Capítulo 16

Soltei o pano branco de sua camisa com o qual estava brincando há alguns minutos, finalmente criando coragem para levantar a cabeça e murmurar:
- ?
Ele abaixou a cabeça.
- Hm? - resmungou, ainda sem tirar os olhos da TV e da nova série que tinha lhe apresentado há algumas semanas.
Outlander. Ele gostava quase tanto quanto apreciava GOT. Felizmente, então, meus esforços foram recompensados, afinal havia quebrado a cabeça para encontrar uma história que não o fizesse se lembrar de seus tempos em meio à guerra. Não que conversássemos sobre isso. nunca mencionava qualquer coisa e, nas poucas vezes que me atrevi à perguntar, suas respostas foram curtas e vazias de qualquer emoção.
Entendi que aquele tópico era tabu e que ele iria falar quando estivesse pronto. Então esperei e continuei esperando, mas não se mexia.
Não que não tivesse evoluído.
As coisas se mexeram e avançaram, ou, melhor, eu o empurrava para fora de sua inércia e, pouco a pouco, nosso não-relacionamento caminhava para se parecer mais com um relacionamento de verdade. Exatamente como havia decidido que queria desde o momento em que ele havia concordado tão facilmente, e com um sorriso, a acompanhar meu filhote e eu em um passeio. Lembro até hoje o peso que saiu de meus ombros ao ouvi-lo dizer "claro". Por mais que quisesse senti-lo de novo, quisesse ter mais alguma daquelas nossas pequenas discussões, nada disso seria possível se meu bebê não fosse respeitado.
Cookie odiava Robert e talvez fosse mais por isso, e menos pelo sexo medíocre, que nosso relacionamento chegou ao fim. A única vez em que tentei promover um encontro dos dois, meu filhote deitou embaixo da cama e se recusou a sair, não importando quantas ameaças ou subornos oferecesse, até meu ex-namorado ir embora.
Bem diferente do que acontecia com .
Para exemplificar tal situação, digamos apenas, que Cookie adorava nossas sessões de TV quando, deitado do outro lado de , descansava a cabeça sobre a coxa dele e dormia confortavelmente. Às vezes considerava seriamente a possibildade de meu cachorro gostar mais de do que de mim.
Ingrato.
Um ciúme bobo que, entretanto, desaparecia cada vez que Cookie pulava de felicidade quando chegava para jantar. Ciúme bobo que se transformava em um calorzinho bom em meu peito sempre que ele propunha ficarmos em minha casa ao invés de irmos para a dele, pois sabia que um dos motivos para isso era sua vontade de brincar com Cookie, mesmo que ele não admitisse isso.
Alias, ele não admitia muita coisa. E era isso que nos levava para a situação atual.
- .
Chamei de novo e recebi apenas outro resmungo.
- Por que você não gosta de trabalhar na I?
Sua mão que estava brincando com fios de meus cabelos parou abruptamente e todo seu corpo se tencionou.
- Não - seus olhos estavam tão gelados quando da primeira vez que nos encontramos.
Apoiei a mão em sua perna e levantei a cabeça do seu peito, infelizmente desfazendo o abraço gostoso em que estávamos na última hora.
- Não o quê?
- Não vamos falar sobre isso.
- O quê? Por quê?
- Porque eu não quero - dizendo isso, voltou a se virar para frente e me deixou encarando seu perfil tenso.
Franzi o cenho, meu temperamento começando a emergir.
- Isso não é justificativa.
- Mas vai ser o suficiente para abandonarmos esse assunto - falou em tom definitivo. - Hey, hey. Espera um pouco - cheguei para trás no sofá e para longe. - Isso aqui não é uma teocracia e você não é o faraó.
Rei Leónidas, talvez, mas faraó, não.
- Não é assunto seu, - sibilou. - Não se intrometa.
Eu não tinha me intrometido por semanas, esperando que ele desse o primeiro passo, que se abrisse um pouquinho. Havia contado um pouco de tudo sobre mim e ele nem mesmo gostava de me falar sobre seu dia.
Porque, afinal, ponderando agora, não era só o exército que era tabu. Cada pequena coisa era tabu, qualquer coisa remotamente pessoal era proibida. Tentei respeitar sua personalidade fechada o máximo possível, mas estava em meu limite. Nós não tínhamos assunto e era eu quem preenchia o silêncio quando não estávamos no quarto.
Bom, sendo mais específica, era eu quem gritava lá também. E isso estava começando a me consumir, pois gostava um pouquinho mais a cada sorriso que conseguia arrancar dele, a cada beijo que me dava longe da cama e a cada vez que o encontrava brincando com Cookie. O problema é que os sinais de que eu estava penetrando em sua armadura eram muito fracos e eu estava… cansada.
Exausta de ser a única a tentar entender o que tínhamos, a querer um pouco mais. Meu lado sistemático não deixava que me adaptasse a essas coisas casuais. Funcionou por um tempo, mesmo enquanto eu queria mais, agora, contudo, parecia tão superficial.
Há semanas estávamos nesse “entendimento” e havia chegado à conclusão de que continuávamos apenas nos rodeando. Só tínhamos mudado de terreno, mas o jogo de esconde-esconde continuava intacto, e o placar estava a meu desfavor, principalmente porque não queria brincar. Não queria me esconder. Queria mais.
Finalmente havia admitido para mim mesma que não estava satisfeita. Robert podia ter sido bem frustrante no quesito sexual, mas não foi um namorado relapso. Tínhamos encontros, saíamos juntos, acima de tudo, conversávamos. Havia companheirismo e eu gostava daquilo. Agora era como se tudo tivesse se invertido. Eu experimentava sexo do mais satisfatório possível, mas era só isso.
Assistir televisão junto, jantares domésticos e sexo era à isso que nosso tempo juntos se resumia.
E para mim não estava funcionando mais. Meu lado racional esperneava, dizendo que eu deveria me impor, exigir que ele mudasse um pouco a atitude e que se não o fizesse, poderia encontrar esse tanto de nada em outra freguesia. O lado emocional é que criava problemas e que havia me amaciado, fazendo com que eu aguentasse tudo calada durante todo o tempo que estávamos “juntos”, sempre sussurrando que uma hora ele iria ceder.
A questão é que eu nunca tive vocação para ser a coitada da história. E Ava tinha toda razão ao dizer que guardar certas coisas dentro de si acaba por te envenenar. Feliz ou infelizmente a parte emocional ainda queria dar mais uma chance a , respirei fundo, então, e tentei uma última vez:
- Ok. E a tatuagem em seu braço? O que significa?
- Coisa minha.
O fato de ele nem mesmo ter se dignado a se virar para me olhar nos olhos enquanto cuspia aquelas palavras ríspidas, fez com que o resto de paciência que eu tinha se evaporasse como se nunca nem estivesse lá.
Só quando me levantei abruptamente do sofá, fixou os olhos gelo em mim. - Olha, , vou ser bem franca porque seria hipocrisia da minha parte agir de maneira diferente - soltei o ar pesadamente. - Onde estamos indo?
- “Onde estamos indo”? - repetiu devagar como se eu tivesse falado alguma língua estrangeira.
- Sim. Onde estamos indo? Você quer só sexo, é isso?
Ele piscou devagar, e abriu um pouco a boca.
- Do que está falando, ?
Mesmo estando em pé enquanto ele permanecia no sofá, ainda sentia sua presença dominando a sala.
Cookie levantou a cabeça, as orelhas em pé ao notar o clima mudando. Ele olhou de para mim e de novo para meu vizinho antes de se levantar e sair silenciosamente para o quarto.
- Por que estamos fazendo isso? - apontei para mim e depois para ele.
- Por que estamos fazendo isso? - repetiu, incisivo, levantou-se devagar, ficando de frente para mim. - Por que estamos tendo essa discussão sem sentido?
- Porque as coisas não estão direito, .
- Como não? Estávamos vendo um filme, - apontou para trás e para o sofá, - depois de um jantar gostoso e mais tarde um sexo bom antes de irmos dormir. Tudo muito bem até você começar com essa tolice!
- Isso! - exclamei, abrindo os braços. - Eu não poderia ter dito melhor.
- O que porra há de errado com você? - sussurrou, absolutamente incrédulo. - Do que você está falando?
- O que há de errado comigo, não! O que há te errado com nós dois! Você acabou de resumir todo o nosso tempo juntos: sexo, uma ou duas séries, jantares comprados e um cachorro. Só temos isso. E estou cansada. Você ao menos percebeu que não saímos do nosso prédio exceto para levar Cookie para passear?
Os olhos dele mostraram surpresa e se arregalaram de leve, o que, levando em conta o padrão de indiferença, era muita coisa. Abriu a boca para responder, mas eu ainda tinha o que dizer:
- Nem na sua casa não vamos mais! Além disso, você nunca quer conversar sobre nada. Nunca. Tento entender o seu lado, imagino que seja difícil falar sobre o exército ou sobre sua família, mas você também evita qualquer coisa envolvendo seu trabalho e até mesmo seus amigos - falei tão rápido o que estava engasgado, que, ao terminar, respirava pesadamente.
Esperei por uma resposta, mas, como sempre, ele ficou parado em silêncio. A única indicação de que tinha me ouvido era o jeito como seu maxilar estava travado de raiva. Foi aquela apatia, de novo, que fez com que o peso em meu peito dobrasse e meu estômago revirasse de uma maneira terrível.
Não me sinto orgulhosa de dizer que, em mecanismo de autodefesa, transformei aqueles sentimentos ruins em raiva e sibilei:
- Sabe como eu me sinto às vezes? Como se fosse seu brinquedinho sexual. Aquele que é bom para füder, mas não para saber qualquer coisa sobre sua vida. Nem quantos anos você tem eu sei!
Assim que terminei de falar, senti uma surpresa semelhante a que podia ver em sua expressão me atingir. Não sabia de onde aquelas palavras vinham, mas reconhecia a verdade nelas.
jogou a cabeça para trás, reagindo como se tivesse levado um tapa.
- Nem uma vez pedi para que você fosse compreensiva - sussurrou a última palavra com uma careta de desdém.
E cada estaca de gelo que suas palavras atiraram atingiram o alvo com perfeição. Minha boca secou e, por um segundo, meu peito contraiu de maneira tão dolorosa que não consegui respirar. Senti toda minha pele pinicar e esquentar graças à mais pura humilhação.
Não por suas palavras, mas pelo jeito como ele me olhava, como se me achasse patética. E por um segundo fui levada direto para o inferno que a escola foi, com meus adoráveis colegas fazendo questão de me lembrar o quanto atrapalhada eu podia ser, não perdendo uma única oportunidade para jogar na minha cara o quão ridícula eles me achavam.
Exatamente como fazia.
A diferença é que doía bem mais agora.
Pensei que as lágrimas seriam o próximo passo para me afundar um pouquinho mais em meio àquela humilhação, mas elas não vieram. Ao invés disso, entretanto, senti o entorpecimento me tomar. Graças ao vazio que esse sentimento trouxe, consegui mover meus lábios, que pareciam ter sido pregados por cola e depois ressecados com areia, para falar:
- Tem razão. Não pediu. Para que isso acontecesse, teríamos que ter conversado - se ainda estivesse sentindo alguma coisa, teria me orgulhado pela voz não ter tremido. - Não que isso importe mais.
Dei-lhe as costas e fiz força para que minhas pernas que pareciam pesar centenas de quilos me levassem até a porta para abri-la. Fixei meu olhar no seu, deixando que a clareza do gesto falasse por si. Ele não fez qualquer tentativa de dizer alguma coisa, de tentar consertar a situação, apenas marchou para fora de minha casa, passando direto por mim. Só consegui me mexer o suficiente para fechar a porta ao ouvir a dele bater com força do outro lado do corredor. O som alto foi quase como um eco de minhas próprias emoções se estilhaçando.
Encostei-me contra a madeira e passei a mão pelos braços em busca de calor. Era como se um frio pesado tivesse descido no cômodo. Empurrei o cabelo para longe do rosto e, recusando-me a ser um clichê completo e me encolher contra a porta, caminhei até o sofá e apoiei os cotovelos nas coxas e escondi o rosto nas mãos.
Não entendia como as coisas haviam evoluído tão rápido a ponto de sair do controle. Queria algum tipo de reação dele, não que ele despertasse memórias tão ruins que eu acabasse tomando uma decisão - uma bem drástica.
Senti uma presença ao meu lado e vi Cookie sentando no sofá, chegando mais perto para se aconchegar ao meu lado. Seus olhos estavam tristes quando ele colocou a pata sobre meu peito.
- É, bebê. Eu sei, eu sei - abracei-o, buscando e oferecendo um consolo que nós dois precisávamos.
A próxima semana foi um suplício. Andava meio fora de sintonia com a realidade ao meu redor, sempre tendo reações atrasadas ao que estava acontecendo. Ava até mesmo havia me chamado de zumbi uma ou duas vezes. Infelizmente, por mais que me esforçasse, sentia como se estivesse presa em uma bolha, vendo o mundo passando através de um plástico.
Rápido demais para que eu pudesse acompanhar.
Era honesta comigo mesma o suficiente para admitir que meu estado deplorável era graças às saudades que sentia de . Estava oficialmente em abstinência de minha droga e os efeitos disso eram nocivos. Quase tão nocivos quanto permanecer do jeito que estávamos.
Havia apostado tudo em uma única jogada e havia sido atirada para fora do jogo.
A culpa, contudo, não era algo que pesava em meus ombros. Sabia que se não tivesse tentado nos puxar para fora daquela inércia, continuaríamos exatamente no mesmo lugar. O que faltou a minha percepção, contudo, foi que ele preferia nada ao invés de um pouquinho mais. Não estava exigindo que ele me descrevesse em detalhes toda sua existência na Terra. Só queria sair da superficialidade, e ele… bom, ele obviamente não queria isso. O que tínhamos não era suficiente para que ele quisesse passar da superfície.
Não me arrependia de ter sido paciente. Não era, afinal, injusta ao ponto de dizer que meus esforços não renderam frutos nenhum. não ficava mais congelado de surpresa a cada vez que me aconchegava contra ele e começou até a iniciar esses abraços quando estávamos fora da cama. Também passou a brincar com meu cabelo e a sorrir mais. Aceitei os pequenos gestos, acreditando que levariam a passos maiores, mas isso não aconteceu. E eu não sabia viver de migalhas.
Por isso, saindo do elevador e deixando que meus olhos pousassem sobre sua porta fechada um minuto a mais do que o necessário, sabia que havia feito a coisa certa. Mesmo que doesse agora.
E como doía.
Sabia também que logo que minha força de vontade iria voltar eventualmente, mas agora estava tudo embolado em uma coisa ruim que fazia meu estômago revirar de um jeito terrível. acidentalmente havia aberto algumas feridas bem grandes do passado além de ter criado algumas novas.
Odiava-me um pouquinho por deixá-lo me afetar assim, por fazer com que duvidasse de mim mesma de novo, por fazer com que eu gostasse tanto dele para logo depois se mostrar um babaca com B maiúsculo.
Podia lidar com seu humor terrível e com seu pavor de mostrar qualquer tipo de sentimento. O que me machucou foi que ele agiu deliberadamente pra me machucar. Tinha certeza que sabia que aquelas palavras iriam magoar.
Soltei um suspiro, tentando mudar o rumo de meus pensamentos. Ou não pensar em nada.
Rolei os ombros enquanto destrancava minha porta. Esse estresse todo estava me drenando. Joguei minha bolsa de lado depois de devidamente travar a fechadura ao entrar. Estava a meio-caminho da cozinha quando a campainha soou. Massageei minha têmpora, tentando lembrar se hoje era o dia do meu jantar semanal com Appleby e já imaginando uma desculpa para despachá-la de volta para própria casa enquanto andava de volta para porta.
A pessoa que me encarou de volta, contudo, não tinha o tom correto de azul nos olhos. Era gelo, não oceano.

xxx

O tempo no deserto tem o poder de te endurecer como poucas coisas terão. Você sente seu humor escorrendo por sua pele como o suor que o sol arranca aos montes. Sua paciência vai evaporando aos poucos até deixar sua paciência tão árida como o chão que você pisa. O ressentimento causado pela pura exaustão vai aumentado. Foi crescendo em mim até que gritei com Hunter na frente de todo o nosso destacamento. Puppy não tinha cometido nenhum erro grande, apenas uma pequena distração que não nos causaria nenhum dano, mesmo que em algum momento sofrêssemos um ataque inimigo. E, ainda assim, gritei com ele por vários minutos seguidos. Ele não moveu um músculo, o queixo levantado em respeito, nada em seu rosto. Nem um vestígio da humilhação pela qual o estava fazendo passar. Assim que fiquei sozinho, tendo dispensado o circo que formara ao nosso redor e realocado Hunter para o trabalho da cozinha que todos odiavam, percebi o grande babaca que havia sido.
Usara minha posição hierarquicamente superior para descontar a minha frustração por estarmos há dias no meio do nada sem a menor previsão de receber ordens para sermos reposicionados. Berrei com meu melhor amigo por algo que não tinha qualquer importância, humilhei meu subordinado por nada.
Senti-me um lixo naquele dia, pois podia enxergar que tive uma reação digna de Dante . Senti nojo de mim mesmo e levou algum tempo para conseguir passar por cima, mesmo que Hunter tivesse me desculpado no segundo em que fui me redimir. Não guardou nenhum rancor, mas eu não conseguia encará-lo sem sentir vergonha de mim mesmo.
Foi literalmente um dos meus piores dias como ser-humano. E todos aqueles sentimentos enojadores não chegaram nem perto de como me senti quando abriu a porta e me encarou sem qualquer vestígio de brilho no olhar. Seus cabelos estavam lisos demais e não com aquelas ondas bonitas que os deixavam cheios. Não havia o mínimo de cor necessária em seu rosto para que se considerasse saudável.
Acima de qualquer coisa, entretanto, o que fez com que me sentisse um verme foi o jeito com me olhou, como se fosse um desconhecido. Nenhuma das vezes, desde que nos conhecemos, havia reagido assim. Mesmo quando estava brava, ainda podia ver o fogo ardendo em seus olhos de um estranho tom violeta. Agora eles estavam opacos.
E aquilo me dava arrepios de pavor. Puro pânico de que havia estragado as coisas além do que era possível ser reparado.
Engoli em seco, querendo me chutar por ainda estar parado sem falar nada enquanto estava óbvio que não queria estar ali e que sua paciência estava se esgotando. - Não gosto da minha casa - as palavras saíram como areia.
Aquilo a surpreendeu o suficiente para que ela se mexesse, murmurando em surpresa:
- O quê?
- Prefiro ficar aqui porque não gosto da minha casa. Odeio o fato de que enquanto estava na marinha, meu pai conseguiu a chave da minha casa e mandou alguém para redecorá-lo do jeito que achava aceitável. Odeio que ele tenha me comprado roupas como se eu fosse uma criança. Odeio que até hoje ele não se contente em saber que tenho que me obrigar a ir trabalhar todos os dias e ainda tente mandar em todas as outras esferas da minha vida.
Enquanto contava rápido e sem pausas coisas que nunca cogitei murmurar para nenhuma outra alma, os olhos violeta se arregalaram um pouquinho e algumas emoções faíscavam por seu rosto.
- Minha tatuagem é em tinta completamente preta porque nós estávamos cansados de tanta cor, tantos tons de amarelo na areia e tanto azul no céu. Aquilo nos cegava e era uma lembrança constante do quão longe de casa estávamos.
As palavras eram pesadas e sem qualquer tipo de emoção, mas, ao contrário da opressão que imaginei que viria, senti como, se a cada nova revelação, um tijolo deixasse de pesar sobre minhas costas. Como se nós de aço se desfizessem e conseguia respirar um pouco melhor.
Engoli em seco e continuei:
- E é uma fênix porque, no meio do deserto, nós nos sentíamos no meio do fogo, como se tudo tivesse ardendo em chamas. Ao mesmo tempo sabíamos que aquele tempo ali seria como nascer de novo, um divisor de águas, ou qualquer outra coisa que você queria chamar.
Percebi de maneira ausente que ficava abrindo e fechando as mãos em punhos repetidas vezes.
- Repeti tantas e inúmeras vezes que sou um ex-oficial do exército que passei a dizer isso até em meus próprios pensamentos - minha garganta secou naquele momento e as palavras saíram mais ásperas.
Nunca havia falado sobre aquilo com absolutamente ninguém. Hunter e Chase sabiam sobre as outras coisas ou ao menos desconfiavam. Sobre o que contava agora, contudo, nenhuma outra alma viva alguma desconfiava.
- Eu fui da marinha. Capitão do destacamento 21 dos SEAL da marinha.
Ela ofegou ao reconhecer o nome e ao sentir o peso que representava. Senti meus lábios se repuxarem em um sorriso cansado.
- É exatamente por essa reação que não conto a ninguém - encolhi os ombros. - Primeiro vem o choque. Depois me perguntam sobre como foi matar o Bin Laden, como se só houvesse um destacamento na corporação inteira. Então, quando conto que não fiz parte daquela missão, eles me indagam sobre como foi, pois, aparentemente, já que era SEAL, tenho a obrigação de saber os detalhes. Não conseguem entender que aquela missão foi classificada no nível mais alto de confidencialidade e que sei tanto qualquer outro americano. Recebi a notícia junto com o resto do mundo. Mas elas não entendem - olhei para o teto, soltando o ar em meu peito com força, aquele mesmo sorriso ainda firme no lugar - e continuam perguntando e perguntando e perguntando.
Passei a mão pelo rosto, mantendo minha atenção em qualquer coisa menos em minha vizinha.
- Era minha infância tudo de novo. Ser classificado somente por um título - a garganta secou. - Quando descobriam sobre o lugar onde servi meu país, sabia que cada vez que me olhavam só enxergavam a palavra SEAL e imediatamente me tratavam diferente. Como se estivesse com a porra de um alvo em tinta vermelha em minha testa.
Cada palavra era espremida para fora e tinham gosto amargo. Recordava os dias no meio do deserto em que cantis de água se tornaram raridade e tinham que ser divididos. Todo o interior de minha boca estava completamente ressecado, queimando tanto que já quase não sentia, a garganta doía como se houvesse uma ferida aberta em meu pescoço. Acima de tudo, entretanto, pesava a sensação de que nem toda a água no mundo seria capaz de aplacar aquilo. E, por mais contraditório que fosse, ao mesmo tempo, sentia como se estivesse me afogando. Talvez estivesse mesmo.
Afogando-me.
A minha vida inteira.
- Patético, não?
Finalmente consegui empurrar um pouco da minha covardia para longe. Sim, reprimir minha covardia porque nem mesmo podia classificar meus atos pelo belo e velho clichê de “reunir coragem”, afinal não estava enfrentando o monstro, mas apenas dando uma olhada em seus olhos antes de sair correndo de novo.
Metáforas à parte, agora era hora de encarar os olhos meio violetas de . Engraçado como estávamos frente a frente e ainda assim não conseguia enxergá-la. O pânico meio cego daquele que se debate contra a correnteza apertava com garras de ferro minhas estranhas, fazendo questão de retorcê-las da pior maneira possível.
- Um marmajo desse tamanho se… intimidando… - murmurei aquela palavra com nojo - mudando os próprios hábitos por pessoas que nem conhece.
Soltei uma risada que tinha um tom preocupante de histeria.
- É só que isso sempre me lembrava do… lembrava quando… - a ardência em minha garganta se aumentou ao ponto de não conseguir continuar a frase.
Fora isso, não sentia nada. Todos aqueles sentimentos péssimos que estavam me consumindo há dias simplesmente congelaram enquanto me entorpecia - exatamente como todas as outras vezes que aquele assunto surgia. Era mais fácil não sentir nada.
Queria me encolher outra vez para longe do monstro, mas de novo, com uma pequena espiada naqueles olhos tão exóticos de , era lembrado de que não tinha essa opção. Não quando todos os dias daquela semana haviam se arrastado de uma maneira tão sufocante; não quando cada vez que olhava a porta de sua casa, sentia-me o mais repugnante dos seres; e, principalmente, não quando sentia como se estivesse me faltando um braço ou algo assim sempre que me lembrava - e isso acontecia a toda porra de todo segundo - que não poderia voltar para casa e ouvir a risada de enquanto ela me contava sobre alguma anedota boba que acontecera em seu dia.
Engoli em seco e me concentrei em manter a atenção sobre sua franja, que estava estranhamente sem brilho, antes de conseguir arrancar de minha garganta:
- Dante… Dante nã-
As palavras que haviam me custado tanto para pronunciar foram abruptamente cortadas quando a mão macia de pousou sobre minha boca. Arregalei os olhos, tão surpreso que não consegui fazer outra coisa senão encará-la. E meu choque só aumentou ao notar que estava à beira das lágrimas.
- Não… não quero - cada sílaba tremia. - Não quero que você me conte essas coisas. Não quero que se… sinta obrigado a isso.
O quê? Não teria ficado mais surpreso se tivesse dito que estava tendo um caso com Chase.
Mas… o quê? Não era isso que ela queria? Não era por isso que tinha terminado tudo, que me fez chegar ao ponto de me arrastar por outra chance? Que me fez dar uma espiada no paraíso, em um lugar tão bom e longe do monstro que me atormentava todos os dias, para logo depois me dizer que não estava cumprindo as determinações necessárias para permanecer com sentimentos tão bons?
deve ter visto todas as perguntas em meu rosto porque logo continuou:
- Não quero que se sinta obrigado a me contar alguma coisa. Não foi isso que quis dizer - havia um pouco mais de firmeza em sua voz, mas seus olhos estavam cada vez mais marejados. - Não quero ser algum tipo de obrigação. Eu… só queria… queria um pouco mais. Queria que você gostasse de mim para mais do que uma transa. Queria que gostasse de mim a ponto de confiar o suficiente para me falar sobre seu dia. Queria que gostasse de mim - sussurrou num fiapo de voz, afastando a mão para minha bochecha e fazendo um carinho terno ali.
Levei um tiro uma vez. Doeu como o inferno. Tudo ao meu redor sumiu no instante em que a bala de um .38 entrou em meu antebraço esquerdo, por um segundo só existiu a mais profunda dor física que já sentira na vida. Essa sensação, descobria agora, contudo, não chegava nem perto do sentimento que se tinha quando, ao pensar que já atingiu o fundo do poço, você descobre que tinha mais alguns metros para descer.
Até aquele momento não havia parado para pensar que havia a negligenciado ao ponto de pensar que não tinha importância, que eu não me importava, que não… que não gostava dela. Isso era tão ridículo que mal conseguia formar o pensamento, meu cérebro simplesmente se rebelava à ideia enquanto o resto de mim estava dividido entre negação e auto-repulsa.
Precisei de vários segundos para conseguir reagir.
- .
Não reconhecia minha própria voz graças ao bolo em minha garganta que pesava algumas tonelada. Engolindo em seco para buscar um pouco mais de controle, levantei a mão e cobri a sua que estava em meu rosto. Afastei-a de mim, mas mantive nossas mãos juntas, meu polegar acariciava sua palma macia.
- O que te contei agora, eu nunca contei para mais ninguém - foi o que consegui reunir em uma frase que fizesse sentido.
Nem mesmo consegui explicar o porquê daquilo ser significativo. Felizmente, como ela conseguia fazer às vezes, entendeu.
- Ninguém?
Sacudi a cabeça.
Tombou a cabeça para o lado, analisando-me e fiquei aliviado ao notar que a cor voltara a seu rosto. Ao menos estava conseguindo que ela reagisse, mesmo que não fosse ao meu favor. Talvez ela fosse propor que voltássemos a ser quase amigos, ou apenas os conhecidos que éramos quando voltei para casa.
E mesmo só aquilo era melhor. Qualquer coisa era melhor do que o nada eu tinha agora.
- Talvez… talvez pudéssemos tentar… não sei, tentar de novo - suas palavras morriam no final, pura incerteza em seu rosto.
Estava claro como água que receava que eu fosse recusar sua proposta.
Joguei a cabeça para trás, deixando uma gargalhada irrefreável escapar. O alívio em mim foi tão grande que amoleceu meus joelhos e, juntamente com a ideia ridícula dela de que talvez não quisesse voltar, causou aquela risada espontânea. E, aparentemente em um absoluto descompasso com o clima do momento, uma vez que puxou a mão com força para que a soltasse. Parei de rir imediatamente e me endireitei para olhá-la bem a tempo de ver como seu lábio inferior tremia de leve e suas bochechas se ruborizavam de humilhação.
A vontade de me chutar retornou. Nem mesmo tive tempo para ponderar sobre como conseguia ser um imbecil, pois já estava mais ocupado na tarefa muito mais importante de me desculpar:
- Calma. Calma - segurei sua mão mais firme, tentando não esmagar seus dedos infinitamente mais frágeis e, ao mesmo tempo, não deixar não transparecer o quão desesperado estava outra vez. - Não estava rindo de você. É só que é tão… absurda essa sua ideia de que eu poderia não querer… - sacudi a cabeça. - Eu quero. Quero muito.
- Oh - murmurou, suspirando.
Logo, entretanto, voltou ao estado silencioso e pensativo. Quase podia ver as engrenagens em seu cérebro rodando, mas não tinha nem ideia se elas estavam trabalhando ao meu favor. A forte apreensão só desapareceu quando um sorriso tímido surgiu de novo em seu rosto.
- Ok. Mas vamos trabalhar nesse seu jeito de expressar certas coisas.
Dessa vez apenas sorri.
- Junto com minhas maneiras e minha atitude?
- Exatamente - assentiu.
- Mal tornamos isso aqui oficial e já está mandando em mim mais do que o normal, hein? - brinquei.
- Oficial? - sussurrou.
- É isso que você queria, não é? - respondi o mais suavemente possível.
- Só se você quiser também.
- Eu quero. Quero muito - repeti, mantendo minha atenção.
- Espera - ergueu espalmada a mão que eu não segurava. - Isso quer dizer que somos namorados agora? Namorado do tipo… você é meu namorado e eu sou sua namorada? - apontou para mim e depois para si mesma.
E aí estava a a que me acostumara.
- Acredito que esta seja a definição de namoro oficial.
Ela abriu um sorrisinho fechado, nem mesmo se preocupando em se exasperar com meu tom condescendente.
- Nesta rara vez, acho que você tem razão, .
Arqueei a sobrancelha.
- Vem - puxou minha mão, dando um passo para dentro da própria casa. - Você dorme aqui hoje.
Minha mente masculina foi logo se concentrando no que eu queria fazer na cama, mas isso não envolvia dormir. Não fiquei nem um pouco orgulhoso desses pensamentos impróprios para o momento e me concentrei para manter meu foco no que realmente precisava fazer. Continuei parado e virou-se para me encarar logo que percebeu que não estava me mexendo.
- Não - sacudi a cabeça. - Feche a porta. Nós vamos ao cinema.
Supreendentemente, ao dizer aquelas palavras, percebi o quanto queria, de fato, ter esse encontro.
- Cinema? - franziu o cenho, adoravelmente confusa.
- É. Ouvi dizer que é isso que namorados fazem - dei de ombros.
- Ah, sim? - abriu um sorriso enorme, dando um passo para voltar a ficar na minha frente - E onde você descobriu isso?
- Internet.
- Mentira. Você detesta tecnologia - riu.
- Nessa você me pegou - sorri de volta. - Agora tranque a porta e vamos.
- Pronto - saltitou depois de fazer o que eu pedira. - Vamos?
- Sim.
Ao invés de me mexer em direção ao elevador, contudo, aproximei-me mais dela, levantado a mão direita para sua nuca e para guiá-la até que me olhasse com a cabeça inclinada para trás.
- Mas antes… - murmurei já contra seus lábios e antes de beijá-la.
Um beijo do qual havia sentido falta todos os dias desde que brigamos. Um beijo do qual, percebia agora, enquanto absorvia seu gosto e seu calor, havia me seduzido ao ponto da escravidão.
Não me preocupava. Isso não me importava. O que importava era e agora teria a certeza de demonstrar o quanto.



Caítulo 17

- Não.
- Não sei o porquê de você acha que a questão está aberta a discussões.
- Não vou.
- Você sabe que ficar repetindo isso não vai te fazer se livrar dessa, né?
Arqueei a sobrancelha, cruzando os braços e deixando que meu olhar a analisasse de cima a baixo, apontando silenciosamente a diferença de tamanho entre nós dois.
- E como exatamente você pretende me forçar a ir junto com você, ?
- Você prometeu – juntou os lábios em um biquinho de pirraça, também cruzando os braços.
Detestava quando ela me olhava assim. Era quase uma criança birrenta, mas uma daquelas bem adoráveis para a qual você não consegue negar nada.
- Prometi que teríamos encontros, como casais normais, não que iria começar a frequentar as reuniões que você e suas amigas têm.
- Reuniões com as minhas amigas? – revirou os olhos ao repetir minhas palavras toscas. – Francamente, . Até parece que te chamei para ir a um chá-de-bebê. Só disse para irmos tomar café-da-manhã na Appleby’s.
- Não quero.
- Por quê?
- Nã-O quê? – franzi o cenho, surpreso por ela ter mudado da abordagem de confronto direto.
- Por que você não quer ir tomar café em um ótimo lugar, que, além de servir excelente comida, ainda é perto daqui? Isso sem mencionar que não é como se você pudesse pular essa refeição importante. Parece até um trator de manhã, devorando tudo e qualquer coisa que tem na geladeira – apontei por cima do ombro.
- Eu reponho os mantimentos todos os dias.
Ok. Era April quem repunha os mantimentos, mas era eu quem mandava fazer isso, quem dava o dinheiro. E, além disso, nunca reclamou das coisas que ela comprava. Obviamente não iria me retratar para adicionar aquele pedaço de informação. Ainda mais quando havia um brilho zombeteiro em seus olhos violeta, como se ela soubesse exatamente sobre o que estava pensando.
- Ahan, sei - murmurou de maneira condescendente. - Então, repito, por que você não quer ir à Appleby's?
- Sua amiga vai estar lá - resmunguei, olhando para o lado.
Aquilo escapou. Não queria ter admitido. Infelizmente havia aprendido que não largava o osso quando queria saber alguma coisa.
- Oh - afinou voz, dando alguns passos para ficar na minha frente. - Big Bad está com medo da melhor amiga da ? - apertou minhas bochechas.
Fiquei tão surpreso que demorei um pouco para segurar minhas mãos nas suas e afastá-las para longe.
- Não seja ridícula, . Ela consegue ser menor do que você - debochei, sorrindo frente sua adorável expressão surpresa.
- Hey!
- Vamos tomar café aqui hoje, como sempre - pedi, olhando para a mesa rapidamente e imaginando aquele prato de panquecas douradas que ela sempre fazia. - Vocês já vão se encontrar à noite para o tal jantar semanal. Por que tem que ir lá agora também?
- A questão não é eu ir lá. Quero que nós dois - apontou para mim e para si - tenhamos um bom café da manhã lá.
- Não tente mentir para mim, . Você sempre torce os lábios quando mente. É perceptível.
Por reflexo, ela cobriu a boca com a mão direita, lançando-me um olhar feio.
- Você consegue ser bem chato às vezes, sabia? - abaixou a mão para continuar falando. - Eu não fico apontando seus trejeitos.
- Não tenho trejeitos - franzi o cenho.
- Você que pensa - falou, condescendente, batendo a mão de leve duas vezes em meu ombro.
- Ah, é, dr. Phill? Então me conte.
- Te conto no caminho para Appleby's.
- Boa tentativa - revirei os olhos.
- Deixe de ser chato, . Vamos lá, por favor.
Odiava quando ela pedia daquele jeito, olhando-me com a franja sob os olhos violeta e empurrando aquela delicia de lábio inferior sobre o superior em um biquinho adorável. Não conseguia negar nada.
Estava virando a porra de um frouxo.
- Mas por que iríamos lá?
Mantive a pergunta para me agarrar um pouquinho ao orgulho e não demonstrar que havia sido vencido tão rápido, mas até eu podia ouvir o derrotismo em minha voz. Obviamente ela também percebeu, e, vi o sorriso que ela mordia ao me responder:
- Porque você é importante para mim e Ava é importante para mim. Quero que vocês se conheçam, c-
- Já conheço sua amiga - interrompi - e acho que ela me olha de um jeito bem esquisito.
- Como assim? - tombou a cabeça para o lado, franzindo o cenho, confusa.
- Como se estivesse me analisando - dei de ombros. - Não gosto disso.
- Ah! Isso porque ela realmente estava te analisando. Provavelmente para saber se você é bom o suficiente para mim.
Engoli em seco e me forcei a manter a expressão impassível. Não queria parecer um adolescente boboca se encolhendo ao pensar que a aprovação dos pais da namorada era imprescindível. Até porque Avalon era apenas a melhor amiga e sua opinião não era tão importante - ou era disso que tentava me convencer. Mesmo querendo ser um crente para ter um alívio no receio irracional que repentinamente estava sentindo, infelizmente sabia que quem tinha razão era essa parte analítica. Ponderava sobre como a opinião de uma amiga poderia ter ainda mais influência. Afinal, existem filhas rebeldes, mas nunca ouvi falar de amizade rebelde.
Tinha o direito de me sentir desconfortável, então, ao pensar que, se a baixinha confeiteira me odiasse, havia grandes possibilidades de meu relacionamento ser o mais curto da história. Um dia de duração.
Não queria isso. A mera ideia já parecia um soco no estômago.
É. Definitivamente queria menos ainda "conhecer" a amiga agora que tinha certeza de que estava sendo analisado.
Não que fosse confessar essas coisas a . Ontem já havia tido confissões demais e precisava de um tempo para me recuperar, para me acostumar com a ideia de que tinha alguém com quem compartilhar certas coisas. Por enquanto, contudo, sentia-me exposto, o que também contribuía para minha reticência em ser objeto de mais questionamentos - ainda que estes fossem feitos só pelo olhar silencioso e astuto de alguém que não tinha altura suficiente para bater no meu ombro.
Infelizmente usou a habilidade que só ela tinha de ver direto pela barreiras que eu cuidadosamente construía.
- Não se preocupe - sorriu, dando mais um passo para frente e passando seus braços por minha cintura. - Sério - apoiou o queixo no meu peito, olhando para cima para me encarar enquanto sorria. - Não tem motivos para isso. Ava já te aprova. Aliás, foi ela a maior incentivadora.
- Incentivadora? - arqueei a sobrancelha, completamente descrente. - Então por que ela fica e olhando daquele jeito?
- Já disse. No começo, ela estava mesmo te analisando. Coisa de amiga, coisa da Ava, sei lá - deu de ombros. - Chame como quiser. Fez isso porque meu ex era um bom de um babaca, como ela adora apontar. Acho que é o jeito dela de ter certeza que você não é uma versão nova em uma embalagem melhor.
Aquilo era bem confuso.
- Ok...? - resmunguei, ainda meio tonto pela lógica por de trás dos olhares esquisitos que recebia da boneca amiga da minha namorada.
Minha namorada.
Parei por um segundo, olhando para a parede da cozinha ao longe e sobre a cabeça de . Estava bem chocado pela facilidade com que aquela palavra surgiu em minha mente. Não havia chamado alguém assim desde minha namoradinha de colegial, da qual mal podia recordar o nome. Deveria deixar um gosto empoeirado em minha boa, mas fluía... apenas fluía. Naturalmente.
- Vai dizer que ficou com ciúme?
Seus braços se apertando ao meu redor me trouxeram de volta à realidade.
- O que disse? - olhei para baixo e para encontrá-la sorrindo travessa para mim.
- Você ficou quieto de repente, olhando esquisito para o nada. Está com ciúme de Robert?
Mas do que é que ela estava falando? Eu me perco em pensamentos por um segundo e a conversa vai parar no completo desconhecido. e sua falta de foco estão sempre atingindo novos níveis.
- Robert? - perguntei finalmente. - Quem é Robert?
- Meu ex-namorado - foi a vez dela de franzir o cenho. - Aquele que é basicamente o motivo de Ava ficar te analisando de um jeito esquisito.
- Ah, sim. Ah, sim - sacudi a cabeça, rindo. - Não, não. Não é isso. Nada de ciúmes.
Senti uma pontada de alívio ao perceber que ela não podia me ler de maneira tão eficiente como imaginava.
- Não? - deu um passo para trás e pude ver uma pontada de indignação em seus olhos.
- Volta aqui, dengosa - segurei-a pelo pulso para puxá-la de volta.
Estava confortável demais contra suas curvas macias, o calor que me transmitia e o cheiro gostoso de chiclete de seus cabelos - principalmente agora que felizmente eles haviam voltado ao jeito cheio e bonito de sempre. Ainda não estava brilhante como eu gostava, mas já estava melhorando.
- Pare de rir, idiota - bateu em meu ombro.
- Não estou rindo.
Ou ao menos tentava não rir enquanto ponderava sobre como as mulheres eram seres bem complexos. Não gostam quando sentimos ciúme porque isso é "primitivo", mas também não era aceitável admitir que não tínhamos aquele tipo de sentimento.
- E não fique assim - abaixei a cabeça e lhe dei um beijo rápido nos lábios.
- 'Tá bom, mas só porque você concordou em ir à Apppleby's.
- Não concordei com nada - resmunguei, dando um passo para trás.
- E eu não gosto que fique rindo de mim, então estamos empatados e, você sabe, em casos assim, o voto de minerva é da mulher.
- Hein? - embarbascado, segui seus passos para fora cozinha e para dentro da sala, onde pegou sua bolsa azul enorme que estava sobre o sofá. - Não quero ir.
Lançou-me um olhar irritado por sobre o ombro enquanto destrancava a porta. Revirei os olhos e senti meus ombros caindo em derrota.
- Nem um dia e já está mandando em mim como s-
- Que foi que você disse?
Parei meus resmungos baixinhos quando recebi mais um daqueles olhares fulminantes.
- Nada - revirei os olhos, decidindo largar aquela briga.
Pelo menos nós iriamos comer algumas coisas gostosas na tal confeitaria.
- Foi o que pensei.
Segurando a resposta mal educada que estava na ponta de minha língua, abaixei-me para coçar atrás das orelhas de Cookie, que já estava sentado ao lado da porta, balançando o rabo e me olhando com espectativa. Esperava a palavra que confirmasse mais uma saída para nossa corrida matinal de rotina.
- Hoje não vai dar, amigão. Prometo que amanhã nós vamos - acrescentei quando ele me olhou com decepção naqueles olhos marrons enormes.
Mais animado agora, Cookie soltou um latido e levantei-me, satisfeito por termos chegado a um acordo. Imediatamente me deparei com nos observand com um sorriso bobo, os braços cruzados.
- Que foi? - tranquei a porta e apertei o botão para o elevador.
- Vocês dois juntos são adoráveis.
Contra toda normalidade que sempre esteve presente em minha vida e detestando o fato de que ela me fazia reagir de um jeito esquisito, senti minhas bochechas esquentarem. O que poderia responder? Aquele cachorro esquisito tinha um jeito de te olhar que não deixa outra alternativa senão gostar dele. Ponderando agora, Cookie provavelmente aprendera esse dom de , pois era basicamente isso que ela, também, fazia comigo. Te enfeitiçava até que, antes que você percebesse, estava enfeitiçado.
Felizmente não me pressionou para um comentário sobre seu cachorro e o caminho até a confeitaria foi feito em silêncio.
- Que pena! Está fechado - fingi um desapontamento bem falso ao me deparar com a placa de “FECHADO”.
- Tenho prerrogativas de melhor amiga - revirou os olhos, segurou minha mão e abriu a porta, puxando-me para dentro.
Da única outra vez que estivera ali, estava em uma missão de recuperar a fugitiva, mas agora podia apreciar o lugar. Era bem decorado e acolhedor, mas o que me chamou atenção foram as discretas barras de ferro reforçando as janelas e a grossura do vidro.
Enquanto deixava que me puxasse ate o balcão, pergunteI-me porque uma confeitaria precisava de vitrine à prova de balas.
- ! - a morena baixinha surgiu pela porta que imaginava levar à cozinha. - Não acredito que Stella esqueceu de trancar a porta de novo. Francamente - colocou, sob o balcão na nossa frente, a bandeja que trazia com os mais belos cupcakes que já havia visto. - Só peço uma coisa e ela age como se nã- - interrompeu o próprio discurso indignado quando sua atenção pousou em mim.
Franziu o cenho.
- O quê? Leónidas? O que...? - voltou sua atenção para , sua expressão confusa se acentuando ainda mais. - E você não está mais fazendo cosplay de Walking Dead?
Não fazia nem ideia de sobre o que ela estava falando, mas não parecia ser algo muito lisonjeiro. Antes que pudesse ficar ofendido em nome de minha namorada, contudo, soltou uma gostosa gargalhada.
- Acho que isso é um jeito mais interessante de colocar a situação, Ava. E você tem razão. Walking Dead já era - sacudiu a cabeça. - Mas depois conversamos sobre isso.
Suspirei aliviado por não ter que testemunhar o desenrolar daquele assunto - fosse lá o que ele fosse. Já havia coisas demais com as quais me preocupar agora que, diferentemente do que minha vizinha havia prometido, sua amiga continuava me fazendo de objeto para suas avaliação visual. E daquela vez parecia que estava sendo reprovado.
Já estava endireitando os ombros e estufando o peito para enfrentar a baixinha, exigindo que ela dissesse de uma vez o que queria ao invés de ficar me julgando silenciosamente, quando estalou os dedos na frente o rosto da amiga, tirando sua atenção gelada de mim.
- Hey. Avalon! Sei que adora acreditar nisso, mas você não é Jason Bourne, então pare de tentar descobrir a verdade absoluta por de trás de uma trama internacional. 007 quer o emprego de volta.
- 007 e Jason Bourne não são a mesma pessoa, - revirou os olhos.
- Sei disso. E você não é nenhum deles, Charlie's Angel, então se acalme. Viemos em missão de paz.
- Nossa. Gastou todos os espiões que sabia, hein, ? Será que dava para ser só um pouquinho mais clichê? - resmungou, abaixando-se para colocar a bandeja de bolinhos dentro da vitrine e em lugar de destaque. - Ok, então, Gorgo, então a que devo a presença de figuras tão nobres?
- Gorgo? Quem? - perguntou, tão confusa quanto me sentia.
O jeito como ela falava me lembrava estranhamente de C-
- Depois te explico - lançou-me uma olhadela rápida para imediatamente depois começar a tarefa de empilhar os copos de bebida para viagem.
- Viemos tomar café - resmunguei, decidindo tomar as rédeas da situação.
Quanto mais rápido fizermos a vontade de mais rápido poderíamos ir embora.
- É. A ideia era essa, mas enrolou tanto que vamos ter que comprar para viagem.
Tinha plena certeza de que minha animação apareceu em meu rosto.
- Tente não parecer tão satisfeito, - bateu o dedo em meu peito. - É rude. E nós vamos voltar aqui amanhã. Com bastante tempo de sobra - abriu um sorrisinho malvado quando revirei os olhos.
- Vou querer um café preto grande. Com creme. Nada dessas porcarias descafeinadas - murmurei de má vontade. - E uns cinco desses bolinhos que você acabou de trazer.
- Cinco? - Avalon olhou de cima a baixo. - Tem certeza de que isso vai ser o suficiente?
- Isso é só para o caminho.
E aquilo era verdade. Mandaria April comprar algum café-da-manhã descente para mim assim que chegasse no escritório.
- Oh! Ok, então - outra vez trocou um olhar com antes de se mexer para pegar o meu pedido.
- Vou querer o de sempre, Ava.
Enquanto Appleby se ocupava com outras coisas, minha namorada chegou mais perto e passou o braço por mina cintura.
- Comporte-se - sussurrou.
- O quê? - olhei para baixo, genuinamente surpreso. - Isso sou eu me comportando.
Revirou os olhos, afastando-se para pegar nosso pedido sobre o balcão. Aproveitei para tirar algumas notas da carteira e entregá-las antes que pudesse pensar em pagar. Passei o braço pela cintura dela e nos guiei para saída.
- Espere! Seu troco.
- Pode ficar - olhei por cima do ombro. - Para comemorar minha primeira vinda aqui - forcei-me a acrescentar para agradar a loira em meus braços.
- Ah. Ok. Obrigada.
- Tchau, Ava - ela se virou para acenar para amiga de maneira precária graças ao café em suas mãos. - Te vejo mais tarde.
Demos dois passos antes que ganhasse um beliscão na barriga e um olhar feio.
Soltei um suspiro e me virei de novo para trás.
- Tchau, Ava - forcei o tom mais amigável que consegui.
Fui recompensado por sua mão livre se entrelaçando a minha enquanto saíamos.
- Sabe, , acho que essa ideia de conhecer sua amiga não seja tão ruim assim - murmurei, levantando meu copo até o nível de meus olhos para ler melhor o que estava escrito em preto.
- Por que diz isso? - perguntou antes de tomar um gole da própria bebida.
- Porque ela não consegue aprender meu nome - parei por um momento, analisando também seu copo. - Se bem que deve ser um problema em geral dela, pois o seu também está bem esquisito.
- Quê? - virou-se para mim, seu rosto contorcido naquela expressão confusa que eu adorava.
Apontei para as letras negras que diziam "Gorgo" e depois virei meu copo para que ela lesse "Leo". Suas sobrancelhas bem delineadas subiram até a franja um segundo antes que caísse em uma gargalhada gostosa que nós acompanhou até nos separarmos na hora de cada um tomar o rumo de seu trabalho.
A lembrança do som cristalino de sua risada também me ajudou a passar o dia na I. Aliás, as horas naquele prédio estavam bem mais aturáveis, e não era obtuso o suficiente para não ligar os pontos e perceber que o motivo por detrás daquilo era . Talvez devesse agradecê-la por isso.
É. Ok. Sem chance. Se fizesse isso, não escutaria o fim das piadinhas.
April, por sua vez, certamente agradeceria se pudesse, se soubesse que o mau humor dos infernos que carregava nesses últimos dias havia acabado graças à . Se o choque que apareceu em seu rosto quando pedi "por favor" fosse uma indicação, minha secretária iria mandar um caminhão de flores em agradecimento. Meu estado de espírito não foi perturbado nem mesmo quando a vadia do meu pai resolveu aparecer em minha sala outra vez.
- Eissy, gostaria de entender qual a sua necessidade de vir me encher o saco toda semana - massageei minha têmpora.
- Meu nome é Missy.
Seu nome é ridículo, pensei em dizer.
- Não sei o que te deu a impressão de que me importo, Yssy.
Seu rosto magro demais se contorceu em uma careta de raiva, as bochechas se tingindo de vermelho e os olhos se estreitando. Naquele momento ela pareceu ainda mais com a Bruxa Má do Oeste, ou sua prima anoréxica. Felizmente ela teve o bom julgamento de não me responder.
- O senhor presidente mandou avisar que tivemos alguns problemas com o lugar onde baile de gala será realizado, então a festa será adiada.
Impressionante como ela tinha o dom de conseguir arrumar assuntos que me interessavam cada vez menos a cada novo encontro.
- De novo, Rissy, não sei o que te deu a impressão de que me importo.
- A presença de todos os executivos é mandatória - sibilou entre os dentes.
Arqueei a sobrancelha.
- Você não entende inglês simples? Pois vou soletrar. Não. Me. Importa. - Pontuei cada palavra com pausas prolongadas.
- Vou avisar ao presidente que a mensagem foi dada e que o senhor está ciente da obrigatoriedade de sua presença - e, dizendo essas palavras de um jeito dramático, apertou o iPad contra o peito, ergueu o queixo e saiu da minha sala como um furacão.
Estava tão leve que cheguei a gargalhar quando a porta bateu forte e as dobradiças chiaram. Depois que Gissy saiu para procurar Dorothy ou alguma outra pobre alma para atormentar, o dia passou macio e sem outros incidentes. Já estava fazendo o caminho para a pizzaria que adorava, a fim de comprar o jantar quando me lembrei de que não estava autorizado a voltar para casa até às onze graças ao seu jantar semanal com a amiga desmemoriada. Resolvi, então, mandar uma mensagem para Hunter e seguir para The Hook’s.
- !
Meu amigo se virou um pouco no banco alto para bater a mão em minhas costas enquanto me sentava ao seu lado e apoiava os antebraços sobre o balcão para pedir por uma caneca de cerveja preta.
- Por onde você se escondeu esses dias? Ou você só se esqueceu de como abrir uma mensagem?
Revirei os olhos frente a pergunta genuína.
- Sei muito bem como abrir uma mensagem de celular.
Tomei um gole da bebida que Tom colocou na minha frente enquanto Hunter soltava uma risada.
- Sei que você sabe. Fui eu quem te ensinou. Queria saber se não tinha esquecido.
- Não.
- Certo. Então o que aconteceu?
- O que aconteceu? - ri contra a borda de meu copo, olhando para o nada por um segundo enquanto lembranças dos últimos dias passavam rápido em frente aos meus olhos como a paisagem passa pelo vidro de um carro em alta velocidade. - O que aconteceu foi que agora tenho uma namorada - voltei minha atenção para ele.
Como sempre podia contar com Hunter para agir como o Puppy que era, não fiquei muito surpreso quando sua reação foi engasgar com a própria bebida. Também não tentei esconder o sorriso enquanto me divertia ao vê-lo tentando puxar o ar de volta para os pulmões.
- Namorada? - repetiu, meio rouco e completamente incrédulo. - ‘Tá falando sério?
Arqueei a sobrancelha em resposta.
- Ok, ok. Entendi. Você não tem motivos para inventar uma mentira dessas, mas vamos concordar que é não é exatamente fácil de acreditar.
- E por que exatamente?
- Nunca te vi em nada remotamente parecido com um relacionamento desde que nos conhecemos. , você nem mesmo repete a mesma mulher com receio de que ela entenda a situação de um jeito esquisito, e de repente vem me dizer que está namorando. Quem?
- Como assim “quem”, Puppy? , é claro. Ou por acaso você acha que sou algum tipo de babaca que se envolve com mais de uma mulher ao mesmo tempo?
- ! Claro! - deu um tapa na própria testa. - Tem razão. Era óbvio mesmo. E não me chame de Puppy.
- Como quiser… garoto.
A expressão dele se fechou em uma carranca de desagrado, mas sua curiosidade falou mais alto do que a vontade de reclamar sobre o apelido.
- Como essa história de relacionamento aconteceu? Da última vez que falamos sobre isso, você estava ainda naquela ideia imbecil de “acordo” - falou a última palavra com o mesmo desprezo que tinha demonstrado a primeira vez que ouvira sobre aquele assunto.
Felizmente dessa vez as notícias que compartilhava recebiam o “selo de aprovação Hunter”. Não estava afim de outro sermão. Ou qualquer sermão. Mas principalmente não um sermão de alguém que eu chamava de Puppy.
- Começou ontem.
- Ontem? - franziu o cenho e lá estava de novo aquela desaprovação. - Então esse tempo todo você esteve mesmo naquele imbecilidade de acordo? Aliás, esclareça uma curiosidade minha, o que exatamente essa merda significava?
- Aparentemente não o suficiente - encolhi os ombros, sentindo, por um segundo, um aperto esquisito em meu ombro só de pensar no desastre no qual aquela confusão poderia ter evoluído se não tivesse conseguido consertar a tempo.
- O quê?
Soltei o ar pesadamente e acabei minha cerveja em um gole antes de me virar para Caleb e aceitar o inevitável:
- Vou dizer isso só uma vez, então aproveite. Você estava certo. Relacionamentos não são acordos. Era um esforço inútil tentar fazer aquilo funcionar. Já estava fadado, desde o começo, a não dar certo - repeti as coisas que havia me falado há semanas.
- E temos um momento histórico aqui, senhoras e senhores, está assumindo que estava errado.
Revirei os olhos. Seria demais pedir que ele deixasse aquela escapar fácil.
- Mereço até que você pague a próxima rodada - virou-se para o barman. - Mais duas aqui, Tom, por favor. Como diria Chase, não foi possível controlar as variáveis, hein? Mas, me diga, além do completamente óbvio que eu apontei antes de toda a bagunça começar, mais alguma coisa deu errado?
Às vezes não entendia porque não podia apenas ficar quieto. Evitaria tanta encheção de saco. Infelizmente dessa vez precisava falar com alguém, precisava de algumas ideias, então resmunguei a resposta:
- Segundo , não éramos um casal. Só fazíamos sexo e assistíamos TV. Nada de conversas ou encontros. Obrigado, Tom - agradeci por ter mais uma caneca gelada na minha frente. - Mulheres são complexas.
- Concordo, mas dessa vez a culpa foi sua e não da complexidade feminina.
- O que quer dizer com isso?
Hunter tomou um gole da cerveja lentamente antes de responder:
- Mesmo as pessoas mais caseiras, gostam de sair de vez em quando. Era de se esperar, então, que, em algum momento, começasse a se ressentir com essa mesmisse de vocês. Além do que, o fato de vocês nunca saírem deve ter dado a impressão de que tinha vergonha dela ou algo assim.
- Mas isso é um absurdo. É ofensivo e revoltante!
- Hey! - ergueu as mãos em sinal de rendimento. - Não é para mim que você tem que se defender. Estou só tentando te ajudar, cara.
Meu temperamento se acalmou um pouco, afinal ele tinha razão.
- Você… você acha que pensa que tenho vergonha dela?
- Pode ser que sim, pode ser que não. Como você mesmo disse, a mente feminina é bem complexa. Talvez devesse falar com ela, não sei. Não conheço tua mulher ao ponto de dar alguns conselhos realmente precisos. O que posso dizer com certeza é que você deveria levá-la a alguns lugares.
Sendo de maior dificuldade de resolução, empurrei a primeira parte do problema para o lado, para me concentrar, então, naquilo em que podia conseguir alguma resposta no momento.
- Lugares como cinema e restaurante?
- É. Pode ser. Lugares assim são o clichê dos namoros, mas têm outros também.
- Quais outros?
Tombou a cabeça para o lado como um cachorrinho, analisando-me por um momento enquanto pensava.
- Acho que conheço um lugar

xxx

- Uma boate? vai te levar numa boate?
- Você fala como se estivéssemos indo a um clube de strip-tease. Só vamos dançar.
- Não poderia ligar menos se você estivesse mesmo indo a um clube de strip, - observei seu reflexo no espelho fazer um gesto de descaso com a mão. - Cada um sabe o que quer entre quatro paredes e isso não é da conta de nenhum terceiro desinteressado, o que acho peculiar é que está te levando para dançar. Simplesmente não consigo imaginar essa cena.
- Que cena? - olhei por cima do ombro franzindo o cenho, indignada. - me levando para sair? Pois saiba que outro dia fomos ao cinema.
- Não - sacudiu a cabeça. - Não é isso. O que está fora da minha capacidade inventiva é imaginar … dançando.
- Oh! - abaixei a saia que estava analisando. - Ah! Bom… acho que você tem razão. Também não consigo imaginá-lo dançando.
- Não, sério - levantou-se da minha cama, afundando os pés descalços em meu fofo tapete roxo. - Ele é todo duro, todo travado - adotou posição militar de sentido e começou a mexer o quadril em círculos em uma dança absolutamente ridícula. - Aposto que é assim que ele dança.
Soltei uma gargalhada antes de pegar e descartar o que parecia ser o décimo vestido que considerava como opção.
- Deixa de ser idiota e me ajuda a escolher alguma coisa.
- Amiga, com essas suas pernas, qualquer vestido ou saia vão fazer o senhor Rei de Esparta ficar fora dos trilhos.
- “Fora dos trilhos”? Que tipo de gíria é essa?
- As pessoas não falam assim?
- Não em New York.
Ava usou de toda sua maturidade para me mostrar a língua antes de voltar a cair de bruços sobre minha cama.
- Vamos deixar esse seu preconceito linguístico de lado e falar sobre o que realmente importa. Cadê Leónidas?
- Você talvez devesse considerar parar de chamá-lo assim.
- O quê? Por quê?
- Porque está pensando que você tem sérios problemas de memória. Ele ‘tá achando que você realmente acredita que o nome dele é Leónidas.
- Sério? - puxou um travesseiro e colocou sobre o colchão, ainda me olhando.
- Sim - assenti, passando os cabides em busca de outra coisa. - Desde ontem quando você escreveu “Leo” no café dele. Só faltou o DiCaprio.
Ava soltou uma boa risada, afundando o rosto no travesseiro por um momento.
- Nunca ouvi uma comparação tão ruim em toda minha vida. Seu namorado - cantou a palavra, em mais um jeito de me lembrar o quanto ela tinha se oposto a ideia de “acordo” - não poderia se parecer menos com Jack Dawson mesmo se tentasse. não é magrelinho e acho que seria capaz de nadar todo o caminho do atlântico até terra firme. Certeza que ele não morreria.
Pensei nos braços dele e toda a força que eles tinham.
- É - murmurei, distante e mordendo o lábio inferior para não gemer ao simplesmente lembrar da sensação de ser abraçada por . - Acho que você está certa nessa.
- E ainda te carregaria junto, uma vez que ele parece incapaz de ficar longe por muito tempo - ergueu e baixou as sobrancelhas repetidas e sugestivas vezes. - Um pouco excêntrico, pois seria no meio da água quase congelada e perto de alguns tubarões, mas seria um encontro bem original, hein? Mais legal do que uma boate.
- Você ‘tá bem engraçadinha, Avalon Appleby - murmurei, puxando outro cabide e soltando um suspiro de alívio por finalmente ter achado o que queria usar.
Deixei que o cabide escapasse por entre meus dedos.
- Falando no Rei de Esparta, onde ele está?
- Em casa. Tomando banho e se trocando - minha voz saiu meio abafada por estar passado o vestido preto e justo por meus braços e cabeça para cobrir a lingerie rendada azul escura que havia guardado para uma ocasião especial como aquela.
- Por isso que essa casa está tão quieta. Se o senhor Esparta estivesse aqui, a TV estaria ligada. Mas… espera um pouco. Isso aqui está muito quieto - olhou para os lados, chegando até mesmo a apoiar as mãos na beirada da cama para ficar de cabeça para baixo e sob minha cama, seus cabelos compridos varrendo meu tapete. - Cadê Cookie? - franziu o cenho, voltando a se endireitar para me olhar.
- Junto com .
- Sério? Sério mesmo? Ele sabia que a tia favorita estava vindo e, mesmo assim, foi para a casa do vizinho? Isso é um absurdo! - sentou-se na cama e bateu a mão no colchão.
- Não adianta ficar brava comigo - revirei os olhos, passando a mão para ajeitar o tecido que só chegava até o meio das minhas coxas. - Eu sou completamente voto vencido nessas coisas. Eles se juntam contra mim. Um total complô - caminhei até o outro lado do quarto para a porta do guarda-roupa onde as prateleiras dos meus sapatos estavam.
- Quê? Como assim?
- Os dois formaram uma "amizade de macho" - fiz aspas com uma das mãos enquanto tentava colocar a sandália preta no pé direito com a outra mão, e, como era de se esperar, quase perdendo o equilíbrio.
- "Amizade de macho"? - riu, voltando a se deixar de bruços. - Que coisa é essa?
- Foi o que disse que eles fazem - resolvi me abaixar para afivelar a sandália em meu tornozelo ao invés de arriscar meu pescoço em um malabarismo de bêbado. - Cookie está indo correr todas as manhãs com , então, nesse tempo, estão fortalecendo essa amizade de macho. Droga de vestido - resmunguei ao ter que me contorcer para conseguir algum tipo de movimento.
- Correndo com Cookie? Não posso imaginar tendo paciência para isso.
- Precisa ver os dois juntos. Ele parece um cachorro daqueles de exposição. Todo pomposo assim - estufei o peito - enquanto criam "uma amizade de macho" - sacudi a cabeça.
- Ainda é meio difícil acreditar - riu. - E que história é essa de "amizade de macho"? "Criar um laço" não era masculino o suficiente para ele?:
- Acho que não - ri, levantando-me do chão.
- Impressionante como a masculinidade é frágil.
- Mas isso é um fato já bem conhecido.
Posicionei-me frente ao espelho e passei a mão pelo cabelo para ajeitar tudo uma última vez.
- Aonde exatamente você disse que iriam?
- À uma tal de Los Circos ou alguma coisa parecida - abri um batom e outro à procura do vermelho certo.
- Los Circos? Nunca ouvi fala- Paraí! Você quer dizer Los Cielos? - voltou a se ajoelhar sobre a cama, os cabelos jogados para o lado, a boca meio aberta.
- Isso! É isso mesmo - olhei por cima do ombro antes de me voltar para observar meu reflexo enquanto aplicava o tom de maçã do amor.
- Mas... como assim? Como ele conseguiu? Essa é uma daquelas boates exclusivas. Super nova. Dizem que é impossível conseguir colocar o nome na lista de entrada.
- Ah é? - murmurei, meio desinteressada. - deve ter conseguido isso porque é rico.
- Não - sacudiu a cabeça enfaticamente. - Não pode ser só dinheiro.
Pensei por um segundo, lembrando o que exatamente ele tinha falado sore o assunto.
- Tem razão - falei finalmente. - Acho que mencionou que foi Hunter quem arrumou tudo - borrifei o perfume. - Parece que ele conhece todo mundo.
- Quem é Hunter?
- Melhor amigo de . Eles serviram juntos no... exército.
Apesar de me sentir envergonhada por mentir para minha melhor amiga, não existia qualquer possibilidade de trair a confiança que depositara em mim ao me contar sobre seu tempo na marinha. Decidi desviar o assunto para não ter que falar outras meia-verdades:
- Quer que te apresente?
- Me apresente o quê? - franziu o cenho, claramente confusa.
- Hunter - repeti o óbvio. - Quer que te apresente Hunter? Ele é uma gracinha.
- Gracinha? Que isso? Quantos anos ele tem, doze? Soltei uma gargalhada, pousando o caro frasco de perfume de volta para a penteadeira.
- Ele é poucos meses mais novo que . Muito bonito e tem o porte físico do meu namorado, um pouco mais baixo e um pouco menos... não sei... forte, eu acho - olhei para o lado, recordando. - Mas definitivamente militar. E ele é engraçado e fofo - bati o indicador algumas vezes no queixo, analisando-a. - Vocês formariam um bom par. Vou perguntar ao se ele é solteiro - rindo satisfeita com o pensamento, joguei as coisas necessárias dentro da bolsa pequena.
- Não! Não precisa. Não estou interessada - levantou-se da cama para se colocar ao meu lado.
- Como pode não estar interessada? Você nem viu o cara!
- Não estou interessada de qualquer jeito.
- E por quê? - sondei seus olhos azuis em busca de uma resposta.
- Ele é loiro ou moreno?
- Moreno. E qual a relevância disso?
- É que eu prefiro loiros.
- Não prefere nada. Acabou de inventar isso!
Deu um sorriso de lado e me olhou de cima a baixo.
- Você está ótima. Leo nem vai saber o que o atingiu. Agora vamos logo - agarrou minha mão. - Antes que ele apareça aqui, demandando por sua presença e me jogue no fosso por te manter longe.
- Ava, eu vou te proibir de assistir 300 - resmunguei enquanto era arrastada para minha sala. - Francamente.
- Aquele filme é ótimo e não é como se estivesse exagerando. Seu homem tem cara de que pod-Oh! Hey, Leo.
Minha melhor amiga teve a decência de ficar constrangida quando nos deparamos com nos olhando em sua melhor expressão impassível e fria de militar. Cookie estava sentado ao lado dele no sofá.
- Vamos? - cortei a tensão esquisita que estava crescendo. - Tchau, bebê.
Acenei para meu filhote, que imediatamente fez menção de de se atirar da almofada para se despedir, sendo impedido pelo reflexo rápido de segurando em coleira dele.
- Não dessa vez, garoto - coçou a atrás de sua orelha, seus olhos ainda sobre mim. - Não vamos estragar a bonita roupa de sua mãe, não é mesmo?
Meu bebê olhou para ele atentamente e quase esperei que ele assentisse solenemente. Os olhos apreciativos de se voltaram para mim e me prenderam de um jeito que só consegui voltar à realidade ao sentir uma mão em meu braço e Ava falando perto do meu ouvido:
- Sabe, eu estava errada antes. Se o tal Hunter me olhar do jeito que Leo está te olhando agora, adoraria conhecê-lo - brincou.
Soltei uma gargalhada, sacudindo a cabeça enquanto nós três saíamos do apartamento. fez questão de esperar Ava atravessar a rua e entrar em segurança em sua casa antes de fazer sinal para um taxi. A mão dele pousou em minha coxa e permaneceu assim durante todo o caminho. Não falei nada, mas percebi, pelo jeito que ele apertava minha pele a cada curva esquisita que o motorista fazia, que não gostava de não estar no controle da direção.
Ou de não estar no controle em geral, pensando melhor.
Felizmente a tal boate não era longe e logo estávamos do lado de fora de um prédio de dois andares com uma longa fila na entrada e várias luzes piscando. ignorou todos os olhares raivosos que recebemos das pessoas que esperavam sua vez para entrar no club, só parando ao ficar de frente para o segurança que agia como uma espécie de porteiro ali. Algumas poucas palavras e já estávamos sendo espremidos em meio a um mar de pessoas e música alta. Não era meu cenário ideal e, pelo jeito tenso de , obviamente também não era o dele. Não podia, entretanto, pedir para ir embora e me enrolar em um cobertor enquanto ele fazia um carinho distraído no meu cabelo. Não quando ele tinha se esforçado tanto.
Respirando fundo, então segurei sua mão e fiz vários ziguezagues em busca de um lugar mais calmo. se deixou guiar até que parei em um dos cantos da pista de dança. Pousei as mãos em seus ombros e mexi o quadril, rebolando no ritmo da música. O único movimento que ele fez em resposta foi colocar as mãos em minha cintura.
Estava basicamente dançando com um poste. Mesmo com os vários centímetros de salto que havia ganhado, ainda era muito mais alto.
- ! - reclamei. - Dança comigo!
- Não danço - respondeu tão ríspido quanto o baque de um chicote. - Mas quero que continue dançando para mim, - abaixou a boca para sussurrar rouco em meu ouvido. - Gosto disso, gosto quando você rebola desse jeito, mesmo que não seja no meu colo.
Estremeci tanto por suas palavras, quanto pelo jeito que chupou o lóbulo da minha orelha ao terminar de falar.
- Vamos, , rebola essa bunda gostosa para mim - mostrou sua apreciação por aquela parte da qual falava ao espalmar a mão em meu traseiro, apertando com força e me fazendo perder o foco por um instante antes de se afastar para que eu obedecesse sua ordem.
Só havia espaço suficiente para que me movesse um pouco para os lados e para longe dele seguindo a batida eletrônica que pulsava por todo o lugar. Porém, não fosse a limitação espacial que os outros provocavam, nem mesmo me lembraria que estavam ali, tão presa estava no jeito que me olhava. Seus olhos azuis gelo só se desgrudavam dos meus pelo tempo necessário para descer quente pelo meu corpo. Sabia que minha dança não era a das melhores, mas o jeito como me olhava me fazia sentir sexy. A mais sexy daquele lugar.
E também arruinava minha calçinha de renda.
Acima de tudo, entretanto, estimulava-me a dançar mais, a provocar mais até que abandonasse aquela pose impassível e se juntasse a mim. Ou que simplesmente me dissesse que estávamos indo para casa e para cama, onde passaríamos bastante tempo acordados.
Porém o jogo estava muito difícil e tinha uma força de vontade incrível. Não quebrava, não se rendia. Aposto que era por isso que ele foi capitão.
Meus lábios repentinamente ficaram secos enquanto uma fantasia se esgueirava por meu cérebro. Uma fantasia bem real que envolvia meu namorado em um uniforme. O pensamento foi tão deliciosamente excitante, que precisei parar o que estava fazendo a fim de me concentrar nos motivos pelos quais não podia literalmente pular em cima dele e implorar que me füdese daquele jeito gostoso que sempre fazia. O problema era que os seus antebraços fortes que a camisa azul deixava à mostra enfraqueciam qualquer controle que conseguia reunir. Precisava de alguma distância, então comuniquei a que iria buscar bebidas para nós, ao que prontamente respondeu que faria isso ele mesmo. Foi uma barganha do qual nós dois acabamos por colher benefícios. estava feliz por sair um pouco daquele ambiente e ir buscar alguma coisa para se intoxicar e esquecer sobre como não gostava de estar ali, e eu teria um tempo para me recuperar do calor que meu homem me causava.
Soltei um suspiro, juntando meu cabelo para cima, deixando minha nuca à mostra enquanto me abanava com a outra.
Pelos céus! Como alguém podia ser tão gostoso?
Estava ainda naquele momento busca por uma paz interior quando senti a mão dele em meu estômago me puxando para trás. Já pretendia me virar para pedir minha bebida e, assim, ganhar mais alguns segundos em meu caminho para um monastério budista - monastério do tipo alcoólico - quando senti um arrepio, mas não era o tipo certo de arrepio. Era um calafrio esquisito. Segurei o pulso masculino e afastei o suficiente para dar um giro. Não contive a surpresa ao me deparar com aquele cabelo loiro e os olhos verdes tão conhecidos.
- Robert! - forcei um sorriso.
- Sabia que era você, .
Passou os braços por mim em um abraço forte, que retribui de maneira bem constrangida, dando alguns tapinhas em seu ombro. Não que detestasse meu ex-namorado, era só que não conseguia mais sentir qualquer tipo de intimidade entre a gente. Era esquisito quando ele me abraçava.
- Tudo bem, linda? - deu aquele sorrisinho de lado que eu costumava achar bonitinho.
Agora, entretanto, achava meio infantil.
- Tudo ótimo e você, Robert, como tem passado?
- Estou melhor agora.
Dei um passo para trás, afastando-me quando ele deu um para frente, invadindo meu espaço pessoal.
- E como você entrou aqui?
- Um amigo - respondi vagamente, olhando para os lados à procura do meu namorado.
- Ah! Já eu, estou trabalhando como personal de um dos sócios - e aqui ele fez questão de, e tenho certeza que pensou estar agindo discretamente, flexionar o bíceps ao passar a mão na nuca.
Tive que conter um revirar de olhos. Talvez fosse mesquinho da minha parte ficar comparando-o com , mas não podia deixar de reparar que ele não abandonara o hábito de só usar camiseta regata e o cabelo artificialmente bagunçado. Todas aquelas características gritavam, com a voz de Ava, “Senhor Shake Protéico” na minha cabeça.
Detestava profundamente quando minha melhor amiga estava certa.
Pisquei por um segundo, tentando me lembrar de que Robert e eu já fomos bons amigos antes de que eu estragasse tudo ao concordar com uma relação que sabia, desde o começo, que seria um erro. Precisava me concentrar em outra coisa que não a percepção um tanto quanto chocante de que não sentia mais qualquer resquício de tesão por ele. Nem mesmo atração existia.
- Que legal, Rob - murmurei depois de um tempo, percebendo finalmente que ele esperava algum tipo de resposta.
- Sabe, linda - voltou a se aproximar.
Oh-ou.
- Estou com saudades - sua mão pousou em minha cintura.
Engoli em seco.
- Por que nós não saímos daqui e-AH. QUE PORRA.
Tudo aconteceu mais rápido do que pude acompanhar. Em um momento estava sentindo um revirar ruim em meu estômago e usando cada neurônio disponível para pensar numa maneira delicada de mandá-lo tirar suas mãos de mim e, num piscar de olhos, Robert estava se contorcendo, meio encurvado enquanto segurava a mão esquerda com a direita e entoava uma série de xingamentos.
Só quando outra mão pousou em meu quadril foi que entendi o que estava acontecendo. Virei a cabeça para encontrar ao meu lado, a expressão assustadora e dura como uma pedra, enquanto encarava meu ex-namorado resmungar sobre achar que sua mão estava quebrada. Minha boca chegou a se abrir e meus olhos se arregalaram de surpresa. se virou para me encarar também e podia ver puro gelo ali, gelo que queimava pior do que qualquer chama poderia fazer. Por um segundo de puro horror pensei que ele fosse atacar Robert e fazer muito pior do que apenas torcer sua mão. Podia sentir a fúria irradiando de seu corpo, crepitando no ar entre nós.
estava mais do que furioso.
Temi pela integridade física de meu ex-namorado. Não pela minha, nunca pela minha. Todos os meus instintos me diziam que jamais levantaria a mão para mim, mas Robert… ah, pobre Robert…
Quase chorei de alívio quando, ao invés de partir para cima daquele que um dia fora meu amigo, meu namorado apertou a mão em minha cintura e começou a me puxar com firmeza por entre a multidão.
- , ! Espere! ! O que está fazendo? Onde estamos indo? , !
As sandálias que usava não foram feitas para correr e tinha certeza de que, mesmo com o suporte de , iria acabar no chão se ele não diminuísse a velocidade. Usei, então, todo meu peso para parar de andar e, assim, obrigá-lo a fazer o mesmo. No segundo em que ele se virou para mim - mais pelo incômodo que estava provocando do que por realmente ter conseguido fazer com que parasse - contudo, percebi que não foi minha ideia mais inteligente. Abaixou a cabeça até que seus olhos estivessem no nível dos meus.
- O que estou fazendo? Onde vamos? - repetiu minhas perguntas.
Não podia ouvi-lo direito, apenas ler seus lábios. Ele sibilava cada letra, pouco se importando que a música alta cortava nossa comunicação. falava do jeito que queria, o mundo que deveria se esforçar para ouvir. E, naquele momento, ele estava queimando com uma raiva gelada e perigosa que só o permitia falar daquele jeito.
O pensamento de que talvez eu tivesse algum tipo de problema por estar tão excitada com aquela nova faceta dele cruzou minha mente de maneira não relevante e desapareceu assim que sua mão apertou de novo minha cintura.
Percebi, chocada, que ele apertou exatamente o mesmo ponto em que Robert havia tocado. A diferença é que agora eu queimava de tesão. Sua boca pousou em meu ouvido.
Fez questão que ouvisse as próximas palavras que vieram no mesmo tom das anteriores:
- Nós vamos para minha casa, , onde vou lhe ensinar a se comportar - seu aperto se intensificou. - Nós vamos para minha casa, e vou te dar as boas palmadas que você está merecendo.



Caítulo 18

A noite de New York sempre foi uma das coisas que sempre admirei. Desde pequena. Desde que tive idade suficiente para entender como aquele azul escuro conseguia guardar os segredos de milhares de pessoas. Pessoas de todo o mundo, segredos de todos os tipos. Engraçado perceber só agora que até aquele momento, apenas conhecia aquela vibração única da cidade mais famosa do mundo.
Não entendia. Apenas conhecia.
O estalinho que crepitava em minha pele a cada passo para dentro daquele manto escuro só fez sentido quando, com sua mão enorme cobrindo todo meu antebraço, me guiou para fora de Los Sei-lá-o-que-e-não-me-importo.
As luzes que normalmente gritavam, exigindo atenção, pareciam apenas dançar ao nosso redor. Os sons de trânsito, das pessoas, da cidade em geral se tornaram meros sussurros. Quase como se alguém abaixasse o volume de tudo ao redor e só estivesse em foco. Nem mesmo as fantasias que poderia ter criado graças às palavras sujas que havia me dito dentro da boate, e que haviam sido as últimas até o momento, existiam, pois minha mente tinha derretido como marshmallow enfrentando o fogo.
Se bem que a chama responsável pelo curto-circuito em meu sistema estava longe de se parecer com uma fogueira. Na verdade, depois de basicamente quebrar a mão de Robert e sussurrar em meu ouvido as palavras mais excitantes que já havia ouvido na vida, se fechara em si mesmo.
Não reagiu quando chamei seu nome ou quando as pessoas em quem esbarramos pelo caminho reclamaram irritadas. Se algum neurônio tivesse sobrevivido à seção fritura, talvez tivesse visto como seria adequada a comparação entre um míssil teleguiado e meu namorado. Duas forças poderosas imparáveis em uma missão.
só parou de marchar e me arrastar junto quando conseguiu intimidar, sem dizer uma única palavra, o cara que havia parado um taxi, para pegar a vaga dele e conseguir nosso transporte para casa.
A viagem de volta foi bem diferente da de ida. não me tocou ou mesmo agiu como se soubesse que eu estava ali. Sua atenção permaneceu fixa no encosto do banco à sua frente, a mandíbula travada e o corpo todo tenso. Não importou o quanto o encarei ou as vezes que tentei tocá-lo. permaneceu absorto em sua própria raiva gelada.
Não sabia o que fazer com minhas mãos, que estavam inquietas apertando o banco do carro, já que meu vestido era justo demais para que conseguisse revirar o tecido entre meus dedos em uma tentativa fútil de aliviar um pouco da tensão. A cada quilometro que o carro vencia, a cada prédio familiar que passava, sentia-me mais e mais como alguém encarando o abismo. Era a vertiginosa sensação de saber o que te esperava ao pular para o fosso sem fundo e, ao mesmo tempo, ter a ciência de que o que te esperava lá embaixo era o mais puro e completo desconhecido.
Passei a língua pelos lábios. Quase podia sentir o gosto apimentado do perigo.
Engoli em seco quando finalmente paramos. Meu namorado entregou uma nota que era suficiente para pagar por nossa corrida duas vezes e saiu, sem esperar pelo troco, mantendo a porta aberta para mim. Não houve nenhuma palavra ou carinho trocado durante todo o caminho até nosso andar. Suponho que deveria ter esperado por isso, mas ainda assim me surpreendi quando, ao invés de seguirmos para minha casa, como estávamos acostumados, abriu a porta do apartamento da frente. Os arrepios correram com mais força sob minha pele enquanto minhas pernas tremiam como gelatina e simultaneamente pesavam como centenas de tijolos a cada passo.
Ouvi a porta sendo fechada e trancada, depois nada mais. A sala caiu em um breu completo. A tensão subiu a níveis incríveis. Podia senti-lo se mexendo atrás de mim, mas não tive a coragem para me virar. A antecipação estava me consumindo de novo.
Mantive a atenção na parede ao longe, o ar saindo por minha boca em lufadas fortes. O peito subia e descia, pesado. Minhas bochechas queimavam e a calcinha que havia escolhido com tanto cuidado estava arruinada. Sentia-me como a presa sendo rodeada por uma pantera.
Ainda não podia ouvi-lo se movimentar. Talvez isso se devesse as batidas aceleradas e fortes do meu coração que retumbavam com intensidade em meus ouvidos. Ainda assim, minhas expectativas giraram em torno de algo forte. Esperava por algo brusco, então, tive que me controlar para não pular de susto quando senti meu cabelo ser puxado para o lado e para longe de minha orelha direita com suavidade.
Seus dedos calosos deslizaram por meu ombro, queimando a pele.
- Tenho uma dúvida, - prolongou meu nome mais do que o necessário, quebrando o silêncio com aquela rouquidão que me deixava bêbada de vontade.
- O… o quê?
Mal havia terminado a pequena palavra quando sua mão deixou minha pele para se afundar em meus cabelos, puxando-os para o lado com força suficiente para me mostrar que não apreciava nem um pouco o esforço que fiz para reunir nexo o suficiente em algumas sílabas.
- Eu disse que você podia falar, ? - seus dentes se fecharam no lóbulo da minha orelha em uma mordida quase tão dura quanto seu tom. - Você já está com problemas o suficiente, não acha?
Chupou a pele que tinha acabado de arranhar com os dentes e tive que usar todo o resto de autocontrole que tinha para não estremecer e me envergonhar.
- Problemas demais para continuar agindo como uma garota má.
Pousou a mão em minha coxa, subindo o vestido que usava, devagar. Não havia outro ponto de contato entre nós, apenas a ponta de seus dedos em um carinho que quase não podia sentir e que mantinha meu cérebro em seu atual estado de mingau.
- Sim. Quietinha. Desse jeito que quero você agora - voltou a sussurrar ao pé de meu ouvido.
Suas palavras eram como a escuridão ao nosso redor, envolvia-me e me inebriava. Bêbada. Tonta.
Excitada como nunca antes.
- Vamos voltar a que interessa.
Não entendia como o vestido tão apertado seguia as ordens dele, subindo de acordo com que era empurrado levemente para cima. Era como se até aquela peça de roupa estivesse hipnotizada e à mercê de seus comandos, obedientemente abrindo espaço para que encontrasse a delicada renda de minha lingerie.
- Por que você deixou que outro cobiçasse o que é meu?
Afundei os dentes com força no lábio inferior. Lembrando que não deveria gemer ou mesmo falar.
- Por que havia outro com você se só te deixei por um momento? Estava dançando para outro? - a mão que não estava brincando com a renda de minha roupa íntima subiu para pousar em minha cintura. - Dançando para outro quando há pouco havia dito como você ficava uma delícia rebolando essa bunda gostosa. Fez isso para me desafiar?
O jeito gelado como ele falava não deveria me deixar excitada. O perigo tocava minha pele em ondas e sabia que o certo seria estar assustada, pois estava vendo, pela primeira vez, o lado letal de . Ao invés disso, entretanto, o tesão que me queimava só crescia. Além disso, sabia que ele não iria me machucar, não fisicamente... ou ao menos não de um jeito que eu não gostasse.
- Responda.
- N... não.
- Não? - repetiu. - Não, você diz, mas então por que está usando essa calcinha minúscula? - esticou o pano delicado, deixando que, com um estalo, atingisse minha pele ao voltar para o lugar. - Queria impressioná-lo? Queria dançar para ele, ? Por isso pediu para que eu fosse buscar uma bebida, para que pudesse encontrá-lo?
Queria assegurar que não era nada daquilo, que tinha entendido errado, mas sabia que não podia. Ainda não.
A necessidade, entretanto, era tão grande que podia sentir o gosto de sangue da pele que rasgava sob a força de minha mordida, no esforço para permanecer em silêncio.
- Responda.
E finamente ali estava a permissão que precisava. Agora só precisava encontrar um jeito de ligar palavras que fizessem algum tipo de sentido.
Engoli em seco, minha garganta quase tão seca quanto a dele deve ter ficado em meio ao deserto escaldante.
- Não. Ele... apareceu do nada. Não...
- Quem era ele?
- Ninguém importante - respondi sem pestanejar, minha voz mais firme do que em qualquer outro momento desde que chegamos em casa.
- Não? Ninguém importante? - soprou as palavras, dedilhando minhas costelas tão suavemente que tive vontade de gritar de frustração.
estava me fazendo perder a sanidade por me manter na beira do precipício, pronta para tocar o que estava tão perto e que sabia que seria tão bom, apenas para me puxar de volta e para longe. De novo e de novo.
Roçava a ponta dos dedos naquela promessa de orgasmo do mesmo jeito leve que ele me acariciava.
- Então por que ele te tocava aqui?
Fechei os olhos com força ao sentir apertar de novo o lugar onde Robert havia posto a mão.
Sacudi a cabeça.
- Ele... - passei a língua sobre os lábios secos - me pegou de surpresa.
- De surpresa? - outra vez me repetiu como se estivesse saboreando cada letra.
O silêncio pesou, o oxigênio que puxava para dentro não era o suficiente e tinha que continuar inspirando freneticamente. Se antes a espera apenas crepitava ao nosso redor, agora era como se as vibrações estivessem tornando o chão sob meus pés instável. Um pequeno terremoto particular.
- Sim.
Só pude assentir o mínimo com a cabeça. não estava fazendo nada para restringir meus movimentos, mas era como se estivesse cordas em meus pulso e tornozelos. Não me mexia.
Não queria me mexer.
Sabia que meu namorado não aceitaria de bom grado movimentos “não autorizados” e definitivamente não queria que a experiência que estávamos tendo acabasse.
- Hmm… Entendo - passou o nariz por meu pescoço.
Trinquei os dentes para refrear o gemido que sua respiração batendo em minha pele causava.
- Acredito em você - pousou a mão em minha bunda. - Mas, ainda assim… você não se comportou hoje - estalou a língua algumas vezes. - E você sabe o que acontece com quem não se comporta? - durante todo o tempo em que ele falava, acariciou minha bunda. - Responda.
Dessa vez estremeci visivelmente. Finalmente iria receber o que estava esperando há vários e intermináveis minutos.
- Elas são punidas - essas palavras mal passaram de sussurros esfiapados.
- Hmm... - um ressoar satisfeito retumbou em sua garganta enquanto desceu lentamente o zíper do meu vestido.
De novo a peça se dobrou - literalmente - à vontade dele, deixando de cobrir meu corpo e caindo no chão em um círculo frouxo ao redor de meus sapatos. Agora estava usando só aquilo que meu namorado classificara como "uma calcinha pequenininha".
- E, ainda por cima, não está usando um sutiã - soprou em meu ouvido, suas mãos enormes se ocupando em segurar meus seios.
Solucei de alívio quando seus polegares acariciaram meus mamilos que estavam tão duros e implorando por atenção.
- Certamente merece ser punida - apertou o bico por um delicioso segundo antes de aliviar a pressão, voltando para os carinhos leves e angustiantes de antes. - Responda, , você não acha que merece levar algumas boas palmadas para aprender a se comportar?
Apertei minhas pernas, buscando qualquer atrito que pudesse aliviar ao menos um pouco a sensação horrível de vazio que contribuía em muito para que me voltasse um pouco mais insana a cada segundo.
- Sim - gemi. - Por favor, .
Imediatamente sua mão estava em minhas costas e me empurrando para frente. Por um segundo pensei que sua intenção fosse me derrubar no chão, mas logo senti o estofado do encosto do sofá sob minha barriga.
Não sabia que minha excitação poderia ser maior do que há um momento, mas estava errada. Assim que notei que estava me posicionando de modo que me inclinasse sobre o móvel de maneira que meu traseiro virasse alvo fácil, senti que a umidade em minha calcinha agora escorria por minha coxa.
- Dessa vez não vou te fazer contar, . Você não é sortuda? - falou, o tom zombeteiro.
Antes que pudesse implorar de novo, senti sua mão atingindo minha bunda. O gemido que soltei em resposta se assemelhou mais a um grito estrangulado do que qualquer outra coisa. O zumbido em minha pele nem mesmo tinha se aliviado quando outro ponto foi atingido.
Minhas mãos apertaram as almofadas do sofá caro com força. E, mesmo assim, percebi que me movia em direção à ele, ao invés de tentar fugir.
Não havia exatamente dor ali, pois sabia que meu namorado não estava usando nem um centésimo de sua força, mas sim uma mistura entre o incômodo e o prazer que faziam meu lado mais bem guardado se animar, se eriçar. O sangue rugia nas veias com tanta força que não conseguia prestar atenção em nada senão na descarga elétrica de adrenalina que me embebedava e me fazia clamar por mais.
O terceiro tapa veio no mesmo lugar que o primeiro. A ardência aumentou e sentia como se os ossos tivessem abandonados minhas pernas, tão moles elas estavam.
A quarta vez que sua mão desceu sobre minha bunda também foi naquele lugar que certamente já estava mais vermelho do que outras partes.
Mordi o lábio inferior para não gemer ainda mais alto do que o normal, porque, mesmo em meu estado de meia-loucura, ainda podia perceber que todo e qualquer som naquele cômodo era eu quem produzia. estava no mesmo silêncio que lhe era característico, soltando apenas alguns murmúrios de apreciação esporadicamente. Minha tentativa de permanecer impassível, contudo, não se mostrou muito eficiente, pois estava tão perto do orgasmo... tão perto que não me conseguia limitar minhas reações.
A quinta palmada arrebentou com o último fiapo que estava me prendendo no limite. Qualquer auto-controle que tinha se evaporou e me inclinei para frente até que estivesse pressionando o quadril contra o sofá, esfregando a parte que tanto desejava ser acariciada. Precisava de atrito e, se não iria me dar, buscaria em outra parte.
O jeito que sua mão agarrou meu cabelo e me puxou para trás deixou bem claro que não gostava do que eu estava fazendo.
- Não, - sibilou em meu ouvido. - Você não vai esfregar essa sua büceta desse jeito. Quem vai cuidar disso sou eu - deslizou a mão direita para dentro da minha calcinha enquanto a esquerda subiu outra vez para meu seio.
Joguei a cabeça para trás sobre seu ombro, deixando que meu corpo usasse o dele como apoio enquanto seus dedos acariciavam de leve meu clitóris e meu mamilo.
- , por favor - não tive problema em implorar.
Precisa de mais força, de um beliscão do jeito que só ele sabe que eu gostava.
- Tsc, tsc, tsc. Você acha que merece que eu te coma, ? - mordeu o lóbulo da minha orelha ao terminar de sussurrar aquelas palavras que faziam com que me contorcesse de vontade.
- Sim. Por favor… Sim.
Rocei minha bunda em sua ereção por um glorioso momento antes que ele me afastasse outra vez.
- Não, não. Não até eu dizer sim - apertou a mão em meu cabelo, fazendo com que eu inclinasse ainda mais a cabeça para trás. - Entendeu?
Fechei os olhos por um segundo, de novo precisando umedecer meus lábios secos.
- Sim.
- Assim que eu gosto.
Como recompensa, ganhei um pequeno beliscão no mamilo que outra vez me levou à beira do precipício.
- Sabe, , você se comportou muito bem agora há pouco. Melhor do que eu imaginava. Talvez você mereça que eu te coma. Aqui. Por trás. Você curvada sobre o sofá e só com essa porra dessas sandálias que me dão um tesão enorme. O que acha?
Dessa vez só consegui gemer. Precisava me aproximar mais dele. Felizmente não se opôs quando joguei os braços para trás e para colocá-los em volta de seu pescoço.
- Hmm… Também me agrada essa ideia.
Seu tom suave me enganou em uma falsa sensação de segurança, o que me fez ter uma surpresa ainda maior quando, com um puxão, ele arruinava outra de minhas calcinhas e a descartava no chão. Não tive nem tempo de reclamar sobre sua falta de apreciação pela Victoria’s Secret.
- Mas antes… antes preciso saber se você aprendeu sua lição.
Agora sem minha lingerie para atrapalhar, sua mão se movia com mais liberdade, separou os lábios e me penetrou com um dedo.
Estremeci de novo no que parecia mais uma convulsão. Estava tão… tão perto.
Só algumas estocadas de seu indicador e poderia alcançar o orgasmo que ele tão cruelmente continuava me negando.
- Não está me respondendo. Pelo visto você não aprendeu quem está no comando aqui. Talvez merecesse mais algumas palmadas. Certamente essa bunda poderia ficar ainda mais gostosa um pouco mais vermelha.
- Não - soltei um grito estrangulado, minhas unhas se cravando em sua nuca.
Não que me opusesse a mais um pouco de punição, o que me causava horror era que mais uma sessão de disciplina atrasaria meu orgasmo. Teria que esperar mais ainda.
- Eu… e-aprendi. Eu aprendi - falei meio histérica. - Aprendi. Você está no comando.
Nós dois sabíamos que aquela admissão só valia para o quarto, então não havia necessidade de acrescentar restrições. se afastou um pouquinho e ouvi o barulho do zíper e depois da camisinha sendo aberta.
Mal podia acreditar que ele finalmente iria me comer.
- E…? - perguntou.
Fechei os olhos com pesar, sentindo lágrimas de frustração se acumulando sob as pálpebras. Não sabia o que mais ele queria.
- Eu… eu não sei. , por favor… o que você quiser… por favor… eu não sei.
- Shiu. Quietinha - sussurrou em meu ouvido. - Você só precisa me dizer para quem você dança. Quem é a única pessoa para quem você rebola essa bunda gostosa.
De repente foi como encontrar a calmaria em meio à tempestade. Por um segundo meus nervos se acalmaram e pude murmurar a resposta com uma paz que não combinava em nada com a situação. Talvez fosse porque era uma verdade completa, minhas palavras não tremeram nem um pouco:
- Você. Só rebolo para você, .
Então veio a tempestade.
Sua mão foi para minhas costas, empurrando-me firme até que estivesse de novo debruçada sobre o encosto do sofá. Meu namorado massageou meu clitóris por um segundo antes de passar o dedo por minha entrada para ter certeza de que estava pronta. E eu estava… bem… encharcada. Então não foi surpresa quando ele finalmente, finalmente, me penetrou.
Forte.
Duro.
Do jeito que nós dois gostamos.
Mesmo sua mão sobre mim não impediu que arqueasse as costas em reação ao jeito gostoso que seu pau me queimava ao me estirar. Gemia a cada centímetro que ele empurrava para dentro para depois tirar de novo naquele movimento que deveria acalmar minha excitação, mas apenas fazia minha cabeça girar mais um pouco.
Para dentro e para fora.
Dessa vez, contudo, estava mais perdida nas sensações do que o normal. Poucas estocadas e já estava pronta para gozar. Meus gemidos altos se misturaram com grunhidos espaçados dele. Suas mãos seguravam minha cintura com força, provavelmente deixando marcas que apreciaria mais tarde, e o sofá baixo de nós se mexia um pouco.
O suor descia por entre meus seios e grudava meu cabelo na testa. Tentando me apegar a um pouco de realidade enquanto meu mundo caía ao meu redor em ondas crescente, de novo afundei minhas unhas no sofá.
- Rebola, . Rebola para mim. Só para mim.
Reunindo o resto de energia que tinha, fiz que ele mandava. Uma, duas vezes e não aguentava mais.
Abaixei a cabeça e, com um último gemido abafado, por fim deixei que as ondas que a tanto me prendiam em sua correnteza, vencessem, levando-me para o fundo, sufocando-me em um prazer tão intenso que o mundo ao meu redor escureceu.
A última coisa que lembro é do soluço de prazer que soltei ao atingir o melhor orgasmo da minha vida ao mesmo tempo em que meu namorado também gozava. Depois disso veio o cansaço extremo que me fez apagar.
Acordei no susto, chegando até mesmo a bater a mão esquerda com força para o lado em um apoio para me levantar da superfície macia em que me encontrava. Felizmente o tapa que dei encontrou apenar um travesseiro fofo ao invés da luminária sobre o criado-mudo ao meu lado direito. Demorei alguns segundos e precisei da ajuda da luz fraca que passava pela cortina para reconhecer que estava dormindo no quarto de .
A sensação de ardência na minha bunda também era um bom indicativo.
Com uma olhada para baixo, descobri que estava completamente nua. deve ter tirado meus saltos ao me carregar para cama ontem à noite depois que… bem…
A simples lembrança já me deixava meio excitada. Meus mamilos endureceram e tive que apertar as coxas uma contra a outra. Estava me tornando uma pervertida graças à .
A fome, entretanto, era maior, então me enrolei no lençol preto e caminhei para a cozinha à procura do meu namorado.
Nada.
A casa estava silenciosa e as prateleiras, vazias. Tendo em mente que ele provavelmente havia saído para comprar café-da-manhã para nós dois, voltei para o quarto. Intrometidamente abri uma gaveta em busca da calcinha que havia escondido ali para uma emergência, já que meu namorado parecia ter uma apreciação especial por destruir minha roupa íntima ou, pelo menos, furtá-las. Procurei, então, por uma camiseta para fazer de vestido depois do longo banho que teria naquele chuveiro tecnológico dele. Estava penteando meu cabelo úmido com os dedos, já um pouco mais descansada e definitivamente mais cheirosa, quando ouvi a porta da frente se abrir. Levantei da cama e segui o barulho, parando surpresa, contudo, ao reconhecer o som de passinhos fofos. Logo em seguida Cookie apareceu, no meio do corredor da casa de , a língua para fora como se sorrisse enquanto animadamente trotava em minha direção. Abaixei em meus joelhos para coçar sua cabeça.
- Hey, bebê. O que você está fazendo aqui?
Latiu e depois olhou para trás. Acompanhei sua linha de visão e encontrei meu namorado, vestindo uma camiseta, bermuda e tênis, encarando nós dois. Havia dois sacos de papel em uma de suas mãos.
- Fomos correr.
- Você buscou Cookie para levá-lo junto?
Ele encolheu os ombros e olhou para o lado antes de responder como se não tivesse nada de mais:
- Tinha prometido.
Tive que conter o “aw” que queria soltar. Esse lado adorável de me fazia ter vontade de apertá-lo, mas, como tinha certeza de que não seria uma demonstração afetiva bem-vinda ao seu orgulho de macho, contentei-me em passar os braços por meu cachorro e abraçá-lo com força, ao invés.
Os olhos do meu filhote enorme se esbugalharam e tive que afundar a cabeça em seu pelo para esconder a risada que queria dar.
- Nós passamos para comprar muffins e café - continuou.
Adorável.
Absolutamente adorável.
- Ok - murmurei, levantando a cabeça, mas ainda abraçando Cookie. - Obrigada.
- Ok. Hmm… certo. Vou tomar uma ducha então. Dez minutos - colocou a sacola sobre a mesinha ao lado do sofá.
- Eu espero por você.
Fiquei de pé e franziu o cenho ao encarar a camiseta que eu vestia, um brilho estranho passando rapidamente por seus olhos.
- Que foi? - olhei para baixo e para camisa azul petróleo que usava. - Algum problema? - Não - sacudiu a cabeça. - Já volto.
Deu um sorriso fechado quando passou por mim. Olhei para baixo e para Cookie, que me encarou com a mesma confusão que sentia. Como nenhum de nós dois tinha nenhuma resposta, dei de ombros e peguei a sacola, tirando um muffin e dando uma mordida.
- Nem vem, Cookie - empurrei-o de leve para longe com a mão livre quando ele pulou em mim, as patas sobre minha barriga e os olhos pidões. - Tenho certeza que deu alguma coisa que você não deveria comer quando vocês supostamente estavam malhando. Pensa que eu não sei que ele contrabandeia guloseimas para você?
Meu filhote olhou para o lado e abaixou as orelhas.
- Isso mesmo. Deve se sentir culpado mesmo. Mamãe só tenta manter você saudável - completei depois de mastigar mais um pedaço. - E você fica usando sua tia e seu pa-
Arregalei os olhos, parando a palavra no meio do caminho. Não tinha ideia de onde ela havia saído, mas me assustava um pouco… ou talvez muito. Para piorar ainda mais a situação constrangedora, meu bebê estava me olhando também assustado e quase tive certeza de que ele entendia perfeitamente o que tinha dito e estava tão chocado quanto eu.
Felizmente a campainha tocou e quase tropecei na pressa de me agarrar a qualquer motivo para escapar, correndo para atender o som. Deveria ter previsto que aquela não era a ideia mais genial do mundo, pois, assim que abri a porta, deparei-me com um homem que nunca tinha visto antes.
A primeira coisa que notei foi sua altura. Tão alto quanto e bem maior do que eu. Ele vestia uma calça jeans preta, tênis e uma camisa social que cobria músculos que deviam ser tão firmes como aço. Uma mistura calculada entre formal e informal para deixá-lo menos intimidante, mas que não atingia perfeitamente seu objetivo, uma vez que seu porte demonstrava inegável força e o ar de perigo ainda o circulavam de maneira quase tangível.
Perigoso.
Militar.
Olhei para cima e para seu rosto. O cabelo loiro era um pouco maior do que o normal, mas não chegava nem perto de seus ombros. A barba estava por fazer e lhe deixava ainda mais másculo. Seus olhos muito azuis me encaravam com um misto de surpresa e divertimento.
- Hey, Darlin’.
Sua voz era rouca e arrastada juntamente com um sorrisinho no canto dos lábios fez com que eu corasse e me sentisse tímida como uma garotinha de ensino fundamental - mesmo tendo um namorado e estando extremamente satisfeita com isso. Ou, melhor dizendo, tendo um namorado que me mantinha perfeitamente satisfeita.
- Oi - cheguei ao cúmulo de até mesmo colocar o cabelo para trás da orelha olhando para o chão por um momento.
Obviamente aquela cena esquisita se dissolveu no segundo em que meu cachorro veio correndo para nós, empurrando-me para o lado e pulando animadamente para colocar as patas sobre as coxas do desconhecido. Foi quase como assistir a um replay de como conhecemos , e sentia-me tão constrangida quanto naquele dia.
- Cookie! Meu Deus! - puxei-o por sua coleira azul para longe do loiro que, agora que se recuperara do susto, ria e acariciava a cabeça preta do meu bebê. - Nossa. Que vergonha. Mil perdões.
Felizmente Cookie se deixou ser puxado para longe e sentou-se ao meu lado, apesar de ainda manter a atenção no cara, o rabo até mesmo fazendo barulho ao bater repetidas e animadas vezes no chão.
- Quantas vezes tenho que te dizer para não fazer isso? - sibilei, olhando para o cachorro que amava e cuidava desde que ele nasceu e que não me obedecia e, no momento, nem mesmo fingia prestar atenção no que eu falava.
- Darlin’?
Como não cansava de envergonhar a mim mesma, estava falando com meu cachorro na frente de um total desconhecido enquanto basicamente ignorava sua presença nem um pouco ignorável. - Oh, desculpe - voltei a encarar seus olhos.
Tão acostumada estava com olhos azuis, ainda me surpreendia com quantos tons eles podiam ter. Os dele não eram gelo como os do meu namorado, nem oceano como os da minha melhor amiga, não, os desse bonito desconhecido eram como o céu em um dia de sol, límpido.
- Em que posso ajudá-lo? - perguntei finalmente, só agora notando a mochila aos seus pés.
- Bom - coçou a nuca. - Eu estava procurando alguém, mas acho que errei o apartamento.
Cookie escolheu esse momento para soltar outro latido feliz.
- Definitivamente no endereço errado - murmurou para si mesmo, franzindo o cenho ao encarar curioso meu filhote.
- Hmm.. Quem você estava procurando?
- Est- Espera um pouco - arregalou os olhos por um segundo, suas sobrancelhas subindo um pouquinho enquanto analisava minhas roupas.
Tive uma reação bem parecida com a sua ao me dar conta exatamente do que estava usando. Uma camisa e uma calcinha. Nada mais.
Antes que pudesse me esconder atrás da porta… ou talvez me mudar para o México, graças à vergonha, o pedaço de arte pura em minha frente voltou a falar:
- Darlin’ o que está escrito nessa camisa? - apontou para o lado esquerdo do meu peito.
Abaixei a vista. Só agora percebendo que “” estava grafado em letras garrafais e em negrito.
- Ah! É o nome do meu namorado - as palavras saírem de minha boca um segundo antes que percebesse que estava falando coisas demais para um completo desconhecido. - .
Um desconhecido que poderia ser um serial killer. Spencer estaria tão orgulhoso, pensei ironicamente.
Dessa vez sua boca se abriu um pouco em choque e ele levou alguns segundo além do necessário para continuar:
- ? é seu… namorado?
A surpresa em seu tom era fracamente um pouco ofensiva. Cruzei os braços, decidindo, então, parar de responder e começar a perguntar:
- Como você disse que se chama mesmo?
- Oh, você tem razão, Darlin’.
Recuperou-se rapidamente, passando a mão sobre o cabelo e me lançando outro daqueles sorrisos incríveis de lado. Tive que conter um suspiro.
- Que rude da minha parte - estendeu a mão. - Meu nome é Dylan.
Estava a meio caminho de responder seu cumprimento quando uma voz muito conhecida soou atrás de mim:
- Chase?


Caítulo 19

- Chase! – exclamei de novo, mal acreditando em meus olhos enquanto caminhava até a porta.
Em um raro momento de bom-senso, saiu do caminho antes de ficar presa entre nós dois quando Dylan também se mexeu e nos encontramos no meio do caminho para um cumprimento. Fiquei agradecido por sua boa ideia, afinal, não queria que ela fosse esmagada, ou que tivesse que socar meu recém-chegado amigo se a camiseta que minha namorada estava usando subisse um pouco e mostrasse mais do que já revelava.
- Quanto tempo, meu velho – bati em suas costas afetivamente mais uma vez. – Vamos, vamos. Sente-se.
Esperei que ele se acomodasse no sofá grande, que era um dos meus lugares favoritos para füder , antes de me jogar na poltrona à esquerda deste e transversal à mesinha de centro. Cookie, que já havia decidido que não precisava ter nenhuma cerimônia apesar de suas visitas aqui não serem muito frequentes, pulou ao lado de Chase, deitando-se na almofada enquanto me olhava inocentemente.
Reprimi uma revirada de olhos e também o pensamento que me faria ponderar sobre como tinha ido parar numa situação em que deixava o cachorro subir no meu sofá, que era basicamente uma das únicas coisas das quais gostava naquela merda de casa. O sofá e a minha cama. Fiz uma nota mental para deixar a porta do quarto sempre fechada. Não queria o mimado tendo ideias sobre dormir onde eu dormia. Nada de pelos no lençol. Seria uma merda de um grande jeito de acabar com uma ereção.
O som da porta se fechando nos fez virar a cabeça.
- Eu... – minha namorada olhava para nós, as bochechas vermelhas enquanto puxava a barra da minha blusa para baixo, parecendo só agora tomar consciência do traje que usava. – Eu vou trocar de roupa – apontou para o corredor e chegou até a dar alguns passos antes de se lembrar de algo e parar de repente. – Quer dizer, para lá – girou o corpo e voltou para a porta. – É para lá. Trocar de roupa.
Tirei a atenção dela por um segundo ao ouvir uma risada abafada. Chase estava discretamente colocando a mão sobre a boca para disfarçar enquanto encarava minha namorada com uma curiosidade que chegava a ser, em si, quase cômica.
- Na minha casa. Porque preciso mudar de roupa né e... nossa. Fica quieta, – resmungou baixinho.
Pegou suas chaves sobre a estante perto da porta e já estava com um pé para fora quando se virou para Cookie, um convite mudo nos olhos. O cachorro encarou-a por um segundo antes de soltar um latido e serenamente deitar a cabeça sobre a coxa de Chase, que me lançou um olhar surpreso em resposta, mas não tentou empurrar o grande bobão para longe. Dei de ombros e minha namorada saiu resmungando alguma coisa sobre ingratidão.
- É um cachorro bem esquisito que você tem aqui, - comentou assim que a loira estava fora de nosso campo de visão. - Pulou em mim como se me conhecesse há anos. Ele reage assim sempre? - apesar de suas palavras meio incertas, Chase começou a acariciar atrás das orelhas do filhote de .
- diz que não, que Cookie só reagiu assim raras vezes, mas eu não acredito muito. Ele pulou em mim também a primeira vez que nos encontramos.
- Se encontraram? - repetiu, franzindo o cenho e olhando para o sujeito de nosso assunto por um segundo antes de voltar sua atenção para mim. - Pensei que o cachorro fosse seu. Se bem que ”Cookie” não parece muito com um nome com que você batizaria qualquer coisa.
- Não, não é meu. é a dona.
Aquelas palavras tiveram um gosto estranho em minha boca.
- E você deixa o cachorro da sua namorada subir no sofá?
Pelo tom que usava, certamente estava se lembrando da vez em que discuti com Hunter sobre ele ter jogado acidentalmente um par de meias limpas sobre a minha cama, que ficava ao lado da dele em uma das bases em que passamos cerca de dois meses na Arábia Saudita. Não entendia sua surpresa tanto quanto não entendia a dificuldade que os dois tinham em compreender que, no meio do deserto, vivendo no meio do nada, cada um se apegava à normalidade que podia. A minha era manter as minhas coisas minhas. Ou, melhor, eles entendiam sim. Lembro-me de perceber como, naqueles dias, Hunter fazia questão de se sentar no mesmo lugar à mesa no refeitório da base e como Chase sempre dava um jeito de dormir ao lado da parede para improvisar uma estante para seus livros.
A dificuldade para me entender provavelmente vinha de suas incapacidades de enxergar que eles também tinham o que adoravam chamar de “manias”. Levantar esse argumento, contudo, nunca foi uma opção, uma vez que teria que explicar como exatamente eu podia, com tanta certeza, afirmar que a razão por trás daqueles atos tinham a busca de normalidade para ser. Não que meus dois irmãos não soubessem sobre o velho, mas preferia poupar os detalhes sobre como, enquanto crescia, sempre dei um jeito de manter as mesmas cortinas em meu quarto. Dante tinha mania de redecorar a casa de novo e de novo para impressionar seus amigos esnobes, mexendo em cada centímetro do lugar. Aprendi desde cedo a subornar a governanta para que ela escondesse minhas cortinas quando a equipe de decoração chegasse, assim eu podia recolocá-las quando eles deixavam a casa. A püta que o velho também mantinha como secretária naquela época e que, entre outras funções, vinha fiscalizar as mudanças como uma ditadora, nunca via as cortinas bege, mas eu sempre enxergava aquele meu pequeno senso de normalidade todas as vezes que o sol me acordava nas manhãs.
Chase e Hunter tiveram infâncias normais. Não os culpava por não entender, aliás, ficava grato por eles não terem sentido a necessidade algo assim enquanto cresciam.
Na verdade, a gratidão era tamanha, que permitia as piadinhas sobre o assunto sem me irritar.
Voltando ao presente e à sua dúvida, dei de ombros, então, e apenas assenti.
- E você pensa que roda o mundo e vê de tudo, só para chegar em casa e descobrir que as maiores surpresas estão aqui - resmungou para si mesmo, olhando para o nada.
- Deixa de ser idiota e ficar lendo demais. Não é nada, só um sofá.
- Só um sofá? Então a tal é só uma garota?
Estava em pé antes de perceber que tinha me levantado.
- Que porra, cara? Que porra? Eu te falo que a merda de um sofá de couro não é tão importante e você vem me dizer que minha namorada não importa? Cheirou algum gás tóxico no meio daquelas zonas de guerra onde você se enfurnou nesses últimos meses?
A única coisa que me fez parar foi o sorriso esperto que ele tinha no canto da boca.
- Filho da puta - soltei uma risada meio nervosa, passando a mão pelo rosto.
Alguns meses longe de Chase e desaprendi a reconhecer imediatamente quando o merdinha estava medindo cada palavra para uma manipulação sutil a fim de descobrir exatamente a informação que queria. Absolutamente detestava quando suas habilidades de estrategista não estavam a meu favor.
- Você gosta dela, - agora o sorriso era genuíno, qualquer traço de cinismo sumiu.
- Claro que gosto dela, senão não estaria usando rótulos.
- Não - sacudiu a cabeça. - Você gosta mesmo dela. Gosta além de gostar.
Outra coisa que me irritava quando usada contra mim era esse seu lado ”enigmático”.
- O quê? O que você quer dizer com isso?
As perguntas estavam fora de minha boca antes mesmo que percebesse e, assim que terminei de falar, sabia que, como das outras vezes, era inútil. Só porque Chase adorava quebra-cabeças, ele pensava que todo mundo deveria brincar junto. O alargamento de seu sorriso imbecil só confirmou minha certeza de que teria que lidar com a curiosidade. Infelizmente não tive nem tempo para xingá-lo antes que estivesse passando pela porta de novo, dessa vez usando um vestido de verdade, que chegava a um pouco além da metade de suas coxas, mostrando-se, então, ser mais curto que minha camiseta.
- Chase, você já tomou café? trouxe muffins.
- Adoraria um muffin, .
- Oh! - ela franziu o cenho. - Isso é meio esquisito - murmurou baixinho, falando consigo mesma. - . Só .
- Ah. Sim, claro - e de novo aquele tom de quem sabia demais e que deixava suas palavras ainda mais lentas e arrastadas. - Adoraria um mufin, darlin’.
O que aconteceu com “”?
- Você é surdo por acaso?
- Não, não, . - pousou a mão em meu ombro, apertando-o em advertência. - Está tudo bem.
Revirei os olhos quando Dylan agradeceu a permissão com uma piscadela e minha namorada respondeu com risadinhas acanhadas.
- Compre seus próprios muffins, idiota. Tem uma confeitaria bem aqui a porta.
A mão em meu ombro aumentou a pressão.
- Você trouxe o suficiente, - sibilou, mantendo um sorriso forçado e com uma voz que não deixava chance para discussão.
Suficiente era o brilho divertido que podia ler na expressão de Dylan, suficiente para que ele ganhasse um soco. Infelizmente sabia que me mandaria dormir no sofá se eu agredisse seu novo amiguinho. Deixei, então, que mais essa também passasse. Nós quatro nos encaminhamos para cozinha, cada um se sentando em um dos bancos altos ao redor da ilha e Cookie se deitando no chão aos meus pés, pelo menos podia contar com ele. Diferentemente de , que ainda estava batendo os cílios para Chance e se ruborizando a cada palavra que ele dizia em seu sotaque idiota.
Havia esquentado aquela bunda gostosa há menos de doze horas e lá estava minha namorada com uma quedinha boba pelo meu melhor amigo. A única coisa que não me causava algo parecido com ciúme, ao invés de apenas a irritação que sentia, era que basicamente todas as mulheres reagiam assim frente ao que elas normalmente classificavam como ”olhos de mar” de Chase. Claro que isso não me impedia de considerar seriamente a possibilidade de novas palpadas mais tarde.
Sim, passei a língua pelo lábio inferior. Definitivamente mais palmadas, afinal, aquela bunda ficava ainda mais impressionante com o tom vermelho.
- Onde você estava, Chase?
- Oriente Médio – respondeu a pergunta de me olhando por cima do muffin que havia comprado para minha namorada e que ele fez questão de morder e mastigar lentamente só para me provocar.
- Fazendo o quê? - perguntou ingenuamente.
Dylan se retesou visivelmente, mas, ao falar, tentou manter-se caloroso, o que não foi muito bem sucedido:
- Um pouco disso, um pouco daquilo - murmurou vagamente, voltando sua atenção para o bolinho que comia.
Felizmente a loira entendeu a indireta e mudou de assunto.
- Mas você voltou para ficar?
- Ficar até quando possível, Darlin’.
- Ah! Que bom. sentia sua falta.
Virei-me para ela, incrédulo. Não que não fosse verdade, mas nem uma única vez havia mencionado que sentia saudades do meu melhor amigo, escapava-me, então, como ela sabia. Também não entendi direito o calor gostoso que aqueceu meu peito por ela ter aquele pedaço de informação, calor esse que aumentou ainda mais quando um pequeno sorriso tocou aqueles bonitos lábios que eu adorava beijar. É claro que Chase tinha que estragar tudo ao pigarrear falsamente, e, ao me virar para olhá-lo, encontrei o divertimento que me dizia com todas as letras que não me deixaria esquecer sobre a história de saudades. Tive vontade de bater a cabeça na mesa repetidas vezes, mas antes que chegasse a esse ponto, voltou a falar:
- E onde você está ficando, Dylan?
- Tenho um bom apartamento perto de onde Hunter mora. Não fica muito longe daqui e adoraria que você… que vocês - corrigiu rapidamente ao se dar conta do olhar gelado que lhe lançava - aparecessem por lá.
- Oh! Seria ótimo. Posso até mesmo fazer uma torta Merthier para levar de sobremesa.
Que porra?! De jeito nenhum! Eu só consegui uma única daquelas durante todo o tempo que nos conhecíamos e foi justamente no dia em que nos conhecemos. Não havia absolutamente qualquer chance de eu deixar que esse folgado na minha frente tivesse o mesmo tipo de recepção especial. Se ele quisesse uma torta, poderia arrumar uma namorada que fizesse para ele, ou poderia fazer uma ele mesmo já que adorava se gabar sobre como sabia cozinhar qualquer coisa, dizendo que era apenas seguir uma receita como se seguia qualquer outra estratégia.
E o pior era que ele conseguia cozinhar muito bem. Babaca.
- Nada de tortas. Chase odeia maçã.
- Odeia?
- Odeio?
- Sim, odeia.
- Bom, essa é uma das coisas mais… não-americanas que já ouvi - franziu o cenho, murmurando para si mesma. - Talvez possa comprar alguma coisa na Appleby’s então. Sobremesa não é muito minha área.
- Appleby’s?
- A confeitaria aí na frente, onde você deveria ter ido comprar seu café-da-manhã ao invés de roubar o que trouxe para minha namorada.
Essa resposta mereceu um tapa no estômago e um olhar gelado da dita namorada.
- É a confeitaria da minha amiga, Dylan. Tudo muito bem feito, não é mesmo, ?
E aqui o olhar era de advertência, aquele típico que você recebe quando fica claro que não há outra resposta aceitável senão a que concorda com o interlocutor.
- É, é - resmunguei, levantando-me para reabastecer duas canecas de café antes de voltar rapidamente para mesa e deslizar uma delas em frente a . - A comida é ótima, apesar da dona ser esquecida.
- Esquecida?
- Ela tem um problema sério com nomes - dei de ombros, tomando um gole lento de minha bebida e deixando claro que esse assunto tinha se acabado.
Não queria estragar o gosto bom de café em minha boca por tentar explicar como a tal Ava acreditava que meu nome era Leo. Chase pensaria imediatamente que o termo era resultado de uma opinião sobre eu me parecer, de alguma maneira, com DiCaprio ou uma das tartarugas ninjas - o que, considerando que a inventora do apelido era amiga de , provavelmente se tratava da última alternativa. De qualquer jeito, não consegui ver como isso poderia ser lisonjeiro, na verdade, chegava a ser até um pouco insultante. O outro cenário possível, se deixássemos aquele tópico de conversa prosseguir, era que a curiosidade de Chase se aguçasse, o que era bem pior do que ser comparado ao magrelo que estava no Titanic. Porque, uma vez interessado, Dylan não parava de perguntar, de caçar, até encontrar exatamente o que procurava. Felizmente, quando lancei um olhar discreto para , ela estava tomando o café que lhe entregara, as bochechas meio coradas e o olhar furtivo. E também era uma sorte que Chase parecia mais preocupado em encher minha paciência do que tentar descobrir alguma coisa sobre as consequências da falta de memória alheia.
- E o meu café?
Franzi o cenho, piscando devagar. Sério?
- Vai se füder, Chase. Por acaso parece ser seu empregado? Levanta e pega você mesmo a merda do seu café.
Dessa vez meu prêmio foi uma cotovelada direto nas costelas. Não foi muito efetivo, uma vez que ela não tinha noção nenhuma sobre o melhor lugar para bater, mas deixou se ponto claro.
- Comporte-se - sibilou.
Tinha certeza que a única coisa que impediu que meu amigo soltasse gargalhada que ele mal podia conter era a noção de que provavelmente seria sua vez de ganhar um olhar atravessado de e ele parecia bem preocupado em não cair na lista negra dela. Claro que isso não o impediu de, depois de conseguir se controlar, abrir um sorrisinho debochado e falar, sério:
- É, . Comporte-se.
Ok. Era isso. Paciência tinha limite.
- Chase - falei, rígido, levantando-me. - Vamos embora.
- O quê? Por quê? - arqueou o pescoço pra me olhar.
- Combinei de encontrar Hunter para algumas cervejas antes do almoço no The Hook’s - deixei que a mentira escapasse facilmente por minha boca. - Ele vai gostar de encontrar Dylan.
- Ah, ok - sorriu antes de se virar para meu amigo. - Foi um prazer conhecê-lo.
- O prazer foi todo meu, Darlin’ - o imbecil fez uma pequena cena ao segurar a mão dela e depositar um beijo no torso.
- Vai me esperar lá na sala, Casanova - apontei com o polegar por sobre o ombro.
Lançou-me um olhar de quem sabia exatamente o que eu estava prestes a fazer e saiu do cômodo silenciosamente. Assim que ele sumiu do meu campo de visão, minha mão estava no cabelo de , puxando-o com firmeza, mas sem usar força, para trás. Ela se moveu de boa vontade para a posição que guiei, então abaixei a cabeça e apertei meus lábios com força sobre os seus por um segundo antes de aprofundar o beijo da maneira exigente que gostava, exigindo passagem. Queria deixar gravado em sua memória que ela podia dar risadinhas em resposta ao sorriso de Chase, mas que isso era o mais próximo que eles iriam chegar, pois aquela boca era minha.
Levantei a cabeça quando tive a certeza de deixá-la sem fôlego. Minha mão ainda em seu cabelo, mantendo sua cabeça meio arqueada para que pudesse encarar aqueles olhos violeta que agora estavam meio sem foco e entreabertos, falei:
- Quando eu voltar, nós vamos repassar a lição de ontem e acrescentar mais algumas coisas. Entendido? - passei o polegar sobre seu lábio que eu havia sido responsável por inchar.
Minha namorada assentiu e deu um pequeno impulso para cima com o claro propósito de ganhar outro beijo, o que estava mais do que disposto em conceder. Antes de me afastar, pressionei meus lábios contra os seus mais uma vez.
- Até depois, . Comporte-se.
Ou não se comporte, afinal, era óbvio que nós dois gostávamos quando eu tomava o tempo necessário para, usando somente a força necessária para aumentar o tesão de nós dois, colorir aquela delicia de bunda que ela adorava balançar se um lado para o outro, enlouquecendo-me a cada passo. Não pude evitar o sorriso que apareceu no canto da minha boca, enquanto saía da cozinha, ao ouvir o suspiro alto que minha namorada soltou.
Telefonei para Hunter quando já estávamos no elevador e depois de dar a Chase um belo murro no estômago e um aviso bem explícito sobre o que faria com o que ele tinha no meio das pernas se o imbecil continuasse flertando com minha namorada. Caleb atendeu depois do terceiro toque e decidimos que a lanchonete perto de sua casa seria um lugar bom para nos encontrarmos. Nem mesmo pensei em sugerir a Appleby’s. Não queria um lugar tão perto e que propiciava chances concretas de que poderia aparecer por lá. Já havia dividido minha namorada demais por um dia e ela precisava criar uma resistência maior ao charme de Chase antes que considerasse uma exposição mais prolongada ao babaca. Doses pequenas seria a única solução. Não que não confiasse em , em meu taco ou em meu melhor amigo, mas minha paciência não era das grandes e sabia que ela sofreria diminuições ainda maiores se os encontros -Chase envolvessem mais de minha namorada batendo os cílios como uma colegial com sua primeira paixonite ou oferecendo tortas que deveria ser exclusivamente minhas.
Então nada de Chase, cílios ou tortas, mesmo que isso me desse bons motivos para novas palmadas.
Por um segundo a memória sobre ontem à noite fez com que me esquecesse de onde estávamos e me peguei olhando para o vazio e umedecendo meus lábios secos.
O jeito como ela tremeu em meus braços a cada vez que atrasei seus orgasmos, a maneira como empurrou aquele tësão de bunda contra minha mão a cada novo tapa. Principalmente, porém, sua excitação descendo por suas coxas e lambuzando meus dedos em uma bagunça que - e não me orgulhava disso - fizesse com que eu desejasse bater no peito como a porra de um homem das cavernas.
Feliz ou infelizmente, a voz do meu melhor amigo me trouxe para o presente. Suponho que, apesar de interromper minhas doces lembranças, deveria agradecê-lo por fazer isso antes que tivesse uma ereção, mesmo que fosse para ouvir suas idiotices:
- Tive certeza que tinha entrado no apartamento errado, ainda mais quando vi o cachorro. E quando ela disse o nome do namorado? Pá! – bateu a mão na mesa para enfatizar. – Fazia muito tempo que não ficava tão surpreso. Quem poderia imagina que nosso aqui – apertou meu ombro – estaria amarrado em um relacionamento. Eu não fiquei longe tanto tempo assim, fiquei, Puppy?
Agradeci mentalmente quando ele se virou para Hunter e parou de falar um pouco enquanto se ocupava em beber sua caneca de cerveja preta. Normalmente meu melhor amigo apenas observava, em silêncio, com um sorrisinho idiota no canto dos lábios e aquele olhar de quem sabe demais, a situação se desenrolar em sua frente com uma calma admirável. No momento, entretanto, Chase estava usando muito de sua fala arrastada e carregada pelo sotaque sulista para recontar cada detalhe de seu encontro com .
Apesar de meus desejos de ir embora e deixá-lo falando sozinho, precisava admitir que havia sentido falta de Dylan e, além disso, era mais seguro estar presente enquanto ele contava a anedota a Hunter. Ter certeza que não havia algum detalhe a mais ou que Caleb não entendesse demais... o que era basicamente a especialidade dele.
- E ainda com um cachorro! Uma namorada e um cachorro! – continuou como se fosse a coisa mais interessante do mundo para logo depois soltar uma risada.
Será que se eu enfiasse um soco na garganta dele, sua voz ficaria ainda mais rouca? Ou será que isso era impossível? Esta ideia só ganhava força a cada novo desdobramento que a conversa ganhava.
- Entendo completamente a surpresa. Tive uma bem parecida quando cheguei no The Hook’s e o encontrei jogando sinuca com ela.
. Por um segundo a lembrança do jeito como ela se mexeu contra mim naquele dia fez meu cérebro se embaçar graças à pura excitação. Felizmente sempre podíamos contar com nossos amigos e suas palavras idiotas para acabarem com uma ereção em processo de formação.
- E para completar a surpresa, acredita que ela estava usando a camiseta dele?
Hunter parou com a cerveja a meio-caminho da boca, virando-se para me encarar com os olhos arregalados. Revirei os olhos e passei a mão pelo rosto.
Que merda.
Realmente esperava que Chase fosse deixar aquela parte de lado. Não queria que eles tornassem aquele gesto em alguma coisa fora de proporção. provavelmente só havia pegado a primeira camiseta que encontrou. Nada demais. Nada que fosse o suficiente para que Puppy tivesse uma reação daquelas. Não era necessário que Hunter continuasse me encarando como se eu estivesse prestes a anunciar que estava me mudando para o México e me inscrevendo numa daquelas bandas que fazem serenata, ou que voltasse a cabeça para Chase como se este realmente tivesse falado sobre tais planos do lado de baixo da fronteira.
- A camiseta dele? – balbuciou. – Aquela camiseta?
Queria interromper o papo imbecil dizendo que não era para tanto, que aquela merda toda não era para tanto, mas sabia que não iria adiantar nada. Os dois adoravam falar sobre a aquela peça de roupa. Não entendi o interesse. Só porque eu tinha um cuidado maior com ela do que os dois patetas tinham com a própria camiseta da marinha? Ao invés de perceberem que eles que estavam errados pela indisciplina, chegaram à conclusão de que eu sentia algum tipo de ciúme da minha camiseta.
- A que ele não deixava nem mesmo outra pessoa lavar?
- Exatamente essa. O cara não suportava chegar perto de uma máquina de lavar, mas fazia questão de enxaguar e esfregar aquela blusa azul – continuou como se não estivesse falando de mim, como se não estivesse sentado bem do seu lado.
- Se os dois fofoqueiros tiverem terminado, acho que agora seria um bom momento para que Chase finalmente nos contasse o que merda foi fazer de novo no meio daquele lugar esquecido por Deus – resmunguei, terminando o resto do café que estava em minha caneca.
Os babacas ainda tiraram um momento para soltar uma nova gargalhada frente a minha careta.
- Tudo bem, tudo. Acho que já está bom desse assunto por hoje. – Dylan concedeu, como se estivesse me fazendo um grande e magnânimo favor. – Não leve tão a sério, . - É. Estamos apenas surpresos.
- Acima disso, contudo, estamos felizes – todo o tom zombeteiro sumiu de sua voz enquanto ele batia algumas vezes em minhas costas. – Estamos realmente felizes por você ter encontrado alguém.
- Sim. Absolutamente. – Hunter assentiu, também sorrindo. – E parece ser uma pessoa incrível.
Sim, ela era. E os dois patetas a minha frente eram os melhores irmãos que alguém poderia ter.

xxx

- Finalmente, ! – resmunguei assim que ele passou pela porta de minha casa. – Estou esperando há horas – bati o pé repetidamente no chão, cruzando os braços e lhe lançando um olhar feio para enfatizar meu ponto.
Meu namorado revirou os olhos e se abaixou para cumprimentar Cookie, que já havia avançando para ele para receber seu carinho diário.
- Para o que exatamente estou supostamente atrasado, ?
- Não use esse tom seco comigo, – espalmei a mão sobre seu peito e o empurrei para trás, mas só depois de ter recebido meu beijo rápido sobre os lábios. – Você está errado e sabe disso.
- Como posso estar errado se não sei do que você está falando?
- Como você pode não saber do que estou falando, ?
- Esta conversa vai chegar a algum lugar ou você vai continuar me respondendo com outras perguntas e com enigmas?
- Nós combinamos de ir escolher abóboras hoje!
Ele piscou devagar e me encarou como se tivesse acabado de lhe pedir para se transformar na Fada Madrinha e magicamente me conseguisse uma carruagem a partir de uma abóbora.
- O... quê? – sussurrou, absolutamente incrédulo.
- Nós combinamos que iriamos escolher e comprar abóboras hoje – repeti.
- , eu não faço a mínima ideia de sobre o que você está falando.
- Halloween, , Halloween. É meu feriado favorito. E nós vamos escolher as abóboras para podermos cortar em formatos bem legais e iluminá-las para fazer uns enfeites muito bonitos.
- E por que exatamente faríamos isso?
Foi minha vez de ficar surpresa.
- Porque é legal, porque é divertido, porque é o mês e a data pelo qual milhões de pessoas esperam o ano inteiro, porque é o segundo feriado mais importante da América. Escolha qualquer um desses motivos – dei de ombros, virando-me rapidamente para trás para pegar minha bolsa. – Podemos ir agora.
- Mas isso é pura bobagem.
Apesar do tom firme, eu podia ver, sob a bem feita máscara de indiferença, uma pontada de incerteza. Ainda estava no começo e sabia que havia muito pela frente, mas já estava aprendendo a identificar as minúsculas falhas em sua armadura que deixavam escapar.
- Essas até podem ser boas razões para o feriado existir, mas não para que tenhamos que comemorá-lo.
- Ah, ! Deixa de ser chato - estava prestes a bater o pé no chão como a criança que me tornava naquela época do ano. - Vai ser divertido. Vai dizer que não era divertido quando você era mais novo.
Meu namorado desviou seus olhos azuis para o lado por um segundo e, quando voltou a me encarar, estava um pouquinho mais gelado do que o normal, mas instintivamente sabia que aquele ressentimento não era dirigido a mim, o que se tornou óbvio quando ele voltou a falar.
- Nós não comemorávamos essa data. É um feriado idiota e sem propósito visível e distinguível que justifique o tamanho do transtorno que causa na rotina da cidade - seu tom se tornou robótico no final e tive certeza de que estava repetindo um discurso que fora martelado em sua cabeça enquanto crescia.
Meu coração se apertou ao imaginar pequeno querendo sair para as ruas com outras crianças, mas sendo impedido graças aquelas baboseiras que alguém usava para justificar uma mesquinhices sem tamanho. Estava começando a desenvolver uma grande aversão por meu sogro, pois era obviamente ele quem havia se esforçando para estragar cada pedaço da infância do meu namorado. Cada detalhezinho que aprendia sobre ele, havia o dedo de Senior para poluir o que deveria ter sido a fase mais fácil e divertida da vida do filho.
Pisquei as lágrimas para longe antes que ele pudesse vê-las, pois sabia que seriam vistas como demonstração de pena e fariam com que se retraísse novamente, fechando-se outra vez em si e me deixando de fora, sem saber quando teria outra abertura como aquela. Percebia agora que havíamos dados passos importantes, pois sabia que não notou que estava revelando uma parte importante de si, o que demonstrava que ele estava mais à vontade perto de mim. Essa constatação me deu forças para engolir a vontade de abraçá-lo e confortá-lo e, decidindo, ao invés, fazer o que precisava, avançando para conseguir território e vencer a batalha.
- , nós vamos comemorar o Halloween - falei, incisiva, dando-lhe as costas.
Imediatamente senti sua mão enorme em minha cintura, obrigando-me a me virar outra vez.
- , eu não quero.
- Por quê?
Ele piscou devagar e virou de novo o rosto para a janela. Fiquei nas pontas dos pés e segurei seu rosto, virando-o delicadamente até que seu rosto estivesse virado outra vez para mim.
- Amor?
Aquilo o surpreendeu ao ponto de fazê-lo olhar para baixo, seus olhos azuis mais quentes e vulneráveis do que jamais havia visto. Nada do gelo. Surpresa sim, gelo, não. Surpresa quase tão grande quanto a que eu sentia. Outra vez engoli em seco, mas me controlei a tempo de não demonstrar a maneira como meu estômago deu um sobressalto graças não tanto pelo uso daquele apelido carinhoso, mas sim pela facilidade com que saiu por meus lábios, mesmo nunca tendo usá-lo antes, nem mesmo em pensamento. Passei a mão trêmula por sua bochecha e, apesar da tensão leve que crepitava sobre o ar na sala, decidi voltar a falar, pois, acima das sensações esquisitas, sentia uma calma… uma naturalidade que se sobrepunha a tudo mais.
- Amor, por quê?
Talvez meu passo em direção a vulnerabilidade tenha sido o empurrão que faltava para que ele também se abrisse um pouquinho mais.
- Eu… eu não sei - murmurou.
- Não sabe o quê? - franzi o cenho.
- Halloween… não sei. Eu nunca…
As palavras morriam em sua boca quando ainda mais vulnerabilidade apareceu em seu rosto. Se meu coração se apertara antes, agora ele estava oficialmente quebrado. Porém, o importante no momento não era eu, então, empurrei de novo a vontade de abraçá-lo para consolar meu coração que sofria por ele. Sabia que nem a criança que ainda existia dentro dele e que sofria por ter tido tantos carinhos negados por motivos idiotas, nem o homem que havia se endurecido pela infância relapsa queriam receber o que interpretariam como pena. A única solução era carinho e eu tinha tanto carinho para dar… tanto, tanto.
Ignorando o jeito com que o peito dos meus pés doíam por sustentar meu peso por um longo período de tempo, pressionei meus lábios contra os seus por um tempo para depois sugar seu lábio inferior para entre os meus. gemeu em rendição e suas mãos subiram por minhas costas e me trouxeram para mais perto de si, aprofundando o beijo.
- Vamos, amor - suspirei, sem fôlego quando nos afastamos.
- Vamos onde?
Apesar da pergunta, deixou que eu segurasse sua mão e o arrastasse até a porta.
- Vamos escolher as abóboras para decorar nosso Halloween - sorri, olhando por sobre o ombro quando parei para pegar minha bolsa sobre o sofá.
- , eu acabei de dizer qu-
Virei-me completamente para ele, interrompendo suas palavras quando passei os braços por sua cintura e apoiei o queixo sobre seu peito, olhando para cima e em seus olhos.
- Você confia em mim, ? Depois de alguns segundos tensos, em que mal percebi estar segurando a respiração, seus braços voltaram a se fechar firmemente ao meu redor.
- Sim, . Por algum motivo ilógico, eu confio em você.
Mal pude conter o sorriso que se abriu em meu rosto.
- Então vamos, amor.
Dessa vez ele não hesitou em segurar minha mão estendida e deixar que eu o guiasse.

...

- , tem certeza que é assim?
Segurando a caneta para longe do objeto em que trabalhava, olhei para cima do ombro para encontrar meu namorado encarando com o cenho franzido a abóbora em que trabalhava. Do lugar onde eu estava, em pé ao lado da ilha, não conseguia ver o resultado de seus esforços, então caminhei até parar atrás da cadeira onde ele se sentara, tendo a certeza de desviar de Cookie, que se deitara ao lado de desde que voltamos da nossa pequena viagem para comprar abóboras. Gostava de pensar que ele estava bravo por não ter sido, como das outras vezes, minha companhia naquela aventura e que por isso havia se bandeado para o lado de , porém sabia que na verdade meu filhote estava apenas demonstrando seu amor. Reprimindo a careta de ciúmes, coloquei a mão no ombro de meu namorado..
- O quê? Qual o problema? Está ficando ótimo.
Meu namorado não pareceu muito convencido.
- Está esquisito.
- Não está esquisito. Está igual ao que desenhei e você cortou certinho.
Aliás, ele cortou de maneira exata. tinha uma habilidade incrível usando facas. Não errava nem um centímetro.
- Ainda está esquisito.
Espera um pouco. Se o errado não era o corte...
- , está insinuando que o problema é meu desenho? - falei, um tanto quanto indignada.
- Bom… não sou nenhum especialista, mas tenho bastante certeza de que elas supostamente deveriam parecer assustadoras - murmurou, ausente, analisando a abóbora que tinha um sorriso bobo e olhos em meia lua com os cantos para baixo, o que aumentava a impressão de felicidade.
- Nós fazemos Halloween à nossa maneira.
- Mas…
- Ok. Ok, senhor especialista - resmunguei, dando um beliscão em seu ombro antes de me afastar de volta para a ilha. - A próxima pode ser assustadora.
Usando a caneta que ainda estava em minha mão, abandonei a abóbora feliz que desenhava, pois aparentemente ela não passava no controle de qualidade , e peguei uma nova para fazer a tal careta assustadora. Hesitei um pouco ao aproximar a tinta azul de minha ”tela laranja”. Percebi naquele momento o quanto queria que aquela saísse perfeita, pois, apesar de todos os resmungos e reclamações que soltou durante o caminho, era óbvio que agora ele estava se divertindo bastante. Algumas vezes até pude ouvi-lo sussurrar para Cookie um pedido de opinião sobre como as abóboras que entalhava estavam ficando.
Completamente adorável.
E também superava minhas expectativas. Apesar de meu lado sonhador, contudo, tinha consciência de que esse ano não conseguiria convencê-lo a se fantasiar. Era mudança demais em tempo de menos, além disso, não queria empurrá-lo muito forte para fora da zona de conforto que ele construira ao longo da vida, mesmo que esta fosse sufocante e que estivesse lhe roubando o ar aos poucos. Se quisesse puxá-lo para fora e para o alto, teria que agir cautelosamente. Sabia que estava disposto a segurar minha mão, mas também percebia que ele não tinha muita noção de para onde eu estava nos guiando. Então, mesmo que o processo fosse lento e um tanto quanto tortuoso, valia a pena. Além disso, era injusto que eu ficasse reclamando, uma vez que o maior afetado estava se comportando tão bem - tão bem que merecia uma recompensa.
Felizmente estava de costas para meu namorado, assim ele não podia ver o sorrisinho malicioso que certamente deve ter aparecido em meu rosto ao recordar o plano que havia colocado em prática há alguns dias. Ponderando que aquela era uma hora tão boa quanto qualquer outra para saber se meu parceiro já tinha conseguido executar a parte dele, dei os últimos retoques nos olhos assustadores da abóbora e a coloquei sobre a mesa na frente de .
- Está bom assim, majestade?
- Ah! Agora sim, - assentiu com aprovação, girando a abóbora para analisar cada ângulo de sua expressão malvada.
Revirei os olhos e murmurei alguma bobagem sobre ir ao banheiro. Não que ele tivesse prestando atenção. Estava ocupado demais mostrando a Cookie como ele iria cortar aquela que finalmente era “uma abóbora de Halloween de verdade”.
Assim que estava fora de seu campo de visão, corri silenciosamente até meu quarto e tranquei a porta, depois me escondi no banheiro, fazendo questão de passar o trinco também naquela. Em respeito ao meu momento meio paranoico, esperei alguns instantes no silêncio para ter certeza de que não havia sido seguida. Só então tirei meu celular e disquei o número que havia me sido passado há dias por um papelzinho discreto e que somente percebi ao guardar a cafeteira.
- Chase - atendeu no segundo toque.
- Dylan! Você conseguiu aquela informação?
- ! - imitou meu tom excitado antes de soltar uma risada rouca. - Sim, Darlin’. Para falar a verdade, eu consegui sim. Não foi fácil tive que escavar minha memoria, mas consegui sim.
- Ótimo. Isso é ótimo. Muito obrigada - tive que tampar a boca com a mão para abafar o gritinho agudo que deixei escapar.
- Sim, Darlin’. É ótimo, mas não tão ótimo quanto vai ser para o , não?
O tom insinuante ficou ainda mais cheio de segundas intenções graças a sua voz arrastada. Senti minhas bochechas se esquentarem.
- Chase! Você prometeu que não iria falar sobre isso com ninguém.
O silêncio perdurou por um segundo.
- Mas estou falando com você - havia um toque de obviedade ali.
- Oh, sim. É claro.
Outra vez senti que corava, mas sabia, no fundo de minha mente, que não podia me condenar a respeito dessa veia paranoica. me mataria se soubesse o que fiz por suas costas.
- , você é uma pessoa única. Agora quer saber a resposta ou não?
- Sim. Me conta.
Em silêncio o ouvi, minha mente girando as engrenagens necessárias para fazer as coisas acontecerem. Infelizmente já era possível enxergar também as falhas e já estava entrando em desespero quando Chase disse que havia pedido o necessário para Hunter, já que este conhecia um cara - sabe-se lá como - e que estava tudo certo. Dylan, então, teve que tirar alguns minutos para me explicar calmamente que não havia mencionado os detalhes para Caleb, pois eu já estava surtando e balbuciando sobre ser por ligações assim que segredos se tornavam virais na internet. Só depois que conseguiu me acalmar foi que explicou que passaria para trazer o que conseguiu quando não estivesse em casa. Combinando os últimos detalhes, desliguei o telefone e me esgueirei de volta para cozinha. Mal podia esperar para amanhã à noite.
Meu namorado me lançou um olhar esquisito quando voltei, mas fiquei agradecida por ele não ter questionado sobre eu estar com problemas intestinais ou com cólicas. Abençoada seja a discrição e a gentileza que às vezes demonstrava.
- Precisamos de mais? - gesticulou com a cabeça para as abóboras.
Havia cerca de três delas.
- Acho que podemos fazer mais duas. Assustadoras do jeito que você gosta.
Peguei a caneta e comecei os traços de uma nova feição enquanto ele brincava com Cookie, jogando uma bolinha e ensinando meu filhote a trazer de volta.
- Tem certeza de que não quer ir conosco hoje?
Sabia que a resposta para aquela pergunta não havia mudado e nem esperava por isso. Sendo bem sincera, não parecia muito viável se fantasiando para acompanhar Ava e eu para algumas bebidas num pub no bairro vizinho onde esse tipo de traje era obrigatório na véspera do Halloween. Ainda mais quando planejávamos ir de Rainha de Copas e Alice, respectivamente. Simplesmente não consigo imaginá-lo de Chapeleiro Maluco. Nem mesmo minha imaginação enorme conjurava algo assim.
O tempo passou rápido depois disso e, antes que percebesse, já estava chegando meio bêbada em casa. Permiti-me algumas cervejas a mais, uma vez que Avalon nunca bebia quando saíamos e aquela era basicamente a única noite do ano em que ela se permitia sair depois que a noite caía. Tinha a impressão de que era pelo uso de máscaras, mas não sabia o porquê.
- Hey, ! Onde está Cookie? - bati afetivamente na cabeça de meu filhote quando ele pulou para me reencontrar. - Opa! Espera um pouco - franzi o cenho. - Seu nome não é .
- Muito bem, - ouvi a voz grossa vindo do corredor que dava para os quartos. - Ganhou um A por esforço.
- Ah! Você é o ! - apontei, soltando uma risadinha.
Meu namorado era tão engraçado. Engraçado mesmo quando revirava os olhos azuis daquele jeito. Olhos tão bonitos.
- Obrigado - resmungou, aproximando-se.
Eu falei isso alto?
- Falou sim.
- Ops - coloquei a mão sobre a boca para logo depois abandonar essa ação, decidindo que havia coisas muito mais importantes. - , me carrega! - levantei os braços abertos, tombando a cabeça para o lado e abrindo um sorriso entre bêbado e dengoso.
Franziu o cenho, mas vi um pequeno sorriso de lado no canto de sua boca.
- Não sabia que você era o tipo bêbada mandona.
Empurrei o lábio inferior para frente, formando um biquinho de pirraça.
- Vamos, . Me carrega! Senão não te conto quem encontramos hoje - ameacei, sentindo-me muito superior ao me lembrar dessa vantagem.
- Ah é? - debochou, mas se abaixou para passar o braço por de trás de meus joelhos e o outro por minhas costas, levantando-me em seu colo. - Quem você conheceu dessa vez, J. K. Rowling?
- O quê? - dei um pulo no colo dele que provavelmente só não nos levou ao chão graças aos seus reflexos. - Onde? - girei a cabeça para os lados.
Meu namorado resmungou alguma coisa, porém continuou andando para o quarto.
- Esqueça, . Apenas me conte quem você conheceu.
- Shonda Rhimes! Ela estava fantasiada de Cleópatra, mas tenho certeza que era ela. Não importa o que Ava diz - sacudi mão em um gesto de descaso. – Reconheço aquele corte de cabelo!
- Hmm… é mesmo? - seu tom era desinteressado ao me deitar em minha cama.
Provavelmente não sabia que gênio Shonda é. Vou me lembrar de lhe apresentar alguma série dela depois.
- Se você se comportar direito, , depois te conto outro segredo - murmurei, aconchegando-me contra o travesseiro do meu lado da cama.
- Segredo? Que segredo? - perguntou enquanto desafivelava minhas sandálias.
Ouvi sua pergunta, mas estava ocupada demais virando de lado e caindo no sono para conseguir responder. Acordei por volta das dez horas da manhã e não pude evitar o sorriso ao constatar que estava vestindo uma das camisetas de . Sempre derretia quando meu namorado durão mostrava um pouco mais de seu lado atencioso.
Tão adorável.
Mal tinha pulado da cama quando ouvi a campainha soando na casa. Troquei de roupa rapidamente e abri a porta para encontrar Chase, que me entregou uma sacola e, com um sorriso sacana, prometeu manter afastado até que eu mandasse uma mensagem de texto, avisando que estava tudo pronto. Usei a manhã e boa parte da tarde para limpar a casa e lavar roupa, dando um jeito em tudo que não tinha tempo de fazer durante a semana. Felizmente ajudava bastante agora que praticamente já tinha se mudado para cá, só voltando para sua própria casa quando absolutamente necessário.
Não falávamos sobre essa “mudança”, mas havia lhe dado uma chave, sua escova de dente estava no banheiro - não dava para ser mais íntimo do que isso -, o lado direito da cama já era dele e meu namorado sempre vinha aqui primeiro ao chegar do trabalho. O ponto alto dessa constatação sobre nosso quesito domestico, contudo, foi quando me ajudou de bom grado a decorar a casa. Naquele momento, quando sugeri que colocássemos alguns enfeites em sua casa também e reagiu com uma expressão confusa, percebi que ele já não via seu apartamento como sua casa.
Logicamente sabia que deveria ficar assustada, pois não estávamos juntos há tanto tempo, contudo, ao invés disso, meu coração perdeu uma batida antes de expandir de uma maneira nova e tão gostosa que, ao conseguir me mexer de novo, só pude sorrir. O assunto foi abandonado, porém o calorzinho gostoso continuava no meu peito.
Finalmente a tarde chegou e, com ela, uma mensagem de Chase afirmando que meu namorado estava ficando impaciente e que ele e Hunter estavam sem ideias para enrolá-lo ainda mais. Pedi mais quinze minutos antes de autorizá-lo a liberar .
Não pude evitar rir sozinha enquanto tomava banho ao imaginar o que diria se soubesse que usei a palavra “autorizar” em relação a ele. Era meio óbvio que meu namorado lidava bem com autoridade quando ele era essa pessoa. Ele seria recompensado, contudo.

Estava terminando de me arrumar, colocando o chapeuzinho em frente ao espelho do banheiro quando a porta da frente abriu e ouvi uma serie de impropérios, mesmo não escutando passos, uma vez que ele andava como um gato. Só consegui distinguir o que ele dizia, contudo, quando sua intenção foi exatamente essa:
- ! Que coisa é essa no Cookie?
Apertei os lábios para não soltar uma risada frente ao seu tom horrorizado. - Uma fantasia, . É Haloween - gritei ainda de dentro do banheiro. - Cookie é um urso hoje.
E ele estava absurdamente adorável com o macacãozinho marrom que comprei esse ano para a ocasião.
- Não, não - ouvi sua voz mais alta de novo. - Meu cachorro não vai usar essas coisas. Além do mais, ele parece estar com calor.
O cachorro… dele?
Usei toda a concentração para reprimir uma exclamação de “Aww” e para não me derreter com o carinho que ele tinha por meu filhote, não sobrando nada para me irritar com os barulhos de velcro e botões que obviamente significava que meu namorado estava livrando Cookie da fantasia que aparentemente não lhe era digna.
Olhei uma ultima vez sobre a fantasia azul de aeromoça que tinha certeza que era dois números menores do que o que seria correto, afinal meus seios quase saltavam para fora do top, minha barriga estava toda exposta e a saia com a barra dourada, para combinar com os detalhes das outras peças, era tão curta quando a parte de cima. Ouvi a porta do quarto se fechar e respirei fundo, repentinamente me sentindo meio insegura. Era tudo novidade e o medo de agir de maneira ridícula tomou conta de mim por um segundo aterrorizante. Tive que me apegar a certeza de que, se as coisas dessem certo, seria muito, muito bom para nós dois a fim de reunir coragem para abrir a porta. Repassei uma ultima vez o que Dylan disse que eu deveria falar e coloquei meus pés sobre saltos brancos para dentro do quarto. estava de costas, tirando a própria blusa.
- , que ideia imbecil foi essa d-
As palavras morreram assim que ele se virou e seus olhos pousaram em mim e se arregalaram. Senti seu olhar descer por mim como uma carícia quente enquanto ele analisava cada centímetro. Ao voltar a me encarar, vi choque com nunca antes havia presenciado. Infelizmente não consegui distinguir se aquele era um bom sinal ou não. Meu coração pulsava forte em meu ouvido e quase não pude ouvir minha própria voz quando, com a garganta seca, falei:
- Queira, por favor, sentar-se, senhor. Vou te levar para uma viagem.
Dessa vez observei seus olhos azuis serem engolidos pelo calor da luxuria e senti um arrepio de antecipação descer por minhas costas quando ele grunhiu, avançando em minha direção.



Caítulo 20

Lembro-me de, quando era mais novo, ter cruzado acidentalmente com um filme sobre um cara fazendo uma viagem de avião. Não era um pornô, ao menos não no sentido literal. Acho que agora seria classificado como… erótico. Ou alguma outro eufemismo assim.
Apesar de não ser pornô, entretanto, tinha algumas cenas de sexo. Nada muito impressionante e definitivamente não foi o que me chamou a atenção. Não. O que havia ficado comigo todos aqueles anos fora a imagem da personagem principal.
Uma aeromoça com o olhar sacana e que se virava para a câmera como se tivesse falando com o outro personagem do filme e sussurrava aquelas palavras. Tinha sido uma das coisas mais quentes que já havia visto.
Até aquele momento.
Até aquela porra daquele momento em que minha namorada vestira uma fantasia curtinha enquanto, com aquela boca que eu adorava, perguntou se eu estava pronto para uma viagem. Todas as memórias sobre o filme e aquela atriz sumiram imediatamente. O ambiente ao meu redor também desapareceu como um borrão, provavelmente porque todo o sangue de minha cabeça foi redirecionado para meu pau, que ficou duro com uma rapidez que eu não julgava possível. Por isso, quando dei o primeiro passo em sua direção, já estava tudo desfocado, tudo que não fosse . Escutei um grunhido e, no fundo de minha mente, sabia que era eu quem fazia aquele som, mas não me importava por estar agindo como a porra de um homem das cavernas. Porque era exatamente assim que me sentia. Um homem das cavernas que estava prestes a transar com sua mulher e só parar quando nós dois estivéssemos esgotados demais para nos mexer.
Assim que chegou ao meu alcance, estendi as mãos com a clara intenção de puxá-la para mim, mas fui frustrado quando ela pulou para o lado mais rápido do que meus instintos conseguiram reagir para impedi-la. Se estivesse pensando direito, teria me preocupado sobre como tinha o poder de embebedar os reflexos do quais sempre me orgulhei. Meu cérebro, no entanto, estava desligado para tudo mais que não fosse descobrir se ela estava usando lingerie por baixo daquele top minusculo.
Avancei outra vez, mas, de novo, afastou-se, dando um passo para trás e erguendo a mão direita espalmada em um claro pedido para que eu parasse. Vi sua boca se mexer, mas precisei me concentrar para realmente ouvir.
- … do jeito que eu planejei.
Ouvi-la, contudo, não permitiu que eu encontrasse algum sentido em suas palavras, ou mesmo que conseguisse formular um pedido para que ela se repetisse. Não que estivesse muito interessado em qualquer coisa envolvendo uma conversa. De novo avancei e de novo fui barrado.
Por Deus!
Já estava me contorcendo.
Tortura. Pura tortura.
Já estava prestes a abandonar a faceta boazinha e começar a demandar o que queria - uma vez que essa opção era melhor do que a alternativa que envolvia implorar - quando voltou a colocar a mão espalmada sobre meu peito. Dessa vez, entretanto, avançou um passo, fazendo pressão com a mão para que eu fosse para trás. Deixei que me empurrasse até sentir a beirada da cama bater em minha panturrilha, mas ela não parou, então, obedecendo como um cachorrinho, caí de costas na cama. Apoiei-me em meus antebraços, erguendo-me parcialmente para ver o que ela faria em seguir.
- , você não me respondeu - ergueu uma perna lentamente para apoiar o joelho ao lado do meu quadril e depois fez o mesmo com a outra, posicionando-se para que eu ficasse entre aquelas coxas que atraíam minhas mãos como imãs.
Como meu controle já estava por um fio, nem mesmo tentei recusar aquele chamado. Acariciei suas pernas, satisfeito ao sentir a maciez sobre minhas palmas. Felizmente, ao invés de me repreender, dessa vez abriu um sorriso preguiçoso e pude ver suas bochechas começarem a corar quando minhas mãos subiram para se perderem embaixo daquela saia. Para meu desespero, entretanto, mal pude chegar a encostar os dedos na renda de sua calcinha, que apostava ser tão minuscula e tentadora como todas as outras, e já havia fechado os dedos no máximo que conseguia envolver de meus pulsos.
- Sabe… - apertou mais firme e, outra vez deixando que me guiasse, voltou minhas mãos para descansar em suas coxas. - Você não respondeu minha pergunta.
Escutava ela falando ao longe, mesmo ela estando literalmente ao alcance de minhas mãos, pude finalmente entender o que queriam dizer com “pensar com a cabeça de baixo”. Meus planos de tê-la embaixo de mim foram frustrados outra vez quando puxou meu cabelo para que movesse a cabeça até que estivesse encarando seus exóticos olhos violeta, que, percebia agora, continham um brilho de impaciência. Soube imediatamente que iria acabar dentro do box em um banho gelado ao invés de dentro de minha namorada se não começasse a ouvir.
Passei a língua por meus lábios secos e murmurei:
- O quê?
- Pela última vez, - a ansiedade em sua voz me mostrou que ela estava no fim de sua paciência. - Vou te levar para uma viagem. Você quer ir? - as palavras, porém, esticaram-se e se amaciaram até voltar ao tom sensual de antes
Sim, sim. Sim. Com você. Para qualquer lugar.
- Sim - grunhi.
O sorriso lento e provocador voltou a aparecer em seu rosto e sua mão deslizou por meu tórax enquanto engatinhava para trás até ficar sentada sobre os calcanhares e no meio das minhas. Seus dedos foram rápidos para desafivelar meu cinto, abrir o botão e o zíper, quando, porém, chegou o momento de descer minha calça, seus dedos dançaram no cós. Brincando com aquele pedaço de pano do mesmo jeito que brincava com minha excitação: tortuosa e deliberadamente.
A parte mais primitiva em mim queria segurá-la pelos braços e virá-la até que estivesse sob mim e sem ter como ser uma provocadora, pois eu estaria no controle, mas, a cada vez que me mexia para fazer exatamente isso, via aquele chapeuzinho em sua cabeça. E a merda daquele adorno me lembrava o quanto minha namorada tinha se esforçado para aquele momento, então, de novo engolia minha frustração e deixava que ela me fizesse agonizar mais um pouco.
Por piedade ela finalmente puxou minha calça para baixo e eu, meio desespero e sem ter vergonha disso, levantei o quadril e chutei a calça para longe. sorriu frente a minha impaciência e por um momento pensei em quando teria minha revanche, mas logo seu rosto me distraiu de novo. Considerava minha namorada linda em todos os momentos, cada vez que transávamos, porém, ela me fazia pensar em uma rainha antiga em sua glória. O jeito como aqueles olhos violeta queimavam eram capazes de vencer guerras. Ou de levar guerreiros ao seu fim, ao menos esse soldado aqui sempre se via perdido.
Minha perdição enrolou o dedo em minha boxer e a puxou para baixo outra vez com minha entusiasmada ajuda. Observei com os olhos meio arregalados quando minha namorada abaixou a cabeça, só agora realmente me dando conta do que ela estava prestes a fazer. Já havia recebido uma quantidade razoável de sexo oral em minha vida e gostava daquilo como qualquer outro cara. Não era, então, nenhuma novidade, mas confesso que reagi como a porra de um adolescente, estocando para cima antes que conseguisse me controlar, quando dedilhou minha coxa esquerda e soprou de leve a cabeça de meu pênis. Aquilo era bom, mas o que veio a seguir ferrou outra vez com minha capacidade de raciocinar.
Joguei a cabeça para trás e mandei um agradecimento a qualquer que seja o ser superior existente assim que colocou a boca em mim e sugou devagar. Meu alívio, entretanto, foi breve, pois minha namorada logo voltou ao seu jeito provocador.
Trinquei os dentes ao sentir sua língua passear timidamente pela cabecinha em uma exploração lenta que parecia matar tanto sua curiosidade quanto minha lucidez. Aquelas pequenas lambidas, contudo, felizmente pareceram logo perder a graça e minha namorada voltou a sugar. não tinha nenhuma técnica especial absolutamente impressionante, mas seu jeito entre tímido e cheio de vontade de explorar estava fazendo com que minha cabeça girasse. Se fosse honesto comigo mesmo e ainda me restasse qualquer capacidade de raciocínio, admitiria que o fato de meu autocontrole estar sendo feito em pedaços tinha mais a ver com quem estava fazendo do que o oral em si.
Falando na minha loira, fui surpreendido mais uma vez ao sentir que ela colocava mais de mim em sua boca ao mesmo tempo que uma de suas mãos rodeava a parte da base onde ela não conseguiria chegar com os lábios, mesmo relaxando a garganta daquele jeito incrível. Quando ela criou um pouco mais de confiança e começou a se movimentar, meus braços cederam e caí de costas no colchão, fechando os olhos e sentindo um grunhido ressoar em meu peito frente a onda de prazer que começava a subir em minhas veias como uma droga. Uma mão massageando o que não conseguia chupar em sua boca e a outra mão se esgueirando por baixo para encontrar meu saco.
Porra.
Já não me lembrava a mecânica de respirar. Não me lembrava de porra nenhuma. De maneira ausente percebi que tinha esticado a mão e que agora amaçava entre meus dedos um pouco do chapeuzinho e muito do cabelo loiro de . Sabia que provavelmente estava usando um pouco mais de força do que o mínimo que deixava transparecer quando estava junto com ela, mas não conseguia me conter.
Graças à posição em que agora me encontrava, não conseguia mais enxergá-la direito, então encarava o teto. Não me permitia fechar os olhos, pois aquilo seria abandonar o último fiapo de controle que ainda me restava. Manter a atenção no branco acima, contudo, também não fazia muito para que eu alcançasse meu objetivo. Nada me distraía, nada me ajudava a manter o foco inquebrável do qual sempre me orgulhara.
Naquele minuto eu só existia para sentir, não para pensar. Naquele minutos só existia e eu.
O prazer cresceu, correndo por minhas veias com mais força a cada nova sugada que ela dava, a cada rodada de seus dedos fossem em minhas bolas ou na base do meu pau, e em todas as vezes que sua língua passou pela cabecinha. Aquilo era tão inacreditavelmente bom que o orgasmo que me atropelou bateu tão forte que por um segundo tudo ao meu redor escureceu. Só consegui voltar ao presente quando já deitava em meu peito, o braço sobre meu estômago. Automaticamente a abracei pela cintura, puxando-a para mais perto enquanto soltava o ar, satisfeito.
Muito satisfeito.
Olhei para baixo, encontrando seus cabelos loiros bagunçados graças a meus dedos e já sem o chapeuzinho, do qual ela provavelmente se livrara enquanto eu estava ocupado demais aproveitando um dos melhores orgasmos que já tive. Movido por uma atração inegável, levantei a mão para acariciar os fios dourados que me fascinavam. Em resposta, levantou a cabeça, seus olhos violeta brilhando com um orgulho vaidoso. O sorrisinho no canto de seus lábios também era um bom indicativo de quão satisfeita consigo mesma ela estava. Deslizei a mão para baixo de sua minisaia e belisquei de leve sua bunda gostosa, fazendo com ela desse um pequeno pulo.
- Hey! - ganhei um tapa de leve no peito enquanto sua risada divertida enchia o quarto.
Levantou-se um pouco e puxou o lençol sobre nós.
- Um pouco tarde para modéstia - ri, minha voz estava mais rouca do que o normal graças aos grunhidos que havia soltado e também aos que havia reprimido.
Encarei o vazio, nada especial em mente enquanto deslizava os dedos pela parte de suas costas que não era coberta pelo top azul. Estranhamente me sentia como se estivesse em uma bolha, apenas contente por estar exatamente onde estava.
- ? - seu murmúrio cheio de incerteza me fez, franzindo o cenho, olhar para baixo outra vez.
, entretanto, continuava deitada no meu peito e com o olhar longe do meu.
- Sim?
Houve mais um momento de silêncio e pensei que o assunto, qualquer que fosse, tivesse morrido, mas, depois de um suspiro audível, ela continuou, com hesitação:
- Eu… Eu só… Quer dizer... , por que você entrou para a marinha?
Senti meu corpo inteiro se retesar por reflexo, o braço que estava ao seu redor a apertou com mais força e soltou um resmungo baixinho. Horrorizado com a possibilidade de tê-la machucado, imediatamente me obriguei a relaxar os músculos, chegando até mesmo a deixar que meu braço pousasse no colchão e longe dela. Teria me levantado e saído do quarto se minha namorada não tivesse se mexido para praticamente deitar em cima de mim, a perna sobre minha coxa e o braço firme em minha cintura. Envergonhado por ter machucado sua pele com minha falta de controle, mantive meu olhar na estante do outro lado do quarto, um ponto acima da cabeça dela, qualquer coisa para não ter que encará-la.
- - sua voz era tão suave quanto o toque de seus dedos em meu queixo.
Continuei imóvel, torcendo para que ela desistisse, ainda que soubesse que isso não iria acontecer.
- … Amor?
E aquela palavrinha minúscula tinha o poder de me arrastar com a força de um tanque. Era só ouvi-la e já estava procurando seu olhar para ter certeza de que não era algo vazio. E, exatamente como da primeira vez que isso aconteceu, vi-me arrebatado por aquele brilho, que não conseguia identificar, mas que me aquecia por dentro de uma maneira que não acreditava ser possível existir.
Violeta líquida, violeta veludo, violeta whisky que me embebedava.
- Não precisa me contar. Não agora. Só não... não afasta, ok?
O peso em minha consciência dobrou de tamanho ao perceber que, ainda por cima, acreditava que eu queria me afastar por que ela estava me pressionado, e não porque estava com vergonha de meu comportamento.
Senti-me um moleque, não um homem.
Minha infantilidade aumentou quando, mesmo sabendo que deveria me explicar, não consegui; havia um bolo pesado em minha garganta. Inacreditável como era mais fácil falar sobre assuntos do quais nunca me atrevia a pensar do que admitir que, mesmo acidentalmente, havia, de alguma maneira, machucado-a. Não era justo, porém, com nenhuma de nós dois que ela continuasse se responsabilizando por algo tão longe da verdade. Respirei fundo e olhei para o lado por um instante antes de voltar a mergulhar em meu mar violeta.
- Nós éramos novos - senti minha voz raspar no fundo da garganta enquanto minha atenção se perdia em algum lugar do passado. - Três pirralhos prestes a sair da faculdade. Acho que nós não sabíamos o que fazer no mundo. A ideia deve ter surgido no meio de uma conversa como uma coisa boba… até que um dia simplesmente não era mais tão idiota. Havia um posto da marinha perto do campus. Nos alistamos - minha mão voltou a procurar seus cabelos, brincando distraidamente com uma mexa em busca de conforto. - Não sei ao certo o porque de Hunter e Chase terem se alistado - soltei uma risada seca. - Talvez não queira pensar sobre isso, porque existe a grande possibilidade de ter sido porque os dois imbecis não queriam deixar que eu fizesse isso sozinho - engoli em seco e precisei de um segundo maior do que o necessário para colocar em palavras, agora, o que não havia admitido nem para mim mesmo. - Falando por mim mesmo… acho que… eu não queria, não sei. Queria algum tipo de família. Irmãos.
Abri a boca, tentando continuar o raciocínio, mas nada saiu. Era como se estivesse areia sobre a língua, não que ela fosse de muita utilidade no momento, uma vez que meu cérebro parecia ter se fechado em si mesmo. Batido em uma parede negra, não indo nem para frente, nem para trás. Preso em algum lugar entre o passado e o presente.
Senti seus lábios em meu queixo em um beijo casto e de novo minha namorada me puxava de volta para realidade. Ela fazia muito daquilo, provavelmente mais do eu mesmo me dava conta. Dessa vez, contudo, foi preciso mais coragem para abaixar a vista para encará-la. Ao invés de encontrar a pena que receava, entretanto, deparei-me outra vez com aquele lampejo caloroso.
- Obrigada - sussurrou, mordendo meu queixo de leve.
Pisquei devagar, confuso. Sentimento que só aumentou quando ela se apoiou no colchão para se levantar um pouco e me dar um último beijo na bochecha, sorrindo, antes de se levantar.
- Aonde você vai, ?
- Procurar alguma coisa para comermos - respondeu enquanto caminhava para fora do quarto, parando ao abrir a porta para me olhar por cima do ombro. - Enquanto isso você vai tomar banho.
Demorei alguns bons segundos encarando o espaço vazio de onde ela havia acabado de desaparecer antes de me levantar, sacudindo a cabeça ao entrar no banheiro. Ainda tentava entender quando exatamente uma coisinha delicada daquele tamanho havia começado a mandar e desmandar em mim desse jeito. Minutos depois do banho, entrava descalço e sem camisa na cozinha, seguindo o cheiro incrível que vinha daquele cômodo. estava de costas para a entrada, mexendo em alguma coisa sobre o fogão enquanto prendia o celular entre o ombro e o ouvido.
- Eu sei, mãe. Mas não vou deixá-lo sozinho.
Apesar de seu tom baixo, não tive qualquer dificuldade para ouvi-la. Não me orgulhava disso, mas a curiosidade levou a melhor e continuei em silêncio. Houve uma pequena pausa antes que ela continuasse:
- Que coisa, mãe! Já te expliquei.
Silêncio.
- Não, eu não perguntei se ele queria ir - um segundo de silêncio. - Porque eu não quero que ele se sinta obrigado a dizer sim - soltou um muxoxo impaciente. - Ok, mãe. ‘Tá bom. Vou pensar. Eu sei, mãe. Ok. Certo. Também te amo, mãe. Manda um beijo para o papai. Tchau.
Quando se virou para colocar o celular sobre a bancada, viu-me parado ali.
- Hey, amor - abriu um pequeno sorriso.
- Tudo bem, ?
Ela mordeu o lábio inferior antes de se virar de novo para o fogão. Um segundo depois, contudo, voltou a se virar para mim.
- Quer passar o feriado de ação de graças com minha família? Eles moram em Montana. Normalmente voo para lá alguns dias antes. É bem divertido. Não é muita gente, juro. Comida boa, risadas, lareira. Adoraria se você aceitasse, mas, se não quiser, podemos ficar aqui também. Quem sabe ver o desfile da Macy’s. Não tem problema. O que acha?
Falou tudo de uma vez só, em um único fôlego, então, mesmo depois que terminou, ainda precisei de um segundo a mais para processar as informações.
E de um tempo ainda maior para compreender o que ela perguntava.
Família. Ação de graças. Montana. Viagem.
As palavras rodavam em minha cabeça e meu primeiro instinto foi disparar um sonoro não, e verdadeiramente a palavra já estava na ponta da língua quando o pedido mudo em seu olhos me fez parar.
E de novo me senti minúsculo.
Podia ver que, acima da esperança de que eu aceitasse seu convite, havia ali uma calma resignação. tinha quase certeza de que eu iria recusar e já tinha aceitado isso, mesmo não sendo o que queria. Podia apostar que ela sempre viajava para ver a família nessa época, também tinha certeza de que era sobre isso que falava no telefone.
Não precisava ser Chase para ligar os pontos e chegar a conclusão de que ela havia decidido quebrar uma tradição.
Minha loira estava disposta a abrir mão de algo que queria por acreditar que um passo daquele tamanho me deixaria desconfortável.
Ela tinha razão, porém, eu não tinha o direito de fazer isso com ela. De novo, então, vi-me abrindo mão de um pouco mais de meu controle e saltando em meio ao desconhecido que, para mim, tinha o tom violeta.
- Eu adoraria, .
O sorriso enorme que tomou seu rosto depois que o choque desapareceu fez tudo valer a pena. saltitou até estar na minha frente.
- Obrigada - passou os braços ao meu redor e me abraçou apertado. - Você vai adorar Sunville.
- Você realmente cresceu em um lugar chamado Sunville? - soltei uma risada.
- Nah - sacudiu a cabeça. - Cresci aqui em Manhattan mesmo. Meus pais se mudaram para lá depois de se aposentarem.
- Você acabou de estragar um pouco de seu encanto.
- Hey!
- - franzi o cenho, olhando por cima de sua cabela e para o fogão. - Tem alguma coisa queimando.
- Oh! - apressou-se a correr para checar a panela, mexendo em tudo e em qualquer coisa ao mesmo tempo ao tentar salvar nosso jantar.
Não. Pensando melhor, o encanto continuava perfeitamente intacto.

xxx

- E, de novo, hoje mais do que qualquer outro dia, lembre-se que todos nós somos muito gratos por você ter servido nosso país, Ed - sorri, segurando sua mão entre as minhas enquanto me despedia do senhor McRarty na porta de meu escritório.
- Muito obrigada, doutora .
- Sempre um prazer te ver sorrindo, Ed.
Acenei para o adorável senhor uma última vez antes de ele passar pela porta de saída do prédio e se perder no meio da multidão que se apoderava da rua naquele fim de manhã gelada de quarta-feira.
- Charlotte, esse foi o último?
Antes de me virar para minha recepcionista, aguardei aquele momento de praxe onde fingia não saber que ela estava guardando o celular, que há um segundo, usava para conversar com o namorado, no meio de seu expediente.
- Sim, doutora - respondeu apressada. - O último. Nenhuma consulta para depois do almoço, exatamente como a doutora pediu.
- Ótimo, Lottie - assenti. - Pode trancar a porta, por favor?
Voltei à minha sala e abri a primeira gaveta para pegar minha agenda, celular, carteira e iPad, guardando tudo em minha bolsa favorita. Enorme, azul e que fora presente da minha melhor amiga. Sorri satisfeita ao pendurá-la em meu braço e apagar a luz de meu escritório, os planos fervilhando em minha cabeça.
- Lottie, Lottie! - chamei a segunda vez com mais intensidade para que a adolescente levantasse a cabeça do iPhone.
- Doutora ! - pulou no banco, olhando-me assustada por um segundo para logo depois tentar disfarçar de novo, escondendo o celular no bolso e me olhando de um jeito inocente como se fosse Houdini em um grande ato de escapismo.
Revirei os olhos, mas estava de tão bom humor que decidi ignorar seu comportamento desleixado. Ao menos dessa vez ela não estava chorando. Suponho que ainda não tinham brigado essa semana.
- Só lembre de checar duas vezes se trancou tudo e pode tirar o resto da tarde de folga.
- Obrigada, chefe - sorriu.
Assenti com a cabeça, sorrindo também. A estação do metrô não ficava longe e a repetição mental e ininterrupta que fazia dos ingredientes e passos de preparo fez com que a viagem para casa fosse mais rápida do que o normal. Esse tipo de coisa, contudo, tinha também suas desvantagens, uma vez que, tão distraída estava dentro de minha própria mente, acabei tropeçando uns passos para frente quando ele acelerou na terceira estação. Felizmente o trem não estava tão cheio e, dessa vez, não causei uma contusão em alguém - aquele tipo de experiência era algo que você não gostaria de viver nem uma vez, quanto mais duas. No resto do percurso, entretanto, tive a certeza de tomar um pouco mais de cuidado a fim de evitar novos risinhos do grupo de adolescentes sentados a alguns bancos de distância.
Já de volta a superfície, passos apressados me levaram rápido da estação até a Appleby.
- Bom-dia, Stella - cumprimentei a jovem ruiva que se apressava de um lado para o outro entre o caixa e a entrega de pedidos para atender todos os clientes que faziam fila na frente do balcão.
Senti-me culpada, enquanto passava pela bela portinhola de madeira clara e lisa do balcão que separava a área dos funcionários do resto da confeitaria, por não parar para ajudar quando a adolescente claramente estava sobrecarregada. Meu horário, entretanto, estava extremamente apertado, cada segundo fora contado para ter tempo de fazer tudo que planejava. Não podia me dar ao luxo de desperdiçar nada. Com um suspiro pesado, então, caminhei para parte de trás, onde ficava a cozinha. A situação ali estava tão frenética quanto na loja. Ava corria de um lado para o outro, num segundo mexendo uma mistura amarela em um pote de plástico, no seguinte apertando um saco de confeiteiro para decorar uma fileira de cupcakes e tudo isso enquanto pulava para checar os diferentes fornos e o que assava dentro deles.
- Você precisa contratar outra pessoa, Ava - resmunguei, sacudindo a cabeça enquanto pendurava minha bolsa e casaco junto da sua no cabide de madeira pregado na parede.
Minha amiga estava tão ocupada se desdobrando para realizar o trabalho de três pessoas que nem mesmo levantou a cabeça da massa que apertava para me responder:
- Já conversamos sobre isso, .
- Sim. Já conversamos - dirigi-me à pia no canto do cômodo e que era reservada somente para lavar as mãos e tive a certeza de passar bastante sabonete, uma vez que havia acabado de sair do metrô. - Conversamos, ouvi seus argumentos e continuo afirmando que eles não são válidos - abri a torneira, deixando que a água desfizesse a espuma sobre minha pele. - Vocês duas estão fazendo o serviço de, no mínimo, quatro pessoas. Seis, quando se aproximam os feriados. Aposto que esse ano vai ser o mesmo caos do ano passado.
Não sabia como elas aguentavam. Eu tinha ajudado por cerca de quatro horas e quase enlouqueci com a quantidade de pessoas, pedidos, dinheiro. Todos querendo atenção ao mesmo tempo e reclamando sobre como estavam atrasados para chegar a algum lugar.
- Ava, é sério. Olha a bagunça que está isso aqui - abri os braço, olhando significativamente para os vários potes de açúcar destampados e os sacos de confeiteiro fora do lugar onde deveriam estar guardados.
- Se você está tão insatisfeita, pode procurar outra confeitaria para fazer esses doces para o seu namorado.
Estava abaixada para pegar a sacola que guardara sob uma das mesas no dia anterior, mas ainda virei a cabeça ao ouvir seu tom ríspido. Ela olhava para baixo, resmungando alguma coisa entredentes enquanto apertava uma massa de bolo com mais força do que o necessário. Com muita paciência, levantei-me, coloquei a sacola na mesa à minha frente e comecei a tirar os ingredientes para uma torta Merthier e alguns cupakes. Só depois de organizar tudo, olhei para minha amiga, sabendo que agora ela já havia se acalmado um pouco.
Appleby me lembrava raios atmosféricos. Você via a tempestade e, mesmo sabendo o que esperar, não sabia quando. Primeiro vinha a luz que causava espanto e que trazia o verdadeiro perigo, mas só aqueles que realmente estavam próximos sofriam os danos da descarga elétrica. Depois ressoava o trovão, o barulho que te fazia pular, assustado, mas que te deixava saber que o perigo já havia passado. A morena era assim, guardando a raiva até explodir de uma vez em algo que pode ser catastrófico, mas logo vinha um sinal de que tudo ficaria bem, que já era seguro.
- Que droga, ! - resmungou, levantando os olhos azuis oceano para mim.
E ali estava o trovão.
- Você sabe muito bem que não foi isso que quis dizer, Avalon. Não estou reclamando. Apenas me preocupo com você ficar sobrecarregada assim o tempo todo.
- Eu sei, eu sei - encostou as costas da mão na testa, as palpebras cerradas, claramente exausta tanto física quanto mentalmente. - E só que eu não confio em mais ninguém aqui.
Mantive minha expressão cuidadosamente neutra apesar da surpresa que sentia. Não queria que ela se desse conta do que havia deixado escapar. Guardando, então, essa informação para analisar mais tarde, dei-lhe as costas para que tivesse privacidade para se recompor.
- Bom, sendo assim, que tal contratar um estudante meio-período? - abri com um puxão o saco plástico em que tinha guardado as maçãs verdes.
Enquanto o silêncio imperava, fui até a geladeira para buscar a manteiga e o ovo que também guardara no dia anterior.
- Ok - murmurou finalmente. - Vou pensar sobre isso. Está realmente ficando difícil.
Cortei um pedaço da manteiga e coloquei sobre uma das panelas que pegara em meu caminho de volta para a mesa de inox em que trabalhava.
- Mas vamos olhar pelo lado bom, o trabalho é grande porque o sucesso é grande - acendi o fogo e deixei a panela lá para que a manteiga derretesse.
- E também não machuca ter uma amiga que te empresta com uma cozinha profissional, né? - brincou, o tom já voltando ao normal.
- Hey! - protestei, parando um segundo de descascar a maçã para olhar por sobre o ombro. - Até parece que eu venho aqui todo dia abusar da sua boa vontade. E se me lembro bem, você cozinha na minha casa com muito mais frequência! - ri, sacudindo a cabeça antes de voltar à tarefa em mãos.
- “Hey” digo eu! Você que sai no lucro com minha bondade de compartilhar meus grandes dotes culinários.
- E sua grande humildade. Não podemos esquecer da humildade.
- Isso também. Afinal, você sabe que eu sou perfeita.
- Certamente, certamente - assenti, sorrindo, passando agora a picar a fruta nos tamanhos corretos.
Trabalhamos mais alguns segundos em silêncio, eu podia ouvir Ava se mexendo em algum lugar atrás de mim, andando de um lado para outro, abrindo e fechando a porta de um forno.
- , não estou reclamando, mas por que você está fazendo essas sobremesas aqui? Quebrou o fogão? Se foi isso que aconteceu, espero que tenha sido de um jeito totalmente inocente.
- Como alguém pode quebrar o fogão de uma maneira que não seja inocente, Appleby? - franzi o cenho, confusa, mas sem tirar os olhos da cor que a manteiga estava tomando sob a colher que eu mexia - Tenho certeza de que ninguém planeja estragar um eletrodoméstico de propósito.
- Bom… sei lá, né. Você e Leo parecem ser bem criativos. Vocês dois. Juntos. Vai saber.
Levei um longo momento para entender o que ela estava sugerindo. Aquilo era tão absurdamente sem noção que nem pude me sentir ofendida, apenas dei risada. - Meu Deus, Ava. Que ideia ridícula!
- Vai saber, né - repetiu.
- Para sua informação, meu fogão está funcionando muito bem, sua pervertida. O fato é que, apesar de ter me dito que tirou o dia de folga e que encontraria os amigos no The Hook’s, não queria arriscar uma chegada inesperada. Estragaria a surpresa.
- Essa explicação é bem entediante. A minha era bem mais legal.
- E irrealista.
- Ah! Não seja hipócrita. Sabemos muito bem que nada que envolva sexo e pode ser classificado como irrealista. Aquele homem deve conseguir alcançar coisas que até o diabo duvida.
Senti minhas bochechas corarem ao perceber a verdade em suas palavras. Felizmente estava de costas para ela, assim Ava não podia ver o quão “pega no flagra” me sentia. Decidindo que era melhor me focar em outra parte de suas palavras, falei:
- Não seria Deus?
- O que tem Deus?
Revirei os olhos.
- O ditado. É “coisas que até Deus duvida”.
- Ah, sim. Tanto faz. O meu, de novo, é mais divertido. Admito, contudo, que não deve ser tão divertido quanto , não é mesmo?
- Eu vou parar de te contar as coisas, sabe?
- Não vai, não. Afinal, qual a graça de conquistar Esparta e não poder contar para ninguém? Além disso, eu sou sua melhor amiga, ninguém melhor do que eu para saber cada micro detalhe de como o maior guerreiro sucumbiu.
- Alguém já te disse que você às vezes exagera nessa veia histórica-barra-dramática?
- Você adora, e eu sei.
Sim, eu adorava, mas, sabendo muito bem que seu ego não precisava de mais nenhum estímulo, permaneci em silêncio, ocupando-me com a massa dos cupcakes. Todo o tempo, entretanto, eu sorria, divertindo-me com o jeito que Ava resumira meu relacionamento. Apesar disso, contudo, havia um único ponto que me incomodava, batendo repetidas vezes no fundo de minha mente como um martelo em um prego: não me sentia uma conquistadora. Parecia ter ainda muito terreno para vencer antes que se rendesse e me deixasse ficar plenamente ao seu lado. Ou, melhor, que ele ficasse plenamente ao seu lado.
Decidindo não deixar que esses pensamentos estragasse meu humor, empurrei-o para longe, forçando toda minha atenção em deixar os doces que preparava perfeitos.
Cerca de uma hora e meia depois, tendo certeza de que tudo estava na temperatura correta e que nada murcharia, guardei tudo cuidadosamente em duas caixas separadas, fechando as tampas. Afastei-me até o cabide e vesti meu sobretudo vermelho cereja, só agora tendo uma vaga ideia de que talvez aquilo não combinasse com a bolsa azul petróleo que coloquei sobre o ombro. Voltei ao balcão e coloquei uma caixa sobre a outra antes de equilibrá-las sobre meus braços. Satisfeita, respirei fundo antes de enfrentar primeiro a multidão maluca da Appleby’s e depois o ar novaiorquino que arrepiava em novembro.
- Tchau, Ava. Stella. Obrigada! - gritei por de trás das caixas enquanto aproveitava para passar pela porta quando um cliente abriu para entrar.
Puxando no fundo da mente o caminho que havia feito algumas vezes com , naveguei pelas ruas, meio às cegas e quase esbarrando em quatro pessoas diferentes, até chegar, sem fôlego ao The Hook’s. Fiquei de costas para porta e, contorcendo-me além do possível, usei o cotovelo para empurrar a maçaneta para baixo e depois as costas para forçar a porta para trás. Minha bolsa escorregou do ombro e puxou meu braço para baixo, o que me fez cambalear para dentro em uma dança ridícula para manter meu traseiro e as caixas longe do chão. Quando consegui restabelecer o equilíbrio e parte da minha dignidade, olhei para os lados, tanto procurando por meu namorado quanto por um possível observador de minha dança patética. A olhada rápida não permitiu que encontrasse , mas certamente havia três caras em uma mesa ao longe dando boas gargalhadas enquanto olhavam para mim. Estufando meu peito e erguendo o queixo, apesar de sentir minhas bochechas coradas queimando, marchei para dentro do pub. Felizmente não demorou muito para localizar a inconfundível blusa preta que eu adorava.
Naquelas costas fortes e largas que sempre chamavam minha atenção e pela qual cravei as unhas ontem à noite.
Mudei de direção, sentindo-me mais confiante agora enquanto acenava com a cabeça para alguns caras que lembrava de ter visto conversando com e com quem já trocara algumas palavras das vezes em que meu namorado me trouxera aqui em algum final de tarde. Já mais perto, venci a iluminação amarronzada do lugar e identifiquei com quem ele estava sentado.
Hunter estava de frente para mim e pude ver a surpresa em seu rosto quando me reconheceu, Chase, ao seu lado, também pareceu surpreendido antes de abrir aquele sorriso preguiçoso de lado que era sua marca. Quando estava a poucos passos, pude ver as costas de se retesarem e percebi que ele sabia que eu estava ali. Isso era algo recorrente e me deixava meio frustrada. Nunca conseguia ouvi-lo se aproximar, graças a suas passadas de felino, meu namorado, por sua vez, sempre sabia quando eu estava a um raio de três metros dele. Além disso, sabia também exatamente onde eu estava, então não me surpreendi muito quando ele se virou e imediatamente seus olhos gelo encontraram os meus. também mostrou surpresa, mas logo estava sorrindo - bem mais discretamente do que eu, mas sorrindo.
- O que faz aqui, ? - perguntou suavemente, afastando sua cadeira e me puxando para o seu lado, o braço esquerdo firme ao redor de minha cintura. - Você não disse que tinha que trabalhar hoje?
- Oi, Hunter, Chase - sorri para os dois e ganhei acenos de cabeça em retorno. - Bom… é verdade - voltei minha atenção à pergunta de meu namorado. - Hoje normalmente é bem movimentado lá no consultório, mas, como esse ano as coisas mudaram, resolvi mudar um pouco também - coloquei as caixas sobre a pequena mesa, tomando cuidado para não atingir as canecas de vidro enormes e repletas de cerveja no parco espaço. - Afinal, não podia deixar que meus veteranos favoritos tivessem um dia sem um pouco de doçura.
- Doçura? - grunhiu, aumentando a pressão no braço ao meu redor.
Revirei os olhos.
- Estou falando da doçura no sentido estrito mesmo, idiota - resmunguei baixinho ao me virar para ele, tendo a certeza de lhe dar uma boa cotovelada direto nas costelas.
Tinha certeza de que não havia doído nada, mas ao menos ele teve a decência de fechar a boca, mesmo que para isso tenha travado a mandíbula de uma maneira que supunha ser seu jeito de fazer pirraça - ainda que parecesse mais um leão bravo do que um puppy se sentindo culpado.
Sacudindo a cabeça, voltei-me para os amigos de meu namorado, que nos assistiam curiosos e com sorrisinhos que me fizeram ter a certeza de que podia esperar algumas brincadeiras quando eu fosse embora. Mordendo meu próprio sorriso ao pensar o quanto ele merecia as futuras provocações, abri a primeiro caixa e a girei para que a tampa não atrapalhasse a vista deles. Caleb soltou um pequeno assovio de apreciação.
- Isso está muito bonito, Darlin’ - o sorriso de Chase aumentou. - Importa-se se eu pegar um?
- Claro que não! - respondi imediatamente, tentando fingir que não corava de novo ao ouvir seu sotaque arrastado. - Trouxe para vocês mesmo - sorrindo, recostei-me mais contra enquanto observava cada um deles morder um cupcake, que parecia minúsculo nas mãos que eram tão grandes e másculas quanto as do meu namorado.
Falando no meu soldado favorito, ele também se esticou e pegou não um, mas três bolinhos. Ao menos ele se lembrou de comer um de cada vez.
Impressionante como homens se tornavam meio selvagens quando se tratava de comida… e sexo. Pouco civilizados.
Hunter soltou um grunhido, fechando os olhos.
Ou melhor, nada civilizados.
Chase, por sua vez, depois de lançar um olhar divertido para o amigo, sacudiu a cabeça e se virou para mim de novo:
- Isso está incrível, Darlin’. Muito obrigado - dessa vez o sorrisinho de lado foi acompanhado por uma piscadela daqueles olhos azul cor do céu ao meio-dia.
Tive que me controlar para não abaixar a cabeça e dar uma risadinha - de novo como uma garotinha de terceira série. Eu realmente tinha que parar com isso.
- Quantas vezes vou ter que te dizer que ela tem nome? - resmungou. - Nada de Darlin’ - arrastou a palavra em uma imitação ruim do sotaque do amigo. - Ou qualquer outro desses apelidos cafonas.
- Não acho nem um pouco cafona - defendi o loiro, sendo prontamente ignorada pelos dois.
estava ocupado demais bufando em irritação e Chase se concentrava em tentar esconder o brilho esperto no canto de seus olhos. Engraçado como, apesar de não ter convivido tanto com ele, eu podia identificar os sinais de quando sua mente brilhante estava bolando alguma armadilha para o desavisado com quem conversava.
Ao invés de intervir de novo, contudo, limitei-me a ficar quieta e ver o que aconteceria.
- Verdade! - arrastou as letras mais do que o normal. - O nome dela é , não é mesmo?
Ah! Já via o que ele planejava.
- Não! - bradou.
...e caminhou direto para cilada.
- Não! - repetiu, porque, aparentemente, cair uma vez não era suficiente.
- O nome dela não é ? - estalou a língua, fingindo inocência.
Eu quase podia ver uma musiquinha maligna tocar ao fundo, o brilho malvado eu seus olhos aumentando, o que era fácil identificar porque eles ficavam mais escuros - menos meio-dia e mais seis da tarde.
- Não! Não é isso! O nome dela é . O que quis dizer foi que… não disse que…
Mordi a língua e a vontade de rir ao vê-lo se enrolar para tentar sair da confusão que arrumara para si mesmo.
- O que ele quis dizer é que é melhor você chamá-la de .
Hunter, com a voz muito calma e antes de um gole de cerveja, interveio, fazendo com que todos nós nos virássemos para ele.
- Isso! Foi isso que quis dizer! - meu namorado se apressou em pular na oportunidade que lhe era oferecida. - ! Isso! - essas últimas palavras saíram abafadas pelo cupcake que ele enfiou na boca com a clara intenção de se ocupar para não ter que falar.
Dylan arqueou a sobrancelha, mas resolveu cooperar:
- Ah, sim, Puppy! Claro que foi isso - um último sorriso esperto antes de pescar sua cerveja em meio a caixas e bolinhos.
Ha!
Interessante, muito interessante, pensei, observando como os três caíam de novo na normalidade como se nada tivesse acontecido. Nem mesmo uma careta pelo apelido apareceu.
- O que tem na caixa de baixo, ? - Caleb sorria, animação e expectativa faiscando em seus bonitos olhos, as mãos já sobre o papelão, como uma criança querendo abrir o presente de natal mais cedo.
Ou como o Puppy que seus amigos insistiam em chamá-lo.
- Tortas de maçã Merthier! - soltei um gritinho animado.
E logo depois fiquei completamente chocada quando obtive como resposta um pequeno caos. Dylan e Caleb arregalaram os olhos e então eu pude assistir horrorizada os dois, por falta de palavra melhor, avançarem para caixa. Por sorte consegui sair de meu estupor bem a tempo de salvar a caneca que dançou para borda da mesa quando foi empurrada pelo cotovelo de Hunter.
- Não!
Levantei a cabeça, o vidro intacto seguro em minha mão, bem a tempo de ver como os três, que há um segundo compartilhavam um silêncio camarada, agora se encaravam como adversários a espera do primeiro ataque.
- Sugiro que mova essa mão antes que a perca, . - Hunter sibilou, um tom perigoso substituindo o brincalhão que sempre ouvira vindo dele.
Um arrepio desceu por minha espinha.
O ar parou na garganta quando minha atenção se voltou para Chase, que não tinha dito nenhuma palavra, mas que fechou o rosto em uma expressão completamente impassível, exceto pelos olhos. Olhos de pantera.
Pantera essa que estava prestes a estraçalhar a presa.
, por sua vez, era o mais assustador de todos eles. Não havia qualquer gota de emoção ali. Se não tivesse certeza de que de que não havia absolutamente nenhuma chance de que meu namorado me machucaria, teria saído correndo.
Não sabia como os dois não tinham fugido.
Ou melhor, não sabia como eles conseguiam sustentar o olhar um do outro. Havia dezenas de advertências e ameças trocadas naquele silêncio pesado e tive que me controlar para não me encolher - isso porque nem era eu quem estava sendo alvo. Percebi que as coisas estavam prestes a ficar ainda mais feias quando Chase se inclinou para frente, sabia que interpretaria aquilo exatamente como o desafio que era, e responderia a altura.
- Rapazes? Rapazes! - chamei de novo, mais alto e mais forte.
Com muita má-vontade, eles se viraram para mim, porém podia ver, pela tensão em seus ombros, que eles ainda prestavam atenção também em seus “oponentes”.
- O que vocês pensam que estão fazendo?
Adotei o melhor tom professoral possível, o que rapidamente surtiu efeito porque eles começaram a falar todos ao mesmo tempo - exatamente como as crianças que pareciam ser no momento:
- , eu..
- , isso não é…
- Por que ele tem que…
- … fez esse tipo de…
- … sempre fica falando e…
- .... Darlin, e isso é tão…
- Chega! - levantei a voz o suficiente para que pessoas de outras mesas nos lançassem olhares curiosos.
Ergui também a mão espalmada, sacudindo-a no mesmo ritmo que sacudia a cabeça para superar a tontura que os três me causaram com suas palavras desenfreadas.
- Um de cada vez.
foi o mais rápido:
- Como você pode me trair desse jeito? - lançou-me um olhar recriminador.
- O quê? - perguntei, incrédula. - Do que você está falando?
- Como você pode trazer uma torta Merthier para eles? - cuspiu a última palavra como se estivesse falando do pior dos criminosos e não de seus irmãos.
Sério?
- Sério?
Ainda completamente incrédula, virei a cabeça para olhar Chase e Hunter.
- Vocês também estão assim por causa da torta?
- Não é uma torta! É uma torta Merthier, Darlin’.
- Sabe há quanto tempo nós estamos ouvindo falar sobre essa torta? Desde que nos conhecemos!
- E não importa quantas vezes nós pedimos e pedimos para ganhar um pedaço. O egoísta do seu namorado nunca nos deixou chegar nem perto!
Hunter assentiu solenemente depois do discurso apaixonado de Dylan.
Por um segundo fiquei completamente sem reação. Os três estavam absolutamente sérios sobre suas posições.
Ok. Vamos esquecer completamente a ideia de homens das cavernas selvagens. Eles se tornavam crianças mesmo. Crianças birrentas.
Pedindo à alguma força superior um pouco de paciência, esfreguei a têmpora e soltei um suspiro pesado antes de voltar a falar.
- Certo. Entendi. Não acredito que ouvi isso, mas entendi - mais um suspiro. - , solte a caixa.
- O quê? - olhou-me como se eu tivesse acabado de o esfaquear pelas costas.
- , amor, solte a caixa - falei pacientemente, colocando minha mão sobre a sua.
Muito relutantemente, ele deixou que eu o afastasse de sua amada torta.
- Meninos, vocês podem ficar com essa.
- Por que você faz isso comigo? - sussurrou, sofrido, o olhar ainda sobre a caixa que agora Hunter e Chase puxavam para si.
Reprimindo o “aw” que queria soltar frente ao seu protesto e ao jeito que seus lábios se juntaram - dessa vez - em uma careta fofa, pois não queria que seu mau-humor se agravasse, então, ao invés, dei um beijo em sua bochecha e me aconcheguei contra seu peito. Um calor gostoso tomou conta de meu peito quando , mesmo ainda resmungando impropérios entredentes, passou os braços ao meu redor.
- Não fique assim - sussurrei, querendo tirar sua atenção das exclamações de deleite que os dois faziam questão de soltar. - Você vai poder comer uma torta Merthie classe A em poucos dias. Mamãe sempre cozinha ao menos quatro todos os anos. E a dela é melhor que a que eu faço.
Mal tive tempo de apreciar o brilho animado que apareceu em seus olhos antes que Caleb falasse de novo. Ele havia me escutado, mesmo eu tendo sussurrado, Esses caras tinham uma audição impressionante, ainda mais se levasse em conta os barulhos ensurdecedores aos quais eles foram submetidos durante a guerra.
- Espera um pouco! Do que você está falando, ?
Virei-me para ele, encostando as costas no peito de meu namorado.
- vai comigo para Montana - apoiei as mãos sobre as suas que estavam sobre minha barriga. - Para a Ação de Graças.
Dylan, que estava prestes a pegar outro pedaço de torta, parou no meio do caminho e Hunter terminou de mastigar devagar, ambos me olhando com uma mistura de deslumbramento e espanto.
- vai passar o feriado com você?
- E minha família - sorri, tombando a cabeça para o lado, um pouco confusa pela reação deles. - Por quê?
Ao invés de me responder, contudo, o loiro se virou para Puppy e eles trocaram um olhar sério onde muito foi dito sem que nenhuma palavra fosse pronunciada. Em seguida eles se viraram para nós, a atenção acima de mim enquanto incluíam meu namorado em seu papo silencioso. A quietude pesou sobre nós um pouco mais antes que Chase abrisse um sorriso como nunca tinha visto antes. Nada de segundas intenções, apenas genuína felicidade. Caleb, por sua vez, girou a caixa para que ela ficasse de frente para , claramente oferecendo um pedaço de seu estimado doce. Meu namorado que, pude perceber com uma olhada de soslaio, também sorria, esticou a mão e pegou um pedaço.
O clima voltou a ser agradável e camarada.
- Acho que é isso, então - Chase levantou sua caneca com a mão que estava vazia. - Veteranos.
- Semper fidelis.
também ergueu o dele e os dois esperaram o amigo.
- Porque o último dia fácil foi ontem.
Gargalhando, eles bateram vidro contra vidro em um brinde do qual não entendi nada, mas não importava. Porque, fácil assim, tudo estava bem outra vez entre Esparta, Troia e Atenas.

...

Os dias depois do Dia dos Veteranos passou rápido e logo me vi congelando na calçada do lado de fora de nosso prédio enquanto , que não parecia nem um pouco afetado pelo gelo que pinicava minha pele e me fazia balançar para frente e para trás sobre sobre meus pés, colocava nossas malas no bagageiro do taxi. Felizmente, antes que eu terminasse de congelar, meu namorado parou ao meu lado e fez sinal para que eu entrasse no carro. Acomodei-me ao lado da gaiola em que detestava colocar meu bebê e partimos para o aeroporto. insistiu em pagar a corrida, assim como também fez questão de empurrar no aeroporto o carrinho com todos as nossas malas e, sobre elas, Cookie dormindo dentro da caixa detestável. Só não reclamava daquela porcaria onde era obrigada a colocar meu cachorro toda viagem porque não queria ser banida de outra companhia aérea - ou ganhar um novo sermão de Spencer sobre esse assunto.
- Vamos, - apressou-me quando parei de andar. - Nosso portão de embargue é para o outro lado e temos que despachar as bagagens.
- Sim, eu sei, amor. Mas combinei de esperar aqui.
- Esperar? - franziu o cenho. - Esperar o que?
Oh! Droga!
Sabia que tinha me esquecido de alguma coisa.
- Esperar po-
- , Leo!
Minha melhor amiga parou ao meu lado, um sorriso enorme no rosto, um gorro vermelho sobre o cabelo e botas da mesma cor sobre a calça jeans. Um suéter preto fofo completava seu vestuário. Avalon estaria completamente adorável, não fosse o brilho malvado no canto de seus olhos azuis.
- ? - apenas duas palavras, porém era fácil ler a pergunta nas entrelinhas.
- Ava sempre passa o feriado conosco - repuxei os lábios em um sorrisinho sem graça.
Não tinha problema com Appleby viajando conosco e também não deixaria que ele tivesse algum problema com isso. A questão é que sabia que não gostava muito de surpresas e aquela era uma das grandes.
Chocante, contudo, foi vê-la dar um passo para frente, trocando a alça da bolsa de ombro para passar o braço esquerdo pelo de .
- Vai ser ótimo! Muito divertido, Leo.
Os olhos gelo de meu namorado deixaram os meus e, franzindo o cenho, ele abaixou a cabeça para encarar a morena.
- Meu nome é .
- Eu sei, Leo. Eu sei - riu, puxando a manga da blusa dele até que não lhe restasse outra alternativa senão acompanhar seus passos ou arriscar que o tecido cedesse.
Nos primeiros passos incertos que deu, ainda olhava por sobre o ombro e para mim, horrorizado. Logo depois, contudo, Avalon cochichou alguma coisa nova, fazendo com que de novo ele se virasse para respondê-la. Mesmo ao longo pude ver sua careta se acentuando.
Suspirei profundamente.
Aquele seria um longo feriado.


Caítulo 21

Quatro horas e meia. Quatro horas e meia dentro de um tubo a dez mil metros do chão e tendo que bancar o árbitro e manter a paz. Ou quem sabe fosse apenas uma babá. A nomenclatura, entretanto, claramente não era o mais importante quando se desenvolvia uma leve dor de cabeça. Pensei que o mais difícil seria não assustar muito nesse feriado em Montana, porém obviamente havia me esquecido de considerar as variáveis que interferiam no caminho até lá.
- Você não disse que ele te intimidava? - sibilei para minha amiga, virando a cabeça para ela, uma vez que sabia que sussurrar não seria efetivo para que e sua audição supersônica não ouvisse.
- Por que está sussurrando? - falou em seu tom normal.
Dei-lhe um bom beliscão na perna antes de sibilar outra vez:
- Porque ele pode nos ouvir.
- Ai! - esfregou o ponto que eu beliscara, franzindo o cenho em uma careta para mim antes de se inclinar um pouco para frente a fim de olhar para além de mim. - Ele ‘tá dormindo.
- Mas ele pode nos ouvir!
- , sério. Relaxa. O cara é seu namorado, não o psicopata nos perseguindo em uma casa mal assombrada. O jeito que você fica falando “ele pode nos ouvir” está começando a me dar arrepios.
Dessa vez ela ganhou um tapa com as costas de minha mão em seu braço.
- Será que dá para parar com isso?
Suas palavras saíram em forma de um gritinho e me fizeram virar rapidamente para ter certeza que ainda estava adormecido. Felizmente ele continuava com as pálpebras cerradas e com a expressão lisa que sempre adquiria ao dormir.
- Será que dá para falar baixo? Por favor - trinquei os dentes. - Preferia quando ele te intimidava.
- Está brincando? Ele ainda me dá alguns arrepios. A diferença é que agora já vi como ele vira gelatina em suas mãos, então estou contando com você para me proteger.
- Você sabe que não vou estar sempre ao seu lado, né?
Engoliu em seco e deu uma espiada outra vez em .
- Entendi. Talvez seja mais… prudente não provocá-lo. Mas não fiz nada exagerado.
Senti minha expressão se contorcer em uma careta entre indignada e incrédula.
- Você perguntou se ele já havia visitado a Área 51 e se já tinha dissecado algum alien! - meu tom foi se afinando até quase se transformar de um sussurro em um gritinho agudo.
- O quê? - franziu o cenho, olhando-me como se eu fosse a maluca. - Ele é do exército! Nunca tinha conhecido-conhecido alguém do exército. E você sabe que eu sempre quis saber o que aconteceu com os aliens. Era minha chance.
- Quantas vezes vou ter que te dizer que não existem alienígenas?
- É muito presunçoso da sua parte acreditar que estamos nesse universo enorme sozinhos - cruzou os braços, desdém brilhando em seus olhos azul oceano.
- Vou acreditar quando ver alguma prova. Até lá, certamente não vou sair por aí perguntando para os outros se eles acham que a Área 51 está no Triângulo das Bermudas e que por isso o governo some com navios nesse lugar.
- Hey! Essa é uma teoria muito boa. É você que é mente pequena demais para conseguir enxergar todas as conexões por de trás dos fatos.
- Essa sua paranoia com alienígenas é realmente esquisita.
- Esquisito é achar que Atlantis realmente existiu e que foi parar no fundo do do oceano Índico graças a uma erupção vulcânica.
Hey! Isso era um pouquinho insultante.
- Espera um pouco - sacudi a mão. - Eu acreditei nisto até os quinze anos porque há uma grande possibilidade de que Atlantis realmente tenha existido. Todo mundo sabe disso. ETs nunca foram encontrados.
- Fala sério, - revirou os olhos. - Você é a única pessoa que acreditou no Continente Perdido, pelo menos eu realmente conheço outras pessoas que sabem que aliens são reais.
- Um bando de malucos em trailers. Grande coisa - resmunguei baixinho.
- O que disse?
- Nada, nada - concedi, decidindo que era melhor terminar aquele tópico, uma vez que estávamos nos afastando perigosamente do assunto principal.
E também porque Avalon Appleby era uma lerda que não conseguia ver as verdadeiras conspirações no Universo.
- Já que concordamos em discordar nesse ponto, vamos voltar a promessa que você estava me fazendo sobre nada mais de perguntas idiotas que envolvam o exército.
- Não estava fazendo uma promessa e definitivamente minhas perguntas não são e nem nunca foram estúpidas.
Analisei-a atentamente por um segundo. Sua insistência sobre essa questão da Área 51 era um pouco forte demais para ser apenas um hobbie ou vontade de provar que o resto do mundo estava errado. Ela parecia estar projetando alguma coisa. Eu só não fazia ideia do que exatamente. Antes que pudesse investigar um pouco mais aquela descoberta, ou mesmo protestar por ela não cooperando em nada, Ava voltou a se pronunciar:
- Contudo, em nome dos bons tempos da Ação de Graças, e porque não quero entrar para lista negra dele, principalmente quando vamos passar um tempo considerável sob o mesmo teto, - essa última razão ela murmurou bem mais baixinho do que a outra, - vou tentar manter minhas certezas sobre os militares longe dele.
- Você fala como se detestasse o Exército - revirei os olhos. - Você adora um homem de uniforme.
- Isso é verdade - assentiu. - E também sou bastante grata pelos serviços deles. Mas posso fazer as duas coisas ao mesmo tempo, sabe? Apreciar como eles vestem bem aquela cor verde que só fica bem neles, e saber que alguns deles são parte da cúpula que é especializada em esconder os aliens.
Ai, Deus.
- Ok, ok. Tanto faz - concedi, preferindo abandonar o assunto enquanto estava ganhando. - Então estamos combinadas, certo?
Finalmente - finalmente - Ava assentiu. O alívio correu por minhas veias e por fim consegui relaxar minhas costas na poltrona. Havia ganhado a primeira batalha, o que era uma enorme conquista. Precisava de toda vantagem, ou melhor dizendo, precisava riscar todas as desvantagens que poderiam surgir e me atrapalhar enquanto lidava com o problema maior. Estava realmente preocupada com a maneira como reagiria a Sunville. Até havia sonhado com isso. Se bem que no sonho era um tubarão no oceano sendo atacado por adoráveis bolas de pintball cheias de glitter colorido. Sei que não havia absolutamente nenhum sentido, mas conseguia ver certa semelhança entre o sonho, meu namorado e o jeito como minha família agia. Queria que ele se sentisse bem-vindo e confortável, não que saísse correndo assustado. Meio exausta pela sucessão de cenários catastróficos que sempre culminavam com o fim do meu namoro, decidi fechar os olhos e descansar enquanto podia.

xxx

Sunville era uma típica cidade média de Montana. Muitas, muitas, muitas árvores por todo lado que se olhasse e, onde não havia árvores, tínhamos montanhas. Ou árvores sobre montanhas. Meus pais elegeram um dos estados com uma das mais baixas demografias do país para morar. Obviamente uma mudança e tanto de nossa rotina nova iorquina, o que era uma das minhas partes favoritas. Não muito tempo depois, estávamos chegando ao destino que o GPS do carro alugado indicara. dirigiu pelo caminho de cimento sobre o jardim até a porta da garagem e nós descemos.
O frio me fez estremecer de maneira pouco graciosa assim que meus pés encontraram a única parte não coberta de neve no jardim imenso. Cookie, muito acordado depois de seu descanso por sono induzido, pulou do banco traseiro assim que Ava saiu e correu para porta da frente da casa de dois andares, latindo animadamente. Estávamos descarregando as malas quando a porta principal se abriu e meus pais apareceram, provavelmente por terem ouvido meu bebê.
- !
- ESTRELINHA!
Soltei a alça da mala que carregava e corri para as duas pessoas mais importantes da minha vida. Meu pai me alcançou primeiro, abraçando-me forte antes de se afastar para apertar minhas bochechas e depois bater a mão espalmada sobre minha cabeça afetivamente, como sempre fazia.
- Senti saudades, Estrelinha.
- Também fiquei com saud-Oh, mãe! - minha voz saiu completamente abafada contra seu peito enquanto tentava me soltar de seu abraço de urso.
Para uma mulher mais baixa do que eu, ela certamente tinha bastante força escondida. Alguns segundos depois, quando mamãe finalmente tirou a mão de meu cabelo, consegui me endireitar.
- Você está tão linda, querida - seu olhar continha carinho e saudades. - Está com um ar mais… não sei… mais interessante, mais leve - franziu o cenho antes de arregalar os olhos violeta idênticos aos meus. - Ah! Já sei, é claro! Esqueci que agora você tem um namorado de verdade. Um que sabe te dar or-
Antes que minha mãe terminasse sua frase e consequentemente me matasse de vergonha, Ava nos interrompeu:
- PAPA !
- Minha maçãzinha favorita!
Observei meu pai abraçá-la do mesmo jeito paternal que tinha feito comigo e logo depois minha amiga estava convenientemente se colocando entre minha mãe e eu, dando-me uma excelente oportunidade para procurar meu namorado. estava parado no mesmo lugar, a única diferença é que agora ele carregava as bolsas de nós três como se não fosse nada.
- Quer ajuda, amor? - sussurrei.
- Não.
Seu tom estava mais rouco do que o normal e ele manteve o olhar a frente como se estivesse falando com a árvore coberta de neve a vários metros de distância. Teria considerado seu comportamento muito rude não fosse a tensão que podia ver travando seus ombros.
- ?
Dessa vez ele se virou para me oferecer o mais forçado dos sorrisos. A fim de acalmá-lo, pousei a mão sobre seu braço. Não perguntei se ele estava pronto ou algo do tipo, pois sabia que esse tipo de coisa provavelmente ofenderia seu orgulho enorme. Assim, apenas repuxei meus lábios em um sorriso fechado e nós dois começamos a andar até onde meu pai nos esperava pacientemente.
- Pai, quero que conheça meu namorado - sussurrei, só naquele momento percebendo que não era o único apreensivo.
E pensar que nos preocupávamos por motivos tão parecidos e ao mesmo tempo tão diferentes. Iguais porque queria que minha família gostasse dele, e diferentes porque tinha certeza de que não estava preocupado com a mania que meu pai tinha de colocar apelidos com diminutivo nas pessoas. Realmente não tinha nem ideia de como ele reagiria se John o chamasse de “soldadinho” ou qualquer coisa parecida. Talvez devesse ter tido uma conversa sobre limites com meus pais antes de contar que era do exército.
- , senhor - passou minha bolsa roxa para a mão esquerda, que já segurava sua própria bagagem e a de Ava, a fim de cumprimentar meu pai.
Sabia quantos sapatos minha amiga conseguia enfiar dentro daquela bolsa e eles pesavam horrores, mas meu namorado nem piscou ao ter que carregar de tudo. Não fosse o perigo de congelar minha língua graças ao frio que castigava todo meu corpo, teria molhado meus lábios subitamente ressecados. Era levemente preocupante como conseguia me deixar excitada em um ambiente de menos de cinco graus e na frente do meu pai. Pensando bem, contudo, não era minha culpa se ele tinha aqueles bícep-
- John , filho. Bem-vindo a Sunville e a nossa casa.
Senti tudo dentro de mim se congelar com tanto poder quanto a superfície do lago ao noroeste da cidade. Não conseguia me mexer, não conseguia fazer porra nenhuma que não fosse deixar que o mais genuíno terror trovejasse por minhas veias como se fosse veneno que corroía tudo pelo caminho. Meu pai tinha a melhor das intenções, mas, de todas as coisas que poderia ter dito, chamar de filho era a pior delas. Sabia pelo pouco que meu namorado comentava sobre o assunto e pelo tanto que o seu silêncio sobre isso pesava, que o tópico família era uma coisa muito, muito delicada para .
Droga! Ele nem mesmo havia hesitado ao aceitar meu convite para Ação de Graças, o mais familiar dos feriados, o que, por si só, falava bem alto sobre como era a relação entre Senior e .
Parecia que o planeta havia dado uma volta completa ao redor do sol - e que durante todo esse tempo eu permaneci absolutamente imóvel - antes que meus sentidos voltassem a funcionar, atingindo-me com a força de uma bigorna, quando respondeu:
- Sou eu quem agradece pelo convite, senhor .
Sua voz estava um pouco estrangulada, porém nada que disparasse alarmes, e, acima disso, nada que indicasse que ele pretendia sair correndo, o que era meu medo mais imediato ou mesmo terminar comigo, o que era meu medo maior. Consegui exatamente um segundo de alívio antes que minha mãe estivesse empurrando meu pai para o lado e puxando para um daqueles abraços de urso. Arregalei os olhos, de novo sem saber o que fazer enquanto observada como ele tinha que se abaixar uns bons cinquenta centímetros para ser apertado contra o suéter amarelo e fofinho de minha mãe. O lado bom era que não restava dúvida de que não haveria uma resistência pré-determinada ao meu namoro, o lado ruim era que aquele era o único lado bom. Felizmente meu pai tinha mais experiência e se mexeu para intervir:
- Pronto, pronto, meu bem - segurou nos braços dela, delicadamente puxando para trás. - Deixe o garoto respirar.
Minha mãe se deixou conduzir, dando alguns passos para trás e se posicionando ao lado do marido. Assim como o tinha visto fazer dezenas de vezes enquanto crescia, no momento em que a teve ao seu alcance, papai levantou a mão para pousar no ombro dela e começou a acariciar de leve, quase que inconscientemente, uma mexa dos cabelos castanhos da esposa. Esse pequeno gesto de carinho sempre tinha me fascinado, e tomei um segundo saudosista para apenas apreciar aquela constante em minha vida antes de voltar a realidade. Quando voltei a mim, o silêncio já pesava entre nós cinco e todos eles me olhavam, obviamente esperando por uma apresentação.
- Oh, sim. Claro, claro - sacudi a cabeça. - Mème, esse é , meu namorado. Amor, quero que conheça minha mãe, Vafara . - É um prazer conhecê-la, senhora.
Atento às convenções sociais quando queria, voltou a estender a mão. Mème, porém, tinha outras ideias.
- Deixe disso, querido. Somos praticamente família! Dê-me outro abraço.
Tanto pelo frio que já me consumia, quanto pelo receio de que houvesse um repeteco da versão de mata-leão, dei um passo para ficar entre os dois.
- Que tal se formos para dentro? Meus ossos estão congelando aqui - o estremecer que seguiu essas palavras foi uma boa maneira de enfatizá-las, e nem mesmo precisei fingir.
- Sim, sim. Claro. Vamos para dentro para que vocês se aqueçam - meu pai gesticulou em direção a casa.
Antes que tivesse a chance de me mexer, minha mãe se adiantou, passando o braço pelo de e o puxando pela grama esbranquiçada pela neve. Ava e eu trocamos um olhar surpreso antes que meu cérebro voltasse a funcionar e me fizesse correr para alcançar os dois. Felizmente minhas fiéis botas não me deixaram na mão e consegui chegar até o alpendre de madeira sem nenhum arranhão. Não precisei nem pensar antes de seguir para a cozinha na parte de trás da casa e, por certo, encontrei-os sentados ao redor da enorme ilha quadrada que ficava no meio da espaçosa cozinha que meu pai projetara para si mesmo. Senti o chão tremer a cada passo que dava entre a porta e o lugar onde eles estavam, temendo a cada novo centímetro que minha mãe o estivesse bombardeando com perguntas como as de Ava. Quando minha amiga queria saber sobre aliens ou sobre as armas químicas que nunca foram achadas no Iraque, era apenas irritante. Quando essas perguntas inconvenientes vinham de minha mãe, entretanto, percebia agora, não havia espaço para irritação, apenas de novo aquele pânico cego de que ele não gostasse de minha família.
Que detestasse o jeito meio intrometido, mas muito bem intencionado de minha mãe. Que se irritasse com a maneira sempre expansiva de papai.
Venci o resto de distância que nos separava e outra vez pegava uma descida naquela montanha russa, alívio de novo me deixando mole. tinha um copo de chocolate quente entre as mãos e olhava para minha mãe com o que seria aquela expressão impassível de sempre, não fosse o brilho de paciência infinita que irradiava de seus olhos gelo. Além disso, pelo que consegui ouvir, não havia nada de intrigas militares, apenas o seguro tema da educação.
- Harvard Business School, senhora – respondeu educadamente. – Sei que isso soa um pouco entediante, mas sempre gostei dessa parte burocrática.
O que ele gostava era de mandar.
- Interessante – mème se inclinou para frente, apoiando o cotovelo sobre a bancada e o queixo sobre a mão. – E por quê? Beba chocolate, querido. Beba chocolate – deu algumas batidinhas em seu bíceps de pedra.
Obedientemente, e com certeza mais dócil do que jamais o tinha visto, levou o copo a boca antes de responder:
- Não sei, senhora – encolheu os ombros. – Acho que gosto de coordenar as coisas e vê-las ganhar forma até se tornarem bem sucedidas. Como já disse, nada muito empolgante.
Pisquei devagar, tentando não demonstrar quão surpresa estava. versão domesticada era algo que nunca tinha presenciado. Nada das respostas curtas e – na maioria das vezes – grossas que eram sua rotina.
- Ah sim. Já vejo. Beba um pouco mais de chocolate, querido. Aqui é bem frio nessa época do ano. Mesmo com o aquecedor. Um bom sistema de aquecimento, não é mesmo? Foi nosso antigo sócio de Nova York quem projetou. Aquece toda a casa, mas nada como um bom chocolate quente, não é mesmo? Ava e também adoram.
Falou como se eu não estivesse bem ali do lado. Bom, talvez, para ela, não estivesse mesmo, uma vez que o raro charme parecia estar cegando-a para nada que não fosse os olhos acinzentados de meu namorado.
- Mas nada substitui a boa e velha lareira da sala de visitas. Você precisa ver o contraste quando a luz das estrelas passa pela janela de vidro enorme que eu mesma desenhei – disparava uma frase depois da outra, como uma criança que não parava para respirar. - Uma beleza. Realmente incríveis. A neve caindo também faz um quadro e tanto. E foi por isso que você se alistou, porque queria um pouco de aventura?
Dessa vez não fui pega desprevenida, o mesmo, contudo, não podia ser dito de , que chegou a se afogar de leve com o novo gole que tomava quando minha mãe alcançou o ápice de sua tática que eu gostava de chamar de “Distração para Informação”. Vafara tinha aprimorado essa técnica ao longo de minha adolescência. Ela lançava inúmeras frases e, quando a outra pessoa estava distraída - ou por prestar atenção de mais ou de menos em seu discurso -, ela perguntava o que realmente queria saber.
Infelizmente para mème, havia sido treinado pelos melhores dos melhores para sair de situações muito mais complicadas e inesperadas do que aquelas.
- Não foi exatamente por isso, senhora – ainda havia traços de gentileza, mesmo quando adotava aquele tom definitivo, que lhe era mais normal.
Por sorte, antes que minha mãe pudesse voltar a se intrometer, um latido animado soou no cômodo e logo depois Cookie corria para dentro da cozinha pela outra porta. Ele parou ao lado de meu namorado, mas manteve a atenção no caminho que acabara de fazer, latindo mais algumas vezes. Não muito depois mais alguns passos fofinhos podiam ser ouvidos pelo piso de madeira lustrada e todas minhas paranoias sobre meu namorado desenvolver -fobia foram abandonas enquanto corria para encontrar Sir Edward. Ajoelhei-me no chão e abri os braços para que o basset hound viesse até mim. Contido como um Lord inglês, honrando o nome que tinha, o cachorro de meus pais se aproximou e lambeu algumas vezes meu rosto e aceitou um carinho atrás da orelha antes de dar a volta por mim para saber por que seu melhor amigo fazia tanto barulho. Ainda agachada, olhei por cima do ombro bem a tempo de ver meu bebê latir mais algumas vezes para o recém-chegado antes de olhar para com admiração e de novo para Sir Edward. Franzi o cenho. Se isso não fosse loucura, poderia jurar que Cookie estava apresentando, muito orgulhoso, . Acho que meu namorado chegou a mesma conclusão, pois me lançou um olhar com tanta incredulidade quanto eu sentia.
Dei de ombros e me endireitei, caminhando para me acomodar ao lado do banco alto onde ele estava sentado - tive que contornar os dois cachorros, uma vez que nenhum dos dois se dignou a se mexer para me dar espaço - e pousei a mão em seu ombro, inclinando-me contra seu corpo quando seu braço circulou firme minha cintura.
- Esse é Sir Edward, amor – apresentei, olhando para baixo. – Mème e papai adotaram esse gordinho no Little Friends.
- O abrigo onde você se voluntaria? Em Nova York? – franziu o cenho. – Não é um pouco longe?
- Esse mesmo – assenti. – Eles foram me visitar há uns dois anos e o conheceram.
- Foi amor à primeira vista – minha mãe completou e, que como para enfatizar, abaixou-se e pegou seu o grandalhão no colo da melhor maneira possível.
Como esperado, aquela ideia não deu muito certo, uma vez que Sir Edward pesava mais de vinte quilos, e logo mère, bem mais corada do que antes, colocou-o de volta no chão. Aproveitando-se de sua readquirida liberdade, Sir Edward levantou o queixo de maneira altiva e saiu a passos lentos, provavelmente em busca de papai e sua serenidade. Cookie olhou para e depois para porta onde seu melhor amigo havia desaparecido, confuso sobre com quem ficaria. Meu ciúmes diminuiu pouquíssimo quando o bebê decidiu - depois de séria relutância - soltar um latido tristonho para , como se pedindo desculpas, e sair correndo animado da cozinha. Nesse meio-tempo, mème se endireitou, meio sem fôlego graças ao esforço:
- Bom. Bom… acho que deu para entender. E de que estávamos falando? Ah, sim! Se você está satisfazendo as necessidades da minha filha - sorriu e começou a juntar os copos para levar a pia.
Acho que levei trinta segundos inteiros para processar que ela realmente havia dito aquilo.
- MAMÃE!
- O quê? - levantou a cabeça e me olhou como se não tivesse feito nada de errado. - Oh! Oh! A não, querida. Imagina. Só queria saber se ele estava satisfazendo suas necessidades emocionais. Você precisa encontrar um homem que satisfaça suas necessidades emocionais, . É sério. Claro que as necessidades físicas também são muito importantes.
O braço de chegou a afrouxar o aperto em mim, provavelmente uma reação involuntária causada por surpresa extrema. Antes que eu tivesse a chace de implorar, pelo amor de Deus, que ela parasse de falar, meu namorado se recuperou:
- Ah, senhora , não se preocupe. Tenho certeza que tenho mantido muito feliz. Em todos os sentidos.
Faiscou um sorriso galante e mamãe riu como uma garotinha divertida, chegando até mesmo a levar a mão a boca e balançar a cabeça, absolutamente divertida.
Minhas bochechas queimavam tanto que se caísse de cara na neve do lado de fora da casa, facilmente derreteria o gelo.
Ok. Era isso. Para mim já chega. Vou pegar o primeiro avião de volta para casa enquanto ainda havia alguma esperança de remendar minha dignidade despedaçada. Cheguei até mesmo a dar um passo para o lado com a intenção que executar meu plano de fuga, porém fui impedida pelo braço dele, que havia voltado a ser uma barra de ferro.
- Aonde você vai, ? - encostou a boca em meu ouvido e sussurrou discretamente. - Agora que as coisas estão ficando interessantes?
A chegada de papai e Ava interrompeu a cotovelada que estava prestes a lhe dar em reprimenda a sua resposta espertinha. Talvez ele estivesse convivendo demais com Hunter.
John se posicionou ao lado da esposa depois de não muito discretamente lançar um olhar penetrante por sobre seus óculos para a maneira como me abraçava. Pela rapidez com que abaixara o braço e pela maneira como meu namorado basicamente se colou contra a ilha para se afastar de mim, tinha certeza de que ele também percebera. Quase não pude conter a gargalhada por ver meu soldado se encolher como um adolescente. Acho que todos os homens, SEALs ou não, reagiam iguais na presença do pai da namorada. Também confesso que foi bem satisfatório vê-lo perder aquele sorrisinho malicioso que mantinha ao se divertir às minhas custas.
- Tudo bem por aqui, estrelinha?
As palavras eram dirigidas a mim, mas seu olhar permaneceu em mamãe. Mais de trinta anos de casamento certamente haviam lhe dado experiência suficiente para saber como a curiosidade de mère podia ser explosiva.
- Tudo bem…? - concedi, mas minha resposta soou como uma pergunta.
Obviamente ele percebeu, lançando um olhar inquisidor para a esposa, ao que Vafara respondeu com um revirar de olhos, uma risadinha e um dar de ombros. Franzi o cenho ao observá-los. O jeito deles me lembrava de algo, antes que pudesse me aprofundar nessa ideia, contudo, Avalon estava deixando sua criança interior aflorar:
- Ah! Chocolate quente, papa? - inclinou-se sobre a ilha e despejou bastante da caneca térmica em seu copo.
- Sim, maçãzinha. Comprei marshmallows para você. Estão no lugar de sempre - gesticulou com a cabeça para o armário ao lado.
Ava praticamente saltitou em busca da guloseima, mais relaxada do que jamais ficara no resto do ano. Era nesses momentos em que percebia que podia me arrepender de muitas coisas na vida, mas incluir minha melhor amiga em todas as festas da família realmente não era uma delas. Appleby se tornava uma versão de si mesma muito mais calma e menos em guarda quando visitava Sunville.
- Mas você chegaram em um bom momento. estava prestes a nos contar como sa-
- Tia Mae já está chegando?
Horrorizada, praticamente gritei a pergunta, mesmo que minhas palavras tenham saído mais como “mazvágendo” do que como o que realmente queria dizer. Papai arqueou a sobrancelha, confuso, mas respondeu:
- Falei com ela ontem. Disse que iria pegar o avião amanhã de madrugada para chegar aqui cedinho.
Assenti mecanicamente, e só consegui relaxar quando mème finalmente pareceu criar um pouco de compaixão - ou apenas se lembrou do tópico agora - e decidiu mirar todo seu poder de inquisição espanhola em cima de minha melhor amiga:
- Ava, querida, você viu o tapete novo da sala? Nós compramos há mais ou menos um mês. Sir Edward adora se deitar lá. Combina com aqueles vasos que você nos deu no último Natal. Um constate tão bonito. Realmente adorável quando se olha a imagem inteira com as cortinas também. Além disso, você está saindo com alguém?
Ava, que estava de frente para mim, levantou os olhos azuis cor de mar dos marshmallows que encarava perdida há vários minutos e suplicou para que eu a tirasse dessa. Falsamente sacudi a cabeça como se estivesse pedindo desculpas por não fazer nada. Não é como se não quisesse ajudá-la ou que não sentisse pena, mas sabe como dizem, antes ela do que eu.
- Não me diga que você tem uma companheira, mas ficou com vergonha de trazê-la aqui. Porque você sabe que estamos sempre de portas abertas para aqueles que são queridos de nossas filhas - esticou o braço e cobriu a mão de Appleby com a sua. - Meninos ou meninas.
Abaixei a cabeça contra o ombro de para esconder meu sorriso divertido. Assim passamos os próximos minutos, com Ava de bochechas absolutamente vermelhas titubeando uma resposta ou outra, e sorrindo divertido - provavelmente se sentindo vingado pelas perguntas do avião -, eu agradecendo mentalmente a cada minuto em que não era o alvo. Quando papai achou que mamãe já se divertira bastante, decidiu interromper a conversa dizendo que talvez nós quiséssemos dormir ou nos refrescar um pouco da viagem. Ava basicamente pulou do banco e correu para liberdade no mesmo segundo e eu, assentindo veementemente, agarrei a mão de , que deixou que o arrastasse para fora da cozinha. Infelizmente nossa fuga não foi rápida o suficiente para que não fossemos vítimas da última cartada de mème :
- , querida, pode dormir com você no quarto, afinal, não é como se vocês já não estejam, como posso dizer, vivendo em pecado. Não é mesmo? Entendeu, vivendo em pecado?
As gargalhadas de mamãe se divertindo com a própria piada nos acompanhou até chegarmos ao andar de cima e ao meu antigo quarto.

xxx

Aquele cômodo não era muito diferente do que eu imaginara. Era enorme e tinha uma lareira e três sofás em um dos cantos. Uma das paredes era de um tom roxo berrante enquanto as outras eram em um tom creme comum. A cama era de casal e as almofadas e travesseiros vermelhos contrastavam com o edredom branco. O resto da suíte seria como qualquer outra lugar, não fosse as fotos. Muitas e muitas fotos de todos os tamanhos e por todo quarto. Em cima da escrivaninha, no criado-mudo ao lado da cama, penduradas e coladas na parede. Aproximei-me dessas últimas. Ali encontrei minha namorada em várias idades e com várias pessoas diferentes. Em cada uma delas ela sorria, tanto com os lábios quanto com os olhos, daquele jeito que sempre amolecia os joelhos. Ouvi seus passos contra o tapete roxo que cobria boa parte do quarto e logo seus braços passaram por minha cintura.
- Amor?
A palavra saiu abafada contra minha camiseta, mas eu gostava tanto de ouvir aquelas quatro letras juntas que poderia identificá-las mesmo embaixo d’água.
- Hmm?
Não tirei a atenção das fotos, pois estava entretido demais vendo minha loira ao longo dos anos, mesmo quando ela não estava loira e sim com os cabelos castanhos, mas inconscientemente me vi acariciando seus dedos entrelaçados sobre minha barriga.
- O quê?
Franzi o cenho, virando um pouco a cabeça quando ela murmurou algo que nem mesmo meu ouvido treinado conseguiu identificar. soltou um suspiro profundo e se fastou o suficiente para que pudesse dar a volta e encará-la. De maneira muito pouco usual, mantinha seus bonitos olhos violeta no chão e, ao falar, a voz era tão pequenininha que me senti um inútil por só perceber agora que alguma coisa estava errada. Só quando minha namorada basicamente desenhou isso para mim.
- , o que… - fez uma pausa e respirou fundo - o que você achou dos meus pais?
Pisquei devagar.
- O quê?
- Só que… - começou a torcer torcer as mãos na frente do corpo em um claro sinal de nervosismo - … é que minha mème pode ser bem, eu não sei, bem… pouco usual? - terminou a frase como tanta incerteza que mais parecia uma pergunta. - E, não sei, é só que… não queria assustá-lo e, não sei, você decidir ir embora - passou a língua sobre os lábios. - Porque eles não são, você sabe, normais.
Tudo que consegui fazer foi observá-la em silêncio por dez segundos inteiros, então veio a incontrolável vontade de rir. Joguei a cabeça para trás e deixei que uma boa gargalhada escapasse.
- Ah, essa foi boa! - consegui falar, meio sem fôlego, depois de me controlar o suficiente.
O riso morreu imediatamente, contudo, quando abri os olhos e encarei minha namorada com o queixo erguido e me olhando com uma mistura de tristeza e decepção que fez meu estômago se retorcer de um jeito pior do que da vez em que levei uma facada - com a porra de uma faca cega - durante uma missão em Dubai. O fato de que seu lábio inferior tremia perceptivelmente também me fazia sentir um moleque que gostaria de se encolher de vergonha em algum lugar. Engolindo em seco e torcendo para não ser repelido de imediato, ergui a mão e a levei até a poltrona perto da lareira acesa. Sentei-me e a puxei para ficar em meu colo, só então voltando a falar:
- Ok, , talvez eu não tenha reagido da melhor maneira possível, mas não pensei que você estava falando sério - com a mão que não acariciava sua cintura, passei a mão pelo rosto para esconder o sorriso que insistia em aparecer.
Ela cruzou os braços e olhou para o lado, juntando os lábios em um biquinho de pirraça que tinha vontade de morder.
- Isso não é muito justo, sabia?
- Não é justo comigo, você quer dizer! - virou-se para mim, franzindo ainda mais o cenho.
Dessa vez tive que me esforçar um pouco mais para manter meu rosto sem expressão, pois a vontade de sorrir era grande quando minha namorada estava sendo absolutamente adorável. Sabendo, contudo, que demonstrar divertimento não seria aceitável, pousei a mão sobre sua coxa e esperei pacientemente até que seu bonitos olhos violeta encontrassem os meus.
- , eu não me importo que sua família queira falar a economia mundial, sobre a história de Bora-Bora ou sobre nossa vida sexual. Não me importa.Também pouco me interessa se sua melhor amiga tem uma imaginação fértil demais e paranoica demais sobre o que existe e o que não existe além no espaço sideral. E, sim, talvez sua mãe ou sua amiga não sejam… convencionais, - cuidadosamente evitei a palavra “normal”, - mas descobri que esse adjetivo é supervalorizado. Além disso, se quisesse alguma coisa desse tipo, não namoraria você, .
- Hey! - bateu no meu ombro de leve, mas dessa vez já havia um pequeno sorriso no canto de seus lábios. - Está dizendo que eu sou maluca?
- Só na medida certa, - finalmente pude deixar o sorriso que estava mordendo escapar.
Ela deu uma risadinha e se encostou em meu peito, provavelmente observando as chamas da lareira enquanto eu me ocupava em observar como as luzes e sombras dançavam em seu macio cabelo.
- ? - murmurou depois de um tempo, quando pensei que ela já dormia.
- Sim? - respondi, distraído ao correr meus dedos pelos fios dourados.
- Você foi muito educado hoje.
- O que quer dizer com isso? Eu sou sempre educado! - belisquei de leve sua coxa.
- Exatamente - soltou uma risadinha cansada
- Para sua informação, eu sou muito educado.
- Ah, é? E onde você guarda essa dita educação?
- Guardo para ocasiões especiais.
- Porque é pouca, né? Ai não pode ficar gastando senão acaba.
- Alguma coisa do tipo - concedi, relaxando minhas costas de novo contra o encosto largo. - Alguma coisa do tipo - deixei as palavras diminuírem.
- ?
Meus olhos se abriram imediatamente, o sono desaparecendo enquanto toda minha atenção era redirecionada para a mulher em meu colo.
- Sim, ?
- Eu gosto de quando você é educado, mas prefiro sua versão de sempre - murmurou baixinho, a voz pastosa de cansaço, e se acomodou ainda mais contra meu peito.
Uma risada rouca passou por minha garganta.
- E eu aprecio sua versão mais comportada, , mas definitivamente prefiro o jeito como você é todos os outros dias.
A loira baixinha e decidida que sorri o tempo inteiro e que me empurra para fora da minha zona de conforto a cada dia.
Olhei para baixo e a encontrei com os olhos fechados e a respiração profunda, dessa vez claramente adormecida.
- Gosto de você do jeito que você é, . Exatamente do jeito que você é.
Não lembro de ter fechado os olhos, mas também dormi - em uma das posições mais desconfortáveis que enfrentei desde meu retorno a América e no melhor dos sonos que já tive na vida.
Na manhã seguinte meu corpo me acordou no mesmo horário de sempre e antes que o sol aparecesse. Ignorei a dormência em meus braços e levei cuidadosamente minha loira para cama. Tirei seu moletom, que até parecia confortável, mas que não era o mais indicado para dormir, e já bastava a noite que teve que passar com ele. E, porque aparentemente eu sou a droga de um homem das cavernas, ao invés de pegar uma camisola em sua bagagem, busquei minha camiseta da marinha e, com muito cuidado, vesti a peça sobre sua roupa íntima. Depois procurei na mala um moletom e tênis apropriado e fui tomar um banho matinal. Evitando olhar minha namorada deitada na cama, pois a tentação de voltar a me juntar a ela era sempre grande demais, coloquei a mão na maçaneta e fiquei completamente em silêncio para ouvir sua respiração pesada e ter a certeza de que ela dormia antes de sair para o corredor.
Não havia dado nem dois passos antes que Cookie surgisse ao meu lado.
- Hey, amigão - ajoelhei-me para coçar atrás de suas orelhas. - Onde você estava?
Ele olhou para mim e depois para a escada ao final do corredor.
- Estava lá em baixo, né? - ele abriu mais a boca, parecendo sorrir. - Aposto que estava procurando alguma comida. isso e as guloseimas que sua mãe sempre te dão lhe deixariam muito gordo não fosse nosso exercício. Né, amigão? - foi a minha vez de sorrir ao ver o jeito animado com que ele sacudia a cabeça, como se estivesse concordando comigo. - Certo, certo. Vamos correr?
Ele soltou um latido animado ao me ouvir repetir as palavras com as quais se acostumara e já tinha descido correndo as escadas antes que pudesse me endireitar. Perto da porta estava Sir Edward, que levantou a cabeça e um pouco das orelhas enormes. Ainda não acreditando que estava prestes a fazer isso, vi-me falando com mais um cachorro:
- Você quer ir junto?
E porque claramente os cachorros não são normais e entendem tudo que falamos, o basset round olhou para mim, depois para Cookie e então para saída. Nosso cachorro deu um latido encorajador, porém, com um olhar superior, Sir Edward virou-se para mim e senti como se estava sendo dispensado - agradecido, mas dispensado -, antes de soltar um latido para Cookie e nos dar as costas, voltando calmamente para se deitar em frente a grande lareira da sala de estar.
Tive poucos segundos para analisar, entre incrédulo e divertido, como aquele era outro cachorro muito, muito esquisito, pois logo meu próprio cão havia se levantado sobre suas patas e exigia minha atenção.
- Já vou, já vou - balançando a cabeça, abri a porta para encontrar todo o jardim coberto por um manto branco
Felizmente no momento não estava nevando e as estradas haviam sido limpas em algum momento da madrugada pelas autoridades municipais, então tínhamos um bom caminho. Dei uma boa olhada ao redor, memorizando pontos de referência antes de seguir rumo ao norte, Cookie fielmente ao meu lado e acompanhando muito melhor minhas passadas do que quando começamos.
Uma hora depois estávamos de volta e, enquanto batia os flocos de neve para longe do pelo de Cookie na soleira da entrada, pude sentir o imã universal que era cheiro de bacon. Usei o lavabo para lavar as mãos antes de seguir para cozinha, onde encontrei uma atarefada Vafara fritando coisas em ao menos quatro frigideiras diferentes. Com a conversa de ontem ainda queimando em meu cérebro, ponderei se seria mais recomendado correr de volta para o quarto e voltar quando estivesse ali para me proteger.
Proteger-me de alguém que conseguia ser mais baixa que minha namorada. Grande SEAL você é, . Hunter e Chase estariam tão orgulhosos…
Praticamente ouvindo as gargalhadas de meus amigos em minha cabeça e não muito orgulhoso por escolher o caminho dos covardes, estava prestes a dar a volta e fugir quando minha sogra se virou sorrindo para mim.
- , querido. Você já acordou!
- Senhora - forcei meus lábios a se repuxarem em um sorriso em resposta.
- Sente-se, sente-se, querido - apontou para o banco grande onde tinha me sentado no dia anterior. - Fiz o dobro de comida hoje, porque, né, você é bem grande. Aposto que deve comer muito. Temos waffles, omelete, ovos mexidos, - enquanto falava ia colocando os pratos na minha frente, - bacon e frutas, se você estiver nisso de só comer coisas saudáveis. Mas deixa eu te dizer, , que só frutas não enchem barriga, sabe? Tem que ser saudável, mas na medida certa - apoiou o cotovelo sobre a ilha e o queixo sobre a mão, olhando-me seriamente. - Diga-me, querido, você não é daqueles que vive na academia, não é? Ou daqueles que fica viciado em adrenalina? Porque depois que me contou que estava namorando um militar reformado, eu comecei a ler alguns livros e vi que alguns não conseguem aceitar bem a saída do serviço.
Nem mesmo abri a boca para responder antes que ela voltasse a falar:
- Não me leve a mal. Não estou te julgando nem nada. É só que... bem, eu li que essas coisas não são muito recomendáveis porque a pessoa fica cada vez mais viciada e ai você já viu, né? Nenhum vício é bom. Aliás, você fuma?
E pensar que eu achava que falava demais. Perto de sua mãe, minha loira era quase tão calma quanto um monge budista. Infelizmente dessa vez suas palavras, ao invés de me divertirem, conseguiram me ofender… e também me irritar. Endireitando as costas, trinquei os dentes e, porque não queria me indispor com minha namorada, tive a certeza de ser firme, mas não seco:
- Não se preocupe, senhora . Não tenho qualquer vício que possa prejudicar . Eu jamais faria isso.
E se isso não fosse tão infantil, teria me levantado e saído, outra vez ignorando completamente minha própria natureza ao dar as costas a uma briga. Passei a mão pelo rosto, cansado. me fazia fazer coisas muito estranhas e não sabia ao certo se aquilo me agradava.
Ao invés de me repreender pelas palavras duras, Vafara soltou uma risada leve, levantando a mão para bater em minha bochecha com carinho.
- Não seja bobo, . Sei que você nunca machucaria - suas palavras eram suaves. - Uma mãe sabe disso. Estou preocupada com você, querido. Quero te ver sempre saudável. Falando nisso, coma um pouco - deslizou sobre a bancada um prato que não a tinha visto fazer, mas que estava recheado com grandes porções de tudo que tinha cozinhado.
Levei algum tempo para absorver tudo e, quando o fiz, acho que acabei por sobrecarregar as engrenagens de meu cérebro porque, pela primeira vez na vida, ao invés de pensar antes, peguei-me gaguejando como uma criança:
- S-se… se preocupa… comigo?
As palavras eram tão alienígenas que quase não consegui juntá-las em uma frase. Uma expressão de intensa ternura tomou seu rosto e preocupação brilhou em seus olhos violeta tão parecidos com os de e tão bonitos quanto, mas que não me causavam aquela fascinação.
- Claro que me preocupo, garoto - encostou a mão em minha bochecha. - Primeiro me preocupei com você porque você faz minha filha feliz. Sim - assentiu. - me conta as coisas… bom, não as coisas divertidas, - acrescentou, numa clara tentativa de deixar o clima mais leve, chegando até mesmo a mexer as sobrancelhas repetidamente para cima e para baixo, - mas conversamos bastante. E sei que ela gosta bastante de você, então, por isso me preocupava com você. Quando você chegou aqui ontem, contudo, vi o bom garoto que você é - desceu a mão para meu ombro e deu uma apertada reconfortante antes de se afastar um passo. - Um bom garoto que já passou por muita coisa ruim, que já viu coisas horríveis, mas que, ainda assim, é um bom garoto. Então, agora, me preocupo com você por você. Agora, diga-me, querido, está tudo bem?
Sabia que sua pergunta abarcava mais do que apenas aquele momento e foi por isso que consegui engolir em seco e assenti devagar. Meu cérebro parecia ter derretido, mas felizmente não me senti um mentiroso.
Antes de conhecer os , não era de usar muitas metáforas para explicar sentimentos - talvez porque não sentisse tanto, talvez apenas não acreditasse nessas coisas melosas -, naquele momento, contudo, nada poderia definir melhor meu estado do que uma comparação a um marshmallow. Sentia-me um marshmallow. A porra de um marshmallow.
Aquilo me confundia mais do que julgava ser possível.
Olhei para o lado, exausto e desnorteado, e por sorte ela entendeu a deixa para abandonar o assunto e voltou a empurrar o prato ainda mais para perto de mim.
- Como, querido, coma.
Como um robô, apanhei o garfo e dei algumas garfadas e, mesmo no estado meio catatônico em que me encontrava, ainda consegui saborear o café-da-manhã. Estava quase terminando de comer quando um barulho chamou minha atenção. Abaixei o garfo tão lentamente quanto virei a cabeça em direção ao som. Vinha de algum lugar na frente da casa. Usando o treinamento do qual nunca iria esquecer, saí da cozinha no mais completo silêncio e bem a tempo de ver a maçaneta se mexendo repetidas vezes. Os dois cachorros estavam parados não muito longe, os dentes para fora e em posição de ataque.
A maçaneta mexeu de novo e de novo. Não iria esperar que houvesse uma quarta vez. Vasculhei o cômodo com os olhos, rápido, recordando a regra para nunca entrar em uma batalha às cegas, sem algum tipo de arma. Nunca dê esse tipo de vantagem ao inimigo. O menos inadequado por perto, contudo, era um cutucador de lareira que parecia peça de colecionador. Fechei os dedos nele.
- ?
A voz de minha namorada soou em algum lugar atrás de mim, provavelmente nas escadas, mas não me virei.
Nenhuma distração. Proteger.
Proteger.
Abri a porta o mínimo possível, colocando-me na fresta, o braço com minha arma escondida atrás da madeira enquanto ficava entre quem quer que fosse e a família . Contrária as minhas expectativas, não se tratava do esteriótipo de ladrão. Nada de máscaras ou roupas pretas. Definitivamente nada de armas de fogo ou armas brancas.
Muito pelo contrário, na verdade. O homem na minha frente estava perfeitamente alinhado em uma camisa polo e calça social sob um sobretudo preto, ao seu lado estava uma mala de viagem. Ele parecia a pessoa menos ameaçadora em quem já colocara os olhos, mas não iria arriscar a segurança da minha namorada de maneira alguma por subestimar o tipo, então mantive a arma improvisada em punho ao falar:
- Que foi?
O magrelo franziu o cenho e me olhou como se o maluco fosse eu, e não alguém que tenta forçar a entrada em casa alheia.
- O que você faz aqui?
Essa conversa estava ficando esquisita tão rápido quanto minha paciência estava se esgotando.
- Dê o fora! - grunhi.
O desconhecido arregalou os olhos
- , o que está acontecendo?
A loira intrometida que havia marchado para dentro do meu apartamento no dia em que nos conhecemos estava de volta e havia decidido deixar as escadas, onde era mais seguro, e se aproximara alguns passos. Tive a certeza de fazer uma nota mental para lhe dar algumas boas palmadas mais tarde. Agora, contudo, precisava manter atenção na ameaça maior, principalmente ao reconhecer aquele movimento de levar a mão à cintura. E de repente o magrelo a minha frente não era tão inofensivo.
- Não faça isso - sibilei, a literalmente um passo de quebrar as costelas dele com o cutucador de lareira se ele tentasse pegar uma arma.
Foi a vez dele reconhecer a ameaça em mim.
- Você precisa se acalmar. Vou apenas pegar meu distintivo.
Distintivo?
- , o que diabos está acontecendo?
Agora ela estava bem atrás de mim e a única coisa que me impediu de me virar e lhe dar as palmadas agora mesmo era o fato de que sabia que eu era a única coisa entre os dois e que o cara não poderia vê-la atrás de mim. Se me mexesse, perderia essa vantagem. Infelizmente estava agora muito perto do perigo e eu não poderia permitir isso, então, apesar de meu primeiro instinto ser ficar imóvel e agir como uma barreira, sabia que ela estaria sem proteção se eu caísse. Por esse motivo, coloquei a mão que não segurava minha arma para trás e estava prestes a empurrá-la - firme, mas não forte - para longe e deixar claro minha vontade de que ela se afastasse quando o homem à minha frente voltou a falar:
- ?
O ofegar surpreso que minha namorada soltou não deixou dúvida que ela reconheceu a voz. Por isso, ainda que contrariado, muito lentamente, e sem nunca largar minha arma, apenas mudando seu esconderijo para atrás de minha perna, dei alguns passos para trás, escutando minha namorada fazer o mesmo para me dar espaço. Só então empurrei a porta, abrindo-a por completo. Nem um segundo depois um borrão risonho amarelo e vermelho passou por mim e se jogou no magrelo:
- SPENCER!



Caítulo 22

- Não acredito! - ri, passando a mão pelo seu rosto sorridente repetidas vezes. - Não sabia que você vinha. Papai não disse nada. Cortou o cabelo, hein! - passei os dedos pelos fios chocolate. - Gostei mais assim.
- Apesar dos homens conservarem os cabelos mais compridos durante boa parte da evolução da raça humana, o jeito mais curto foi o que se solidificou nos estágios mais avançados da sociedade. Estudos mais recentes de historiadores italianos demonstram que isso se relaciona a ideia de limpeza, consagrada com o hábito de tomar banho. A barba também foi outra característica abandonada em nome de uma aparência mais respeitável. Então, apesar de cabelo mais comprido e barba serem muito mais antigos, as características atuais se encaixam melhor no que é esperado dos homens, e, assim, acabam por atrair mais a atenção feminina - terminou o discurso com aquele sorriso de lado.
Ainda rindo, não fiz qualquer tentativa de conter minha vontade de abraçá-lo com toda a força que consegui reunir. Seus discursos de conhecimento infinito sobre um tema bobo - ou sobre qualquer outro tema possível - tinham o poder de me fazer sentir em casa mais do que qualquer outro lugar ou pessoa. Talvez porque cresci ouvindo isso quase todos os dias, ou talvez fosse apenas porque ele era o melhor amigo. De qualquer jeito, sentia-me como se tivesse de novo oito anos. Assim, exatamente como quando éramos crianças, eu dei um passo para trás e apertei suas bochechas antes de dar dois tapinhas no topo de sua cabeça e voltar a passar os braços ao seu redor. Seu sorriso fechado aumentou um pouco mais e ele me olhou indulgente.
- Você sabe que não é mais alta que eu desde que tínhamos doze anos, não é mesmo, ?
Ri, de novo encostando a cabeça em seu peito.
- !
O grunhido atrás de mim me fez dar um pequeno pulo e voltar para o presente, onde ainda estava agarrada a meu primo. Havia me esquecido completamente de meu namorado bem atrás de mim e, principalmente, havia me esquecido de que estava usando só uma camiseta em um frio de menos de dez graus. E parece que foi só lembrar do clima que ele me atingiu em cheio. Dei um pulo instintivo para trás, voltando para dentro de casa e me chocando contra o corpo do meu namorado. Imediatamente passou o braço por minha cintura, tirando meus pés do chão e girando 180° para me colocar cerca de um metro de distância de onde estava há dois segundos - agora estava de frente para meu namorado, que estava de costas para porta.
- O que você pensa que está fazendo? - sibilou, mais baixo e perigoso do que jamais havia visto, mas, apesar de toda a advertência em seu tom, já estava tirando o casaco de moletom e o fechava ao meu redor.
Se meus dentes não estivessem batendo tanto, teria agradecido. Sacudindo a cabeça, me puxou até que estivesse confortavelmente aquecida em seu abraço.
- Francamente, . Que porra você estava pensando?
Antes que pudesse me explicar, contudo, Spence voltou a falar:
- , quem é esse? O que está acontecendo?
Os braços dele se retesaram ao meu redor e tive que me esforçar para me remexer e ficar nas pontas dos pés para enxergar minimamente sobre seu ombro. Meu primo nos encarava com o cenho franzido enquanto coçava distraidamente atrás da orelha de um animado Cookie e depois dava algumas batidinhas carinhosas na cabeça de Sir Edward, que logo depois, já satisfeito com a atenção, saiu de volta para a sala. Meu cachorro soltou um latidinho animado e seguiu o melhor amigo. O barulho me sacudiu daquele estado meio letárgico. Espalmei a mão sobre seu ombro e mandei que me soltasse, ou ao menos foi isso que teria dito se as palavras não tivessem saído tão abafadas contra seu ombro. Enquanto tentava me libertar, ouvi passos atrás de mim e logo mère passava por nós dois, correndo para esmagar seu sobrinho favorito em um daqueles abraços apertados que tanto gostava de dar.
- Spencer, querido! O que está fazendo aí fora? Você está tentando morrer de hipotermia ou algo de tipo?
Ainda presa em meu pequeno tanque militar - porque certamente tinha tanta força quanto aquela máquina e no momento me sentia tão confinada quanto um soldado dentro de um desses automóveis - vi mamãe soltá-lo quando seu rosto já ficava meio vermelho pela falta de ar, e puxá-lo para dentro do calor de casa. Depois de arrastar sua mala para dentro, meu primo teve a certeza de se virar e trancar a porta.
Usei a pequena distração que todo esse movimento causou para, com toda força, voltar a empurrar meu namorado, conseguindo incomodar o suficiente ao ponto de ele afrouxar o aperto ao meu redor.
- ! Que diabos? - resmunguei ao dar um passo para trás, colocando algumas mexas de cabelo bagunçado para trás.
Ele franziu o cenho, parecendo só agora notar seu comportamento meio lunático, meio mata-leão-. Rapidamente, contudo, voltou ao normal, franzindo o cenho e me olhando com a expressão fechada:
- Estava aquecendo você, , antes que você entrasse em um estágio grave de hipotermia - falou, tão gelado quanto o clima lá fora. - Acredite, não estava muito longe.
- Teoricamente, ele está certo, - a voz de minha consciência, dessa vez em carne, osso e na forma de meu primo, falou. - Você não precisa ficar muito tempo exposta, apenas é necessário que a temperatura caia drasticamente, o que, é óbvio, aconteceu quando você saiu sem as roupas adequadas para esse clima. Demoraria um pouco mais do que se você caísse em um lago, mas seria em questão de minutos. Hipotermia aguda é a mais perigosa e foi justamente a ela que você se expôs.
Com uma última olhada feia para meu namorado - que me respondeu travando ainda mais o maxilar - dei um passo para o lado para ficar a meio caminho dos dois
- Vocês dois são impossíveis - cruzei os braços. - Até parece que me atirei no Crystal Lake.
- Não foi muito diferente - Spence voltou a falar daquela jeito macio que conseguia deixar qualquer discurso condescendente parecendo um conselho educado.
estreitou os olhos, obviamente concordando com meu primo, mas não abriu a boca para pontuar seu apoio.
- Ora, ora. Já está tudo bem, rapazes. já aprendeu a lição sobre não andar na neve com roupas que não são tão apropriadas, não é mesmo, querida?
Suponho que deveria estar agradecida por mamãe não ter mencionado que estava usando apensar uma camisa de , mas o jeito como ela precariamente tentava segurar a risada fez minhas bochechas se colorirem.
- Aliás, observando bem, não conheço essa camiseta. “Navy”?
Assim que ela leu o escrito na parte de trás de minha camiseta sabia que perguntas inconvenientes - e potencialmente constrangedoras - viriam a seguir, então me apressei em um jeito nem um pouco sutil de contornar a situação:
- Spence, quero que conheça uma pessoa. Esse é , meu namorado. Amor, esse é Spencer , meu primo favorito.
O sorriso animado que havia surgido em meu rosto ao pronunciar aquelas palavras durou até que deu a volta para nos encarar. Não que ele estivesse sendo abertamente hostil.
Não.
Era o contrário, para falar a verdade. Ele mantinha a expressão cuidadosamente lisa, nenhuma antipatia à vista e conseguiu até mesmo ensaiar um sorriso que não parecia tão forçado. O que me preocupava, contudo, era o que eu conseguia ver por de trás daquela bem construída máscara de normalidade.
- É um prazer conhecer o famoso Spencer - estendeu a mão e cumprimentou o outro homem.
O tom era cordial, mas podia apostar minha bolsa Prada favorita que ele estava rangendo os dentes. Acho que seu orgulho de macho alfa não aceitava muito bem estar errado. Talvez eu devesse usar esse objeto para quebrar o gelo. Tornar uma situação constrangedora em algo para se dar uma boa risada era uma das estratégias que sempre usei na minha vida tanto profissional quanto pessoal.
- Engraçado, né, amor? - dei um passo ao seu lado e passei o braço esquerdo pelo seu direito e com a mão direita segurei a sua. - Você achar que Spence seria um ladrão quando ele é justamente o oposto disso.
Sorri amarelo, porém mesmo enquanto falava já percebendo que tinha sido uma ideia boba.
- Justamente o oposto?
Todos os dias de manhã, quando via meu namorado vestir um de seus ternos caros e arrumadinhos para ir trabalhar, não podia deixar de pensar que ele parecia saído de um filme em que o personagem principal era um guerreiro antigo que fora obrigado a se adaptar a civilização. Um guerreiro domado exteriormente, mas que mantinha o brilho selvagem nos olhos gelo. E, apesar de todos os dias presenciar aquela transformação, nunca havia presenciado aquela versão dele em ação.
Alto executivo.
Imponente, refinado, totalmente no controle da situação.
Nunca, até aquele momento.
Foi a resposta de Spencer que me puxou para fora de meus pensamentos e para longe de meu estado hipnotizado pela fala macia de .
- Sim, o oposto – vi pelo canto dos olhos que ele assentia, sorrindo amigavelmente. – Eu sou um agente do FBI.
franziu o cenho e, por um segundo, pensei que ele faria o comentário clichê e totalmente imbecil sobre como ele não parecia ser do FBI, obrigando-me a lhe dar um chute no traseiro em resposta. Mère também se retesou visivelmente ao lado de seu sobrinho. Ela era quase tão protetiva de Spencer quanto eu.
- Entendo – balançou a cabeça devagar. – Chega a ser até um pouco irônico, não? Pensei que você fosse um invasor.
Um sorriso do tamanho exato para acompanhar aquelas palavras surgiu em seu rosto.
- Esse certamente foi um jeito e tanto de se apresentar. Memorável – mamãe sorriu. – Mas como isso aconteceu? Perdi toda a diversão por ter que ficar vigiando aqueles waffles. Se não amasse seu pai tanto assim, , não teria me preocupado em deixar a massa fofinha e dourada do jeito que ele gosta ou de terminar de fazer a geleia de morango caseira que ele tanto ama. Não podia largar tudo no forno, principalmente quando ele teve que praticamente importar morango para essas abençoadas geleias. Ora! – sacudiu a mão. – Mas não era disso que estávamos falando, não é mesmo? Ah, sim. estava nos contando porque pretendia abrir a cabeça de Spencer com o cutucador de lareira centenário que John comprou há alguns anos.
A única coisa que demonstrou uma rachadura em sua bem polida performance de sofisticação foi o leve colorido que surgiu na bochecha de . Tão rapidamente quanto apareceu, contudo, sumiu, deixando apenas um sorriso galante que obviamente não afetava apenas a mim, pois mamãe, casada há mais de vinte anos e muito feliz com isso, adquiriu um olhar meio bobalhão ao ser alvo dele.
- Bem que reconheci que se tratava de uma peça de grande apreço, senhora – devolveu o objeto à moldura vertical que viera junto quando papai arrematou o artefato no leilão. – Peço desculpas por isso. Não tinha qualquer intenção de danificá-la, mas não tive outra opção para usar como arma improvisada ao ouvir alguém remexendo na maçaneta daquele jeito.
Ainda o mesmo tom suave e a alfinetada quase passaria despercebida por mim, do mesmo jeito que tinha passado por Vafara, não fosse o brilho de raiva que trovejou por seus olhos rapidamente. Era a parte selvagem tentando voltar à tona e ao seu papel de protagonista.
- Bom, acho que também deveria me desculpar, então - o jeito como Spence franziu o cenho me disse que ele também havia ouvido a ironia no tom de , o que não era exatamente uma surpresa, tendo em vista o excelente detetive que ele sempre foi. - Realmente sacudi a maçaneta mais de uma vez, mas, em minha defesa, posso dizer que não acreditei que estava realmente trancada. Vocês não têm esse costume.
Mamãe franziu o cenho do mesmo jeito que eu sabia que estava fazendo. Nós trancávamos as portas à noite, é claro, porém mère sempre destrancava quando descia para fazer o café-da-manhã.
- Então vejo que a culpa de todo o mal-entendido foi minha - a fala mansa de jeito de congressista de Washington voltou. - Saí para correr e quando voltei passei o trinco. Não sabia desse detalhe. Peço desculpas, senhora .
Virou-se para mamãe e sorriu de um jeito tão encantador que ela teria lhe perdoado mesmo se ele tivesse acabado de destruir toda propriedade.
- Oh, querido - balançou a mão como que dizendo que aquilo não tinha importância, dando uma risadinha. - Não foi nada. E, por favor, me chame de Vafara.
“E, por favor, me chame de Vafara.”
Revirei os olhos. Se mère se derretia assim só com a maneira polida de , imagina como ela reagiria se um dia fosse vítima do charme magnético de Chase. Felizmente, ela se lembrou de que alguém deveria manter o ar respirável, bancar o diplomata, por assim dizer, mesmo que os dois homens estivessem fazendo um trabalho quase impecável para disfarçar a tensão, e disse:
- Vamos, querido. Seu quarto já está pronto - passando o braço pelo do sobrinho, arrastou-o para as escadas.
Meu agente favorito do FBI me lançou um olhar por sobre o ombro que dizia que conversaríamos mais tarde antes de se virar para frente e continuar andando até desaparecer de meu campo de visão. continuou parado no mesmo lugar por mais alguns segundos antes de também subir pelas escadas sem me dizer nenhuma palavra. Franzi o cenho, não entendendo porcaria nenhuma, antes de segui-lo.
Encontrei Ava com a cara amassada de sono no meio do caminho no corredor dos quartos.
- Que aconteceu com Leo? - sua voz raspava o fundo da garganta, muito mais grossa do que o normal. - Passou por mim e nem me deu um daqueles olhares gelados quando o chamei de Leo.
- E eu sei lá - dei de ombros. - Eu estava descendo pro café e ai o Spence chegou e-
- Spencer chegou? Ele ‘tá aqui? - todo vestígio de sono desapareceu de seu rosto e de sua voz enquanto ela sacudiu a cabeça, olhando de um lado para o outro em busca do homem de quem falávamos.
- Essa sua paixonite pelo Spencer só cresce, você sabia? E ele nem faz o seu tipo!
Avalon teve a cara de pau de mostrar chocada.
- Paixonite? Que paixonite? E que história é essa de tipo?
- Ora, Appleby - revirei os olhos. - Você fica cheia de suspiros bobões quando ele ‘tá perto, o que, preciso acrescentar, me causa certo refluxo. Decididamente não gosto de presenciar os olhares que você manda para o meu irmão - acrescentei quando a surpresa se tornou genuína.
- Olhares? Que olhares? E ele não é seu irmão!
- Olhares do tipo “Oi, Spence. Eu estou aqui, Spence. Vamos nos conhecer melhor no sentido bíblico da palavra. Spence” - bati os cílios para enfatizar, depois coloquei a língua para fora para demonstrar meu nojo. - Além disso, você sabe que é como se ele fosse meu irmão.
- Tá, tá - com um gesto de mão, dispensou minhas palavras. - E cadê Spencer?
- Mas de novo? Já falei que esse não é seu tipo.
- Ah, sim. Quase me esqueci dessa sua bobeira. Por favor, me esclareça essa sua alucinação - cruzou os braços e arqueou uma sobrancelha de maneira condescendente. - Qual exatamente seria o meu “tipo”?
Isso me parar por um segundo e pensar em uma maneira de dizer o que queria sem acidentalmente ofender meu melhor amigo.
- Bom, seu tipo é… não-Spencer…? - tombei a cabeça para o lado, soando mais como uma pergunta do que como a resposta que ela queria.
- “Não-Spencer”? Quê?
- Sei lá - revirei os olhos. – Alto, forte, alfa.
- Você percebe que está descrevendo o seu macho, né? Por acaso está querendo que eu tenha um caso com Leo? Seu namorado por seu irmão? Porque, se essa for sua ideia, já vou dizendo que sou uma pessoa bem moderna, mas isso ‘tá parecendo moderno demais até para mim.
- O quê? – ofeguei. – Claro que não! Eu não... eu não falei nada disso. Quer saber? Esquece – sacudi a cabeça. – Acho que você está precisando de um pouco de café. Depois nós conversamos sobre como você tem sim um tipo – passei por ela e dei alguns passos antes de me lembrar de um detalhe importante e olhar por cima do ombro. – Aliás, só para deixar registrado, não estou te oferecendo meu macho – repeti suas palavras bobas antes de continuar até chegar ao quarto.
Assim que a distração em forma de minha melhor amiga desapareceu, a lembrança do comportamento esquisito de meu namorado retornou. Falando em , encontrei-o sentado perto da lareira de novo, dessa vez, contudo, sentando em uma poltrona diferente da que nós dormimos ontem.
- ?
Ele tirou o olhar do fogo crepitando e me olhou com uma passividade silenciosa de quem encarava um estranho. Aquilo me atingiu com tanta força que teria sido o mesmo se ele tivesse me chutado na barriga.
- Sim?
- Que foi? – franzi o cenho, aproximando-me.
Esperava que ele tivesse uma boa desculpa para estar se comportando como um menino mimado porque minha paciência estava se esgotando rapidamente agora que começava a perceber que o que parecia ter acontecido de errado ali era que estava fazendo pirraça por algum motivo qualquer.
- “Que foi”? – repetiu, meio incrédulo, o tom político desaparecendo completamente para trazer de volta o jeito autoritário. – Você saiu desse jeito e vem me perguntar o que foi?
Consigo lidar com o jeito autoritário dele - faz parte de como ele é portanto, faz parte de quem eu gosto – meu problema é quando ele era autoritário do modo como estava sendo agora. Incisivo, rude e cuspindo palavras como se eu fosse uma subordinada de seu pelotão que deveria obedecer ordens cegamente.
Aquilo era um grande, grande “não”.
- Opa, opa, opa – ergui a mão espalmada para que ele contivesse as palavras. – Já conversamos sobre esse jeito de falar comigo.
- Isso foi antes de você enlouquecer praticamente nua direto para neve.
- Nua? O quê? Que exagero, ! Eu estou usando shorts por baixo – levantei a barra da blusa para provar minhas palavras. – Viu? Além disso, minhas meias também estão no lugar – dessa vez levantei o pé para que ele enxergasse, pois aparentemente estava ignorando o óbvio. – Quentinhas e úteis. Não sei o motivo desse escândalo todo.
Minha defesa pareceu enfurecê-lo ainda mais. Praticamente podia ouvir seus dentes rangendo, mesmo na distância em que estávamos.
- Essa é a justificativa mais imbecil que já ouvi.
- Não fale assim comigo, . Não sou criança para ficar ouvindo sermão – e, porque ele tinha certa razão, resolvi respirar fundo, massageando a ponte do meu nariz com o polegar e o indicador, e tentar encontra o meio termo. – Tudo bem. Você tem razão sobre o fato de que eu não deveria ter saído no inverno de Montana desse jeito.
Meu orgulho – e certa pirraça – me impediram de acrescentar que se ele não tivesse agido tão rápido em compartilhar calor humano, eu provavelmente teria ficado realmente doente. Talvez até com a hipotermia que Spencer tanto falava.
Oh!
Foi como nos desenhos onde uma luz se acende sobre a cabeça do personagem e de repente entendia melhor a razão pela qual ele estava sendo um idiota.
- Ah! Estou entendendo – murmurei devagar. – Você está assim graças ao discurso de Spencer sobre hipotermia e suas mortes lentas, né? Não se preocupe. Meu primo sempre dá um jeito de criar um cenário catastrófico, mas ele não faz por mal. É só que ele sabe muito de tudo, então fica meio difícil não calcular proporções sobre coisas que ninguém nem mesmo considera. Não vou morrer de hipotermia, não se preocupe.
As explicações tiveram um efeito oposto ao que eu queria. Ao invés de acalmá-lo, ficou ainda mais irritado. Não que ele tivesse demonstrado isso.
Não.
Se alguma coisa, seu rosto ficou ainda mais inescrutável. E era exatamente por isso que sabia que algo estava errado. Nesses meses em que namoramos, aprendi a reconhecer os sinais . Reconhecia o franzir de cenho quase imperceptível que ele dá quando não entendeu alguma coisa tecnológica, mas é orgulhoso demais para perguntar. Sabia que o jeito como torcia o canto dos lábios quando alguém havia feito alguma coisa completamente idiota ou absolutamente impossível com uma arma em alguma das inúmeras séries que assistíamos. Acima de tudo isso, entretanto, percebia quando sua raiva se tornava ira e passava de quente vulcânica para o mais cortante e implacável gelo, essa última aparecia normalmente quando o Sênior estava envolvido. Nessas horas, não restava nada em sua expressão lisa e glacial. Trazia arrepios ruins por minhas costas.
E eu estava tendo alguns arrepios muito ruins agora.
- Você viu que eu estava tentando neutralizar uma ameaça e, mesmo assim, se aproximou – as palavras eram tão duras que pareciam navalhas fazendo pequenos cortes sobre minha pele. - Tem alguma ideia do que poderia ter acontecido se realmente fosse um ladrão?
Senti-me de volta à escola, quando você recebe um sermão do professor por algo que não foi exatamente sua culpa, porém você acaba engolindo a bronca porque sabe que ele tem boas intenções, mesmo que estivesse falando de um jeito que te dá vontade de quebrar a carteira em sua cabeça. Respirando fundo mais uma vez, tentei enxergar a situação por sua perspectiva, lembrando que ele havia passado por muitas situações de estresse durante seu tempo nas Forças Armada e que isso lhe causava reações mais extremas. Mais calma, resolvi, de novo buscar o meio-termo:
- Ok. Tudo bem. Talvez você tenha razão e foi algo estúpido da minha parte. Mas - levantei o dedo indicador em riste antes que ele pudesse me interromper - em minha defesa, nunca tinha passado por esse tipo de coisa e me assustei de verdade.
não tinha a mínima ideia de quão letal ele pareceu naquele momento enquanto espreitava a porta, entretanto, não era ele quem me aterrorizava, mas sim o fato de que oponente que o forçava a agir daquele jeito podia ser igualmente mortal. Ponderando agora, vejo que realmente foi idiotice da minha parte me aproximar de um predador prestes a dar o bote, mas tudo que conseguia pensar era em estar ao seu lado e tentar ajudar. Da maneira que fosse possível, de qualquer jeito. Só não podia deixá-lo se machucar. Nem mesmo me lembrei de que estávamos em um dos lugares mais seguros do país e que minhas habilidades nulas fariam mais mal do que bem, atrapalhando mais do que ajudando.
Apenas… apenas precisava chegar mais perto e ter certeza de que meu namorado estava bem.
Pelo jeito, entretanto, não consegui demonstrar aquilo em meus atos e muito menos nas palavras meio atropeladas que soltava agora, porque, se é que isso é possível, sua expressão se tornou ainda mais lisa. Toda e qualquer emoção sumiu completamente, até mesmo os lampejos de raiva desapareceram. E, ao falar, também soou meio robótico e mais distante do que qualquer outro momento - mais ausente até mesmo do que no dia em que nos conhecemos:
- Entendido, . Faça o que achar melhor.
E, dizendo isso, ele saiu do quarto, fechando a porta com cuidado e me abandonando ao silêncio esmagador do quarto, onde até mesmo a lareira crepitante parecia ter se apagado para me deixar na mais completa solidão enquanto eu tentava entender onde exatamente as coisas tinham dado tão errado.

xxx

Eu não gostava disso. Não gostava de brigar com , não gostava de como isso me fazia sentir, não gostava do gosto amargo que a noção de não poder beijá-la quando quisesse me trazia, não gostava da pontada de culpa que revirava meu estômago toda vez que ela me olhava com aquele olhar machucado.
Detestava a ideia de que poderia tê-la machucado. Mas, acima de tudo, eu detestava ele.
E quando era obrigado a sentar em uma sala fingindo que estava tudo bem e observar as pessoas ao meu redor conversar e rir, divertindo-se demais para notar qualquer infelicidade alheia, detestava tudo ainda mais. Ser ignorado era ruim mesmo quando sua intenção era justamente aquela. , você está mesmo se tornando um frouxo. Sua mulher não lhe dá atenção por cinco minutos e você se torna uma criança birrenta.
Tentando manter aquela desagradável voz da consciência longe da minha cabeça, dei mais uma olhada ao meu redor. Era surpreendente como as pessoas podiam ser obtusas, pois praticamente podia sentir uma nuvenzinha negra sobre minha cabeça como um daqueles desenhos animados que mamãe contrabandeava.
Certo.
Talvez isso não fosse muito justo da minha parte, uma vez que havia aprendido há muito tempo como enterrar as emoções tão fundo dentro de mim mesmo que era impossível que qualquer um percebesse o que se passava. Essa técnica era muito útil para esconder o desgosto e tédio que me sufocavam quando tinha que comparecer a alguns dos eventos em que a porra do sobrenome era a estrela ou quando tinha que esconder de meus companheiros de tropa o quão assustado eu também ficava em certas missões. Afinal, por mais corajoso e bem treinado que fossemos, nenhum de nós era suícida e tínhamos tanto medo de morrer quanto qualquer outro. Irônico era que nem mesmo os mais insuportável jantares ou reuniões de negócio que Dante me obrigou a ir não chegavam nem perto do que passava agora. Talvez isso tivesse a ver com o fato de que a situação em que me encontrava agora deveria ser divertida e eu inconscientemente estivesse irritado por essa oportunidade ter me sido arrancada, ou talvez fosse só a noção de que os olhos violeta de minha namorada podiam enxergar direto através da minha máscara - e ver exatamente o quão desconfortável eu estava.
Qualquer desses motivos, entretanto, me fazia contar os segundos para liberdade, quando finalmente alguém diria que gostaria de ir dormir, instante oportuno onde eu também fingiria um calculado bocejo e iria me recolher.
Aquele era um bom plano e me orgulhava dele, exceto pelo fato de que me fazia lembrar de Chase e seu esperto jeito de conseguir o que queria. O merdinha manipulador
. - Não é mesmo, querido?
Recorrendo de novo àquela faceta que odiava - mas que agora era um mal necessário - forcei um sorriso convincente e assenti, concordando com alguma coisa da qual não tinha a mínima ideia. Felizmente aquela parecia a resposta correta porque ela sorriu e voltou a prestar atenção naquela enorme conversa que envolvia todas as outras cinco pessoas da casa. de novo franziu o cenho, claramente não acreditando na expressão serena que tentava passar aos demais. Era óbvio que ela queria conversar, mas eu ainda estava de saco cheio demais para isso, então passei a encarar o ponto um pouco acima da cabeça de Appleby, que estava sentada no sofá de três lugares e na minha frente. Era mais fácil tentar prestar atenção no quanto a confeiteira maluca tagarelava sobre algum vinho que tinha experimentado do que no jeito como a parte marshmallow em que havia me transformado queria só ajeitar as coisas e poder beijar de novo.
O problema era que eu era um bastardo rancoroso. Então continuaria de saco cheio. Nesse meio tempo, enquanto minha raiva esfriava, teria que engolir toda a impaciência que sentia a cada vez que o magricela abria a boca, o que parecia fazer minha namorada sorrir.
Toda. Porra. Da. Vez.
Mesmo quando ainda mantinha um franzir de cenho pouco característico de preocupação - e que sabia que provavelmente era causado em reação a minha teimosia - ainda consegui sorrir com cada comentário que o sabichão fazia.
“O novo livro de física quântica que eu li blá-blá-blá.”
“Blá-blá-blá mas o que significava mesmo era que o tronco da árvore iria se envergar e não que iria se sobressair sobre o mar.”
“Quando voamos para Califórnia e depois do caso, o time insistiu em experimentar comida mongol, a qual tem relação profunda relação história com a China. A culinária, então, blá-blá-blá.”
O mínimo de informação que me obrigava a captar a cada dois minutos - para que não parecesse um completo imbecil quando alguém falasse alguma coisa diretamente para mim - foi o suficiente para me mostrar que eles estavam literalmente “colocando o papo em dia”. O emprego muito importante - qualquer que fosse, afinal, não havia prestado muito mais atenção além das palavras “FBI” pela simples razão de que não me importo - o mantinha longe durante todo o ano e aquele era o único feriado que conseguira uma folga. Então agora ele estava contado o que acontecera durante o resto do ano com toda merda de detalhe. Aquilo era tão absolutamente tedioso que havia chegado ao ponto de começar a ponderar sobre as pastas que a filial de Londres havia me mandado na semana passada e que ainda estavam sobre minha mesa na I a espera de uma resposta.
Infelizmente nem mesmo minha patética versão de fuga da realidade me foi permitida por muito tempo, uma vez que de novo estava sendo arrastado para dentro da conversa.
- Desculpe? – falei ao notar a atenção de todos eles sobre mim.
- estava nos contando sobre como você trabalha na empresa de sua família, querido – minha sogra respondeu suavemente. – E estávamos nos perguntando o que exatamente vocês fabricam?
Lancei um olhar rápido para minha namorada e encontrei de novo seu olhar machucado, mas dessa vez havia também uma pontada de raiva que me dizia claramente que ela não havia respondido a dúvida de sua mãe porque queria me forçar a falar. era esperta como um coelho e, já que não havia conseguido me fazer conversar, encontrara um jeito de contornar o obstáculo. Além disso – e para melhorar ainda mais meu humor – sua melhor amiga me olhava com um sorrisinho maligno e pura curiosidade brilhando nos atentos olhos azuis. Quase podia senti-la farejando ao meu redor em busca de informações para piadinhas novas e incompreensíveis.
Realmente não sabia se gostava dela. Provavelmente não.
O sorriso dela se alargou quando me ouviu limpar a garganta para começar a falar.
Muito, muito provavelmente não gostava.
- A I é uma empresa de tecnologia de ponta. Fabrica diversos aparelhos de ultima geração e uma parte da companhia se dedica a desenvolver invenções novas – repeti o slogan idiota roboticamente. – Vendemos nossos produtos principalmente para o exército, mas outros itens menos, digamos... perigosos... são vendidos para empresas de segurança em todo mundo. Eu me ocupo em fiscalizar as filiais internacionais. Nada muito emocionante, senhora – e aqui forcei outro sorriso.
- Como não? Isso parece ser muito interessante! – contestou Vafara, sorrindo animada. - Inventar algo, ainda mais para nossas forças armadas! Cuidar de um projeto é tão emocionante. Era isso de que mais gostávamos, não é mesmo, John? - sorriu para o marido.
- Isso mesmo, querida - concordou, mais contido nas palavras, porém em seu rosto estampava uma expressão era tão saudosista quanto ao da esposa.
Havia também um sorriso hipnotizado ao olhar para companheira, o que gerou em mim uma reação bem esquisita. O resto da minha paciência terminou de evaporar ao mesmo tempo em que meu mau humor chegava a se tornar insuportável até mesmo para mim graças a pontada de ressentimento que sentia por não poder abraçar minha própria .
Sabia que essa não era nem de longe a intenção de Vafara e John , mas parecia que estavam esfregando a felicidade em meu nariz justamente quando eu estava na pior.
Além de um marshmallow, estava me tornando um paranoico.
- Interessante como você parece estar sempre rodeada de homens com autoridade, né, ? - Avalon falou, mal conseguindo disfarçar o sorriso malicioso. - Primeiro Spencer, depois Leo.
O sangue que apenas borbulhava de maneira incômoda em minhas veias, agora parecia lava, queimando com raiva e trazendo pontinhos de luz em frente ao meus olhos. Estava literalmente enxergando vermelho e precisei de alguns segundos para voltar a realidade. O que me surpreendeu mais, contudo, não foi a facilidade com que meu controle de ferro esfarelou e quão rapidamente estive a ponto de socar alguma coisa - preferencialmente certa magricela -, mas sim o fato de que não foi meu exercício de respiração que me trouxe de volta. Foi e seu tom suave com o que me acostumara, minha âncora mesmo quando ela estava de mal-humor:
- Não sei, Ava. Talvez seja alguma coisa em comum que temos, não é mesmo? Afinal, você também adora um tipo de uniforme - terminou, atropelando as palavras e praticamente estalando a língua enquanto seus olhos soltavam chispas de raiva e suas mãos retorciam a parte da manga cumprida e fofinha de seu moletom branco que sobrava nas pontas.
As palavras me foram uma incógnita, mas pareceram ter o efeito desejado, pois a confeiteira baixinha engoliu em seco e fechou a boca, o que eu e minha inexistente paciência agradecemos imensamente.
- Como assim uniforme, Ava, querida? - minha sogra franziu o cenho, ainda mais interessada do que antes. - Você está namorando e não nos contou? - de novo trocou um olhar rápido com marido, mas dessa vez estava claramente decepcionada.
A reação de John foi imediata. Ele se endireitou no sofá, a mão sobre o ombro da esposa se apertou, trazendo-a para mais perto em um claro gesto de proteção.
- Maçãzinha, você mentiu para nós?
Apesar do apelido carinhoso, estava muito claro por seu tom rígido que entristecer a matriarca não era algo aceitável na casa dos .
- Não! - quase saltou do sofá em sua ansiedade para negar. - Eu não menti, papa. Jamais mentiria - sacudiu a cabeça repetidas vezes. - São apenas bobeiras que a - lançou um olhar ameaçador para a amiga - inventa de vez em quando. Você sabe, Spence, como daquela vez em que ela podia jurar que você tinha uma paixonite pela sua colega. Como é o nome dela mesmo? Você sabe, a loira - estalou os dedos tentando lembrar o nome da tal mulher.
Estava claro que Appleby queria mudar de assunto, assim como também ficou muito óbvio que o doutor sabichão não queria que aquele fosse o novo tópico quando rapidamente desconversou:
- Ah, sim. É. Uma pequena maluquice da minha prima favorita - forçou uma risada e aparentemente estava tão desesperado para sair do holofote que se virou para mim, mesmo com toda a animosidade que já havia demonstrado, e perguntou: - Me pergunto se usamos algumas de suas tecnologias no FBI.
- As vendas são confidenciais por contrato - respondi por reflexo, nem mesmo tendo tempo para tentar amenizar a rispidez nas palavras.
Um silêncio desconfortável pesou na sala, o que fez com que eu me sentisse um imbecil ainda maior. E por um segundo ponderei como dois opostos podiam conviver tão lado a lado quando eu covardemente evitei olhar para minha namorada e para a decepção que por certo estaria em seus olhos e, ao mesmo tempo, juntei coragem e pisei no meu orgulho para tentar remendar a besteira que havia feito:
- Digo - limpei a garganta. - Provavelmente algum de nossos produtos estejam no FBI, mas realmente não posso falar sobre isso.
Fiquei bastante orgulhoso de mim mesmo por contornar a situação. Isso, é claro, até o imbecil abrir a boca de novo:
- Ah, sim. Tem razão. A maioria desses contratos que envolvem a venda de material militar ou para as forças de segurança em geral são protegidos pelos mais diversos níveis de confidencialidade. Não me admira que vocês estejam legalmente amordaçados. O procedimento é bem comum - falava como quem não queria nada, despreocupadamente discorrendo sobre mais um assunto do qual ele aparentemente tudo sabia, mas eu não havia treinado tanto para ser enganado tão facilmente.
Sentia a armadilha se aproximando. Spencer Maravilha podia ser o cara mais inteligente da Terra, mas lhe faltava a malícia que Chase tinha e que lhe permitia dobrar qualquer pessoa.
- Engraçado, entretanto, como, de novo praticamente todos que trabalham nesse ramo se mostram tão defensivos quando entramos nesse assunto - franziu o cenho em uma falsa careta de confusão e soube que havia terminado de arquitetar sua armadilha. - Mas preciso acrescentar que você, , é certamente o mais defensivo deles. Me pergunto o porquê.
E ali estava o bote.



Caítulo 23

Gostaria de poder dizer que não reagi, que minha percepção prévia de que ele tramava algo havia sido o suficiente para me dar uma carta na manga, um trunfo para que eu saísse por cima e como o homem melhor entre nós dois.
Não foi o que aconteceu. Não foi nem de perto o que aconteceu.
Quando entendi as implicações por detrás de suas palavras, toda irritação que vinha sentindo desde o começo da porra daquele dia infernal - que vinha se acumulando desde o instante em que fui obrigado a assistir minha namorada se jogando nos braços de outro cara -, e que achava que estava no limite do que julgava ser possível, multiplicou-se. Dobrou de tamanho até que de novo me senti em um desenhinho, dessa vez, entretanto, era aquele enraivecido que soltava fumaça pelos ouvidos. Talvez a única coisa que me diferenciava desse ser fictício, era o fato de que expressávamos nossa raiva de maneiras diferentes. Ao invés das cuspir fogo, entorpecia-me. Senti todo meu rosto se contrair até não restar absolutamente nada, nenhuma única emoção caso precisasse fazer o inominável.
Nada além da vontade de redirecionar minha raiva para que pudesse fazer uso dela da melhor maneira possível, da maneira mais letal necessária.
Nem mesmo reconheci minha própria voz ao voltar a falar:
- Está insinuado que estou tentando proteger alguma atividade ilegal? Que a empresa da minha família está envolvida em alguma merda de algum crime e que por isso eu estou na defensiva, como você colocou? Acha que estamos vendendo armas para a porra de terroristas, é isso?
Esqueça a analogia sobre uma agulha caindo no chão, o ar pesou tanto que podia ouvir a respiração pesada dos outros ocupantes da sala. Sabia que eles deveriam estar horrorizados por meu comportamento brutalmente vulgar, porém não podia fazer outra coisa senão manter minha atenção em meu alvo, pronto para atacar.
Ah! E como eu queria me livrar daquele encosto. Não poderia ser nada muito definitivo, pois jamais me perdoaria. Só um soco para quebrar todos os seus dentes e lhe impedir de falar ininterruptamente como ele fazia todo o maldito tempo.
É, aquela definitivamente era uma ideia interessante. Perdido que estava encarando o alvo e sua expressão meio chocada, não percebi minha namorada se levantando até que ela estivesse entre nós dois.
- Amor?
Levantei a cabeça para encará-la, seus olhos violeta brilhando de apreensão. De novo foi sua voz suave que me trouxe de volta para realidade. Foi como apertar um interruptor e a razão voltou em um estalo. Relaxei os punhos cerrados e já tinha uma desculpa na ponta da língua, mas John foi mais rápido e felizmente não para me expulsar de sua casa:
- Acho que estamos todos cansados.Talvez um pouco no limite. Melhor irmos dormir antes que alguém diga alguma coisa que não possa ser esquecida.
- Excelente ideia!
A exclamação animada de Avalon foi a última coisa que ouvi antes de deixar, apaticamente, que minha loira me puxasse escada assim. A porta se fechando com força e depois o barulho da chave quase me fizeram pular no lugar e fechei os olhos com pesar, já imaginando a merda que estava prestes a bater no ventilador.
- Que diabos, ? - praticamente gritou, dando a volta para fincar na minha frente. - Que porra foi aquela? Você está esquisito desde hoje de manhã e deixei que ficasse todo estressadinho. Pensei que o tempo iria amaçar essa sua TPM ridícula, mas só piorou. Olha - respirou fundo e passou a mão sobre o rosto. - Se você quer ficar irritado por nenhum motivo racional e passar o dia inteiro de saco cheio, isso é problema seu. Nem eu - ergueu o dedo em riste e o sacudiu - nem ninguém da minha família é obrigado a aguentar esse comportamento ridículo.
Sabia que ela estava completamente certa enquanto eu, completamente errado, mas meu gênio conseguiu levar o melhor em uma batalha rápida com minha consciência e, mais veloz ainda, foi minha língua, que já expelia um pouco do veneno que estava sentindo antes mesmo que me desse conta:
- Ah sim - sibilei devagar, franzindo o cenho, de repente tão bravo quanto ela estava. - Não precisa ficar repetindo, - cuspi seu sobrenome como se fosse um insulto. - Já ficou bem claro quão importante seu Spencer Maravilha é.
- Meu.. meu o quê? - tombou a cabeça para o lado, de repente confusa demais para sequer se lembrar de ficar com raiva. - Spencer o quê?
- Não se faça de desentendida - não sabia como as palavras saíam por entre meus dentes trincados. - Você sabe muito bem sobre o que eu estou falando - franzi o cenho de maneira zombeteira. - Ou talvez você não saiba mesmo, mas não se preocupe. É só perguntar para o incrível Spencer! Tenho certeza que o garoto maravilha vai resolver tudo, como sempre.
- O quê? - engasgou em um gritinho. - Você perdeu a sanidade? Porque está falando e parecendo um grande lunático! E eu estou ficando sem paciência, entendeu? - estalou os dedos na frente do meu rosto, quase histérica. - Sai dessa. E sai dessa agora. Agora. - Ah, sim! Desculpe. Esqueci que você está acostumado com um nível mais rápido, um nível gênio que resolve tudo no mesmo segundo. Uma merda de um gêniozinho que resolve tudo sempre, né? Pois então fique sabendo que errou de homem, - imitei o jeito como o primo imbecil falava. - O que você está querendo ficou lá embaixo, junto com todos os sorrisos imbecis que você mandou para ele.
Respirei fundo em uma pequena batalha para controlar tanto minha respiração descompassada, quanto a raiva que não sabia que poderia me preencher de maneira tão insana. De novo podia enxergar vermelho e o fato de ficar me olhando confusa só me fazia ter ainda mais irado.
O vermelho ficava mais denso e vívido a cada segundo, a cada mísero instante em que o silêncio pesava entre nós e parecia aumentar uma distância invisível em mais centenas de quilômetros. Queria que ela reagisse, queria que usasse seu jeito de fada com uma varinha mágica e falasse qualquer coisa para fazer tudo desaparecer, consertar toda a merda que eu havia ajudado a construir. Um pouco de mágica para fazer sumir toda a raiva que estava sentindo.
Só queria que a sensação de estar afogando sumisse, mas só continuava parada ali, encarando-me com o cenho franzido por vários intermináveis segundos. Estava tão concentrada em mim quanto eu nela, e talvez por isso eu tenha enxergado o exato segundo em que o brilho de confusão foi engolfado pelo entendimento.
Ela arregalou os bonitos olhos violeta e sua boca se abriu um tanto antes de voltar a fechá-la. Abrindo e fechando repetidamente como um peixe antes de se recuperar, em partes, para engasgar:
- Espera - sacudiu a cabeça, espalmando a mão levantada. - Espera um pouco. Não, não, não. Espera um pouco. Espera. Um. Pouco.
Se as repetições sem sentido não fossem o bastante, o jeito como ela logo depois jogou a cabeça para trás e começou a gargalhar histericamente teria sido um bom indicativo de que ela havia perdido a lucidez. E sei que era muito egoísta e extremamente infantil da minha parte, porém o jeito como ela ria, tão divertida, fazia com que ficasse com ainda mais raiva.
Não era justo que eu tivesse todos os motivos para estar envolto em todos aqueles sentimentos ruins enquanto ela, sem qualquer razão aparente, divertia-se às minhas custas. Era por isso que detestava sentir, era por isso que evitava sentimentos, era por isso qu-
- Você - apontou para mim, a palavra aos trancos e em meio a lágrimas de riso. - Você está com ciúme do Spencer! - inclinou-se para frente, colocando as mãos sobre os joelhos, rindo tanto que mal se aguentava. - Ai meu Deus!
Nunca me senti tão idiota quanto no dia em que tive que esperar, literalmente de braços cruzados e tentando futilmente manter o resto do meu orgulho e minhas costas eretas, terminar seu ataque de risos. Agora, além de frustrando e com raiva, sentia também a quentura terrível que a humilhação trazia.
- Ai meu Deus - endireitou-se, mas ainda sacudia a mão espalmada. - Espera um pouco. Só um segundo - passou o indicador por debaixo dos olhos para limpar as lágrimas. - Ai meu Deus.
- Terminou? - dessa vez apertava os dentes um contra o outro com tanta força que estava começando a ficar com dor de cabeça.
- Ok, ok - sacudiu a cabeça e ao menos se esforçou para respirar fundo e conter uma nova gargalhada. - Desculpe. Ai - abanou-se com as duas mãos. - Desculpe. Isso é sério. Ok - fechou a mão em um punho e soltou o ar em um soprão antes de finalmente se controlar o suficiente para me olhar nos olhos.
- Não estou vendo a graça, .
Ela pareceu ficar sóbria repentinamente, colocando a mão na cintura e inclinando o queixo bem desenhado para cima em sinal de desafio.
- Primeiro de tudo - de novo o dedo em riste. - Não me chame de e nem de . Pare com essas bobeiras. Não é certo e você sabe. Arqueei a sobrancelha, esperando que ela continuasse, pois não queria mentir e negar que chamá-la daquele jeito realmente me deixava com um gosto esquisito na boca e também porque não queria fornecer ainda mais material para que ela gargalhasse.
- Agora - abaixou a mão, abandonando também um pouco a posição de ataque. - Me diga uma coisa e seja honesto, - seus olhos e sua voz se suavizaram incrivelmente. - Você está com ciúme do Spencer?
Pisquei devagar.
Ciúme?
Por um segundo aquela palavra pareceu tão estranha que pensei que tivesse falando em outra língua. Ao finalmente compreender que sim, ela tinha usado o bom e compreensível inglês, tive problemas foi com a ideia por trás do vocábulo, seu significado me era inédito.
Não era de se surpreender, portanto, que tenha gastado bem mais do que o normal para processar o que tentava me dizer. E, quando finalmente o fiz, não reagi com uma resposta elaborada que justificasse todo o tempo pensando, mas sim com um bobo, sem fôlego e bastante incrédulo:
- Ciúme? O quê? Claro que não!
Eu não estava com ciúmes. Aliás, eu não sentia ciúme. Nunca senti ciúme em toda minha vida. Então ela definitivamente estava enganada. Não sentia ciúme agora. O que sentia era vontade de estrangular o filho da mãe de quem minha namorada falava, tocava e olhava com tanto carinho. Não queria nada além de quebrar cada um dos dedos da mão que pousava no ombros de e todos os dentes do cara que sentava perto o suficiente dela para sentir seu perfume gostoso e ser atingido por aquela felicidade calorosa que ela irradiava.
Como já disse, nada muito definitivo. Apenas doloroso o suficiente para que ele se lembrasse da sensação a cada vez que pensasse em chegar perto de , ou doloroso o suficiente para que sempre se lembrasse - perto dela ou não.
Simples, pois. Nada de ciúme. Não sentia ciúme, exceto que…
Exceto que era ciúme…
Apesar de às vezes covarde, sempre fui brutalmente honesto comigo e podia não ter percebido antes, mas, agora que a verdade tinha sido literalmente esfregada na minha cara, não podia negá-la. E aquela constatação me acertou forte como um coice de cavalo no peito, fazendo com que eu perdesse tanto o fôlego quanto as palavras.
E é claro que a baixinha iria usar essa pausa como brecha para voltar a falar:
- Ah, sim. Vejo que você está no processo de aceitação - sorriu de maneira condescendente. - Reconheço esse olhar. Muitos de meus pacientes têm exatamente esse olhar quando acabam de reconhecer as verdades que eu tento lhes explicar. Tudo bem, . Nós vamos passar por isso agora que você finalmente entendeu.
Senti minhas mãos inconscientemente se fecharem em punhos enquanto a raiva lentamente voltava. Tudo bem. Com a raiva eu sabia lidar. Raiva era simples e fácil, tão diferente do ciúme.
- Não fale comigo como se eu fosse um de seus pacientes.
- Ah! Não se preocupe. Não sonharia em fazer algo do tipo, afinal, meus pacientes são bem menos ariscos.
Havia um sorrisinho no canto de seus lábios, mas não foi o suficiente para que não me sentisse parcialmente ofendido.
- Arisco? E como exatamente a culpa é minha? Até agora tudo que você fez foi ficar de gracinhas com o Spencer Maravilha e riu da minha cara.
Ela tombou a cabeça para o lado, seus bonitos cabelos dourados descendo como uma pequena cascata de ouro líquido. Minha mão coçou de vontade de tocá-los, mesmo naquele momento.
- Você soa como uma criança quando fala assim, sabia? - seu tom gentil enganava as palavras bruscas. - Então vou te explicar isso de maneira simples - deu um passo para frente e pousou as mãos sobre meu peito. - , amor, não há absolutamente nenhum motivo para você ter ciúme de Spencer. Nós crescemos juntos. Ele é como meu irmão. Só isso - deslizou as mãos em um carinho até alcançar meus ombros e depois para minha nuca, onde começou a fazer carinho. - Agora você pode desamarrar essa careta e podemos só… ficar bem? Estou cansada de ficar nessa guerra fria.
A convicção em suas palavras ajudou a amaciar meu mau humor e, sendo honesto, também diminuiu um pouco do pânico cego que o ciúme estava começando a me fazer sentir. O que ficou intocável, entretanto, foi meu desgosto pelo magricela.
- Irmãos?
assentiu, mordendo o lábio para provavelmente evitar um sorriso e ainda acariciando minha nuca e o cabelo que havia por ali.
- Nós não somos como irmãos - murmurei bobamente, sentindo-me como a criança que ela dizia que eu era.
- Não - sacudiu a cabeça, já não mais tentando esconder sua diversão. - Definitivamente nada de irmãos. Agora será que você pode me dar um beijo para que possamos ter uma boa reconciliação?
Grunhindo, abaixei a cabeça para atender seu pedido. Pretendia que fosse uma coisa mais calma, ou, no máximo, uma sessão de amasso quente, porém, assim que senti a maciez de sua boca contra minha, eu estava perdido.
Tudo sobre como aquele não era o lugar para isso sumiu de minha mente, substituído pela fome enlouquecedora. Uma de minhas mãos procurou aquela bunda gostosa e apertou com força, puxando, em conjunto com a mão esquerda em seu pescoço, minha namorada para mais perto de mim. O beijo aumentou de intensidade e o novo grunhido que soltei quando minha ereção se acomodou no meio da suas pernas foi abafado contra sua boca.
Um roçar tão gostoso.
Dei um último apertão naquela delicia de bunda antes de descê-la para sua coxa e fazer pressão para que colocasse a perna ao redor de minha cintura. A nova posição forneceu um ângulo melhor e dessa vez foi quem respirou mais pesado quando estoquei para frente. Senti sua mão em meu cabelo, puxando para trás e deixei que ela afastasse a boca da minha para pegar o fôlego que precisava. Aproveitando o pequeno momento de lucidez em meio a nuvem de desejo que obscurecia todo o resto que não o pensamento enfático de ter minha mulher sob mim, dei um passo para trás e tirei minha camisa, imediatamente seguida pelo resto de minhas roupas. Felizmente ela entendeu a ideia e também se despiu. Sem tirar os olhos dela, dei alguns passos para trás e tateei instintivamente a parede até encontrar o interruptor e apagar a luz. Essa noite queria ver minha namorada sob os reflexos de luz da lareira. Se é que era possível, ela ficava ainda mais magnífica daquele jeito e, assim que o quarto escureceu e pude vê-la nua parcialmente encoberta pelas sombras, perdi o fôlego. Não sendo concebível fazer qualquer outra coisa, me vi andando para ela. Seu olhar se abaixou rapidamente para uma espiada não muito discreta para meu pau e ele se endureceu até ficar dolorido pelo necessidade.
Em dois passos a tinha outra vez em meus braços e minha boca de volta na sua. Levantei-a no colo e senti sua umidade deslizar por meu pau. Estava com tanto tesão que temi acabar com a brincadeira antes de sequer começar, ejaculando precocemente como um adolescente inexperiente - de novo um sentimento inédito que aparentemente só conseguia despertar.
Dei a volta sentando na cama com ela no meu colo. Minha cabeça zumbia e o único pensamento que restava era o desejo de me enterrar nela até que não restasse em sua mente nenhum pensamento sobre qualquer outro homem. voltou a apoiar as mãos em meus ombros e, com um sorriso provocante, levantou-se devagar e se abaixou de novo, usando sua lubrificação para deslizar sua büceta por toda minha ereção.
Minha respiração saiu de uma vez em uma lufada pesada e eu ficava cada vez mais tonto a cada arrebitada de bunda que ela dava, a cada nova provocada. Apertei-a contra mim, tentando guiá-la para onde a queria. Eu apenas… apenas precisava estar dentro dela. Parecia ter se passado uma eternidade desde que havia sentido quão apertadinha e quente ela era.
Fui impedido por um novo apertão em meu cabelo, e levantei a cabeça para encontrar seu sorriso diabólico. Estiquei o pescoço para alcançar aqueles lábios inchados e conseguir mais um beijo firme.
Dessa vez ela se separou para abaixar a cabeça, ainda se mexendo devagar e gostoso, e colocou a boca contra meu ouvido.
- Só você, amor - sussurrou para logo sugar meu lóbulo. - Só você.
Era como se ela estivesse espremendo cada gota de sanidade para fora de mim.
- Você… você tem… - levantei a mão para sua coxa, tentando agarrar alguma realidade, meu controle se esfarelando de novo graças a pequena feiticeira em meus braços. - Parar. Você… tem que parar. Eu… preciso de um segundo. Só um segundo para…
Obviamente ela não me ouviu - quando ela fazia isso? - e agora, além de mexer e de beijar meu pescoço, minha namorada também passara a acariciar meu cabelo. Soltei o ar pesadamente de novo e fechei os olhos, o que era a única saída para conseguir me concentrar o suficiente, porém uma grande prova, uma vez que ao me privar da visão, todos os outros sentidos se aguçaram.
- Você… precisa… parar.
Era como aumentar o volume. As sensações aumentaram. Sua boca sugava com mais força. Suas mãos se apertava mais meu ombro e deslizava com mais força por meu cabelo. Sua büceta parecia mais molhada.
Cerrei as pálpebras com ainda mais força… para encontrar forças…
Caminhar em brasas para chegar ao paraíso - literalmente.
Continuaria perdido não fosse a mordida que levei no pescoço. O jeito meio primitivo daquilo me fez abrir as pálpebras em um estalo e percebi que já era o suficiente.
- Chega!
Com um movimento rápido girei o corpo, levando-a junto. soltou um gritinho baixo de susto quando suas costas bateram no colhão macio. Foi a minha vez de deixar um sorriso lento escapar.
- Não, não, - sacudi a cabeça enquanto levantava o braço sobre sua cabeça para pegar minha carteira, tateando às cegas até encontrar uma das camisinhas que deixava ali dentro. - Sou eu quem está no comando - abaixei para morder seu lábio inferior em uma pequena comemoração ao encontrar o que procurava. - Você sabe disso.
Suas unhas desceram por minhas costas e me afastei somente suficiente para abrir o preservativo e colocá-lo. Ajoelhei-me entre suas pernas, tirando um segundo só para observar o jeito incrível como sua pele reluzia graças à luz que vinha da lareira e como ela ficava ainda mais bonita com aquele sorriso preguiçoso de quem antecipava o prazer que viria, os cabelos bagunçados sobre o travesseiro, as pernas abertas que me deixavam ver sua excitação escorrer pela coxa.
Levei a mão ao meu pau e a deslizei por ele, observando seu peito arfando. Girei os dedos sobre a cabeçinha e desci de novo para base, dando ali um último aperto para me aliviar um pouco ao observar seus olhos violeta meio escondidos sob pálpebras semi-cerradas. Como uma masturbada rápida obviamente não era o suficiente e muito menos o que eu queria, coloquei o preservativo e me inclinei para frente, apoiando o antebraço esquerdo ao lado de sua cintura e mantendo meu peso ali enquanto levantava a outra mão para duas de minhas coisas favoritas no mundo.
- Tão bonitos - acariciei os mamilos duros que apontavam para cima como se exigissem atenção e recebi um ofegar como resposta. - Tão, tão bonitos - abaixei a cabeça e passei a língua lentamente por um e depois pelo outro, e dessa vez ganhei um gemido estrangulado. - Tão gordinhos - suguei um deles para dentro de minha boca e ali fiquei por alguns instantes, apenas mudando para o próximo quando já se contorcia tanto embaixo de mim que sabia que a sensibilidade ali estaria se aproximando da dor.
E de novo esperei até que o prazer fosse demais para parar.
- , por favor - ofegou.
Passei a língua uma última vez por aquele botãozinho gordo antes de me levantar e lhe beijar mais uma vez. Passei a mão por seu cabelo e lhe dei mais um beijo.
- Eu sei, minha loira. Eu sei - abaixei a mão, sentindo sua umidade em meus dedos e rodando o polegar sobre seu clitóris um pouco para logo depois circular minha ereção com os dedos e me guiar para dentro dela.
Tão apertada.
Porra.
Sempre tão apertada. Quente. E sempre tão… gostosa.
Trouxe o quadril para trás e depois para frente, estocando devagar, mesmo quando a excitação rugia por minhas veias tão rápido. Mantinha o controle porque aquele não era o momento para rápido e duro. Não. Seria lento e profundo para que ela lembrasse durante cada segundo quem estava fazendo com que ela se sentisse assim.
Quem esteve dentro dela ontem, quem estava dentro dela agora e, principalmente, quem estaria dentro dela amanhã.
Eu.
. Não um nerdizinho idiota e subnutrido.
Minha mulher soltou um gemido mais alto, fazendo com que percebesse que eu havia inconscientemente aumentado a velocidade e a força das estocadas. Na mesma hora diminui o movimento.
- Não! Não pare! - seu gritinho desesperado foi alto o suficiente para que sentisse a necessidade de cobrir sua boca com a mão.
- Shiu - sussurrei. - Eu sei que é bom, - minhas palavras saíam meio roucas enquanto o prazer rolava devagar por mim. - Tão bom. Agora goza para mim.
Voltei a massagear seu clitóris firme e repetidamente, tão rápido quanto as estocadas eram lentas. Um contraste calculado para enlouquecer minha namorada e a levar direto a um orgasmo que lhe fizesse revirar os olhos de prazer. Mantendo uma das mãos sobre seus lábios para abafar os sons dela que cada vez ficavam mais altos, criei um ritmo.
Estocadas lentas enquanto esfregava seu botãozinho rápido e duro.
O vermelho em suas bochechas se acentuava e sua respiração saía pesada e descompassada. Pelo jeito enlouquecedor como sua büceta me apertava mais forte e mais frequentemente a cada segundo, sabia que ela quase pronta, então abaixei a cabeça e encostei a boca em sua orelha, pois sabia muito bem como gostava quando eu falava sujo com ela:
- Isso. Isso mesmo. Agora goza para mim, . Só para mim. Sempre para mim - as sensações eram tão boas que tive que me esforçar bastante para encontrar alguma coerência e colocá-la em palavras. - Você sabe o quanto eu gosto de sentir você gozando ao meu redor. Mesmo com a camisinha ali, eu sinto seu calor, sua maciez. Não há nada que eu prefira fazer a não ser te comer - cada palavra era pontuada com nova estocada ou um pequeno beliscão em seu clitóris. - Devagar, rápido, na nossa cama, contra a parede ou mesmo na casa dos seus pais. Porque não importa o lugar, você sempre quer dar para mim - suguei a parte sensível atrás de sua orelha. - Mas não se preocupe. Não afeta só você. Eu também quero te comer, . O tempo todo.
E aquelas palavras foram o empurrão final para que ela gozasse. Ela arqueou as costas e felizmente mordeu minha mão, porque estava tão descontrolado que por certo não conseguiria acompanhar seus movimentos para continuar servindo como uma mordaça e abafar os gritinhos que ela sempre soltava quando eu a levava para nosso paraíso. Observei-a revirar os olhos violeta embaçados pelo prazer. Aquela visão arrebentou o último laço de sanidade que ainda me prendia, o que me fez aumentar as estocadas, buscando meu próprio alívio.
Fechei os olhos com força ao sentir as ondas exultantes rolarem por minhas veias tão forte e tão doce que me vi agarrando o travesseiro com força e abaixando a cabeça até seu pescoço para mascarar meu urro de contentamento.
Minha mulher estava na minha cama e em meus braços. Aquilo acalmou o monstro que estava afiando as garras em meu peito desde o começo do dia. Levantei da cama, recebendo um resmungo sonolento de minha namorada, e fui ao banheiro para me livrar do preservativo. Logo depois voltei para o lugar de onde nunca gostaria de ter saído. Deitei de costas e puxei seu corpo mole para mim e o lençol sobre nós dois.
- Hmmm… - murmurou, dando um beijo em meu ombro. - Isso foi muito bom.
Sorri, acariciando seu cabelo meio úmido de suor.
- Amor?
- Sim? - resmunguei baixinho, ainda meio perdido na sensação boa de conforto que deslizar os dedos por seus fios macios me proporcionava.
- Você sabe que para mim é sempre você.
Meu coração se expandiu até que pensei que não fosse caber em meu peito, até que minha garganta secasse e as palavras sumissem.
Trouxe para ainda mais perto e a deitei sobre mim. Depois de alguns segundos, quando finalmente consegui me recompor o suficiente para responder, olhei para baixo, mas já a encontrei adormecida. Isso, entretanto, não impediu que eu falasse, tão sem fôlego quanto me sentia:
- E para mim é sempre você, .
Dormi a noite inteira sem qualquer perturbação e só despertei depois da primeira batida na porta.
- , , vamos levantar - a voz de minha sogra soou do outro lado da madeira. - A vida continua mesmo depois da diversão de ontem à noite - e aqui houve uma risadinha esperta que me fez corar de leve. - É Ação de Graças, queridos. O almoço será servido daqui uma hora. Deixei os dois amantes… quero dizer, os dois amados, dormirem a manhã inteira - bateu na madeira de novo. - ? ?
- Já vamos, mère - virou a cabeça para o lado para gritar a resposta e depois voltou a pressionar a testa contra meu peito, usando as mãos para esconder o rosto. - Ai que vergonha.
- Não tem problema - abaixei a cabeça para dar um beijo casto em sua testa. - Vem. Vamos nos levantar antes que eu mude de ideia e sua mãe resolva arrombar a porta para descobrir o porquê da demora - tremi involuntariamente com a mera ideia. - Não sei como aguentaríamos as indiretas.
- Já conhece bem a fera, hein - ela soltou uma gargalhada e jogou o cobertor para longe, levantando-se da cama. - Estou impressionada.
Esperei mais um pouco para lhe dar tempo o suficiente para tomar um banho. Só quando ela saiu enrolada em uma toalha e com os cabelos molhados foi que me levantei, ignorando a boa e velha ereção matinal e mantendo meus olhos longe de para não perder o foco do que estava fazendo. Infelizmente não consegui bloquear o cheiro de seu perfume ao passar por ela.
Bom… um banho gelado seria necessário.
Também saí do banheiro usando uma toalha e me surpreendi ao encontrar uma muda de roupa minha já sobre a cama. Entendendo a dica, vesti o que minha namorada havia separado e, assim que terminei de vestir a calça jeans e o casaco de manga cumprida verde escuro, a porta do quarto se abriu e apareceu em uma calça preta meio rasgada, um pullover cinza fofinho e botas perfeitas para o clima de Montana. As duas canecas em suas mãos acentuavam ainda mais o sentimento de conforto que ela passava agora.
- Aqui - estendeu uma das canecas para mim. - Sei que você prefere café, mas papai insistiu que chocolate quente era melhor para aquecer os ossos e pensei que era melhor do que nada.
Ela sorriu, tombando um pouco a cabeça para o lado e me vi derretendo como um dos mashmallows no copo que aceitava.
- Obrigado - agradeci antes de tomar um gole.
- Vem - segurou minha mão livre. - Vamos descer antes que mandem Ava, ou pior ainda, mère de novo para nos chamar.
Assim que colocamos os pés no final da escada, Vafara chamou pela filha e me vi encarando o vazio sem saber o que fazer ou para onde deveria ir até que John apareceu segundos depois. E de repente preferia estar sozinho.
- - aproximou-se.
Engoli em seco, subitamente mais tenso sob o olhar severo de meu sogro do que a última vez que estivera sob a mira de uma arma. Ainda mais quando eu estava errado.
- Senhor - limpei a garganta e respirei fundo para continuar. - Sei que me comportei como um menino ontem e desrespeitei sua casa, infelizmente não tenho uma justificativa válida para isso. Tudo que posso fazer é pedir desculpas e garantir que tal comportamento jamais se repetirá.
Analisou-me mais um momento de maneira rígida, o silêncio pesava como chumbo sobre os ombros que mantinha eretos para não ficar em completa desvantagem, mesmo estando errado sabia que não deveria deixar a outra parte cobrir todo o território.
- , me responda uma única coisa - não havia nada do tom de boas-vindas que estivera ali um dia antes. - Você pretende machucar minha filha?
- O quê? - franzi o cenho, chocado. - Claro que não, senhor. Eu jamais faria qualquer coisa desse tipo, senhor.
Outra vez fui objeto de um escrutínio demorado, porém, quando menos esperava, sua pose dura se quebrou e um sorriso satisfeito apareceu em seu rosto.
- Está certo - bateu a mão em meu ombro algumas vezes em apreciação e meus joelhos fracos de alívio quase não suportaram meu peso. - Está certo, filho. Acredito em você. Acredito que vá tratar minha estrelinha do jeito que ela merece. Você parece ser um bom rapaz e todos nós podemos errar de vez enquando desde que dê para tirar uma lição da bagunça que fazemos. Só não podemos tornar essa bagunça irremediável - afastou-se um passo, nunca tirando sua atenção de mim. - O que eu vi ontem foi um jovem que ainda precisa aprender algumas coisas da vida. O que encontro agora é um homem que enxerga seus erros - encolheu os ombros. - É assim que a vida funciona. Estou orgulhoso de você, filho.
Engoli em seco com força. Não sabia ao certo quando foi a última vez que alguém me falara algo do tipo - se é que alguma vez já ouvira essas palavras -, tinha certeza, contudo, de que não sabia descrever o que elas causavam. Decididamente surpresa, mas também algo parecido com uma versão super potente de alívio, era como arrebentar uma corrente que nem sabia que prendia meu pé durante todo esse tempo. Soltei o ar pesadamente, porém mantive minha posição. De repente estava mole demais para me mexer.
- Agora que resolvemos as coisas, você pode parar de falar comigo como se fosse seu comandante do exército, vamos buscar os sanduíches. Talvez possamos ir pescar um pouco no Crystal, o lago ao noroeste da cidade antes do jantar - bateu a mão em minhas costas e deixei que me conduzisse a cozinha. - E, falando nisso, espero que goste de purê de batatas porque eu fiz bastante esse ano.
Todas as outras pessoas da casa estavam se mexendo por ali e logo me vi recebendo uma tarefa que envolvia descascar e cortar as batatas que seriam fritas. Coloquei a caneca com o resto do chocolate de lado na ilha e comecei a tarefa repetitiva que me fora incumbida. Estranhamente aquilo não era tedioso como havia sido nos anos de serviço. As conversas e risadas ao meu redor eram reconfortantes e não podiam ser classificadas de outra maneira senão com um rótulo bem grande escrito “família”. Nem mesmo Appleby e suas constantes piadinhas sem sentido ou os apelidos ainda mais esquisitos que criara podiam me tirar do bom humor que me encontrara. Isso, é claro, até o momento em que, por uma daquelas merdas de coincidências da vida, decidi levar o prato de batatas para o fogão no momento em que Spencer Maravilha resolveu que também havia terminado de temperar a costelinha de porco e que estava pronto para prepará-las. Encontramo-nos no fogão e acho que por um segundo todo movimento na cozinha ficou suspenso enquanto nos encarávamos. Não dissemos nada, mas o entendimento passou por nós tão audível quanto qualquer discurso teria sido. Estava claro que nenhum dos dois suportava o outro, contudo também ficava acertado naquele acordo não-verbal que iriamos ter que nos aguentar, então melhor sermos civilizados. Dessa maneira, nos suportamos enquanto cada um se mexia para cozinhar o que queria. Minha parte era obviamente mais rápida, e não fiquei nem um pouco triste quando terminei de fritar tudo e minha namorada pediu que eu levasse de uma vez para sala de jantar.
Vafara levantou a cabeça, tirando a atenção de sobre as tigelas que organizava, para me encarar quando entrei naquele cômodo. Um brilho esquisito passou rápido por seus olhos violeta.
- . Comment ça va, mon trésor?
- Tout va bien, merci, et vous, belle-mère? - respondi no mesmo instante e observei-a arregalar os olhos, a surpresa logo sendo substituída pelo contentamento.
- Très bien, mon fils. Très bien - sorriu, terminando de arrumar o último prato enquanto eu colocava a vasilha cheia de batata frita num dos espaços vazios.
Sabendo que aquele era um momento tão bom quanto qualquer outro, de novo me vi respirando fundo e deixando que as palavras passassem por minha boca:
- Senhora .
Usei propositalmente a maneira mais formal ao invés do jeito como ela havia pedido para que a chamasse, pois aquele era um momento solene para mim. Passei pelo pai, porém a mãe era tão importante quanto. amava demais a família para que houvesse qualquer chance de eu ter um relacionamento com ela se os me detestassem.
- Eu sinto muito pela maneira inadequada como me comportei ontem e por ter desrespeitado a senhora e o seu marido sob o teto de vocês ao falar daquela maneira com seu sobrinho - inconscientemente endireitei as costas, adotando de novo quase uma posição de sentido. - Não posso me desculpar pelas palavras porque não me arrependo delas, porém tenho consciência de que não deveria ter usado esse tom na casa em que fui tão bem recebido. Sinto muito também se passei uma imagem errônea de agressividade. Por favor, acredite que jamais faria qualquer coisa para prejudicar . Ela é… - e aqui minha voz ficou um tom mais rouco do que o normal. - Ela é muito importante para mim.
Vafara também se endireitou e seus olhos se estreitaram. Imediatamente soube que ela seria mais difícil de convencer do que o marido. Com passos lentos, ela caminhou até ficar na minha frente. Abaixei a cabeça para não deixar de encará-la. Eu podia ser um covarde, mas nem tanto…
Em silêncio, esperei que fizesse as perguntas e o julgamento que quisesse. Talvez eu merecesse alguns tapas. Não sei. Parecia estar tudo bem há um segundo e agora eu me sentia mais intimidado do que quando Dante me olhava quando era criança - aparentemente o casal tinha um poder fenomenal de intimidação. Podia sentir seus olhos violeta vasculhando o mais profundo da minha alma, procurando por algo desconhecido para mim. Seja lá o que fosse, merè pareceu ter encontrado porque repentinamente sua expressão se suavizou e ela levantou a mão macia para acariciar meu rosto.
- Oh, querido - falou tão suave quanto o tom com o que me tornara familiar no dia anterior. - Eu sei. Sei que se importa com ela, talvez mais do que consiga perceber ou admitir. Sei que a adora. Je peux le voir dans tes yeux.


Caítulo 24

- Tem certeza de que não quer ir conosco? - perguntei de novo ao colocar a última meia cuidadosamente enfeitada sobre a lareira de granito no extremo canto esquerdo. - Nós pegamos o avião dia 23 e voltamos dia 27. Vai ser rápido. A viagem, digo, não exatamente o caminho até lá. Você sabe como o aeroporto fica.
Reprimi um tremor ao pensar nas milhares de pessoas andando apressadas de um lado para o outro com pouca preocupação sobre as outras pessoas que também andavam com pressa. Um pequeno e terrível exemplo do caos.
- Sim, . Certeza. Você sabe que eu não posso ficar tanto tempo longe da confeitaria. Feriados de fim de ano são a época mais lucrativa. Mas obrigada - murmurou, o cenho franzido enquanto se equilibrava um pouco para fora da escada a fim de alcançar o canto onde penduraria um arranjo de visco.
- E você não contratou mais ninguém - sacudi a cabeça, ainda informada.
- Quantas vezes vou ter que dizer que entrevistei o namorado da Charlotte, mas o horário de pico coincidia com seu horário de aula! - resmungou, descendo da escada ao colocar a última metragem de fio de luzes douradas ao lado do ramo de folhas.
- Ahan - resmunguei, revirando os olhos.
Felizmente minha melhor amiga estava mais preocupada em abrir a caixa com os enfeites para a pequena árvore que comprara há alguns dias, não prestando, assim, atenção em meu tom condescendente.
- Ofereci alguns turnos esporádicos para ajudar o garoto a conseguir algum dinheiro. Ele disse que talvez possa vir ajudar dia vinte e cinco de manhã - dizendo isso, voltou a se endireitar com vários enfeites nos braços.
Enfeites demais. Então não foi exatamente uma surpresa quando, no primeiro passo que ela deu, três das bolas prateadas caíram no chão e lentamente rolaram para longe. O que foi bem chocante, contudo, foi a maneira como logo em seguida Ava abriu os braços, intencionalmente, deixando todo o resto também se estalar no chão com repetidos barulhos estridentes.
- O qu-
A pergunta morreu em meus lábios quando levantei a vista dos cacos e encontrei o olhar dela quase tão quebrado quanto os pedaços no chão. Observando meus pés, mesmo eles estando cobertos por duas meias grossas e uma bota de cano alto, desviei-me de todos os estilhaços possíveis ao me aproximar de Ava. Ela não se mexeu quando passei o braço por seus ombros e nem esboçou reação quando a guiei a até uma das confortáveis poltronas ao lado da lareira à gás. Sentei ao seu lado por alguns minutos ficamos no mais absoluto silêncio, apenas meio abraçadas - meu braço ainda sobre seus ombros - enquanto o frio da noite de New York soprava gelado do lado de fora da confeitaria. Quando julguei que ela seria capaz de responder, falei:
- Amiga, que aconteceu?
A quietude continuou depois disso por um tempo significante e cheguei a pensar que ficaria sem resposta quando ela sussurrou, ainda olhando para as próprias mãos:
- Elas escorregaram.
- O quê? - franzi o centro, mal ouvindo as palavras, quem dirá entender seu significado. Ela levantou o olhar perdido para mim por um instante e depois abaixou a atenção de novo para os penduricalhos destruídos.
- Os enfeites? Os enfeites escorregaram, é isso?
Ava não respondeu, o olhar ainda grudado na bagunça sob nossos pés. Aquele era o estado mais vulnerável em que já tinha visto minha melhor amiga. A forte, decidida e destemida Avalon desapareceu, deixando apenas uma casca oca em seu lugar e, por mais que quisesse exigir respostas para que pudesse consertar as coisas, sabia que ela não precisava de , mas sim da doutora , então, falei muito suavemente:
- Ava, qual é o problema de elas terem caído? É apenas plástico colorido.
Estava atirando no escuro, pois não fazia nem ideia de qual era o cerne da questão, mas felizmente eu parecia estar indo na direção certa, pois ela levantou a cabeça e me olhou, mesmo que seu olhar fosse uma mistura entre incredulidade e um desalento terrível.
- Elas caíram… e agora não vai ter Natal - sussurrou, o dedo indicador se enroscando na pulseira de prata que sempre estava ao redor de seu pulso esquerdo.
- O quê? - franzi o cenho, mas felizmente consegui reprimir o impulso de me inclinar para frente.
Não podia pressioná-la, principalmente quando ela estava tão fragilizada.
- Ava, querida - sempre muito calma, continuei: - É só plástico. Por que elas impediriam o Natal?
- Era tudo tão perfeito, tão bom e agora não existe mais. Por minha causa… - falava palavras sem sentido, os olhos azuis não mais refletiam a beleza das ondas, mas sim a imensidão profunda e perigosamente obscura que se estendia longe da superfície do mar. - Eu estraguei tudo… eu fugi…
- Fugiu? Fugiu de quê? - ouvi-me perguntando quando suas palavras desconexas abandonaram o pouco de sentido que ainda tinham.
Minha mão em seu ombro se apertou um pouco mais e a sacudi de leve, não tanto para ouvir uma resposta, mas sim para tirá-la do transe horrível em que ela estava, pois claramente minha melhor amiga se perdera em algum lugar do passado e, onde quer que fosse, era terrível. O movimento meio brusco pareceu fazer efeito, pois de novo ela levantou o olhar do chão, virando a cabeça subitamente para mim. A palidez fantasmagórica de seu rosto, entretanto, mostrou que ela ainda estava presa na memória ruim.
- No Natal... no Natal nós costumávamos arrumar tudo na árvore. Juntos. Mas agora elas caíram... escorregaram. Eu estraguei tudo... ele estragou tudo.
- “Ele”? – franzi o cenho, dessa vez me abaixando para encarar melhor seus olhos a fim de encontrar algum entendimento. – Quem é ele, Ava?
Ela se voltou para si, abaixando a cabeça até quase encostar o queixo no peito, repetindo baixinho e sem fôlego alguma coisa que não pude ouvir nem mesmo com a mínima distância que nos separava. O desespero me fazia engasgar ao assistir, impotente, minha amiga se fechando em si mesma tão concretamente que por um segundo temi nunca mais ser capaz de alcançá-la. Sem pensar duas vezes, então, levantei-me do sofá para me agachar na sua frente, segurando firme em seus ombros, sacudi Appleby com tanta força que sua cabeça foi para frente e para trás uma vez e outra.
- Avalon!
- Hey, hey. Que foi? Por que está gritando?
Literalmente caí para trás de alívio, sentando no chão e errando os cacos por apenas alguns centímetros. Nunca pensei que fosse ficar tão feliz ao ouvir minha amiga usando aquele tom impaciente comigo.
- Ava, que diabos aconteceu?
- O quê? – franziu o cenho. – Do que está falando? – olhou ao redor e sua intenção parou na bagunça aos nossos pés, encarando com a surpresa de quem parecia estar vendo aquilo pela primeira vez. – Que aconteceu aqui?
Tive que engolir em seco algumas vezes, literalmente mordendo os cantos de minha boca para impedir as milhares de perguntas que precisava fazer. Foi naquele momento que entendi perfeitamente porque era antiético atender alguém com quem se tinha um relacionamento pessoal. Assistir Avalon entrar em uma espécie de transe foi brutalmente assustador e todo meu conhecimento não serviu de nada. Parte de mim sabia que não deveria ter gritado com ela, minha vontade maior, porém, era interrogá-la até ter respostas, pois sabia que havia algo corroendo minha amiga por dentro, assustando-a cada segundo do seu dia.
Estava claro que alguma coisa havia acontecido, alguma coisa muito ruim. Isso se refletia diariamente em sua vida e eu queria ajudar, queria fazer alguma coisa para consertar, mas era impossível tentar costurar as coisas quando não se enxergava o tecido. Completamente no escuro, sabia que não remendaria nada ao insistir no assunto, acabaria apenas espetando uma de nós no olho com a agulha. Por não querer cegar ninguém, então, empurrei a amiga para longe e me concentrei em ser, naquele momento, apenas a psicóloga – por mais difícil que isso fosse.
- Você... você derrubou as coisas – as palavras saíram mais roucas do que o normal graças ao esforço que tive que fazer para pronunciá-las.
- Oh! – e mais uma vez um brilho dolorido passou por seus olhos, mas foi rápido demais para criar efeitos. – Que pena – deu um sorriso fechado triste, observando os enfeites destruídos. – Eu tinha algum desses desde que abri a confeitaria. Vou ter que comprar novos. Detesto comprar esse tipo de coisa em dezembro. Os preços são abusivos.
Sem que percebesse, minha mão se juntou a sua, fornecendo um pouco de apoio físico, não pela situação de agora, mas pelo quer que seja que tenha acontecido antes de nos conhecermos. Não podendo fazer nada mais por aquele caso, então, voltei a me concentrar no problema atual.
- Isso sem contar todas as milhões de pessoas comprando presentes de última hora, né?
- Terrível – fingiu um pequeno estremecimento para enfatizar sua opinião.
- Não se preocupe. Para isso nós temos solução fácil.
Felizmente ela não pegou a indireta que deixei escapar sem querer.
- Solução?
- Vou trazer alguns enfeites para você. Presente meu – franzi o cenho por um segundo. – Bom, na verdade, presente de .
- O quê? Como Leo veio parar nessa conversa? Acho que esse relacionamento não está muito saudável, hein. Não pode passar cinco minutos sem falar do seu macho – provocou com um sorriso ao se levantar para buscar a vassoura encostada não muito longe dali.
- Primeiramente – levantei o dedo em riste, também me mexendo para buscar o lixo em que jogaríamos depois que Avalon terminasse de juntar a sujeira. – Por que essa obsessão em se referir ao meu namorado com o termo “macho”? Você adora falar isso. É meio assustador, sabe?
Ava riu, sacudindo a cabeça enquanto varia os cacos.
- E em segundo lugar, tem tudo a ver com a conversa. Ele está entupindo nossa casa com dezenas de enfeites. Sério. Todo dia ele chega com algum globo de neve, Papai Noel de louça, guirlandas e outras coisas. Na árvore já não cabe mais nada. Acho que ele comprou três estrelas diferentes.
- É sério isso? – parou até mesmo de varrer para perguntar. – Leo não tem cara de quem abraça tão fortemente o espírito natalino.
- Pois é – assenti.
E aquele era outro tópico que sabia que mal conseguia arranhar a superfície. Não tinha como ter certeza por que gostava tanto de comprar lembranças natalinas. Talvez ele gostasse do Natal ainda mais do que o resto de nós mortais, porém alguma coisa me dizia que o verdadeiro motivo era mais profundo e tinha a ver com sua infância. Assim como Ava, contudo, sabia que não se abriria tão fácil, mesmo que perguntasse as perguntas certas, tudo o que podia fazer, pois, era esperar até que eles estivessem prontos para me contar.
- Preciso ver isso.
O comentário animado dela me fez voltar ao presente.
- Vá lá em casa mais tarde. Está mais enfeitada do que a Time Square. De qualquer jeito, vou trazer alguns para você.
- Ele não vai se importar?
- ? – virei o lixo para que ela empurrasse os cacos para dentro do cesto. – Não, não. Acho que ele não sabe mais o que está comprando. Quer ver tudo enfeitado, mas acabou perdendo um pouco a noção, sabe? Nossa sala já está acima da capacidade de coisas vermelhas e douradas. Papai Noel e Godric Gryffindor estariam orgulhosos.
- Sei – murmurou, pensativa.
- Que foi? – voltei a me endireitar para encará-la.
- Essa é a segunda vez que você usa o pronome possessivo na primeira pessoa do plural.
Tombei a cabeça para o lado, confusa.
- “Nossa casa”, “nossa sala”.
- Eu disse isso? - minhas sobrancelhas se ergueram de leve em surpresa. – Oh! Nem tinha percebido. Mas suponho que não esteja errada. Ele dorme e come lá, guarda seus ternos em meu armário, passeia com Cookie todos os dias, paga metade das contas e estoca comida na geladeira. Inclusive tem uma chave. Então acho que sim, a casa é nossa. Só vamos para sua casa quando necessário.
Quando é necessário que eu digite um daqueles documentos que tem tantos selos de confidencialidade que fazem arquivos da CIA parecer de domínio público.
- Você não acha que é muito cedo para isso? Vocês se conhecem há menos de um ano.
- Quase um ano – corrigi defensivamente.
- Ok – mesmo ela estando de costas para mim, sabia que revirava seus olhos azuis. – Quase um ano. Tanto faz. Ainda assim não é muito cedo para morarem juntos?
Parei por um segundo de tentar impedir que os cacos que já estavam no lixo caíssem para fora ao abaixar o cesto para que mais fosse varrido para dentro. Deixei que meus pés caminhassem automaticamente até o lixo maior, e, enquanto isso, analisei as palavras de Ava. Supunha que logicamente nosso arranjo habitacional não era o ideal e que havia inúmeros contras, porém não conseguia encontrar em mim qualquer vontade de mudar as coisas. Gostava de chegar em casa e encontrar meu namorado sentado no sofá e lendo alguma coisa ou esperá-lo chegar trazendo alguma coisa para jantarmos enquanto nos enrolávamos no sofá e assistíamos a alguma das inúmeras séries de que tanto gostava.
Então, sim, talvez fosse cedo demais, mas não era errado. Na verdade, era o completo oposto de errado. Nunca me sentira tão certa sobre alguma coisa quanto me sentia sobre . E foi isso que disse a Ava quando voltei com um saco de lixo novo.
- Se você tem certeza, então está certo – encolheu os ombros. – Mas já que estamos falando no teu macho – e aqui ela enfatizou a palavra com um sorriso maroto, deixando óbvio que agora só o fazia para me provocar um pouco. – Já comprou o presente dele?
- Não. Mas já tenho uma ideia ótima. Ele vai adorar.
Mal podia conter minha animação, praticamente saltitando no lugar.
- E o que é?
- Surpresa!
- Mas o presente nem é para mim.
- Nops. Não vou contar – sacudi a cabeça.
- E quanto ao meu presente?
- Menos ainda que vou te contar, né, Ava – revirei os olhos.
- ‘Tá bom, ‘tá bom. Então pelo menos trás o lixo aqui já que pretende me matar de curiosidade.
- E por acaso você vai me contar o que comprou para mim? – arqueei a sobrancelha, já sabendo muito bem qual era a resposta.
- Sem chance.
- Hipócrita.
- Só na medida certa, só na medida certa.
O tempo passou muito rápido depois daquela noite e logo estávamos no dia 24 de Dezembro. continuou comprando mais enfeites do que cabiam em nosso apartamento inteiro, já Ava não voltou a mencionar qualquer coisa sobre o tal “ele” misterioso que tinha estragado tudo. Quanto mais perto o Natal chegava, contudo, mais sombria ela se tornava. Não que desse para perceber de cara, pois ela fazia um trabalho excepcional se mantendo o mais ocupada possível, mas a conhecia bem demais para não perceber o brilho triste que relampejava em seu rosto sempre que sua atenção pousava por um segundo a mais em qualquer decoração festiva da confeitaria. Não havia nenhuma abertura para novas perguntas, mas isso não impedia as mil teorias que se formavam em minha cabeça. Sabia que tinha a ver com o Natal e provavelmente com alguém que tinha perdido. Podia apostar que se tratava de sua família, porém não fazia nem ideia se eram pessoas que haviam falecido ou pessoas que nunca conhecera, afinal, minha amiga havia deixado bem claro que qualquer tópico de seu passado era tabu.
Assim, tudo que podia fazer era oferecer um pouco de carinho e apoio, mesmo sem imaginar contra o que exatamente eu a estava apoiando. A única coisa boa de nossa viagem para Montana ter sido cancelada graças aos quilos de neve que estavam caindo diariamente era que podia passar todos os dias na Appleby’s para checar minha amiga.
- Hey – chamei depois da terceira vez que ela passou por mim do lado de dentro do balcão sem nem olhar para o meu lado.
- Hey! – respondeu, claramente surpresa ao se virar e me encontrar ali. – , amiga, agora eu não estou podendo falar – comentou enquanto finalizava um cappuccino com canela. – Aqui – entregou o copo para viagem para uma senhora de sorriso simpático. – Muito obrigada e Feliz Natal! , desculpe, mas agora realmente não dá. As coisas estão uma loucura aqui – lia o próximo pedido ao falar comigo. – Realmente sinto muito.
- Não, não. Tudo bem – garanti. – Só passei aqui para saber se você não recuperou a sanidade e decidiu passar o Natal conosco lá em casa.
- Ah, então o voo foi cancelado mesmo? – parou de se mexer por um segundo para me lançar um olhar de pena.
- É – encolhi os ombros. – Estão esperando uma nevasca enorme para amanhã, então...
- Ah, sinto muito, . Sei que papa e mama estavam esperando por vocês.
- Não. Está tudo bem. Eles entendem – abri um sorrisinho triste. – Ao menos eu não vou estar sozinha, graças a , né. Porque minha melhor amiga sempre me abandona por alguma tradição a natalina misteriosa – aproveitei o momento para fazer um pequeno drama e também aproveitar a oportunidade.
Vai que ela estava distraída o suficiente para deixar alguma coisa escapar.
- Boa tentativa – revirou os olhos ao terminar de embalar alguns muffins também para viagem.
Uma pena que ela me conhecia tão bem quanto eu a ela.
- Já disse que não é nada demais e isso deveria te deixar menos curiosa, não mais – deu-me as costas enquanto perguntava à Stella qual era a ordem dos pedidos de bolo.
- Ok, ok. Vou parar de insistir – resmunguei, resignada. – De qualquer jeito amanhã eu passo aqui, Ava. Preciso passar para pegar o presente de agora.
- Não pegou ainda? – olhou-me por sobre o ombro, franzindo o cenho. – ‘Tá meio em cima da hora, né?
- Não era exatamente alguma coisa que dava para esconder no armário, e queria que fosse surpresa. Vou aproveitar que a empresa maluca dele o obriga a trabalhar hoje.
- Você não me disse o que comprou para Leo.
- E você não me contou o que faz todo 24 de Dezembro. Tchau, Ava – pulando para fora do banco alto em que me sentara em algum momento de nossa conversa, acenei para minha amiga e saí da confeitaria antes que ela tivesse a chance de me atirar mais um comentário espertinho.
Precisei afundar o rosto contra meu cachecol e me senti bem idiota enquanto lutava para vencer o vento, que parecia ficar mais forte a cada passo. Deveria ter vindo de taxi, mas era um lugar tão ridiculamente perto que pensei que não teria tantos problemas. Ao finalmente entrar no Little Friends tremia tanto que não foi uma surpresa muito grande quando Giovana apareceu com um copo de alguma bebida fumegante. Tirando as luvas e guardando no bolso, coloquei as mãos ao redor do copo, sentindo o calor se espalhar.
- Hey, Gi – sorri depois de tomar o primeiro gole, sentindo-me menos um boneco de neve depois de uma boa dose de café me aquecendo por dentro.
- Oi, – sorriu, parecendo ainda mais adorável com um gorro branco sobre seus cachinhos claros. – Não sabia que você vinha aqui hoje.
- Pois é – mais um gole. – Acho que alguém mais sensato não viria, né? Mas precisava vir buscar o presente do meu namorado. Acho que você não estava aqui na última vez que vim. Conversei com a Ludmila.
- É – repuxou os lábios em uma careta. – A faculdade estava me matando esses dias. Achei que o feriado nunca fosse chegar.
- Ah! Verdade. Você faz pedagogia, né?
- Exato. Quero trabalhar em alguma ONG no futuro. Trabalhar com crianças – seus olhos castanho-mel brilharam de excitação.
- Isso é extremamente doce.
E porque ela parecia com uma bonequinha muito fofa, tive vontade de apertar sua bochecha, mas felizmente minha mãe conseguiu me ensinar algumas regras de convivência em sociedade, portanto me contive. Ao invés disso, então, acrescentei:
- Tenho certeza que você vai conseguir, Gi.
- Obrigada, – sorriu. – E você veio falar com a Lud, né? Ela está lá atrás – apontou para a porta que levava ao estoque.
- Ah, certo. Vou lá então. E muito obrigada pelo café. Você é uma salva-vidas.
- Imagina. E acho que vou com você. Pegar alguns biscoitinhos.
Estávamos a meio caminho quando um barulho de algo caindo no chão soou não muito ao longe. Ao nos virarmos na direção do som, encontrei um labrador sentado ao lado de algumas latas de shampoo felino, sacudindo o rabo animadamente e parecendo bem satisfeito com seu trabalho.
- Tequila! – minha amiga resmungou, mas podia ver o sorrisinho de lado que ela mal podia esconder.
Conhecia bem o sentimento. Era difícil ficar brava com um ser tão fofo.
- Tequila?
- É – dessa vez o sorriso era bem visível. – Meu pequeno bagunceiro. Adotei-o no mês passado. Acho que tive uma visão do futuro quando escolhi o nome.
- Por quê?
- Porque tequila é para dar trabalho – riu, encolhendo os ombros.
- Essa é a melhor justificativa que já ouvi.
- Exato. Agora deixa eu ir lá arrumar a bagunça que ele aprontou... dessa vez. Feliz Natal, – me deu um abraço rápido, mas forte, antes de caminhar até seu cachorro.
Voltando ao meu destino anterior, entrei no estoque e encontrei Ludmila arrumando os pacotes de ração nas prateleiras.
- Hey, Lud.
Ela passou a mão pelos cabelos muito negros, afastando-os de seu rosto e pude ver seus olhos castanhos me encarando de volta.
- ! – largou o saco azul no chão e bateu as mãos uma contra a outra enquanto se aproximava. – Quase pensei que você tinha desistido.
- O quê? Claro que não! – se não estivesse com tanto frio para sentir qualquer outra coisa que não fosse os ossos congelando, e se não tivesse percebido o tom brincalhão em sua voz, quase poderia me sentir meio ofendida.
- Estou brincado – levantou as mãos espalmadas em sinal de rendição. – Sei que você não faria isso. Ainda mais quando é para o tal Leo.
- Você está convivendo demais com Avalon – revirei os olhos.
- Apenas o suficiente para ouvir sobre seu soldado super gostoso. Aliás, quando vai trazê-lo aqui para nós mortais darmos uma boa olhada e morrer um pouquinho mais de frustração?
- Você fala como se não tivesse seu Liam, e como se ele não fosse o mau caminho inteiro. Nada de pedaços quando se trata dele, não é mesmo? – dei uma piscadela marota. – Team Luli.
- “Luli”? – riu. – É você quem tem passado tempo demais com Ava. Vem – segurou em minha mão livre. – Vamos conhecer as opções.
- Opções? Achei que você tinha dito que tinha a escolha certa.
- Bom... – olhou-me por sobre o ombro, ainda me guinchando para onde os animais ficavam. – Eu tenho uma opção perfeita, mas não queria parecer tão parcial e influenciar sua decisão.
- Deixa de ser boba – aproveitei que passávamos por uma lixeira e atirei o copo de plástico vazio ali. – Você tem um dom para essas coisas. Quase uma encantadora de cães. Falando nisso, como estão suas lhasa apso? Como elas chamam mesmo?
- Hannah e Gigi. E elas estão ótimas. Tão fofas quanto é possível ser.
Passamos por vários cachorros e tive que me virar para o outro lado para não cair na forte tentação de adotar todos eles. E porque estava me concentrando forte em alguma música da Britney – para não pensar em outra coisa -, só notei que minha amiga tinha parado quando esbarrei em suas costas.
- Opa. Opa. Desculpe.
- Sem problema. Mas chegamos. É ele.
Virei a cabeça e imediatamente fui capturada pelos olhos verdes mais doces que já tinha visto. Era um pitbull adulto branco com algumas manchas marrom claro. Podia ouvir Lud falando atrás de mim.
- Stacy foi buscá-lo no Brooklyn. Parece que ele estava vagando pelas ruas e sobrevivendo revirando lixeiras. Pensei que seria ideal para seu namorado porque ele é incrivelmente doce. Nunca reclama de nada e parece estar sempre transmitindo calma e carinho. Além de ter essa expressão que lembra um sorriso, né? Assenti. Realmente parecia que ele estava sorrindo. - Pelo que Ava fala de Leo, acho que Scott seria perfeito.
- Scott? – foi a única coisa que consegui murmurar, ainda fascinada pelo cachorro na minha frente.
- É apelido para Scotland. Gi disse que isso não era nome de cachorro, mas eu achei que combinava, e ele parece gostar, então acabou ficando. E então? O que achou?
Voltei-me para o cachorro. Ele tinha levantado a cabeça, sacudindo o rabo em expectativa. Aquilo era incrível demais para ser verdade. Senti o sorriso aumentando em meu rosto até que meus lábios não pudessem se esticar mais e, mesmo assim, ainda era pouco para expressar como me sentia.
- É perfeito. Ele é perfeito.


Caítulo 25

Não percebi o tamanho da enrascada em que estava até o momento em que mesmo Hunter me olhou como se eu fosse o maior pateta do universo. Se havia chegado ao ponto de o cara com o apelido de Puppy acreditar que eu estava completamente errado, então era um caso sério a ser analisado. Em minha defesa, contudo, não estava acostumado com o tipo de situação que me levara àquele problema – e foi exatamente o que disse a eles.
- ‘Tá falando sério? Você só pode estar brincando. Porra, ! Eu esperava uma bobagem dessas do garoto, não de você.
- Hey! Que culpa eu tenho do cara ser um idiota?
Hunter protestou, mas eu estava tão incrivelmente preso em meu próprio problema que nem mesmo tive vontade de dar o tapa na nuca que ele estava merecendo. Aquela conversa era uma merda quase tão grande quanto a confusão em que havia me metido.
Que porra, que porra, que porra.
Encarei o líquido âmbar no copo em minha frente no balcão, sentindo-me tão idiota que nem mesmo o conforto da bebida tinha mais. Esfreguei as mãos pelo rosto, exausto mentalmente. Como se tudo já não fosse ruim o suficiente, ainda tinha que aguentar os dois patetas, cada um de um lado meu, falando sem parar.
- Calem a boca, porra – bati o copo contra a madeira com força suficiente para que o copo rachasse e respingos de whisky se espalhassem.
Mesmo mantendo minha atenção nas prateleiras repletas de garrafas de álcool sobre a parede atrás do balcão a minha frente, sabia que eles estavam se entreolhando por cima da minha cabeça.
- Ok. Já chega.
Chase disse, incisivo, empurrando meu copo para longe enquanto Caleb tirava algumas notas e deixava ali para pagar nossas contas.
- Vamos lá – o pateta mais velho continuou, segurando meu braço para que me levantasse. E porque estava sem vontade de discutir, ou sem força de vontade para fazer qualquer outra coisa, deixei que me puxasse para fora do bar.
- O que vocês estão fazendo? - resmunguei depois de ser empurrado para o banco do carona em meu carro.
Não sabia em que momento exatamente eles pegaram a chave e também não me importava.
- Vamos dar um jeito no problema, é claro. - Chase disse, ligando o carro enquanto Hunter se acomodava no banco de trás.
- Como vamos dar um jeito no problema, idiota? - rangi os dentes. - Não dá para consertar.
- Olha, , nós concordamos que você foi um imbecil mais obtuso do que o normal, porém não é como se você tivesse no meio do Atlântico dentro de um navio afundando. - Puppy respondeu.
- Depende do ponto de vista, né, pois, para mim, esquecer de comprar um presente de Natal para sua namorada parece um belo de um Titanic.
E porque o soco que ele merecia não valia um acidente de carro, continuei quieto. - Relaxa, cara - continuou, rindo às minhas custas ao fazer uma curva, tomando um atalho para evitar as ruas movimentadas pelo feriado ou fechadas pela neve. - Nós vamos dar um jeito. O que você quer comprar?
O que eu queria comprar para minha namorada no primeiro Natal em que passávamos juntos? O que queria comprar para mulher mais importante da minha vida?
O mundo. O céu. Tudo. O que ela quisesse.
- Não faço a mínima ideia - passei a mão pelo rosto.
O silêncio pesou no carro por alguns segundos até que Chase falou:
- Hunter, você conhece algum joalheiro?
- Claro. Alguns.
Isso não era exatamente uma surpresa. Ele conhecia todo mundo.
- Comece a fazer algumas ligações. Precisamos de uma visita a uma joalheria. Das boas.
Algumas ligações e ruas depois, Dylan estacionou em frente de uma Tiffany’s & Co. Um senhor baixinho e de sorriso simpático abriu a porta para nós e a trancou depois que passamos.
- E o que vocês têm em mente? Anel, colar, brincos, braceletes?
Por que todo mundo ficava me fazendo perguntas quando o que eu queria eram soluções?
Para não descontar meu mau-humor em quem não merecia, afastei-me para a parte mais à direita da loja, olhando de maneira ausente as vitrines por ali.
O desespero aumentava um pouquinho mais a cada instante em que o relógio se aproximava das seis horas. Nem mesmo me sentia patético mais, apenas desesperado. Minha desculpa para ter sumido por boa parte do dia de hoje estava se esgotando mais rapidamente do que achei ser possível. Estava chegando ao cúmulo de realmente considerar a opção de raptar aquela baixinha irritante da Appleby e só libertá-la quando ela me arranjasse um presente descente que pudesse dar para minha namorada.
Sim, aguentar Appleby, essa era a medida do meu desalento.
De novo passei a mão por meu cabelo, querendo arrancar cada fio em frustração.
- Porra - suspirei, abaixando a cabeça, derrotado.
Sentia-me o mais idiota dos homens. Por que tinha esquecido? Por que não tinha percebido que aquela era uma data importante? Por que nada parecia bom o suficiente agora? Por qu-
Meus olhos se arregalaram quando uma peça em destaque chamou minha atenção. Os passos que dei para chegar até ela foram lentos, tanto por minhas pernas moles de alívio quanto pelo medo daquela joia desaparecer como fumaça se me mexesse muito rápido. Quanto mais me aproximava, melhor ficava. Era bom demais para ser verdade. Só podia ser miragem. Ali, cuidadosamente posicionado sobre uma almofada azul escura, estava um colar de ouro com um pingente de coração. O que me chamou a atenção, contudo, foi a cor da pedra.
Violeta.
Violeta como os olhos de .
Perfeito.
- Hey - gritei por sobre o ombro, interrompendo qualquer que fosse o assunto que Chase estava tendo com o vendedor.
Rapidamente o senhor se aproximou, aparecendo em minha frente e do outro lado da vitrine.
- Ah, sim. Sim. Excelente escolha, senhor - comentou enquanto tirava a bandeja e a colocava sobre o vidro. - Nesse delicado colar de ouro temos um pingente de safira rodeado por diamantes de cinco quilates. Realmente uma aquisição impres-
- Eu vou levar.
Ele tomou um pequeno baque com a brusquidão com que falei, e perdeu as palavras por um segundo.
- Oh, sim? – repetiu. - O senhor não gostaria de informações adicionais sobre a peça?
- Não - sacudi a cabeça. - Eu vou levar - tirei a carteira do bolso e entreguei meu cartão.
O senhor rapidamente aceitou minha forma de pagamento, apressando-se provavelmente por medo de que eu recuperasse a sanidade que acreditava que tinha perdido. Enquanto ele se apressava em embalar tudo depois que paguei, senti dois braços pesados caírem com força sobre meus ombros.
- ‘Tá vendo? Nós dissemos que iria dar tudo certo. - Dylan comentou.
- É, cara, nós somos, tipo, seus botes salva-vidas no seu Titanic - foi a vez de Puppy fazer a gracinha.
- Exato.
- Somos o DiCaprio para sua Winslet. O Jack para sua Rose. Leo para sua Kat-
Fiquei bem satisfeito com o grunhido de dor que ele soltou quando afundei o cotovelo em suas costelas. E ainda mais contente quando ele parou de falar merda, porque, afinal, se fosse para ouvir um pateta me chamando de Leo, que fosse alguém mais bonito como a confeiteira maluca.
“Leo”.
Dois patetas que criavam apelidos iguais sem nem mesmo se conhecerem. Talvez fossem almas gêmeas. Iria ter a certeza de nunca apresentá-los. Pelo bem da sanidade da raça humana, é claro. Afinal, imagina o que aconteceria se eles se apaixonassem e reproduzissem?

...

Depois de tomar banho em meu apartamento, levando um minuto a mais por perceber que aquele lugar estava se tornando cada vez mais frio, e trocar de roupa, peguei o presente embrulhado e fui para casa. estava terminando de ajeitar a mesa quando eu abri a porta. Ela levantou a cabeça, um guardanapo dourado na mão, e sorriu. A luz artificial brilhou em seu cabelo dourado e parei de andar, por um segundo apenas apreciando o jeito como seus lábios pintados de vermelho escuro se repuxavam e como seus ombros e parte do seu colo estavam à mostra graças ao vestido azul escuro que ela usava.
Magnífica.
- Hey - sussurrou, colocando o guardanapo ao lado de um dos pratos.
- Hey - respondi, virando-me para rapidamente trancar a porta antes de andar até ela e me abaixar para lhe dar um beijo rápido.
- O peru está no forno ainda, mas vai demorar um pouco. Enquanto isso vamos tomar esse vinho tinto ridiculamente caro que Ava nos deu de presente - olhou para a garrafa, franzindo o cenho como se tentasse entender porque motivo custava tanto dinheiro.
Dei uma olhada no rótulo e reconheci como realmente sendo de uma das melhores marcas do mercado. Italiano, boa safra. A baixinha maluca era surpreendente. Não tinha cara de quem entendia de muito mais além de coberturas, piadinhas sem sentido e paranoias ao extremo.
- Ok – assenti. - Vou pegar as taças.
Colocando seu presente em um espaço vazio sobre a ilha, abri o armário, só então percebendo que estava sentindo falta de alguma coisa.
- , onde está Cookie? Por que ele não veio me cumprimentar? Aconteceu alguma coisa? - virando-me para ela com as taças na mão, tentei deixar o pânico que começava a sentir longe de minha voz.
Se alguma coisa estivesse errada com nosso cachorro, era eu quem teria que ser o controlado. E, quando ela desviou o olhar para a garrafa de vinho que estava abrindo, sabia que algo definitivamente estava errado. Antes que pudesse questioná-la, contudo, ouvi latidos vindo de um dos quartos extras. Franzindo o cenho ao não reconhecer o som como aquele que escutava todas as manhãs, estava prestes a investigar o porquê de subitamente Cookie estar latindo mais grave, mas fui impedido por se materializando na minha frente. Ela se moveu mais rápido e silencioso do que julguei que sua personalidade atrapalhada algum dia permitiria, efetivamente me pegando de surpresa.
- Que foi isso, porra? - resmunguei mais para mim mesmo ao parar no meio do passo que me faria dar um encontrão nela.
- Você fica fofo quando é surpreendido - sorriu, olhando-me como se eu fosse una criança. - Vou me lembrar disso no futuro.
- Fofo?
tinha o dom de me colocar em categorias onde ninguém sequer pensava que eu passava perto. Não sabia se isso era bom ou ruim.
- Sim – assentiu. - Fofo. Muito fofo. Os próximos minutos definitivamente vão ser muito interessantes. Espere aqui - e, dizendo isso, saiu praticamente saltitando da sala, como a fadinha que às vezes tinha certeza que ela era.
Segundos depois Cookie estava correndo pelo corredor em minha direção. Deixei que pulasse em mim, as patas sobre minha camisa polo preta.
- Hey, amigão. Tudo bom? - esfreguei atrás de suas orelhas. - Que é isso? - levantei o gorro vermelho de Papai Noel entre meus dedos. - Ficou muito bom. Sua mãe que colocou em você, né?
Ele soltou um latido, como se confirmasse e tentou lamber meu rosto mais uma vez antes de se afastar para ficar ao lado de sua dona. Foi só quando ele parou ao lado direito dela que percebi que não havia apenas nós três na sala. Ao lado direito, sentado sobre as patas traseiras, estava um pitbull predominantemente branco e com manchas marrom claro. Havia um laço vermelho ao redor de seu pescoço e ele me olhava - e, sim, eu sei que isso vai parecer muito estranho - de uma maneira que não poderia ser descrita como outra coisa senão como sorrindo.
- , quem é esse?
Ela se balançou para frente e para trás sobre os peitos dos pés, tamanha sua animação.
- Esse é o Scott - sacudiu as mãos. - Feliz Natal! - E essa última parte saiu em um gritinho.
Demorei alguns segundos para entender o significado por trás daquelas palavras e, quando o fiz, só consegui murmurar, embasbacado:
- Você me comprou outro cachorro?
- Não - sacudiu a cabeça. - Nós adotamos outro cachorro!
Mais um mínimo de excitação e ela sairia voando em uma nuvem de glitter com suas asinhas de fada. Tentando ignorar o fato de que minha namorada certamente não era desse mundo, voltei-me a questão em pauta:
- Nós… nós adotamos um cachorro?
- É! - abaixou-se para coçar a orelha de Scott. - Eu sempre quis adotar mais um. O apartamento é enorme e sempre teve espaço, mas fiquei com medo de não ter tempo o suficiente para tomar conta dele direito. Agora que você já está aqui, não teremos esse problema. Nós dois cuidados dos dois. É perfeito, não?
Aquilo era basicamente a última coisa que esperava nesse Natal, porém quando levantou os olhos violeta para mim, encarando-me com tanta esperança quanto os dos dois cachorros, ficou óbvio que não havia nenhuma outra opção senão aceitar o que ela queria.
Apoiando o joelho direito no chão, também me abaixei.
- Scott? - chamei.
Imediatamente o cachorro estava ao meu lado, abanando o rabo, as orelhas em pé e de novo aquela expressão como se estivesse sorrindo. Lentamente, para que ele não se assustasse, fiz um carinho em suas costas.
- Bom menino - murmurei. - Sabe, , - levante a cabeça, - acho que você queria outro cachorro e se aproveitou um pouquinho.
- Talvez - riu, ajoelhando-se perto de nós para também acariciar seu novo filhote.
Nós passamos alguns minutos nos apresentando a Scott. Cookie, bem-comportado como era, ficou sentado ao lado, pacientemente esperando que conhecêssemos seu novo irmão.
- Bom garoto - dei mais algumas batidinhas amigáveis em sua barriga e me levantei, estendendo a mão para ajudar a se endireitar.
- E aí? Você gostou? Existem várias coisas que você faz que eu não gosto, minha loira. Não gostava de sua mania de não apagar as luzes, não gostava de como seus cremes ficavam espalhados de qualquer jeito sobre a pia e também não apreciava muito a maneira condescendente com que falava comigo sobre os milhares de aplicativos que “amor, você tem que conhecer”. Definitivamente, contudo, não fico irritado quando me olhava com esses olhos violeta brilhando com carinho, a espera de uma resposta.
- Sim, . Eu gostei. Gostei bastante.
E num segundo ela estava me abraçando com força e eu podia literalmente sentir seu sorriso contra meu peito.
- Isso é ótimo. Bem-vindo a família, Scott - falou ao se virar para ele.
Mal ouvi o latido animado que ele deu em resposta. Outra coisa ecoava em minha cabeça.
Família.
Felizmente ela estava de costas e não viu o choque passando por meu rosto ao ouvir aquela palavra. Tive alguns segundos para me recuperar quando ela, ainda sem me olhar, segurou minha mão e deixei que me puxasse - só tendo tempo suficiente para pegar o presente dela - até o canto da parede perto da lareira elétrica acesa. Ainda não entendendo nada, fui empurrado contra um punhado de almofadas e edredons que não tinha visto ali antes. Sentado no meio daquela pequena bagunça, que logo descobri ser bastante confortável, observei minha namorada pegar as duas taças que eu tinha abandonado sobre a ilha e também o vinho. No caminho de volta, ela se contorceu um pouquinho para apagar a luz com o cotovelo, deixando todo o cômodo iluminado apenas pela luz do fogo. Ao parar do meu lado, retirou os sapatos de salto e, com muita confiança, sem hesitar um único segundo, sentou-se entre minhas pernas, encostando as costas contra meu peito. Envolto por seu perfume doce, recostei-me no travesseiro encostado na parede atrás de mim e passei os braços ao redor de .
Ouvi o som do vinho caindo contra o cristal e depois a taça foi colocada em minha mão. Tomei um gole, apreciando o gosto mais do que pensei que faria, e depois abaixei a taça ao meu lado, sobre o chão e não no edredom preto. Nossos cachorros deitaram confortavelmente no tapete, não muito longe de nós.
Olhei para baixo e para o pacote em minhas mãos e depois para Scott. O presente que eu escolhera ainda continuava sendo ótimo, mas não era tão incrível quando nosso novo filhote - que de filhote não tinha nada. Tentando confiar mais em meus instintos do que em qualquer outra coisa, passei o braço por sobre seu ombro.
- Hey, aqui - entreguei o embrulho.
- Oh! Oba, oba, oba.
Ao perceber sua animação quase infantil para abrir o presente, agradeci mentalmente os dois patetas por terem salvado minha pele. Fiz uma nota mental para mandar que April encontrasse um presente para eles, uma vez que obviamente também não tinha passado por minha cabeça comprar algo.
- Nossa! – ofegou. - , é lindo - virou-se um pouco para me olhar. - É… é da cor d-
- Dos seus olhos - completei.
E por um instante um brilho intenso passou por aqueles bonitos olhos violeta que eu tanto admirava. Novos mistérios que não conseguia desvendar e que também não tive tempo – se alguma coragem tivesse aparecido - para questionar o que era aquilo, pois logo ela se inclinou um pouquinho e ganhei um beijo suave na bochecha.
- Eu adorei, amor. Muito obrigada - sua voz era tão macia quanto os cobertores ao nosso redor. - Coloca em mim? - voltou a se virar, me entregando o colar.
Tive que prestar atenção para conseguir segurar o fecho infinitamente delicado e fechar a corrente ao redor do pescoço dela. Quando se abaixou para olhar o pingente que repousava entre seus seios, aproveitei para deslizar meu nariz pela pele cheirosa de sua nuca, finalizando com um beijo.
- Acho que nos saímos muito bem nisso de presentes - murmurou, ao se aconchegar de novo contra meu peito.
- É o que parece, . Ainda mais com esse cachorro que fica sorrindo para mim - murmurei, lançando um olhar para Scott, que pareceu ter compreendido que era o objeto de nossa conversa e levantou a cabeça de sobre as patas, abanando o rabo por um tempo antes de voltar a relaxar outra vez na frente da lareira.
Intrigado, concluí que minha namorada só atraía cachorros esquisitos. Não era normal eles serem tão espertos assim, entenderem tão completamente o que dizíamos.
Esquisitos, mas absolutamente incríveis. Sorrindo com o pensamento, voltei minha atenção para seu cabelo dourado.
Por alguns segundo o único som do cômodo foi o crepitar do fogo.
- ? - falou depois de tomar um gole de sua bebida.
- Hmm?
- Por que você só me chama de “ ”? Não estou reclamando - apressou-se em acrescentar. - Só curiosidade mesmo - terminou, baixinho, sua mão começando a fazer um carinho no meu antebraço que estava pousado sobre sua barriga.
Não pude evitar uma pequena risada.
- Não sabia que isso te deixava curiosa, - enfatizei seu nome em uma leve provocação. - Mas não é nada muito misterioso. Quando nos conhecemos você ficou repetindo em cada oportunidade “meu nome é ”, então, bem, é isso - ponderei por um segundo. - Bom, acho que também gosto de como soa. Combina com você, .
Outra vez sorri ao ouvir sua visada baixinha.
- , posso te perguntar outra coisa?
- E desde quando você me pergunta se pode dizer alguma coisa?
- Bom... é que… bom.
Pelo jeito baixinho como falava e também pela maneira como as palavras diminuíam até quase sumir, sabia que era algo sério, mas como aparentemente não conseguia lhe negar nada, concedi:
- Pergunte.
- Por que você só se apresenta como ? Eu… por um tempo até pensei que seu nome fosse realmente esse, mas outro dia você esqueceu sua identidade sobre o balcão, fora da carteira, e eu vi.
Senti meu corpo se retesar, e imediatamente também senti minha namorada ficar rígida em meus braços, então engoli em seco e me forcei a relaxar de novo. Não iria permitir que ela passasse a acreditar que não poderia falar comigo. Ela era a única que jamais precisaria ter esse receio.
- Prefiro porque era assim que minha mãe me chamava. E não gosto de porque meu querido pai só me chama assim - falei de um vez, quase como para tirar um curativo, torcendo que para que assim não ficasse com o gosto amargo muito tempo em minha boca.
E porque ela me entendia melhor do que qualquer outra pessoa, suas próximas palavras mudaram completamente de assunto:
- Sabe, amor, quando estava pensando no seu presente, percebi que nunca te perguntei sobre que tipo de música você gosta.
- Música? - demorei um segundo a mais para acompanhar conseguir acompanhar seu raciocínio. - Beatles? É. Sim. Gosto dos Beatles. Queen, mas principalmente Beatles. E você?
- Taylor Swift.
- Quem?
- Você sabe. “Are we out of the woods yet? Are we out of the woods yet? Are we out of the woods yet? Are we out of the woods?” - cantalorou o refrão da música que tocava sem parar no rádio.
- Sim, eu sei. E obrigado, . Agora essa música vai ficar na minha cabeça o resto da noite - resmunguei.
Ela gargalhou,
- Gosto de outros cantores também, mas esse último álbum da Taylor é tão bom que só escuto isso por esses dias. Porque, você sabe, né, “we’re never go out of style, ‘cause we never go out of style”
- Sério, ? – grunhi. - Você tem noção de quão ruim é ficar repetindo só uma música na sua cabeça, ou, pior ainda, só uma parte da música porque eu não sei mais nada.
De novo ganhei outra risada divertida como resposta.
- Ok. Ok. Vamos falar de outra coisa. Está muito difícil de andar lá fora?
- Várias ruas estão interditadas pela neve, mas ainda estão conseguindo limpar as principais. Só que é literalmente enxugar gelo. Amanhã certamente não será possível trafegar.
Quase podia ouvir o sorriso em minha própria voz. Não porque estava satisfeito com o mundo se transformando em gelo lá fora, mas sim porque minha loira havia se preocupado em trocar o objeto da conversa. De novo.
- Sorte que eu estoquei comida, então, né. Porque do jeito que você come e não dá para ir ao supermercado…
- Engraçadinha - belisquei de leve sua barriga, fazendo com que ela desse um pulo, soltando uma risadinha.
- Apenas verdades, amor - mudou de posição, ficando meio de lado, a bochecha contra meu peito. - Imagino que no Natal essa fome de leão seja ainda maior. Com frio, né. Precisa hibernar - empurrou o indicador na minha barriga.
Revirei os olhos.
- Falando em Natal, amor, não sabia que você gostava tanto dessa época.
- Hmm? - perguntei, distraído pelos fios de cabelos macios e dourados que havia começado a acariciar.
- O Natal, amor. Estou dizendo que você parece adorar o Natal - lançou um olhar significativo ao nosso redor.
Acompanhei a direção que seus olhos apontavam e encontrei alguns dos enfeites que havia comprado e pendurado ao redor e sobre a lareira. Não vendo onde ela queria chegar, perguntei?
- Que tem?
Ela levantou a cabeça e me olhou, rindo ao encontrar minha expressão confusa.
- Você não acha que exagerou um pouquinho?
- Exagerar?
Dei outra olhada no ambiente. Supunha que talvez tivesse alguns Papai Noel a mais ou que quatro guirlandas fossem mais do que o necessário. Ainda assim, estava bem satisfeito com a maneira como tudo tinha ficado.
- Exagerei?
- Ai, amor. Você é adorável - riu. - Mas tudo bem. Se você está acostumado a ser mais festivo do que a própria família Noel, tudo bem para mim - terminou com mais um gole do vinho.
E fácil assim minha garganta se fechou e, não fosse o calor e cheiro gostoso de em meus braços, eu provavelmente teria sido transportado de volta para o passado - para uma das piores partes dele. Minha infância teve momentos bem ruins, mas o campeão deles certamente eram todos os Natais. O fato de conseguir escapar mais efetivamente daquelas lembranças agora, contudo, não significava que conseguia escapar completamente. Mais do que isso, aparentemente não estava sendo capaz de manter minha boca fechada, pois, antes que percebesse estava contando sobre algumas das coisas que nunca tinha repetido nem mesmo em minha mente:
- Dante… - engoli em seco - meu pai nunca gostou de datas festivas. Bom, na verdade, existem poucas coisas no mundo de que ele realmente gosta - sacudi a cabeça para voltar a me focar no que realmente importava. - O Halloween, segundo o velho, era apenas um feriado idiota, sem propósito visível ou distinguível que justifique o tamanho do transtorno que causa na rotina da cidade. Já o Natal seria só uma desculpa imbecil para que grandes empresas lucrassem - não pude evitar uma risada de escárnio. - A hipocrisia dessa afirmação é incomparável. Dante só pensa em lucrar. O tempo todo, o dia inteiro, sobre qualquer circunstância, e ainda tem a coragem de criticar alguém que tenta fazer alguma coisa parecida - fiquei em silêncio por um segundo, só agora percebendo uma coisa. - Pensando agora, entretanto, acho que era só uma desculpa para que não tivesse que dizer com todas as letras que só estava se esforçando para estragar mais uma das coisas que eu gostaria de ter vivido. Muito provavelmente foi isso.
Se não tivesse tão absorto em colocar uma palavra atrás da outra nas frases, teria percebido que minha namorada ficava cada vez mais tensa.
- Nós… nós então não tínhamos qualquer enfeite na mansão. Vinte e cinco de dezembro era só mais um dia comum daqueles anos de merda - precisei de um momento para engolir a amargura. - Depois vieram os anos na faculdade e depois na marinha. Não tinha tempo para ficar pensando nisso. Essa foi a primeira oportunidade que tive de, não sei, ter um Natal. Então… bom… - cocei a nuca - acho que foi por isso que... bem… exagerei.
Perdi um pouco do equilíbrio, e teria caído para trás não estivesse encostado na parede, quando, mal havia terminado a última palavra, jogou os braços ao redor do meu pescoço e pressionou os lábios contra os meus com força. Depois que o segundo de surpresa passou, correspondi ao beijo. Não foi como das outras vezes em que nos beijamos. estava afoita, apertando-me contra ela o máximo que era humanamente possível. E até mesmo alguém idiota como eu poderia perceber que ela estava tentando me reconfortar ou ao menos me fazer esquecer. Bom, estava funcionando…
Segurei sua nuca e me perdi em minha namorada por deliciosos momentos. Ela tinha gosto de vinho e o calor reconfortante da casa.
Tão bom.
Quando nos afastamos, podia ver o brilho da raiva em seus olhos e sabia que era dirigida a meu pai. Mas tão rápido quanto apareceu, sumiu, e de novo minha namorada voltou a ser aquela espécie de fada moderna. Aconchegou-se de novo contra meu peito, deitada meio de lado e entre minhas pernas.
- Ficou ótimo. Nossa casa, digo. Eu adorei. E mesmo que aqui não seja Montana, acho que estamos em um típico Natal americano. Neve, ceia, bom, teremos ceia quando o peru ficar pronto, e uma decoração incrível. O que você acha?
Com nenhum pensamento do velho sequer passando perto da minha mente, estreitei-a em meus braços, respirando seu shampoo de tuti-frutti antes de responder:
- Acho que está perfeito.
- Quando eu era criança, costumava escrever cartinhas para o Papai Noel – falou de repente. - Eu queria um pônei. Bom, na verdade, eu queria um unicórnio, - riu, - mas ouvi sem querer a mãe de uma amiguinha dizendo que isso não existia. Então passei a pedir um pônei, o que obviamente não era muito viável para uma cobertura no Upper East Side. Ganhei bonecas, vestidos de princesas, casas enormes da Barbie, mas o que eu queria mesmo era o pônei. Já tinha até um nome: Ton-Ton.
- Ton-ton? - ri, interrompendo seu monólogo.
- É. Você sabe, como o ratinho da Cinderella. Ele é gordinho, fofinho. Adorável.
- Tem um chocolate com esse nome, não?
- O quê? - franziu o cenho. - Acho que sim, mas o que isso tem a ver?
- Só estava pensando que você adora dar nome de comida para os seus animas. Cookie, Scott, Ton-Ton.
- Como Scott é nome de comida? É abreviação de Scotland. Um país.
- Pronuncia-se do mesmo jeito que a bebida. Scott.
- Oh. Acho que você tem razão - riu, segurando um pedaço de minha camisa entre seus dedos. - De qualquer jeito nunca tive Ton-Ton, o pônei, não o chocolate - deu mais uma risada, achando graça na própria piada. - Não importava quantas vezes escrevi sobre Ton-Ton, não ganhava. Ai um Natal, quando tinha uns nove anos, decidi que Papai Noel não trazia meu presente porque não falava nossa língua direito, como vovô Merthier. Então decidi escrever uma carta em francês, o que, descobri depois de muitos anos, causou um pequeno caos na casa dos . Merè tinha viajado no começo de dezembro para visitar meus avós quando eles ainda moravam em Dijon, e papai não fala quase nada de francês. Não havia internet, facetime ou fotos eletrônicas, e ele decididamente não conseguia ler o que estava escrito por telefone para que merè traduzisse. Coitado. Teve que suar a camisa para conseguir traduzir porque merè só chegaria perto do dia quinze e ele estava com medo de não ter tempo para comprar o que quer que fosse. Tadinho de papai - apesar das palavras, ainda havia um toque de divertimento por ali.
- Já era um diabinho desde criança, né ? - belisquei sua barriga de leve.
- Para - ganhei uma cotovelada na barriga. - Isso faz cócegas.
Mais alguns segundos de silêncio e alguns goles de vinho.
- , se você pudesse escrever uma cartinha para Papai Noel hoje, o que você pediria?
Sua pergunta foi pensativa, como se estivesse ponderando a questão para si mesma, buscando uma resposta.
Parei por um instante, sendo pego totalmente de surpresa. Olhei ao meu redor. O cheiro de dar água na boca da ceia preenchia o ambiente, que estava iluminado por nada além da lareira que crepitava com um som gostoso. Minha atenção passou por nossos cachorros deitados embaixo da janela de vidro fechada, por onde podia ver a neve caindo de maneira mais suave do que tinha caído há algumas horas. Para além disso, também enxergava os inúmeros enfeites que tinha comprado, os edredons e travesseiros ao nosso redor, e as taças meio cheias de vinho ao lado.
Por último, abaixei o olhar para o rosto de , e para o jeito como parte de seu cabelo dourado caía sobre a testa, para os cílios longos que escondiam os olhos violeta, para as bochechas meio coradas. De onde estava, também via o decote que seu vestido deixava à mostra, e ali o colar que havia lhe dado de presente. Sua respiração era frequente e calma, e logo percebi que meu peito também estava tão leve quanto o seu. Fácil assim, então, sabia a resposta para a sua pergunta.
- Não iria pedir nada, . Tenho tudo que eu quero exatamente agora, exatamente aqui.



Caítulo 26

- Você fica sorrindo assim o tempo todo? - franzi o cenho, olhando para baixo e para Scott, que estava sentado ao meu lado, balançando o rabo enquanto, assim como Cookie, esperava pacientemente enquanto eu amarrava meu tênis.
Nosso novo cachorro estava todo pomposo, exibindo orgulhosamente a coleira dourada nova que eu tinha comprado para ele. E como não se pode fazer diferença entre as crianças, Cookie também ostentava sua mais nova coleira azul. Eles ficavam ótimos com suas coleiras, e minha namorada também ficou bem contente por eu ter me dado ao trabalho de parar em um Pet Shop na volta da I - ou por ela pensar que era isso que tinha feito.
O importante era que todos os três gostaram do presente.
Então, se, na verdade, mandei April encontrar a melhor loja de artigos para animais de estimação em Manhattan e dirigi por mais de treze quarteirões para comprar aqueles objetos, não precisava saber. Também ficaria longe de seu conhecimento que as duas tinham chips de rastreamento que mandava a localização deles 24 horas por dia para um novo aplicativo em meu celular que tinha feito questão de aprender a usar. E, por fim, se ela não prestasse bastante atenção, também nunca descobriria que, quando a vendedora perguntou se queria que colocasse o nome deles na parte de trás dos pingentes, mandei cravar “Cookie ” e “Scott ”.
- Prontos? - levantei do sofá.
Os dois latiram em respostas.
- Certo. Mas dessa vez vai ser menos tempo, entendido? Ainda tem muita neve.
Eles me olharam solenemente, como se estivessem concordando. Sacudindo a cabeça, abri a porta e deixei que eles passassem.
- Estou perdendo o juízo e ficando igual a - murmurei para mim mesmo ao trancar a porta. - Conversas inteiras com dois cachorros. Só posso imaginar o que Chase diria sobre isso.
Fizemos o caminho que tinha menos neve no parque. Não que isso importasse para Scott, que aproveitou cada amontoado de flocos brancos para pular em cima, por vezes ensopando seu irmão e eu de água. Cookie, por sua vez, permaneceu ao meu lado o tempo todo, já acostumado com nossa rotina matinal. Encurtei o trajeto, uma vez que não queria que nenhum dos dois se resfriasse, e no caminho de volta, Scott resolveu que tinha brincado tudo o que queria e agora imitava o jeito como seu irmão trotava ao meu lado.
- Oi, amor. - me cumprimentou da cozinha quando abri a porta.
- Olá - respondi, tirando o gorro da cabeça e observando enquanto nossos cachorros corriam para ela para também ganhar um carinho.
- , eles estão todos molhados de novo - resmungou baixinho, levantando-se do chão quando me aproximei.
Dei-lhe um beijo rápido nos lábios, tomando cuidado para não encostar nela para que a água em minhas roupas não respingasse.
- Vou usar aquele secador idiota que comprei e deixá-los bons como novos antes de sair para trabalhar, ok?
- Ótimo - entregou-me minha caneca cheia de café preto fumegante - Mas você não vai se atrasar para o trabalho?
- Provavelmente - encolhi os ombros antes de tomar um gole para me livrar dos resquícios de frio lá de fora.
Observei seu rosto se contorcer em uma careta de nojo.
- Que foi? - ri.
- Esse negócio deve ser nojento sem açúcar.
- Nem todos nós somos formiguinhas, .
- Diz o cara que implora por uma sobremesa todo final de semana.
- Touché - dei uma risada a contra a borda de minha caneca.
- Mas esquecendo esses hábitos nojentos por um segundo, você não respondeu minha pergunta direito. Não tem problema você chegar atrasado?
- Provavelmente. A questão é que não me importo.
Nesse quase um ano tendo pedaços da minha alma sendo sugados diariamente na I, estava me aproximando perigosamente do meu limite, o ponto onde já não ligava a mínima para aquele lugar. E se chegasse atrasado? E se faltasse um dia? O que o velho iria fazer? Me demitir?
Só aquela possibilidade, por si só, já era risível. Dante havia me incomodado cada segundo da minha vida para que um dia trabalhasse na empresa da família, então era óbvio que ele não deixaria escapar tão fácil a oportunidade de me ter tão visivelmente sob sua zona de influência.
Resmungar na minha cabeça até eu ter vontade de estourar meus próprios tímpanos, sim, provavelmente. Agora me chutar da I? Não. Com certeza não. Então é, eu estava sim ignorando meus deveres porque ou eu me dava pequenas pausas do tipo chegar atrasado, ou largaria aquela porra toda de uma vez.
- Ok… - minha loira murmurou depois de um tempo, intervalo temporal esse em que provavelmente passou tentando entender o que eu realmente queria dizer.
Era engraçado como passei a reconhecer suas expressões e manias. Sabia, pelo jeito como ela franzia o cenho, que estava tentando ler nas entrelinhas para entender tudo que não havia colocado em palavras. Normalmente quando alguém fazia isso me irritava profundamente, afinal, se quisesse que a pessoa soubesse de algo, eu diria, porém, de novo, era minha exceção. E, ao invés de ficar de saco cheio, então, achava adorável como ela queria me entender.
- , se você não quiser chegar atrasada também, talvez devesse começar a se mexer - murmurei antes do último gole de café e ao dar uma espiadela no relógio pendurado na parede atrás dela.
- O quê? - deu um pequeno pulo, parecendo despertar dos devaneios que estava tendo. - Nossa! - exclamou ao olhar por cima do ombro e para as horas.
Sem nenhuma outra palavra disparou para o corredor, não sem antes esbarrar com força - o que resultou em um palavrão - contra uma cadeira.
Sacudindo a cabeça e sem poder evitar um sorriso divertido, lavei minha caneca e também a dela, que havia sido abandonada em sua maratona contra o atraso. Depois de ter a certeza de que nossos cachorros estavam secos e livres de uma possível pneumonia, tomei banho e vesti um daqueles ternos idiotas que pareciam pesar quilos sobre meus ombros. Saí de casa com cerca de uma hora de atraso, o que, somado ao tempo perdido no trânsito, fez com que chegasse em meu escritório duas horas depois do horário normal. Cumprimentei April no caminho para minha sala, onde me enterrei pelas próximas seis horas, só parando por quinze minutos para devorar o almoço que minha secretária trouxera. Estava a poucos e doces minutos da liberdade quando a batida seca na minha porta anunciou a entrada de Near. Pela expressão cautelosa em seu rosto, soube que não gostaria de o que quer que fosse que ela iria dizer.
- Pois não?
- Senhor , eu acabei de encontrar com Tessa, a secretária do senhor Carthiar.
Carthiar era um senhor de cerca de sessenta anos que se responsabilizava por toda a área de marketing. Um homem estranhamente simpático para ser trabalhador naquele lugar. Esperava que ele continuasse resistindo ao poder de corrupção de Dante, que conseguisse se aposentar antes que o velho o levasse para o lado diabólico da força. Apesar de ele ser o mais próximo de um colega de trabalho que admiro, não fazia nem ideia de por que era o tópico da conversa.
- Sim? - deixei-lhe uma dica quando ela continuou parada, ainda com aquele olhar receoso.
- Tessa me perguntou por que o senhor não vai levar um par ao baile anual da empresa.
Parei a meio caminho de vestir meu paletó.
- O quê?
Ela respirou fundo e mesmo com praticamente todo o espaço de minha sala nos separando, pude ver a maneira como apertou o iPad contra seu peito antes de falar:
- Parece que o baile anual será dia 31.
- Trinta e um de janeiro? - passei o outro braço pelo casaco e fechei o botão.
- Trinta e um de dezembro. Daqui dois dias.
- O quê?
- Senhor, eu realmente não sei o que aconteceu - voltou a falar, meio trêmula depois de se recuperar do pulo assustado que deu para trás. - Eu olhei cada um dos e-mails e memorandos que recebi nos últimos três meses e, senhor, eu juro, não há nada. Nenhum aviso. Nada sobre datas novas. Eu… eu realmente não sei o que aconteceu.
Esfreguei a mão pelo rosto, fechando os olhos por um segundo para controlar meu temperamento.
Como ela poderia ter perdido em meio a sua agenda o evento social mais importante da empresa?
Eu precisava de um aviso prévio antes de ter que passar por esse tipo de merda. Odiava, odiava, odiava aquele tipo de coisa. Era como uma a reunião anual do Satã, onde eles combinavam como foder com a vida de todo o universo. Ou, uma melhor descrição ainda desses eventos era que Dante realmente gostava deles. Dava para imaginar o tamanho da tortura quando em pessoa apreciava o lugar. Em algum ponto da minha mente, por debaixo de todas as camadas de raiva e das pontadas de pânico, ainda podia ouvir April falar freneticamente:
- Não tem nenhuma lógica, senhor…
- ...e quando perguntei todos tinham…
- … Missy nunca errou na lista de presença…
Abaixei a cabeça, virando-me para ela.
- O que disse?
- Disse que realmente sinto muito so-
- Não. O que disse sobre Tissy?
- Tissy? - franziu o cenho - Oh! Missy, sim, Missy… bom… é… Missy nunca cometeu nenhum erro em relação a lista de presença do baile anual antes.
- É Nissy quem deveria te mandar as informações sobre a festa?
- Sim – assentiu. - Ela sempre cuida dos preparativos junto com a companhia de eventos contratada.
- Filha da mãe - murmurei para mim mesmo, apertando a ponte do meu nariz entre o indicador e o polegar.
- Senhor?
Respirei fundo para controlar a vontade de atirar alguma coisa contra a parede. Aquela vadia tinha feito de propósito, tinha nos deixado no escuro de propósito.
Minha vontade era de i-
- Senhor?
A voz de April interrompeu meus pensamentos sobre fatos um tanto quanto ilegais. Podia sentir a raiva subindo como ondas escaldantes até chegarem em meu pescoço e, por um segundo, impedirem-me de falar. De novo precisei encher os pulmões de ar e recorrer ao treinamento de anos para me controlar o suficiente para pensar com clareza.
- Certo - passei a mão por minha testa para estabilizar a voz a fim de que parecesse menos como um grunhido. - Certo. Você vá, por favor, falar com aquela va-mulher. Vá falar com aquela mulher e diga que estarei presente e que levarei um par. É isso.
Ela estava fora de meu escritório antes que pudesse agradecê-la e tive vontade de me chutar porque, obviamente, April não tinha nenhuma culpa se Rissy tinha ressentimentos demais e ética de menos. Não me surpreendia por ela muito provavelmente estar transando com o velho. Eles se mereciam. Tinham qualidades absolutamente adoráveis. Satã teria medo da cria que aqueles dois poderiam produzir. Felizmente o jeito pão-duro de Dante servia para alguma coisa. Uma vasectomia para prevenir um outro alguém de olho em sua herança, e um pequeno presente à humanidade na garantia de que não haveria outra versão de Sr. para aterrorizar o mundo.
Precisando clarear a cabeça, dei alguns passos até ficar em frente a enorme janela panorâmica. As luzes da cidade e os exercícios de respiração conseguiram fazer com que a raiva baixasse a um nível em que meus ouvidos não estivessem mais zumbindo. Foram alguns bons minutos encarando arranha céus até ter a certeza de que estava em condições de pegar o carro e voltar para casa. Quando finalmente consegui ir embora, o caminho parecia ter crescido para alguns novos e intermináveis quilômetros no espaço das horas em que ficara preso na I. Sentia como se tivesse passado dias camuflado sobre a pesada areia do deserto ao invés de horas em um escritório com o mais moderno sistema de aquecimento que o dinheiro poderia comprar. Estava com o humor tão ruim que só percebi que havia esquecido de comprar nosso jantar quando coloquei a chave na fechadura de casa. Fechei os olhos com pesar, sentindo-me um idiota enquanto o clique da chave soava baixinho. Abri a porta depois de um suspiro pesado e, logo no primeiro passo para dentro, o cheiro de tempero fritando chegou até mim. Não fazia nem ideia do que era, mas estava cheirando tão gostoso que parte do meu mau humor sumiu. A outra parte da irritação desapareceu quando nossos cachorros vieram correndo me receber, sacudindo os rabos em afeição ao esperar pacientemente para receber um carinho. Eles eram tão malditamente adoráveis que não pude evitar um sorriso ao coçar atrás das orelhas deles.
- Vocês se comportaram hoje, não é mesmo? - falei baixinho.
- Você sabe que eles só se comportam com você.
Levantei a cabeça para encontrar minha namorada encostada no batente da porta da cozinha, enxugando as mãos em um pano branco. Ela usava uma calça de moletom cinza, sapatilhas pretas e uma regata branca. Seu cabelo estava meio preso em um rabo-de-cavalo bagunçado. Casual e confortável eram as palavras para descrevê-la, e, mesmo assim, nunca a achei tão linda. Talvez isso tivesse a ver com o fato de que toda a tensão que estava sentindo levantou de meus ombros, com a mesma facilidade com que tirei meu casaco, ao entrar em casa e simplesmente encontrar , ou talvez senti como se toda a merda do meu dia tivesse valido a pena só para poder chegar em casa e vê-la sorrindo assim.
- Deixe de ser exagerada, Ravena - voltei a me endireitar, passando pelo caminho que Cookie e Scott deixaram entre si até chegar onde minha namorada estava.
Passei os braços por sua cintura e tomei alguns bons momentos beijando-a devagar. Ela bateu a mão em meu ombro no que supunha deveria ser um tapa, mas que serviu apenas para me mostrar que ela queria um pouco de espaço. Franzindo o cenho, afastei-me, e fiquei ainda mais confuso ao vê-la arqueando uma sobrancelha e sorrindo.
- Deixa de ser idiota, - resmungou, revirando os bonitos olhos violeta. - Você sabe que eles só se comportam quando você está por perto. Viu? - com a palma da mão espalmada para cima, gesticulou para o chão.
Abaixei o olhar, encontrando os dois sentados, pacientemente olhando para cima e para nós.
- Realmente não sei por que você fica caluniando nossos cães. São perfeitamente bem comportados - comentei verdadeiramente.
Ela ofegou, incrédula.
- Ninguém merece - sacudindo a cabeça, voltou para cozinha.
Segui minha namorada, ainda mais confuso. Encontrei-a mexendo com uma colher o que quer que fosse cheirava tão gostoso.
- Que foi, ?
- Você sabe que eles só se comportam quando você está por perto.
Não havia ressentimento em sua voz, apenas um tom cansado, como se eu fosse uma criança que não conseguia entender o básico da vida. E porque eu realmente não queria ficar com saco cheio de novo, ignorei sua petulância - e sua recém desenvolvida mania de perseguição envolvendo o comportamento de nossos cachorros - e abri a geladeira.
- O que você está cozinhando?
- Macarrão.
Decidindo então por uma garrafa de um bom vinho uruguaio que Appleby trouxera. Ela podia ser uma baixinha paranoica e ter sérios problemas de memória, mas nem mesmo os sommeliers metidos que meu pai contratava para todas as festas entendiam tanto de vinho. Aquilo era, no mínimo, intrigante.
- , sua amiga maluca fez curso de vinho?
- Minha ami-Ah. Ava? - franziu o cenho, olhando-me por sobre o ombro. - Não. Acho não - voltou a cuidar do nosso jantar. - E ela não é louca - resmungou depois de um tempo.
- Sua demora para acrescentar essa defesa já diz tudo - peguei as taças e coloquei sobre a ilha. - Como você sabia que eu não traria o jantar? - enquanto derramava o vinho contra o cristal, vocalizei a pergunta que me ocorrera a pouco.
- Você sempre manda uma mensagem de texto sobre o novo restaurante que descobriu e sobre os pratos que vai trazer para casa. Quando deu oito horas e não recebi nada, imaginei que algum imprevisto tinha acontecido. Então cá estamos. Com macarrão e brócolis. Está oh! - deu um beijo nos dedos em um claro gesto de apreciação tipicamente italiano. - Quem sabe isso melhore esse seu humor.
- Pensei que você fosse meio francesa, não italiana.
Resmunguei qualquer coisa, escolhendo me apegar a alguma futilidade qualquer, e não ao fato de que minha namorada me entendia o suficiente para não ficar me ligando sem parar quando me atrasava um pouco e que conseguia ler meu humor tão facilmente, mesmo quando não lhe dei nem uma única pista a respeito.
- Sou metade francesa, metade americana e - esticou a conjunção, virando-se para mim com uma mão na cintura, a sobrancelha erguida e um sorrisinho no canto dos lábios - cem por cento cosmopolita.
Não pude evitar uma risada.
- Certo, Madonna. Aqui seu vinho - ainda divertido, pousei a taça ao seu lado sobre a pia, aproveitando para dar um beijo em seu pescoço cheiroso. - Vou arrumar a mesa e tomar um banho rápido. Dá tempo?
Ela encolheu os ombros, aproveitando o arrepio antes de responder:
- Cinco minutos.
- Suficiente.
Apressei-me em arrumar a mesa da cozinha para sobrar tempo para a ducha. Para os poucos minutos que estive embaixo da água, a droga daquele baile imbecil ficou martelando em minha cabeça com uma frequência assustadoramente alta. Depois de vestir um jeans qualquer, voltei para cozinha, arrastando os pés como uma criança que tentava evitar o inevitável. Talvez minha namorada não estivesse errada em usar aquele tom condescendente.
estava colocando a tigela com nosso jantar sobre a mesa. O cheiro estava tão bom que por um segundo esqueci que estava a segundos de nos colocar a caminho das portas guardadas por Cébero.
- Bem a tempo.
Ela sorriu e nos acomodamos à mesa. Durante boa parte da refeição, minha namorada tagarelou sobre seu dia nos mínimos detalhes enquanto eu tentava juntar as palavras. Enrolei até literalmente a última garfada e provavelmente teria tentado fugir por mais tempo não fosse se recostando em seu acento e cruzando os braços.
- Certo. Comece a falar, . O que aconteceu?
- Aconteceu?
- Não se faça de idiota. Você se atrasou, falou menos do que o normal, o que basicamente significa que você emudeceu de vez, e está perdido dentro da própria cabeça há mais minutos do que o saudável. Tentei fazer do seu jeito e esperar, mas obviamente você está tentando me dizer alguma coisa, então vamos lá. Estou ouvindo.
Realmente irritante essa habilidade que ela tinha. Reprimi um grunhido, passando a mão pelo rosto ao admitir a derrota. Derrota, sim. Porque bastou uma olhada rápida em seus decididos olhos violeta e sabia que não havia absolutamente nenhuma chance de que conseguiria sair dali sem fazer exatamente o que ela queria.
- Todos os anos a I oferece um baile para os grandes empresários do mundo todo. É um evento muito grande e exclusivo. Todos os maiores babacas de todos os ramos que meu pai considera remotamente importante estarão lá. É presença obrigatória para todos os diretores.
Entendimento começava a suavizar as linhas de expressão em seu rosto.
- Detesto ter que pedir isso, - continuei - mas você gostaria de me acompanhar ao baile anual da Industries?
Mal havia acabado de falar e percebi o tamanho da besteira que tinha feito. Podia ver a tristeza tomando conta de seu rosto dela, mesmo quando piscou os cílios e desviou o olhar.
- NÃO! - estiquei o braço e cobri minha mão com a sua, segurando mesmo quando ela tentou puxar para longe. - Não foi isso que quis dizer. Espera um pouco - puxei meu cabelo com frustração por ser um idiota completo e, aparentemente, também por ser incapaz de me expressar direito em inglês simples. - Você não entendeu. Quer dizer, a culpa foi minha. Quer dizer… ah velho maldito - resmunguei para mim mesmo, e tomei um momento para respirar fundo. - Não queria ter que pedir para vir comigo porque o evento é uma merda. Eu odeio aquele lugar, aquelas pessoas. Não queria ter que te arrastar para isso também. Mas fui pego de surpresa e acabei afirmando que levaria uma acompanhante - aqui fiz questão de ter a certeza de seu olhar estava no meu. - Se você não for você, não existe nenhuma outra pessoa que quero lá comigo - levantei sua mão até meus lábios, beijando, com carinho, seus dedos. - Então, , você daria a honra de me acompanhar naquele baile de merda e me salvar de morrer de asco?
- Claro que eu vou com você - ela sorriu. - E serei seu colete salva-vidas, mesmo tendo a certeza de que você está exagerando.
- Exagero nenhum - sacudi a cabeça. - Apenas realidade. Mas obrigado - deslizei os lábios por sua palma.
- Vai dar tudo certo, amor.
E ela disse aquelas palavras com tão suave e confiantemente que por um segundo acreditei. Obviamente, naquele instante, não tinha ideia de quão errada minha namorada estava e de quanto aquilo nos custaria.

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- Deixa eu ver se entendi essa história direito - podia ouvir seu tom condescendente, mesmo por sobre as camadas de sono, atrás de mim enquanto passava as araras. - Você me acordou às cinco e meia da manhã no único dia da semana em que eu durmo até às oito, me fez cruzar metade de Manhattan para comprar um vestido?
- Eu falei para você tomar um copo de café antes de sairmos - olhei por sobre o ombro com uma careta para encontrá-la sentada no sofá creme, emburrada em seus jeans e moletom em uma caricatura do desalinho, justamente o oposto da vendedora ao seu lado, que exalava elegância para combinar com a loja. - Você fica absolutamente insuportável sem uma boa dose de cafeína.
- Ah, sim - resmungou, irônica. - A insuportável sou eu, né? Você me acorda de madrugada, não me conta o porquê e a insuportável sou eu.
Ao examinar um vestido preto de seda, ponderei que ela tinha certa razão. Realmente não tinha justificado meu comportamento meio maníaco naquele dia, mas estava evitando vocalizar o problema porque isso faria com que ele se tornasse ainda mais real, ainda maior e aterrorizante. Sabendo que aquela era uma solução insustentável e, sinceramente, bem infantil, respirei fundo, largando o tecido que estava entre minhas mãos e me virando para Avalon.
- me convidou para ir ao baile da Industries. Aparentemente é um evento muito importante do mundo dos negócios. E estou muito nervosa porque sei que vou conhecer o pai dele. Então será que dá para você parar de resmungar?
Estava bastante consciente de que não tinha nenhum direito de falar com ela daquela maneira impaciente, mas também era humana e acabei por me entregar ao maior dos pecados humanos: o de procurar um bode expiatório para nossos problemas. Felizmente minha melhor amiga ficou chocada demais para se chatear.
- O pai do Leo? Você vai conhecer o papa ?
- Não acho que “papa” seja um jeito que se possa descrevê-lo, mas, sim, vou conhecer Sênior.
- Por que não? - franziu o cenho. - Tanto faz - deu de ombros, dando pouca importância para sua própria pergunta. - Agora estou entendendo porque você está nervosa - passou a mão pelo rosto, levantando-se e indo até uma das araras para analisar as opções. - Mas tá tudo bem. Vamos encontrar um vestido para esse seu baile.
- Ah - suspirei, abandonando mais um vestido de cor escura. - Queria que fosse fácil assim - abaixei o tom de voz, dando alguns passos para ficar mais perto de minha amiga e garantir privacidade. - Não é medo de conhecer o pai do namorado.
Ava me lançou um olhar irônico, arqueando a sobrancelha.
- Ok, ok. Talvez um pouco seja isso, mas estou ainda mais preocupada porque e o pai não se dão bem.
Preferi uma resposta mais evasiva a contar que, pelo pouco que meu namorado falava sobre o pai, podia pressupor que o homem era o mais perto de Lúcifer que algum humano poderia chegar.
- Além disso, - continuei - estou preocupada sobre encontrar a roupa perfeita. Principalmente com tão pouco tempo.
- Que tal esse aqui? - ergueu o cabide que segurava um vestido verde-água longo e de mangas cumpridas. - Espera. O que você quer dizer com “pouco tempo”?
- Era para ter sido em outubro, mas parece que eles tiveram problemas com o salão onde normalmente a festa é feita. Estava em reforma ou algo assim, então tiveram que adiar diversas vezes, e me contou que a mulher responsável por informá-lo da nova data o odeia e “esqueceu” - com a mão que não acariciava o tecido vermelho de um novo vestido, fiz o gesto de aspas com os dedos indicador e do meio - de lhe avisar que seria agora. Ele ficou muito bravo. Precisava ver.
- O que você quer dizer com “agora”?
- Ano novo.
- O quê? - ofegou. - Ano novo? Daqui dois dias?
- Ano novo do ano que vem é que não é, né Ava.
- , amiga, não use esse tom comigo - sacudiu o dedo indicador em riste. - Afinal, seria muito mais compreensível se fosse ano que vem. Como nós vamos encontrar um vestido bom nesse meio tempo?
- Bom não. Perfeito. Não posso dar uma razão para senhor implicar com .
- Você não quis dizer implicar com você?
- Não. . Você sabe que não me importo com que as pessoas pensam, mas detestaria ser mais um ponto de conflito entre os dois - senti meu peito se contrair só com aquela mera possibilidade. - É sério, Ava. A relação deles é extremamente delicada. Não quero dar mais uma razão para que ele implique com meu namorado.
Podia ver a curiosidade dançar nos olhos de Ava, mas felizmente ela apenas balançou a cabeça e se voltou, agora bem mais determinada, para os tecidos finos dos diversos vestidos exclusivos que a loja oferecia. O fato de buscarmos o vestido ideal nos causou cansaço extremo depois de excursões intermináveis a provavelmente todas as lojas refinadas de Manhattan, algumas boas discussões geradas graças a frustração pela procura infrutífera, e até mesmo algumas lágrimas de profundo desespero. Quando estive prestes a mandar minha melhor amiga para o inferno foi que percebi que precisávamos de uma pausa. Passei a noite inteira remoendo esse problema e vez ou outra murmurando para uma desculpa envolvendo uma dor de cabeça - que não chegava a ser falsa - quando ele ficava me olhando, preocupado. No dia seguinte de novo cancelei minhas consultas e fiz Ava perder outro meio-dia de trabalho. Os nervos estavam ainda mais a flor da pele, uma vez não havia a opção de não encontrar o traje correto. Aquele era o prazo final. Amanhã teria que me arrumar para o baile, não sobrando qualquer instante para correr atrás de pormenores ou me estressar com problemas enormes. Foi na quinta loja que entramos, a Prada da Madison Ave, que encontramos a solução para meu problema.
- Que tal esse?
Surpreendi-me bastante ao levantar a cabeça e descobrir que, apesar do tom derrotado, Ava segurava um vestido amarelo maravilhoso. Era longo, de alças finas e mesmo de longe podia-se ver como o tecido dançava ao mais simples movimento. Parecia ouro líquido. Aproximando-me devagar, quase como se estivesse com medo de que o traje desaparecesse no ar se me movesse muito rápido, peguei o cabide das mãos dela e basicamente corri até os provadores.
Alguns minutos depois, extremamente satisfeita com o que via no espelho, dei um passo para fora do cubículo para pedir a opinião de Ava.
- Que tal? - dei uma pequena rodopiada para que ela tivesse uma visão melhor.
- Ficou incrível, - praticamente deu alguns pulinhos animados no sofá, batendo as mãos uma na outra em apreciação. - Nem mesmo Anna Wintour encontraria um defeito.
Assentindo com um sorriso, voltei para me trocar de novo e não muito depois já tinha finalizado a compra e estávamos de volta às ruas da Cidade que Nunca Dorme. Agora só faltavam os sapatos, mas, dessa vez, sabia que não teríamos problema, pois se alguém entendia de sapatos, esse alguém era Avalon Appleby. Sem hesitação, minha melhor amiga agarrou minha mão e me puxou por entre as multidões e direto para uma loja pequena espremida entre os prédios da Allen e a Henry Steet. Se não estivesse tão preocupada com a situação em que estava, teria passado horas apreciando cada uma daquelas pequenas maravilhas do mundo moderno materializados na forma de calçados. Ao invés de infinitos minutos de apreciação, contudo, em instantes, e com uma familiaridade de quem conhece bem o lugar, Ava encontrou a sandália prateada que combinava perfeitamente com o meu mais novo vestido. Depois disso fizemos o caminho de volta para casa, onde minha amiga foi rápida em partir para Appleby’s com a desculpa de que precisava ter a certeza de que Stella não tinha colocado fogo no lugar, mas sabia que ela precisava de um tempo sozinha, bem longe dos meus surtos sobre Dante me odiar. Por sorte consegui a promessa de que Appleby voltaria amanhã à tarde para me ajudar a me aprontar.
Naquela noite nem nem eu conversamos muito, ambos imersos demais nos próprios receios sobre o baile no dia seguinte. Esperava que as horas se arrastassem agonizantemente, porém o tempo voou e quando me dei conta Avalon estava dando as últimas retocadas em meu penteado, puxando as mechas que ficariam soltas naquela espécie de coque, antes de dizer que estava tudo pronto e que podia ir encontrar meu Leônidas.
Não admitiria isso nem para mim mesma, mas, quando coloquei o pé na sala, estava mais nervosa agora do que no dia em que precisei ligar para Spencer para pedir que ele fosse até o 21 DP para tirar Ava e eu da cadeia. Isso era o tanto que queria que meu namorado gostasse de como eu estava. estava de costas para mim, encarando a vista incrível de nossa janela panorâmica com um copo de seu adorado uísque precariamente seguro entre dois de seus dedos. Nossos cachorros estavam lealmente deitados aos pés dele e todos os três se viraram para mim ao me ouvir chegar. Scott e Cookie latiram animados, como se estivessem me elogiando, mas o que me chamou atenção não foi a inteligência fora do normal deles, e sim a maneira como me encarava.
Já tinha visto meu namorado de muitas maneiras. Com raiva, divertido, com tesão, com ciúmes. Impassível. Quase sempre impassível. Mas sempre por escolha. é extremamente culto, decidindo se manter quieto simplesmente porque não quer falar. Impassível por escolha, por tanto. Dessa vez, entretanto, não se tratava disso.
Já assisti, pois, meu namorado reagir de vários jeitos, mas aquela foi a primeira vez em que o vi sem palavras. Durante intermináveis segundos só houve silêncio. Minhas mãos encontraram um pedaço do pano amarelo e nervosamente comecei a retorcê-lo. O nervosismo estava lenta e cruelmente me sufocando.
Ele tinha odiado?
Horas pareciam ter se passado, mas certamente não foram mais do que alguns segundos, quando já não podia mais suportar aquela incerteza e falei, com a voz meio trêmula:
- Diga alguma coisa, . E certifique-se de que seja algo lisonjeiro.
Ao invés de me obedecer, abandonou o copo de uísque na primeira superfície plana que encontrou, que, no caso, era a prateleira de livros perto da janela, e venceu a distância entre nós. Assim que estava a seu alcance, passou os braços por minha cintura, atraindo-me contra seu corpo antes de abaixar a cabeça para me dar um beijo que fez minha cabeça rodar.
- Você está magnífica, . Uma rainha sexy que hipnotiza seus plebeus com esses olhos violeta - sussurrou, rouco, contra meus lábios. - Que me hipnotiza - como que para enfatizar suas palavras inebriantes, pressionou seu quadril contra mim me deixando sentir sua ereção.
Reprimi um murmúrio de necessidade, minhas bochechas se colorindo enquanto a excitação também me tomava. Queria esquecer sobre o baile e todo o resto, queria dar uns passos para trás e nos levar para o quarto, e, pelo jeito como os olhos dele escureciam, não iria se opor nem um pouco. Felizmente fomos impedidos de fazer a besteira de não aparecer no baile ao sermos puxados para fora de nossa bolha pelo tom irônico de Ava:
- Por favor, vamos manter as coisas classificação livre enquanto eu estiver aqui, certo? Além disso, - continuou quando nos afastamos um pouco - não vão desperdiçar todo o trabalho que tive para fazer toda essa produção, né? Certo, certo. Agora vamos nos mexer.
Dei um beliscão na parte interior de seu antebraço, apertando pele e o tecido suave do terno Armani preto quando percebi que ele estava prestes a respondê-la com alguma coisa provavelmente bem pouco agradável. , então, bateu os lábios, mantendo a boca fechada, e em silêncio fomos para garagem depois que ele teve a certeza de que Ava estava segura dentro da própria casa. Sua mão direita pousou em minha coxa enquanto dirigia pelas ruas de New York. Vagamente reconheci o caminho que fazíamos, mas só quando ele estacionou o Jaguar em frente a um prédio bem conhecido foi que me dei conta de onde exatamente estávamos.
- The Imperial House? - murmurei, olhando para cima e para arquitetura gótica que sempre me fascinava.
olhou para baixo e para mim, franzindo o cenho.
- Você conhece esse lugar?
Conhecer? Claro que eu conhecia. Podia ver que uma reforma havia sido feita recentemente, porém o lugar mantinha suas incríveis características originais. A pergunta dele, contudo, era bem peculiar. Será que nunca tinha lhe contado sobre aquela parte da minha vida?
- Sim, sim. Na verdade, vinha muito aqui quan-
Os flashes cegantes e os fotógrafos gritando por atenção interromperam minha fala e colocou a mão em minha cintura para me guiar, firme e gentilmente, para o hall do salão e para longe da imprensa. Estava acostumada a festas grandiosas, tendo participado de muitas enquanto crescia, mas precisava admitir que aquela era a mais exuberante que já tinha visto. Parecia que tínhamos atravessado um portal e entrado direto no palácio de gelo mágico. Tudo era prateado ou em azul marinho. Lustres de cristal resplandeciam a iluminação calculadamente posicionada para que os tons de lilás, azul e prata dançassem pelo teto, pelo chão e por onde mais fosse possível criar o cenário etéreo.
Tentei manter meu deslumbramento sob controle, uma vez que continuava totalmente impassível, ignorando todos os enfeites, enquanto andávamos em direção a uma mulher muito bonita em um longo vestido preto parada perto porta de entrada. Ela lançou um único olhar para meu namorado antes de começar a falar rápido no comunicador discreto que tinha pendurado perto da orelha, sorrindo o tempo todo, gesticulou para o enorme portal de onde podíamos escutar a música vindo. Ao passarmos por ela, acenou com a cabeça em reconhecimento antes de entrarmos no salão em si.
O outro cômodo mantinha o mesmo esquema de decoração do hall. Onde o baile realmente acontecia, entretanto, havia muito mais movimento, com vestidos de todas as cores rodando na pista de dança e garçons de ternos brancos se mexendo eficientemente para garantir que todas os copos estavam permanentemente cheios. Também chamava atenção como vários pequenos grupos de homens em ternos caríssimos se juntavam para conversas privadas, ignorando a festa enquanto provavelmente confabulavam sobre negócios.
Várias pessoas se viraram para cumprimentar enquanto passávamos, mas ele apenas assentia antes de me forçar a andar um pouco mais rápido para não dar nenhuma chance que alguém nos parar para uma conversa. Só quando encontramos um canto mais vazio perto da pista de dança foi que paramos. Ele pegou uma taça de champanhe do garçom que passou por perto e estendeu para mim, antes de pegar um copo de uísque para si.
- Certo - resmungou depois do primeiro gole. - Nós ficamos aqui por umas duas horas e com sorte conseguimos evitar os babacas maiores. Com muita, muita sorte, evitamos o babaca chefe - vasculhava o lugar com os olhos durante todo o tempo que falava.
Sabia que aquele provavelmente não era o lugar para falar sobre isso, mas, com a personalidade fechada de , provavelmente nunca haveria um lugar ou momento certo, então resolvi arriscar:
- Por que você continua aqui? - abri o braço de maneira expansiva. - Por que continua trabalhando numa empresa que você claramente odeia?
Meu tom foi diminuindo até quase mal conseguir terminar a frase sob seu olhar intenso. Ele estreitou os olhos gelo e notei que seus dedos se apertavam no copo de cristal. Por um momento acreditei fielmente que não teria uma resposta, que começaria um assunto qualquer, ignorando completamente minha pergunta. Ou apenas permanecesse em silêncio. Já estava com uma desculpa pela intromissão na ponta da língua quando ele desviou a atenção para o líquido âmbar de sua bebida e começou a falar:
- Parece ser a coisa certa.
Aquela resposta vaga não dizia nada e talvez isso devesse ter sido um sinal para que eu abandonasse o assunto, mas aquilo estava me incomodando de uma maneira que era impossível ignorar. Era quase como se estivesse alguma coisa no fundo da minha mente me empurrando por aquele caminho tortuoso porque sabia que era um tópico muito importante. Passei, então, a língua por meus lábios repentinamente secos e continuei:
- Por quê? Por que é certo? , você odeia esse lugar.
- Eu não odeio a I, - sua voz havia se tornado tão vazia quanto sua expressão facial, podia ver que ele estava se entorpecendo. - A empresa em si não tem culpa de nada - terminou em um gole seu uísque, nenhuma careta surgindo, mesmo quando sabia o quanto aquele líquido queimava ao descer a garganta de maneira tão rápida e em tamanha quantidade. - Eu não gosto é de que o velho está usando o fato de que finalmente concordei em trabalhar aqui para me controlar.
Oh.
E ali estava o centro de tudo. Já havia juntado algumas peças e deduzia o problema, porém nunca o tinha ouvido admitir com todas as letras. Em voz alta. Para si mesmo.
Dei um passo para frente, precisando oferecer um pouco de conforto, coloquei a mão em seu braço.
- Você não precisa ficar aqui, – sussurrei. - Sei que deve ter seus motivos, mas a vida é muito curta para se ficar preso em algo que parece ser certo. Não é certo se isso está te sacrificando, amor. Você não precisa fazer isso, amor.
- Você não entende.
Sua voz ficou mais ríspida, mas ao menos não se afastou fisicamente, o que me encorajou a tentar de novo:
- Então me explica, amor. Me explica o qu-
- , meu garoto.
A voz masculina veio de algum lugar atrás de mim e senti meus olhos se arregalarem pois tive uma ideia bem precisa de quem havia nos encontrado. O jeito como se enrijeceu imediatamente me deu a certeza que precisava. Engolindo em seco, sabendo que era a hora de usar toda a coragem que estava reunindo nesses últimos dias, virei-me.
Pelo jeito como falava do pai, imagina ”o velho” como um homenzinho baixinho, talvez corcunda e com o nariz torto, careca. Sabia que era a velha história de projetar a personalidade ruim na aparência exterior, mas não conseguia evitar, portanto, sim, minha imaginação criou um pequeno monstro para representar Dante , então foi uma baita surpresa quando o encontrei.
Alto. Bem mais alto do que eu, mas alguns centímetros mais baixo do que meu namorado. Alguns cabelos grisalhos e distribuídos de maneira charmosa em seus fartos cabelos pretos. Não parecia que ele era um homem de recorrer a cirurgias plásticas, mas só podia ver algumas poucas rugas. Em suma, entretanto, o que realmente me chamou a atenção foi que Dante era a versão mais velha do filho.
Bonito, imponente e com uma presença impressionante. Eles eram iguais, exceto pelos olhos. Enquanto os olhos gelo que conhecia tão bem escolhiam se manter inexpressivos às vezes, os do homem na minha frente pareciam ter se esquecido de como era demonstrar algum sentimento, como se tivessem se habituado a ficar assim… vazios.
Senti um arrepio esquisito descer por minhas costas.
- Não vai me apresentar sua amiga, ? - havia um desdém bem construído ali.
Imediatamente entendi o porquê de ele preferir o apelido. Eu também não iria gostar de meu próprio nome se alguém o pronunciasse daquele jeito esquisito, como se sempre estivesse esperando por algo… ou planejando alguma coisa. Senti-me aliviada - e protegida - quando o braço forte de pousou em minha cintura e ele se aproximou um pouco mais.
- Pai, essa é , minha namorada.
- Sua namorada? - arqueou a sobrancelha com ainda mais desdém do que julguei ser possível alguém reunir em um gesto superficialmente tão casual. - Que adorável. Mas me diga, onde você conheceu a sua namorada.
Engoli em seco e decidi que não podia demonstrar medo, afinal essa era a primeira característica que o predador analisava antes de atacar, e falei:
- Nós somos vizinhos, senhor .
Aquilo pareceu chamar sua atenção.
- Vizinhos? Como vocês podem ser vizinhos. Aquele é um prédio exclusivo. O único outro apartamento no andar é o dos Merthier.
O aperto de ao meu redor se tornou mais firme, mas sabia não ser algum tipo de advertência, e sim uma provável reação ao modo como o velho ainda mantinha rédea curta em relação a vida do filho, colhendo informações importantes, como pormenores sobre com quem ele podia ter contato - mesmo que fossem seus vizinhos. Tentando agir como diplomata e espairecer o ar carregado que se formara, voltei a falar:
- Sim, senhor. Correto – assenti. - O apartamento em frente ao de era dos Merthier. Herdei quando minha avó faleceu, há alguns anos.
Foi literalmente como ver uma daquelas lâmpadas de desenho animado se ascender sobre sua cabeça, quase pude ver as engrenagens girando até que entendeu as implicações do que falei.
- Você é neta deles? Neta de Adien e Emeline Merthier? - agora seu tom estava limpo de qualquer coisa que não a mais pura surpresa, não mais o desdém, mas também nenhuma outra indicação sobre o que aquilo significava. - Filha de Vafara Merthier?
- Vafara , na verdade – sorri. - Sim. Isso mesmo.
- John , é claro! É claro, é claro - assentiu, analisando-me de alto a baixo antes de estreitar os olhos e se virar para o filho. - , preciso falar com você. Vamos - sem esperar e sem um único segundo de dúvida sobre se seria obedecido ou não, deu-nos as costas e começou a caminhar para longe.
Engoli em seco. O jeito duro como falou e a preocupação inexistente de mesmo criar uma desculpa para se afastar deixava claro que eu era o assunto daquela conversa que teriam.

Tirei minha atenção das costas largas de Dante e me virei para meu namorado. estava com a mandíbula travada, todo o corpo rígido e com tanta raiva que não havia nenhum resquício de expressão em seu rosto. Restava uma máscara tão fria que por um segundo não reconheci o homem na minha frente como aquele com quem dividia a cama todas as noites. Ele virou a cabeça para mim, desviando relutantemente o olhar da figura de seu pai ao longe.
- Já volto, .
Sabia que ele tinha se esforçado para que as palavras saíssem um mínimo calorosas e reconfortantes, mas não me ajudou em nada. Como ele tinha tentado, contudo, também balancei a cabeça mecanicamente, até mesmo conseguindo repuxar um sorriso fraco quando, depois de dar alguns passos, ele olhou para mim por sobre o ombro. Entretanto, ao vê-lo se afastar, senti um arrepio ruim descer por minhas costas e um mau pressentimento apertou meu peito.



Caítulo 27

Ainda me surpreendia em como o velho parecia estar sempre renovando seus métodos de tortura. Talvez a idade estivesse contribuindo para que ele se considerasse ainda mais acima das convenções sociais. Não que Dante realmente tivesse a idade avançada. Tinha pouco mais de sessenta anos, mas ele sempre se aproveitava de qualquer oportunidade ou desculpa que poderia arrumar para infernizar a vida alheia.
Deus que protegesse o mundo se algum dia Dante resolvesse se aposentar. Só Ele sabe o que velho conseguiria maquinar com tempo livre de sobra. O que quer que fosse, contudo, certamente rivalizaria com o que se passava em sua mente agora. Aquele sorriso me dava arrepios.
– Sim, pai? – perguntei assim que ele parou de andar em um canto mais vazio perto de uma pilastra.
Não muito longe podia ver Fissy com um sorriso tão falso quanto seu cabelo e um vestido vermelho surpreendentemente elegante, educadamente desviando as pessoas que tentavam se aproximar de nós para alguma conversa idiota. Seu trabalho como cão de guarda estava reluzente hoje, tanto quanto sua habilidade de me irritar. Ela adorava me interromper e eu detestava isso, mas no momento em que adoraria uma interrupção, ela cuidava justamente do contrário e eu a detestava ainda mais por isso. Contive a careta ao ter que me virar para o velho. Até mesmo observar o comportamento carniceiro de Wissy era melhor do que conversar com Dante.
, por que você não me disse que estava namorando aquela mulher?
Estranhamente sua voz parecia conter menos desdém do que o normal, o que imediatamente fez alarmes dispararem em minha cabeça.
– Não apareceu a oportunidade.
Respondi cautelosa e resignadamente, já me preparando para a discussão que certamente aconteceria quando ele começasse a destilar seu veneno sobre como não era adequada por qualquer dos motivos distorcidos que ele julgava ser preciso como a mais reta das réguas.
– Então… você está namorando a jovem Merthier – falou quase que para si mesmo, olhando para o longe por sobre a borda de seu copo.
Pude ver seu sorriso gelado por de trás da transparência do cristal e foi como se dedos de aço se fechassem em meus pulmões, apertando-os de maneira dolorosa. Engolindo em saco, encontrei minha voz para corrigi-lo:
. O nome dela é . .
– Ah sim. – estalou a língua. – É verdade. Agora me recordo. Os arquitetos de minhas mansões. . Sim. Escritório enorme. Sim. Não tinha feito a conexão.
– O quê?
Mas ele não estava me ouvindo. Como sempre, tudo que lhe importava era seu próprio pensamento, suas ideias, então continuou murmurando para si mesmo, ainda que estivesse teoricamente falando comigo.
– Ah, . Tão esperto de sua parte. Nunca pensei que tinha isso em você.
– Pai, do que você está falando? – dessa vez o tom assertivo finalmente fez com que ele se virasse para mim.
– Como do que eu estou falando? De esse seu… namoro – cuspiu a palavra com desdém. – Tão bem arquitetado esse plano, aproveitando-se da oportunidade que caiu no seu colo. A herdeira Merthier. Que fisgada. Ela se adequa perfeitamente a sua nova posição. Rica, certamente com boa educação e até que ela é bonita. Não que esse último critério fizesse muita diferença – abanou a mão como que para espantar essa ideia que considerava irrelevante. – O importante são os outros dois. Herdeira e educada. Essa tal Rebecca vai ser a esposa perfeita para você. Vou ser sincero, , não pensei que você tinha o que era preciso. Se jogando como um idiota naquela floresta esquecida por Deus, francamente, . Você precisa entender que pessoas como nós não fazem esse tipo de coisa. Reis mandam peões. Exatamente como em um jogo de xadrez, jogo esse que pensei que você nunca aprenderia. Mas, que surpresa – abriu os braços e deu mais um daqueles sorrisos calculados, uma risada estranhamente sincera sacudiu seu corpo. – Cá estamos. Você, por fim, aprendeu. Agora precisamos amarrar isso com mais firmeza. Quanto tempo vocês estão ”namorando”? Não importa. Mais duas semanas já é um prazo bom para um pedido oficial. Imagina, unir a fortuna Merthier e a . Alcançaremos a lua. Ha! Ainda tem o nome . Bastante respeitado. Podemos mandá-la para aqueles eventos de caridade detestáveis. Ótimo, . Segunda-feira vamos planejar tudo. O casamento vai ser o evento do ano – ergueu o braço para dar ênfase, depois pousou a mão em meu ombro. – Ótimo, . Estou orgulhoso de você, filho. Agora preciso falar com Missy para que ela comece os preparativos.
Dizendo isso, saiu de meu campo de visão, indo para não sei onde, pois não conseguia me mexer para ver nada ou me importar com qualquer coisa. Sentia que o tapa que ele dera em meu ombro, no que provavelmente deveria ter sido uma maneira reconfortante, afundara meus pés no mármore branco do mosaico do chão. Talvez meu cérebro ainda estivesse absorvendo o que tinha acontecido, ou talvez apenas tivesse se fechado em si mesmo para impedir que entendesse as consequências do que se passou.
A respiração estava presa em minha garganta e as imagens ao meu redor sumiram em borrões coloridos enquanto minha cabeça tinha pequenas e novas explosões doloridas a cada vez que uma nova realização me atingia com a força de um tanque.
Merthier.
Os produtos de beleza Merthier.

Como eu nunca tinha feito aquela ligação antes? Não precisava ser Dylan Chase para juntar os fatos que agora pareciam tão claros. Era como puxar um fio que desenrolava tudo.
Por um segundo o passado me reclamou e de repente estava de volta no quarto de mamãe, com oito anos de idade, sentado na cama, esperando que ela terminasse de pentear os bonitos cabelos castanhos. Eles brilhavam, fios claros dançando sob a luz do sol que entrava por entre as gretas que a cortina branca deixava passar. No canto esquerdo sobre o vidro da penteadeira, o frasco vermelho escuro com o nome Merthier escrito em caligrafia fina e elegante.
Tão rápida quanto aquela memória apareceu, encontrei-me de volta ao presente e analisando as pequenas coisas do dia-a-dia que deveria ter percebido também. O prédio onde morávamos era muito caro, o bairro era nobre e nem uma única vez ouvi reclamar sobre os custos de manutenção. Não entendia de roupas de mulher, mas as dela eram obviamente de boa qualidade, agora podia ver que por certo eram as melhores que o dinheiro poderia comprar. Sim, ela era uma excelente profissional e clientes nunca lhe faltavam, porém, os mimos que tinha não poderiam ser custeados apenas por seu salário. Ainda havia sua boa educação. Sempre impecável à mesa e podia jurar que já a tinha ouvido resmungar em italiano, o que provavelmente vinha de sua fluência também nessa língua, tornando-a poliglota.
Acho que podia me considerar o exemplo maior de cego seletivo. Todas as evidências estavam bem debaixo de meu nariz e eu escolhi ignorar. Não liguei os pontos e me deixei enganar, não por ela, mas por minha fantasia idiota de normalidade. Gostava da ideia de sair da I e daquele mundo de etiquetas insuportáveis e hipócritas para chegar em casa e encontrar minha namorada incrível e tão… normal. Exceto que ela não era normal.
era a herdeira de um verdadeiro império. E eu não sabia se a conhecia mais.

Talvez se não tivesse tão perdido dentro de minha própria cabeça, teria percebido o peso do silêncio que nos acompanhou para fora do baile e durante toda a viagem de volta. Ao invés disso, entretanto, continuava apenas dissecando meus próprios pensamentos de novo e de novo, em uma ação que se assemelhava a um obsessivo sádico que cutucava o próprio machucado para ver se realmente estava doendo, mesmo quando a conclusão era óbvia.
Era óbvio que um machucado causava dor, era óbvio que não era quem eu pensava.
Minha cabeça doía tanto que sentia como se pequenas agulhas se fincassem atrás de meus olhos. Não sentia minhas mãos graças a força com que apertava o volante e não deveria estar dirigindo com a atenção tão mínima na estrada. Não fosse o treinamento de disciplina militar que te fazia continuar quando já tinha ultrapassado seus limites, não teria conseguido guiar o carro. Como um autômato, estacionei em minha vaga e da mesma maneira zumbi cheguei até nosso andar. Foi só quando senti sua mão em meu ombro e sua voz suave chamando meu nome que voltei a realidade.
Seus bonitos, tão bonitos olhos violeta me encaravam com preocupação, mas daquela vez, pela primeira vez, não me reconheci no reflexo que eles criavam. Senti-me doente com aquela constatação. Engoli a bile que ameaçava subir por minha garganta e me fazer passar mal ali mesmo, no corredor, como o menino assustado que agora eu era.
Precisava de espaço e tempo para me reagrupar. Mal podia me lembrar da última vez em que tinha me sentido tão desamparado, sem saber o que fazer com o gosto amargo na boca porque o mundo estava me transformando em uma grande piada de mal gosto.
– Eu… eu preciso fazer uma coisa – peguei-me balbuciando. – No meu apartamento – esclareci ao perceber que não estava fazendo nenhum sentido. – Preciso. Eu só… só preciso.
Preciso ficar sozinho. Precisava que a porra daqueles pensamentos parassem de me rodear como abutres e precisa que aquela sensação de estar sufocando em água congelante sumisse. Não sei se foi a falta de fôlego suficiente ou a dor torturante em minha cabeça que me fez perder a noção do tempo, porém me vi, quase em uma experiência extracorpórea, entrando em meu apartamento e caindo na cama de casal.
Sobre lençóis frios e que não tinham cheiro de chiclete.
Em uma casa que não era um lar.
Longe da mulher que havia se tornado meu porto seguro.
Sozinho em meio a tormenta e me afogando.
Sendo puxado para o fundo e para a escuridão. Longe da luz que tinha me acompanhado nesses últimos tempos.

...

– Tom disse que ele está assim faz horas.
– Bêbado e patético?
– Sim. Desde de manhã. Aliás, Tom disse que ele tem feito isso faz dois dias. Chega de manhã e vai embora só de madrugada. Enchendo a cara de uísque há dois dias.
– Ridículo.
– Exato.
Você tem ideia do porquê ele está assim?
– Não. E a última vez que o vi se embebedando foi quando Faber… bem. Você sabe.
Podia ouvir as vozes atrás de mim e sabia bem a quem elas pertenciam, mas estava ocupado demais sentindo pena de mim mesmo para me importar, então, ao invés de me virar para encará-los, fiz sinal para que o barman, Tom, trouxesse outra dose. Só levantei os olhos quando um braço passou por cima de meu ombro e tirou o novo copo de uísque de meu alcance assim que ele foi colocado sobre o balcão.
– Me devolva, panaca – rangi os dentes para Chase, virando o corpo para encará-lo.
– Ou você vai fazer o quê? – arqueou a sobrancelha com um sorrisinho irônico no canto dos lábios.
– Vou quebrar a porra desses seus dentes perfeitos – bati a mão contra a madeira do balcão para enfatizar minha ameaça, subindo o tom de voz a cada palavra.
Dessa vez foi Puppy quem soltou uma risada seca.
– Você não consegue nem mesmo falar sem embolar as palavras e realmente acredita que poderia vencer um de nós em uma briga?
– Cala a boca, imbecil. Eu derrubo vocês dois em uma porra de uma briga. Podem vir. Os dois – fiquei em pé, cambaleando um pouco quando o mundo rodopiou de leve ao meu redor assim que me encontrei desamparado pelo banco alto.
Meus irmãos se entreolharam e Dylan colocou meu copo de volta sobre o balcão antes que os dois avançassem para mim ao mesmo tempo. Por um segundo senti o mais puro choque, não acreditando realmente que eles aceitariam minha provocação, porém logo a surpresa desapareceu, dando lugar a adrenalina que antecipa uma boa briga.
Eles podiam vir.
Cerrei as mãos em punhos.
Estava com muita vontade de socar alguém e descontar um pouco da raiva que estava me comendo vivo.
Chase levaria o primeiro soco, decidi, levantando o braço. Antes que pudesse alcançá-lo, contudo, descobri-me imobilizado. Os dois se moveram muito mais rápido do que meus reflexos entorpecidos pelo álcool poderiam acompanhar. Sacudi-me com raiva, tentando me libertar, mas fui completamente ignorado enquanto era arrastado, cada um dos meus amigos segurando um dos meus braços, para o fundo do bar. Durante todo o percurso tentei chutá-los enquanto discorria todos os xingamentos conhecidos para descrever os dois merdinhas, mas eles continuaram em silêncio, só parando ao me jogarem sobre um dos sofás de couro preto que ficava no canto mais ao fundo do bar. Quando tentei me levantar para afundar um soco no rosto de qualquer um deles – francamente não me importava nem um pouco em qual, ambos os imbecis estavam merecendo – fui empurrado de volta sentado, o que me fez ficar com ainda mais raiva.
Odiava aquele sentimento de impotência. A porra do álcool em minhas veias embaralhava meus sentidos, não de maneira cegante, mas o suficiente para me impedir de enfrentar os dois como sabia que podia fazer. Não estar no controle de minhas ações era pior do que à espera de uma surra.
Não poder se defender. Impotência. O entendimento de que você, naquele momento, não pode fazer absolutamente nada para impedir o que estava vindo. Geladamente aterrorizante.
E o sentimento de impotência parecia ser a porra da única coisa que era constante na minha vida nesses últimos três dias. Nem quando Dante planejava cada segundo do meu dia, eu me sentia tão preso. Sentia como se estivesse enfiado dos pés até os joelhos em cimento fresco e agora, por óbvio, não conseguia me mexer. E a cada nova hora parecia estar me afundando mais e mais, como areia movediça mortal. De movimento em movimento, nessa minha metáfora bem realista, o cimento já estava em meu pescoço e sufocava.
Três dias de merda em que sufocava devagar.
Três dias de merda desde aquele baile. Três dias desde que vira Ra-
De repente, cansado demais para lutar ou mesmo para ficar com raiva, apoiei os cotovelos sobre os joelhos, inclinando-me um pouco para frente ao passar as mãos pelo rosto. Eles reconheceram minha derrota e pude sentir a diferença no ar quando ambos abandonaram a postura de quem espera um ataque.
, o que você está fazendo? – a voz de Chase não carregava tanto julgamento quanto eu provavelmente merecia.
– Além de desperdiçar seu tempo de maneira patética se embebedando, é claro. – Puppy, por sua vez, foi bem cortante.
Não pude evitar um sorriso seco e cansado. Às vezes me esquecia de como Hunter tinha o gênio forte, literalmente um lobo em pele de cordeiro. As pessoas tinham a tendência de subestimá-lo graças a sua personalidade sempre sorridente e esse podia ser, e para muitas pessoas foi, um erro fatal. Eu, entretanto, conhecia meu amigo. Sabia quão preciso em seu ataque ele podia ser, e tinha a plena certeza de que estava prestes a ser o alvo de um dessas agressões.
Se, naquele momento, tivesse com um pouquinho de paciência, teria tido o bom julgamento de perceber que deveria ficar de boca fechada e apenas ouvir o que provavelmente merecia ouvir, porém não estava me sentindo muito razoável no momento/ç
– Não é da sua conta, Caleb. Fique fora disso – rangi os dentes.
– Não é da nossa conta? – repetiu, incrédulo. – Você ‘tá falando sério, cara? Que merda é essa? Eu nem… nem… – soltou uma risada seca, balançando a cabeça, afastou-se um passo para trás. – Chase, fala você.
Dylan revirou os olhos e relaxou os lábios, que estavam apertados em sinal de desgosto, para falar:
, o que aconteceu? – sentou-se na mesinha baixa na minha frente. – Por que você está aqui? Por que não está respondendo seu celular?
– Por que porra você sumiu de casa? – Hunter interrompeu, aparentemente não conseguindo manter seu temperamento em cheque ou se manter em silêncio. – Você tem noção de quão preocupada está? Que merda está se passando nessa sua cabeça?
O apelido de me atingiu com a mesmo impacto e dor que teria acontecido se ele tivesse pegado uma garrafa e quebrado o vidro em minha cabeça.
– Você… você falou com ela? – engoli em seco.
– É claro que falei com ela, imbecil – basicamente gritou, seu rosto se avermelhando de raiva enquanto os olhos brilhavam de um jeito meio maníaco, dando-me a certeza de que ele estava se controlando para não me agredir fisicamente. – Falei com sua namorada quando ela me ligou ontem, chorando desesperada porque você não voltava para casa fazia três dias. Três dias que você nem mesmo atende o celular. Que porra é essa, ?
Certamente ele continuaria gritando algumas verdades não fosse Chase intervir:
– Chega, Hunter. Isso não está resolvendo nada.
Puppy fechou a boca de má vontade, a ameaça ainda refletindo visivelmente em seus olhos. Dylan, muito elegantemente, mas sem nenhuma simpatia, apoiou os cotovelos sobre as coxas e pela primeira vez na vida me encarou com a mesma falta de emoções que havia visto tantas vezes em seus olhos antes de sairmos em uma missão.
Nos olhos azuis do meu irmão, onde sempre vi reconhecimento, agora não havia nada. Absolutamente nenhuma merda de um nada. Se já não estivesse em uma porra de um momento tão ruim, se já não estivesse me sentindo o último pedaço de lixo do mundo, aquele teria sido um bom momento para começar.
, o que você está fazendo?
Esperava um sermão mais duro do que o de Hunter, então fiquei bem confuso com a pergunta serena.
– O quê?
– O que você está fazendo, ? – repetiu, ainda mais lento do que da primeira vez.
– Fazendo o quê?
– Por quê?
Não era à toa que o homem era um terror nos interrogatórios. Nenhum tipo de tortura era páreo para ter alguém nos olhando como se pudesse ver dentro de nossas almas.
– Porra, Chase – joguei as costas contra o encosto do sofá, bufando de raiva. – Eu não tô a fim de brincadeirinhas imbecis. Ou você fala de uma vez o que quer falar, ou me deixa quieto. Que porra.
Arqueou a sobrancelha.
– Por que você está num bar às sete da noite de uma quarta-feira se embebedando? Por que não está indo trabalhar? Por que não está dormindo em casa? Por que está agindo como o mais completo dos idiotas? Pode escolher.
Como todo covarde que não gosta quando tem umas boas verdades esfregadas na minha cara, escolhi o caminho mais fácil: a pura e simples negação completa.
– Eu estou dormindo em meu apartamento. Dormi lá nos últimos dias também. Ou você acha que Tom me deixou dormir aqui, babaca?
– Não se faça de idiota, . – Hunter, muito sem paciência, resolveu que já tinha ficado quieto por tempo demais. – Ele não está falando do seu apartamento, mas da sua casa. Lembra da sua casa? Onde você esteve morando nos últimos dias? Onde sua namorada está te esperando todos esses dias em que você sumiu sem dar o mínimo de satisfação? Você me dá pena, . Parece um a criança. Já ouviu alguma coisa sobre lidar com seus problemas? Sobre responsabilidade? Sobre telefonar?
Cada palavra era cuspida com desprezo que me atingia com a força de um coice de cavalo. Nem mesmo o zumbido gostoso do álcool diminuiu o nojo que sentia de mim mesmo. Outra vez, ao invés de assumir a raiva que sentia de mim mesmo, preferi redirecioná-la para meus amigos que me faziam encarar a verdade suja.
– Já ouviu falar sobre a porra de uma ideia chamada cuide da porra da sua própria vida?
Trinquei os dentes, pronto para levantar e dar o fora daquela Inquisição de merda, mas a mão de Chase em meu ombro, me empurrando de volta para o sofá cortou minha ideia de fuga. Com um baque oco, vi-me de volta para o lugar de onde mal consegui sair.
– E você, o que você quer agora, porra? – virei-me para ele. – Mais alguma pergunta imbecil para me encher o saco?
Ele levantou uma sobrancelha, parecendo ironicamente divertido com o meu comportamento infantil.
– Que foi que aconteceu? Foi seu pai, não? Você ficou esquisito depois de sábado, depois da festa da I. Então certamente foi seu pai. O que ele fez, tratou mal ?
– Ah – soltei uma risada seca, desejando mais do que qualquer coisa, naquele momento, que ainda tivesse meu copo de uísque a mão. – Isso seria o esperado, não? Mas não… não – sacudi a cabeça. – O velho estava realmente satisfeito com minha namorada. Ou, melhor dizendo, com o sobrenome dela.
Ao invés de reagirem com surpresa que eu esperava, contudo, eles se entreolharam, cautelosos, e, mesmo em meu estado meio embriagado, levei apenas um segundo para perceber o que aquilo significava.
Vocês sabiam! – cuspi, indignado, a acusação.
Outra vez tentei levantar e de novo fui empurrado de volta para o sofá, porém agora estava agitado demais para aceitar aquilo de bom grado, então, apesar de voltar a me sentar, fiz questão de acertar um murro no ombro de Chase – apesar de ter mirado seu rosto, infelizmente os reflexos dele estavam bem melhor do que os meus no momento.
– Se nós sabíamos que é uma Merthier? Sim, sabíamos. Não é exatamente um segredo, e você também teria feito a conexão se estivesse conseguindo enxergar um palmo além dos olhos violeta de sua namorada. Que ela é podre de rica? Bom, isso eu perguntei, por curiosidade, e ela me contou, muito simpática, sobre como seus bisavós franceses fundaram uma fábrica de cosméticos que se transformou no império que é hoje.
– Quando vocês conversaram?
– Deixa de ser idiota, – a impaciência de Hunter mais uma vez se fez presente. – Pare de ficar se apegando a detalhes minúsculos. Que importa se conversarmos com ela? é nossa amiga também. No momento, muito mais nossa amiga do que você, devo acrescentar.
Nem me preocupei com seu tom petulante porque, no final, ele tinha razão. Precisava parar de me apegar a detalhes ridículos e me concentrar no problema maior. Não é que estivesse com ciúmes de ter minha mulher se tornando amiga de meus irmãos. Não era isso. É que é bem mais fácil não encarar a confusão em que estava. Impressionante como quão covarde alguém podia se tornar.
– Meu ponto é – Chase voltou a falar – que você saberia da fortuna da sua namorada se tivesse perguntado. Não é nenhum segredo e também não estou entendendo o porquê de você ter trazido esse tema à tona. O que isso tem a ver com alguma coisa?
– Você não entende.
Sacudi a cabeça e, por um segundo, pensei em não dizer nada, em continuar remoendo as coisas sozinho, porém estava bem claro que essa estratégia não funcionara nos últimos três dias. Uísque e autopiedade não estavam me levando a lugar nenhum. A cada novo segundo me sentia como se estivesse sendo puxado mais e mais para de baixo d’água.
Não conseguia respirar. E o pior é que nem mesmo tentava me mexer para voltar à superfície. Calmamente me deixava ser puxado para o fundo. Sem lutar. Vencido, derrotado.
Patético.
Engoli em seco.
– Ela… – limpei a garganta para disfarçar como as palavras me falharam. – Ela não é quem eu pensei que fosse.
O quê? Ahh não. – Hunter sacudiu a cabeça e pude ver em seus olhos que ele estava no limite, prestes a me dar as boas porradas que provavelmente eu merecia. – Já chega. Para mim já deu. Vou buscar uma cerveja antes que seja obrigado a cometer uma violência – estava se afastando antes mesmo de terminar de falar.
Dylan esperou que ele estivesse longe do alcance e voltou a me encarar, ainda mais sério do que antes.
, do que você está falando? Como assim não é quem você pensou que fosse? – sua voz era tão dura e afiada que poderia ter cortado aço.
Se erguesse a cabeça, quase podia ver os litros e litros de água cristalina se fechando com o peso de mil toneladas sobre minha cabeça.
– Você não entende. Já disse. Você não entende porque não cresceu com o velho. Não sabe como foi ter cada detalhezinho, cada micro detalhe de sua vida manipulado. Tem ideia de quantas vezes algo me aconteceu e pensei ser uma coisa quando na verdade era outra completamente diferente? Quantas vezes isso foi algo cuidadosamente arquitetado por Dante para me fazer de idiota? – esfreguei as mãos pelo rosto. – Eu… eu pensei que fosse alguém que ela não é. Eu namorava a psicóloga que ama cachorros e está sempre malditamente de bom humor, não a herdeira de um império.
Ele piscou devagar. Em silêncio e muito devagar, inclinou-se para frente, apoiando os cotovelos sobre as coxas. Depois de uma eternidade, falou:
, você está se ouvindo? Está ouvindo o que está dizendo? Isso tudo é um monte de merda. Qual a diferença entre a mulher que você conhecia no sábado para a mulher que era no domingo? Só por que agora ela tem alguns muitos milhões na conta? Você também tem. Por acaso ela te tratou diferente por causa disso?
– Não. Espera. Não é isso. Você não está entendendo. Eu nunca disse que era algo diferente do que sou.
– Deixa de ser hipócrita, . Eu aposto minha Glock que você demorou para falar sobre seu emprego ou sobre qualquer detalhe da sua infância, se é que falou.
– É diferente – rangi os dentes.
– Por que é diferente? Por que perguntou, por que ela se importou o suficiente para questionar sobre sua vida enquanto você não se mexeu nem mesmo para saber sobre a avó dela que faleceu? Porque tenho certeza de que se você tivesse mencionado a senhora Merthier, ela teria dito sobre como o avô herdou a empresa e a ampliou para dedicar cada novo produto a esposa. Ela tem orgulho do que os avós conseguiram – seu tom se suavizou um pouco ao falar de . – O fato de não mencionar essa história a não ser quando questionada, não significa que estava escondendo algo, mas sim que ela não acredita que isso de alguma maneira define como ela se vê. certamente teria dito se você tivesse perguntado. Ninguém tentou te enganar, . Será que você não consegue enxergar isso?
Suas palavras lentamente entravam em meu cérebro com a força de pequenas agulhas em brasa: doloridas como o inferno e impossíveis de serem ignoradas. Basicamente juntava várias coisas que odiava em um só pacote: odiava brigar com a , odiava quando tinha que falar sobre meus pais, odiava perceber que estava agindo como um covarde, odiava quando Chase estava certo e eu estava errado.
E Dylan ainda não tinha terminado de me dilacerar:
– Sabe o que eu acho? – franziu o cenho. – Acho que você é um babaca ainda maior do que você poderia imaginar. Nem mesmo percebeu que está fazendo justamente o que prometeu que nunca mais faria, não é? – abriu um sorrisinho um tanto quanto sádico. – Não percebe que de novo deixou Dante se esgueirar para dentro de sua vida.
Levantei minha atenção do chão tão rápido que não me surpreenderia se meu pescoço tivesse dado um estalo.
– O quê? – sussurrei, pois estava acabado demais até mesmo para ficar terrivelmente surpreso.
– Está deixando seu pai ferrar com a sua mente outra vez, . Vamos lá – ergueu o queixo em desafio. – Tenho certeza de que você não estaria desse jeito se tivesse descoberto de outra maneira sobre a herança de . Por que isso faz diferença?
Permaneci em silêncio porque, como todos os outros aspectos da minha vida naquele momento, não tinha certeza.
– Não tem resposta, não é mesmo? – arqueou a sobrancelha, um sorriso esperto no canto dos lábios. – Não consegue me responder porque não existe resposta. É muito simples, . Nada mudou. Sua ainda é sua . Ela não tentou te enganar. Foi um simples desencontro. Você não perguntou, ela achou que não era imprescindível mencionar. Foi só isso, cara. Só isso.
– Não fique procurando problemas onde eles não existem – a voz cansada de Hunter soou em algum lugar a nossa direita.
Nem mesmo percebi que ele havia voltado, estava ocupado demais brigando comigo mesmo. Como uma criança assustada, tentava ignorar a verdade nas palavras de meus melhores amigos, pois sabia que as consequências de aceitar meu erro eram enormes.
Admitir que estava errado significaria que havia abandonado minha namorada sem nenhuma palavra de explicação, que deliberadamente tinha machucado minha mulher. Como um tolo e com poucos atos havia destruído o que de melhor tinha em minha vida.
Oh, Deus.
Um soluço seco escapou de minha garganta.
Agora podia literalmente sentir a água salgada entrando por meu nariz e descendo por meus pulmões. Avançando por minhas veias e destruindo qualquer esperança que tinha de sobreviver.
Senti pesos sobre meus ombros e, por reflexo, sai de minha autocomiseração, e levantei a cabeça. Meus irmãos me olhando com preocupação, cada um tinha uma mão sobre meus ombros. Sem qualquer tipo de julgamento, apenas a mais sincera preocupação.
– Nós vamos dar um jeito nisso, . – Dylan ofereceu.
– Apesar do babaca que você foi, , Chase tem razão.
E por um momento, ao invés de me concentrar na maneira como estava me sentindo sem ar, fiquei agradecido por ter dois irmãos como os idiotas na minha frente, homens bons que se preocuparam em enfrentar a tempestade para me atirar um colete salva-vidas.
Do The Hook’s fomos para casa de Hunter, onde tomei um banho congelante – com a certeza de que Puppy havia propositalmente desligado a água quente como último castigo pelo que fiz sua nova melhor amiga passar – para me livrar do cheiro de fritura e para me sentir mais humano outra vez. Com um jeans e moletom emprestado de Caleb, fui obrigado a me sentar à mesa da cozinha e a engolir três canecas de café e comprimidos para dor de cabeça, esperando os minutos se arrastarem até que eles estivessem convencidos de que eu estava sóbrio. Só então os dois me acompanharam até a porta de meu prédio, despedindo-se com desejos de boa sorte. Confesso que precisei respirar fundo antes de entrar no elevador e levei alguns minutos parado em frente da porta de casa, suor frio descendo por minha espinha ao me dar conta de que precisaria bater na porta daquela que costumava ser minha casa. Foram necessários cinco minutos encarando a madeira lisa antes de finalmente conseguir a coragem para tocar a campainha. Sabia que tinha demorado poucos segundos para que a porta se abrisse, mas parecia que tinha andado por mil quilômetros de brasas no chão do inferno antes que minha namorada aparecesse. E quando ela o fez, contudo, quase desejei que não tivesse feito.
Pensei que a encontraria triste, talvez com os olhos inchados de chorar. Talvez preocupada, descabelada ou algo do tipo. Não que fosse arrogante ao ponto de pensar que minha falta lhe deslaçaria a alma, mas acreditei que encontraria nela um reflexo, mesmo que pálido, do que estava sentindo. E eu, sim, estava me acabando. Ao invés disso, entretanto, a mulher que me recebeu estava impecavelmente vestida em um vestido preto, botas da mesma cor até os joelhos e nem um único cabelo dourado fora do lugar. De maneira não relevante, percebi que, pela hora, ela havia acabado de chegar do consultório.
estaria tão linda como sempre, não fosse o jeito como me olhava. O mar de águas violeta tão vívidas onde sempre me perdia haviam desparecido completamente, substituídos por um pálido tom lilás. Não havia qualquer brilho ali, nada da felicidade resplandecente que sempre parecia envolver tudo e todos ao redor. não me encarava como se eu fosse estranho – isso teria sido melhor -, ao invés disso, encarava-me como se nem mesmo me visse, como se eu não estivesse ali. Antes que tivesse qualquer chance de começar a me explicar, entretanto, sua voz, também seca de qualquer sentimento, soou:
– Olá, . O que posso fazer por você?
Pisquei devagar.
O quê?
– O que posso fazer por você? – repetiu da mesma maneira robótica. – Vejo que você está de volta ao prédio. Veio buscar suas coisas?
– B-buscar minhas coisas? – franzi o cenho, dando um passo para frente. – Do que você está falando?
Como um espelho, assim que me aproximei, ela deu um passo para trás, mantendo a distância entre nós.
?
Dessa vez ela estremeceu como se tivesse sido estapeada, pela primeira vez demonstrando uma rachadura no forte que construíra ao seu redor. Engolindo em seco para tentar conter a sensação sufocante de ter minha garganta obstruída pela emoção, obriguei-me a continuar:
, eu posso explicar. E-
Não me chame assim – sibilou. – Não fale comigo como se tudo fosse igual. Como se você não… se não…
Sua voz se quebrou de novo e com ela se foi também sua máscara fria. Agora podia ver a dor em sua expressão, o cansaço, a desolação e tudo aquilo voltou para mim, como um ricochete, com a força de uma bigorna. Perdi meu norte, o rumo e as palavras. se aproveitou de meu silêncio para continuar falando:
– Também não quero explicações. Só… só pare de falar – terminou em um fiado de voz. – Não quero ouvir.
– Espera! – quase gritei. – Não. Espera. Eu quero explicar. Eu preciso explicar.
– Não, . Nós fizemos o que você queria. Todo o tempo. Durante cada segundo – sussurrou, o olhar meio perdido. – Sabe quantas vezes eu primeiro levei em consideração o que você queria? O que você poderia pensar? – desviou o olhar para o chão. – Sinto-me uma grande idiota – falou baixo e para si mesma. – Idiota porque pensei… acreditei que...
, me deixe só explicar – de novo tentei me aproximar. – Eu s-
– Não. Não – balançou a mão, dando outro passo para trás, o olhar ferido nunca deixando o seu rosto. – Não, . Eu não… – olhou para o lado e soltou a respiração em uma lufada pesada e uma risada seca. – Uma vez ouvi que em todo relacionamento sempre tem alguém que ama mais. E… sabe… – encolheu os ombros, passando a mão trêmula por seu rosto para limpar duas lágrimas solitárias que desceram por suas bochechas.
A faca cega voltou a me atingir por entre as costelas, girando para fazer o maior estrago possível.
– Por muito tempo, eu aceitei isso. Aceitei que eu era quem mais amava em nossa relação, mas descobri durante esses dias que eu sou a única que ama. Assim não dá mais – balançou a cabeça. – Talvez nunca tivesse dado certo. Acho que enxerguei o que queria ver. Não é culpa sua. Não é culpa de ninguém. É assim que eu sou – encolheu os ombros, levando a mão à bochecha para secar mais uma lágrima. – E eu não quis aceitar que, assim como não quero mudar quem sou, você também não quer mudar quem você é. Mas finalmente entendi – soltou um soluço, balançando a cabeça. – Finalmente entendi. Você é você, , eu sou eu, e nós não somos realmente compatíveis, realmente um casal.
Não! Me deixa explicar.
Sabia que tinha gritado, mas não conseguia passar pela parede concreta de puro desespero que me impedia de me importar com detalhes supérfluos, impedia-me de me preocupar com qualquer coisa além do fato de que minha namorada estava desistindo de mim.
De nós.
– Não, . No primeiro dia em que você sumiu, eu fiquei louca de preocupação. No segundo dia, quando Hunter me contou que você estava no The Hook’s, esperei que você voltasse para casa e me explicasse o que estava acontecendo. Hoje eu já não quero uma explicação porque não há justificativa para o jeito como você me machucou. Quem sabe um dia, quando não estiver doendo assim – bateu a mão no peito -, eu queira ouvir o que você tem para dizer. Mas não hoje. Hoje só quero que você vá embora – sua voz foi sumindo até quase desaparecer. – Depois mando suas coisas.
Antes que pudesse superar o terror paralisante que me impedir de me movimentar, fechou a porta, deixando-me sozinho no corredor e com a certeza de que aquela água gelada e salgada que entupia meus pulmões jamais me abandonaria, vencendo-me lenta e agonizantemente enquanto minha única chance de respirar novamente se afastava para longe. Para dentro da casa que costumava ser meu lar.
Para longe de mim.



Caítulo 28

Não consegui impedir que meu olhar outra vez deslizasse para a tela do celular em minhas mãos. Nada. Nenhuma nova mensagem, nenhuma chamada perdida. O aparelho estava tão vazio quanto eu mesma me sentia.
Sim, é bem verdade que não atendi nenhuma de suas ligações ou respondi qualquer das dezenas de mensagens ou e-mails que ele mandou. Tampouco atendi a campainha que pontualmente tocava todos os dias às sete da noite, quando, acreditava eu, ele chegava do trabalho e tentava mais uma vez falar comigo. Eu o ignorei como ele havia ignorado meus sentimentos naqueles fatídicos três dias há duas semanas. Eu o ignorei, mas não queria que ele me ignorasse. Eu o ignorei, mesmo sabendo que isso era apenas na superfície, que quando deitava, à noite, sozinha na nossa cama, sentia-me tão gelada quanto seu lado do colchão estava. Ignorei meu ex-namorado, mas não acreditei que ele conseguiria me esquecer tão rápido quanto sua colônia estava sumindo do travesseiro que ele costumava usar. Principalmente quando a cada minuto parecia que alguém gravava com brasa, em frente aos meus olhos, o jeito como ele costumava sorrir para mim. E cada vez que essa memória aparecia, eu poderia chorar se tivesse sobrado alguma coisa, aqui dentro. Qualquer coisa que não fosse o mais desesperador vazio. Ao invés de lágrimas, então, tinha apenas autopiedade e um tantinho daquele veneno que só o mais puro ressentimento podia trazer.
Havia me afastado de – e aqui, só de pensar no nome dele, uma fisgada ruim repuxou em meu peito – porque ainda me restava um pouco de sobriedade para perceber que as coisas não estavam andando como deveriam, que ele não estava me tratando com a consideração que eu merecia. Havia me afastado porque não precisava me contentar em estar em segundo lugar. Não fui o segundo lugar para Robert e não seria o segundo lugar para . Engraçado como havia chegado a mesma posição e de maneiras tão diferentes. Mr. Shake Proteico me relegava menos importância porque estava mais preocupado em continuar melhorando sua aparência física. , por outro lado, estava preocupado demais em deixar o passado estragar todo o futuro que ele podia ter. Por mais diferentes que os motivos que me obrigaram a me afastar daqueles homens fossem, havia escolhido me distanciar porque não podia ficar estagnada no mesmo lugar para sempre.
Dar murro em ponta de faca não lhe trazia nada de bom. Dois relacionamentos terminados porque, no final, sabia que, antes de qualquer pessoa, teria que colocar a mim mesma em primeiro lugar. Não era possível alimentar uma relação com amor unilateral. Obviamente isso não significava que o sentimento desaparecia com facilidade.
Engraçado como não é fácil perceber que se ama alguém. Não me refiro a esse tipo de sentimento fofinho que te faz comichar de vez enquanto. Não. Esse é fácil de se notar, de gostar, de enjoar. Refiro-me a amor de verdade, aquele que vai te consumindo célula por célula, até que você não lembra mais exatamente quem era antes de ter aquilo te devorando. Esse tipo você não percebe até que já esteja te desintegrando como madeira sob o fogo, quebrando tijolo por tijolo cada pequena barreira que você construiu para se proteger.
O tipo que só aparece uma vez na vida.
Então, convenhamos, não era exatamente uma surpresa que eu estivesse tento problemas para seguir em frente, o que tornava tudo ainda pior – não só pelo fato de estar patética e metaforicamente presa em um momento horrível da minha vida, mas também porque havia terminado com por estar cansada de lutar contra a corrente. Ao me ver livre da batalha, entretanto, o que fazia? Ao invés de saborear a vitória de não ter mais que lutar para avançar cada centímetro de território, continuava lá, paralisada, em completa negação de que não precisava mais enfrentar os medos de para trazê-lo para perto de mim, porque, afinal, a batalha havia acabado, assim como meu relacionamento.
Realmente, realmente, acabado. Ele havia desistido. Nenhuma ligação, nenhuma batida na porta na noite anterior. Nada. Apenas o vazio que todo o final trazia.
Resignada, sacudi a cabeça mais uma vez, forçando meu olhar para longe da porta do outro lado do corredor, e andando até estar em minha própria casa. Talvez por ainda estar com a cabeça no modo piloto-automático, limpa de tudo o mais que não a tarefa imediatamente a minha frente, tenha demorado a perceber que havia alguma coisa de errado.
Estava quieto demais.
Imediatamente em total alerta, abandonando a única luz acesa no corredor de entrada da casa e me aventurado mais para dentro no escuro mesmo, chamei por meus filhotes em uma voz trêmula que já beirava o desespero:
– Cookie! Scott!
Da sala fui para cozinha, o quarto e depois para cada cômodo naquela droga de casa silenciosa, e tudo que encontrei foi o frio.
– COOKIE! SCOTT!
Nada embaixo da cama ou sob os sofás. Nada em suas caminhas ou escondidos embaixo da mesa da cozinha para tentar furtar uma guloseima.
Já ao ponto do histerismo, tive que aceitar que eles não estavam em casa. Minhas mãos tremiam de maneira incontrolável quando virei minha bolsa de cabeça para baixo e joguei tudo, caindo de joelhos ao seu lado no chão e tateando tudo em busca de meu celular. A tremedeira me impediu de acertar a senha nas três tentativas possíveis e estava apavorada demais para esperar pelos minutos exigidos para mais uma investida, então tropecei até a bancada da cozinha onde o sempre inútil telefone fixo estava. O pânico cego me impediu de ponderar sobre como o único número em minha mente era o de . Tudo que importava era apertar a porcaria dos botões que pareciam flutuar para longe do aparelho com o único propósito de me impedir de fazer a ligação.
Foi em meio a um soluço de frustração por ter errado a sequência mais uma vez que percebi, por entre a umidade em meus olhos, o envelope branco à direita da base do telefone. A caligrafia em letra de forma, que passei a conhecer bem nesse quase um ano, me fez abaixar o telefone para longe do ouvido, mal me lembrando de apertar o botão para desligá-lo antes de que ele deslizasse entre meus dedos frouxos.

Quase como em uma experiência extracorpórea, vi-me estendendo a mão para pegar o pequeno recado que, olhando com mais atenção agora, percebia ser um pedaço de folha dobrada e não um envelope. Levantei o papel até a altura de meus olhos.

“Você só os terá de volta se vier buscá-los. Sabe onde nos encontrar.
D.”

Primeiro veio o alívio que amoleceu minhas pernas. Eles estavam bem. Não tinham sido roubados nem nada horripilante do tipo. Depois desses doces segundos de sentimento bom, veio a fúria. A raiva subiu em mim como a mais pura das lavas consome tudo em seu caminho até que não sobre nenhum vestígio do que se interpôs entre ela e o lugar para onde se destinava.
Devia ter percebido. Era óbvio. Só podia ser . Era a única pessoa além de mim que tinha a chave da casa, e, como obviamente nada estava revirado, não era um tipo de delinquente. Em meio ao turbilhão de coisas me acontecendo, esqueci completamente da porcaria da chave, afinal, nunca pensei qu-
– Argh! – bufei de raiva entredentes, batendo a mão de volta sobre a ilha da cozinha para deixar aquele recado antes de começar a marchar para fora de casa.
A raiva me entorpeceu para a dor que certamente sentiria em meus dedos quando, com a mão fechada em um punho, bati com força na madeira da porta.
!
Como aquele filho da mãe se atrevia, depois de tudo que tinha me feito passar naqueles dias? Naqueles dias em que basicamente se esquecera que eu existia, do que me fez passar durante essas duas intermináveis e torturantes semanas em que mais de uma vez tentei encontrar o que havia de errado comigo, ainda que soubesse que, se as coisas não deram certo, o único responsável era ele. Depois de me fazer duvidar de mim mesma. Depois de me fazer pagar por pecados que nem mesmo havia cometido. Depois de me fazer me apaixonar por um homem que obviamente não estava interessado nesse tipo de sentimento. Depois de tudo isso, eu não havia lhe enfrentado para lhe dizer as boas verdades que merecia ouvir porque sabia que boa parte também não era sua culpa. Reflexos de uma criação infeliz e de ter visto o pior da humanidade na guerra lhe fizeram criar um casco protetor. Já tinha visto muito disso em meu consultório.
Então, ao final, ponderei que seria melhor um rompimento limpo de brigas e acusações mútuas.
Depois de tudo, tudo, havia escolhido manter um delicado equilíbrio de paz baseado na cordialidade. Porém agora ele havia sequestrado meus cachorros. Agora ele havia passado de todos os limites.
!
Novos socos. E nada além do som oco que ressoava pelo corredor. Quando a quarta vez em que a única resposta que meus socos obtiveram foi o silêncio, decidi que qualquer cordialidade podia ir para o espaço, afinal, ele havia sequestrado meus cachorros.
Nada de civilizada para você, . Estava na hora de ele conhecer meu lado Jack Chan.
Dei um passo para trás.
Eu iria arrombar essa porta.
Analisei a madeira lisa. Não seria tão difícil. Nos filmes era bem simples – e eu havia assistido todos os filmes do senhor Chan. Só precisava pegar impulso, levantar a perna e-
O pouco de sanidade que ainda me restava me fez tomar uma única precaução antes do que, com a minha sorte atual, provavelmente conseguir um tornozelo torcido ou algo pior. Voltei a me aproximar e pousei a mão sobre a maçaneta, quase dando um pulo para trás quando, com um suave clique, a porta abriu. O momento de surpresa – e a pequena paralisia que isso trouxe – durou pouco, no entanto, e logo deixei que a raiva retornasse para colocar força nas passadas que dei para dentro da casa dele. A sala estava toda iluminada pela luz acesa.
! – rugi, ainda mais brava do que antes graças a certeza de que ele estava em algum lugar ali e tinha propositalmente ignorado meus chamados.
Ao invés do homem que no momento queria socar, encontrei na sala meus bebês. Imediatamente caí de joelhos ao lado deles, passando um braço pelo pescoço de cada e os abraçando com força.
– Oi, meus amores – as palavras saíram meio abafadas graças a emoção engasgada. – Mamãe veio buscar vocês. Aquele homem horrível sequestrou vocês, né? Nós vamos para casa agora. Não se preocupem.
Afastei-me um pouco com toda a intenção de me levantar e arrastar meus bebês para fora do covil do inimigo quando notei que amarrada a coleira deles havia um pedaço de papel triangular muito parecido com o que encontrei em minha cozinha há poucos minutos. Intrigada, aproximei-me um pouco mais e pude ler “Agora, mamãe” no que Cookie carregava, enquanto o de Scott, por sua vez, tinha “Quando estiver pronta, mamãe”. Como nunca fui muito boa em seguir ordens diretas, tentei pegar o recado de meu filho mais novo primeiro. Porém, como aparentemente meus cachorros eram inteligentes demais para explicações racionais, Scott deu um passo para trás, o pescoço erguido, orgulhoso, enquanto me olhava de uma maneira que só poderia ser classificada como “reprovadora”.
– Desculpe – murmurei, olhando para o lado, meio envergonhada. – Ok, ok. Entendi – falei, mudando minha atenção para Cookie, que empurrava o nariz contra minha mão.
Levei um momento para encontrar e desfazer o laço de barbante que prendia o recado. Imediatamente os dois se afastaram para sentar elegantemente ao lado do sofá. Com os joelhos já me incomodando pela posição desconfortável, voltei a me endireitar de pé e abri a folha dobrada para ler o que havia do lado de dentro.

“Papai sabe que foi um idiota e sente muito, muito mesmo. Por favor, lhe dê uma chance de explicar.”

As palavras se juntaram em frases que sabia serem concretas, porém levou alguns longos segundos para que elas fizessem sentido. Quando meu cérebro resolveu voltar a funcionar, não pude evitar levar a mão para cobrir a boca e abafar o soluço que escapou. Com certo esforço, tirei minha atenção da folha e meu olhar imediatamente encontrou o dele. A primeira coisa que notei foi a fisgada ruim em meu peito, a segunda foi que seus olhos gelo não estavam como me lembrava. Nada daquela força indomável que você podia ver borbulhando sob a superfície, apenas uma pálida sombra do que era antes. Era como ver diamante se transformar em vidro barato. Por um segundo, tudo ao redor pareceu ficar em suspenso, quase como se o ar tivesse sido sugado para fora do cômodo e tudo estivesse levitando ao nosso redor. Não havia nem mesmo gravidade, apenas nós dois e aquele sentimento ruim de desconforto que parecia ser a única coisa a nos unir no momento.
... – interrompeu a própria fala como se se lembrasse de algo importante.
Mudei o peso de um pé para o outro enquanto o observava bater os lábios um contra o outro e respirar fundo antes de continuar:
– ele parecia se sentir tão estranho ao usar meu apelido quanto eu me senti ao ouvi-lo.
– Você não tinha esse direito – rangi os dentes.
– O quê? – franziu o cenho.
Não tinha o direito de sequestrar meus cachorros, não tinha o direito de me chamar desse jeito, não tinha o direito de despedaçar meu coração. Não sabia ao certo a qual desses motivos me referia. Ele podia escolher qualquer um. Apesar de ter muito o que falar, no entanto, não tinha vontade para tanto, assim, logo depois daquele pequeno rompante, voltei a me calar. demorou um momento ou dois para perceber que não conseguiria uma resposta ou mesmo uma conversa.
– Eu… – passou a mão pelo cabelo em um gesto de frustração que eu conhecia bem. – Eu tenho tanto para explicar. Você quer se sentar? – murmurou, surpreendendo-me. – Você se importa se eu me sentar, então? – acrescentou depois de um momento, ao perceber que não me mexeria.
Sem esperar por uma resposta, deixou-se cair com bastante graça na poltrona preta que sabia ser sua favorita. Passou a mão no rosto e soltou um suspiro pesado. Cruzei os braços, esperando impacientemente pelo seu próximo passo. – Desculpe – riu seco, quase que em uma histeria calma, se é que isso é possível. – É meio ridículo eu te chamar aqui e me sentar, não é? Parece que não estou levando a sério as coisas, exatamente como você me acusou antes. Mas não é isso – sacudiu a cabeça. – Nunca foi isso. É só que... eu estou tão cansado.
De todas as coisas que esperava que ele dissesse, aquela definitivamente não era uma delas. Tampouco gostava da vulnerabilidade em seus olhos ou da maneira como isso me fazia sentir. Queria me aproximar e reconfortá-lo em um abraço, mas me mantive firme no lugar. Nem mesmo permiti que minhas intenções transparecessem no rosto. Não podia lhe dar uma abertura e definitivamente não podia mais lutar suas batalhas. Já havia guerreado demais com os demônios que carregava e infelizmente não chegara nem perto de vencer. Daquelas derrotas, entretanto, ficara a lição valiosa de que, por mais que você ame uma pessoa, há certas coisas que esse alguém tem que fazer sozinho. Aquela era uma dessas coisas.
– Tão exausto de tudo – continuou. – E eu percebi isso nessas últimas semanas – inclinou-se para frente e pousou os cotovelos sobre os joelhos. – Não. Acho que isso não é muito exato e, acredite, quero fazer as coisas o mais correto possível dessa vez. Então, reformulando, provavelmente já sabia o quão exausto estava, mas não queria encarar isso. Você sabe quão fácil é simplesmente ignorar um problema ao invés de enfrentá-lo, ? Não – sacudiu a cabeça. – Acho que você não sabe. Não acredito que você alguma vez tenha feito algo do tipo. Pelo menos não em proporções épicas, como eu andava fazendo – seu tom era suave, macio e, principalmente, sincero. – Sei que nunca fez isso porque você é uma lutadora. Costumava ser a minha lutadora. E você é tão malditamente boa nisso, , que eu não soube apreciar. Eu não soube apreciar cada vez que você deixou sua zona de conforto e se colocou na linha de frente para me proteger ou quando, com bastante delicadeza, você me forçou a me mexer, a tomar uma atitude, a melhorar.
Afundei minhas unhas nos braços, buscando naquela espécie de dor uma distração para a maneira como meu coração parecia sair pela boca tamanha a velocidade que batia. não pareceu perceber o efeito que tinha, pois continuou a falar, um sorriso saudosista nos lábios enquanto encarava a mesa de centro:
– E eu melhorei. Engraçado, não é? Eu realmente melhorei. O que nos faz pensar: Que droga eu era antes, né? Porque, sejamos francos, eu fiz várias merdas nesses últimos tempos, e isso quando você já tinha dado um jeito na bagunça que eu era. Mas eu sempre fui uma bagunça muito grande, não é? Um caos ambulante – parou por um segundo, coçando os olhos com as costas das mãos, tão infinitamente doce que quase tinha um toque infantil. – Tão cansado – murmurou para si mesmo. – Não que isso seja culpa sua – ergueu a mão espalmada, por um momento levantando a cabeça para me dar um sorriso fraco. – É culpa minha e só minha. Sabe, estava pensando esses dias. Estive pensando muito esses dias. É impressionante o quanto você pensa quando não consegue dormir – encolheu os ombros, resmungando o fato de maneira não relevante. – É quase como quando se abre as portas de uma represa. Quando você resolve encarar as coisas, elas não te deixam em paz até que você disseque cada pedaço mínimo.
Pisquei devagar, absolutamente chocada com o monólogo de . Meu monossilábico ex-namorado mal tomava um segundo de fôlego entre a enxurrada de palavras. Não precisava do meu diploma para saber que ele estava a um passo de um colapso nervoso e sua válvula de escape era o falatório interminável. A surpresa devia estar transparecendo em meu rosto, pois repentinamente ele soltou uma risada seca e coçou a cabeça, já deixando suas mãos por ali mesmo, os cotovelos de volta sobre as coxas. De novo aquela posição de quem admite derrota. – Estou falando demais, não é? E, pior, falando nada. É só que... Bom, não importa. Você deve estar querendo que eu chegue de uma vez ao ponto. Acabar logo com isso para que você possa ir embora. Também não a culpo por isso. Querer ir embora, digo. Eu tampouco iria querer ficar aqui se fosse você. Não que você esteja aqui por livre e espontânea vontade. Oh! Estou começando a me perder de novo. Aparentemente isso tem acontecido muito nos últimos dias…
Sempre respeitei os preceitos éticos de minha profissão, porém nunca havia entendido, até aquele momento, o real significado da proibição moral que te fazia ponderar sobre atender pacientes com quem você mantinha algum vínculo pessoal. Tive que juntar forças de onde nem sabia que tinha para manter os pés plantados no tapete e não correr para confortá-lo. Era desesperador ver a pessoa que você amava lentamente se desintegrando na sua frente e não poder fazer nada.
– Ok. Certo – respirou fundo. – O que estou tentando dizer, e falhando miseravelmente, é que esses dias em que me obriguei a pensar em tudo que tinha acontecido me fizeram ver que o problema maior na minha vida é o Velho – encostou as costas no sofá, porém ainda não me encarava, decidindo agora observar as próprias mãos entrelaçadas em seu colo. – Quero dizer, eu já sabia que ele havia ferrado com boa parte da minha vida, porém pensei que isso se limitava as vezes em que ele realmente fez algo. Quando resolveu que os simplesmente não comemoravam o Natal, ou quando transformou minhas festas de aniversário de criança em grandes bailes para os seus investidores puxa-sacos, ou por ter me enfurnado em um colégio interno que conseguia ser quase tão insuportável quanto a mansão . Pensei que fossem essas coisas que tinham me atrapalhado enquanto crescia. É. Pois é. Por mais cego que eu seja, nunca fui ingênuo o suficiente para acreditar que havia saído daquela infância atrapalhada sem nenhum tipo de consequência. Minha ingenuidade, percebo agora, foi achar que conseguia ver e, por isso, controlar os efeitos. Não deixar que esse tipo de coisa controlasse a minha vida, sabe?
Sua voz ficava mais rouca a cada nova frase, menos pelo tanto que era usada, mais pelas emoções que estavam se acumulando e que podia ouvir pingar em cada sílaba. Havia uma quantidade tão grande de ressentimento ali que quase podia sentir o gosto amargo no ambiente, como se fosse fumaça tóxica que entrava por nossos narizes e se impregnava em todo o caminho até os pulmões, até que não pudéssemos respirar.
– Obviamente eu o subestimei. Dante conseguiu envenenar muito mais do que apenas minhas lembranças. Eu costumava achar que quando fizesse dezoito anos estaria livre dele. Depois pensei que me mudar para outro estado na universidade seria longe o suficiente. A última tentativa foi quando me alistei. Obviamente nem o outro lado do planeta era um bom lugar para me esconder. Não que ele estivesse me perseguindo até lá. Bom, ao menos não literalmente – deu de ombros. – Incrivelmente o velho me deixou em paz durante todo o período que passei na marinha. Nenhuma única palavra dele. Pensei que ele só tinha me deserdado, sabe? Simples e finalmente desistido do filho que nunca foi necessariamente um rebelde, mas também nunca chegou perto de ser o herdeiro perfeito que ele deseja. Mas foi só eu pedir baixa e a primeira carta chegou. Quase que imediatamente. Nem mesmo havia recebido minha dispensa oficial e lá estava o envelope. Até hoje não faço nem ideia de como ele descobriu, quem ele pagou para me espionar ou desde quando esse alguém estava me vigiando. Bom, isso não faz diferença agora. Tanta coisa já não faz diferença agora, mas esses detalhes definitivamente não fazem diferença agora.
Deu um pequeno soco no ar, em um gesto comum quando se constata alguma coisa. Então apoiou o cotovelo sobre o braço do sofá e passou a encarar a parede em contemplação.
– Sabe o que dizia? A carta. A carta tinha duas frases. Quatro anos na marinha e ele me mandou uma carta com duas frases. “Segunda-feira, 09:00. Wallstreet, 1265”. Dá para acreditar? Eu havia pedido baixa em uma terça e ele já tinha calculado o tempo que levaria para chegar em casa e me mandava instruções de quando aparecer na I. Suponho que deva ser grato por pelo menos ele não ter mandado eu ir trabalhar na quarta – voltou a me olhar ao tentar rir de si mesmo, estes pareciam ser os únicos momentos em que me encarava. – Não foi difícil juntar os pontos e perceber que ele sabia sobre a promessa que fiz para minha mãe antes de ela morrer.
Todas aquelas informações, juntamente com a carga emocional que traziam, estavam me deixando exausta. Cada frase foi fazendo pequenos furos em minha armadura até que não pudesse mais sustentar a pose de durona. Lenta e de maneira insegura, dei um passo depois do outro até me sentar no sofá na frente dele. nem percebeu, limitando-se a continuar seu relato quase que como se estivesse hipnotizado:
– Eu... – sua voz se quebrou naquela minúscula palavra e ele precisou limpar a garganta antes de continuar. – Eu nunca falei sobre isso com ninguém. Acho que nem comigo mesmo. Nunca parei para analisar as consequências dessa promessa – passou a mão sobre o rosto. – Minha mãe morreu quando eu mal havia entrado na adolescência, eu tinha treze anos. Pneumonia. Os médicos da família sempre disseram que ela tinha o sistema imunológico fraco e nem mesmo todo o dinheiro da família foi capaz de resolver dessa vez. E, verdade seja dita, o velho não poupou uma única moeda para tentar salvá-la. Mas não deu certo e depois de um tempo nós podíamos ver a vida lentamente deixando seu rosto. Ela era tão bonita, . Ela teria te adorado.
Dessa vez, quando ele virou a cabeça para me encarar, pude ver o reflexo de uma umidade suspeita no canto de seus olhos. Isso fez aumentar as lágrimas que corriam soltas por meu rosto e que começaram assim que seu tom se tornou infinitamente mais suave ao falar da mãe.
– Nadia . Ela foi a melhor pessoa que conheci. Infinitamente paciente, sempre sorrindo. Você podia sentir a ternura que ela tinha só de chegar perto, sabe? O que nunca entendi foi como ela se casou com Dante. Mamãe poderia ter arrumado alguém tão melhor. Mas ela realmente o amava e, apesar do gênio horrível que ele tinha, mamãe acreditava que ele iria melhor, que da próxima vez ele não seria tão egoísta ou mesquinho. Seu nome lhe fazia total justiça, sabe? Significava “esperança” em várias línguas – aqui, de novo, sua voz se quebrou um pouquinho e precisou respirar fundo em vários segundos para se recompor. – Estava sempre esperando o melhor de todos – eu podia literalmente ouvir o esforço que ele estava fazendo para não chorar. – Acho que foi por isso que no dia em que ela faleceu, me fez prometer que tentaria me reconciliar com meu pai. Ela sabia que não estaria mais ali para ser a mediadora que mantinha nossa família unida, então fez uma última tentativa para nos aproximar. Eu estava tão desesperado que teria prometido qualquer coisa naquele dia, mas logo depois vieram aquelas fases do luto que você deve saber explicar muito melhor do que eu, . Basta dizer, então, que passei muito mais tempo me consumindo em raiva do que em qualquer outra coisa. Fiquei feliz por ter sido mandado para um internato, mais feliz ainda com a faculdade e depois com meu alistamento. Qualquer coisa para ficar longe de Dante e daquela obsessão doentia em controlar cada passo que eu dava – outra vez aquela curta risada debochada. – Só que não importou quão longe corri, aquela promessa ainda me atormentava. Não sei exatamente quando cheguei ao limite, apenas que um dia acordei e soube que não poderia mais viver com esse tipo de peso nos ombros. Não havia um único dia em que não me lembrasse de ter empenhado minha palavra. Estava sempre lá, no canto de minha mente, como um mau agouro que nunca ia embora. Resolvi que era hora de voltar para casa e cumprir o outro dever a qual havia me comprometido. Chase e Hunter também pediram baixa. Os dois patetas nem mesmo me perguntaram porque eu estava vindo embora, apenas chacoalharam a cabeça e disseram que também vinham.
Quanto mais se afastava diretamente do tópico de sua mãe, mais sua voz se estabilizava. Eu, ao contrário, tornava-me cada vez mais uma bagunça emocional descontrolada. Parecia que alguém estava arrancando lentamente com um alicate cada pedaço do meu coração. Podia literalmente sentir a dor irradiando de meu peito. Era pior do que quando havia terminado nosso namoro, pois agora podia literalmente ver seu sofrimento e não havia dor maior do que testemunhar quem você ama sofrer sem poder fazer absolutamente nada. Por um segundo cheguei a me perguntar se todos que viam seu ente querido desnudar a alma desse jeito tão sofrido também se sentiam assim... tão dolorosamente impotentes.
– Então nós voltamos para América e eu não esperava nada além de cumprir meu prazo de penitência na I, apesar de nunca ter sabido ao certo quanto tempo isso seria. Seis meses? Um ano? Três anos? Dez? – deu de ombros. – Não sabia quando iria sentir que tinha cumprido a minha parte, que tinha tentando me reconciliar com o velho, se é que um dia sentiria isso. De qualquer maneira, a última coisa que esperava era encontrar uma vizinha com a irritante mania de estar sempre de bom-humor. Não tinha nenhuma intenção de deixar que você se aproximasse, , não tanto por não gostar de mudanças, mas porque desde a primeira vez que vi seus olhos violeta sabia que você era diferente de tudo que já tinha conhecido na vida. E isso me aterrorizou até a alma. Só que minha teimosa favorita não iria desistir tão fácil, não é mesmo? – repuxou os lábios no primeiro sorriso sincero que havia visto desde que chegara em seu apartamento. – De repente descobri que gostava de uma vida doméstica, gostava de ter cachorros ridiculamente inteligentes... gostava de você.
Alguns segundos de silêncio se passaram e fui capaz de controlar minimamente meus ductos lacrimais, tentando ser forte, principalmente porque podia ver que estava lutando com as próximas palavras que queria pronunciar. Não tinha nem ideia do que dizer para encorajá-lo, então mal podia expressar meu alívio quando Cookie saiu de seu lugar no canto da sala e empurrou o nariz contra a mão de que pendia sobre o braço do sofá. Seus olhos gelo deixaram a parede para encarar nosso cachorro e ele deu outro daqueles sorrisos sinceros, antes de coçar-lhe atrás da orelha, obviamente agradecido.
– Você é um bom garoto, Cookie – inclinou-se para frente, abaixando-se até que seus olhos estivessem no mesmo nível e segurou o rosto dele entre as mãos para sussurrar tão baixo que mal ouvi. – Um bom garoto – soltou outro suspiro e se endireitou para me olhar. – Não sei como isso vai soar, e realmente espero que não soe tão idiota quanto parece ser em minha mente, mas eu nunca tive essa… normalidade. Nunca realmente tive essa vontade de voltar para casa, nunca gostei de cozinhar com alguém ou assistir filme enrolado em um cobertor. Essas pequenas preciosidades domésticas… nunca encarei como isso, como as preciosidades que são.
Talvez porque minha autoestima estivesse em seus níveis mais deprimentes ultimamente, talvez porque fizesse total sentido, assim que ele disse aquilo, decidi que preferia que ele tivesse me chutado.
– Uma conveniência? – consegui murmurar depois que levantei os dentes de meu lábio inferior, onde os tinha afundado para tentar me manter em controle. – É isso que nossa relação era? Uma conveniência e sexo?
Não tive certeza se ele me entenderia, uma vez que as sílabas tremiam até o ponto de nem mesmo eu conseguir encontrar certo sentido, porém o jeito como seus olhos se arregalaram, tomados por puro terror, deixaram claro que ele havia ouvido perfeitamente.
– O quê! Não! – resmungou, indignado. – Não foi isso o que quis dizer, não foi nem de perto o que quis dizer. Iss-isso é ridículo, . Não sei de onde você tirou essa ideia – olhou para o teto e voltou a soltar o ar pesadamente. – Ok. Certo. A culpa foi minha. Não expliquei direito. É só que… eu… Nossa. Isso é difícil – soltou mais uma daquelas risadas tensas, secas, como se tivessem saídas apertadas por sua garganta. – O que estou tentando dizer é que nunca soube o quanto estabilidade é bom. É um tesouro que nunca tive. Sempre, em cada minuto e mesmo inconscientemente, alguma parte de mim esperava qual seria o próximo passo de Dante, o que ele faria a seguir para manipular minha vida… ou o que ele não faria, a inércia a que se sujeitaria só para me deixar um pouco mais paranoico, procurando por um ataque que não viria – gesticulava bastante com as mãos, entrelaçando e desentrelaçando os dedos. – Nunca soube o quão completamente exaustivo isso era até que me vi livre desse peso. Com você, , não precisava me preocupar com esse tipo de coisa, pois tinha absoluta certeza de que você nunca, de maneira nenhuma, estaria envolvida com o velho. Sabia que ele não tinha mexido pauzinhos, puxado cordas, planejado os movimentos como se fossemos peças de xadrez para que você aparecesse na minha vida. A única coisa real que tive em minha vida adulta foi o que construímos nesse ano – fez uma pequena pausa, agora seu olhar não deixava o meu e podia ver a sinceridade desesperada sob o gelo. – Meu pedaço de estabilidade entre o velho que tentava me manipular de todos os jeitos e o emprego que eu odiava sempre foi nossa casa. Então, quando Dante me disse no baile como era maravilhoso o fato de eu estar namorando a herdeira de uma das maiores fortunas da França, quiçá do mundo, eu perdi o chão.
Agora que já não me sentia como alguma coisa parecida com seu moletom favorito – legal e conveniente -, estava fazendo todo o possível para entender suas palavras e estava indo bem… até aquele momento. Senti meus dedos começarem a amaçar o tecido de minha calça, mais ansiosa do que antes.
– Não porque você fosse rica. Não sou hipócrita, tampouco. O problema não é seu status econômico, isso nem mesmo é da minha conta. Não me importaria se tivesse que sustentá-la e tampouco me importaria se você fosse a mulher mais rica da América. A questão é que senti como se não te conhecesse mais. E, sim, agora eu tenho plena noção de quão idiota essa ideia parece. Hunter e Chase fizeram questão de esfregar meu rosto no fato de que eu fui um grande idiota por pensar assim. Mas naquela hora… naquela hora eu perdi o chão – seu olhar, apesar de ainda estar no meu, tornou-se longe, provavelmente perdido na própria lembrança e no redemoinho de sentimentos que elas causavam. – Foi como das mil outras vezes em que me encontrei em meio a um dos jogos do meu pai. Simplesmente me perdi de novo. Não – levantou o dedo indicador em riste, interrompendo a si mesmo repentinamente. – Não, não. Isso não está certo. Eu nunca me senti tão perdido quando naquele réveillon, naqueles três dias, nessas últimas duas semanas…
E como a mesma ferocidade com que tinha pronunciado todos aqueles rompantes de explicações, calou-se. Durante vários minutos não houve som nenhum no cômodo além de sua respiração ofegante. tinha reclamado antes que estava cansado, mas agora ele realmente parecida ter corrido uma maratona interminável. Ofegante, linhas de cansaço, pupilas dilatadas. A adrenalina que o havia empurrado a falar sem parar durante tanto tempo de um assunto tão exaustivo tinha finalmente se esgotado e cobrado seu preço.
– Não sei se está me entendendo. Droga – passou a mão no cabelo, pela milésima vez em mais uma tentativa inócua de aliviar a frustração que sentia. – Não sei nem mesmo se eu estou me entendendo ou se as coisas que falei estão tão sem sentido. Não te culparia se não me entendesse, .
Sob as camadas pesadas de cansaço, podia ver resignação. Apesar de tudo que tinha dito, de ter lutado com palavras durante o que pareciam ser horas, parecia derrotado, como se tivesse aceitado que tinha perdido, como se todo seu discurso não tivesse alcançado a intenção pretendida.
Oh, amor… Ah se você soubesse que entendi. Entendi que suas cicatrizes emocionais eram muito mais profundas e extensas do que jamais poderia imaginar, entendi que isso te afetou... nos afetou de uma maneira que nenhum de nós nem mesmo percebeu. Além disso tudo, entretanto, entendi a importância que aquele momento tinha, que aquelas confidências carregavam. Estava orgulhosa dele e não podia sequer imaginar com quantos fantasmas do passado ele tinha batalhado para conseguir enfrentar tantas coisas das quais tinha fugido por toda vida. Admitir vulnerabilidades já é uma tarefa difícil para qualquer um, para , então, um homem forte e orgulhoso sempre acostumado a estar no comando, deveria ter sido uma verdadeira provação.
Tamanha confiança me deixava comovida. Queria abraçar o homem na minha frente e o garotinho de tantos anos atrás que terminou de crescer sem o carinho da mãe e sob a égide do pai manipulador. Queria dizer ao mais baixo que eu e de olhos gelo ainda inocentes que tudo ficaria bem, mas isso seria mentira. Os olhos que tanto amava perderiam a doçura que tenho certeza que existia ao olhar a mãe de quem ele falava com um carinho infinito, tornar-se-iam duro como aço, frios como o gelo que lhe emprestava a cor.
Não há comparação objetiva entre os sofrimentos, impossível quantificar ou qualificar o nível de dor de cada pessoa, pois cada um sofre de um jeito diferente. Passado, presente, futuro, contexto, família, amigos, círculo social, tudo isso interfere na maneira como as pessoas sentem, como são machucadas. Dessa maneira, jamais poderia dizer que era uma das pessoas com mais traumas que conhecia – além de ser uma afirmação completamente imprudente, também seria pouco ética. Porém definitivamente podia dizer que nunca senti a dor de alguém como sentia a dele. Dilacerava-me por dentro não ser capaz de fazer nada para impedir que o garoto que um dia ele foi sofresse tanto, que duvidasse tanto. Ninguém deveria crescer se perguntando se não seria traído dentro da própria família. Eu nem mesmo conseguia imaginar como aquilo devia ser. Sentir a necessidade de analisar cada passo que dava e desconfiar não só das pessoas, mas também das situações ao seu redor, havia cobrado um preço bem alto de e também sabotara nosso relacionamento.
Não mencionara essa parte, mas tinha certeza de que a pouca confiança que ele conseguia colocar no mundo vinha de seu tempo na marinha, quando confiar no soldado ao seu lado era literalmente questão de vida ou morte. Porém mesmo esse pequeno tesouro de credibilidade tinha sido maculado pelos horrores que presenciara naqueles anos. O milagre, então, seria se ele não tivesse problemas de confiança – agora podia claramente ver isso.
Para além de todos os sentimentos doloridos que pareciam âncoras ao redor de meus pés, parte de mim – e não me orgulhava disso – sentia certo alívio porque nessas últimas semanas, mesmo sabendo que a culpa de as coisas não terem dado certo entre nós não foi nem de perto minha, ainda havia uma pequena parte em algum lugar de meu cérebro que se perguntava se eu tinha feito algo errado, se eu não era o suficiente. Minha forma inconsciente de egoísmo mesquinho, entretanto, limitava-se a isso. Portanto, assim que consegui me recompor o suficiente para não achar que havia desequilibrado alguma força da física do universo e que por isso a gravidade agora estava tentando me esmagar contra o chão, forcei meus joelhos trêmulos a aguentarem meu peso ao me levantar. Cookie saiu de seu lugar de guarda ao lado de para me dar espaço, voltando para junto de Scott, mas nem pareceu perceber que eu me movera. Ele apenas continuou olhando para a parede, perdido nos próprios pensamentos, sem interesse pelo que se passava ao seu redor.
A centímetros de tocá-lo em seu ombro, parei, cerrando a mão por um segundo, ao perceber o quanto elas também tremiam. Engoli em seco. Parecia uma invasão de privacidade tocá-lo agora, mas sabia bem que precisávamos de conforto externo tanto quanto precisávamos de força interna para começar a cicatrização de mágoas emocionais. havia sido muito corajoso por enfrentar tanta coisa de uma vez só, era minha vez de ser corajosa por ele. Mais uma vez. Uma última vez.
– Está tudo bem, – sussurrei e imediatamente me arrependi. – Não – fechei os olhos com pesar por um instante. – Isso não é verdade. Não é justo que eu diga isso quando obviamente as coisas não estão bem. Mas, preste atenção, agora vai dar certo. Agora finalmente vai dar certo. Estou muito orgulhosa de você, . Muito mesmo – apertei seu ombro, tentando transmitir conforto.
Aquele que parecia ser nosso companheiro fiel nessas últimas horas, o silêncio, voltou a se acomodar ao nosso lado, porém dessa vez ele parecia nos transmitir certa paz enquanto digeríamos toda aquela bagagem emocional. Entre respirações pesadas, envoltos na quietude, minha mão deslizou por seu ombro até seu joelho. Não havia nada sexual ali, apenas um gesto que havia feito milhares de vezes quando estávamos no carro e queria ficar perto dele mesmo quando não podíamos nos aconchegar um contra o outro. Agora também queria abraçá-lo só para lhe sentir mais perto, entretanto, havia muito mais do que controles de automóveis nos separando. Obstáculos físicos eram infinitas vezes mais fáceis de serem contornados, o que tínhamos eram mil barreiras muito mais fortes, porque, apesar de tudo que havia sido derramado e lavado entre nós, ainda faltava o mais importante… faltava o que não poderia viver sem e que tampouco poderia exigir dele. Por um segundo me perdi na pena que sentia de mim mesma, só sendo trazida de volta ao ouvir meu nome.
– Sim?
Ao virar a cabeça, encontrei-o sentado meio de lado, sua expressão ainda bem cansada, porém já não havia a sensação de que uma sombra pesada toldava seus olhos.
– Quando nós estávamos no deserto, depois de chegar de uma missão, tirávamos os equipamentos que precisávamos carregar. Eram mochilas enormes – sorriu longe, muito provavelmente vendo em frente de seus olhos a lembrança que descrevia. – Nós as carregávamos por quilômetros e horas a fio, mas só quando parávamos em algum lugar para descansar, só quando tirávamos aquelas mochilas, é que percebíamos o quanto elas pesavam.
Franzi o cenho, não entendendo aonde ele queria chegar. Seu sorriso aumentou e se tornou mais suave.
– Oh, – senti sua mão se fechando gentilmente ao redor da minha. – O que estou querendo dizer é que nunca percebi que estava carregando uma mochila figurativa minha vida inteira – balançou a cabeça de um lado para o outro, alongando o pescoço com uma expressão de contentamento. – Parece que toneladas saíram de meus ombros.
O aperto em meu peito diminuiu. Ao menos tinha o consolo daquelas palavras.
– Está tudo bem, . Tudo bem.
Ele respirou fundo e seu olhar no meu se intensificou. Remexi-me no sofá, desconfortável, e tive que me esforçar para não desviar os olhos. Não parecia justo que ele me encarasse daquela maneira, como se estivesse sondando minha alma até que não pudesse lhe esconder nada.
– Está mesmo? Quero dizer, eu realmente sinto muito por como as coisas aconteceram nesses últimos dias. Dentre as piores maneiras que poderia ter lidado com meus medos, escolhi a pior de todas.
– Você nem sabia que estava lidando com esse tipo de coisa, . São truques sujos do nosso inconsciente. Não podemos controlá-los – com a mão que não estava envolta pela sua, toquei seu rosto, as pontas dos dedos suavemente acariciando sua bochecha.
– Então você me perdoa?
Foi minha vez de engolir em seco.
– Claro que perdoo – podia ouvir a vontade de chorar começar a embargar minha voz.
E, porque parte de mim sabia exatamente o que ele queria dizer com aquela pergunta, com o coração pesado, acrescentei:
– Nós podemos começar de novo. Dessa vez podemos ser amigos. Talvez seja isso que devíamos ter sido desde o começo. Só isso – acrescentei baixinho, quase num fiapo inaudível.
jogou a cabeça para trás, os olhos arregalados por um olhar tão machucado que qualquer pessoa pensaria que eu tinha lhe estapeado.
– Amigos? – repetiu como se aquela palavra fosse um termo estrangeiro desconhecido. – Como assim amigos? Você me perdoou… você disse que… você disse que me amava – nunca pensei que tanta traição coubessem em uma frase tão curta.
Cerrei os olhos, por um momento, com pesar. A sensação de que a gravidade estava tentando me esmagar voltou e precisei me concentrar para passar por cima do fato de minha garganta estar tão seca que já arranhava mesmo não tendo dito nada.
– Claro que te perdoo, , e, sendo justa, deveria tê-lo deixado falar aquele dia. Devia ter deixado você falar todas aquelas vezes que tentou se explicar. Acho que nós dois erramos em algum ponto. E erramos bem feio – assenti algumas vezes, desviando os olhos para o longe por um instante. – Mas não precisamos insistir no erro, . Não me arrependo do que tivemos. Foi ótimo. Foi incrível – sussurrei, sentindo uma lágrima rápida escorrer por minha bochecha. – Mas… não sei explicar – encolhi os ombros. – Acho que foi no momento errado ou talvez do jeito errado. Não sei – sacudi a cabeça. – Realmente não sei.
Recolhi minha mão. De repente tocá-lo não parecia certo. Uma pequena tentativa de me preservar, mesmo quando meu peito já estava oco.
-Você não…? Você disse que...
Se fosse um pouquinho mais mesquinha, teria me reconfortado o fato de que ele aparentemente estava tendo tanta dificuldade para falar sobre aquilo quanto eu, porém apenas sentia um pouquinho mais de amargura. O gosto ruim em minha boca parecia deslizar na língua e, juntando-se a emoção mal controlada que apertava minha garganta, quase deixou as palavras ininteligíveis:
– Se ainda te amo? – as lágrimas voltaram ao canto de meus olhos quando decidi poupá-lo de ter que soletrar sua pergunta. – Claro que ainda te amo, . Óbvio que ainda te amo.
Te amo tanto.
Te amo tanto, , que havia tentado amar sozinha, tinha tentado amar por nós dois. Mas não podia mais fazer isso.
– Óbvio que ainda te amo, – repeti mais uma vez, ainda que cada palavra parecesse ainda mais crua, ainda mais arrancada de minha garganta. – Mas não dá… Eu… – engoli em seco. – Eu… , por mais que eu te ame, e, oh, você não tem nem ideia de quanto é isso, eu também me amo – meus dedos voltaram a se entrelaçar em um aperto de ferro em uma tentativa vã de aliviar a tensão. – Não posso e não quero sacrificar minha sanidade por esse relacionamento, .
Quando voltei a encará-lo, tive vontade de dar uma daquelas risadas histéricas porque mesmo depois de todo o esforço que tive para colocar em palavras o que estava sentindo, ele ainda me encarava com uma expressão tão confusa que, não fosse o peso em meu peito, teria considerado adorável. Forcei um sorriso pequeno e não consegui segurar o impulso de levantar a mão e acariciar sua bochecha, que estava coberta por uma barba que nunca tinha visto antes, mas que lhe deixava ainda mais sexy e fazia meu coração perder uma batida.
– Você não me ama, .
De todas as coisas doloridas que eu tinha dito naquela noite, aquela era a maior delas. Recusar a oportunidade de voltar a ter um relacionamento com já havia machucado da primeira vez. Precisei de dois dias chorando e enlouquecendo de preocupação para aceitar que o que tínhamos não era saudável. Só a dura percepção de que estávamos fazendo mal um para o outro que me deu forças para deixá-lo. E, mesmo assim, foi incrivelmente ruim me afastar quando tudo que queria era fingir que as coisas ficariam bem, ignorar a realidade.
O problema era que mentiras, mesmo as que contávamos para nós mesmos, tinham vida curta. Mentiras que nos envenenaram até que nos custasse algo precioso, e, no meu caso, isso seria a sanidade. Não podia passar meus dias me perguntando se iria voltaria para casa ou se tinha surtado por motivo que eu desconhecia e se esquecera de mim porque não se importava o suficiente. A dúvida iria me consumir viva, não podia fazer isso comigo mesma. Precisava me afastar fisicamente para conseguir, em um futuro próximo ou distante, me distanciar também emocionalmente. Obriguei-me a sair da festa de autocomiseração que estava dando em minha cabeça e voltei a encarar seus olhos de gelo. Se antes, ao encontrá-lo desentendido, já havia sido um pequeno choque, o sorriso sereno que cobria seu rosto agora me causou ainda mais estranheza – para não dizer um tanto razoável de indignação.
Ele estava zombando de mim?
Ou estava com pena?
Engoli em seco, a humilhação queimando em meu rosto me fazendo atingir o último dos limites. Levantei rápido, as costas rígidas para guardar o máximo de dignidade que podia reunir naquele momento.
– Cookie, Scott, vamos.
Fiquei bastante orgulhosa por minha voz não ter tremido e ainda mais agradecida por meus dois filhotes terem me obedecido. Provavelmente desabaria se tivesse que implorar também por isso. Os passos até a porta exigiram o resto de coragem que ainda me sobrara e durante todo aquele curto caminho a única coisa em que pensava era em aguardar mais um segundo, apenas mais um momento, que logo mais estaria em casa e assim poderia chorar o novo peso que esmagava meu peito.
?
Precisei morder meu lábio inferior com força para que o choro de frustração não escapasse. Estava tão malditamente perto da liberdade, meus dedos já estavam ao redor da maçaneta quando ele me chamou, a voz tão suave que tremi sob meus joelhos.
Por muito pouco, por muito pouco mesmo, não o ignorei. Só os frangalhos de meu orgulho me impediram de empreender a fuga que me seria tão grata. Completamente entorpecida – porque não sobreviveria de outra maneira – voltei a encará-lo. ainda sustentava aquela expressão serena e impassível de sempre, mas calmo de verdade, como se já não tivesse nenhum problema restante em seu mundo.
– Você se esqueceu de uma coisa, .
– Es-esqueci o quê?
desviou os olhos gelo dos meus para laçar um olhar significativo para baixo. Seguindo a direção que ele indicava, encontrei Scott sentado aos meus pés, o queixo erguido e a boca repuxada naquele sorriso bobo que parecia lhe ser permanente. Meu franzir de cenho se acentuou e a pergunta estava na ponta da língua quando aquele pedaço de papel branco voltou a chamar minha atenção.

“Quando você estiver pronta, mamãe.”

Havia me esquecido completamente daquilo. Aparentemente aquela parecia ser a hora certa para ler o bilhete que sabia estar por trás da pequena mensagem, mas não sabia se queria fazer qualquer coisa além de ir embora. Não sabia se estava pronta – mesmo não tendo nem ideia para o que quer que não estivesse pronta para. Felizmente meu cachorro se apiedou de mim e pulou até colocar as patas dianteiras em minha coxa, poupando-me o sacrifício de me abaixar, afinal, não sabia se conseguiria me levantar de novo.
Como em um sonho, quase como se estivesse assistindo como um terceiro expectador, percebi que tinha estendido a mão. Meus dedos dormentes mal notaram a textura do papel ou o movimento de abrir a folha dobrada. Ainda roboticamente, levantei o braço até que a folha estivesse na altura de meus olhos. Talvez fosse o amortecimento emocional que estava sentindo, talvez fosse o cansaço extenuante que parecia arrastar meus músculos. Fosse o que fosse, contudo, precisei passar o olhar repetidas vezes pelas palavras ali escritas na caligrafia elegante de para que alguma coisa fizesse sentido.
”Papai também pediu para dizer que te ama.”
Quando meu cérebro registrou o significado daquilo, foi como se alguém estivesse literalmente me estapeado de volta a realidade. Todo o entorpecimento de momentos atrás desapareceu instantaneamente. Levantei a mão contra os lábios para conter o soluço que vinha do fundo de meu peito. Ergui a vista para olhar para além do papel em minha mão. , sem que eu tivesse notado, havia se levantado e me observava atentamente, ainda sorrindo sereno, mas agora com um brilho caloroso que nunca vira antes em seus olhos gelo.
– Provavelmente desde o primeiro minuto em que você se intrometeu em minha vida, . Te amo desde a primeira vez que você me fez sorrir – continuou, a voz tão rouca e crua que tive a certeza de que ele nunca pronunciara qualquer coisa nem mesmo parecida. – Te amo desde a primeira vez que você me encarou com esses bonitos olhos violeta que parecerem alcançar o fundo de minha alma, exigindo cada pedaço dela para si. E você os tem, sabia? Cada parte de mim é sua. Eu te amo, linda. E não tenho nenhum direito de lhe pedir isso, mas nada me faria mais feliz do que uma segunda chance. Por favor?
Com a folha ainda segura em minha mão, escutei Cookie e Scott latindo felizes quando passei por eles o mais rápido que minhas pernas moles como geleia permitiam para me atirar nos braços de . Seus braços fortes se fecharam ao redor de minha cintura e me levantaram até que meus pés não estivessem mais tocando o chão. Minhas lágrimas molharam o pano da parte de sua camisa que cobria os ombros fortes dele, e palavras inteligíveis eram murmuradas contra meu cabelo. Não podia identificar a maioria delas, mas podia sentir contra minha pele o que ele queria dizer, então me afastei um pouco até que meus lábios encostassem em seu ouvido para falar aquilo que há tempos queria pronunciar em voz alta, que guardara em meu peito ao que parecia uma eternidade:
– Eu também te amo, .

– Não, . Nem pensar – sacudi a cabeça, dando a volta até que estivesse de bruços na parte dele da cama e escondendo o rosto contra o travesseiro.
Hmm. Suspirei contente ao perceber que o cheiro da colônia dele já havia voltado a impregnar a fronha. Depois de voltarmos para nossa casa, extenuados pela noite de emoções extremas, percebi que nunca dormira tão bem como quando me abraçou pela madrugada. Depois de inúmeras noites insones, finalmente pude descansar sem o peso da Terra sobre meus ombros.
– Por que não? – chiou como uma criança birrenta. – Faz muito tempo que eu não vejo GOT!
– Porque eu estou confortável aqui e não quero me mexer. Nem mesmo para ir para sala – foi o que eu disse, ou o que teria falado não fosse o travesseiro abafando tudo até que me tornasse inteligível.
O silêncio que veio a seguir foi estranhamente ameaçador. nunca desistia de uma batalha. Franzindo o cenho e levantei a cabeça, mas nem mesmo tive tempo de investigar o que ele estava aprontando.
– Qu-AH! – em um movimento rápido ele me virou e me ergueu nos braços. – , o que diabos você está fazendo? – não pude evitar o riso, mesmo enquanto passava a mão pelo rosto e pelo cabelo bagunçado.
– Nós vamos ver GOT na sala – respondeu com convicção, não interrompendo a caminhada decidida.
– Mas eu quero dormir – empurrei o lábios inferior para frente em um biquinho.
– Você pode dormir no sofá junto comigo, dengosa – olhou para baixo e sorriu.
– E você pode assistir GOT sozinho. Te ensinei a ligar a HBO Now.
– Não – resmungou em tom definitivo.
Apertei os lábios para que ele não percebesse o sorriso enorme que certamente aumentaria ainda mais seu ego enorme. Com passadas largas me deitou no sofá e desapareceu na cozinha, voltando com sacos de salgadinhos e latas de refrigerante nas mãos. Após colocar a comida sobre a mesa de centro, sentou-se ao meu lado e passou os braços por minha cintura, puxando-me para seu colo.
– Aqui – empurrou controle em minha mão.
Selecionei o que iríamos assistir e deitei a cabeça em seu peito. Foi só lá pelo meio do episódio que percebi que não conseguiria mais dormir e, agora que estava acordada e que havia resolvido algumas das questões mais importantes entre nós, ainda havia uma coisa me incomodava bastante. Brinquei com o pano branco de sua blusa enquanto ponderava se deveria abordar aquele assunto justamente quando estávamos tão em paz. Quebrar esse tênue equilíbrio era arriscado, mas pior seria protelar o assunto e arriscar uma nova bola de neve. Respirando fundo, perguntei:
, por que você continua na I?
Acho que ele demorou a perceber que eu realmente havia feito aquela pergunta, concentrado que estava nas cenas de batalha na televisão. Notei o instante exato, porém, em que minhas palavras lhe fizeram sentido. Seu corpo se retesou embaixo do meu por um segundo antes que ele se obrigasse a relaxar de novo.
– Já te expliquei, amor – olhou para baixo e para mim com o cenho franzido. – Prometi à minha mãe que iria tentar resolver as coisas entre meu pai e eu.
Foi minha vez de tomar um momento para me reagrupar, controlar as borboletas que rodopiavam como loucas em meu estômago ao ouvir o apelido carinho que ainda era recente, mas que se tornava cada vez mais natural a cada repetida. Colocando as mãos em seus ombros, me mexi até que estivesse em frente à sua linha de visão, bloqueando a televisão e tendo a certeza de que seu olhar gelo estivesse no meu.
, – coloquei as mãos em suas bochechas, – quero que me escute com atenção.
Mantive meu tom o mais suave possível, como o que viria a seguir não era fácil, então procuraria aliviar o máximo onde fosse possível.
– Eu não posso afirmar isso com certeza, mas acredito que o que ela queria quando lhe pediu essa promessa foi que vocês não ficassem sozinhos. Talvez ela soubesse que estava indo embora e fez o que considerou ser o melhor para vocês. Mas, … amor… – acariciei sua bochecha ainda coberta pela barba. – Amor, você tentou, cumpriu sua palavra. Você fez tudo que podia, mas tem coisas que simplesmente não dão certo. Você não pode passar o resto da sua vida preso a essa promessa. Sua mãe não iria querer isso – com a ponta dos dedos tracei o contorno de sua boca, minha atenção, contudo, sempre em seus olhos. – Você não precisa se sacrificar assim.
Havia tantas outras coisas que poderia falar ainda, porém já tinha muito o que pensar sem que eu ficasse espremendo aquele assunto já tão delicado. Era ele quem deveria decidir e já tinha deixado claro minha opinião, não queria parecer intransigente e lhe passar a ideia errada de que não lhe apoiaria – ainda que ele continuasse na I.
Voltei a deitar a cabeça em seu peito.
Havia aprendido a duras penas que não podia lutar suas batalhas, mas estaria ao seu lado enquanto ele enfrentava os oponentes.

XXX

Levantei a cabeça para dar uma boa olhada no prédio em que estava prestes a entrar.
Não. Ele continuava tendo a mesma aparência aterradora de antes. O exemplo último da mais alta e cara arquitetura na América e, mesmo assim, parecia que a sede da I estava se debruçando sobre a rua à sua frente, pronta para engolir e dizimar qualquer transeunte desavisado que se atrevesse a desafiá-la. Realmente desagradável.
Naquele dia, entretanto, nem mesmo isso iria tirar meu bom humor. Só o fato de ter a consciência de que não teria que passar o dia inteiro preso naquele lugar, já levantava mil quilos de meus ombros. Podia até mesmo reparar nos pequenos aspectos daquele ambiente que ignorara por meses. Havia uma floricultura na esquina e, no meio do quarteirão, uma pequena cafeteria que deixava escapar na rua um cheiro bom de café cada vez que alguém abria a porta. Perceber esses pequenos detalhes me fizeram ter ainda mais certeza do que decidira.
Durante os últimos passos no concreto antes do mármore do saguão de entrada, vi um jovem que dedilhava uma canção do Scorpions no violão.
“l will be there. l will be there.”
Não pude deixar de sorrir. O garoto cantava bem. Será que ele sempre esteve ali e eu nunca tomara um minuto para apreciar? O cumprimentei com um aceno de cabeça antes de deixar a fria rua nova iorquina para entrar no ainda mais gelado prédio da I. Pude perceber alguns olhares descrentes enquanto traçava uma linha reta até alcançar o elevador. Alguém de jeans e camiseta naquele lugar devia ser tão exótico quanto um leão rugindo no meio do Central Park, porém eles me reconheceram o suficiente para não tentar me impedir. A viagem de subida não se arrastou como de costume e logo estava em frente a frente com a sempre adorável Wissy.
– Senhor , – adocicou o tom daquele jeito nojento e enjoado de novo, – infelizmente não posso deixar que entre. O presidente só atende com hora marcada.
– Ótimo, Kissy, então vou deixar minha carta de demissão aqui com você para que entregue para ele. Que tal? – arqueei a sobrancelha zombeteiramente.
Ainda um tanto embasbacada, Hissy tomou a decisão certa de dar um passo para o lado. Aparentemente desobedecer uma norma era melhor do que ser a portadora daquele tipo de notícia. Sem bater, entrei na sala enorme que Dante chamava de escritório. Ele levantou a cabeça dos papéis que analisava sobre sua escrivaninha.
– Ah, então você está vivo – lentamente abaixou a caneta que estava entre os dedos. – Estava começando a me perguntando quando você apareceria para trabalhar. Todos esses meses em que você estava tão responsável, , certamente uma anomalia. Tão responsável, tão incomum. E o que é que você está vestindo?
Qualquer outro dia essas tão corriqueiras pontuações que ele sempre gostava de fazer iriam me incomodar sobremaneira, porém hoje nem mesmo seu jeito de mau agouro iria estragar meu bom-humor.
– Sabe que você tem razão, pai? – respondi e, dessa vez, nem mesmo sua máscara de frieza escondeu sua incredulidade ao me ouvir dizer aquelas palavras inéditas. – Mas você não precisa mais se preocupar com isso. Eu finalmente percebi que isso nunca vai funcionar. Provavelmente não lhe importa e tampouco quer me ouvir, mas eu não quero trabalhar aqui. Não quero e, sabe, também – abri os braços, de repente não podia conter o sorriso que queria dar, – percebi que não preciso da I. E a I definitivamente não precisa de mim – dei os passos necessários para colocar, sobre o tampo de madeira nobre, a folha que trazia. – Aqui. Minha carta de demissão. Tenho certeza que existem executivos mais qualificados para assumir meu lugar.
E, um pouco por minha mãe, um pouco por aquele tipo de esperança infundada que cada um guardava pelos mais diferentes motivos, acrescentei:
– O senhor pode… Não sei – dei de ombros. – Apenas… Se quiser, pode me ligar qualquer dia desses.
Aproveitando que o velho também parecia estar atônito demais para reagir, dei-lhe as costas e calmamente saí daquela sala com a sensação de estar cinco anos mais jovem do que há dez minutos.
Era o final de janeiro e estava um frio de bater o queixo, mas, quando saí do prédio, senti o sol bater em meu rosto e me senti aquecido como nunca antes. Descendo os degraus para rua, ouvi o violão do garoto que agora entoava, de maneira bem agradável, Beatles. Tinha acabado de pisar na calçada, definitivamente deixando a propriedade de Dante, quando, por entre os transeuntes apressados que passavam diagonais a mim, vi parada a alguns metros, ao lado de um poste.
Hoje mais cedo, quando lhe informei o que pretendia fazer, minha namorada se ofereceu para me acompanhar. Declinara de sua oferta, mas, ali estava ela, ao alcance de minhas mãos, em uma calça jeans, tênis e absolutamente adorável ao quase desaparecer embaixo do meu moletom da marinha.
- “Take these broken wings and learn to fly.”
Podia ver o sorriso no canto de seus lábios e o brilho caloroso nos olhos violeta.
“Blakbird singing in the dead of night.”
E, naquele momento, senti meu coração se expandir do mais completo amor pela mulher que me conhecia como ninguém jamais me conhecera.
Sorrindo, dei o primeiro passo na direção que sempre tomaria daqui para frente: a que estava.
“All your life you were only waiting this moment to be free.”



Epílogo

– Você tem notícias de Puppy? – Chase perguntou assim que lhe entreguei sua nova cerveja.
– Não.
Sacudi a cabeça e desviei minha atenção para minha namorada levando mais uma travessa de comida para mesa da sala de jantar. Nossos cachorros a seguiam de um lado por outro, torcendo por alguma guloseima.
– Mas acho bom ele aparecer. está bastante animada com essa ideia de jantar de comemoração. Ficou cozinhando a tarde inteira e nem me deixou ajudar. Vou quebrar a cara dele se ele não aparecer como prometeu que faria.
– Ele está bem esquisito. – Chase murmurou, pensativo, antes de destampar sua cerveja e tomar um gole. – Faz uma semana que ele não dá noticiais. Não sei, não sei não. Muito, muito esquisito.
Mantive a expressão impassível para que minha namorada não percebesse que havia algo de errado enquanto terminava de ajeitar as últimas coisas, mas estava começando a ficar preocupado. Chase tinha instintos incrivelmente afiados. Se ele dizia que havia alguma coisa errada, definitivamente havia alguma coisa errada. Antes que pudesse questioná-lo sobre o que ele estava pensando, contudo, apareceu ao nosso lado.
– Hey, vocês acham que Caleb está chegando? – retorcia as mãos nervosamente, revezando o olhar entre nós e a porta enquanto mordia o lábio inferior.
– Tenho certeza de que sim, Darlin’.
Revirando os olhos ao ver como corava frente ao sorriso de flerte de meu melhor amigo, puxei-a pela mão para que se sentasse em meu colo. Com o braço ao redor de sua cintura, tomei um momento para passar o nariz por seu pescoço, afastando-me, satisfeito, só quando percebi sua pele se arrepiar.
– Nós podemos comer agora, linda – falei. – Quando ele chegar, ele come. Não temos culpa se Puppy não sabe olhar as horas.
– Não seja ridículo, amor – franziu o cenho para mim como se eu estivesse enlouquecendo. – Não podemos comemorar a abertura da empresa de vocês três sem um dos três. A Thermopylae não existiria sem Caleb e com esse jantar vai ser a mesma coisa. Entendido? – arqueou a sobrancelha para mim e Chase.
– Sim, senhora – ele respondeu prontamente, um sorriso divertido no canto dos lábios ao ouvir minha baixinha mandar em nós com aquela absoluta certeza de que seria obedecida.
Felizmente não precisei continuar imaginando como iria arruinar aquele sorriso bobalhão que Dylan sempre sustentava porque finalmente a campainha tocou. Em um salto estava correndo como um raio para porta. Consegui ouvi-la exclamar o nome de meu amigo, animada, depois, todavia, estranhamente vieram alguns sussurros ininteligíveis. Uma espiadela em Chase e ele parecia tão perdido quanto eu. Sabendo que minha mulher podia tomar conta de si mesma, continuei sentado, mais curioso do que preocupado.
voltou para nossa linha de visão, lançando-me um olhar que era reservado para momentos importantes e que havia aprendido a interpretar como “comporte-se, ”. Realmente confuso agora, levantei-me e comecei a caminhar até a porta, mas parei no meio do caminho quando, atrás de Hunter e segurando na mão dele com se sua vida dependesse disso, entrou uma mulher que nunca tinha visto antes. Ela devia ter por volta da mesma idade de , 1,72 de altura e os cabelos castanhos. Muito bonita também, mas o que mais me chamou a atenção foram seus olhos.
Assustados, mas ainda assim com um deslumbramento mal contido, como se ela tivesse medo de acreditar que o que estava vendo era real. De esguelha vi que Dylan também tinha se levantado, provavelmente tão confuso quanto eu. Tinha certeza de que Puppy não mencionara nada sobre uma namorada. Os três se aproximaram o suficiente para que eu percebesse que, não bastasse a completa desconhecida em minha sala, Caleb também estava bastante estranho, furtivo, não mais o cara risonho de sempre.
– Oi – sua voz também estava séria, inflexível. – Savannah, quero que conheça meus amigos. Estes são , e Dylan – voltou sua atenção para nós três. – Esta é minha esposa, Savannah Hunter.




Fim.



Nota da autora: Olá, amadas.
Enquanto eu escrevo isso, nós estamos em julho/2020. Faz alguns anos que Blackbird foi finalizada e, naquela época, o mundo inteiro - literalmente - era outro.
MB aqueceu meu coração enquanto eu escrevia essa história e fico muito contente que ela ainda aqueça o coração de vocês.
Eu já vi tantos comentários absolutamente adoráveis no grupo do Facebook do FFOB. Queria agradecer por todo carinho. Vocês sempre me animam.
Queria agradecer especialmente, porém, quem também deixou um comentário na caixinha de comentários aqui. Eu fico tão feliz. Obrigada.
Espero que vocês tenham gostado da história, espero, também, que vocês deem uma chance para a história da Savannah e do Caleb Hunter (Haunted Eyes), que eu explico aqui embaixo.
Queria deixar um agradecimento à Barbara Oliveira, que betou a história; queria agradecer muito a Gabi Delmondes, que tem me ajudado muito com tudo; e, ainda, queria agradecer a Kari, que fez a toda a arte da capa e das divisões. Vocês todas são incríveis.
Por fim, vou deixar um conselho (que espero poder pedir para apagar daqui alguns meses, quando tudo passar) parafraseado do discurso da incrível Primeira Ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern: “se você está em dúvida sobre o que você pode ou não pode fazer, siga um princípio simples: aja como se você tivesse COVID-19. Todos os movimentos que você faz pode ser um risco para outra pessoa. É assim que devemos pensar de maneira coletiva agora”.
E, por fim, ainda seguindo o discurso dela, “lembre-se de ficar calmo, ser gentil e ficar em casa. Nós podemos quebrar a corrente”.
<3

Informações Importantes (fixas):
- Esse livro é Thermopylae Trilogy 1: Sparta, o livro 01 da Trilogia no qual Haunted Eyes é o livro 02. Haunted Eyes já está disponível aqui no site.
- HE conta a história de Caleb e Savannah Hunter, e o primeiro capítulo se inicia exatamente onde MB parou em seu epílogo.
- Venham conhecer HE e saber como Ravenna e Duke (nomes originais dos pps aqui de MB) estão agora.



Outras Fanfics:
Hit By Destiny | Haunted Eyes

Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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