Capítulo Único
Mil e quinhentas gotas de chuva foi o que disseram ser o resto de minha vida. Embora tivesse vivido talvez mais do que trilhões daquela, vivido tempestades e redemoinhos, talvez um ou dois furacões, eu tive medo de cada gota que vi em minha frente. Fugi por todo o mundo: para Londres, Paris, Buenos Aires e até mesmo São Paulo; procurei os lugares onde menos chovia, e não importava o resto do dinheiro que ainda tinha: eu estava morrendo. A única forma de preservar o resquício que eu tinha era procurar pelos lugares onde menos chovia, procurar por onde a chuva se escondia e nenhuma gota de chuva a menos se contaria em meu limite baixíssimo.
Não se sabe ao certo quantas gotículas caem a cada vez que chove, mas posso assegurar que mesmo um simples chovisco alcançaria mais de mil e quinhentas gotas. A partir do momento em que adoeci, eu sabia que nunca mais sentiria as gotas molharem meu rosto de novo, pois isso significaria a minha morte por fim. Você pode dizer "ora essa, quem é que conta tempo de sobrevida a partir de gotas de chuva?" - e eu vou responder com todas as letras que quiser, que o destino não economiza na hora de surpreender. Quantos cálculos o homem do destino deve ter feito quando decidiu contar quantas chuvas eu viveria à partir do meu tumor para descobrir que, no fim das contas, seria uma soma absurdamente baixa de mil e quinhentas gotas?
Você preferiria ouvir em dias, ou em meses, ou talvez anos? Cento e oitenta e dois dias foi o que eu vivi, o que totaliza em 6,06 meses, 50,5% de um ano. Não chore ou se comova, por favor. Você acharia muito se estivesse no meu lugar.
É complicado dizer que vivi plenamente essas mil e quinhentas gotas de chuva. Durante todos os anos da minha vida, eu me habituei ao cinza e me afeiçoei a cada pequena gota que senti em minha pele, de todas as vezes em que tomei banho de chuva acidentalmente. Nunca mais pude sentir uma sequer gotinha sem o desespero usual de fugir ao ver as nuvens se acumulando e tentar encontrar o próximo local ensolarado com êxito. Ninguém entendia. Se você perguntar a qualquer um dos meus companheiros, eles te dirão que eu fui completamente insana até o último dos meus dias. Quem em sã consciência tem tanto pavor assim da chuva?!
Se eu pudesse ao menos explicar algo a eles, talvez tivesse eu mesma compreendido o que o destino tentava me ditar ao me jogar no mundo com mil e quinhentas gotas de chuva restantes. Elas diminuíam e eu insistia em correr, eu juro, por países e países e diferentes locais do mundo. Se não era cansativo? É claro que era! Eu chorei todos os dias durante todo esse tempo sabendo que qualquer chuva repentina me mataria! Parece uma frase absurda ainda mais com todo esse toque cômico pessoal que eu prefiro dar para amolecer as duras histórias que tento contar a vocês, mas é a mais pura verdade.
Senti tanto ódio daquele idiota do destino que passei a decidir eu mesma sobre como seria o meu fim. Não havia outra forma de driblá-lo, havia? Fugir de todas as chuvas era a maldição que ele me dera. Um dia, eu estaria tão cansada que não mais conseguiria correr de um país ao outro em busca de abrigo. Logo eu, que sempre fui tão cheia da chuva e de mim mesma?
Eu passei a não encará-lo mais como um ser caridoso que tentava me proporcionar os meus últimos momentos, mas como o torturador sádico que não podia recusar meu último desejo de ter mais alguns dias, ao mesmo tempo que não podia ser generoso ao contar tais dias. Eu decidi escolher como, quando e com quem morreria.
Admiro você, leitor, por ter chegado até aqui tão curioso acerca da minha história. Se quer saber, eu serei breve: morri sozinha, como eu nasci. Minha mãe estava comigo, mas parcialmente, pois quando nasci não a reconhecia e agora morta, eu não a via. Eu morri como sempre desejei morrer: sentada em um banco, em uma praça, em frente ao meu café favorito, sentindo o cheiro dos frappucinos e sentindo as lágrimas do céu caírem sob a minha cabeça. Cada uma delas era tão confortante quanto um abraço querido ou uma água geladinha após uma caminhada tão longa e árdua. Morri tranquila, por favor, não se sinta mal. Não senti dor alguma.
A cura, para alguns, é mais dura do que o próprio sofrimento. A chuva foi por um longo tempo a minha ruína, e intoxicada pela loucura, me apaixonei pelo sofrimento e continuei perseguindo-o dentre toda e cada gota que caía. A minha dura busca pela felicidade foi o maior exemplo de que somos todos parentes em algum grau grotesco da fênix: precisei fugir da chuva para só então compreender que ela era parte de mim assim como eu sou parte do universo, pela metade.
E quando voltei para ela, por fim, e decidi encarar minhas últimas mil e quinhentas gotas de chuva, eu entendi que morrer tem diversas conotações possíveis, e que foi um bem necessário para que eu me curasse do meu mal de "chuva", e afirmo que agora, independente de onde você me enxergue, leitor, estou satisfeita e feliz por ter aceitado o meu fim maravilhosamente bem.
Você pode não acreditar em mim, mas você me conhece. Se eu te dissesse o meu nome, indubitavelmente não acreditaria, mas eu estou presente em cada átomo próximo a você. Sou aquele ponto indesejado quando não sabemos qual será o fim da história, ou aquelas reticências incapazes de definir um tempo real entre cada evento marcante; eu sou muitas e ao mesmo tempo, uma só. É bem simples olhar por um lado, mas se quer saber a verdade, precisará me conhecer primeiro.
Cabe a você a partir de agora o dever de me colocar em cada pequeno encaixe vazio onde a minha forma seja cabível. E, de forma mais do que fiel, confio a ti também o dever de me dar um nome, pois tenho vários e me sinto assolada por não poder dizer nenhum deles nessa pequena extensão de mim.
Obrigada por ter lido tão verdadeiramente estas quase mil e quinhentas palavras que dedico à quase todas as gotas de chuva que me levaram embora, exceto é claro por aquelas que ardem a pele de tão geladas embora lavem também a alma.
Agradeço a você, leitor, mas também peço desculpas por esta ser uma história sem final. Onde eu estou agora, após minha morte, é do seu dever escolher, assim como o fim dessa história, que pertence tanto a você quanto eu aos céus e às estrelas.
Não se sabe ao certo quantas gotículas caem a cada vez que chove, mas posso assegurar que mesmo um simples chovisco alcançaria mais de mil e quinhentas gotas. A partir do momento em que adoeci, eu sabia que nunca mais sentiria as gotas molharem meu rosto de novo, pois isso significaria a minha morte por fim. Você pode dizer "ora essa, quem é que conta tempo de sobrevida a partir de gotas de chuva?" - e eu vou responder com todas as letras que quiser, que o destino não economiza na hora de surpreender. Quantos cálculos o homem do destino deve ter feito quando decidiu contar quantas chuvas eu viveria à partir do meu tumor para descobrir que, no fim das contas, seria uma soma absurdamente baixa de mil e quinhentas gotas?
Você preferiria ouvir em dias, ou em meses, ou talvez anos? Cento e oitenta e dois dias foi o que eu vivi, o que totaliza em 6,06 meses, 50,5% de um ano. Não chore ou se comova, por favor. Você acharia muito se estivesse no meu lugar.
É complicado dizer que vivi plenamente essas mil e quinhentas gotas de chuva. Durante todos os anos da minha vida, eu me habituei ao cinza e me afeiçoei a cada pequena gota que senti em minha pele, de todas as vezes em que tomei banho de chuva acidentalmente. Nunca mais pude sentir uma sequer gotinha sem o desespero usual de fugir ao ver as nuvens se acumulando e tentar encontrar o próximo local ensolarado com êxito. Ninguém entendia. Se você perguntar a qualquer um dos meus companheiros, eles te dirão que eu fui completamente insana até o último dos meus dias. Quem em sã consciência tem tanto pavor assim da chuva?!
Se eu pudesse ao menos explicar algo a eles, talvez tivesse eu mesma compreendido o que o destino tentava me ditar ao me jogar no mundo com mil e quinhentas gotas de chuva restantes. Elas diminuíam e eu insistia em correr, eu juro, por países e países e diferentes locais do mundo. Se não era cansativo? É claro que era! Eu chorei todos os dias durante todo esse tempo sabendo que qualquer chuva repentina me mataria! Parece uma frase absurda ainda mais com todo esse toque cômico pessoal que eu prefiro dar para amolecer as duras histórias que tento contar a vocês, mas é a mais pura verdade.
Senti tanto ódio daquele idiota do destino que passei a decidir eu mesma sobre como seria o meu fim. Não havia outra forma de driblá-lo, havia? Fugir de todas as chuvas era a maldição que ele me dera. Um dia, eu estaria tão cansada que não mais conseguiria correr de um país ao outro em busca de abrigo. Logo eu, que sempre fui tão cheia da chuva e de mim mesma?
Eu passei a não encará-lo mais como um ser caridoso que tentava me proporcionar os meus últimos momentos, mas como o torturador sádico que não podia recusar meu último desejo de ter mais alguns dias, ao mesmo tempo que não podia ser generoso ao contar tais dias. Eu decidi escolher como, quando e com quem morreria.
Admiro você, leitor, por ter chegado até aqui tão curioso acerca da minha história. Se quer saber, eu serei breve: morri sozinha, como eu nasci. Minha mãe estava comigo, mas parcialmente, pois quando nasci não a reconhecia e agora morta, eu não a via. Eu morri como sempre desejei morrer: sentada em um banco, em uma praça, em frente ao meu café favorito, sentindo o cheiro dos frappucinos e sentindo as lágrimas do céu caírem sob a minha cabeça. Cada uma delas era tão confortante quanto um abraço querido ou uma água geladinha após uma caminhada tão longa e árdua. Morri tranquila, por favor, não se sinta mal. Não senti dor alguma.
A cura, para alguns, é mais dura do que o próprio sofrimento. A chuva foi por um longo tempo a minha ruína, e intoxicada pela loucura, me apaixonei pelo sofrimento e continuei perseguindo-o dentre toda e cada gota que caía. A minha dura busca pela felicidade foi o maior exemplo de que somos todos parentes em algum grau grotesco da fênix: precisei fugir da chuva para só então compreender que ela era parte de mim assim como eu sou parte do universo, pela metade.
E quando voltei para ela, por fim, e decidi encarar minhas últimas mil e quinhentas gotas de chuva, eu entendi que morrer tem diversas conotações possíveis, e que foi um bem necessário para que eu me curasse do meu mal de "chuva", e afirmo que agora, independente de onde você me enxergue, leitor, estou satisfeita e feliz por ter aceitado o meu fim maravilhosamente bem.
Você pode não acreditar em mim, mas você me conhece. Se eu te dissesse o meu nome, indubitavelmente não acreditaria, mas eu estou presente em cada átomo próximo a você. Sou aquele ponto indesejado quando não sabemos qual será o fim da história, ou aquelas reticências incapazes de definir um tempo real entre cada evento marcante; eu sou muitas e ao mesmo tempo, uma só. É bem simples olhar por um lado, mas se quer saber a verdade, precisará me conhecer primeiro.
Cabe a você a partir de agora o dever de me colocar em cada pequeno encaixe vazio onde a minha forma seja cabível. E, de forma mais do que fiel, confio a ti também o dever de me dar um nome, pois tenho vários e me sinto assolada por não poder dizer nenhum deles nessa pequena extensão de mim.
Obrigada por ter lido tão verdadeiramente estas quase mil e quinhentas palavras que dedico à quase todas as gotas de chuva que me levaram embora, exceto é claro por aquelas que ardem a pele de tão geladas embora lavem também a alma.
Agradeço a você, leitor, mas também peço desculpas por esta ser uma história sem final. Onde eu estou agora, após minha morte, é do seu dever escolher, assim como o fim dessa história, que pertence tanto a você quanto eu aos céus e às estrelas.