Capítulo 1
MAKSIMOVA • DOIS DIAS ANTES.
Roma, Itália.
Roma, Itália.
— Porra ! Tem ideia do quanto você tá atrasada? Que caralho, se fosse para levar dias eu tinha chamado o Vaticano.
Eu abro um sorriso preguiçoso e inclino a cabeça para trás, encarando-o com uma mistura de divertimento e tédio, enquanto o rosto dele se retorce. Markus Zhao, ou apenas Mark, como eu o conhecia há algum tempo, era um idiota. Mas, porra, se não era um idiota gostoso. Qual é? Só porque estava em solo sagrado não significava, categoricamente, que eu deveria ser uma santa — que coisa mais chata para ser, afinal. Meus olhos percorrem demoradamente da cabeça aos pés dele e, então, retornam ao seu rosto: que Markus Zhao era um puta gostoso, isso não era sequer uma questão, apenas uma eventual conclusão. Ele tinha aquele tipo de pele marrom clara, bronzeada, os cabelos lisos, escuros como a noite, pendendo pela testa e pelas maçãs do rosto em um corte de cabelo estilo curtain, destacando os olhos castanhos claros, quase âmbar, intensos e sempre tão sérios. Eram levemente repuxados nos cantos, um fator impossível de ser perdido, embora ele desejasse manter sua herança o mais discreto possível — ah, sim, problemas com o pai, quem não tinha, não é? —, era nítido sua herança asiática, provavelmente chinesa, até onde eu sabia. As maçãs do rosto eram altas e bem marcadas, as sobrancelhas grossas e uma mandíbula bem definida, cortante. As marcações em sua pele, espelhavam as minhas: runas antigas, inscrições de proteção e um padrão esquisito de tentáculos que envolvia sua mão dominante, a esquerda, enquanto a minha era a direita. Parte do ofício, suponho. A única diferença, além da quantidade de tatuagens — eu tinha, orgulhosamente, mais do que ele —, eram as roupas. As minhas estavam amassadas, fedendo um pouco a álcool e, por algum motivo, a latte de limão, enquanto as dele estavam em perfeito estado, embora fosse uma batina.
Talvez fosse efeito da batina ele estar tão atraente aos meus olhos no momento. Talvez fosse um adicional delicioso à composição geral. Filho da puta, era só me dar uma chance, e nem um guindaste me tirava do pau dele.
— Eu posso ver o que você tá pensando, . Para, agora — Mark rosna entre dentes, apontando o indicador na minha direção. Eu me seguro para não rir. Quer dizer, me segurar seria dizer que eu estava me esforçando para não rir dele, e definitivamente não estava fazendo o mínimo esforço. Mas, qual é? Me dá um desconto também, eu não ri... explicitamente. Ergo uma sobrancelha, encarando-o, desacreditada. Sempre me surpreendia com as pessoas ao meu redor acreditarem que eu tinha algum respeito por eles. Quer dizer, quando, em minhas ações, eu havia os guiado erroneamente a acreditar nisso? Além disso, o sorrisinho que Mark tenta esconder firmemente por trás de sua expressão severa me diz o suficiente para saber que, bem, ele não era assim tão arisco à ideia, mesmo com a batina e tudo mais. Afinal, o que era a promessa de um paraíso, se não houvesse aqueles dispostos a pecarem? Talvez nossa única diferença fosse que eu gostava, enquanto ele recriminava. Perspectiva, certo?
— Me obriga — não dá para conter um sorriso ao observar a maneira com que ele trinca os dentes e cerra a mandíbula, um músculo saltando na bochecha. Meu sorriso aumenta progressivamente com a restrição dele. Ah, ele me odeia, é claro e nítido, mas, quem naquele lugar não me odiava, não é mesmo? Apesar disso, há restrição e um convite silencioso que ele não vai aceitar, mas quer pra caralho. Deslizo minhas mãos para dentro dos bolsos do meu casaco de trincheira velho e puído, dando um passo na direção de Mark. Depois mais um. E mais um, até que estivéssemos apenas a poucos centímetros de distância. Ele era mais alto do que eu, claro, e mais forte. Podia me empurrar, se quisesse, mas não o faria. Porque, não importa o quão hipócrita e farisaico Zhao fosse, sempre havia aquela parte do cérebro dele que o traía. Que queria. — O que? Sem mais acusações e reprimendas? O gato finalmente comeu a sua língua? — Mark me encara em silêncio e, por um breve momento, vejo que ele considera tudo.
Seus olhos âmbar desviam-se dos meus e repousam em meus lábios. Ele engole em seco. Ele cheira a vinho e algo amadeirado, discreto, mas presente. Posso beijá-lo, se quiser. Descobrir se ele estava roubando vinho da sacristia outra vez ou se simplesmente derrubou vinho na batina outra vez. Posso tomar seus lábios nos meus e, finalmente, descobrir qual era o gosto dele, em vez de apenas fantasiar e especular. Sua respiração é pesada, cálida, misturando-se à minha. Os lábios se entreabrem, como se estivesse prestes a dizer algo que se perde no fundo de sua garganta. As pupilas se dilatam. Os olhos se semicerram. Ele luta com emoções turbulentas que provavelmente o cegam e, ao mesmo tempo, busca uma resposta para seu dilema pessoal. Eu posso beijá-lo, se quiser, mas não vou.
Não. Se ele quer alguma coisa, então teria que dar um passo à frente, teria que fazer um movimento. Mas isso não significava, categoricamente, que eu não pudesse ao menos me divertir um pouco em atormentá-lo. A decisão era dele, mas esperar que eu me portasse virtuosamente era igualmente ridículo. Qual é? Se tudo estava indo para o inferno e pegando fogo, por que não puxar uma cadeira, sentar e assistir comendo pipoca? Tento segurar uma risada baixa que começa a borbulhar no fundo do meu peito enquanto deixo minha cabeça pender para trás, sustentando o olhar dele, ao mesmo tempo em que dou um passo atrás, colocando distância entre nós.
Algo atravessa o rosto dele, uma mistura de alívio, frustração e desapontamento. Que previsível, huh? A glória dos pecadores e a condenação dos santos. Agir pelo que se queria sem necessariamente ser apologético. O que era mais uma condenação para alguém já enterrado até o pescoço? Como diria Oscar Wilde: não havia outra maneira de se libertar de uma tentação a não ser se entregar a ela — ou algo assim. Olha, eu não sou uma professora de literatura, sou uma caçadora. Não pressione o artista.
— Você disse que tinha um trabalho para mim. Aqui estou. — Dou mais um passo para trás, então, dou de ombros, singelamente. Desvio meu olhar de Mark, ainda congelado no lugar e parecendo decidir o que diabos fazer consigo mesmo, e encaro a entrada da igreja. Estreito meus olhos, calculando mentalmente o que poderia tê-lo assustado ao ponto de me convocar no meio da noite para aquela maldita igreja.
Chame-me do que for, mas duvidava muito que ele tivesse apenas sentido saudades de mim. Mark solta um pigarro, tentando clarear a própria garganta, como buscasse encontrar sua própria voz — oh, ho, ho, eu amo isso —, e, quando o faz, retorna à sua postura séria e distante de sempre.
— Você já matou uma Banshee antes, não foi? — Mark diz com um tom de voz firme e direto, sem perder tempo com nada que não fosse o foco principal para ter me ligado no meio da noite. Tento não revirar os olhos, mas não consigo evitar. Mark passa por mim com passos firmes, mantendo o olhar fixo à frente, não em mim, e, sufocando uma risada seca em minha garganta, eu o sigo calmamente.
— Matar é uma palavra muito forte — faço uma careta, tentando puxar em minha memória meu último confronto com uma Banshee. Retiro do bolso de meu casaco de trincheira um maço de cigarro e prendo um entre os meus dentes, franzindo o cenho enquanto passo pelo portal da igreja, atrás de Mark. Apalpo meus bolsos em busca do maldito isqueiro, sem ter ideia de onde havia deixado, se no Hellgate de Vander ou no galpão de Darcelle. Seja onde quer que eu tenha perdido esta merda novamente, apenas dou de ombros comigo mesma e me restrinjo a me aproximar de uma das velas acesas para acender o cigarro.
Mark me lança um olhar, e eu apenas dou de ombros. Problemas modernos, soluções modernas.
A Basílica de Santa Maria da Trastevere é um espaço monumental, uma espécie de obra de arte compelida em um espaço vagaroso e elegante, uma sobrevivente do tempo, exalando sua áurea original medieval. Pilares de mármore brancos greco-romanos, com detalhes reluzindo em dourado, como se fossem feitos de ouro — se fossem, o quão pesado seria para pegá-los... hipoteticamente falando. Esculturas de gesso de santos, extremamente detalhadas, espalham-se pelo espaço cobertas por penumbras e sombras vindas dos vitrais com a história da Paixão de Cristo. As cores espiralam ao redor da nave da igreja, iluminadas pelo brilho tênue da lua, enquanto os sapatos de Mark ecoam no piso de mármore com padrões geométricos formando flores ou o que eu achava que poderia ser flores, mas poderiam ser apenas um padrão geométrico para algum brasão.
Trago o cigarro longamente, sentindo o alívio imediato e uma estranha sensação de estar desperta enquanto a nicotina entra em meu copo. Ah, alívio imediato de uma viciada, olha que maravilha — papai estaria orgulhoso de mim! Seja lá quem diabos ele tenha sido. Mal hábito, é claro, provavelmente irá me matar eventualmente, mas bem, não era como se eu me importasse muito com isso. Quero dizer, eu mal queria viver essa semana, imagine pela eternidade. Além disso, não era como se eu estivesse comprometendo mais alguém... tecnicamente. Livre arbítrio, certo? Ah, caralho, eu tenho que parar com as desculpas algum dia.
Descemos um longo lance de escadas em espiral, rumo ao que deveria ser o porão da igreja medieval — imagina as atrocidades que eram feitas aqui no passado? —, seguindo Mark como uma boa cadela sem perspectiva ou escolha. Chegamos a duas portas duplas familiares, de carvalho antigo. Poderia ser um espaço comum da igreja, como a sacristia ou qualquer outra portinhola que levaria à confissão ou sei lá mais o que padres e católicos fazem em igrejas. Mas as runas cravadas na porta dupla, o desenho antigo e arcaico evidenciavam outra coisa. Pertencia a pessoas como eu. Caçadores. Solto um suspiro pesado, deixando minha cabeça pender para trás.
Olha, vou ser honesta com você, eu não faço ideia de como funciona esse lance de Caçador. Vander diz que todas as criaturas que existem vêm de um mesmo monstro, um sangue em comum que foi dispersado há muito, muito tempo em diferentes raças, após algum tipo de metamorfose. Darcelle diz que é como uma doença; a licantropia e o vampirismo são doenças genéticas que se espalham entre humanos como consequência de criaturas maiores, velhos deuses, que não souberam lidar com seus próprios sangues infectados e acabaram espalharam isso para os humanos. Eu acredito que é tudo besteira, algum tipo de evolução predatória. Seja qual for a verdade — que, honestamente, eu não tenho a mínima vontade de saber —, chegamos onde estamos: caçadores. Nem seres sobrenaturais, nem humanos. Vander costuma dizer que estamos no Limbo. Nem vivos, nem mortos. Nossas marcas nos impede de morrer, mas também não nos transformam em humanos: apenas espelham as outras criaturas. Alguns espelham vampiros, mas sem a necessidade de beber sangue e viver para sempre. Outros espelham os lobisomens, mas sem a lua cheia e a fraqueza à prata. Alguns diriam que era uma benção, talvez o melhor entre dos dois mundos. Mas, para ser honesta, parecia-se mais com uma maldição.
Porque, junto com a "nova vida" e as marcas pelo corpo, vinham os pesadelos.
— Espera aí, bonitão, segura essa mão por um segundo — digo, interrompendo-o assim que o vejo estender o pulso em direção ao batedor de porta no formato de um leão. Puta merda. A criatividade que parecia ter sido usada nas paredes definitivamente deixou a desejar nos adornos da porta. Leões? Sério mesmo? Que coisa mais brega. Mark estreita os olhos, desconfiado, e eu solto um riso nasalado, soprando a fumaça do cigarro na direção dele enquanto o retirava de minha boca, prendendo-o entre meu indicador e dedo médio. É, ele tá certo de desconfiar, foi inteligente, tenho que dar essa para ele. — O pagamento. Você sabe como funciona.
Mark nega com a cabeça, exasperado.
— Isso é uma igreja, .
Eu falho miseravelmente em entender como isso poderia ter qualquer conexão comigo.
— Muitas pessoas teriam ao menos a decência de se sentirem envergonhadas por serem tão gananciosas quanto você é, — Mark adverte. Abro um sorriso preguiçoso e o encaro com uma ponta de tédio. Deixo meu corpo escorar contra a porta, apoiando o braço na madeira enquanto faço uma arminha com a mão apenas para provocá-lo. Depois, desvio meu olhar para as unhas, analisando-as com desinteresse. Era ridículo que o esmalte roxo cintilante, que eu havia comprado recentemente, já estivesse descascando. Eu havia feito as unhas tipo... uma semana atrás!
— Não tenho culpa se você acredita que eu possa ser alguém decente — dou de ombros, gesticulando com desinteresse, antes de apagar a ponta do cigarro na porta. — Eu literalmente já deixei claro que não sou. — Endireito-me, jogando o cigarro no chão com a mesma indiferença, e ajeito o casaco de trincheira enquanto sustento o olhar incrédulo e quase resignado de Mark diante da minha resposta. — Vai dobrar o pagamento. Odeio ter que lidar com Banshees — Pauso por um breve momento, abrindo a porta sem muita cerimônia. Deparo-me com a escuridão considerável do porão. O ar gélido percorre meu rosto, afastando algumas mechas rebeldes das têmporas e pescoço. O cheiro putrefato é familiar, e faço uma careta. Merda. — Mais uma coisa. Vou precisar da batina.
Não. Eu não precisava da batina. Porque diabos eu precisaria da batina dele? Mas você pode apostar que eu não iria perder a chance de vê-lo sem camisa. Chame-me do que quiser, mas se hele me dava oportunidades, então por que não se arriscar? É adorável ver o quão sério Mark leva meu pedido, mesmo que seu cenho tenha se franzido com confusão.
O cheiro é pungente e sufocante. A brisa gélida que percorre as pedras das escadas e as paredes antigas mistura-se com o calor dos gases em decomposição que a criatura traz consigo. Há uma umidade irritante que se adere à minha pele, misturando-se com o suor, e eu tenho que me controlar para não praguejar. Detesto essa sensação. Uma hipersensibilidade que me faz querer ou rasgar minha pele para me livrar disso, ou apenas me jogar no balde de água gelada mais próximo possível. Pior do que o cheiro, era o mormaço. A chama da vela que carrego na mão esquerda treme, instável, enquanto oferece um brilho amarelado e fugaz para as paredes de pedra que me cercam. Mais estátuas de gesso se espalham pelo lugar, no formato de anjos, parecendo mais com corpos petrificados, do que uma escultura verdadeira. Eles seguram espadas pesadas e antigas, de metal reluzente, fincadas na pedra da base de sua estrutura. Tenho vontade de revirar os olhos, mas sou impedida de reagir ou sequer analisar a necessidade de ter aquelas estátuas nas catacumbas da igreja antiga. Aperto os lábios em uma fina linha rígida quando os fungados suaves atinge meus ouvidos.
A chama da vela treme outra vez, quase desaparecendo enquanto eu prendo minha respiração. O fungado vem da minha esquerda, e sei o que vou encontrar quando me virar, mas a parte de mim que ainda se lembra dos instintos de autopreservação humanos é mais forte. Por um segundo, encaro apenas o chão de pedras. Meus dedos se apertam mais no castiçal que Zhao havia me emprestado para entrar naquele maldito lugar, e por um segundo, observo as pedras limpas, com marcas de sangue seco. Tinham o formato de pegadas, o que, por si só era estranho. Parecia que a criatura havia entrado ali por vontade própria, mas por que o faria?
Markus Zhao havia mentido para mim em algum momento e eu não havia percebido?
Não... ele não faria esse tipo de coisa. Quer dizer, tudo bem, tudo bem, eu entendo, eu sou uma merda de pessoa insuportável e, pior, eu me orgulho muito disso. Sou doente, propensa a incentivar brigas, mesmo quando estou errada, só para conseguir uma reação de outra pessoa — ou vê-la se perder nas palavras, se confundir e se perder no personagem. Eu não tenho exatamente uma ideia de futuro, e meu pensamento de caridade é comprar todos os cigarros de uma lojinha para evitar que mais pais comprassem cigarros. Mas havia um código entre nós. Mentiras poderiam ser sustentadas e aceitas, desde que a lealdade não fosse questionada. Parte do meu trabalho era garantir que nenhum filho da puta estivesse tentando me passar a perna para conter algum tipo de criatura a seu benefício próprio — não que isso não tenha acontecido antes, para ser honesta. Mas Zhao era uma pessoa honrada, ele tinha princípios e, por mais que me enoje alguns dogmas pessoais que ele nunca questionaria, não importava o quão forte fosse a tentação. Ele não poderia ter me atraído para uma armadilha, poderia?... não, ele não seria capaz disso, seria?...
Engoli em seco, tensionando meus ombros, enquanto finalmente tomava coragem para me virar na direção de onde o som estava partindo. Eu odeio o escuro, eu odeio muito o escuro, caralho eu vou muito morrer no escuro...
Deparo-me com uma garota. Talvez não mais que 15 anos, talvez menos. É pequena, e tem uma aparência frágil de certa forma: corpo magricela, ossos protuberantes expostos nos pulsos e ombros, uniforme manchado de sangue e rasgados. Seus cabelos são vermelhos como fogo, espalhando-se pelas costas de forma completamente desalinhada e embaraçada, longos, molhados, ressecados, sem vida, quebradiços, com algumas áreas calvas que revelavam o couro cabeludo deformado. Ela tem ferimentos: nas mãos, na cabeça, mas principalmente nas pernas e coxas. Os cabelos estão grudados em sua pele, o corpo brilha levemente com o que parece ser suor, mas não é. Tenho vontade de vomitar. É o corpo dela expelindo o necrochorume — putrefação. Dou um passo cauteloso em sua direção, trincando os dentes tentando não fazer barulho enquanto lentamente me aproximo dela.
Vermes escorrem pelos seus ferimentos e caem no chão, enquanto sua pele cinzenta exibe pontos arroxeados onde o sangue havia estagnado, e os ferimentos já apresentam uma mancha marrom grotesca. Esse era o problema de se estar naquele maldito Limbo que Vander costumava falar. Nem morto, nem vivo: aquilo sim era uma condenação, uma punição. Poder sentir tudo, enquanto o corpo lentamente apodrece e se desfaz, todo aquela... dor, todo o desespero, saber que há algo de errado dentro de si, e não ter ideia do que era. Aperto meus lábios com força.
A dor que ela deveria estar sentindo é sufocante. Irradia dela como ondas. Não são constantes, algumas são mais fracas do que outras, mas está ali, presente. E ela é só uma criança. Quero sair dali, quero dar as costas e não ter que lidar com aquilo. Porra, é meu trabalho, e estou sendo paga, sim, é claro, mas dane-se, não como se Mark fosse meu cliente principal e não tivesse outra pessoa disposta a oferecer uma quantia considerável pelos meus serviços. Além disso, Zhao poderia pedir para Vander ou até mesmo Darcelle resolver essa merda. Qualquer um. Alguém mais apropriado. Não. Sem chance. Estou fora. Sem chance mesmo!
Não percebo que olhos azuis grandes estão fixos no meu rosto até tentar dar minhas costas e congelar no meio da ação. Os olhos da garota se encontram com os meus. Prendo a respiração outra vez, não só por causa do cheiro, mas pelo o que encontro ali. Seus olhos são assustados e terrivelmente tristes. Porra, isso vai ser uma merda...
— Shh... não se preocupa, eu estou aqui para ajudar, está tudo bem — a mentira escapa de minha boca com naturalidade. Dou um passo hesitante na direção dela, colocando o candelabro com as velas tremeluzentes no chão, torcendo para que nenhum movimento brusco apague a vela ou perturbe a garota. Ergo as mãos em uma demonstração de paz, enquanto calmamente tento me aproximar dela. Coloco-me de cócoras lentamente, observando-a se encolher, arrastando-se para trás. — Olha, eu sei que as coisas estão confusas, e que você está assustada. Você não tem ideia do que aconteceu, certo? Também aconteceu comigo — tento enrolar a menina, para que sua atenção permaneça fixa em meu rosto e não nas minhas mãos. Dou mais um passo em direção a ela, fazendo uma careta ao ver os vermes se aglomerando ao redor de seu pé, roendo sua carne. Meus dedos se fecham ao redor da adaga de prata presa no meu sinto enquanto prossigo: — Eu estava sozinha, como você, em um galpão, quando acordei. Minha única memória era um cheiro, sândalo, e aquele cheiro esquisito de livros velhos, sabe? Mas não faço ideia de quem ou do que que cheirava assim. Nenhuma memória. Apenas meu nome, e isso aqui — giro a palma de minha mão para revelar as runas nórdicas cravadas na minha pele, formando uma linha reta que começavam da ponta de meu dedo médio, e chegavam ao final de meu pulso. Aperto meus lábios, tomando cuidado para não atrair sua atenção com o movimento ao puxar a adaga, girando-a entre os dedos para ter um aperto mais firme. — Então, Vander me encontrou, e me ajudou a me ajustar a esse novo mundo. Posso fazer isso por você, a gente se ajuda, pode ser? Eu prometo que fica mais fácil — Se eu não merecia a porra de um Oscar por essa atuação.
Dou mais um passo na direção dela.
— Confia em mim?
Ela hesita. Aperto com mais força o punha da adaga, tentando incentivá-la a pelo menos dar mais um passo em minha direção. Quero que isso aconteça rápido, de forma precisa, mas para que funcione, preciso que ela dê mais um passo, apenas um, para que esteja perto o suficiente para alcançá-la. Não era só fincar a adaga no peito dela; eu precisava cortar a garganta dela fundo o suficiente para neutralizar suas cordas vocais. Merda, merda, merda... O caralho dos infernos, eu me fodi tanto vindo aqui. Era só ter ignorado, mandado pra puta que pariu, sei lá! A garota hesita novamente, analisando minha mão assustada, e eu praguejo mentalmente. Só pega a porra da minha mão desgraça, só pega logo!
Observo-a, tentando manter-me o mais estável possível, estica sua mão em minha direção, os dedos finos necrosados. As unhas, estranhamente longas, obscurecidas e curvadas, têm aparência afiada — para caça. Trinco meus dentes com força, tentando manter minha mão estável, sem nenhum tremor, enquanto ela repousa a dela sobre a minha. É áspera, e terrivelmente gélida. Ergo meus olhos para encará-la, vendo uma ponta de esperança surgir nos olhos dela, e tenho vontade de vomitar. Porra...
Não... não me olha assim...
Tento não pensar muito, deixando o instinto substituir minha racionalidade. Agarro o pulso da garota com firmeza, meus dedos fincando e adentrando na carne necrosada, que teria me feito vomitar se minha atenção estivesse ali. Mas não está. Puxo-a com violência para frente, tentando ser o mais rápida que consigo, enquanto avanço com a adaga para cortar a garganta. Rápido, preciso, como sempre deveria ser. Mas não é o que acontece dessa vez. A lâmina de prata da adaga atinge uma parede invisível à frente dela, estraçalhando-se em pequenos pedaços, e meus olhos se arregalam. Puta merda. Puta merda!
A garota fica congelada, os olhos arregalados, apavorada, encarando a adaga quebrada em minha mão. Porra! Meus olhos se fixam no pingente pendurada em seu pescoço, com surpresa. Um selo de proteção? Para uma Banshee? Quem diabos poderia...
— Ah porra... — Não tenho tempo de dizer mais nada, nem mesmo para pensar, quando ela abre a boca. Um grito excruciante escapa de sua garganta, intenso, enlouquecedor, pura energia. Estoura meus tímpanos, a dor me cega. O empuxo do grito me arremessa para trás com violência.
A cabeça dela desaba nos meus pés com um baque molhado e nojento, enquanto seu corpo pende para o outro lado.
Deixo-me cair sentada com uma careta. Um ombro deslocado, três dedos quebrados, e meu pé esquerdo estava virado para o lado contrário. Prendo minha respiração, trincando os dentes com força, enquanto alcanço meu pé quebrado, soltando um grunhido com a dor que quase me faz perder a consciência. Puxo o pé de volta para o lugar com um crack sonoro, o som agudo atravessando minha mente. Balanço a cabeça, os ouvidos zunindo com os tímpanos se regenerando lentamente, enquanto minha própria pulsação parece abafá-los, como se estivesse submersa em água. O porão está destruído. Algumas estátuas estão espalhadas pelo chão, em pedaços, e lanço um breve olhar para a espada, ainda com a mão de um dos anjos de pedra. Me forço a me levantar, prendendo a espada nas costas. Cuspo o sangue acumulado em minha boca no chão, fazendo uma careta com o latejar do meu nariz, antes de endireitar os ombros.
Não sei o que é pior nessa merda de lugar: se são os ossos que quebrei e que se reconstituem de maneira errada — o que vai me levar pelo menos uma hora para consertar, quebrando-os de novo para que se curem certo — se é o desastre das estátuas destruídas e as runas danificadas, perdendo seu poder, ou se é o fato de que estou completamente encharcada com o icor da criatura — e, porra, essa merda fede pra caralho! Eu vou muito vomitar...
Meu corpo se dobra para frente com a onda de náusea que me atinge. Quase teria vomitado tudo o que comi aquele dia, se é que comi alguma coisa. No máximo, escorre um pouco de fluído estomacal e meu próprio sangue. Faço uma careta com o desconforto da contração de meu estômago, antes de cuspir novamente no chão, limpando a boca na parte de trás da batina de Zhao.
É, até que serviu para alguma coisa.
Descarto meu casaco de trincheira, retirando apenas os itens mais importantes — canivete suíço, meu frasco com vodca, chaves, carteira, o maço de cigarros, e olha só, a porra do meu isqueiro. Guardo-os nos bolsos de minha calça cargo, e então visto a batina de Mark. Qual é, o cara é literalmente um padre, aquilo é o uniforme dele, ele com certeza teria outro para usar. Inspiro fundo algumas vezes, caminhando em direção do amontoado de cinzas que a garota havia se transformado, tensa e com raiva. Me abaixo para pegar o selo de proteção, estreitando meus olhos. Agora, como isso havia ido parar no pescoço de uma Banshee, eu queria muito saber.
Enfio o selo de proteção nos bolsos e subo as escadas de volta, empurrando as portas duplas com toda a força que tenho. A dor nos dedos quebrados e curados de forma errada me atinge, mas sigo mancando para fora. Vejo Zhao pelo canto do olho, mas honestamente? Naquele momento, ele podia ir para o inferno. O que ele acha de mim não me importa. Respiro fundo, o ar puro quase queimando meus pulmões enquanto fecho os olhos por um segundo. Percebo o erro tardiamente, quando o faço — o rosto da garota, o olhar assustado, aquele medo... Me obrigo a abrir os olhos e não pensar naquilo.
Era meu trabalho. Tudo aquilo era só um trabalho, nada mais.
— Quer saber? — Aponto o indicador na direção de Markus, com raiva. Olha, eu tenho que dizer que pelo menos eu tenho um puta de um autocontrole do caralho, porque minha vontade de arrebentar a carinha bonitinha de Zhao é maior do que minha vontade de ser pacífica. AAh, quem estou enganando? A última coisa que eu sou é pacífica. Eu arrebentaria alguém só pelo prazer de fazê-lo. E no entanto, o máximo que eu faço é silenciá-lo com um gesto de minha mão. — Eu quero o triplo. E vou ficar com a batina.
Para minha surpresa, Mark solta um riso baixo, assentindo. Mas sua reação só aumenta meu incômodo. Brigue comigo. Porra, fale algo, seja depreciativo, diga-me o quão nojenta eu sou por ser quem sou. Grite. Faça alguma coisa, qualquer coisa! Mas não é isso que encontro no olhar de Mark. Eu encontro piedade. Eu odeio o que vejo. A maneira com que a expressão tensa dele se desfaz naquele olhar suave, preocupado, até mesmo... porra, até mesmo gentil. Como ele abre a boca, parecendo hesitar, tentando escolher as palavras corretas. Não. Não! Ignoro o que quer que ele queira falar, voltando a andar, sem olhar para trás.
Não. Eu não iria fazer aquilo. Eu não precisava daquilo. Não merecia...
— , espera, você tá bem? Espera, pelo menos diz como posso aju... — Fecho a porta da igreja com um baque alto e satisfatório. Bom, pelo menos agora eu teria silêncio.
Fantástico.
Suspiro pesado, quase como um grunhido, descendo as escadas e xingando de todos os nome que conheço. Talvez a sorte. Talvez a vida por si mesma. Sei lá, eu só queria encontrar alguém para culpar que não fosse eu mesma, embora minha consciência deixasse explícito que, no fim, era. Mea máxima culpa, diriam. Que perda de tempo. Passo as mãos pelos meus cabelos, as mechas agora grossas, oleosas e embaraçadas pelo icor da Banshee, tentando limpá-los, mas nem que eu quisesse, ninguém daria atenção a isso numa madrugada qualquer em Roma. Sempre tive facilidade em me misturar com as sombras, mesmo com o medo que elas me causam. Parei por um momento, escorando-me contra a parede de tijolos medieval da viela, e então suspiro pesadamente, recostando minha cabeça contra a parede. Fecho os olhos com força.
Quero desaparecer. Quero sumir da existência, sem que haja sequer um vestígio de minha passagem por aqui. Quero me tornar cinzas, se tivesse a certeza de que não haveria mais nada do outro lado. Paz. Supõe-se que isso seja o que chamam de paraíso. Que paraíso seria esse. E então, lá está. O sopro desconhecido de um rosto que nunca havia visto. Olhos vermelhos, intensos e vibrantes. A pele macia sob o toque, o cheiro forte de sândalo e papéis velhos, a maneira como o rosto dele se contorcia, com o medo. O mesmo medo espelhado no rosto daquela garota, daquela Banshee. O problema é que eu não fazia ideia de quem ele era. E, sendo honesta, não tinha o menor interesse de descobrir.
— Levou tempo o suficiente, huh? Eu já estava começando a achar que havia escolhido a pessoa errada para o trabalho. — Congelo no lugar, abrindo meus olhos por instinto e voltando-me em direção à voz aveludada que veio atrás de mim. Faço-o não por medo, mas por puro alerta. Estreito os olhos, procurando a origem da voz até encontrá-la: uma figura solitária, alguns passos atrás de mim. Ela está escorada contra a parede oposta, os braços cruzados e um sorriso divertido — mas frio — nos lábios.
É uma gótica deslumbrante. Cabelos negros e cheios como a noite, a pele impecável, sem a mínima imperfeição. Lábios cheios, olhos cinzentos. Ela usa um vestido longo, discreto, mas com duas fendas nas laterais de suas pernas. O corpete justo à cintura valoriza seus seios. Uma cruz pendente à frente do corpo, e um véu de renda preta que a faz parecer uma mulher alternativa, gótica. Em qualquer outro momento, talvez eu até considerasse me aproximar, tentar a sorte. Mas o sorriso dela me impede. Ele revela duas presas afiadas, pontiagudas. Minha mandíbula tensa com força. Minhas mãos, como reflexo, buscam a cintura, em busca de qualquer coisa que eu possa usar como arma.
— Não se preocupe querida, eu só queria chamar sua atenção. Foi por isso que usei a Banshee. Nada pessoal, sabe? Mas você é uma pessoa difícil de encontrar. Agora que finalmente a tenho, acho que seria de bom grado lembrar que estou aqui, amigavelmente — Ela explica calmamente, o sotaque suave escapando por sua voz, e eu não posso deixar de franzir as sobrancelhas. É familiar, ao mesmo tempo que não é, e isso me perturba. Que merda... — Eu quero apenas conversar, isto é, se me oferecer um pouco de seu tempo. Tenho uma oferta para você, e tenho certeza de que vai se interessar. — A vampira ergue uma sobrancelha, analisando-me com atenção. — Então, o que me diz?
Continua...
Nota da autora: pra que você precisa de um moreno sarcástico, quando pode ser uma você mesma? Eu si divirto muito. Esta fic é escrita de madrugada, quando estou sobrecarregada com estímulos externos e preciso de uma forma de me regular, portanto perdão antecipado por incoerências, erros gramaticais e algumas confusões, meu e-mail está sempre aberto para discussões e opiniões.
Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.