas sensações a fim de torná-los em um belo texto. Pouco a pouco sua energia era sugada e ela se odiava por isso.
null arriscou um olhar na direção de seu companheiro de viagem. null aparentemente havia perdido o interesse nela e lia avidamente seu livro, os cabelos pretos cobrindo seus olhos. “Qual seria a profissão dele?” ela se pegou pensando. Curioso, lê livros demais, é educado e seus movimentos tão delicados. null moveu o braço direito para mudar de página e, null notou, uma pequena tatuagem estava ali, uma linha que subia e descia desordenadamente. Um cardiograma.
null piscou, pensando que seu palpite provavelmente estava certo, e voltou a escrever, desta vez com mais entusiasmo.
❄
Durante a noite, o sistema de aquecimento do trem fazia ainda mais diferença. Além da luz dos lustres que brilhavam em uma coloração dourada, o topo das janelas tinham sido bem decoradas com visco e piscas vermelhos e verdes e algumas crianças apontavam entusiasmadas para as mulheres que entravam para servir o jantar, trajando roupas que muito lembravam as vestes do papai noel. null particularmente não sentia nada de especial pelo natal. Era mais uma data comemorativa no calendário. Todos a valorizam demais e falam sobre milagres e estar ao lado da família. Seus pais sempre realizavam uma grande ceia junto de todos os trabalhadores da fábrica e a casa ficava cheia. null cresceu detestando as festividades de fim de ano. Sempre gente demais ao redor de seus pais, ao redor de seus irmãos, que nem tinham tempo para ela. Tantos incômodos.
A jovem comissária parou ao lado de sua mesa e apresentou o cardápio da noite, que consistia em um gratin de batata muito bem cozido. null, quase que atraído pelo cheiro maravilhoso que saia do prato, acordou de seu cochilo — que havia durado quase duas horas — e se afastou para que houvesse espaço para alocar a refeição. Ele sorriu contido e enfiou seu garfo no ramekin, colocando uma boa porção na boca. Seu rosto foi tomado de vermelho e seus olhos lacrimejaram.
— Está mais quente do que eu imaginava! — ele geme, ainda se esforçando para soprar a fumaça quente. null meneia a cabeça. Zero de seriedade. — costumamos comer comidas muito quentes na Coréia, mas isso aqui… Meu Deus.
Coreano. null ainda não sabia diferenciar bem os traços dos asiáticos. Nunca havia visitado a região e tampouco acompanhava sua cultura. Sentia-se um pouco ignorante sobre o mundo e isso lhe irritava. Profundamente.
— As comidas são servidas quase fervendo nesse período do ano, afinal é frio demais. Se não tivesse engolido tão rápido e se não estivéssemos em um local com aquecedores, vocẽ perceberia que esse calor é muito bom — ela comentou, antes mesmo de notar que as palavras estavam fluindo de sua boca. null olhou para ela e anuiu rapidamente, tendo cuidado com a segunda garfada.
— Vivemos um inverno rigoroso também, mas minha casa é muito bem aquecida então não posso reclamar, apesar de mal parar por lá. Quando não estou trabalhando estou viajando.
— Você é médico, não é?
null arqueou as sobrancelhas.
— Sim. Não lembro de ter comentado sobre isso.
null apontou para o pulso direito de null, para a tatuagem de cardiograma. Um flash de compreensão passou pelos olhos de null e ele colocou a mão sobre o local.
— Juntei sua mania de leitura e curiosidade à tatuagem. Foi apenas uma dedução.
— Acho que você me enganou e na verdade é uma detetive disfarçada. Devo me preocupar? — seu tom brincalhão pegou null de guarda baixa. As pessoas normalmente odiavam quando ela fazia isso, fixava sua atenção nelas como louca e começava a imaginar e deduzir coisas. Era quase impossível para ela conter esse impulso e atribuía isso ao fato de ser uma escritora, de precisar prestar atenção aos detalhes.
— Talvez. Possui algum segredo sórdido que deseja manter escondido?
null colocou a mão no queixo em um gesto forçado. Ele era um homem muito bonito, null devia admitir. Seus lábios cheios e vermelhos, o rosto anguloso e os olhos pequenos. Era como se tivesse saído de uma pintura milenar, um retrato de um jovem imperador.
“Isso”, null pensou, Um jovem imperador era uma ideia muito boa.
— Não, nada que me vem à mente agora. E você?
null também fingiu pensar propriamente sobre o assunto e acenou para o trem.
— Na verdade, tudo isso é meu e eu sou muito famosa. Estão me gravando agora mesmo para meu reality show.
null sorriu, seus olhos se comprimindo em uma linha fina. null se sentia estranhamente satisfeita por conseguir ser sarcástica mesmo em um momento como aquele. Apenas null lhe tirava normalmente de seu estado de reclusão extrema.
— Você conseguiria facilmente se tornar uma idol no meu país. Seu timing cômico é muito bom. Kim Byungman teria inveja.
— Kim Byungman? — ela perguntou, o nome soando estranho ao sair de sua boca tão regada de sotaque. Apesar disso, null assentiu gentilmente.
— Sim, Kim Byungman. Ele é um comediante muito famoso na Coréia. Na verdade, ele faz parte do meu programa de tv favorito, Law of the jungle.
— Que seria sobre…
— Sobrevivência na selva. Várias celebridades participam e ele é como um chefe para essa “tribo”. Eu constantemente uso o programa dele para decidir meus próximos destinos de viagem. — null falava intercalando entre um sopro e outro — eu tenho alguns episódios salvos no meu computador. Podemos assistir depois. Tenho certeza que lhe deixará bastante inspirada!
null gargalhou baixo e tirou seus óculos que tinham embaçado levemente por conta da fumaça do gratin e continuou a comer. A sua volta, risadas e acaloradas conversas compunham o ambiente, a ventania fria castigando o vidro da janela e deixando marcas que pareciam pequenos riscos. Um senhor idoso fechou parcialmente uma das cortinas e daquele ângulo null pensou ter visto a luz da lua recair exatamente sobre si.
❄
Chegaram em Hanôver antes do sol tomar completamente o céu. Como parte do serviço, receberam um café da manhã reforçado e null preferiu deixar o trem ainda com o seu copo de chá em mãos, para beber no caminho. null segurava uma câmera polaroid e ajustava o apoio de pescoço com cuidado. Ele vestia apenas preto naquele dia e muitas garotas passavam ao seu lado com um olhar deslumbrado, chocadas demais com sua beleza exótica. Ele não parecia notar e, se percebia, não dava muito atenção ao fato.
— Bom dia passageiros! Durante a madrugada nosso trem parou em Wolfsburg para abastecer enquanto todos dormiam e agora finalmente alcançamos nosso primeiro destino turístico, Hanôver. Ficaremos hospedados aqui por dois dias, então terão bastante tempo para conhecer a cidade. Como todos estão sentados em mesas com companheiros, essas mesmas pessoas serão suas companhias durante essa etapa. Colocaremos pulseiras de identificação de cores iguais nas duplas ou grupos de até no máximo quatro pessoas. Espero que se divirtam e, por favor, usem o folhetim guia que concedemos a vocês. Tem várias sugestões interessantes!
Quando o guia do trem, um rapaz rechonchudo de cabelos grisalhos e olhos claros como a mais pura água, terminou sua fala todos se ajustaram para formar uma fila indiana corretamente. null deu um passo à frente de null lhe cobrindo por completo com sua envergadura. null pigarreou.
— Não precisava ir até aí. Nós seríamos colocados juntos no final de todo jeito.
null concordou, não dando atenção realmente para null e então virou-se rapidamente e apertou um botão de sua câmera. null não teve tempo de reagir. Um som de clique, e pouco tempo depois a foto saiu lentamente. null sorriu para a visão daquela foto idiota.
— Uma foto muito boa para começar a viagem. Bastante espontânea.
null protestou, mas não podia fazer muito contra os bons centímetros a mais que null possuía.
— Me deixe ver a foto!
— Depois eu te faço uma cópia.
As pessoas olhavam para eles com divertimento, quase como se observassem um jovem casal feliz. null enrubesceu. Não havia notado o quanto aquela cena realmente parecia outra vista fora de contexto.
Os funcionários do trem logo se aproximaram de null e null para colocar a pulseira azul em torno de seus pulsos. Não tinha nada de especial na tira de plástico, apenas o nome e o número da cadeira ocupada. null deu um passo agitado em direção a porta e ao atravessá-la estremeceu um pouco. O ar gélido tomou conta de sua face e parecia perfurar seus poros. Ergueu um pouco o cachecol para cobrir seu queixo.
Hanôver era uma cidade bastante intimista e tranquila, apesar de constantemente servir de sede para grandes feiras e convenções. Era cercada pelas águas do rio Leine, que naquela época do ano tomava um tom esverdeado límpido e sua extensão territorial era semelhante a de Frankfurt. Apesar de quase ter sido completamente dizimada pela guerra, as construções mantinham uma aparência campestre e sustentava o título de a cidade alemã mais verde. Muitos piscas decoram as árvores, as fachadas das casas e atravessavam as ruas de um lado ao outro. Deveria ser um completo espetáculo durante a noite, null pensou.
Caminharam um pouco pelas ruas de granito escurecidas e levemente umedecidas pelo clima. Uma linha vermelha marcava quase todos os pontos turísticos da cidade, o que tornava o guia quase dispensável. null observou com cuidado o gramado tão pigmentado, as pessoas que pouco a pouco abriam seus pontos de comércio, lojistas animados com a chegada dos turistas.
— Podemos visitar o Mercado do Natal durante a noite. Old Town não é tão distante. — comentou null, que já apontava sua câmera para capturar cenas ordinárias do dia a dia daquele povo. null concordou vagamente, tirando seu celular do bolso e abrindo o aplicativo do uber.
null negou com a cabeça e tomou o celular de sua mão, exasperação fluindo de seus poros.
— Não é possível que você queira pegar um uber para conhecer uma cidade! Você realmente não faz muito turismo, certo?
null tomou o celular de volta, os olhos arregalados. Ela queria responder que não, que jamais conhecera outros lugares porque saiu de casa muito cedo e não conseguira juntar o suficiente para usufruir de tais luxos. Mas tudo que fez foi cruzar os braços e encarar null com tédio.
— Então passe para mim o seu conhecimento, oh gênio.
null sorriu, deixando para trás todo traço de indignação, e falou orgulhosamente:
— Vamos pegar um ônibus, bobinha. É a melhor forma de experienciar verdadeiramente um dia na vida deles.
E null não estava errado.
Depois de perderem alguns minutos no centro turístico para conseguir o cartão de transporte, tomaram o bonde e percorreram quase todo o perímetro principal, que começava a criar vida à medida que as horas passavam. null prendeu sua atenção às pequenas padarias, ao cheiro divino de trigo, especiarias, café e chocolate que inundava as ruas, os passantes pálidos e louros que tinham um tom vermelho tomate em seus rostos e lutavam para se proteger do frio. O rio Leine serpenteava tranquilamente por dentro da cidade e algumas folhas flutuavam sobre ele, os últimos resquícios do outono que já se fora.
Apesar de não ser utilizado como fonte de água potável, o Leine parecia decente o suficiente e seu aspecto combinava com a aparência fria. null gostaria de andar próximo a ele, de respirar fundo e deixá-lo preencher seus pulmões. Natureza lhe cercava por todos os lados e os galhos das árvores vazias atravessavam as ruas que já acumulavam uma camada fina de neve. O bonde desceu por uma rua íngreme e revelou mais um ponto cheio de casas e chaminés que trabalhavam a todo vapor, a fumaça cinza como algodão empoeirado. Os tetos estavam cobertos de neve. null levantou com cuidado e abaixou a cabeça levemente para levantar do assento.
— Devemos descer aqui. — ele disse, apontando para a parada próxima. null o seguiu em silêncio, o seu velho bloco de notas em mãos enquanto finaliza uma anotação. null andava elegantemente por entre as pessoas, chamando tanta atenção quanto se era possível, e caminhava com uma certeza louvável. Se não fosse por seus traços claramente orientais, qualquer um acreditaria que ele fazia parte daquele lugar.
null no entanto, estava longe disso. Andava distraída com a paisagem e as pessoas, os óculos de grau com armação dourada e arredonda repousando quase sem peso sobre o seu nariz levemente afilado, o rosto em v com queixo pontudo, sobrancelhas quase sem arqueação alguma e boca bem desenhada, mas ressecada pela friagem. Seus cabelos castanhos escuros presos atrás da orelha e grandes demais, ela os preferia na altura dos ombros, mas null não teve tempo de cortá-los antes da viagem. Pouco nela faria alguém associar sua imagem a de uma holandesa nativa.
null suspirou, olhando para sua imagem no vidro de uma vitrine. null havia lhe emprestado algumas roupas, mas a maioria não lhe coube bem — null era bem mais alta — e por isso teve que improvisar aquela manhã. Usava um conjunto monocromático que consistia em um casaco verde escuro e uma calça. Carregava uma bolsa de mão e usava suas botas de salto baixo que eram muito confortáveis, além de um casaco longo sem mangas com diversos botões, mas que ela decidira por deixar aberto. Suas noções de moda eram completamente baseadas nos ensinamentos de sua melhor amiga e vez ou outra tentava agradá-la tomando mais cuidado com o que vestia. null sorriu com o pensamento. Sentia terrivelmente a falta dela.
— null, que está fazendo parada aí? Acabamos de chegar na Praça do Mercado. Temos muita coisa pra ver ainda!
null torceu o nariz.
— null? — ninguém jamais havia lhe chamado por apelidos ou se dado ao trabalho de criar um.
null sorriu, sua expressão se iluminando ao ponto de parecer deslocada naquele ambiente gélido.
— Eu sou coreano. Seu nome é quase um trava língua. Agora vem. — ele lhe pegou pelo braço e null teve que fazer um grande esforço para acompanhá-lo.
A Praça do Mercado, Am Markt, era uma área extensa de comércio e atividades diárias. O asfalto se misturava com as calçadas lisas que ocupavam boa parte das ruas de Hanôver, o que possibilita os pedestres percorrerem grandes distâncias a pé e em segurança. Existiam duas construções remanescentes do período gótico: a antiga prefeitura, Altes Rathaus, que havia passado por uma restauração massiva após o bombardeio durante a guerra, e a Igreja Marktkirsche, símbolo da religião luterana. A cidade tinha crescido em torno dessas construções firmes e as ruas mais pareciam veias bombeando o coração de Hanôver. null andou um pouco mais, seus olhos cheios pela visão da tranquilidade daquele lugar, que abrigava a modernidade sem excessos e seguia seu curso entrelaçando o novo e o antiquado com maestria.
null estava parado na esquina de uma rua e tirava fotos com sua polaroid de maneira ávida. null logo entendeu o porque; a rua era linda, com construções cheias de cor e fachadas fofas em estilo enxaimel. Uma viela estreita tinha um belo estabelecimento, com lâmpadas amarelas e vermelhas e mesas rústicas de madeira postas como em uma praça. null sentou em uma das cadeiras e leu o cardápio, subitamente sentindo fome por toda a agitação da manhã.
— Finalmente encontrei alguém que goste de comer tanto quanto eu. — null comentou, sentando ao seu lado. Seus cabelos de cor nanquim brilhavam e sua envergadura fazia com que seu braço direito esbarra-se no ombro de null. A pulseira azul de identificação no seu pulso destoava tanto de seu visual completamente escuro que parecia errado. Ele não aparentava se importar com esse detalhe. Retirou do bolso do sobretudo diversas fotos reveladas e as colocou diante de null.
Existia algo muito particular naquelas fotos, algo que null não sabia explicar com certeza. A visão de null sobre o mundo estava refletida ali, na maneira como ele capturava os olhares de duas senhoras sorridentes no bonde, nas folhas caídas sobre o Leine, nas árvores que perderam sua imponência e agora estavam secas, mas bonitas a sua própria forma em meio a palidez do em torno. null sentiu que deveria estar corando. Aquele ato era tão pessoal. Naquele momento null decidiu que mostraria seus escritos para null. Só precisava reunir mais coragem para isso.
❄
Ao cair da noite, null lhe arrastou mais uma vez para um novo destino. Eles haviam perdido um bom tempo caminhando e provando iguarias locais e se perderam na grandiosidade do Maschpark que tinha a fama de ser duas vezes maior do que o Central Park, do qual null era tão familiarizada. Estando quase na hora de voltar para o hotel onde os passageiros ficariam hospedados aquela noite, eles tiveram que pegar a condução às pressas e correr o resto do trajeto para conhecer o Mercado de Natal. Assim como null pensou, o lugar era um espetáculo de luzes cintilantes e vida. Um conjunto de cabanas centrais funcionavam em um formato de U invertido, que se estreitava na entrada. Os telhados eram decorados com cascatas de piscas dourados e visco, e mais lâmpadas cruzavam as ruas como cortinas de brilho. Grandes pinheiros bem decorados tomavam a calçada e null parou ali por um instante, admirando a maneira como seu ponto mais alto parece se perder em meio a névoa noturna.
Quando olhou novamente ao redor, não sentiu a presença de null ao seu lado. Deu um passo a frente, muitas pessoas transitando e dificultando sua procura silenciosa. null apareceu minutos depois, e jogou o braço ao redor do pescoço de null.
— Sorria! — ele disse e tudo que null fez foi olhar para ele assustada.
null lhe soltou abruptamente e correu para onde a poucos metros dali estava uma jovem adulta segurando sua polaroid e um celular de capa bege. Eles conversaram rapidamente e null voltou para o seu lado, repetindo o que havia feito antes.
— Ficou engraçada, mas sorria dessa vez!
null olhou para frente e viu a moça acenar para os dois enquanto batia a foto. null deu um sorriso pequeno e discreto, completamente descrente. Não sabia como null tinha conseguido se comunicar com a mulher, mas ele parecia ter um ímã para pessoas. Perto dele, null era apenas uma jovem de simpatia discutível.
A mulher se aproximou deles, entregando os pertences de null e sorrindo largo.
— Vocês são um casal tão bonito e jovial. Qualquer foto ficaria bonita! — ela exclamou, seu sotaque alemão carregando algumas palavras enquanto falava um inglês lento. Em seguida, cumprimentou null e se despediu em um salto agitado. null cruzou os braços, olhando fixamente para null. Ele deu de ombros.
— As pessoas de Hanôver são tão encantadoras. Porém, acho que ela ficaria um pouco decepcionada em saber que não sou tão jovem assim. — ele disse, em nenhum momento negando a parte “casal bonito”. null decidiu demonstrar descaso também e lhe acompanhou através da entrada do Mercado. As cabanas eram muito ornamentadas e cheias dos mais variados produtos, jóias, roupas, cosméticos, comidas.
— Quantos anos você tem então? — null questionou, curiosa.
— Vinte e seis. — ele respondeu simplesmente, dando uma volta atenta por cada barraca, até parar em uma com belas peças brilhantes.
— Um médico com vinte e seis anos? Você deve ter começado cedo.
null assentiu, inspecionando.
— Meus pais tinham a mesma profissão, então eu fui instruído muito cedo. As universidades me aceitaram facilmente, o meu histórico era muito bom e eu tinha alguma experiência na área. As coisas simplesmente… Aconteceram. — ele disse por fim. null estudou um pouco o rosto de null, mas se havia alguma tristeza ou remorso sumiu antes de ser notado.
— Você é um ótimo fotógrafo.
null piscou, seu olhar finalmente cruzando com os de null.
— É uma das coisas que amo fazer. Talvez eu tivesse seguido por esse caminho caso a medicina não rolasse.
— Então você teve opção?
— Oh, sim, claro! — null atropelou-se nas palavras. — Meus pais fizeram de tudo para que eu seguisse seus caminhos, mas teriam respeitado minha decisão. São boas pessoas. E você? Como começou a escrever?
null suspirou, seu hálito formando cobertas de fumaça em suas bochechas.
— Escrevo desde o início da adolescência e saí de casa com vinte anos para morar em Nova York a própria sorte. Ninguém da minha família apoiou… Meu irmão mais velho ligou quase todos os dias que se seguiram a minha partida pedindo que eu voltasse e desistisse de tudo. — null desviou o olhar de null, temendo que houvesse pena neles. — estou há dois anos sem me comunicar com meus pais, e estou indo a Amsterdam para encontrá-los. Minha melhor amiga comprou as passagens e insistiu que eu viesse. Provavelmente é o fim da minha jornada falha como escritora.
Silêncio. null apenas sabia que null ainda estava ali porque enxergava suas pernas longas próximas das dela. Desconforto vazava de seus poros. Ela nunca tinha precisado contar sua história para outra pessoa que não fosse null, suas lamentações, seu embaraço. null havia conquistado tudo. Ela era uma piada perto dele.
— Pode afastar seus cabelos um pouco? Quero colocar isso aqui.
null ergueu o olhar depois do que pareceu uma eternidade e viu null chegar mais perto, um cordão dourado em mãos.
— O que… O que é isso? — ela perguntou, ainda envergonhada. Ele sinalizou novamente para que ela segurasse os cabelos e depois de uma leve hesitação null o fez. null contornou seu corpo e parou em suas costas, passando um colar pelo seu pescoço e fechando a presilha atrás, os dedos enluvados esbarrando levemente contra sua nuca quente. null olhou para baixo, onde sentia o pingente tocar seu esterno. E seu coração aqueceu.
Era uma pequena pena de escrever, muito bem esculpida para que seus detalhes tivessem diferentes relevos. O corpo dela era dourado, mas a ponta era um pouco escura, como se estivesse manchada de tinta. Ao virar, havia uma inscrição em letras cursivas. Schreiben. Escreva.
— Onde você….
null apontou para um homem idoso de pé atrás da barraca em que eles conversavam parados a certo tempo. O homem sorria tão calorosamente que a neve parecia não atingi-lo, a expressão avermelhada, cheia.
— É um presente meu… Para você. — null abriu a boca, mas null sussurrou — Não adianta. Eu já paguei. E seria muito, muito feio recusar. — ele parou em sua frente, tirando os cabelos dela de trás da orelha e ajustando-os sobre o busto. — assim fica bem melhor, null. Agora vamos provar o bolo alemão!
Ele a pegou pela mão dessa vez, lhe carregando para a praça de alimentação, para onde o cheiro de calda quente de chocolate atraía qualquer passante. Escreva, dizia o pingente. Era tudo que null tinha a dizer, nenhum julgamento, apenas um incentivo eternizado na forma daquele presente. null não notara, mas estava sorrindo verdadeiramente, a boca formando um arco bonito que há tanto tempo não se manifestava.
❄
Era muito cedo. Poucos passantes se dirigiam à bilheteria ou caminhavam livremente pelos corredores e escadarias. null observa o movimento, um copo de chocolate quente em mãos — um que adquirira em uma cafeteria segundos depois de chegar à estação, pois morria de sono e não tinha se alimentado — e uma mala de tamanho razoável acompanhada de uma bolsa de colo. Para qualquer pessoa de bom senso era fácil notar na face da jovem adulta diversos sentimentos mistos. A insegurança era o mais perceptível.
Respirou fundo, caminhando até a plataforma 7, onde seu trem a esperava. Naquele dia, devido ao feriado natalino que ocorreria em cinco dias, a estação forneceu um plano diferente de viagem, com paradas em vários destinos para fins turísticos. Apesar de não fazer questão e de odiar viagens longas, null não recusou a oferta — afinal a passagem foi um presente de sua melhor amiga null — e assim chegaria a Amsterdam, sua cidade natal onde ainda residem seus pais.
Para a garota, voltar para casa após dois anos seria o ato mais difícil que realizaria. Recordava-se plenamente do dia em que decidiu sair de casa. Tinha dezoito anos na época, mas só tomou coragem — e reuniu dinheiro o suficiente — aos 20. Seus pais possuíam uma boa casa no interior de Amsterdam e sua família era popularmente conhecida na região pela indústria null de leite e derivados. null era a filha do meio — tinha dois irmãos mais velhos gêmeos Aaij e Reinder e uma irmã mais nova chamada Kollen. Desde a infância, apesar dos desejos de seus pais, null nunca almejou um cargo no negócio da família. Pelo contrário, a calmaria do campo lhe enfadava e preferia a sensação de aventura que incontáveis viagens poderiam proporcionar.
Foi por esta razão que começou a escrever. Fazia com que seus personagens conhecessem lugares incríveis e vivessem o inimaginável. O hobby logo se tornou sua maior paixão e assim, ao terminar a escola, decidiu estudar em outra província e em seguida, morar em outro país. O resultado foi caótico, bem como previa. Acabou por ter uma grande discussão com seus pais que culminou em uma partida apressada e na falta de comunicação entre eles durante dois anos inteiros.
Entretanto o sonho da escrita logo se provou desafiador. Editoras constantemente fechando a porta em sua face, ninguém disposto a ler seus projetos, seus contos mal vendiam. Fora obrigada a trabalhar como jornalista freelancer para pagar suas contas — que eram muitas — e assim sobreviver mais um dia. Começou a receber diversas mensagens e ligações de Reinder, todas elas pedindo que ela abandonasse suas ideias malucas e voltasse para casa. Mas ela não poderia fazê-lo. Havia prometido a si mesma que faria seu sonho se tornar realidade e só então voltaria bem sucedida para sua família. Mas estava ficando cada vez mais cansada e impaciente.
null estava profundamente preocupada com seu estado. Conheceram-se logo quando null participou de sua primeira entrevista em uma editora. null era secretária e a consolou quando ao final, após null ter passado o dia inteiro sem comer apenas para essa entrevista, nada deu certo e ela acabou por chorar compulsivamente. Desde então null tem sido sua firme companheira e sempre lhe ajuda a manter o ânimo. Porém quando null foi dispensada pelo principal comprador das notícias que escrevia, o que a deixou completamente sem saída, null não lhe permitiu discutir. E então ali estava ela, sentada em um banco da estação, o celular carregando silenciosamente, bebendo as últimas gotas de seu chocolate.
Ajustou novamente seu cachecol. Apesar de alguns tímidos raios de sol, a temperatura era de apenas -3 graus. Olhou para a placa de horários. Dois minutos para chegada. O chão abaixo de seus pés começa a tremer e as pessoas começam a se reunir ao seu redor. Estava na hora.
— Afastem-se da borda. Trem se aproximando. — alertava um aviso luminoso.
E rapidamente ele estava ali. Todos os passageiros amontoaram-se à espera de entrar. null não tinha pressa. Seu coração pesava de medo e arrependimento e a vontade de ficar aumentava a cada segundo. Pressionava seu bilhete de entrada com bastante força e o papel se contorcia entre seus dedos. Deixou que todos fossem se acomodando em seus lugares, respirou fundo mais uma vez. Sentia que aquele momento era uma sentença de morte a todos os seus sonhos. Não poderia mais voltar. Não poderia provar a todos que tinha conseguido.
Deu o primeiro passo para dentro do trem. Um funcionário parado contra o portal de entrada lhe lançou um olhar reprovador ao receber seu bilhete em frangalhos e ao confirmar sua veracidade lhe indicou sua fileira com um aceno de mão distraído. null murmurou um pedido de desculpas e olhou em volta enquanto ajustava seus óculos. Muitas famílias estavam reunidas ali. O trem era de um estilo mais antigo e charmoso. Os passageiros sentam-se de frente um para o outro, com mesas entre eles. As poltronas eram acolchoadas e mulheres serviam bebidas e alimentos. Ali era quase uma primeira classe. null bufou ao pensar nisso. null adorava gastar dinheiro sem necessidade.
Procurou pelo número no seu bilhete. 14B. Ficava quase no centro do trem. Guardou sua bolsa de colo próxima a si. Sua mala já tinha sido guardada no lugar adequado e não havia mais muito que fazer. Retirou o seu caderno da bolsa e posicionou sua caneta sobre um espaço em branco. Sua mente não trabalhava muito bem. Alguns rabiscos já ocupavam o outro verso da folha, mas nada de produtivo saía.
— Bom dia!
null ergueu a cabeça muito levemente para a sombra que lhe cobria e se assustou. Ele era enorme. Entrava com dificuldade no espaço entre a cadeira e a mesa, que eram próximas demais para suas pernas longas. Carregava uma mochila que descansava em seus ombros muito largos e sua camisa cor de creme de gola alta estava desalinhada sob o casaco escuro. Aparentava estar em seus vinte e poucos anos, mas null não podia afirmar. Sua pele era limpa e brilhosa demais, e os cabelos negros e lisos como seda. Suas pálpebras se curvam graciosamente como um leque contra sua marca d’água. Asiático.
— Acredito que interrompi sua escrita. É um diário?
null negou com a cabeça, mas aceitou seu aperto de mão. Suas palavras eram carregadas de um sotaque leve e divertido. null não costumava gostar de pessoas intrometidas, principalmente daquelas que xeretam em sua escrita, mas decidiu ser um pouco gentil com o rapaz, afinal seria um longo percurso em sua companhia. Um desentendimento poderia tornar aquela viagem ainda pior.
— Ah, então talvez um livro? Me desculpe, eu sou meio curioso demais às vezes. Uma mania chata que peguei devido ao meu trabalho. A propósito, sou null null… Ou apenas null.
null estava com o braço apoiado na mesa. Havia retirado um óculos arredondado da bolsa e um exemplar de Grandes Esperanças de Charles Dickens. null piscou. Não via alguém ler clássicos há um bom tempo salvo ela mesma e null, que era apaixonada por Jane Austen.
— Sou null… null — ela responde, colocando os cabelos atrás da orelha. Eles haviam crescido bastante desde que saíra de casa e caíam como cascatas castanhas em suas costas. — E sim, meu trabalho é escrever livros… É o que eu faço a maior parte do tempo.
Os olhos de null brilharam, claramente entusiasmado com o pequeno detalhe revelado por ela.
— Seria pedir demais ler alguma publicação sua? Apenas me diga o nome e eu pesquiso na internet…
— Eu não tenho livros publicados. Nenhuma editora aceitou meus projetos. Apenas alguns contos em formato de ebook que não fazem sucesso algum. — ela sorri de lado, mas null não acompanha. Ele franze a testa.
— As coisas nunca acontecem como desejamos não é?
null acena com a cabeça, mas sua atenção já tinha sido desviada para a janela do trem, seus olhos acompanhando os edifícios que eram deixados para trás e davam lugar aos campos verdes e casas campestres, tão parecidas com as da região em que havia nascido. No verão, diferentes cores tomavam os céus naquele horário, e null sempre tinha amado analisar a mistura de tons, as nuvens contornadas de magenta a medida que o crepúsculo surgia. Sua mente fluía de pensamentos poderosos e rápidos, que escapavam através de sua caneta para o papel em sua adolescência. Aaij subiria todo o monte até chegar ao local que null havia escolhido para ser seu refúgio e reclamaria por sua demora, por seu ócio. Ela estava acostumada a essa rotina, a acordar e dormir em segurança, a ter as palavras tão facilmente para si como respirar.
Mas Nova York, seu lar atual, era completamente diferente. Tinha todas as características de cidade grande que ela amava, os prédios longos, as lojas de conveniência vinte e quatro horas, as praças limpas, as pessoas preenchendo as vielas. Entretanto, algo dentro de null não conseguia se encaixar completamente nem assimilar as novas sensações a fim de torná-los em um belo texto. Pouco a pouco sua energia era sugada e ela se odiava por isso.
null arriscou um olhar na direção de seu companheiro de viagem. null aparentemente havia perdido o interesse nela e lia avidamente seu livro, os cabelos pretos cobrindo seus olhos. “Qual seria a profissão dele?” ela se pegou pensando. Curioso, lê livros demais, é educado e seus movimentos tão delicados. null moveu o braço direito para mudar de página e, null notou, uma pequena tatuagem estava ali, uma linha que subia e descia desordenadamente. Um cardiograma.
null piscou, pensando que seu palpite provavelmente estava certo, e voltou a escrever, desta vez com mais entusiasmo.
Durante a noite, o sistema de aquecimento do trem fazia ainda mais diferença. Além da luz dos lustres que brilhavam em uma coloração dourada, o topo das janelas tinham sido bem decoradas com visco e piscas vermelhos e verdes e algumas crianças apontavam entusiasmadas para as mulheres que entravam para servir o jantar, trajando roupas que muito lembravam as vestes do papai noel. null particularmente não sentia nada de especial pelo natal. Era mais uma data comemorativa no calendário. Todos a valorizam demais e falam sobre milagres e estar ao lado da família. Seus pais sempre realizavam uma grande ceia junto de todos os trabalhadores da fábrica e a casa ficava cheia. null cresceu detestando as festividades de fim de ano. Sempre gente demais ao redor de seus pais, ao redor de seus irmãos, que nem tinham tempo para ela. Tantos incômodos.
A jovem comissária parou ao lado de sua mesa e apresentou o cardápio da noite, que consistia em um gratin de batata muito bem cozido. null, quase que atraído pelo cheiro maravilhoso que saia do prato, acordou de seu cochilo — que havia durado quase duas horas — e se afastou para que houvesse espaço para alocar a refeição. Ele sorriu contido e enfiou seu garfo no ramekin, colocando uma boa porção na boca. Seu rosto foi tomado de vermelho e seus olhos lacrimejaram.
— Está mais quente do que eu imaginava! — ele geme, ainda se esforçando para soprar a fumaça quente. null meneia a cabeça. Zero de seriedade. — costumamos comer comidas muito quentes na Coréia, mas isso aqui… Meu Deus.
Coreano. null ainda não sabia diferenciar bem os traços dos asiáticos. Nunca havia visitado a região e tampouco acompanhava sua cultura. Sentia-se um pouco ignorante sobre o mundo e isso lhe irritava. Profundamente.
— As comidas são servidas quase fervendo nesse período do ano, afinal é frio demais. Se não tivesse engolido tão rápido e se não estivéssemos em um local com aquecedores, vocẽ perceberia que esse calor é muito bom — ela comentou, antes mesmo de notar que as palavras estavam fluindo de sua boca. null olhou para ela e anuiu rapidamente, tendo cuidado com a segunda garfada.
— Vivemos um inverno rigoroso também, mas minha casa é muito bem aquecida então não posso reclamar, apesar de mal parar por lá. Quando não estou trabalhando estou viajando.
— Você é médico, não é?
null arqueou as sobrancelhas.
— Sim. Não lembro de ter comentado sobre isso.
null apontou para o pulso direito de null, para a tatuagem de cardiograma. Um flash de compreensão passou pelos olhos de null e ele colocou a mão sobre o local.
— Juntei sua mania de leitura e curiosidade à tatuagem. Foi apenas uma dedução.
— Acho que você me enganou e na verdade é uma detetive disfarçada. Devo me preocupar? — seu tom brincalhão pegou null de guarda baixa. As pessoas normalmente odiavam quando ela fazia isso, fixava sua atenção nelas como louca e começava a imaginar e deduzir coisas. Era quase impossível para ela conter esse impulso e atribuía isso ao fato de ser uma escritora, de precisar prestar atenção aos detalhes.
— Talvez. Possui algum segredo sórdido que deseja manter escondido?
null colocou a mão no queixo em um gesto forçado. Ele era um homem muito bonito, null devia admitir. Seus lábios cheios e vermelhos, o rosto anguloso e os olhos pequenos. Era como se tivesse saído de uma pintura milenar, um retrato de um jovem imperador.
“Isso”, null pensou, Um jovem imperador era uma ideia muito boa.
— Não, nada que me vem à mente agora. E você?
null também fingiu pensar propriamente sobre o assunto e acenou para o trem.
— Na verdade, tudo isso é meu e eu sou muito famosa. Estão me gravando agora mesmo para meu reality show.
null sorriu, seus olhos se comprimindo em uma linha fina. null se sentia estranhamente satisfeita por conseguir ser sarcástica mesmo em um momento como aquele. Apenas null lhe tirava normalmente de seu estado de reclusão extrema.
— Você conseguiria facilmente se tornar uma idol no meu país. Seu timing cômico é muito bom. Kim Byungman teria inveja.
— Kim Byungman? — ela perguntou, o nome soando estranho ao sair de sua boca tão regada de sotaque. Apesar disso, null assentiu gentilmente.
— Sim, Kim Byungman. Ele é um comediante muito famoso na Coréia. Na verdade, ele faz parte do meu programa de tv favorito, Law of the jungle.
— Que seria sobre…
— Sobrevivência na selva. Várias celebridades participam e ele é como um chefe para essa “tribo”. Eu constantemente uso o programa dele para decidir meus próximos destinos de viagem. — null falava intercalando entre um sopro e outro — eu tenho alguns episódios salvos no meu computador. Podemos assistir depois. Tenho certeza que lhe deixará bastante inspirada!
null gargalhou baixo e tirou seus óculos que tinham embaçado levemente por conta da fumaça do gratin e continuou a comer. A sua volta, risadas e acaloradas conversas compunham o ambiente, a ventania fria castigando o vidro da janela e deixando marcas que pareciam pequenos riscos. Um senhor idoso fechou parcialmente uma das cortinas e daquele ângulo null pensou ter visto a luz da lua recair exatamente sobre si.
Chegaram em Hanôver antes do sol tomar completamente o céu. Como parte do serviço, receberam um café da manhã reforçado e null preferiu deixar o trem ainda com o seu copo de chá em mãos, para beber no caminho. null segurava uma câmera polaroid e ajustava o apoio de pescoço com cuidado. Ele vestia apenas preto naquele dia e muitas garotas passavam ao seu lado com um olhar deslumbrado, chocadas demais com sua beleza exótica. Ele não parecia notar e, se percebia, não dava muito atenção ao fato.
— Bom dia passageiros! Durante a madrugada nosso trem parou em Wolfsburg para abastecer enquanto todos dormiam e agora finalmente alcançamos nosso primeiro destino turístico, Hanôver. Ficaremos hospedados aqui por dois dias, então terão bastante tempo para conhecer a cidade. Como todos estão sentados em mesas com companheiros, essas mesmas pessoas serão suas companhias durante essa etapa. Colocaremos pulseiras de identificação de cores iguais nas duplas ou grupos de até no máximo quatro pessoas. Espero que se divirtam e, por favor, usem o folhetim guia que concedemos a vocês. Tem várias sugestões interessantes!
Quando o guia do trem, um rapaz rechonchudo de cabelos grisalhos e olhos claros como a mais pura água, terminou sua fala todos se ajustaram para formar uma fila indiana corretamente. null deu um passo à frente de null lhe cobrindo por completo com sua envergadura. null pigarreou.
— Não precisava ir até aí. Nós seríamos colocados juntos no final de todo jeito.
null concordou, não dando atenção realmente para null e então virou-se rapidamente e apertou um botão de sua câmera. null não teve tempo de reagir. Um som de clique, e pouco tempo depois a foto saiu lentamente. null sorriu para a visão daquela foto idiota.
— Uma foto muito boa para começar a viagem. Bastante espontânea.
null protestou, mas não podia fazer muito contra os bons centímetros a mais que null possuía.
— Me deixe ver a foto!
— Depois eu te faço uma cópia.
As pessoas olhavam para eles com divertimento, quase como se observassem um jovem casal feliz. null enrubesceu. Não havia notado o quanto aquela cena realmente parecia outra vista fora de contexto.
Os funcionários do trem logo se aproximaram de null e null para colocar a pulseira azul em torno de seus pulsos. Não tinha nada de especial na tira de plástico, apenas o nome e o número da cadeira ocupada. null deu um passo agitado em direção a porta e ao atravessá-la estremeceu um pouco. O ar gélido tomou conta de sua face e parecia perfurar seus poros. Ergueu um pouco o cachecol para cobrir seu queixo.
Hanôver era uma cidade bastante intimista e tranquila, apesar de constantemente servir de sede para grandes feiras e convenções. Era cercada pelas águas do rio Leine, que naquela época do ano tomava um tom esverdeado límpido e sua extensão territorial era semelhante a de Frankfurt. Apesar de quase ter sido completamente dizimada pela guerra, as construções mantinham uma aparência campestre e sustentava o título de a cidade alemã mais verde. Muitos piscas decoram as árvores, as fachadas das casas e atravessavam as ruas de um lado ao outro. Deveria ser um completo espetáculo durante a noite, null pensou.
Caminharam um pouco pelas ruas de granito escurecidas e levemente umedecidas pelo clima. Uma linha vermelha marcava quase todos os pontos turísticos da cidade, o que tornava o guia quase dispensável. null observou com cuidado o gramado tão pigmentado, as pessoas que pouco a pouco abriam seus pontos de comércio, lojistas animados com a chegada dos turistas.
— Podemos visitar o Mercado do Natal durante a noite. Old Town não é tão distante. — comentou null, que já apontava sua câmera para capturar cenas ordinárias do dia a dia daquele povo. null concordou vagamente, tirando seu celular do bolso e abrindo o aplicativo do uber.
null negou com a cabeça e tomou o celular de sua mão, exasperação fluindo de seus poros.
— Não é possível que você queira pegar um uber para conhecer uma cidade! Você realmente não faz muito turismo, certo?
null tomou o celular de volta, os olhos arregalados. Ela queria responder que não, que jamais conhecera outros lugares porque saiu de casa muito cedo e não conseguira juntar o suficiente para usufruir de tais luxos. Mas tudo que fez foi cruzar os braços e encarar null com tédio.
— Então passe para mim o seu conhecimento, oh gênio.
null sorriu, deixando para trás todo traço de indignação, e falou orgulhosamente:
— Vamos pegar um ônibus, bobinha. É a melhor forma de experienciar verdadeiramente um dia na vida deles.
E null não estava errado.
Depois de perderem alguns minutos no centro turístico para conseguir o cartão de transporte, tomaram o bonde e percorreram quase todo o perímetro principal, que começava a criar vida à medida que as horas passavam. null prendeu sua atenção às pequenas padarias, ao cheiro divino de trigo, especiarias, café e chocolate que inundava as ruas, os passantes pálidos e louros que tinham um tom vermelho tomate em seus rostos e lutavam para se proteger do frio. O rio Leine serpenteava tranquilamente por dentro da cidade e algumas folhas flutuavam sobre ele, os últimos resquícios do outono que já se fora.
Apesar de não ser utilizado como fonte de água potável, o Leine parecia decente o suficiente e seu aspecto combinava com a aparência fria. null gostaria de andar próximo a ele, de respirar fundo e deixá-lo preencher seus pulmões. Natureza lhe cercava por todos os lados e os galhos das árvores vazias atravessavam as ruas que já acumulavam uma camada fina de neve. O bonde desceu por uma rua íngreme e revelou mais um ponto cheio de casas e chaminés que trabalhavam a todo vapor, a fumaça cinza como algodão empoeirado. Os tetos estavam cobertos de neve. null levantou com cuidado e abaixou a cabeça levemente para levantar do assento.
— Devemos descer aqui. — ele disse, apontando para a parada próxima. null o seguiu em silêncio, o seu velho bloco de notas em mãos enquanto finaliza uma anotação. null andava elegantemente por entre as pessoas, chamando tanta atenção quanto se era possível, e caminhava com uma certeza louvável. Se não fosse por seus traços claramente orientais, qualquer um acreditaria que ele fazia parte daquele lugar.
null no entanto, estava longe disso. Andava distraída com a paisagem e as pessoas, os óculos de grau com armação dourada e arredonda repousando quase sem peso sobre o seu nariz levemente afilado, o rosto em v com queixo pontudo, sobrancelhas quase sem arqueação alguma e boca bem desenhada, mas ressecada pela friagem. Seus cabelos castanhos escuros presos atrás da orelha e grandes demais, ela os preferia na altura dos ombros, mas null não teve tempo de cortá-los antes da viagem. Pouco nela faria alguém associar sua imagem a de uma holandesa nativa.
null suspirou, olhando para sua imagem no vidro de uma vitrine. null havia lhe emprestado algumas roupas, mas a maioria não lhe coube bem — null era bem mais alta — e por isso teve que improvisar aquela manhã. Usava um conjunto monocromático que consistia em um casaco verde escuro e uma calça. Carregava uma bolsa de mão e usava suas botas de salto baixo que eram muito confortáveis, além de um casaco longo sem mangas com diversos botões, mas que ela decidira por deixar aberto. Suas noções de moda eram completamente baseadas nos ensinamentos de sua melhor amiga e vez ou outra tentava agradá-la tomando mais cuidado com o que vestia. null sorriu com o pensamento. Sentia terrivelmente a falta dela.
— null, que está fazendo parada aí? Acabamos de chegar na Praça do Mercado. Temos muita coisa pra ver ainda!
null torceu o nariz.
— null? — ninguém jamais havia lhe chamado por apelidos ou se dado ao trabalho de criar um.
null sorriu, sua expressão se iluminando ao ponto de parecer deslocada naquele ambiente gélido.
— Eu sou coreano. Seu nome é quase um trava língua. Agora vem. — ele lhe pegou pelo braço e null teve que fazer um grande esforço para acompanhá-lo.
A Praça do Mercado, Am Markt, era uma área extensa de comércio e atividades diárias. O asfalto se misturava com as calçadas lisas que ocupavam boa parte das ruas de Hanôver, o que possibilita os pedestres percorrerem grandes distâncias a pé e em segurança. Existiam duas construções remanescentes do período gótico: a antiga prefeitura, Altes Rathaus, que havia passado por uma restauração massiva após o bombardeio durante a guerra, e a Igreja Marktkirsche, símbolo da religião luterana. A cidade tinha crescido em torno dessas construções firmes e as ruas mais pareciam veias bombeando o coração de Hanôver. null andou um pouco mais, seus olhos cheios pela visão da tranquilidade daquele lugar, que abrigava a modernidade sem excessos e seguia seu curso entrelaçando o novo e o antiquado com maestria.
null estava parado na esquina de uma rua e tirava fotos com sua polaroid de maneira ávida. null logo entendeu o porque; a rua era linda, com construções cheias de cor e fachadas fofas em estilo enxaimel. Uma viela estreita tinha um belo estabelecimento, com lâmpadas amarelas e vermelhas e mesas rústicas de madeira postas como em uma praça. null sentou em uma das cadeiras e leu o cardápio, subitamente sentindo fome por toda a agitação da manhã.
— Finalmente encontrei alguém que goste de comer tanto quanto eu. — null comentou, sentando ao seu lado. Seus cabelos de cor nanquim brilhavam e sua envergadura fazia com que seu braço direito esbarra-se no ombro de null. A pulseira azul de identificação no seu pulso destoava tanto de seu visual completamente escuro que parecia errado. Ele não aparentava se importar com esse detalhe. Retirou do bolso do sobretudo diversas fotos reveladas e as colocou diante de null.
Existia algo muito particular naquelas fotos, algo que null não sabia explicar com certeza. A visão de null sobre o mundo estava refletida ali, na maneira como ele capturava os olhares de duas senhoras sorridentes no bonde, nas folhas caídas sobre o Leine, nas árvores que perderam sua imponência e agora estavam secas, mas bonitas a sua própria forma em meio a palidez do em torno. null sentiu que deveria estar corando. Aquele ato era tão pessoal. Naquele momento null decidiu que mostraria seus escritos para null. Só precisava reunir mais coragem para isso.
Ao cair da noite, null lhe arrastou mais uma vez para um novo destino. Eles haviam perdido um bom tempo caminhando e provando iguarias locais e se perderam na grandiosidade do Maschpark que tinha a fama de ser duas vezes maior do que o Central Park, do qual null era tão familiarizada. Estando quase na hora de voltar para o hotel onde os passageiros ficariam hospedados aquela noite, eles tiveram que pegar a condução às pressas e correr o resto do trajeto para conhecer o Mercado de Natal. Assim como null pensou, o lugar era um espetáculo de luzes cintilantes e vida. Um conjunto de cabanas centrais funcionavam em um formato de U invertido, que se estreitava na entrada. Os telhados eram decorados com cascatas de piscas dourados e visco, e mais lâmpadas cruzavam as ruas como cortinas de brilho. Grandes pinheiros bem decorados tomavam a calçada e null parou ali por um instante, admirando a maneira como seu ponto mais alto parece se perder em meio a névoa noturna.
Quando olhou novamente ao redor, não sentiu a presença de null ao seu lado. Deu um passo a frente, muitas pessoas transitando e dificultando sua procura silenciosa. null apareceu minutos depois, e jogou o braço ao redor do pescoço de null.
— Sorria! — ele disse e tudo que null fez foi olhar para ele assustada.
null lhe soltou abruptamente e correu para onde a poucos metros dali estava uma jovem adulta segurando sua polaroid e um celular de capa bege. Eles conversaram rapidamente e null voltou para o seu lado, repetindo o que havia feito antes.
— Ficou engraçada, mas sorria dessa vez!
null olhou para frente e viu a moça acenar para os dois enquanto batia a foto. null deu um sorriso pequeno e discreto, completamente descrente. Não sabia como null tinha conseguido se comunicar com a mulher, mas ele parecia ter um ímã para pessoas. Perto dele, null era apenas uma jovem de simpatia discutível.
A mulher se aproximou deles, entregando os pertences de null e sorrindo largo.
— Vocês são um casal tão bonito e jovial. Qualquer foto ficaria bonita! — ela exclamou, seu sotaque alemão carregando algumas palavras enquanto falava um inglês lento. Em seguida, cumprimentou null e se despediu em um salto agitado. null cruzou os braços, olhando fixamente para null. Ele deu de ombros.
— As pessoas de Hanôver são tão encantadoras. Porém, acho que ela ficaria um pouco decepcionada em saber que não sou tão jovem assim. — ele disse, em nenhum momento negando a parte “casal bonito”. null decidiu demonstrar descaso também e lhe acompanhou através da entrada do Mercado. As cabanas eram muito ornamentadas e cheias dos mais variados produtos, jóias, roupas, cosméticos, comidas.
— Quantos anos você tem então? — null questionou, curiosa.
— Vinte e seis. — ele respondeu simplesmente, dando uma volta atenta por cada barraca, até parar em uma com belas peças brilhantes.
— Um médico com vinte e seis anos? Você deve ter começado cedo.
null assentiu, inspecionando.
— Meus pais tinham a mesma profissão, então eu fui instruído muito cedo. As universidades me aceitaram facilmente, o meu histórico era muito bom e eu tinha alguma experiência na área. As coisas simplesmente… Aconteceram. — ele disse por fim. null estudou um pouco o rosto de null, mas se havia alguma tristeza ou remorso sumiu antes de ser notado.
— Você é um ótimo fotógrafo.
null piscou, seu olhar finalmente cruzando com os de null.
— É uma das coisas que amo fazer. Talvez eu tivesse seguido por esse caminho caso a medicina não rolasse.
— Então você teve opção?
— Oh, sim, claro! — null atropelou-se nas palavras. — Meus pais fizeram de tudo para que eu seguisse seus caminhos, mas teriam respeitado minha decisão. São boas pessoas. E você? Como começou a escrever?
null suspirou, seu hálito formando cobertas de fumaça em suas bochechas.
— Escrevo desde o início da adolescência e saí de casa com vinte anos para morar em Nova York a própria sorte. Ninguém da minha família apoiou… Meu irmão mais velho ligou quase todos os dias que se seguiram a minha partida pedindo que eu voltasse e desistisse de tudo. — null desviou o olhar de null, temendo que houvesse pena neles. — estou há dois anos sem me comunicar com meus pais, e estou indo a Amsterdam para encontrá-los. Minha melhor amiga comprou as passagens e insistiu que eu viesse. Provavelmente é o fim da minha jornada falha como escritora.
Silêncio. null apenas sabia que null ainda estava ali porque enxergava suas pernas longas próximas das dela. Desconforto vazava de seus poros. Ela nunca tinha precisado contar sua história para outra pessoa que não fosse null, suas lamentações, seu embaraço. null havia conquistado tudo. Ela era uma piada perto dele.
— Pode afastar seus cabelos um pouco? Quero colocar isso aqui.
null ergueu o olhar depois do que pareceu uma eternidade e viu null chegar mais perto, um cordão dourado em mãos.
— O que… O que é isso? — ela perguntou, ainda envergonhada. Ele sinalizou novamente para que ela segurasse os cabelos e depois de uma leve hesitação null o fez. null contornou seu corpo e parou em suas costas, passando um colar pelo seu pescoço e fechando a presilha atrás, os dedos enluvados esbarrando levemente contra sua nuca quente. null olhou para baixo, onde sentia o pingente tocar seu esterno. E seu coração aqueceu.
Era uma pequena pena de escrever, muito bem esculpida para que seus detalhes tivessem diferentes relevos. O corpo dela era dourado, mas a ponta era um pouco escura, como se estivesse manchada de tinta. Ao virar, havia uma inscrição em letras cursivas. Schreiben. Escreva.
— Onde você….
null apontou para um homem idoso de pé atrás da barraca em que eles conversavam parados a certo tempo. O homem sorria tão calorosamente que a neve parecia não atingi-lo, a expressão avermelhada, cheia.
— É um presente meu… Para você. — null abriu a boca, mas null sussurrou — Não adianta. Eu já paguei. E seria muito, muito feio recusar. — ele parou em sua frente, tirando os cabelos dela de trás da orelha e ajustando-os sobre o busto. — assim fica bem melhor, null. Agora vamos provar o bolo alemão!
Ele a pegou pela mão dessa vez, lhe carregando para a praça de alimentação, para onde o cheiro de calda quente de chocolate atraía qualquer passante. Escreva, dizia o pingente. Era tudo que null tinha a dizer, nenhum julgamento, apenas um incentivo eternizado na forma daquele presente. null não notara, mas estava sorrindo verdadeiramente, a boca formando um arco bonito que há tanto tempo não se manifestava.
Capítulo 2
Dois dias em Hanôver passaram como uma leve brisa de fim de tarde. Quando todos os passageiros voltaram para o trem descobriram que o caminho até Dortmund seria regado de música ao vivo e drinques. Uma dupla de cantores alemães tocavam polca e faziam rimas animadas, as crianças saltando pelos corredores, rodopiando entre as mesas. null e null não acompanhava a dança, mas bebiam cerveja enquanto davam continuidade a uma longa rodada de xadrez. null não esperava que o jogo fosse demorar tanto e já sentia a visão turva pela quantidade de copos ingeridos.
— Finalmente encontrei uma oponente à altura. Bo-ra já teria desistido e me xingado. — comentou null, que estava particularmente brilhante aquela noite, com seu casaco turquesa de gola alta, calça jeans escura e brincos muito discretos nas orelhas que null até então não notara, eram furadas.
— Bo-ra? — null perguntou, o nome mais uma vez soando estranho em sua boca. Um flash de brilho passou pelos olhos de null.
— Kang Bo-ra. É médica pediatra, mas tem uma das bocas mais sujas que conheço. E acontece de ser minha melhor amiga também.
Havia afeto em suas palavras, não velado e intuitivo. Algo em null se apertou e ela sorriu forçado.
— Você costuma jogar sempre com ela?
null negou rapidamente.
— Ela odeia xadrez. Às vezes joga comigo nos intervalos de plantão apenas para me irritar. É uma especialidade dela.
— Minha amiga null… Ela também ama me irritar. Costuma me importunar para ir a festas, mesmo sabendo que eu odeio e me enche de maquiagem.
null olhou para null, suas íris castanho escuro atentas.
— Só recentemente notei que mal usa maquiagem. No meu país todos possuem cosméticos demais. Dificilmente saem de casa sem algo.
— Até os homens?
— Principalmente os homens. Ou você achava que esse rostinho bonito aqui se mantém assim a própria sorte?
Uma gargalhada escapou dos lábios dela. null estava com um sorriso satisfeito no rosto, suas mãos repousavam no queixo agora. Dele emanava um forte cheiro amadeirado e fresco, que acertava as narinas e tomava os sentidos. Ele movimentou uma das peças, os dedos longos e pálidos muito delicados em cada passo.
— Minha mãe costumava me perturbar sobre minha aparência, mas eu nunca me importei o suficiente e então Kollen nasceu e ela passou a realizar todas as vontades na bonequinha dela.
— Você tem uma irmãzinha?
— Sim. — null disse com um gosto amargo na boca. Ela e Kollen eram próximas desde quando Kollen ainda era um pequeno feto na barriga de sua mãe. null sempre sonhou com uma irmã, alguém que pudesse lhe desviar das chatices de seus irmãos. E Kollen nasceu, uma pequena bolinha rosada com os cabelos castanhos aloirados que tanto chamava a atenção de desconhecidos. null sempre fora responsável por cuidar dela e pensar que já não lhe via há dois anos. Seu peito doía. — tenho irmãos gêmeos mais velhos e uma irmã mais nova.
— E você era próxima de Kollen…
— Demais. Aaij e Reinder… São boas pessoas, mas se sentem responsáveis demais por mim mesmo depois que cresci, então era difícil.
null assentiu, tirando seu celular do bolso. Depois de passar o dedo algumas vezes na tela, ele o mostrou para ela. Era uma foto de sua família, seu pai com uma mão pesada em seu ombro esquerdo, enquanto sua mãe tocava levemente o ombro direito de outro rapaz, semelhante a null, mas sem os traços tão definidos e elegantes.
— Tiramos no último ano novo. Todos são muito ocupados e meu irmão está casado agora então é ainda mais difícil de encontrarmos tempo para nos reunirmos.
null balançou a cabeça em compreensão. Ele passou o dedo na tela mais uma vez e surgiu a imagem de null abraçando uma mulher muito bonita, seus cabelos loiros longos presos em um coque, a boca levemente avermelhada, ambos de jaleco e fazendo careta.
— E esta é Bo-ra. Tirei essa foto um pouco antes de viajar, era o aniversário dela. Ela nunca faz pose para fotos.
Era uma foto muito descontraída, tirada de tal maneira que nem parecia que estavam no ambiente de trabalho. null deveria ser muito popular, null pensou. Tão fácil de conversar, de estar por perto. Não poderia ser diferente. null então parou de prestar atenção no tabuleiro e decidiu perguntar:
— Você poderia estar passando as festividades com amigos e familiares… Porque viajar justo nessa época?
null recolheu a mão que segurava o celular e o guardou novamente. A luz dos piscas fazia mágica com o nanquim de seus cabelos e a brisa quente dos aquecedores deixam sua pele avermelhada ao redor das maçãs do rosto.
— Eu precisava de um tempo para descansar, desacelerar e refletir. Para encontrar respostas que há tanto procuro. — ele avançou uma peça. Era um xeque-mate. Ele havia ganho. Mas seu olhar era intenso na direção de null, como se pudesse atravessar sua carne e enxergar sua alma quebrada e insegura. — E sinto que escolhi o lugar certo para isso. Estou exatamente onde deveria estar.
❄
Faltando menos de três dias para o natal, o Westfalenpark estava completamente preparado para o período. O parque era imenso, uma extensão de verde impressionante que agora estava parcialmente coberta de neve. O lago quase congelado espelhava as luzes do Winterleuchten, que cobria as árvores de cores, formando um perfeito arco-íris no horizonte. Naquele caminho específico as árvores eram vermelhas, brancas, roxas, azuis. null afrouxou o aperto do cachecol e tirou uma foto com o seu celular — uma selfie completamente ridícula — e enviou para null. Poucos segundos depois seu celular vibrou freneticamente, sua amiga ligando por chamada de vídeo.
Apesar de estar relutante, atendeu na terceira chamada.
null surgiu em sua tela, seu rosto muito próximo da câmera. Estava sentada no que parecia ser o sofá de sua casa e vestia roupas casuais, os cabelos revoltosos em volta de seu rosto.
— Oi null. Você sabe que podia apenas ter respondido a mensagem não é?
— Mas eu queria ver! Vamos, me mostre mais.
null rolou os olhos, mas andou um pouco, apontando o celular para cada pequena flor, para as depressões nos montes verde musgo. Ela conseguia ouvir null dar gritinhos de alegria. Era muito engraçado como as duas tendiam a ser tão diferentes uma da outra. Não só na aparência como também na personalidade, null sendo um poço de entusiasmo e curiosidade enquanto null apenas lidava com uma coisa de cada vez.
— null? Eu consegui as entradas para o restaurante no topo do Florian. Apesar de que o guia reclamou um pouco por só termos decidido em cima da hora… — null surgiu em sua visão, segurando dois pedaços pequenos de papel. null tomou um susto, o celular vacilando em sua mão. null havia saído para tentar conseguir as reservas já tinha quase meia hora e ela ficou perambulando sozinha desde então, mais entediada do que gostaria de admitir.
— Como assim, null? — ela escutou a voz de null, confusão e alarme claramente expostos. null praguejou baixo. Ótimo. Agora ela iria lhe encher de perguntas.
Deu dois cliques na tela, voltando para a câmera frontal, e seu rosto surgiu, acompanhado da expressão surpresa de null.
— null, esta é null. null, este é null, meu companheiro de viagem no trem. — null disse simplesmente. null finalmente sorriu ao entender o que se passava e então acenou animado para null, que retribuiu com a mesma intensidade.
— Oh, se eu soubesse que eles dariam companheiros tão bonitos de viagem eu teria ido no seu lugar. Meu Deus!
O rosto de null enrubesceu. Aquilo não poderia ficar mais constrangedor.
— Gostei dela. — null comentou, seu sorriso se tornando ainda mais largo. null fez um símbolo estranho com os dedos — algo parecido com o movimento de estralar — e null respondeu fazendo o mesmo.
— Você é coreano, não é? Quantos anos você tem? Você é modelo? Idol? Tem namorada? — null disparou perguntas desordenadas para null, algumas das quais o cérebro de null nem chegou a processar. Ela resolveu que estava na hora de se despedir.
— null, estamos realmente atrasados para nosso compromisso…
— Não estamos tanto assim…
— Então vou ter que desligar! — null cortou null — Depois te mando uma mensagem, prometo.
null resmungou e antes que null pudesse encerrar a chamada ela gritou:
— Pede meu instagram para a null!
null clicou no ponto vermelho na tela e sua amiga sumiu de vista. Ela respirou fundo, ainda tentando absorver a vergonha que sentia.
— Você precisava aparecer justamente quando null ligou?
null deu de ombros, entregando uma das reservas para ela.
— Eu não poderia adivinhar, mas fico feliz que tenha acontecido. Uma amiga encantadora você tem.
null não se impediu de revirar os olhos mais uma vez. null e null eram praticamente idênticos e ela literalmente não poderia aguentar os dois ao mesmo tempo. Dobrou a direita do lago, dando continuidade a seu percurso até Florianturm, a torre mais famosa de Dortmund, com 212 metros de altura que permitia aos visitantes uma vista ampla da cidade.
null lhe guiou pela entrada e permaneceu em silêncio no elevador, o corpo grande lhe imprensando contra a parede, os movimentos limitados pela quantidade de pessoas que também subiam. Ela agradeceu mentalmente por ter se vestido bem aquela noite — trajava um vestido preto longo colado ao corpo de mangas compridas e gola elevada e um casaco escuro com os botões abertos, além do salto baixo bege. null, por sua vez, vestia uma camisa de botão branca e uma calça preta, ambas muito justas a seu corpo, o que permitia notar suas pernas torneadas e seus braços capazes. Apesar de null não estar lhe olhando diretamente ela sentia a atenção de null sobre si, a respiração dele balançando alguns fios do topo da sua cabeça.
A porta dupla se abriu e o elevador foi esvaziando, null colocando uma mão firme em suas costas para guiá-la. null manteve a postura calma, mesmo quando entrou no restaurante e percebeu como o local era intimista e belo. As luzes eram baixas e estavam tão altos no céu que as nuvens pareciam serpentear ao redor, buscando uma abertura para se juntar a eles. null escolheu uma mesa no meio do restaurante, que tinha janelas para que todos pudessem comer apreciando a vista, e era estonteante. A cidade pulsava em sinal de vida lá embaixo, os carros passando como borrões de brilho, o belo Westfalenpark circulando protetoramente a torre, natureza e modernidade se unindo em um suspiro.
— É realmente impressionante. — comentou null, sua polaroid já em mãos registrando a paisagem atípica. null olhou para ele e foi pega no ato, a câmera capturando sua feição surpresa como uma criança encontrada roubando doces.
— Seu plano é ter um álbum só de fotos minhas no fim da viagem? Começarei a cobrar por elas.
null segurou a foto, guardando-a no bolso enquanto começava a analisar o cardápio.
— Estou produzindo um estudo aqui.
null franziu o cenho.
— E qual seria?
— Estou captando as mudanças em sua feição a cada dia que passamos nesta viagem. Você ficaria impressionada com o que já coletei.
null negou com a cabeça, sorrindo de leve. Seu colar de pena balançou contra sua roupa e ao olhar para seu reflexo fraco no vidro, os cabelos amarrados no alto de sua cabeça e a expressão menos pesada, ela percebeu que talvez null estivesse certo.
❄
Dortmund amanheceu com uma chuva torrencial. Era a desculpa perfeita para ficar no aconchego de seu quarto de hotel, então sentou na pequena mesa de canto e escreveu o dia inteiro, parando apenas para receber o serviço de quarto. Fazia um bom tempo que não se sentia daquela forma, tão inspirada, a mente cheia de ideias que circulavam e lhe tiravam o sono. Se contentou em beber chocolate quente enquanto tamborilava os dedos na base do notebook, as gotas de águas esbarrando contra a janela. Levantou-se rapidamente e abriu mais as cortinas, deixando que a luz acinzentada do dia invadisse o quarto. Não tinha trocado de roupa desde que acordou, apenas tomou uma ducha quente, e se sentia leve em seu conjunto de moletom branco. Observava o movimento fraco nas ruas quando ouviu batidas na porta. Atravessou o piso de madeira de maneira incerta — não lembrava de ter pedido algo e tampouco esperava alguém — e colocou as mãos na maçaneta, girando-a devagar. Abriu o suficiente para colocar sua cabeça para fora e lá estava null, segurando o próprio notebook, os olhos atentos por trás dos óculos.
— Boa tarde! Vim até aqui saber se gostaria de assistir uma temporada de Law of The Jungle comigo. Eu prometi que lhe mostraria e como estamos presos no hotel o dia inteiro....
null suspirou, afastando-se para que ele passe. Seu cabelo estava preso em um coque desajeitado e ela considerava que sua aparência não era das melhores para receber um homem bonito em seu quarto.
Afastou rapidamente o pensamento. Pare com isso. É apenas null.
— Vou conectar à TV. Dois minutos.
null sentou-se na cadeira novamente, fechando seu computador e dando um ultimo gole em sua bebida. Observou atentamente null se agachar contra a TV, ajustando fios e preparando tudo. Seu corpo curvado contra a pequena cômoda cobria completamente aquele espaço e impedia a visão. null nunca deixaria de se impressionar com a envergadura de null. Provavelmente existiam algumas cadeiras que ele jamais poderia sentar confortavelmente.
null se levantou, uma expressão satisfeita sambava em seu rosto, e sentou-se próximo a cabeceira da cama, um gesto de mão convidando-a para se juntar a ele.
null inspirou fundo, se contendo. Não sabia dizer o porque se sentia nervosa, alarmada. Tinha compartilhado de tantos momentos a sós com null durante aqueles quatro dias e dividira com ele detalhes de sua vida. null não era mais um completo estranho, mas ainda sim a ideia de partilhar a cama com ele… Lhe enviava choques pela corrente sanguínea.
Foi vacilando a cada mísero passo e repousou o corpo a uma distância tecnicamente segura de null. Ele não pareceu ofendido ou incomodado com o ato e apenas deu play no episódio que surpreendentemente estava legendado, dando início a uma série de explicações sobre o programa. As celebridades — atores, cantores, modelos, comediantes, apresentadores, esportistas e tantos outros — deveriam realizar missões que apresentam diferentes desafios de acordo com a temporada. No episódio que null assistia os participantes deveriam sobreviver sem nenhum tipo de eletricidade — ou seja nada de luz fornecida pela equipe e lanternas. Ela observou, impressionada, a resistência do grupo, que encontrava grande dificuldade para caçar alimento durante a noite sem conseguir enxergar um palmo a frente dentro do mar e muito menos se aventurar no meio da mata sem a visão para alertá-los. Depois de alguns episódios null já se sentia completamente envolvida pelo programa e já tinham emendado duas temporadas, com episódios extremamente longos. null estava mais do que satisfeito em lhe explicar o significado de cada palavra, de lhe apresentar quem eram aquelas pessoas e seu significado na cultura dele.
— Porque ele continua a chamá-la de Noona? — null perguntou, uma nova caneca de chocolate quente fumegante aquecendo seus dedos e estômago. null olhou para ela, parecendo ponderar.
— Em nosso país existe uma cultura de hierarquia… Uma pessoa mais nova que você, mesmo que seja apenas por um ano ou alguns meses de diferença, deve usar honoríficos específicos ao conversar com você ou ao se referir a você. Noona é a maneira de um homem sinalizar que uma mulher é mais velha do que ele.
Compreensão passou por null, que assentiu animada.
— Existem outros?
— Vários. Hyung entre homens, Unnie entre mulheres e bem… Mulheres podem chamar um homem de Oppa.
— Então seria… null oppa? — ela falou hesitante e um brilho de divertimento passou pelos olhos dele.
— Sim, seria. Mas esqueci de dizer algo… Na Coréia as mulheres costumam chamar seus parceiros de oppa…. Então pode haver um duplo sentido. — ele disse e foi o suficiente para fazer null corar.
— Você poderia ter mencionado isso antes!
— Mas eu não menti quando disse que esta é a maneira usual. Além disso, não seria engraçado contar antes.
null bufou, segurando um dos travesseiros da cama com força e arremessando no rosto de null, que foi empurrado levemente para trás. Ao levantar o rosto, no entanto havia tamanha expressão travessa dominando sua feição que null estremeceu. Ele tomou outro travesseiro, o que usava para apoiar suas costas, e desferiu um golpe contra null, que só não caiu porque null a puxou pelo braço lhe prendendo contra seu aperto para em seguida lhe atacar com inúmeras cócegas. null se debateu, seu corpo se contorcendo entre as pernas de null. O rapaz estava tão perto que seu cheiro verde-amadeirado já estava impregnado nas roupas dela, em sua pele.
— Você bate bem forte para alguém tão magrinha. — ele disse sorrindo, suas mãos seguravam os pulsos de null enquanto um de seus joelhos pressionava levemente suas pernas para impedi-la de chutá-lo. null estava completamente esbaforida, exasperada.
— Mas que diabos null! — ela soltou a frase e null gargalhou, erguendo-a com um solavanco de seu braço. null ficou sentada, null ainda pressionando sua perna e a posição fazia com que o nariz dela roçasse leve como uma pluma na curva suave do pescoço de null. Ele soltou seus pulsos, o olhar subitamente encontrando o de null, seus dedos colocando uma das mexas de seu cabelo, que àquela altura havia se soltado por completo, atrás da orelha.
— Seus cabelos… São mais bonitos assim. Soltos e livres... Como você. — falou null, seu calor irradiando por todo o corpo de null, os olhos dele fazendo uma clara pergunta que ela se recusava a responder, positiva ou negativamente. Por fim, fechou as pálpebras, desejando que o fizesse logo, que acabasse com aquela indecisão que parecia durar uma eternidade.
Lábios cheios esbarraram contra o seu. De início, muito levemente, como se realizasse pequenas carícias em sua boca. null soltou um gemido fraco em protesto, sentindo que parecia desesperada demais, pensando que suas personagens provavelmente tomariam a iniciativa e teriam coragem, mas não ela. null não tinha, definitivamente, pressa. Contornou a boca de null com a sua, lentamente beijando cada centímetro, os lábios pequenos de null se perdendo entre os seus, null tomando tanto cuidado e lhe tratando com tanta devoção que null sentiu que fosse quebrar. Sua mão direita se apoiou na nuca de null e só então ele despertou, aprofundando o beijo para algo menos adocicado e mais ritmado. A respiração de null estava descompassada e ousou descer as mãos pelos ombros largos de null, aqueles que ela tanto admirava e ele arfou, partindo o beijo cedo demais. Ele sorriu para ela, completamente selvagem.
— null… Você tem gosto de chocolate!
❄
null se agitava nas cobertas, a tempestade de mais cedo se tornando uma revolta de vento e neve. A madrugada era muito fria e mesmo o aquecedor tinha dificuldades para trabalhar satisfatoriamente. null não conseguira pregar os olhos por mais do que poucos minutos, flashes de seu beijo com null atravessando sua mente sempre que tentava dormir. Após o comentário engraçado null ficou tão envergonhada e nervosa que expulsou null do quarto e trancou a porta, sentando no chão de madeira e encarando o vazio por alguns instantes, tentando processar o que havia feito. Desde o início ela sentia que não deveria tê-lo deixado entrar no quarto, sentar em sua cama, estar tão próximo dela. null era encantador demais, convidativo demais e, pela maneira como agiu, sabia exatamente o que estava fazendo.
Diferente das histórias que escrevia, null tinha pouca experiência sobre relacionamentos, contato físico. Sua lista de antigos ficantes era minúscula e ela nunca namorou. Em Nova York, null bem que tentou lhe colocar em encontros com alguns homens, mas null estava com a cabeça tão atribulada, tão cheia de preocupações com seu proximo dia, com seu futuro. Porém desde que começou essa viagem, que conheceu null, aquele peso sobre suas costas se tornava cada vez mais imperceptível e ela já conseguia se divertir, viver propriamente as experiências que não se permitiu viver durante a adolescência. null, com seus vinte e seis anos, uma gentileza ínfima, o belo rosto e o status de sua profissão deveria ter uma fila de pretendentes à sua espera. null bufou. Sim, com certeza, uma fila enorme de mulheres como Bo-ra, lindas, inteligentes e bem sucedidas.
Não que null se considerasse horrível, mas reconhecia suas limitações. Estava longe de ser bem sucedida, tinha uma bagagem de inseguranças, e não podia deixar de sentir que atrasa as pessoas ao seu redor. E no caso de null, para completar, ainda era uma garota ocidental. Perfeito.
null chutou os lençóis, estresse ultrapassando seus poros. Aquilo não deveria passar de um jogo para null, um divertimento que ele encontrara para animar sua viagem. E ela estava caindo direitinho, pouco a pouco em sua teia bem tecida.
Fechou os olhos com força. Não deveria perder tempo pensando nisso. Não quando faltava tão pouco para reencontrar sua família. Não quando precisava lhes enviar uma mensagem comunicando sua chegada. Quando deveria encontrar as palavras certas para expressar tudo que se passava em seu coração.
❄
Apesar da forte nevasca que caia sobre as terras e tornava a visão através das janelas do trem quase zero, null realmente considerou deixar o hotel de óculos escuros. Seus olhos comprimidos e com bolsas escuras que assustaram até mesmo as comissárias, que tentaram disfarçar o semblante surpreso ao colocar um copo de café americano na frente de null, se afastando silenciosamente em seguida. null segurou o copo, erguendo a cabeça para longe de seu caderno de anotações pela primeira vez desde que sentou no estofado de frente para null. Ela até mesmo usou seus fones de ouvido em uma tentativa de bloqueá-lo completamente, de impedi-lo de tocar no assunto do beijo da tarde passada, mas nas poucas vezes que null o espiou ele estava lendo seu livro de Charles Dickens, a expressão imperturbável, nem mesmo uma mancha abaixo do olhos ou qualquer sinal que indicasse que dormiu mal.
Idiota. Idiota. Idiota. Idiota.
A carga negativa que emanava de null era tamanha que ela podia jurar que o trem tremia… E ele realmente estava tremendo. Muito.
null olhou para frente. A comissária acompanhada do guia, o Sr. Ruschel, estavam parados no centro do corredor principal, o rosto dos passageiros denunciando preocupação. null tirou os fones de ouvido.
—… Era completamente impossível de prever que isso pudesse acontecer, mas é a situação atual. Precisaremos fazer uma parada emergencial em Utrecht. Toda a ferrovia principal está atolada de neve até quase o topo. Aparentemente a neve ficou mais densa durante a madrugada, a temperatura despencou. Nós realmente sentimos muito, mas forneceremos ônibus em Utrecht para que possam completar o caminho até Amsterdam.
— Isto é um absurdo! Estamos na véspera do Natal. Nossas famílias estão nos esperando! — grunhiu uma mulher, que vestia tanta pele animal que quase parecia um urso a brandir. O Sr. Ruschel pigarreou.
— Eu entendo completamente senhorita, mas não há nada que possa ser feito. Nossa trem não está equipado para camadas tão grossas de neve e os compartimentos já estão vacilando sobre a linha. Não podemos arriscar um acidente. Levaremos todos à salvo para Utrecht e então poderão ir para Amsterdam. Este é o recado que tínhamos para dar. — O Sr. Ruschel acenou com a cabeça — Mais uma vez, sentimos muitíssimo pelo contratempo.
null destravou seu celular, apressada. Deveria enviar a mensagem para seus pais agora, junto com uma mensagem comunicando que chegaria atrasada. Mas notou que algo estava errado. A torre de sinal do telefone não estava lá.
Sem sinal. Sem comunicação. null praguejou. O dia só ficava melhor.
null lhe olhou finalmente, as íris escuras como ônix quando retirou seus óculos.
— null… Você disse que seus pais moram no interior. Como vai fazer pra chegar a tempo?
Tinha algo no seu tom de voz. Preocupação. null não o encarou de volta.. Em vez disso prestou atenção na janela embaçada, nos borrões brancos que se tornaram os vales.
— Acho que aconteceu algum problema com as torres de sinal. Não consigo enviar mensagens… Ou ligar.
— Isso é realmente problemático, mas eu já passei por situação semelhante. Daremos um jeito.
— Daremos? — sibilou null, o frio em sua voz atingindo null em cheio. Mágoa atravessou o rosto de null, mas rapidamente foi contornado.
— O beijo foi realmente tão ruim assim? — ele perguntou, contido. — porque não consigo encontrar outra explicação para me tratar tão mal.
null gargalhou alto, tão forçado que recebeu alguns olhares tortos de passageiros furiosos. Ela ignorou cada um deles.
— Então agora lembra que houve um beijo. Você nem se esforçou para tentar falar comigo.
— Você me expulsou do quarto, null. Achei que deveria lhe dar um tempo sozinha antes de conversarmos sobre isso.
— Achei que não levasse a sério coisas do tipo. Não quando existem milhares de mulheres na Coréia esperando por você.
null inspirou profundamente, mas ao tocar os dedos de null não parecia haver raiva nele. Sua mão era tão grande e quente e o casaco curto verde musgo que usava deixava amostra aquela tatuagem de ecocardiograma, que, percebeu null, ficava exatamente sobre o ponto onde poderia sentir sua pulsação.
— Sim, existem muitas mulheres na Coréia do Sul e eu já me envolvi com várias durante a minha vida, apesar de nunca durar muito por conta da minha profissão que exige tanto de mim — ele contou e pressionou ainda mais a mão de null, impedindo que ela fugisse. — mas isso não significa que brinco com os sentimentos das pessoas. Eu me tornei verdadeiramente interessado em você, null. Na sua jornada, na sua coragem. Me peguei desejando vê-la realizada, sorrindo como às vezes o faz para mim tão inconscientemente. — seu polegar traçava círculos preguiçosos no dorso da mão de null, enviando arrepios por todo seu corpo. — eu te disse que decidi fazer essa viagem porque procurava por respostas. Eu acho que as encontrei em você. E gostaria, se me der a honra, de compartilhar mais momentos com você e de lhe seguir de perto em sua jornada, ajudando da maneira que puder. Quero que veja o mundo, null, e que escreva sobre ele. — o olhar dele desceu lentamente para o pingente do colar que ele dera de presente para ela, e sorriu — este presente não foi em vão. É um eterno incentivo. Escreva sobre o mundo e me deixe conhecer mais o seu, na medida do possível.
null gaguejou, sangue correndo por suas bochechas e lhe enchendo de rubor. Apesar de estar cansada, física e psicologicamente, e de não saber exatamente como seria o fim daquela viagem, ela tinha certeza de uma coisa:
— Certo. Vamos ver o quanto você consegue me aguentar, null oppa.
❄
— Finalmente encontrei uma oponente à altura. Bo-ra já teria desistido e me xingado. — comentou null, que estava particularmente brilhante aquela noite, com seu casaco turquesa de gola alta, calça jeans escura e brincos muito discretos nas orelhas que null até então não notara, eram furadas.
— Bo-ra? — null perguntou, o nome mais uma vez soando estranho em sua boca. Um flash de brilho passou pelos olhos de null.
— Kang Bo-ra. É médica pediatra, mas tem uma das bocas mais sujas que conheço. E acontece de ser minha melhor amiga também.
Havia afeto em suas palavras, não velado e intuitivo. Algo em null se apertou e ela sorriu forçado.
— Você costuma jogar sempre com ela?
null negou rapidamente.
— Ela odeia xadrez. Às vezes joga comigo nos intervalos de plantão apenas para me irritar. É uma especialidade dela.
— Minha amiga null… Ela também ama me irritar. Costuma me importunar para ir a festas, mesmo sabendo que eu odeio e me enche de maquiagem.
null olhou para null, suas íris castanho escuro atentas.
— Só recentemente notei que mal usa maquiagem. No meu país todos possuem cosméticos demais. Dificilmente saem de casa sem algo.
— Até os homens?
— Principalmente os homens. Ou você achava que esse rostinho bonito aqui se mantém assim a própria sorte?
Uma gargalhada escapou dos lábios dela. null estava com um sorriso satisfeito no rosto, suas mãos repousavam no queixo agora. Dele emanava um forte cheiro amadeirado e fresco, que acertava as narinas e tomava os sentidos. Ele movimentou uma das peças, os dedos longos e pálidos muito delicados em cada passo.
— Minha mãe costumava me perturbar sobre minha aparência, mas eu nunca me importei o suficiente e então Kollen nasceu e ela passou a realizar todas as vontades na bonequinha dela.
— Você tem uma irmãzinha?
— Sim. — null disse com um gosto amargo na boca. Ela e Kollen eram próximas desde quando Kollen ainda era um pequeno feto na barriga de sua mãe. null sempre sonhou com uma irmã, alguém que pudesse lhe desviar das chatices de seus irmãos. E Kollen nasceu, uma pequena bolinha rosada com os cabelos castanhos aloirados que tanto chamava a atenção de desconhecidos. null sempre fora responsável por cuidar dela e pensar que já não lhe via há dois anos. Seu peito doía. — tenho irmãos gêmeos mais velhos e uma irmã mais nova.
— E você era próxima de Kollen…
— Demais. Aaij e Reinder… São boas pessoas, mas se sentem responsáveis demais por mim mesmo depois que cresci, então era difícil.
null assentiu, tirando seu celular do bolso. Depois de passar o dedo algumas vezes na tela, ele o mostrou para ela. Era uma foto de sua família, seu pai com uma mão pesada em seu ombro esquerdo, enquanto sua mãe tocava levemente o ombro direito de outro rapaz, semelhante a null, mas sem os traços tão definidos e elegantes.
— Tiramos no último ano novo. Todos são muito ocupados e meu irmão está casado agora então é ainda mais difícil de encontrarmos tempo para nos reunirmos.
null balançou a cabeça em compreensão. Ele passou o dedo na tela mais uma vez e surgiu a imagem de null abraçando uma mulher muito bonita, seus cabelos loiros longos presos em um coque, a boca levemente avermelhada, ambos de jaleco e fazendo careta.
— E esta é Bo-ra. Tirei essa foto um pouco antes de viajar, era o aniversário dela. Ela nunca faz pose para fotos.
Era uma foto muito descontraída, tirada de tal maneira que nem parecia que estavam no ambiente de trabalho. null deveria ser muito popular, null pensou. Tão fácil de conversar, de estar por perto. Não poderia ser diferente. null então parou de prestar atenção no tabuleiro e decidiu perguntar:
— Você poderia estar passando as festividades com amigos e familiares… Porque viajar justo nessa época?
null recolheu a mão que segurava o celular e o guardou novamente. A luz dos piscas fazia mágica com o nanquim de seus cabelos e a brisa quente dos aquecedores deixam sua pele avermelhada ao redor das maçãs do rosto.
— Eu precisava de um tempo para descansar, desacelerar e refletir. Para encontrar respostas que há tanto procuro. — ele avançou uma peça. Era um xeque-mate. Ele havia ganho. Mas seu olhar era intenso na direção de null, como se pudesse atravessar sua carne e enxergar sua alma quebrada e insegura. — E sinto que escolhi o lugar certo para isso. Estou exatamente onde deveria estar.
Faltando menos de três dias para o natal, o Westfalenpark estava completamente preparado para o período. O parque era imenso, uma extensão de verde impressionante que agora estava parcialmente coberta de neve. O lago quase congelado espelhava as luzes do Winterleuchten, que cobria as árvores de cores, formando um perfeito arco-íris no horizonte. Naquele caminho específico as árvores eram vermelhas, brancas, roxas, azuis. null afrouxou o aperto do cachecol e tirou uma foto com o seu celular — uma selfie completamente ridícula — e enviou para null. Poucos segundos depois seu celular vibrou freneticamente, sua amiga ligando por chamada de vídeo.
Apesar de estar relutante, atendeu na terceira chamada.
null surgiu em sua tela, seu rosto muito próximo da câmera. Estava sentada no que parecia ser o sofá de sua casa e vestia roupas casuais, os cabelos revoltosos em volta de seu rosto.
— Oi null. Você sabe que podia apenas ter respondido a mensagem não é?
— Mas eu queria ver! Vamos, me mostre mais.
null rolou os olhos, mas andou um pouco, apontando o celular para cada pequena flor, para as depressões nos montes verde musgo. Ela conseguia ouvir null dar gritinhos de alegria. Era muito engraçado como as duas tendiam a ser tão diferentes uma da outra. Não só na aparência como também na personalidade, null sendo um poço de entusiasmo e curiosidade enquanto null apenas lidava com uma coisa de cada vez.
— null? Eu consegui as entradas para o restaurante no topo do Florian. Apesar de que o guia reclamou um pouco por só termos decidido em cima da hora… — null surgiu em sua visão, segurando dois pedaços pequenos de papel. null tomou um susto, o celular vacilando em sua mão. null havia saído para tentar conseguir as reservas já tinha quase meia hora e ela ficou perambulando sozinha desde então, mais entediada do que gostaria de admitir.
— Como assim, null? — ela escutou a voz de null, confusão e alarme claramente expostos. null praguejou baixo. Ótimo. Agora ela iria lhe encher de perguntas.
Deu dois cliques na tela, voltando para a câmera frontal, e seu rosto surgiu, acompanhado da expressão surpresa de null.
— null, esta é null. null, este é null, meu companheiro de viagem no trem. — null disse simplesmente. null finalmente sorriu ao entender o que se passava e então acenou animado para null, que retribuiu com a mesma intensidade.
— Oh, se eu soubesse que eles dariam companheiros tão bonitos de viagem eu teria ido no seu lugar. Meu Deus!
O rosto de null enrubesceu. Aquilo não poderia ficar mais constrangedor.
— Gostei dela. — null comentou, seu sorriso se tornando ainda mais largo. null fez um símbolo estranho com os dedos — algo parecido com o movimento de estralar — e null respondeu fazendo o mesmo.
— Você é coreano, não é? Quantos anos você tem? Você é modelo? Idol? Tem namorada? — null disparou perguntas desordenadas para null, algumas das quais o cérebro de null nem chegou a processar. Ela resolveu que estava na hora de se despedir.
— null, estamos realmente atrasados para nosso compromisso…
— Não estamos tanto assim…
— Então vou ter que desligar! — null cortou null — Depois te mando uma mensagem, prometo.
null resmungou e antes que null pudesse encerrar a chamada ela gritou:
— Pede meu instagram para a null!
null clicou no ponto vermelho na tela e sua amiga sumiu de vista. Ela respirou fundo, ainda tentando absorver a vergonha que sentia.
— Você precisava aparecer justamente quando null ligou?
null deu de ombros, entregando uma das reservas para ela.
— Eu não poderia adivinhar, mas fico feliz que tenha acontecido. Uma amiga encantadora você tem.
null não se impediu de revirar os olhos mais uma vez. null e null eram praticamente idênticos e ela literalmente não poderia aguentar os dois ao mesmo tempo. Dobrou a direita do lago, dando continuidade a seu percurso até Florianturm, a torre mais famosa de Dortmund, com 212 metros de altura que permitia aos visitantes uma vista ampla da cidade.
null lhe guiou pela entrada e permaneceu em silêncio no elevador, o corpo grande lhe imprensando contra a parede, os movimentos limitados pela quantidade de pessoas que também subiam. Ela agradeceu mentalmente por ter se vestido bem aquela noite — trajava um vestido preto longo colado ao corpo de mangas compridas e gola elevada e um casaco escuro com os botões abertos, além do salto baixo bege. null, por sua vez, vestia uma camisa de botão branca e uma calça preta, ambas muito justas a seu corpo, o que permitia notar suas pernas torneadas e seus braços capazes. Apesar de null não estar lhe olhando diretamente ela sentia a atenção de null sobre si, a respiração dele balançando alguns fios do topo da sua cabeça.
A porta dupla se abriu e o elevador foi esvaziando, null colocando uma mão firme em suas costas para guiá-la. null manteve a postura calma, mesmo quando entrou no restaurante e percebeu como o local era intimista e belo. As luzes eram baixas e estavam tão altos no céu que as nuvens pareciam serpentear ao redor, buscando uma abertura para se juntar a eles. null escolheu uma mesa no meio do restaurante, que tinha janelas para que todos pudessem comer apreciando a vista, e era estonteante. A cidade pulsava em sinal de vida lá embaixo, os carros passando como borrões de brilho, o belo Westfalenpark circulando protetoramente a torre, natureza e modernidade se unindo em um suspiro.
— É realmente impressionante. — comentou null, sua polaroid já em mãos registrando a paisagem atípica. null olhou para ele e foi pega no ato, a câmera capturando sua feição surpresa como uma criança encontrada roubando doces.
— Seu plano é ter um álbum só de fotos minhas no fim da viagem? Começarei a cobrar por elas.
null segurou a foto, guardando-a no bolso enquanto começava a analisar o cardápio.
— Estou produzindo um estudo aqui.
null franziu o cenho.
— E qual seria?
— Estou captando as mudanças em sua feição a cada dia que passamos nesta viagem. Você ficaria impressionada com o que já coletei.
null negou com a cabeça, sorrindo de leve. Seu colar de pena balançou contra sua roupa e ao olhar para seu reflexo fraco no vidro, os cabelos amarrados no alto de sua cabeça e a expressão menos pesada, ela percebeu que talvez null estivesse certo.
Dortmund amanheceu com uma chuva torrencial. Era a desculpa perfeita para ficar no aconchego de seu quarto de hotel, então sentou na pequena mesa de canto e escreveu o dia inteiro, parando apenas para receber o serviço de quarto. Fazia um bom tempo que não se sentia daquela forma, tão inspirada, a mente cheia de ideias que circulavam e lhe tiravam o sono. Se contentou em beber chocolate quente enquanto tamborilava os dedos na base do notebook, as gotas de águas esbarrando contra a janela. Levantou-se rapidamente e abriu mais as cortinas, deixando que a luz acinzentada do dia invadisse o quarto. Não tinha trocado de roupa desde que acordou, apenas tomou uma ducha quente, e se sentia leve em seu conjunto de moletom branco. Observava o movimento fraco nas ruas quando ouviu batidas na porta. Atravessou o piso de madeira de maneira incerta — não lembrava de ter pedido algo e tampouco esperava alguém — e colocou as mãos na maçaneta, girando-a devagar. Abriu o suficiente para colocar sua cabeça para fora e lá estava null, segurando o próprio notebook, os olhos atentos por trás dos óculos.
— Boa tarde! Vim até aqui saber se gostaria de assistir uma temporada de Law of The Jungle comigo. Eu prometi que lhe mostraria e como estamos presos no hotel o dia inteiro....
null suspirou, afastando-se para que ele passe. Seu cabelo estava preso em um coque desajeitado e ela considerava que sua aparência não era das melhores para receber um homem bonito em seu quarto.
Afastou rapidamente o pensamento. Pare com isso. É apenas null.
— Vou conectar à TV. Dois minutos.
null sentou-se na cadeira novamente, fechando seu computador e dando um ultimo gole em sua bebida. Observou atentamente null se agachar contra a TV, ajustando fios e preparando tudo. Seu corpo curvado contra a pequena cômoda cobria completamente aquele espaço e impedia a visão. null nunca deixaria de se impressionar com a envergadura de null. Provavelmente existiam algumas cadeiras que ele jamais poderia sentar confortavelmente.
null se levantou, uma expressão satisfeita sambava em seu rosto, e sentou-se próximo a cabeceira da cama, um gesto de mão convidando-a para se juntar a ele.
null inspirou fundo, se contendo. Não sabia dizer o porque se sentia nervosa, alarmada. Tinha compartilhado de tantos momentos a sós com null durante aqueles quatro dias e dividira com ele detalhes de sua vida. null não era mais um completo estranho, mas ainda sim a ideia de partilhar a cama com ele… Lhe enviava choques pela corrente sanguínea.
Foi vacilando a cada mísero passo e repousou o corpo a uma distância tecnicamente segura de null. Ele não pareceu ofendido ou incomodado com o ato e apenas deu play no episódio que surpreendentemente estava legendado, dando início a uma série de explicações sobre o programa. As celebridades — atores, cantores, modelos, comediantes, apresentadores, esportistas e tantos outros — deveriam realizar missões que apresentam diferentes desafios de acordo com a temporada. No episódio que null assistia os participantes deveriam sobreviver sem nenhum tipo de eletricidade — ou seja nada de luz fornecida pela equipe e lanternas. Ela observou, impressionada, a resistência do grupo, que encontrava grande dificuldade para caçar alimento durante a noite sem conseguir enxergar um palmo a frente dentro do mar e muito menos se aventurar no meio da mata sem a visão para alertá-los. Depois de alguns episódios null já se sentia completamente envolvida pelo programa e já tinham emendado duas temporadas, com episódios extremamente longos. null estava mais do que satisfeito em lhe explicar o significado de cada palavra, de lhe apresentar quem eram aquelas pessoas e seu significado na cultura dele.
— Porque ele continua a chamá-la de Noona? — null perguntou, uma nova caneca de chocolate quente fumegante aquecendo seus dedos e estômago. null olhou para ela, parecendo ponderar.
— Em nosso país existe uma cultura de hierarquia… Uma pessoa mais nova que você, mesmo que seja apenas por um ano ou alguns meses de diferença, deve usar honoríficos específicos ao conversar com você ou ao se referir a você. Noona é a maneira de um homem sinalizar que uma mulher é mais velha do que ele.
Compreensão passou por null, que assentiu animada.
— Existem outros?
— Vários. Hyung entre homens, Unnie entre mulheres e bem… Mulheres podem chamar um homem de Oppa.
— Então seria… null oppa? — ela falou hesitante e um brilho de divertimento passou pelos olhos dele.
— Sim, seria. Mas esqueci de dizer algo… Na Coréia as mulheres costumam chamar seus parceiros de oppa…. Então pode haver um duplo sentido. — ele disse e foi o suficiente para fazer null corar.
— Você poderia ter mencionado isso antes!
— Mas eu não menti quando disse que esta é a maneira usual. Além disso, não seria engraçado contar antes.
null bufou, segurando um dos travesseiros da cama com força e arremessando no rosto de null, que foi empurrado levemente para trás. Ao levantar o rosto, no entanto havia tamanha expressão travessa dominando sua feição que null estremeceu. Ele tomou outro travesseiro, o que usava para apoiar suas costas, e desferiu um golpe contra null, que só não caiu porque null a puxou pelo braço lhe prendendo contra seu aperto para em seguida lhe atacar com inúmeras cócegas. null se debateu, seu corpo se contorcendo entre as pernas de null. O rapaz estava tão perto que seu cheiro verde-amadeirado já estava impregnado nas roupas dela, em sua pele.
— Você bate bem forte para alguém tão magrinha. — ele disse sorrindo, suas mãos seguravam os pulsos de null enquanto um de seus joelhos pressionava levemente suas pernas para impedi-la de chutá-lo. null estava completamente esbaforida, exasperada.
— Mas que diabos null! — ela soltou a frase e null gargalhou, erguendo-a com um solavanco de seu braço. null ficou sentada, null ainda pressionando sua perna e a posição fazia com que o nariz dela roçasse leve como uma pluma na curva suave do pescoço de null. Ele soltou seus pulsos, o olhar subitamente encontrando o de null, seus dedos colocando uma das mexas de seu cabelo, que àquela altura havia se soltado por completo, atrás da orelha.
— Seus cabelos… São mais bonitos assim. Soltos e livres... Como você. — falou null, seu calor irradiando por todo o corpo de null, os olhos dele fazendo uma clara pergunta que ela se recusava a responder, positiva ou negativamente. Por fim, fechou as pálpebras, desejando que o fizesse logo, que acabasse com aquela indecisão que parecia durar uma eternidade.
Lábios cheios esbarraram contra o seu. De início, muito levemente, como se realizasse pequenas carícias em sua boca. null soltou um gemido fraco em protesto, sentindo que parecia desesperada demais, pensando que suas personagens provavelmente tomariam a iniciativa e teriam coragem, mas não ela. null não tinha, definitivamente, pressa. Contornou a boca de null com a sua, lentamente beijando cada centímetro, os lábios pequenos de null se perdendo entre os seus, null tomando tanto cuidado e lhe tratando com tanta devoção que null sentiu que fosse quebrar. Sua mão direita se apoiou na nuca de null e só então ele despertou, aprofundando o beijo para algo menos adocicado e mais ritmado. A respiração de null estava descompassada e ousou descer as mãos pelos ombros largos de null, aqueles que ela tanto admirava e ele arfou, partindo o beijo cedo demais. Ele sorriu para ela, completamente selvagem.
— null… Você tem gosto de chocolate!
null se agitava nas cobertas, a tempestade de mais cedo se tornando uma revolta de vento e neve. A madrugada era muito fria e mesmo o aquecedor tinha dificuldades para trabalhar satisfatoriamente. null não conseguira pregar os olhos por mais do que poucos minutos, flashes de seu beijo com null atravessando sua mente sempre que tentava dormir. Após o comentário engraçado null ficou tão envergonhada e nervosa que expulsou null do quarto e trancou a porta, sentando no chão de madeira e encarando o vazio por alguns instantes, tentando processar o que havia feito. Desde o início ela sentia que não deveria tê-lo deixado entrar no quarto, sentar em sua cama, estar tão próximo dela. null era encantador demais, convidativo demais e, pela maneira como agiu, sabia exatamente o que estava fazendo.
Diferente das histórias que escrevia, null tinha pouca experiência sobre relacionamentos, contato físico. Sua lista de antigos ficantes era minúscula e ela nunca namorou. Em Nova York, null bem que tentou lhe colocar em encontros com alguns homens, mas null estava com a cabeça tão atribulada, tão cheia de preocupações com seu proximo dia, com seu futuro. Porém desde que começou essa viagem, que conheceu null, aquele peso sobre suas costas se tornava cada vez mais imperceptível e ela já conseguia se divertir, viver propriamente as experiências que não se permitiu viver durante a adolescência. null, com seus vinte e seis anos, uma gentileza ínfima, o belo rosto e o status de sua profissão deveria ter uma fila de pretendentes à sua espera. null bufou. Sim, com certeza, uma fila enorme de mulheres como Bo-ra, lindas, inteligentes e bem sucedidas.
Não que null se considerasse horrível, mas reconhecia suas limitações. Estava longe de ser bem sucedida, tinha uma bagagem de inseguranças, e não podia deixar de sentir que atrasa as pessoas ao seu redor. E no caso de null, para completar, ainda era uma garota ocidental. Perfeito.
null chutou os lençóis, estresse ultrapassando seus poros. Aquilo não deveria passar de um jogo para null, um divertimento que ele encontrara para animar sua viagem. E ela estava caindo direitinho, pouco a pouco em sua teia bem tecida.
Fechou os olhos com força. Não deveria perder tempo pensando nisso. Não quando faltava tão pouco para reencontrar sua família. Não quando precisava lhes enviar uma mensagem comunicando sua chegada. Quando deveria encontrar as palavras certas para expressar tudo que se passava em seu coração.
Apesar da forte nevasca que caia sobre as terras e tornava a visão através das janelas do trem quase zero, null realmente considerou deixar o hotel de óculos escuros. Seus olhos comprimidos e com bolsas escuras que assustaram até mesmo as comissárias, que tentaram disfarçar o semblante surpreso ao colocar um copo de café americano na frente de null, se afastando silenciosamente em seguida. null segurou o copo, erguendo a cabeça para longe de seu caderno de anotações pela primeira vez desde que sentou no estofado de frente para null. Ela até mesmo usou seus fones de ouvido em uma tentativa de bloqueá-lo completamente, de impedi-lo de tocar no assunto do beijo da tarde passada, mas nas poucas vezes que null o espiou ele estava lendo seu livro de Charles Dickens, a expressão imperturbável, nem mesmo uma mancha abaixo do olhos ou qualquer sinal que indicasse que dormiu mal.
Idiota. Idiota. Idiota. Idiota.
A carga negativa que emanava de null era tamanha que ela podia jurar que o trem tremia… E ele realmente estava tremendo. Muito.
null olhou para frente. A comissária acompanhada do guia, o Sr. Ruschel, estavam parados no centro do corredor principal, o rosto dos passageiros denunciando preocupação. null tirou os fones de ouvido.
—… Era completamente impossível de prever que isso pudesse acontecer, mas é a situação atual. Precisaremos fazer uma parada emergencial em Utrecht. Toda a ferrovia principal está atolada de neve até quase o topo. Aparentemente a neve ficou mais densa durante a madrugada, a temperatura despencou. Nós realmente sentimos muito, mas forneceremos ônibus em Utrecht para que possam completar o caminho até Amsterdam.
— Isto é um absurdo! Estamos na véspera do Natal. Nossas famílias estão nos esperando! — grunhiu uma mulher, que vestia tanta pele animal que quase parecia um urso a brandir. O Sr. Ruschel pigarreou.
— Eu entendo completamente senhorita, mas não há nada que possa ser feito. Nossa trem não está equipado para camadas tão grossas de neve e os compartimentos já estão vacilando sobre a linha. Não podemos arriscar um acidente. Levaremos todos à salvo para Utrecht e então poderão ir para Amsterdam. Este é o recado que tínhamos para dar. — O Sr. Ruschel acenou com a cabeça — Mais uma vez, sentimos muitíssimo pelo contratempo.
null destravou seu celular, apressada. Deveria enviar a mensagem para seus pais agora, junto com uma mensagem comunicando que chegaria atrasada. Mas notou que algo estava errado. A torre de sinal do telefone não estava lá.
Sem sinal. Sem comunicação. null praguejou. O dia só ficava melhor.
null lhe olhou finalmente, as íris escuras como ônix quando retirou seus óculos.
— null… Você disse que seus pais moram no interior. Como vai fazer pra chegar a tempo?
Tinha algo no seu tom de voz. Preocupação. null não o encarou de volta.. Em vez disso prestou atenção na janela embaçada, nos borrões brancos que se tornaram os vales.
— Acho que aconteceu algum problema com as torres de sinal. Não consigo enviar mensagens… Ou ligar.
— Isso é realmente problemático, mas eu já passei por situação semelhante. Daremos um jeito.
— Daremos? — sibilou null, o frio em sua voz atingindo null em cheio. Mágoa atravessou o rosto de null, mas rapidamente foi contornado.
— O beijo foi realmente tão ruim assim? — ele perguntou, contido. — porque não consigo encontrar outra explicação para me tratar tão mal.
null gargalhou alto, tão forçado que recebeu alguns olhares tortos de passageiros furiosos. Ela ignorou cada um deles.
— Então agora lembra que houve um beijo. Você nem se esforçou para tentar falar comigo.
— Você me expulsou do quarto, null. Achei que deveria lhe dar um tempo sozinha antes de conversarmos sobre isso.
— Achei que não levasse a sério coisas do tipo. Não quando existem milhares de mulheres na Coréia esperando por você.
null inspirou profundamente, mas ao tocar os dedos de null não parecia haver raiva nele. Sua mão era tão grande e quente e o casaco curto verde musgo que usava deixava amostra aquela tatuagem de ecocardiograma, que, percebeu null, ficava exatamente sobre o ponto onde poderia sentir sua pulsação.
— Sim, existem muitas mulheres na Coréia do Sul e eu já me envolvi com várias durante a minha vida, apesar de nunca durar muito por conta da minha profissão que exige tanto de mim — ele contou e pressionou ainda mais a mão de null, impedindo que ela fugisse. — mas isso não significa que brinco com os sentimentos das pessoas. Eu me tornei verdadeiramente interessado em você, null. Na sua jornada, na sua coragem. Me peguei desejando vê-la realizada, sorrindo como às vezes o faz para mim tão inconscientemente. — seu polegar traçava círculos preguiçosos no dorso da mão de null, enviando arrepios por todo seu corpo. — eu te disse que decidi fazer essa viagem porque procurava por respostas. Eu acho que as encontrei em você. E gostaria, se me der a honra, de compartilhar mais momentos com você e de lhe seguir de perto em sua jornada, ajudando da maneira que puder. Quero que veja o mundo, null, e que escreva sobre ele. — o olhar dele desceu lentamente para o pingente do colar que ele dera de presente para ela, e sorriu — este presente não foi em vão. É um eterno incentivo. Escreva sobre o mundo e me deixe conhecer mais o seu, na medida do possível.
null gaguejou, sangue correndo por suas bochechas e lhe enchendo de rubor. Apesar de estar cansada, física e psicologicamente, e de não saber exatamente como seria o fim daquela viagem, ela tinha certeza de uma coisa:
— Certo. Vamos ver o quanto você consegue me aguentar, null oppa.
Capítulo 3
Apesar do que foi prometido, o trem encerrou o seu trajeto ao chegar à vila de Duivendrecht, local esse que fazia parte da província do norte da Holanda.
Seis quilômetros separavam os passageiros do centro de Amsterdam, mas o caos da nevasca causou um terrível engarrafamento, o que, consequentemente, prendeu todos na metade do caminho por quase meia hora. Diferente do trem, que era aquecido e confortável, o ônibus estava congelante, apesar de null estar bem agasalhada com suas muitas camadas de couro e um gorro cobrindo sua cabeça. null colocou um braço ao redor de seu pescoço, tentando lhe passar sua própria temperatura enquanto digitava freneticamente em seu celular.
— Consegui um carro com rodas resistentes para alugar, mas teremos ele apenas quando chegarmos em Durgerdam. Podemos ir de moto, se preferir… É uma forma de evitar todo o trânsito e são menos de trinta minutos até lá.
null assentiu.
— Mas e nossas malas?
— A companhia prometeu enviar os pertences dos passageiros para seu destino final, assim não temos mais atrasos. Tenho roupas o suficiente na minha mochila de qualquer forma.
— null… Qual era o seu destino final?
Ele ponderou, sua mão que até então segurava o celular, brincando com os dedos enluvados de null.
— Eu sou um péssimo planejador de viagens, então chegaria a Amsterdam e daria o meu melhor perambulando por lá e tiraria fotos, talvez dormisse em um chalé confortável. — Ele tocou seu gorro, ajustando-o melhor para cobrir sua testa. — Mas agora eu tenho uma missão. Devo levá-la até sua família.
null estremeceu e null lhe apertou levemente, para lembrá-la de que estava ali. Talvez se não tivesse conhecido null, se não houvesse se afeiçoado por ele e lhe aceitado, ela provavelmente teria corrido para o aeroporto mais próximo e voltado o mais rápido possível para Nova York. null percebeu que apesar de null repetir diversas vezes o quão corajosa ela era, não se sentia dessa maneira. Sentia pavor apenas de pensar em ter que se desculpar para seus pais, de precisar explicar para eles o desejo ardente em seu peito que a fez deixar seu lar para trás sem ao menos uma explicação.
Em meio ao engarrafamento, alguns passageiros pediram permissão para deixar o ônibus antes do local combinado e o Sr. Ruschel fez o seu melhor para administrar a crise, anotando seus nomes para não causar problemas ao sistema, com o rosto contorcido de nervoso. null levantou-se, segurando firme as mãos de null e a carregou até as comissárias, que também deram baixa em seus registros e permitiram a saída prematura do veículo. Havia realmente muita neve. Alguns carros estavam completamente esbranquiçados e trabalhadores, provavelmente governamentais, usavam máquinas para limpar as rodovias e deixar o acesso livre, pois somente isso permitia que o trânsito fluísse.
Caminharam com dificuldade, os pés afundando na neve, o frio cortante atingindo seus rostos. null colocou uma máscara preta no meio do caminho, que escondia do seu nariz para baixo e seu grande casaco servia como uma capa que o envolvia por completo, mas também protegia null. Um lampejo de memória cruzou a mente da garota: Ela olhando preguiçosamente para null de sua posição curvada sobre o caderno de anotações, de como havia lhe achado gigantesco. Mas null não era realmente tão alto. Tinha, no máximo, 1,80. Sua figura, entretanto era tão magnífica que parecia tomar o ar ao redor. Um imperador, ela tinha escrito em seu bloco. E naquele instante ele abria caminho em meio as pessoas, suas mãos firmes contra a dela, até onde uma loja cheia de motos lhes esperava.
❄
O dono da loja tinha sido muito generoso com eles. Forneceu capacetes especiais para protegê-los dos flocos gelados e da ventania, além de casacos extras e dois de seus filhos para acompanhá-los em outra moto para trazê-las de volta quando chegassem a Durgerdam.
null estava com pressa, mas se permitiu demorar um pouco, curvando-se em agradecimento vezes o suficiente para deixar o homem embaraçado. Em seguida, ajudou null a subir em segurança e se posicionou na frente, já dando partida. null agarrou-se firmemente a cintura de null, fechando os olhos com força. Ela nunca gostou muito de motos. Tirou a habilitação quando ainda estava em sua cidade, e vez ou outra dirigia o carro de null para levá-la ao trabalho, mas tinha forte aversão a motos, em parte porque seu irmão, Reinder, era um grande amante delas e já havia sofrido um acidente quando null tinha seus quatorze anos. Ela nunca se esqueceu do pânico que lhe preencheu quando a notícia chegou e seus pais enlouqueceram, todos amontoados em uma das vans da família para vê-lo no hospital mais próximo. Apesar disso, null parecia sentir a pressão amedrontada de null, e dirigia com cuidado, mesmo precisando acelerar para não perder tempo.
Eles seguiram os filhos do dono da loja, Noah e Luuk, por todo o percurso. Os dois afirmaram conhecer o caminho muito bem, afinal o fazia quase todos os dias com turistas que ansiavam conhecer não apenas Amsterdam, mas também seus arredores que prometiam tantas boas surpresas quanto a cidade em si.
O céu noturno estava quase limpo de estrelas e as árvores sem folhas tinham os galhos tortos pelo o peso do acúmulo da neve. O capacete trabalhava bem para conter a nevasca e o rosto de null se sentia quente pela primeira vez em dias. null fez uma curva, e null podia jurar que, mesmo com todas as camadas que lhe cobriam, ela ainda assim podia sentir o seu cheiro, rodeando-a e acalentando seu coração. Estava definitivamente nervosa, não sabia o que fazer, como agir, mas se agarrou ao fio de paz que null lhe proporciona e se segurou na visão que ele tinha dela.
Quando finalmente atravessaram o Buiten-IJ, e as estradas levaram a ruas flanqueadas pelo corpo de água, ela sabia que havia chegado. Durgerdam era uma vila muito semelhante a uma comunidade ribeirinha. No verão, seus campos verdes e as casa brancas eram muito convidativas para quem buscava um retiro pacífico. null parou a moto no ponto de encontro que ele tinha marcado com o alugador de carros e agradeceu mais uma vez para os irmãos, que desceram ambos de sua própria moto para cumprimentá-los.
Luuk, um rapaz de cabelos tão loiros que quase se pareciam com raios de luz branca, desejou boa sorte para null e Noah acenou, um sorriso nos lábios ao gritar “Feliz Natal”. null fez o mesmo, com o semblante tão morno que null quase pulou em seu pescoço ali mesmo. Quase.
— Venha aqui, falta pouco agora. — Ele tomou sua mão novamente e juntos foram até a tenda do Sr. Thomas, um ruivo simpático que rapidamente se encantou com o sorriso de null.
— Estão em Lua de Mel ou vieram visitar a família? — Ele perguntou curioso, lhes guiando para o carro que null escolheu.
— Vamos visitar a família dela, afinal é tempo de festividades. E você, não está com sua família hoje?
Thomas gargalhou, os olhos pretos brilhando.
— Estou esperando meus filhos chegarem. Vocês dois foram os últimos clientes que eu e meu marido atendemos antes de encerrar por hoje, apenas porque o rapaz aqui foi muito convincente.
null sorriu, os dentes brancos completamente a mostra, como se quisesse dizer que sim, sabia exatamente o quão boas são suas habilidades de convencimento. Ele recebeu a chave do carro e esperou que null entrasse, baixando o vidro temporariamente apenas para se despedir de Thomas.
— Espero que tenha um natal incrível com sua família! — Ele exclamou contente, manobrando o carro para sair. Thomas sorriu novamente, um homem loiro e barbudo aparecendo ao seu lado e lhe envolvendo em seus braços. Um belo casal, pensou null. Ela nunca havia pensado propriamente sobre como o prazer de estar nos braços de quem ama aumentava naquele dia do ano. Ela nunca acreditara nisso. Mas parecia mais nítido no decorrer daquela viagem. Tudo que ela tinha feito, os esforços para chegar em sua casa. Se não era amor, ela não sabia o que era de fato.
— Você conhece o caminho a partir daqui, não é null?
null assentiu, repousando as mãos sobre o colo.
— Siga pela estrada principal, ela é bem sinalizada. Direi quando precisar fazer desvios.
❄
Broek in Waterland era considerada uma das províncias mais charmosas de toda a Holanda. Normalmente chuvosa no fim de ano, estava tomada por uma neve rala, diferente daquela encontrada mais ao sul. Foi o lar de muitas famílias ricas séculos atrás, quando era a vila mais próspera de Waterland. Os casarões feitos de madeira, a maioria tombados enquanto null crescia, eram todos habitados por pessoas conhecidas por ela. Era uma vila pequena o suficiente para visitá-la a pé, andar por suas vielas abertas e calçadas com paralelepípedos escuros. Um córrego serpenteava entre as casas e o clima fazia a noite ali se parecer com uma pintura antiga. Quase ninguém estava nas ruas. Já passava da meia noite e as casas eram uma mistura de luzes e risadas. null guiava null, que olhava ao redor completamente embasbacado.
— Quando você disse que vivia no interior… Eu jamais pensei em algo assim. É simplesmente tão… — null piscou, parecendo procurar a palavra correta — bonito, atemporal. Me sinto fazendo parte de um drama. É perfeito, null. Juro que quase consigo te ver sentada ali, com seu caderno, escrevendo ferozmente como sempre faz.
E ele tinha razão. Não era exatamente ali que ela costumava escrever, mas era em um lugar semelhante. Ela nunca achou que Broek In fosse um lugar ruim para se viver, muito pelo contrário. Ela apenas não poderia ficar ali isolada em um local que não lhe possibilita exercer sua profissão. null não tinha notado antes o quanto sentia falta daquele lugar, dos passeios de barco e de bicicleta pelo centro, de comer panquecas quentinhas no início da manhã. Tudo aquilo lhe atingia como flechas flamejantes e seus olhos ardiam. Ao parar de frente ao último casarão da colina, no entanto, suas pernas cederam.
Não percebeu que estava chorando até que null passou seus dedos frios para afastar as lágrimas. Sua casa estava exatamente como deixara. O teto alto preto, com o acabamento branco limpo, as paredes de um cinza azulado que se misturava ao tom dos flocos de neve que caiam como cristais e refletiam raios de arco-íris ao entrar em contato com as luzes dos piscas que enfeitavam a fachada. Um boneco de neve estava ali, um pouco torto e judiado, mas sorridente, com botões azuis como olhos atentos. null não precisava olhar de novo para saber que Kollen havia feito aquilo.
— null, falta muito pouco. Vamos até a porta. — null disse, mas não moveu um músculo sequer para forçá-la a avançar. Ele a esperou pacientemente, suas mãos acariciando os braços dela, seu rosto cheio de linhas de encorajamento.
Ele tinha feito tanto, pensou null. Correu contra a neve, dirigiu diligentemente na ventania e implorou por um veículo em cima da hora apenas para que ela conseguisse estar ali, na casa de seus pais. Ela não podia pensar em falhar com ele. null abandonou tudo para ajudá-la. null empertigou-se.
— Fique aqui por favor. Eu preciso ir até lá sozinha. Apenas… Não saia da minha vista. — Ela murmurou hesitante. null sorriu e lhe envolveu em seus braços, beijando o topo de sua cabeça.
— Não vou a lugar algum.
Ela se afastou, olhando uma ultima vez para null até avançar em direção ao portal da casa, os braços cruzados contra o peito em uma tentativa de afastar o frio. Parou após subir os dois degraus da frente, os dedos tremendo próximos a campainha.
— Aperte, null. Não pense muito sobre isso. — Ela escutou a voz de null atrás de si, um lembrete de sua presença. O incentivo lhe fez impulsivamente apertar o botão, que ressoou por toda a propriedade. null xingou, apreensiva. Seus pais lhe mandariam embora. Era um completo inconveniente aparecer exatamente na hora da ceia, sem avisar, sem deixar ao menos um único recado de que viria. Seu antigo quarto provavelmente tinha sido esvaziado e para completar trazia consigo um convidado, completamente desconhecido para eles.
Ela estava quase dando meia volta para ir embora quando ouviu um clique na porta e o som da madeira ranger ao ser arrastada. E ali estava sua mãe. Ela vestia um casaco tricotado verde bastante folgado e seus fios loiros agitavam-se sobre seu rosto, os olhos castanhos claros petrificados, lágrimas lentamente se formando, o choque lhe fazendo abrir e fechar a boca diversas vezes.
Todas as incertezas, o medo que sentia, tudo se esvaiu quando null suspirou e jogou os braços ao redor daquela mulher de baixa estatura, aquela que lhe dera tudo, inclusive os livros que mais tarde lhe fascinaram o suficiente para desejar tê-los escrito. Alívio tomava seu corpo e null fechou os olhos, deixando que sua mãe lhe aninha-se, que tirasse dela toda o peso que carregava há dois anos.
— Mãe, eu sinto muito. Sinto muito mesmo. — Ela repetia diversas vezes, a voz embargada saindo tão alto que ouviu passos se aproximando. Não se importou. — Sinto muito por ter ido daquela maneira, por ter lhe decepcionado. Eu sei que a decepcionei.
— Oh, não minha querida. Eu que lhe devo desculpas. — Sua mãe lhe disse compreensiva, afastando-se o suficiente para olhar em seus olhos. Seus dedos calejados pelo trabalho duro de anos afagou sua bochecha, cruzando uma linha até o seu queixo, com um sorriso tão terno e cheio de bondade que null não pode controlar mais um soluço. — Eu deveria ter apoiado seus sonhos. Só notei isso no dia após sua partida e você não respondia as mensagens de seus irmãos, não nos dava notícias. Tive tanto medo de que houvesse lhe perdido. Não só eu, mas seu pai também. Aaij dizia todos os dias que iria até a polícia para resgatá-la. Reinder era o único que o impedia.
null balbuciou. Jamais passou por sua cabeça em todos esses anos que seus pais teriam realmente lamentado sua ida, que sua família cogitara falar com a polícia. Ela sempre se considerou um fardo para eles, alguém que desviou da rota e já não servia para eles. Ouvir tudo aquilo era como se sua alma fosse alimentada e restaurada. Cada pedaço de seu coração posto novamente no lugar.
— Eu… Pensei que seria melhor dessa forma. Que eu era um incômodo.
Traços de dor estavam por toda a feição de sua mãe quando ela lhe abraçou novamente, chorosa.
— Eu não sabia que lhe fazíamos se sentir dessa forma. Me perdoe filha. Nos deixe provar o contrário. Fique conosco esta noite. Por favor.
null beijou seus cabelos, lhe apertando mais forte, querendo senti-la, confirmar que nada daquilo era um sonho e de que suas preocupações tinham sido em vão.
— Agora, querida, quem é aquele rapaz bonito parado no meio da neve? — Perguntou sua mãe, e null virou-se ainda se agarrando aos braços da mais velha, seu sorriso se abrindo ainda mais quando encontrou null segurando sua polaroid, uma foto entre seus dedos. Ela acenou para que ele se aproximasse e ele o fez, suas longas pernas finalizando a distância entre eles em poucos minutos.
— É uma longa história e temos muito tempo para contá-la. Permite que participemos da ceia?
Sua mãe sorriu, lhe desferindo um tapa leve em seu ombro.
— Mas é claro. Que pergunta ridícula!
❄
Após entrar em sua casa depois de tanto tempo, null pensou que estranharia o ambiente, mas nada mudou. Seu pai chorou por horas em seu ombro e até seus irmãos choraram enquanto também lhe xingavam o que fez sua mãe brigar com eles por demonstrarem mal educação na frente da visita e de Kollen. Sua irmãzinha apenas a abraçou e contou sobre todos os seus dias até então de maneira resumida, quase como se null nunca tivesse partido e estava tão crescida que quase chegava a tocar no estômago de null. A ceia prosseguiu cheia de sorrisos e toda sua família escutou atentamente os dois anos vividos em Nova York, todas as dificuldades encontradas — esta parte fez sua mãe ter uma crise de nervos e gritar com ela sobre não notificá-los —, a amizade que fez com null e sua viagem de cinco dias até ali. Seu pai fez questão de se demorar bastante ao interrogar null com perguntas muito pontuais. Ele tinha comido em silêncio, dando espaço para que null se reconecta-se com a família, mas pareceu satisfeito em responder cada questionamento sem vacilar e ainda mais satisfeito ao notar o pai de null ficar vermelho ao perceber que ele simplesmente não possuía defeitos.
Quando chegou a hora de se recolherem, null não tinha sono. Sua mente estava um turbilhão de emoções, das quais ela processava bem lentamente. Apesar de ter sido oferecido um quarto de hóspedes para null, ele entrou sorrateiramente no quarto de null e sentou-se no chão da varanda ao lado dela, se cobrindo com as camadas grossas do cobertor de lã que ela usava e admirou a paisagem junto dela, a água que silenciosamente corria na descida da colina coberta de neve, a fumaça acinzentada das chaminés. Ele tinha seu pescoço erguido para que ela pudesse se encaixar ali.
— Você não tem noção de quão assustado eu estava lá atrás, esperando por você. — null confessou e sua súbita iniciativa de conversa fez null endireitar um pouco a coluna, atenta. — Por alguns segundos eu tive medo de que não tivesse dado certo. E tive mais medo ainda de que você desistisse e se frustrasse depois por isso.
null se virou para encará-lo propriamente, e assistiu null contornar as irregularidades de seu rosto, acariciando seus olhos, a linha da mandíbula e então seus lábios, tão gentil e leve como seda.
— Eu não sei o que dizer a você, null. Existe tanto em meu coração, mas simplesmente… É esmagador. Não há palavra no mundo que expressa minha gratidão a você.
O céu estava um pouco mais limpo agora e a luz do luar recaía sobre eles, iluminando os dentes de null quando ele abriu um sorriso tão bonito e sincero que poderia ter deixado null em pedaços. Ele se mexeu um pouco, tirando algo do bolso, e ofereceu para null. Eram diversas polaroids. null dormindo no primeiro dia de viagem sobre a mesa, o rosto tão tensionado que parecia ser o de outra pessoa. null sorrindo surpresa enquanto olhava para null de frente a árvore de natal. Uma imagem sua pensativa enquanto rabiscava seu bloco de notas. Seu feição cheia de deleite enquanto apreciava a vista do restaurante no topo do Florian Turm. Tantas reações diferentes, tantas versões dela mesma que null jamais conheceria de outra maneira expostas ali, em sua frente.
— Quando eu disse que estava realizando um estudo não era de todo mentira. Veja como você mudou, null. Não há nada que você possa dizer ou fazer que será um presente melhor do que o que você já me deu. A satisfação de ouvir suas risadas, de estar em sua companhia, de ver o brilho em seus olhos agora mesmo, enquanto olha para mim. Eu me sinto vivo novamente e devo isso a você. — Ele disse, os lábios pressionando os seus levemente, mas não aprofundando o beijo, para a tristeza de null. null percebeu seu protesto e sorriu novamente, desta vez gargalhando daquela maneira divertida e estranha que null já conhecia. — Você é muito apressada, sabia? Teremos muito tempo para isso.
null se retesou, o peito apertando. Ela tinha esquecido completamente que null tinha uma vida a sua espera na Coréia, com amigos, família e uma rotina estruturada. Ele, eventualmente, precisaria voltar.
— Algo está lhe incomodando, null?
— Para quando está comprada a sua passagem de volta? Quanto tempo nós temos?
null franziu o cenho, olhando para null como se estivesse de frente a um et verde e gosmento.
— Como assim, null? Eu te disse que sou um péssimo planejador de viagens. Infelizmente para você, não existe passagem comprada.
null piscou, incredulidade passando por seu rosto.
— Mas você tem um trabalho… Precisa voltar.
null assentiu, seus dedos correndo pelas ondulações dos cabelos de null. Ela sentia mais aquecida quando eles estavam soltos ao seu redor.
— É verdade, mas eu estava pensando em aproveitar cada segundo com você aqui e então… — ele hesitou, olhando novamente para ela. null já tinha aprendido que era essa a maneira de null de dizer que o que ele estava preste a falar vinha de um lugar muito profundo em si.
— Diga.
— Eu pensei que… Pensei se você gostaria de ir até a Coréia. De conhecer a Ásia inteira, na verdade e depois outros continentes comigo. Seria uma ótima maneira de alimentar sua mente e lhe ajudaria a escrever ainda melhor.
O rosto de null era provavelmente um cortina de choque, porque null estremeceu em seu aperto. Ele parecia agora preocupado, as pernas inquietas.
— null… Isso seria incrível! — Ela exclamou por fim, sua duas mãos nas bochechas dele, que finalmente retornava a sua feição anterior, alívio na forma de cada exalo. — Mas… Eu não tenho muito dinheiro guardado para isso…
null negou, tomando suas mãos e beijando o encontro de seus dedos, suas juntas e palma.
— Eu tenho o suficiente para nós dois, mas se é de seu desejo pagar por sua parte você pode passar um tempo trabalhando na editora da minha cunhada e então juntar o suficiente para viajar.
— Mas eu não falo coreano…
— Você poderia aprender e a editora dela tem um setor apenas para lidar com títulos estrangeiros, então você seria de grande ajuda. Estar lá também lhe faria ter contato com outras grandes editoras e isso facilitaria a publicação de suas histórias.
— null…
Ele respirou fundo, exasperado.
— Não existe desculpa que você dê que eu já não tenha planejado uma resposta. — Seu sorriso aumentava a medida em que ele notava as dúvidas de null desaparecerem de seus olhos. Ela levantou de seu lugar rapidamente e correu para seu quarto, abrindo sua mochila para pegar seu caderno de anotações. null estava de pé na varanda agora, parado contra o arco de entrada e parecendo ponderar se deveria segui-la ou não.
null andou até ficar exatamente de frente para ele, os dedos de seus pés tocando os dele, ambos de meia contra o piso frio. null colocou seu caderno em suas mãos e null imediatamente suspirou, compreendendo. Ela estava compartilhando com ele seu bem mais precioso, estava lhe oferecendo suas ideias, seus pensamentos, porque null já tinha lhe oferecido tudo. Seu coração se contorcia, como se desejasse ser maior para comportar todas as suas emoções. null lhe puxou novamente para fora e lhe abraçou, os flocos de neve dançando ao redor deles como se celebrasse o que quer que estivesse começando naquele momento. O pequeno espaço de felicidade deles, que nasceu a partir da fé que null tinha nela, na certeza de que ela venceria qualquer obstáculo que surgisse.
null apreciou cada abraço que recebeu aquele dia e não conseguia imaginar melhor maneira de finalizá-lo. null tinha seus longos braços ao redor de null, seu cheiro por toda parte que já era tão familiar. Era seu null, em sua casa, com sua família, em sua cidade.
Ela sorriu. Finalmente compreendia o que era um milagre de Natal.
Seis quilômetros separavam os passageiros do centro de Amsterdam, mas o caos da nevasca causou um terrível engarrafamento, o que, consequentemente, prendeu todos na metade do caminho por quase meia hora. Diferente do trem, que era aquecido e confortável, o ônibus estava congelante, apesar de null estar bem agasalhada com suas muitas camadas de couro e um gorro cobrindo sua cabeça. null colocou um braço ao redor de seu pescoço, tentando lhe passar sua própria temperatura enquanto digitava freneticamente em seu celular.
— Consegui um carro com rodas resistentes para alugar, mas teremos ele apenas quando chegarmos em Durgerdam. Podemos ir de moto, se preferir… É uma forma de evitar todo o trânsito e são menos de trinta minutos até lá.
null assentiu.
— Mas e nossas malas?
— A companhia prometeu enviar os pertences dos passageiros para seu destino final, assim não temos mais atrasos. Tenho roupas o suficiente na minha mochila de qualquer forma.
— null… Qual era o seu destino final?
Ele ponderou, sua mão que até então segurava o celular, brincando com os dedos enluvados de null.
— Eu sou um péssimo planejador de viagens, então chegaria a Amsterdam e daria o meu melhor perambulando por lá e tiraria fotos, talvez dormisse em um chalé confortável. — Ele tocou seu gorro, ajustando-o melhor para cobrir sua testa. — Mas agora eu tenho uma missão. Devo levá-la até sua família.
null estremeceu e null lhe apertou levemente, para lembrá-la de que estava ali. Talvez se não tivesse conhecido null, se não houvesse se afeiçoado por ele e lhe aceitado, ela provavelmente teria corrido para o aeroporto mais próximo e voltado o mais rápido possível para Nova York. null percebeu que apesar de null repetir diversas vezes o quão corajosa ela era, não se sentia dessa maneira. Sentia pavor apenas de pensar em ter que se desculpar para seus pais, de precisar explicar para eles o desejo ardente em seu peito que a fez deixar seu lar para trás sem ao menos uma explicação.
Em meio ao engarrafamento, alguns passageiros pediram permissão para deixar o ônibus antes do local combinado e o Sr. Ruschel fez o seu melhor para administrar a crise, anotando seus nomes para não causar problemas ao sistema, com o rosto contorcido de nervoso. null levantou-se, segurando firme as mãos de null e a carregou até as comissárias, que também deram baixa em seus registros e permitiram a saída prematura do veículo. Havia realmente muita neve. Alguns carros estavam completamente esbranquiçados e trabalhadores, provavelmente governamentais, usavam máquinas para limpar as rodovias e deixar o acesso livre, pois somente isso permitia que o trânsito fluísse.
Caminharam com dificuldade, os pés afundando na neve, o frio cortante atingindo seus rostos. null colocou uma máscara preta no meio do caminho, que escondia do seu nariz para baixo e seu grande casaco servia como uma capa que o envolvia por completo, mas também protegia null. Um lampejo de memória cruzou a mente da garota: Ela olhando preguiçosamente para null de sua posição curvada sobre o caderno de anotações, de como havia lhe achado gigantesco. Mas null não era realmente tão alto. Tinha, no máximo, 1,80. Sua figura, entretanto era tão magnífica que parecia tomar o ar ao redor. Um imperador, ela tinha escrito em seu bloco. E naquele instante ele abria caminho em meio as pessoas, suas mãos firmes contra a dela, até onde uma loja cheia de motos lhes esperava.
O dono da loja tinha sido muito generoso com eles. Forneceu capacetes especiais para protegê-los dos flocos gelados e da ventania, além de casacos extras e dois de seus filhos para acompanhá-los em outra moto para trazê-las de volta quando chegassem a Durgerdam.
null estava com pressa, mas se permitiu demorar um pouco, curvando-se em agradecimento vezes o suficiente para deixar o homem embaraçado. Em seguida, ajudou null a subir em segurança e se posicionou na frente, já dando partida. null agarrou-se firmemente a cintura de null, fechando os olhos com força. Ela nunca gostou muito de motos. Tirou a habilitação quando ainda estava em sua cidade, e vez ou outra dirigia o carro de null para levá-la ao trabalho, mas tinha forte aversão a motos, em parte porque seu irmão, Reinder, era um grande amante delas e já havia sofrido um acidente quando null tinha seus quatorze anos. Ela nunca se esqueceu do pânico que lhe preencheu quando a notícia chegou e seus pais enlouqueceram, todos amontoados em uma das vans da família para vê-lo no hospital mais próximo. Apesar disso, null parecia sentir a pressão amedrontada de null, e dirigia com cuidado, mesmo precisando acelerar para não perder tempo.
Eles seguiram os filhos do dono da loja, Noah e Luuk, por todo o percurso. Os dois afirmaram conhecer o caminho muito bem, afinal o fazia quase todos os dias com turistas que ansiavam conhecer não apenas Amsterdam, mas também seus arredores que prometiam tantas boas surpresas quanto a cidade em si.
O céu noturno estava quase limpo de estrelas e as árvores sem folhas tinham os galhos tortos pelo o peso do acúmulo da neve. O capacete trabalhava bem para conter a nevasca e o rosto de null se sentia quente pela primeira vez em dias. null fez uma curva, e null podia jurar que, mesmo com todas as camadas que lhe cobriam, ela ainda assim podia sentir o seu cheiro, rodeando-a e acalentando seu coração. Estava definitivamente nervosa, não sabia o que fazer, como agir, mas se agarrou ao fio de paz que null lhe proporciona e se segurou na visão que ele tinha dela.
Quando finalmente atravessaram o Buiten-IJ, e as estradas levaram a ruas flanqueadas pelo corpo de água, ela sabia que havia chegado. Durgerdam era uma vila muito semelhante a uma comunidade ribeirinha. No verão, seus campos verdes e as casa brancas eram muito convidativas para quem buscava um retiro pacífico. null parou a moto no ponto de encontro que ele tinha marcado com o alugador de carros e agradeceu mais uma vez para os irmãos, que desceram ambos de sua própria moto para cumprimentá-los.
Luuk, um rapaz de cabelos tão loiros que quase se pareciam com raios de luz branca, desejou boa sorte para null e Noah acenou, um sorriso nos lábios ao gritar “Feliz Natal”. null fez o mesmo, com o semblante tão morno que null quase pulou em seu pescoço ali mesmo. Quase.
— Venha aqui, falta pouco agora. — Ele tomou sua mão novamente e juntos foram até a tenda do Sr. Thomas, um ruivo simpático que rapidamente se encantou com o sorriso de null.
— Estão em Lua de Mel ou vieram visitar a família? — Ele perguntou curioso, lhes guiando para o carro que null escolheu.
— Vamos visitar a família dela, afinal é tempo de festividades. E você, não está com sua família hoje?
Thomas gargalhou, os olhos pretos brilhando.
— Estou esperando meus filhos chegarem. Vocês dois foram os últimos clientes que eu e meu marido atendemos antes de encerrar por hoje, apenas porque o rapaz aqui foi muito convincente.
null sorriu, os dentes brancos completamente a mostra, como se quisesse dizer que sim, sabia exatamente o quão boas são suas habilidades de convencimento. Ele recebeu a chave do carro e esperou que null entrasse, baixando o vidro temporariamente apenas para se despedir de Thomas.
— Espero que tenha um natal incrível com sua família! — Ele exclamou contente, manobrando o carro para sair. Thomas sorriu novamente, um homem loiro e barbudo aparecendo ao seu lado e lhe envolvendo em seus braços. Um belo casal, pensou null. Ela nunca havia pensado propriamente sobre como o prazer de estar nos braços de quem ama aumentava naquele dia do ano. Ela nunca acreditara nisso. Mas parecia mais nítido no decorrer daquela viagem. Tudo que ela tinha feito, os esforços para chegar em sua casa. Se não era amor, ela não sabia o que era de fato.
— Você conhece o caminho a partir daqui, não é null?
null assentiu, repousando as mãos sobre o colo.
— Siga pela estrada principal, ela é bem sinalizada. Direi quando precisar fazer desvios.
Broek in Waterland era considerada uma das províncias mais charmosas de toda a Holanda. Normalmente chuvosa no fim de ano, estava tomada por uma neve rala, diferente daquela encontrada mais ao sul. Foi o lar de muitas famílias ricas séculos atrás, quando era a vila mais próspera de Waterland. Os casarões feitos de madeira, a maioria tombados enquanto null crescia, eram todos habitados por pessoas conhecidas por ela. Era uma vila pequena o suficiente para visitá-la a pé, andar por suas vielas abertas e calçadas com paralelepípedos escuros. Um córrego serpenteava entre as casas e o clima fazia a noite ali se parecer com uma pintura antiga. Quase ninguém estava nas ruas. Já passava da meia noite e as casas eram uma mistura de luzes e risadas. null guiava null, que olhava ao redor completamente embasbacado.
— Quando você disse que vivia no interior… Eu jamais pensei em algo assim. É simplesmente tão… — null piscou, parecendo procurar a palavra correta — bonito, atemporal. Me sinto fazendo parte de um drama. É perfeito, null. Juro que quase consigo te ver sentada ali, com seu caderno, escrevendo ferozmente como sempre faz.
E ele tinha razão. Não era exatamente ali que ela costumava escrever, mas era em um lugar semelhante. Ela nunca achou que Broek In fosse um lugar ruim para se viver, muito pelo contrário. Ela apenas não poderia ficar ali isolada em um local que não lhe possibilita exercer sua profissão. null não tinha notado antes o quanto sentia falta daquele lugar, dos passeios de barco e de bicicleta pelo centro, de comer panquecas quentinhas no início da manhã. Tudo aquilo lhe atingia como flechas flamejantes e seus olhos ardiam. Ao parar de frente ao último casarão da colina, no entanto, suas pernas cederam.
Não percebeu que estava chorando até que null passou seus dedos frios para afastar as lágrimas. Sua casa estava exatamente como deixara. O teto alto preto, com o acabamento branco limpo, as paredes de um cinza azulado que se misturava ao tom dos flocos de neve que caiam como cristais e refletiam raios de arco-íris ao entrar em contato com as luzes dos piscas que enfeitavam a fachada. Um boneco de neve estava ali, um pouco torto e judiado, mas sorridente, com botões azuis como olhos atentos. null não precisava olhar de novo para saber que Kollen havia feito aquilo.
— null, falta muito pouco. Vamos até a porta. — null disse, mas não moveu um músculo sequer para forçá-la a avançar. Ele a esperou pacientemente, suas mãos acariciando os braços dela, seu rosto cheio de linhas de encorajamento.
Ele tinha feito tanto, pensou null. Correu contra a neve, dirigiu diligentemente na ventania e implorou por um veículo em cima da hora apenas para que ela conseguisse estar ali, na casa de seus pais. Ela não podia pensar em falhar com ele. null abandonou tudo para ajudá-la. null empertigou-se.
— Fique aqui por favor. Eu preciso ir até lá sozinha. Apenas… Não saia da minha vista. — Ela murmurou hesitante. null sorriu e lhe envolveu em seus braços, beijando o topo de sua cabeça.
— Não vou a lugar algum.
Ela se afastou, olhando uma ultima vez para null até avançar em direção ao portal da casa, os braços cruzados contra o peito em uma tentativa de afastar o frio. Parou após subir os dois degraus da frente, os dedos tremendo próximos a campainha.
— Aperte, null. Não pense muito sobre isso. — Ela escutou a voz de null atrás de si, um lembrete de sua presença. O incentivo lhe fez impulsivamente apertar o botão, que ressoou por toda a propriedade. null xingou, apreensiva. Seus pais lhe mandariam embora. Era um completo inconveniente aparecer exatamente na hora da ceia, sem avisar, sem deixar ao menos um único recado de que viria. Seu antigo quarto provavelmente tinha sido esvaziado e para completar trazia consigo um convidado, completamente desconhecido para eles.
Ela estava quase dando meia volta para ir embora quando ouviu um clique na porta e o som da madeira ranger ao ser arrastada. E ali estava sua mãe. Ela vestia um casaco tricotado verde bastante folgado e seus fios loiros agitavam-se sobre seu rosto, os olhos castanhos claros petrificados, lágrimas lentamente se formando, o choque lhe fazendo abrir e fechar a boca diversas vezes.
Todas as incertezas, o medo que sentia, tudo se esvaiu quando null suspirou e jogou os braços ao redor daquela mulher de baixa estatura, aquela que lhe dera tudo, inclusive os livros que mais tarde lhe fascinaram o suficiente para desejar tê-los escrito. Alívio tomava seu corpo e null fechou os olhos, deixando que sua mãe lhe aninha-se, que tirasse dela toda o peso que carregava há dois anos.
— Mãe, eu sinto muito. Sinto muito mesmo. — Ela repetia diversas vezes, a voz embargada saindo tão alto que ouviu passos se aproximando. Não se importou. — Sinto muito por ter ido daquela maneira, por ter lhe decepcionado. Eu sei que a decepcionei.
— Oh, não minha querida. Eu que lhe devo desculpas. — Sua mãe lhe disse compreensiva, afastando-se o suficiente para olhar em seus olhos. Seus dedos calejados pelo trabalho duro de anos afagou sua bochecha, cruzando uma linha até o seu queixo, com um sorriso tão terno e cheio de bondade que null não pode controlar mais um soluço. — Eu deveria ter apoiado seus sonhos. Só notei isso no dia após sua partida e você não respondia as mensagens de seus irmãos, não nos dava notícias. Tive tanto medo de que houvesse lhe perdido. Não só eu, mas seu pai também. Aaij dizia todos os dias que iria até a polícia para resgatá-la. Reinder era o único que o impedia.
null balbuciou. Jamais passou por sua cabeça em todos esses anos que seus pais teriam realmente lamentado sua ida, que sua família cogitara falar com a polícia. Ela sempre se considerou um fardo para eles, alguém que desviou da rota e já não servia para eles. Ouvir tudo aquilo era como se sua alma fosse alimentada e restaurada. Cada pedaço de seu coração posto novamente no lugar.
— Eu… Pensei que seria melhor dessa forma. Que eu era um incômodo.
Traços de dor estavam por toda a feição de sua mãe quando ela lhe abraçou novamente, chorosa.
— Eu não sabia que lhe fazíamos se sentir dessa forma. Me perdoe filha. Nos deixe provar o contrário. Fique conosco esta noite. Por favor.
null beijou seus cabelos, lhe apertando mais forte, querendo senti-la, confirmar que nada daquilo era um sonho e de que suas preocupações tinham sido em vão.
— Agora, querida, quem é aquele rapaz bonito parado no meio da neve? — Perguntou sua mãe, e null virou-se ainda se agarrando aos braços da mais velha, seu sorriso se abrindo ainda mais quando encontrou null segurando sua polaroid, uma foto entre seus dedos. Ela acenou para que ele se aproximasse e ele o fez, suas longas pernas finalizando a distância entre eles em poucos minutos.
— É uma longa história e temos muito tempo para contá-la. Permite que participemos da ceia?
Sua mãe sorriu, lhe desferindo um tapa leve em seu ombro.
— Mas é claro. Que pergunta ridícula!
Após entrar em sua casa depois de tanto tempo, null pensou que estranharia o ambiente, mas nada mudou. Seu pai chorou por horas em seu ombro e até seus irmãos choraram enquanto também lhe xingavam o que fez sua mãe brigar com eles por demonstrarem mal educação na frente da visita e de Kollen. Sua irmãzinha apenas a abraçou e contou sobre todos os seus dias até então de maneira resumida, quase como se null nunca tivesse partido e estava tão crescida que quase chegava a tocar no estômago de null. A ceia prosseguiu cheia de sorrisos e toda sua família escutou atentamente os dois anos vividos em Nova York, todas as dificuldades encontradas — esta parte fez sua mãe ter uma crise de nervos e gritar com ela sobre não notificá-los —, a amizade que fez com null e sua viagem de cinco dias até ali. Seu pai fez questão de se demorar bastante ao interrogar null com perguntas muito pontuais. Ele tinha comido em silêncio, dando espaço para que null se reconecta-se com a família, mas pareceu satisfeito em responder cada questionamento sem vacilar e ainda mais satisfeito ao notar o pai de null ficar vermelho ao perceber que ele simplesmente não possuía defeitos.
Quando chegou a hora de se recolherem, null não tinha sono. Sua mente estava um turbilhão de emoções, das quais ela processava bem lentamente. Apesar de ter sido oferecido um quarto de hóspedes para null, ele entrou sorrateiramente no quarto de null e sentou-se no chão da varanda ao lado dela, se cobrindo com as camadas grossas do cobertor de lã que ela usava e admirou a paisagem junto dela, a água que silenciosamente corria na descida da colina coberta de neve, a fumaça acinzentada das chaminés. Ele tinha seu pescoço erguido para que ela pudesse se encaixar ali.
— Você não tem noção de quão assustado eu estava lá atrás, esperando por você. — null confessou e sua súbita iniciativa de conversa fez null endireitar um pouco a coluna, atenta. — Por alguns segundos eu tive medo de que não tivesse dado certo. E tive mais medo ainda de que você desistisse e se frustrasse depois por isso.
null se virou para encará-lo propriamente, e assistiu null contornar as irregularidades de seu rosto, acariciando seus olhos, a linha da mandíbula e então seus lábios, tão gentil e leve como seda.
— Eu não sei o que dizer a você, null. Existe tanto em meu coração, mas simplesmente… É esmagador. Não há palavra no mundo que expressa minha gratidão a você.
O céu estava um pouco mais limpo agora e a luz do luar recaía sobre eles, iluminando os dentes de null quando ele abriu um sorriso tão bonito e sincero que poderia ter deixado null em pedaços. Ele se mexeu um pouco, tirando algo do bolso, e ofereceu para null. Eram diversas polaroids. null dormindo no primeiro dia de viagem sobre a mesa, o rosto tão tensionado que parecia ser o de outra pessoa. null sorrindo surpresa enquanto olhava para null de frente a árvore de natal. Uma imagem sua pensativa enquanto rabiscava seu bloco de notas. Seu feição cheia de deleite enquanto apreciava a vista do restaurante no topo do Florian Turm. Tantas reações diferentes, tantas versões dela mesma que null jamais conheceria de outra maneira expostas ali, em sua frente.
— Quando eu disse que estava realizando um estudo não era de todo mentira. Veja como você mudou, null. Não há nada que você possa dizer ou fazer que será um presente melhor do que o que você já me deu. A satisfação de ouvir suas risadas, de estar em sua companhia, de ver o brilho em seus olhos agora mesmo, enquanto olha para mim. Eu me sinto vivo novamente e devo isso a você. — Ele disse, os lábios pressionando os seus levemente, mas não aprofundando o beijo, para a tristeza de null. null percebeu seu protesto e sorriu novamente, desta vez gargalhando daquela maneira divertida e estranha que null já conhecia. — Você é muito apressada, sabia? Teremos muito tempo para isso.
null se retesou, o peito apertando. Ela tinha esquecido completamente que null tinha uma vida a sua espera na Coréia, com amigos, família e uma rotina estruturada. Ele, eventualmente, precisaria voltar.
— Algo está lhe incomodando, null?
— Para quando está comprada a sua passagem de volta? Quanto tempo nós temos?
null franziu o cenho, olhando para null como se estivesse de frente a um et verde e gosmento.
— Como assim, null? Eu te disse que sou um péssimo planejador de viagens. Infelizmente para você, não existe passagem comprada.
null piscou, incredulidade passando por seu rosto.
— Mas você tem um trabalho… Precisa voltar.
null assentiu, seus dedos correndo pelas ondulações dos cabelos de null. Ela sentia mais aquecida quando eles estavam soltos ao seu redor.
— É verdade, mas eu estava pensando em aproveitar cada segundo com você aqui e então… — ele hesitou, olhando novamente para ela. null já tinha aprendido que era essa a maneira de null de dizer que o que ele estava preste a falar vinha de um lugar muito profundo em si.
— Diga.
— Eu pensei que… Pensei se você gostaria de ir até a Coréia. De conhecer a Ásia inteira, na verdade e depois outros continentes comigo. Seria uma ótima maneira de alimentar sua mente e lhe ajudaria a escrever ainda melhor.
O rosto de null era provavelmente um cortina de choque, porque null estremeceu em seu aperto. Ele parecia agora preocupado, as pernas inquietas.
— null… Isso seria incrível! — Ela exclamou por fim, sua duas mãos nas bochechas dele, que finalmente retornava a sua feição anterior, alívio na forma de cada exalo. — Mas… Eu não tenho muito dinheiro guardado para isso…
null negou, tomando suas mãos e beijando o encontro de seus dedos, suas juntas e palma.
— Eu tenho o suficiente para nós dois, mas se é de seu desejo pagar por sua parte você pode passar um tempo trabalhando na editora da minha cunhada e então juntar o suficiente para viajar.
— Mas eu não falo coreano…
— Você poderia aprender e a editora dela tem um setor apenas para lidar com títulos estrangeiros, então você seria de grande ajuda. Estar lá também lhe faria ter contato com outras grandes editoras e isso facilitaria a publicação de suas histórias.
— null…
Ele respirou fundo, exasperado.
— Não existe desculpa que você dê que eu já não tenha planejado uma resposta. — Seu sorriso aumentava a medida em que ele notava as dúvidas de null desaparecerem de seus olhos. Ela levantou de seu lugar rapidamente e correu para seu quarto, abrindo sua mochila para pegar seu caderno de anotações. null estava de pé na varanda agora, parado contra o arco de entrada e parecendo ponderar se deveria segui-la ou não.
null andou até ficar exatamente de frente para ele, os dedos de seus pés tocando os dele, ambos de meia contra o piso frio. null colocou seu caderno em suas mãos e null imediatamente suspirou, compreendendo. Ela estava compartilhando com ele seu bem mais precioso, estava lhe oferecendo suas ideias, seus pensamentos, porque null já tinha lhe oferecido tudo. Seu coração se contorcia, como se desejasse ser maior para comportar todas as suas emoções. null lhe puxou novamente para fora e lhe abraçou, os flocos de neve dançando ao redor deles como se celebrasse o que quer que estivesse começando naquele momento. O pequeno espaço de felicidade deles, que nasceu a partir da fé que null tinha nela, na certeza de que ela venceria qualquer obstáculo que surgisse.
null apreciou cada abraço que recebeu aquele dia e não conseguia imaginar melhor maneira de finalizá-lo. null tinha seus longos braços ao redor de null, seu cheiro por toda parte que já era tão familiar. Era seu null, em sua casa, com sua família, em sua cidade.
Ela sorriu. Finalmente compreendia o que era um milagre de Natal.
Fim
Nota da autora: É um prazer ter minha fanfic hospedada neste site pela primeira vez. Foi através do FFOBS que eu tive um dos meus primeiros contatos com este tipo de criação e leitura de histórias lá em 2012/2013 e por isso estou bem animada! Espero que tenham amado essa narrativa tanto quanto eu. Muito obrigada pela chance e até a próxima!
Qualquer erro no layout dessa fanfic, notifique-me somente por e-mail.

