Capítulo 1
Solto a mala sobre a cama e dou um suspiro. Os meus ossos parecem ter sido esmagados por um cavalo. Movo o pescoço de um lado para o outro, estalos fracos tocam os meus ouvidos, o meu corpo relaxa parcialmente. Inclino-me para abrir a mala e remover pelo menos uma roupa. Tiro um vestido amarelo com rosas vermelhas, sem mangas e com um decote em U, ele é colado ao busto até metade do abdômen, em seguida uma saia codê que segue até os joelhos. Coloco a roupa sobre a cama, fecho a mala e caminho em direção ao meu novo banheiro.
Após um banho rápido, o meu corpo está totalmente relaxado e parece novo, com os cabelos úmidos tocando os meus braços nus deixando um frescor em minha pele.
— — minha irmã grita por mim.
Apesar da viagem longa até Austin, não desejava dormir nesse momento, pois isso iria atrapalhar o meu sono durante a noite. Sempre tive dificuldades para dormir, no entanto, tinha os campos e os animais da fazenda para me distrair durante a madrugada. Na cidade grande não haveria passeios durante a noite.
Quando chego à sala não encontro minha irmã, então sigo para o seu quarto e a encontro desesperada na porta do banheiro.
— , minha menstruação veio e não tenho nem um absorvente — murmurou com cara de choro. — Por favor, vai até a farmácia e compra pra mim. Eu sei que você acabou de chegar e não conhece nada, mas a farmácia é na esquina. Você não vai se perder e nem ficar cansada. — Concluiu com as mãos unidas em súplica.
Dou um sorriso doce e aceno enquanto reviro os olhos.
Desde a adolescência, quando nossas regras começavam a vir, acabávamos esquecendo de comprar absorvente e quando era chegada a hora uma de nós tinha que pegar a caminhonete do papai e ir até a cidade. Nenhuma das duas saía feliz de casa, porém, não reclamava.
Pego minha bolsinha tira colo, as chaves de Valerie e saio do apartamento. Pego o elevador, assim que ele chega ao térreo, encontro o simpático porteiro de cabelos grisalhos me dar um aceno. Olho pelo portão e avisto o céu escuro, viro-me para o senhor.
— Boa noite.
— Boa noite, senhorita. — Acenando mais uma vez.
No momento que coloco os meus pés no pátio do prédio um vento frio toca a minha pele, causando um arrepio.
Devia ter colocado um casaco.
Ignoro a brisa gélida e caminho pela calçada. É impossível não admirar os comércios abertos, cheio de pessoas comendo ou bebendo, os carros sempre andando para lá e para cá. Os ônibus levando a população para qualquer lugar. As luzes brilhantes por todos os lados.
Eu sabia que era perceptível a minha falta de experiência em meio a um ambiente tão amplo e cheio de coisas. Meus olhos percorriam cada centímetro do espaço em que andava, por isso, quando me dei conta havia passado uma quadra inteira da farmácia que Val havia me indicado.
Solto um suspiro e viro-me para retornar. Enquanto caminho, agora mais atenta, ouço risadas vindo de um bar. Os meus olhos encontram um grupo de amigos que me encaram, eles estão atentos aos meus movimentos, observando-me da cabeça aos pés. Me incomodo com os olhares, então resolvo ignorá-los e continuo caminhando.
— Ei, moça de vestido — um deles gritou.
Torno a olhá-los e engulo em seco. Olho em volta para ter certeza que estão falando comigo. Não havia nenhuma mulher de vestido, além disso eles estão com os olhos focados em mim em meio a risadas. Me aproximo temerosa e encaro os rostos desconhecidos.
— Eu? — Você mesma — um cara loiro de olhos escuros responde.
Eles continuam a me devorar com os olhos.
— Não quer beber com a gente? — outro cara me questiona, ele tem pele da cor de chocolate, cabeça raspada e olhos cor de mel.
— Não, obrigada.
Quando estava prestes a me virar e seguir meu caminho, o loiro se levantou e segurou o meu braço. O meu corpo se retesa no mesmo instante e uma luz de alerta começa a brilhar em um vermelho gritante. Começo a puxar o braço de seu aperto, com uma dose de pânico em cada partícula do meu corpo.
Então, lembrei. Papai demorou meses para permitir minha saída da fazenda e a única condição que ele impôs foi que praticasse aulas de defesa em uma academia da cidade. Eu não levava jeito para a coisa, porém, havia aprendido a dar um belo chute no meio das pernas de um cara. Meu professor, que o diga.
Preparo meu joelho e quando estou prestes a movimentá-lo uma voz toca os meus ouvidos, ressoando por todo o meu corpo.
— Pode largar a minha namorada?
Desvio os meus olhos do meu braço, erguendo para um rapaz de pele bronzeada, cabelos castanhos longos e olhos tão verdes quanto os campos de onde morava. A sua boca carnuda está em uma linha reta, enquanto as íris verdes demonstram a fúria com a situação.
Ele me chamou de que?
— Foi mal, cara — o loiro murmura um pedido de desculpas, soltando o meu braço no processo e erguendo as mãos em rendimento. — Não sabíamos que ela estava acompanhada.
— Agora sabem — sibila.
O moreno de olhos verdes se aproxima de mim, coloca as mãos em minhas costas e me leva para longe do grupo. Quando estávamos metros de distância, ele remove a mão e dá um suspiro.
— Desculpe pelo namorada — diz, colocando os cabelos para trás com uma das mãos. — Conheço esse tipo de cara. Se não tivesse mentido, se tivesse apenas pedido para que respeitasse a sua vontade, o grupinho iria se juntar e não ia prestar. Nós dois iríamos sair perdendo. — Ia começar a falar sobre o fato de saber me defender e ele não permitiu. — Poderia ter deixado que completasse o seu movimento, mas pode acreditar que não funcionaria com os outros.
Ele tinha razão.
— Obrigada — murmuro, porque não há outra coisa a se dizer para alguém que te ajudou e que você não faz ideia de quem seja. Viro-me para ele e observo sua barba bem feita um tom mais escuro que seu cabelo. Todas as vezes que assistia a filmes ou séries de TV os homens de barba me atraiam mais do que aquele com pele de bebê. Claro que não era uma barba como a do Papai Noel ou aqueles gatos pingados que os caras dizem ser barba.
Ah!
Estou falando pelos cotovelos, ainda bem que é só na minha cabeça, não seria nada agradável expor esses pensamentos bobos para um desconhecido.
O estranho me flagra encarando-o e sorri, imediatamente minhas bochechas esquentam e desvio o olhar para onde devo ir. Noto que a farmácia está logo a frente e me sinto aliviada por não ter me perdido.
— Qual o seu nome? — o moreno questiona, tirando-me do meu devaneio.
— … é… — Mordo o lábio e pego grande parte dos fios do meu cabelo, já quase seco, para tapar o meu rosto. — Na verdade, é , mas prefiro que me chamem de .
Olho-o de esguelha e ele está sorrindo. Paro em frente a farmácia e ele ergue os olhos em confusão.
— Tenho que passar na farmácia. Eu deveria ter vindo até aqui, porém, acabei me distraindo.
Ele pressiona os lábios e foca o olhar em mim.
— Imaginei que não era daqui. — Ergo as sobrancelhas e ele sorri novamente. — O sotaque.
Dou uma risada e coço a ponte do nariz para evitar o seu olhar.
— Vou… — Aponto para a farmácia e ele acena. — Você vai ficar aqui?
— Não sei se é uma boa você caminhar sozinha.
— Ah, não precisa se preocupar. — Olho para minha esquerda e noto que o meu prédio é a três construções de onde estamos. — Moro no quarto prédio.
Ele sorri mais uma vez e me perco por alguns segundos admirando a fileira de dentes brancos e bem alinhados. Sem dúvidas ele havia usado aparelho quando mais novo, ninguém nasce com dentes tão perfeitos. Minha irmã e eu tivemos que usar por quatros anos, cada uma, foi um inferno, esse negócio doía demais.
— Você não perguntou, mas meu nome é . A gente se vê por aí, .
Ele se aproxima e planta um beijo em minha bochecha, minha face esquenta e sinto vontade de cavar um buraco para me esconder. se despede e corro para dentro da farmácia.
Quando cheguei em casa na noite anterior, Val estava chorando dentro do banheiro pensando que havia me perdido ou sido sequestrada. Tranquilizei-a dizendo que só tinha me deslumbrado com tudo e acabei andando demais. Contei sobre os caras que tinham me chamado e ela quase teve um piripaque no meio do quarto, então lhe informei sobre o cara que havia me ajudado a escapar. Ela ficou aliviada, contudo me fez prometer que ia tomar mais cuidado da próxima vez e que evitaria andar a noite sozinha.
— Val, onde fica o piano que você falou?
Ela havia me dito, antes de vir para Austin, que no seu prédio tinha um andar com um piano. Ele não era isolado e nem passava por manutenção, porém quando você não tem condição, o que é jogado nas nossas mãos aceitamos de bom grado.
— No nono andar — responde depois de engolir grande parte dos ovos que havia preparado para ela. — , deveria ter vindo morar comigo a muito tempo. Estava morrendo de saudades de comida feita na hora.
Minha irmã nunca foi de gostar de cozinha, era muito boa em comer, mas em preparar algo era um verdadeiro desastre. Valerie era muito boa com computadores, esse foi o motivo dela ter saído do interior do Texas para a cidade grande. Em pouco tempo conseguiu se mudar de um apartamento minúsculo para algo bem maior e com uma vizinhança bem movimentada. Ela trabalhava com essas coisas de hacker e fazia uns bicos por fora como designer, ou seja, não faltava trabalho para minha irmã mais velha.
Depois que ela se estabilizou, um ano depois de eu ter terminado o colegial, conversei com ela e questionei se não seria um incomodo me ter como colega de quarto. Em seguida conversei com papai e mamãe. Agora, aqui estou eu, me preparando para fazer testes e arrumar algo no ramo da música para poder me virar e ajudar minha irmã com as despesas da casa. Além disso, havia um lado meu que ambicionava fazer uma faculdade de música só para me especializar, até porque sabia que tinha muito para melhorar ainda.
— Vou comer e ir até lá, quero ver em que estado ele está e começar a praticar.
Val acena e sorri sem graça para mim. Termino de comer meu café da manhã, visto um casaco de lã e saio do apartamento. Quando chego ao nono andar dou de cara com um piano solitário em meio a uma sala ampla, logo a direita há uma porta e janelas de vidro expondo a academia do prédio. Não há ninguém à vista. Aproximo-me do piano mogno com sua tampa fechada, deslizo os dedos sobre a superfície e uma camada de poeira toca os meus dedos.
Respiro fundo.
Já esperava por esse descuido, da próxima vez que viesse trataria de trazer algo para limpá-lo. Sento-me na banqueta e ergo a tampa, dedilho os dedos sobre as teclas e me encolho ao constatar que está um pouco desafinado. Ainda assim começo a Arie de Bach, e apesar do incomodo em meus ouvidos consigo desenvolver a melodia.
A sensação que tenho sempre que estou diante do instrumento me toma, o meu corpo parece pairar em um ambiente silencioso onde há apenas a música e eu. Os meus dedos deslizam com destreza por cada tecla, o meu coração parece seguir o mesmo ritmo dos sons como se ele fosse feito de música. As pessoas diziam que alguns nascem para tal coisa e outros aprendem, eu acreditava piamente que havia nascido para isso. O piano era como uma extensão do meu corpo, sentia-me completa ao estar desenvolvendo a música que gritava dentro de mim.
No momento que termino, resolvo tocar uma das minhas músicas favoritas, Need You Now do Lady Antebellum. Eu não possuía uma voz agradável para se ouvir, porém, como estava sozinha resolvo sussurrar a canção. A delicadeza da melodia faz com que um sorriso se forme em meus lábios, os meus olhos se fecham e me entrego ao toque suave até o fim.
Quando encerro a canção, plenamente satisfeita, abro os olhos e ergo-os. Um par de olhos verdes me encaram da porta de vidro da academia, há um sorriso doce em seus lábios. Arfo ao notar que é o mesmo homem que me ajudou noite passada.
Será que ele me seguiu?
Contudo, não poderia ser, pois quando sai da farmácia ele já não se encontrava na rua, havia indo embora e acreditava que jamais o veria novamente. A não ser…
— Estava observando há algum tempo, não queria atrapalhar. — Ele aponta para academia as suas costas. — Ia para a academia. Você deve estar se perguntando porque estou aqui, e acredite, moro aqui assim como você.
Pisco diversas vezes, surpresa demais para poder falar.
— Sem dúvidas você tem um dom, até mesmo para um piano descuidado como esse. — Ele morde o lábio inferior e os meus olhos se focam nessa região por alguns segundos, no entanto, quando percebo o que estou fazendo desvio a visão da carne macia e minha face esquenta. — Tenho um piano afinado e bem cuidado no meu apartamento, caso não queira ter de utilizar esse, poderia ir lá todas as manhãs para praticar.
— Você toca? — minha voz sai tímida e rouca.
— Não. — Ele engole em seco, contudo, não continua.
Nos encaramos pelo o que parecem horas, então resolvo quebrar o silêncio.
— Obrigada, vou pensar na sua oferta. — Levanto-me, preparando-me para ir ao meu apartamento.
— Moro no 701 — murmura assim que aperto o botão do elevador. Viro-me e aceno em agradecimento mais uma vez, quando o elevador chega entro nele sem pressa, porém, quando as portas se fecham solto a respiração que não fazia ideia que prendia. Céus! Não sabia o que me deixava mais nervosa, se era o seu corpo delineado, cabelos castanhos até os ombros ou os grandes olhos verdes que se assemelhavam a grama do campo. Ou, então, o simples fato dele morar no mesmo andar que eu.
Após um banho rápido, o meu corpo está totalmente relaxado e parece novo, com os cabelos úmidos tocando os meus braços nus deixando um frescor em minha pele.
— — minha irmã grita por mim.
Apesar da viagem longa até Austin, não desejava dormir nesse momento, pois isso iria atrapalhar o meu sono durante a noite. Sempre tive dificuldades para dormir, no entanto, tinha os campos e os animais da fazenda para me distrair durante a madrugada. Na cidade grande não haveria passeios durante a noite.
Quando chego à sala não encontro minha irmã, então sigo para o seu quarto e a encontro desesperada na porta do banheiro.
— , minha menstruação veio e não tenho nem um absorvente — murmurou com cara de choro. — Por favor, vai até a farmácia e compra pra mim. Eu sei que você acabou de chegar e não conhece nada, mas a farmácia é na esquina. Você não vai se perder e nem ficar cansada. — Concluiu com as mãos unidas em súplica.
Dou um sorriso doce e aceno enquanto reviro os olhos.
Desde a adolescência, quando nossas regras começavam a vir, acabávamos esquecendo de comprar absorvente e quando era chegada a hora uma de nós tinha que pegar a caminhonete do papai e ir até a cidade. Nenhuma das duas saía feliz de casa, porém, não reclamava.
Pego minha bolsinha tira colo, as chaves de Valerie e saio do apartamento. Pego o elevador, assim que ele chega ao térreo, encontro o simpático porteiro de cabelos grisalhos me dar um aceno. Olho pelo portão e avisto o céu escuro, viro-me para o senhor.
— Boa noite.
— Boa noite, senhorita. — Acenando mais uma vez.
No momento que coloco os meus pés no pátio do prédio um vento frio toca a minha pele, causando um arrepio.
Devia ter colocado um casaco.
Ignoro a brisa gélida e caminho pela calçada. É impossível não admirar os comércios abertos, cheio de pessoas comendo ou bebendo, os carros sempre andando para lá e para cá. Os ônibus levando a população para qualquer lugar. As luzes brilhantes por todos os lados.
Eu sabia que era perceptível a minha falta de experiência em meio a um ambiente tão amplo e cheio de coisas. Meus olhos percorriam cada centímetro do espaço em que andava, por isso, quando me dei conta havia passado uma quadra inteira da farmácia que Val havia me indicado.
Solto um suspiro e viro-me para retornar. Enquanto caminho, agora mais atenta, ouço risadas vindo de um bar. Os meus olhos encontram um grupo de amigos que me encaram, eles estão atentos aos meus movimentos, observando-me da cabeça aos pés. Me incomodo com os olhares, então resolvo ignorá-los e continuo caminhando.
— Ei, moça de vestido — um deles gritou.
Torno a olhá-los e engulo em seco. Olho em volta para ter certeza que estão falando comigo. Não havia nenhuma mulher de vestido, além disso eles estão com os olhos focados em mim em meio a risadas. Me aproximo temerosa e encaro os rostos desconhecidos.
— Eu? — Você mesma — um cara loiro de olhos escuros responde.
Eles continuam a me devorar com os olhos.
— Não quer beber com a gente? — outro cara me questiona, ele tem pele da cor de chocolate, cabeça raspada e olhos cor de mel.
— Não, obrigada.
Quando estava prestes a me virar e seguir meu caminho, o loiro se levantou e segurou o meu braço. O meu corpo se retesa no mesmo instante e uma luz de alerta começa a brilhar em um vermelho gritante. Começo a puxar o braço de seu aperto, com uma dose de pânico em cada partícula do meu corpo.
Então, lembrei. Papai demorou meses para permitir minha saída da fazenda e a única condição que ele impôs foi que praticasse aulas de defesa em uma academia da cidade. Eu não levava jeito para a coisa, porém, havia aprendido a dar um belo chute no meio das pernas de um cara. Meu professor, que o diga.
Preparo meu joelho e quando estou prestes a movimentá-lo uma voz toca os meus ouvidos, ressoando por todo o meu corpo.
— Pode largar a minha namorada?
Desvio os meus olhos do meu braço, erguendo para um rapaz de pele bronzeada, cabelos castanhos longos e olhos tão verdes quanto os campos de onde morava. A sua boca carnuda está em uma linha reta, enquanto as íris verdes demonstram a fúria com a situação.
Ele me chamou de que?
— Foi mal, cara — o loiro murmura um pedido de desculpas, soltando o meu braço no processo e erguendo as mãos em rendimento. — Não sabíamos que ela estava acompanhada.
— Agora sabem — sibila.
O moreno de olhos verdes se aproxima de mim, coloca as mãos em minhas costas e me leva para longe do grupo. Quando estávamos metros de distância, ele remove a mão e dá um suspiro.
— Desculpe pelo namorada — diz, colocando os cabelos para trás com uma das mãos. — Conheço esse tipo de cara. Se não tivesse mentido, se tivesse apenas pedido para que respeitasse a sua vontade, o grupinho iria se juntar e não ia prestar. Nós dois iríamos sair perdendo. — Ia começar a falar sobre o fato de saber me defender e ele não permitiu. — Poderia ter deixado que completasse o seu movimento, mas pode acreditar que não funcionaria com os outros.
Ele tinha razão.
— Obrigada — murmuro, porque não há outra coisa a se dizer para alguém que te ajudou e que você não faz ideia de quem seja. Viro-me para ele e observo sua barba bem feita um tom mais escuro que seu cabelo. Todas as vezes que assistia a filmes ou séries de TV os homens de barba me atraiam mais do que aquele com pele de bebê. Claro que não era uma barba como a do Papai Noel ou aqueles gatos pingados que os caras dizem ser barba.
Ah!
Estou falando pelos cotovelos, ainda bem que é só na minha cabeça, não seria nada agradável expor esses pensamentos bobos para um desconhecido.
O estranho me flagra encarando-o e sorri, imediatamente minhas bochechas esquentam e desvio o olhar para onde devo ir. Noto que a farmácia está logo a frente e me sinto aliviada por não ter me perdido.
— Qual o seu nome? — o moreno questiona, tirando-me do meu devaneio.
— … é… — Mordo o lábio e pego grande parte dos fios do meu cabelo, já quase seco, para tapar o meu rosto. — Na verdade, é , mas prefiro que me chamem de .
Olho-o de esguelha e ele está sorrindo. Paro em frente a farmácia e ele ergue os olhos em confusão.
— Tenho que passar na farmácia. Eu deveria ter vindo até aqui, porém, acabei me distraindo.
Ele pressiona os lábios e foca o olhar em mim.
— Imaginei que não era daqui. — Ergo as sobrancelhas e ele sorri novamente. — O sotaque.
Dou uma risada e coço a ponte do nariz para evitar o seu olhar.
— Vou… — Aponto para a farmácia e ele acena. — Você vai ficar aqui?
— Não sei se é uma boa você caminhar sozinha.
— Ah, não precisa se preocupar. — Olho para minha esquerda e noto que o meu prédio é a três construções de onde estamos. — Moro no quarto prédio.
Ele sorri mais uma vez e me perco por alguns segundos admirando a fileira de dentes brancos e bem alinhados. Sem dúvidas ele havia usado aparelho quando mais novo, ninguém nasce com dentes tão perfeitos. Minha irmã e eu tivemos que usar por quatros anos, cada uma, foi um inferno, esse negócio doía demais.
— Você não perguntou, mas meu nome é . A gente se vê por aí, .
Ele se aproxima e planta um beijo em minha bochecha, minha face esquenta e sinto vontade de cavar um buraco para me esconder. se despede e corro para dentro da farmácia.
Quando cheguei em casa na noite anterior, Val estava chorando dentro do banheiro pensando que havia me perdido ou sido sequestrada. Tranquilizei-a dizendo que só tinha me deslumbrado com tudo e acabei andando demais. Contei sobre os caras que tinham me chamado e ela quase teve um piripaque no meio do quarto, então lhe informei sobre o cara que havia me ajudado a escapar. Ela ficou aliviada, contudo me fez prometer que ia tomar mais cuidado da próxima vez e que evitaria andar a noite sozinha.
— Val, onde fica o piano que você falou?
Ela havia me dito, antes de vir para Austin, que no seu prédio tinha um andar com um piano. Ele não era isolado e nem passava por manutenção, porém quando você não tem condição, o que é jogado nas nossas mãos aceitamos de bom grado.
— No nono andar — responde depois de engolir grande parte dos ovos que havia preparado para ela. — , deveria ter vindo morar comigo a muito tempo. Estava morrendo de saudades de comida feita na hora.
Minha irmã nunca foi de gostar de cozinha, era muito boa em comer, mas em preparar algo era um verdadeiro desastre. Valerie era muito boa com computadores, esse foi o motivo dela ter saído do interior do Texas para a cidade grande. Em pouco tempo conseguiu se mudar de um apartamento minúsculo para algo bem maior e com uma vizinhança bem movimentada. Ela trabalhava com essas coisas de hacker e fazia uns bicos por fora como designer, ou seja, não faltava trabalho para minha irmã mais velha.
Depois que ela se estabilizou, um ano depois de eu ter terminado o colegial, conversei com ela e questionei se não seria um incomodo me ter como colega de quarto. Em seguida conversei com papai e mamãe. Agora, aqui estou eu, me preparando para fazer testes e arrumar algo no ramo da música para poder me virar e ajudar minha irmã com as despesas da casa. Além disso, havia um lado meu que ambicionava fazer uma faculdade de música só para me especializar, até porque sabia que tinha muito para melhorar ainda.
— Vou comer e ir até lá, quero ver em que estado ele está e começar a praticar.
Val acena e sorri sem graça para mim. Termino de comer meu café da manhã, visto um casaco de lã e saio do apartamento. Quando chego ao nono andar dou de cara com um piano solitário em meio a uma sala ampla, logo a direita há uma porta e janelas de vidro expondo a academia do prédio. Não há ninguém à vista. Aproximo-me do piano mogno com sua tampa fechada, deslizo os dedos sobre a superfície e uma camada de poeira toca os meus dedos.
Respiro fundo.
Já esperava por esse descuido, da próxima vez que viesse trataria de trazer algo para limpá-lo. Sento-me na banqueta e ergo a tampa, dedilho os dedos sobre as teclas e me encolho ao constatar que está um pouco desafinado. Ainda assim começo a Arie de Bach, e apesar do incomodo em meus ouvidos consigo desenvolver a melodia.
A sensação que tenho sempre que estou diante do instrumento me toma, o meu corpo parece pairar em um ambiente silencioso onde há apenas a música e eu. Os meus dedos deslizam com destreza por cada tecla, o meu coração parece seguir o mesmo ritmo dos sons como se ele fosse feito de música. As pessoas diziam que alguns nascem para tal coisa e outros aprendem, eu acreditava piamente que havia nascido para isso. O piano era como uma extensão do meu corpo, sentia-me completa ao estar desenvolvendo a música que gritava dentro de mim.
No momento que termino, resolvo tocar uma das minhas músicas favoritas, Need You Now do Lady Antebellum. Eu não possuía uma voz agradável para se ouvir, porém, como estava sozinha resolvo sussurrar a canção. A delicadeza da melodia faz com que um sorriso se forme em meus lábios, os meus olhos se fecham e me entrego ao toque suave até o fim.
Quando encerro a canção, plenamente satisfeita, abro os olhos e ergo-os. Um par de olhos verdes me encaram da porta de vidro da academia, há um sorriso doce em seus lábios. Arfo ao notar que é o mesmo homem que me ajudou noite passada.
Será que ele me seguiu?
Contudo, não poderia ser, pois quando sai da farmácia ele já não se encontrava na rua, havia indo embora e acreditava que jamais o veria novamente. A não ser…
— Estava observando há algum tempo, não queria atrapalhar. — Ele aponta para academia as suas costas. — Ia para a academia. Você deve estar se perguntando porque estou aqui, e acredite, moro aqui assim como você.
Pisco diversas vezes, surpresa demais para poder falar.
— Sem dúvidas você tem um dom, até mesmo para um piano descuidado como esse. — Ele morde o lábio inferior e os meus olhos se focam nessa região por alguns segundos, no entanto, quando percebo o que estou fazendo desvio a visão da carne macia e minha face esquenta. — Tenho um piano afinado e bem cuidado no meu apartamento, caso não queira ter de utilizar esse, poderia ir lá todas as manhãs para praticar.
— Você toca? — minha voz sai tímida e rouca.
— Não. — Ele engole em seco, contudo, não continua.
Nos encaramos pelo o que parecem horas, então resolvo quebrar o silêncio.
— Obrigada, vou pensar na sua oferta. — Levanto-me, preparando-me para ir ao meu apartamento.
— Moro no 701 — murmura assim que aperto o botão do elevador. Viro-me e aceno em agradecimento mais uma vez, quando o elevador chega entro nele sem pressa, porém, quando as portas se fecham solto a respiração que não fazia ideia que prendia. Céus! Não sabia o que me deixava mais nervosa, se era o seu corpo delineado, cabelos castanhos até os ombros ou os grandes olhos verdes que se assemelhavam a grama do campo. Ou, então, o simples fato dele morar no mesmo andar que eu.
Capítulo 2
Assim que entro no apartamento, minha irmã nota que estou diferente. Não preciso de um espelho para afirmar que devo estar pálida e assustada. Depois que o elevador parou no meu andar, tive uma leve queda de pressão. Ainda não posso acreditar que aquele homem mora no mesmo prédio que eu, além do mais no mesmo andar.
— Você tá bem?
Minha irmã se aproxima e pega minha mão para verificar o meu pulso, quando constata que está acelerado, resolve me levar até o sofá. Em seguida, ela se levanta para pegar um copo d’água, assim que retorna coloco a matraca para funcionar e conto tudo que acabou de acontecer.
— Ah, sei quem é — diz alegremente. — Ele mora com o irmão mais velho aqui há mais tempo que eu, parecem ser gente fina.
Aceno. Porque não tenho nada para dizer. Um homem lindo estava aparecendo para mim constantemente – dois dias seguidos – e eu estava surtando. Não era incomum receber atenção de rapazes onde morava, haviam muitos caras bonitos por lá, mas... Não sei... Não faço ideia nem do que quero explicar. Talvez ele tenha sido gentil na hora certa e isso chamou minha atenção, não poderia ser apenas beleza.
— Se ele foi gentil de convidar para tocar em um piano bom, você deveria aceitar. — Mordo o lábio inferior, sem saber o que dizer. Val aperta minha mão para chamar minha atenção e quando os meus olhos se focam no seu rosto, há um sorriso meigo em seus lábios. — Se ele tentar alguma coisa você sempre pode gritar, estou aqui do lado mesmo e como trabalho em casa não haverá problemas.
Gemo em protesto.
— Não sei, Val. Papai disse que não devia confiar nos homens. — Ela revira os olhos.
— Fala sério, . — Me encolho ao ouvir meu nome inteiro. — O cara te ajudou ontem, te livrou de uns idiotas, dê um crédito para ele. Nunca o ouvi tocar o piano, no entanto, quando fui entregar a correspondência dele, porque colocaram errado junto com a minha, vi mesmo que tinha um piano. Então ele não tava mentindo sobre, talvez só queira ajudar você.
— Você tem razão. — Dou um suspiro. — Vou parar de ouvir a voz do papai na minha cabeça.
Ela dá uma gargalhada e me puxa para os seus braços.
— Ainda bem que tem a mim, não tive ninguém pra tirar a voz dele da minha cabeça.
No outro dia, acordei com a voz de na minha mente e a afirmação da minha irmã que o melhor a se fazer era a aceitar a proposta dele. Porém, eu era teimosa e preferia recorrer ao piano malcuidado do nono andar. Preparei o café da manhã, comi e deixei a parte de Val dentro do micro-ondas. Segui para o elevador e quando ele chegou ao meu destino, encarei o piano empoeirado, lembrando-me dos ruídos desagradáveis e resolvi apertar o botão para o meu andar mais uma vez.
Não sei que força e coragem surgiu dentro de mim, entretanto, assim que cheguei a porta do 701 apertei a campainha torcendo para que não tivesse ninguém em casa. Contudo, a porta foi aberta e fui recepcionada pelo mesmo homem de olhos verdes e cabelos compridos, um sorriso estonteante se formou em sua boca bem desenhada.
— Pensei que não viria. — Ele escancara a porta, acenando para que entre. Os meus olhos encontram o piano negro que parece brilhar no fundo do apartamento. — Vou até a academia, mas pode ficar à vontade, voltarei em duas horas.
Viro-me para ele e sorrio em agradecimento. Ele sai do apartamento deixando o som abafado da porta se fechando, em seguida volto-me para o piano e é impossível controlar a animação em meu sangue. Quando chego ao lado dele, logo ergo a tampa e toco as teclas, o toque suave preenche os meus ouvidos e quase sinto vontade de chorar. É ainda melhor que o que tenho em casa. Sento-me e começo a tocar.
Não sei quantas melodias de Bach toco, talvez todas que me lembro de cabeça. Arie continua sendo minha favorita de todas elas, então acabo tocando-a três vezes. Após o meu momento de diversão, resolvo tocar músicas populares. Adorava me perder nos clássicos, fazia-me sentir-me completa, contudo, não era esse tipo de melodia que poderia me arrumar um emprego.
Músicos não possuem muitas oportunidades na vida, a não ser que possuísse um talento além do natural reconhecido por alguém de posses, que possa propor uma carreira. Todos possuíam um sonho e eu tinha o de tocar em uma orquestra, nunca fui a um teatro para assistir, porém, pude contemplar um espetáculo em um filme, fiquei completamente encantada. Está ali, no centro de um palco proporcionando a mais bela melodia para os ouvintes.
A música popular não era menor e ai de mim afirmar tal coisa, só me identificava mais com os clássicos. Costumava tocá-las quando tínhamos festas em família, feriados, nos quais teriam vários membros cantando. Mamãe tinha uma bela voz, o que me animava para tocar as mais variadas canções.
Inicio Never Gonna Be Alone do Nickelback e tento imaginar a voz da minha mãe. Ouvi-la fazia com que os dedos se movessem com mais destreza e muito mais prazer. Entretanto, quando estava perto do fim uma voz masculina tomou o ambiente me assustado. Parei de tocar imediatamente.
— Por que parou? — estava parado no centro da sua sala de estar com uma garrafa em uma das mãos.
— Me assustei.
— Desculpe, não era minha intenção. — Ele se coloca ao lado do piano e se inclina sobre ele. — Poderia tocar essa de novo?
Aceno.
Começo a canção novamente e o tenor de preenche as paredes juntamente com a melodia. Os seus olhos se fecham enquanto a letra da música flui de sua garganta, como se fosse algo que faz parte de si. Então, percebo, a música era uma extensão dele, assim como era para mim, no entanto, não era por meio de instrumento externo e sim com suas cordas vocais.
Quando termino a melodia, abre os olhos e sorri timidamente.
— Você é cantor? — questiono.
— Vamos dizer que sim.
— Por que não disse?
Ele se afasta, vira-se de costas e depois torna a me encarar.
— Não sabia que era importante. Além disso, costumo cantar apenas com a banda de onde trabalho.
— Você trabalha cantando? — minha voz sai aguda e alta demais.
— Muitas perguntas — murmura em meio a uma risada.
— Perdão.
se aproxima mais uma vez e me puxa para que fique diante dele, de pé. Suas mãos nas minhas é como um choque elétrico na minha pele, mas ele não parece ter sentido o mesmo. Completamente inabalável.
Os nossos olhos se encontram e deixo me perder nos grandes círculos verdes que parecem ler dentro da minha alma. Era como olhar para os campos, e apesar de estar na cidade há apenas três dias, sentia falta de tudo. O cheiro da comida da mamãe, o canto do galo logo cedo, papai me chamando para ajudá-lo com o leite e as noites diante da extensão do meu corpo, me derramando nas inúmeras canções existentes pelo mundo com partituras espalhadas por todo canto.
Entretanto, ficar perto de fazia com que a saudade diminuísse e doesse menos, apenas com os olhos grudados nos seus. Não podia sentir o cheiro do campo, porém, poderia forjar os meus pensamentos, fazendo me iludir que estava lá e que o cheiro havia se modificado um pouco. Não queria voltar para lá, mas não era pecado sentir falta de tudo de bom que a fazenda me proporcionava.
— Não precisa se desculpar. Você não me conhece, eu não te conheço, mas de alguma forma temos uma ligação. — Ele volta os olhos para o piano e depois para mim. — A música. Por isso sugeri que o usasse esse piano, o som daquele era terrível.
Agora fazia sentido ter me convidado. Era cruel para alguém que entende de música ver o outro utilizando tal instrumento. Uma parte de mim se perguntava porque ele possuía um piano se não podia tocar ou ao menos sabia. No entanto, já havia feito perguntas demais e não queria ser expulsa de sua casa por invadir sua privacidade. Me surpreendia por ele ter me deixado sozinha aqui, estava contente por ter ganhado sua confiança de repente.
— Você pode vir todos os dias que quiser e passar quanto tempo precisar. Caso precise de ajuda em algo é só falar — diz, se afastando mais uma vez, agora se direcionando a cozinha.
— Na verdade, talvez possa me ajudar. — Encosto-me no balcão que divide a cozinha da sala. — Estou querendo um emprego, mas como cheguei a pouco tempo não conheço ninguém. Você é o primeiro, além do mais está envolvido com o ramo que quero trabalhar.
Ele bebe um copo de água e parece refletir sobre o meu pedido.
— Posso ver o que consigo. Não será fácil. Se não tivéssemos um pianista na banda poderia falar com o meu chefe, mas infelizmente não está vago.
— Está tudo bem, o que aparecer é lucro. — acena e caminha para uma das portas fechadas.
— Por que não continua tocando? Vou tomar um banho e logo estarei aqui, talvez possamos treinar um pouco. — Ele pisca para mim e mordo o lábio para evitar um sorriso.
Sento-me sobre a banqueta de novo, o ruído do banheiro toca os meus ouvidos e início Arie mais uma vez.
Os meses que se passaram correram a galope. havia conseguido um emprego para mim em um restaurante renomado que era próximo do nosso prédio, tornando fácil o meu deslocamento. Tocava quase todas as noites e saía tarde do trabalho, porém, sempre estava à minha espera. Eu sabia que ele devia trabalhar até quase de manhã, já que o bar ficava aberto até de manhã, no entanto, não deixava de ir me buscar um só dia.
Nós conversávamos sobre tudo um pouco e claro que o maior dos assuntos sempre era música. me pedia para tocar canções que ele teria de ensaiar com a banda, o que não fazia sentido, pois ele poderia fazer com eles. Foi assim que coloquei minha cabeça para trabalhar, juntamente com os avisos de Valerie. estava interessado em mim. Simples assim.
Seria tola ao dizer que não havia algo acontecendo. Tínhamos uma ligação, vivíamos juntos em nossos momentos livres, fui convidada para jantar em suas noites livres, conheci o seu irmão e estávamos cada vez mais um na vida um do outro. Gostava dele, ficava encantada com a sua gentileza e adorava encará-lo enquanto não estava olhando. Por Deus, ele era lindo! Como não encararia? Era notável a atenção das mulheres quando caminhávamos juntos na rua, porém, ele não se abalava e continuava conversando comigo, sem dar atenção a nenhuma delas.
Minha irmã falou que deveria tomar a atitude, mas como tomaria atitude de algo se nem sabia o que estava sentindo? Não queria ficar longe dele, disso tinha certeza. Eu poderia arriscar, entretanto, se não desse certo? O que seria da amizade que tínhamos construído? Vi filmes suficientes para afirmar que uma amizade acaba quando o relacionamento acaba, salvo as exceções, e não acreditava que éramos uma exceção.
Aqui estou eu, mais uma vez em seu apartamento, como todos os dias dos últimos meses. Não iria trabalhar hoje, então vim mais tarde e usei a chave que havia me dado. Era fim de tarde e ele não estava em casa, comecei a tocar o meu vício diário e depois conferi as partituras que estava sobre o piano. Ele havia deixado mais uma canção para mim, Take Me Home da Jess Glynne. Já havia escutado umas duas vezes, então, demorei meia hora para conseguir tocá-la inteira.
A porta do apartamento é aberta no momento que estou finalizando a música. entra com um sorriso nos lábios e uma mulher de cabelos negros e olhos escuros está com ele. No mesmo instante, o sorriso que estava colado em meu rosto por ter conseguido tocar a música se desfaz e uma queimação no meu peito faz com que os meus olhos se encham de lágrimas, engulo em seco e respiro fundo. O que é isso?
— ! — exclama quando me vê, ele vira-se para a mulher ao seu lado. — Está é Becky, ela toca guitarra na banda. Becky, essa é a .
— Prazer em finalmente conhecê-la, . Sorrio timidamente. Ele falou de mim para ela. A queimação no meu peito se vai e os olhos marejados parecem secar em modo flash. As dúvidas que haviam na minha cabeça evaporaram e tudo se confirma como em um passe de mágicas. Estava apaixonada por . Era isso. Demorei para perceber, mas bastou vê-lo com outra que os sentimentos afloraram e o medo de vê-lo com outra tomou conta de mim.
Becky pega uma caixa que está no balcão da cozinha e se despede, deixando-nos a sós. me encara pelos cílios escuros, é possível que tenha percebido o meu ciúme silencioso, nunca fui boa em esconder os meus sentimentos.
— Tenho uma surpresa pra você — afirma, erguendo a cabeça e tirando um pen drive do bolso da calça, caminha até a TV grudada na parede da sala, pluga o pen drive e liga o aparelho. Enquanto ele trabalha com os botões do controle remoto um frio na barriga perpassa por mim, hoje deveria abrir o meu coração para ele. Não tinha ideia do que falar ou como organizar os meus pensamentos, então recorreria ao improviso, assim não ficaria ainda mais ansiosa.
coloca um vídeo e fico extasiada no momento que reconheço o seu piano, os meus dedos deslizando sobre as teclas e Arie saindo pelos alto falantes da TV. Choque. É a primeira coisa que sinto no momento que constato que fui filmada tocando, depois uma emoção toma conta de mim ao perceber o quanto desejava um vídeo desses. O que me deixa ainda mais surpresa é que o áudio está tão limpo que me deixa estupefata.
— Limpei o áudio, deu bastante trabalho, mas com alguma ajuda da sua irmã...
— Val? — Encaro-o surpresa.
— Sim. — Ele sorri. — Ela me deu algumas dicas sobre limpar o som por completo, programas e tudo mais. Valerie faz de tudo um pouco.
Minha irmã só precisava de um computador, se ela não sabia de algo, descobria.
— Eu sei que futuramente você pensava em entrar numa faculdade de música, mas porque não agora? Com o talento que tem pode conseguir uma bolsa. Não perca essa oportunidade, .
Ele se aproxima, pega minhas mãos e planta um beijo em cada uma delas. O gesto terno me faz derreter imediatamente, o momento perfeito para falar sobre os meus sentimentos. No entanto, no momento que estou prestes a falar, ele se pronuncia:
— Vamos dançar? — questiona com os olhos brilhando, apenas aceno.
Arie preenche os nossos ouvidos e seguimos o compasso suave da música. Deito minha cabeça em seu ombro e sua respiração toca o meu pescoço, solto um suspiro suave quando envolve minha cintura, nos aproximando ainda mais. Ergo a cabeça para observá-lo, nossos olhos se encontram e parecem hipnotizados. Não consigo desviar.
É quando acontece.
aproxima o seu rosto do meu, instantaneamente fecho os olhos e sinto a pressão de seus lábios nos meus. Sem movimentos de ambas as partes, apenas lábios colados um no outro. Então, se afasta lentamente, quando nossos olhos se encontram mais uma vez noto o quanto está preocupado. Será que fiz algo errado?
— Eu... Eu não deveria... — gagueja. Nunca o vi gaguejar, em todos os meses que nos conhecíamos. Foi assim que percebi que estava apaixonada por esse homem, não apenas interessada. E foi assim que confirmei que ele também estava apaixonado por mim.
De modo impulsivo, colei a minha boca na sua, e apesar de surpreso, abriu os lábios e aprofundou o beijo. O meu peito parecia uma sinfonia apressada, como uma melodia alegre tocando por todo o meu corpo.
— Como desejei isso — murmura quando nossas bocas se afastam uma da outra. Sorrio de olhos fechados, ergo os braços e envolvo o seu pescoço, me derramando no fim da melodia que toca ao fundo.
Após nossa dança, preparou algumas almofadas e cobertores na varanda para que observássemos o céu estrelado. Eu estava deitada sobre o seu peito enquanto ele acariciava o meu braço delicadamente. Não tínhamos falado nada sobre o que sentíamos, apenas nos beijamos e acredito que foi quase suficiente para sabermos o que sentíamos. Porém, esse momento era crucial para o que quer que estivéssemos iniciando.
— Acho que estou apaixonada por você — quebro o silêncio. Ele para de acariciar o meu braço, ergo a cabeça a tempo de vê-lo soltando um suspiro de alivio.
— Não tem ideia de como me sinto aliviado com essa afirmação. — Ele sorri timidamente e por alguns minutos me perco em seu sorriso. — Tem ideia de como tem sido difícil esconder os meus sentimentos?
Dou uma risada e planto um beijo em sua bochecha.
— Você é péssimo. — As suas bochechas ficam carmim, no entanto, ele esconde sua vergonha puxando-me para um beijo rápido.
— Fico feliz de ser péssimo, mas correspondido. — me abraça apertado e volto a deitar sobre o seu peito, ouvindo a batida rápida de seu coração. — Quando percebeu?
— Não sei. Acho que foi gradativamente. Quando descobri que morávamos no mesmo prédio e andar, se tornou algo real, havia me encantado por ter me ajudado na noite anterior. E convenhamos, você é lindo. — Escondo o meu rosto em seu pescoço.
Ele dá uma gargalhada e beija os meus cabelos. Saio do meu esconderijo e apoio a cabeça em seu peito para observá-lo. Há um vinco entre suas sobrancelhas, ele está mordendo a bochecha fazendo com que um bico se forme com sua boca, deixando-o adoravelmente encantador.
— Acho que quando a vi tocando naquele piano terrível, naquele momento não pude desviar os meus olhos. A música está tão tatuada em você que me vi apaixonado pela combinação, com o tempo me apaixonei apenas pelo fato de ser você. Precisava torná-la presente na minha vida, convidar você para tocar aqui foi uma das coisas que pensei na hora. Além disso, você me lembrou a minha mãe.
Fiquei tensa no mesmo instante. nunca falava da sua mãe, nem mesmo havia tocado no assunto. O seu irmão, Luka, tinha comentado que ela havia morrido em um acidente de carro e que não gostava de falar a respeito, pois ele e a mãe tinham uma ligação muito forte.
— Ela tocava piano, por isso temos um. Nunca consegui me desfazer, era como ter ela aqui. É difícil se desligar de algo que tem uma ligação tão emocional. Por causa do seu amor pela música, das tardes ouvindo-a cantar, que me conectei com esse mundo e comecei a cantar. Pesquisava partituras na internet para que ela tocasse enquanto cantava. Nossas tardes se resumiam nisso. — Ele engole em seco. — Quando ela se foi, continuei cantando. Mergulhei na música, muitas vezes pensando no sorriso dela enquanto me via cantar. Com o tempo fui melhorando, mas nunca estive cem por cento bem. — olha para mim, desliza o polegar sobre a minha bochecha direita e sorri delicadamente. — Quando vi você tocando, foi como uma chama reacendendo na minha vida. E a cada momento que passávamos e passamos juntos, é como uma pomada cicatrizante. Eu sei que sempre vai doer não ter ela ao meu lado, no entanto, com você comigo tem sido mais fácil.
Seco uma lágrima que rola pelo o meu rosto e sorrio. Beijo a ponta do nariz de e ele sorri abertamente, mostrando os seus lindos dentes e grandes olhos verdes brilhando como dois faróis. O meu coração falhou uma batida com a tristeza em seus olhos alguns segundos atrás, contudo, agora ele se acelerava ao constatar o bem que havia feito para ele.
A música nos conectou de uma forma que não esperávamos. Ela salva vidas, sem que precise pedir resgate.
— Você foi o anjo enviado pela minha mãe — completa e logo em seguida cola os lábios nos meus.
— Você tá bem?
Minha irmã se aproxima e pega minha mão para verificar o meu pulso, quando constata que está acelerado, resolve me levar até o sofá. Em seguida, ela se levanta para pegar um copo d’água, assim que retorna coloco a matraca para funcionar e conto tudo que acabou de acontecer.
— Ah, sei quem é — diz alegremente. — Ele mora com o irmão mais velho aqui há mais tempo que eu, parecem ser gente fina.
Aceno. Porque não tenho nada para dizer. Um homem lindo estava aparecendo para mim constantemente – dois dias seguidos – e eu estava surtando. Não era incomum receber atenção de rapazes onde morava, haviam muitos caras bonitos por lá, mas... Não sei... Não faço ideia nem do que quero explicar. Talvez ele tenha sido gentil na hora certa e isso chamou minha atenção, não poderia ser apenas beleza.
— Se ele foi gentil de convidar para tocar em um piano bom, você deveria aceitar. — Mordo o lábio inferior, sem saber o que dizer. Val aperta minha mão para chamar minha atenção e quando os meus olhos se focam no seu rosto, há um sorriso meigo em seus lábios. — Se ele tentar alguma coisa você sempre pode gritar, estou aqui do lado mesmo e como trabalho em casa não haverá problemas.
Gemo em protesto.
— Não sei, Val. Papai disse que não devia confiar nos homens. — Ela revira os olhos.
— Fala sério, . — Me encolho ao ouvir meu nome inteiro. — O cara te ajudou ontem, te livrou de uns idiotas, dê um crédito para ele. Nunca o ouvi tocar o piano, no entanto, quando fui entregar a correspondência dele, porque colocaram errado junto com a minha, vi mesmo que tinha um piano. Então ele não tava mentindo sobre, talvez só queira ajudar você.
— Você tem razão. — Dou um suspiro. — Vou parar de ouvir a voz do papai na minha cabeça.
Ela dá uma gargalhada e me puxa para os seus braços.
— Ainda bem que tem a mim, não tive ninguém pra tirar a voz dele da minha cabeça.
No outro dia, acordei com a voz de na minha mente e a afirmação da minha irmã que o melhor a se fazer era a aceitar a proposta dele. Porém, eu era teimosa e preferia recorrer ao piano malcuidado do nono andar. Preparei o café da manhã, comi e deixei a parte de Val dentro do micro-ondas. Segui para o elevador e quando ele chegou ao meu destino, encarei o piano empoeirado, lembrando-me dos ruídos desagradáveis e resolvi apertar o botão para o meu andar mais uma vez.
Não sei que força e coragem surgiu dentro de mim, entretanto, assim que cheguei a porta do 701 apertei a campainha torcendo para que não tivesse ninguém em casa. Contudo, a porta foi aberta e fui recepcionada pelo mesmo homem de olhos verdes e cabelos compridos, um sorriso estonteante se formou em sua boca bem desenhada.
— Pensei que não viria. — Ele escancara a porta, acenando para que entre. Os meus olhos encontram o piano negro que parece brilhar no fundo do apartamento. — Vou até a academia, mas pode ficar à vontade, voltarei em duas horas.
Viro-me para ele e sorrio em agradecimento. Ele sai do apartamento deixando o som abafado da porta se fechando, em seguida volto-me para o piano e é impossível controlar a animação em meu sangue. Quando chego ao lado dele, logo ergo a tampa e toco as teclas, o toque suave preenche os meus ouvidos e quase sinto vontade de chorar. É ainda melhor que o que tenho em casa. Sento-me e começo a tocar.
Não sei quantas melodias de Bach toco, talvez todas que me lembro de cabeça. Arie continua sendo minha favorita de todas elas, então acabo tocando-a três vezes. Após o meu momento de diversão, resolvo tocar músicas populares. Adorava me perder nos clássicos, fazia-me sentir-me completa, contudo, não era esse tipo de melodia que poderia me arrumar um emprego.
Músicos não possuem muitas oportunidades na vida, a não ser que possuísse um talento além do natural reconhecido por alguém de posses, que possa propor uma carreira. Todos possuíam um sonho e eu tinha o de tocar em uma orquestra, nunca fui a um teatro para assistir, porém, pude contemplar um espetáculo em um filme, fiquei completamente encantada. Está ali, no centro de um palco proporcionando a mais bela melodia para os ouvintes.
A música popular não era menor e ai de mim afirmar tal coisa, só me identificava mais com os clássicos. Costumava tocá-las quando tínhamos festas em família, feriados, nos quais teriam vários membros cantando. Mamãe tinha uma bela voz, o que me animava para tocar as mais variadas canções.
Inicio Never Gonna Be Alone do Nickelback e tento imaginar a voz da minha mãe. Ouvi-la fazia com que os dedos se movessem com mais destreza e muito mais prazer. Entretanto, quando estava perto do fim uma voz masculina tomou o ambiente me assustado. Parei de tocar imediatamente.
— Por que parou? — estava parado no centro da sua sala de estar com uma garrafa em uma das mãos.
— Me assustei.
— Desculpe, não era minha intenção. — Ele se coloca ao lado do piano e se inclina sobre ele. — Poderia tocar essa de novo?
Aceno.
Começo a canção novamente e o tenor de preenche as paredes juntamente com a melodia. Os seus olhos se fecham enquanto a letra da música flui de sua garganta, como se fosse algo que faz parte de si. Então, percebo, a música era uma extensão dele, assim como era para mim, no entanto, não era por meio de instrumento externo e sim com suas cordas vocais.
Quando termino a melodia, abre os olhos e sorri timidamente.
— Você é cantor? — questiono.
— Vamos dizer que sim.
— Por que não disse?
Ele se afasta, vira-se de costas e depois torna a me encarar.
— Não sabia que era importante. Além disso, costumo cantar apenas com a banda de onde trabalho.
— Você trabalha cantando? — minha voz sai aguda e alta demais.
— Muitas perguntas — murmura em meio a uma risada.
— Perdão.
se aproxima mais uma vez e me puxa para que fique diante dele, de pé. Suas mãos nas minhas é como um choque elétrico na minha pele, mas ele não parece ter sentido o mesmo. Completamente inabalável.
Os nossos olhos se encontram e deixo me perder nos grandes círculos verdes que parecem ler dentro da minha alma. Era como olhar para os campos, e apesar de estar na cidade há apenas três dias, sentia falta de tudo. O cheiro da comida da mamãe, o canto do galo logo cedo, papai me chamando para ajudá-lo com o leite e as noites diante da extensão do meu corpo, me derramando nas inúmeras canções existentes pelo mundo com partituras espalhadas por todo canto.
Entretanto, ficar perto de fazia com que a saudade diminuísse e doesse menos, apenas com os olhos grudados nos seus. Não podia sentir o cheiro do campo, porém, poderia forjar os meus pensamentos, fazendo me iludir que estava lá e que o cheiro havia se modificado um pouco. Não queria voltar para lá, mas não era pecado sentir falta de tudo de bom que a fazenda me proporcionava.
— Não precisa se desculpar. Você não me conhece, eu não te conheço, mas de alguma forma temos uma ligação. — Ele volta os olhos para o piano e depois para mim. — A música. Por isso sugeri que o usasse esse piano, o som daquele era terrível.
Agora fazia sentido ter me convidado. Era cruel para alguém que entende de música ver o outro utilizando tal instrumento. Uma parte de mim se perguntava porque ele possuía um piano se não podia tocar ou ao menos sabia. No entanto, já havia feito perguntas demais e não queria ser expulsa de sua casa por invadir sua privacidade. Me surpreendia por ele ter me deixado sozinha aqui, estava contente por ter ganhado sua confiança de repente.
— Você pode vir todos os dias que quiser e passar quanto tempo precisar. Caso precise de ajuda em algo é só falar — diz, se afastando mais uma vez, agora se direcionando a cozinha.
— Na verdade, talvez possa me ajudar. — Encosto-me no balcão que divide a cozinha da sala. — Estou querendo um emprego, mas como cheguei a pouco tempo não conheço ninguém. Você é o primeiro, além do mais está envolvido com o ramo que quero trabalhar.
Ele bebe um copo de água e parece refletir sobre o meu pedido.
— Posso ver o que consigo. Não será fácil. Se não tivéssemos um pianista na banda poderia falar com o meu chefe, mas infelizmente não está vago.
— Está tudo bem, o que aparecer é lucro. — acena e caminha para uma das portas fechadas.
— Por que não continua tocando? Vou tomar um banho e logo estarei aqui, talvez possamos treinar um pouco. — Ele pisca para mim e mordo o lábio para evitar um sorriso.
Sento-me sobre a banqueta de novo, o ruído do banheiro toca os meus ouvidos e início Arie mais uma vez.
Os meses que se passaram correram a galope. havia conseguido um emprego para mim em um restaurante renomado que era próximo do nosso prédio, tornando fácil o meu deslocamento. Tocava quase todas as noites e saía tarde do trabalho, porém, sempre estava à minha espera. Eu sabia que ele devia trabalhar até quase de manhã, já que o bar ficava aberto até de manhã, no entanto, não deixava de ir me buscar um só dia.
Nós conversávamos sobre tudo um pouco e claro que o maior dos assuntos sempre era música. me pedia para tocar canções que ele teria de ensaiar com a banda, o que não fazia sentido, pois ele poderia fazer com eles. Foi assim que coloquei minha cabeça para trabalhar, juntamente com os avisos de Valerie. estava interessado em mim. Simples assim.
Seria tola ao dizer que não havia algo acontecendo. Tínhamos uma ligação, vivíamos juntos em nossos momentos livres, fui convidada para jantar em suas noites livres, conheci o seu irmão e estávamos cada vez mais um na vida um do outro. Gostava dele, ficava encantada com a sua gentileza e adorava encará-lo enquanto não estava olhando. Por Deus, ele era lindo! Como não encararia? Era notável a atenção das mulheres quando caminhávamos juntos na rua, porém, ele não se abalava e continuava conversando comigo, sem dar atenção a nenhuma delas.
Minha irmã falou que deveria tomar a atitude, mas como tomaria atitude de algo se nem sabia o que estava sentindo? Não queria ficar longe dele, disso tinha certeza. Eu poderia arriscar, entretanto, se não desse certo? O que seria da amizade que tínhamos construído? Vi filmes suficientes para afirmar que uma amizade acaba quando o relacionamento acaba, salvo as exceções, e não acreditava que éramos uma exceção.
Aqui estou eu, mais uma vez em seu apartamento, como todos os dias dos últimos meses. Não iria trabalhar hoje, então vim mais tarde e usei a chave que havia me dado. Era fim de tarde e ele não estava em casa, comecei a tocar o meu vício diário e depois conferi as partituras que estava sobre o piano. Ele havia deixado mais uma canção para mim, Take Me Home da Jess Glynne. Já havia escutado umas duas vezes, então, demorei meia hora para conseguir tocá-la inteira.
A porta do apartamento é aberta no momento que estou finalizando a música. entra com um sorriso nos lábios e uma mulher de cabelos negros e olhos escuros está com ele. No mesmo instante, o sorriso que estava colado em meu rosto por ter conseguido tocar a música se desfaz e uma queimação no meu peito faz com que os meus olhos se encham de lágrimas, engulo em seco e respiro fundo. O que é isso?
— ! — exclama quando me vê, ele vira-se para a mulher ao seu lado. — Está é Becky, ela toca guitarra na banda. Becky, essa é a .
— Prazer em finalmente conhecê-la, . Sorrio timidamente. Ele falou de mim para ela. A queimação no meu peito se vai e os olhos marejados parecem secar em modo flash. As dúvidas que haviam na minha cabeça evaporaram e tudo se confirma como em um passe de mágicas. Estava apaixonada por . Era isso. Demorei para perceber, mas bastou vê-lo com outra que os sentimentos afloraram e o medo de vê-lo com outra tomou conta de mim.
Becky pega uma caixa que está no balcão da cozinha e se despede, deixando-nos a sós. me encara pelos cílios escuros, é possível que tenha percebido o meu ciúme silencioso, nunca fui boa em esconder os meus sentimentos.
— Tenho uma surpresa pra você — afirma, erguendo a cabeça e tirando um pen drive do bolso da calça, caminha até a TV grudada na parede da sala, pluga o pen drive e liga o aparelho. Enquanto ele trabalha com os botões do controle remoto um frio na barriga perpassa por mim, hoje deveria abrir o meu coração para ele. Não tinha ideia do que falar ou como organizar os meus pensamentos, então recorreria ao improviso, assim não ficaria ainda mais ansiosa.
coloca um vídeo e fico extasiada no momento que reconheço o seu piano, os meus dedos deslizando sobre as teclas e Arie saindo pelos alto falantes da TV. Choque. É a primeira coisa que sinto no momento que constato que fui filmada tocando, depois uma emoção toma conta de mim ao perceber o quanto desejava um vídeo desses. O que me deixa ainda mais surpresa é que o áudio está tão limpo que me deixa estupefata.
— Limpei o áudio, deu bastante trabalho, mas com alguma ajuda da sua irmã...
— Val? — Encaro-o surpresa.
— Sim. — Ele sorri. — Ela me deu algumas dicas sobre limpar o som por completo, programas e tudo mais. Valerie faz de tudo um pouco.
Minha irmã só precisava de um computador, se ela não sabia de algo, descobria.
— Eu sei que futuramente você pensava em entrar numa faculdade de música, mas porque não agora? Com o talento que tem pode conseguir uma bolsa. Não perca essa oportunidade, .
Ele se aproxima, pega minhas mãos e planta um beijo em cada uma delas. O gesto terno me faz derreter imediatamente, o momento perfeito para falar sobre os meus sentimentos. No entanto, no momento que estou prestes a falar, ele se pronuncia:
— Vamos dançar? — questiona com os olhos brilhando, apenas aceno.
Arie preenche os nossos ouvidos e seguimos o compasso suave da música. Deito minha cabeça em seu ombro e sua respiração toca o meu pescoço, solto um suspiro suave quando envolve minha cintura, nos aproximando ainda mais. Ergo a cabeça para observá-lo, nossos olhos se encontram e parecem hipnotizados. Não consigo desviar.
É quando acontece.
aproxima o seu rosto do meu, instantaneamente fecho os olhos e sinto a pressão de seus lábios nos meus. Sem movimentos de ambas as partes, apenas lábios colados um no outro. Então, se afasta lentamente, quando nossos olhos se encontram mais uma vez noto o quanto está preocupado. Será que fiz algo errado?
— Eu... Eu não deveria... — gagueja. Nunca o vi gaguejar, em todos os meses que nos conhecíamos. Foi assim que percebi que estava apaixonada por esse homem, não apenas interessada. E foi assim que confirmei que ele também estava apaixonado por mim.
De modo impulsivo, colei a minha boca na sua, e apesar de surpreso, abriu os lábios e aprofundou o beijo. O meu peito parecia uma sinfonia apressada, como uma melodia alegre tocando por todo o meu corpo.
— Como desejei isso — murmura quando nossas bocas se afastam uma da outra. Sorrio de olhos fechados, ergo os braços e envolvo o seu pescoço, me derramando no fim da melodia que toca ao fundo.
Após nossa dança, preparou algumas almofadas e cobertores na varanda para que observássemos o céu estrelado. Eu estava deitada sobre o seu peito enquanto ele acariciava o meu braço delicadamente. Não tínhamos falado nada sobre o que sentíamos, apenas nos beijamos e acredito que foi quase suficiente para sabermos o que sentíamos. Porém, esse momento era crucial para o que quer que estivéssemos iniciando.
— Acho que estou apaixonada por você — quebro o silêncio. Ele para de acariciar o meu braço, ergo a cabeça a tempo de vê-lo soltando um suspiro de alivio.
— Não tem ideia de como me sinto aliviado com essa afirmação. — Ele sorri timidamente e por alguns minutos me perco em seu sorriso. — Tem ideia de como tem sido difícil esconder os meus sentimentos?
Dou uma risada e planto um beijo em sua bochecha.
— Você é péssimo. — As suas bochechas ficam carmim, no entanto, ele esconde sua vergonha puxando-me para um beijo rápido.
— Fico feliz de ser péssimo, mas correspondido. — me abraça apertado e volto a deitar sobre o seu peito, ouvindo a batida rápida de seu coração. — Quando percebeu?
— Não sei. Acho que foi gradativamente. Quando descobri que morávamos no mesmo prédio e andar, se tornou algo real, havia me encantado por ter me ajudado na noite anterior. E convenhamos, você é lindo. — Escondo o meu rosto em seu pescoço.
Ele dá uma gargalhada e beija os meus cabelos. Saio do meu esconderijo e apoio a cabeça em seu peito para observá-lo. Há um vinco entre suas sobrancelhas, ele está mordendo a bochecha fazendo com que um bico se forme com sua boca, deixando-o adoravelmente encantador.
— Acho que quando a vi tocando naquele piano terrível, naquele momento não pude desviar os meus olhos. A música está tão tatuada em você que me vi apaixonado pela combinação, com o tempo me apaixonei apenas pelo fato de ser você. Precisava torná-la presente na minha vida, convidar você para tocar aqui foi uma das coisas que pensei na hora. Além disso, você me lembrou a minha mãe.
Fiquei tensa no mesmo instante. nunca falava da sua mãe, nem mesmo havia tocado no assunto. O seu irmão, Luka, tinha comentado que ela havia morrido em um acidente de carro e que não gostava de falar a respeito, pois ele e a mãe tinham uma ligação muito forte.
— Ela tocava piano, por isso temos um. Nunca consegui me desfazer, era como ter ela aqui. É difícil se desligar de algo que tem uma ligação tão emocional. Por causa do seu amor pela música, das tardes ouvindo-a cantar, que me conectei com esse mundo e comecei a cantar. Pesquisava partituras na internet para que ela tocasse enquanto cantava. Nossas tardes se resumiam nisso. — Ele engole em seco. — Quando ela se foi, continuei cantando. Mergulhei na música, muitas vezes pensando no sorriso dela enquanto me via cantar. Com o tempo fui melhorando, mas nunca estive cem por cento bem. — olha para mim, desliza o polegar sobre a minha bochecha direita e sorri delicadamente. — Quando vi você tocando, foi como uma chama reacendendo na minha vida. E a cada momento que passávamos e passamos juntos, é como uma pomada cicatrizante. Eu sei que sempre vai doer não ter ela ao meu lado, no entanto, com você comigo tem sido mais fácil.
Seco uma lágrima que rola pelo o meu rosto e sorrio. Beijo a ponta do nariz de e ele sorri abertamente, mostrando os seus lindos dentes e grandes olhos verdes brilhando como dois faróis. O meu coração falhou uma batida com a tristeza em seus olhos alguns segundos atrás, contudo, agora ele se acelerava ao constatar o bem que havia feito para ele.
A música nos conectou de uma forma que não esperávamos. Ela salva vidas, sem que precise pedir resgate.
— Você foi o anjo enviado pela minha mãe — completa e logo em seguida cola os lábios nos meus.
FIM.
Nota da autora: Sem nota.
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