Finalizada em: 25/12/2019

Capítulo Único

Em uma rua pouco movimentada, uma caminhonete com vidros embaçados estacionava em uma das vagas vazias diante de uma lanchonete 24 horas.
De dentro saía uma garota com trajes de couro pesados, em tons opacos, batendo a porta do seu carro com muita força e atraindo a atenção de um grupo jovem de rapazes próximos, os quais apoiavam-se no capô empoeirado de outro carro. Entre eles, recebia destaque o único menino muito branco cujas roupas eram exageradas, provocando uma dimensão menor do seu tamanho real.
A garota, com ar gótico e expressão obscura, ignorava as insinuações patéticas feitas pelos garotos de tênis J's e boinas de poliéster sobre a ideia superficial que tinham de sua imagem.
Parando a uma curta distância do menino de pele alva — o qual mantinha-se em silêncio desde a sua chegada —, resolveu sustentar a mira curiosa que o garoto alimentava sobre si. Fitou seu rosto. Numa provocação muda, deu-se como vitoriosa quando, muito constrangido, o rapaz mirou de seus olhos em direção aos próprios pés.

Naquele momento, um punhado de adolescentes alvoroçava uma disputa clandestina de dança de rua, dentro de um galpão afastado das demais residências.
Fora combinado pelos concorrentes, semanas antes, o horário e o local da competição, na qual o grupo que causasse mais tumulto levaria o prêmio de duzentas pratas — ou assim propôs o grupo seleto de rapazes entre os espectadores.
Havia uma caixa de som portátil no chão, reproduzindo a música de algum cantor do hip-hop atual. O volume fazia as pequenas janelas de ventilação vibrarem.
De todos os jovens ali presentes, era o mais prejudicado.
A partir da terceira coreografia, os garotos da equipe adversária começaram a usar movimentos improvisados para insinuar gestos sexuais zombeteiros, como um recado silencioso de que ele não deveria estar ali. Percebendo isso, seus parceiros de dança tentaram acalmá-lo.
— Nem esquenta, mano! — Disse um deles, apoiando o cotovelo no ombro do mais novo — Não passa de uma brincadeira desses otários para te distrair. Foco no que é nosso!
Recebendo dois tapinhas de aviso na cabeça, concordou. Seu colega estava certo, tudo não passava de uma estratégia desrespeitosa para desconcentrá-lo do desafio. A fama de vitorioso do grupo adversário já era de muito tempo. A história era sempre igual, resultando em brigas violentas. Mas dessa vez seria diferente.
guiou sua equipe até o espaço limite, ficando face a face com o líder rival. Ao mesmo tempo, por detrás, seus colegas se alinhavam em duas asas, formando um triângulo. Num súbito impulso, avançou em passos rápidos e contínuos, deslizando o tênis pela calçada. Sua expressão raivosa complementava as ações corporais.
Confrontado, o representante do grupo oponente sinalizou para que seus parceiros de dança cessassem os passos, bloqueando passagem quando estes decidiram contra-atacar.
O garoto branco absorveu o episódio silenciosamente, sentindo o ego inflado e o peito em chamas — interromper a dança de outro grupo só era cogitado como a última das hipóteses, mas, oportunamente, a escolha havia se tornado essencial para o rapaz.
Logo em seguida, o grupo de amigos passou a urrar com pisadas densas no chão de concreto, de tal maneira que a música tivesse um choque simultâneo, adequado à energia premeditada pelo bando.
Sobre um muro alto de tijolos, a moça, tomada pelo instinto felino, apreciava em visão panorâmica e uma dedicação pressentida, o cenário repleto de moleques. Ela divertia-se com a implicância gratuita, mascarada pela dança.

Uma dupla de garotos lançou-se no ar para ocupar a dianteira.
Ainda distante, a gótica terminava de tomar o milkshake jogando, do topo do paredão, o copo plástico na rua já suja.
Outros dois rapazes seguravam em suas respectivas bermudas, deslizando da direita para a esquerda e cessando, na ponta dos pés, um giro de várias voltas. Era notório o desconforto no olhar dos adversários.
tomava a frente de novo. Dessa vez, dominando o freestyle em passos cruzados. Executava também pequenos saltos em um curto tempo, mesclando ao movimento de sapateado que resolvera arriscar com graciosa facilidade.
O semblante travesso estampado em sua cara não deu brecha para futuras gozações em reação ao ato que faria posteriormente. Numa façanha ardilosa, o garoto enxergou vantagem em soltar o quadril, em um excêntrico rebolado, refutando as provocações emitidas pelo grupo rival no passado.

O volume do rádio que permitia a saída de som da música — suspendida antecipadamente ao coincidir com o último gesto da dança —, sucumbiu a algazarra incrédula do público de meninos.
— CARALHO!!! — berrou um guri entusiasmado — ESSE BRANQUELO GASTOU GERAL!
— SIM, PORRA!!! Brabo demais, maluco azedou, né não?! — comentou um outro, cutucando o colega ao lado que viu graça no trocadilho.
Os rapazes não delimitavam elogios. Junto de declarações exageradas, e seus amigos conseguiam imaginar de maneira pretensiosa a vitória declarada do grupo. Por outro lado, de tão pesada, a indignação da equipe adversária era quase palpável.
— TÁ DECIDIDO! — um cara, com certa autoridade em meio à multidão, alegou.
Pedindo passagem aos colegas, estacionou onde os dois líderes estavam posicionados e se encaravam friamente.
— Vou passar a visão, e não quero saber de doidão rateando no meu ouvido, tá ligado?! — advertiu o responsável pelo evento, mirando no olhar de cada um que o encarasse de volta — Jaé! Se a voz do povo é a voz de Deus... — prosseguiu, forjando um suspense — a vitória de hoje vai para os irmãos do... "IMPLACÁVEIS"!!!
vibrou como a maioria.
Amargurado com a perda do dinheiro, o outro líder resolveu confrontar.
— Porra nenhuma! Esses zé ruela não chegaram nem perto do que o meu time chegou. Esse viadinho aqui, — apontou o dedo na cara de — não fez merda de caralho algum! Só ganhou porque é branco.
retrucando num deleite sarcasmo, segurou no próprio pinto:
— Mama aqui, ó!
— Tá me tirando, seu boiola?!
Antes que o moleque em estado de fúria pudesse avançar em sua direção, viu seu amigo segurá-lo a tempo. Em razão disso, levou um soco na têmpora em seu lugar. Um novo tumulto, portanto, violento, começou.
A chance de se divertir entre amigos havia se dissipado. Agora, cabia apenas o acerto de contas de ambas as partes.

A garota assistia o cenário mudar rapidamente com exclusividade. Ela já imaginava que aquilo não terminaria bem assim que começou. Estipulando apostas sobre quem sobreviveria mediante aquele combate animalesco, decidiu interferir antes que alguém terminasse baleado naquela brincadeira. Escalou a parede com firmeza até o chão, sentindo a poça de água que vinha do esgoto enlamear a sua bota. Os rapazes continuavam alheios a sua presença.
Impaciente com a alta proximidade dos resmungos e xingamentos que os garotos dispunham entre si, sacou do seu cinto acobreado um chicote.
Sem cautela rodeou bruscamente o objeto, que revidou emitindo um estalo agudo no ar. O som reverberou por todo o canto, atormentando a audição dos jovens que paralisaram imediatamente.
— Mas o que essa puta faz aqui? — Indagou o primeiro homem, agressivo.
Com calma, a moça retirou os óculos aviadores que cobria o duro olhar em seu rosto inexpressivo.
— Um machista, que surpresa! — Encenou com falsa mágoa, cobiçando o estresse do rapaz.
Ainda se mantendo arisca com outro possível movimento, a garota considerou dispensável. O restante dos meninos permanecia hipnotizado ao encarar, sem piedade, a vestimenta apertada que cobria completamente o corpo da moça obscura.
Diferente dos outros, identificou semelhanças no estilo "rockeiro-mecânico" da garota, atrasando seu olhar no espetáculo em frente. Viu a própria deslocar-se em sua direção, só parando de caminhar quando seu rosto estava rente ao dela.
Com uma das mãos livres, pôs a palma macia em um lado da face branquela do mais novo, e no outro, deixou que a ponta de sua língua molhada tocasse toda a lateral do rosto do rapaz — que sentiu um choque excitante percorrer o início da sua cervical, finalizando em sua lombar.
— Que gata! — Disparou uma voz abafada no fundão. A jovem se afastou, rindo perversa ao que posteriormente respondeu com um miado.

Uma incessante sirene começava um ruído descomunal pela rua deserta do bairro onde os adolescentes estavam reunidos. Transmitindo um aviso silencioso, o carro da polícia poderia estacionar a qualquer momento assim que avistasse a origem da baderna.
— Acho que alguém convidou a polícia para participar dessa trama mexicana de vocês... Opa! — Disse a garota — É melhor vazarem, se não quiserem responder por perturbação do sossego alheio.
Ela sorriu, desprezando os olhares acusadores dos homens ali presentes.
Sem que pudesse dizer mais, seguiu com o olhar pacífico o afobamento nos passos e murros imaturos dos guris, que de tão aflitos, pouco se preocuparam em poupar os vestígios daquela noite.
Apesar disso, se absteve. Curioso em observar cada ação da moça que, nesse instante, recolhia os duzentos dólares esquecidos no asfalto, anteriormente destinado ao seu grupo.
— Que foi?! — Ela questionou, incomodada, agitando os fios do cabelo. Sem respostas, a garota revirou os olhos insatisfeita. — Quer saber?! Toma.
Segurou nas grandes mãos do menino, lhe entregando um "presente", em seguida, escondendo o agrado em seus longos dedos.
— A gente se avista por aí! Você é bem... diferente. — Murmurou sensualmente em seu ouvido, rindo com segundas intenções ao evidenciar propositalmente a figura do rapaz.
Logo após de depositar um beijo suave na face de , a garota retrocedeu alguns passos até que sumisse radicalmente na escuridão do beco, saltando de muro em muro nos locais estratégicos, sem deixar rastros.
Quando deu por si, o jovem rapaz lembrou de olhar o que tinha em suas mãos. Pasmo com o atrevimento, constatou que havia míseros 10 dólares.


Fim.


Nota da autora: Sem nota.


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