Última atualização: 26/02/2023

Capítulo 1 - Fanfic

Eu estava viciada.
Tudo que eu conseguia pensar era , e mais . Eu passava o dia todo escutando a voz dele, os dedos dele deslizando pelas cordas da guitarra, do baixo, do violão... Esse homem era um verdadeiro gênio musical, ele fazia tudo sozinho. E esse talento dele me deixava em êxtase, eu queria mostrar para o mundo quem era , quem era .
Acabei engolindo aquele nó que incomodava a minha garganta toda vez que eu me apaixonava por mais uma pessoa inssível. Jurei para mim mesma que dessa vez era diferente, que não existia ninguém como , mas, toda vez, juro o mesmo com todas as paixonites que já passaram, então não valia a pena contar para ninguém de novo. Afinal, estar apaixonada de novo não era nenhuma surpresa.
É no mínimo estranho quando você ama uma pessoa famosa. Todo mundo te olha com pena e esses olhares só vão piorando quando isso acontece pelo menos umas 4 vezes por ano, eles evoluem até mesmo para escárnio. Não dava para esperar menos, não é? Eu tenho 25 anos, já passou da hora de crescer e parar de me apaixonar tanto assim, talvez até me apaixonar por uma pessoa de verdade como as pessoas da minha idade. Infelizmente, não consigo. Primeiro ponto: sou teimosa e vou até o fim pelo que gosto. Segundo: eu tenho um pequeno problema que me faz viver assim desde os meus dez anos, quando descobri que o mocinho da novela era mais interessante que os meus coleguinhas da escola. Desde aquele ano, eu venho me apaixonando por tantas pessoas que não consigo mais contar. Pelo o que me lembro, já passei pela fase dos personagens dos filmes da Disney, pelos personagens de novelas nacionais e até mesmo mexicanas, depois vieram os livros e descobri que tinha como me apaixonar por alguém que nunca vai existir.
Depois disso, foi só ladeira abaixo. Descobri as fanfics como uma adolescente normal da minha idade: McFly. Apaixonei-me profundamente por McFly. Nesse meio tempo, me apeguei à música, daí conheci algumas bandas, passei para a One Direction, Never Shout Never, algumas fanfics com bandas famosas de glam metal nos anos 80, me afundei tanto na minha falta de critério que acabei chegando em uma fanfic de black metal.
O que é black metal? É um gênero musical que geralmente amedronta muitas pessoas pelas letras gritadas e histórico macabro. É, quando digo que me afundei nos últimos quase 10 anos, não estou mentindo, praticamente entrei na deep web do mundo das fanfics. Foi em uma dessas com ícones do black metal que o conheci. Um dos precursores do gênero, o pai do black e posteriormente do viking metal. .
Posso dizer que fanfic foi a melhor descoberta da minha vida — depois do , é claro. Fanfic é uma maneira de aliviar todo esse amor doloroso que sinto quando me apaixono, lendo uma fanfic me sinto finalmente livre para superar a fase amor doentio e passar para a fase amor normal. Nesses anos, descobri que é uma necessidade básica, se não fosse pelas fanfics, não sei se conseguiria respirar normalmente — tudo por causa dos meus episódios de paixonite aguda.
Era mais um dia desses em que tinha a impressão de não conseguir respirar direito. Levantei-me da cama após um sonho em que meu subconsciente me alertava da realidade que eu mais evitava: estava morto. Não era de ontem, do mês passado ou sequer do ano anterior. Estávamos em 2019, o coração dele parou em 2004.
Hoje, dois meses antes do aniversário de morte dele, eu sonho que era apenas uma criança no meio de um monte de adultos de roupas pretas, tentando passar para ver de onde vinha aquele som, sabia que era ele, só nunca consegui alcançá-lo, porque ele não existia mais. Interpretei como uma mensagem clara do meu subconsciente me alertando que morreu quando eu apenas tinha 10 anos.
Infelizmente, a vida não respeita seus dias de pesadelos, então eu fiz todo o meu ritual antes de ir para a faculdade com mais falta de vontade do que o normal. Às dez horas, dentro do ônibus vazio, eu o colocava para cantar em meus ouvidos mais uma vez e me absorvia em pensamentos.
não era como todos acreditavam que seria um ídolo do black metal. Não, essa fase dele já tinha passado e ele praticamente a abominou assim que os anos 80 passaram. Desde que ele tinha mudado todo o gênero da banda para a temática viking — devido à sua nacionalidade escandinava —, ele mudou totalmente sua essência. Antes dos anos 90, ele tinha cabelo descuidado e pintado, depois manteve na cor natural: . Usava muita roupa de couro, depois optou mais por peças em jeans e tecido. Até mesmo suas letras evoluíram de gritos desconexos para letras entendíveis. Eu o amo em todas as suas versões, mas é claro que o prefiro desde que ele passou por essa mudança. Ele se tornou mais humano, um sueco comum dos anos 90, se afastando do ideal de ídolo do black metal. Não havia como não se apaixonar.
A pobre apaixonada se chama . Sim, eu. Brasileira, natural de São Paulo capital, mas atualmente moro na Inglaterra há um pouco mais de um ano. Sou bolsista no curso de biologia pela Universidade de Birmingham. Tenho 25 anos e me considero uma garota simplória. Porém, as pessoas não me consideram tão simplória assim por ser filha de pais famosos no Brasil. Meus pais são atores da maior emissora de TV brasileira, vivem pulando de São Paulo para o Rio e outras cidades para gravações. Foi assim durante minha vida inteira, então, quando surgiu a oportunidade para me afastar do Brasil, eu agarrei com unhas e dentes.
Como estudante de biologia, eu faço trabalho voluntário toda terça à tarde no santuário de animais silvestres que também era conhecido por zoológico pela população local. Hoje, o que me deixava mais esperançosa é que, finalmente, eu poderia cuidar do novo elefante-da-savana que tinha chegado no final de semana. O voluntário intercambista — que era meu colega de trabalho e rival — fizera de tudo para ser o primeiro a fazer o relatório sobre o elefante só porque estava curioso para lidar com um elefante dessa idade, visto que os atuais elefantes que moravam por lá tinham, no máximo, 23 anos. Ser quieta tinha suas vantagens, afinal.
Segui para a aula e assim que sentei, nem abri o Instagram que nem todos os dias. Tinha chegado ao ponto de explodir, isso significava que estava na hora de começar a minha procura por fanfics. Eu tinha uma lista grandes de sites onde ler fanfics com famosos não tão conhecidos, por isso abri o primeiro e quando apareceu “nenhum resultado encontrado” não me decepcionei tanto. Seria mesmo um longo dia.

***


Na hora do almoço, eu estava no décimo quarto link e até agora, obviamente, sem sucesso.
Hoje eu tinha companhia dos meus únicos amigos, Shandi e Raj. Eles são trigêmeos, mas Gorty tinha escolhido trabalhar em uma oficina ao invés de entrar na faculdade como os irmãos, então meus únicos contatos com ele foram nas vezes que acompanhei Shandi e Raj até a casa de seus pais.
Shandi era a cópia perfeita da mãe, seu cabelo cacheado ruivo era extremante volumoso e bem cuidado, ela usava óculos redondo dourado, tinha muitas sardas pelo corpo todo e usava aparelho nos dentes. Já Raj era cinco centímetros mais baixo que a irmã, o pai dizia que ele parecia com o avô paterno que era descendente direto de tailandeses, seu cabelo era escuro e preto, seus olhos eram pequenos, as pessoas perguntavam se ele era chinês e algumas vezes ele respondia “sim”, porque não gostava de ter que explicar que nem todo asiático era automaticamente chinês. Já Gorty era idêntico a Shandi.
Apesar de ter contato com os dois quase todos os dias, sou mais próxima de Shandi. Nossos horários se batem mais e ela tem um desafio consigo mesma que é despertar meu lado amoroso. Ela não é a primeira a tentar, no entanto. Até semestre passado, eu me forçava a me relacionar sem compromisso com garotos, saía na balada, ia ao cinema, qualquer coisa que acabasse comigo em uma cama do dormitório masculino. Até que decidi largar essa vida por não me sentir bem. Desde então, Shandi se aproximou mais de mim e acha que preciso ser mais pé no chão. Largar minha fé de viver “uma história de amor louca” com algum ídolo meu para adotar minha fé no amor real. Em minha defesa, eu não quero viver o que ela chama de “uma história de amor louca”, só quero apenas ler uma fanfic que posso me imaginar no lugar da personagem principal e acalmar meu coração. Viver dava muito trabalho.
— Eu vi que você não prestou atenção na aula de hoje — Shandi disse enquanto me via esquentando minha comida no micro-ondas comunitário. Eu ainda mexia no meu celular, procurando furiosamente por sites o nome de . — Continua apaixonada pelo Noah Centineo? — disse em tom de repressão.
Eu levantei os olhos do celular e respondi afirmativamente com a cabeça. Como eu disse antes, não valia a pena contar para alguém. Duas semanas atrás, eu estava realmente apaixonada pelo Noah Centineo. Até que passou rápido, porque eu tive muito material, Noah era o ator do momento e isso foi mais fácil de saciar minha sede.
— Semana que vem tem prova dessa matéria, se você quiser, posso te ajudar a estudar amanhã — ela disse, tirando minha vasilha de dentro do micro-ondas e colocando a dela.
Sorri.
— Você é a melhor — respondi, dando um abraço de lado nela. Eu realmente não podia tirar nota baixa nessa prova, na última tinha sido na média e eu precisava manter notas altas porque era bolsista.
Esse último ano na Universidade foi totalmente diferente do que eu estava acostumada. Tinha estudado desde os 18 anos para conseguir uma bolsa para estudar ao redor do mundo e finalmente aconteceu nos meus 24 anos. Biologia foi minha segunda escolha, quando eu percebi que não conseguiria bolsa para estudar moda do século 20 em um curso de 18 meses na Itália. Shandi sabia das dificuldades em ser bolsista, por isso prestava atenção quando via que eu estava desperta só para me ensinar depois. É, ela era incrível. Shandi foi meu primeiro exemplo verdadeiro de amiga na vida. As outras amizades que tive foram superficiais e não duraram.
— Demoraram tanto que vou ter que ir, tenho uma aula agora — Raj disse quando nos sentamos à mesa. Ele bagunçou o cabelo da irmã e me deu um beijo no rosto. Saiu pelo corredor que conectava o refeitório com o prédio de história. Ao contrário de Shandi, que pegava as mesmas aulas que eu, porque estávamos no mesmo semestre e no mesmo curso, Raj estava no primeiro semestre de história, porque tinha visto que a biologia não era para ele.
— Então, tenho uma surpresa para você — ela disse enquanto colocava macarrão na boca. Levantei as sobrancelhas, esperando que ela desembuchasse. — Eu vi “Para Todos Os Garotos Que Já Amei” ontem. Você estava certa, não tem como não se apaixonar pelo Noah nesse filme, eu até me apaixonaria, se gostasse de homens.
Dei um sorrisinho para disfarçar que eu não estava mais nem aí para o Noah, pelo menos até o próximo filme com ele lançar na Netflix. Ela pareceu não perceber, porque continuou comendo despreocupadamente.
— Eu disse que Noah Centineo era o homem mais bonito atualmente — falei com ênfase na última palavra, me sentindo no dever de acrescentar para não trair o atual homem dos meus sonhos.
— Isso seria verdade se Tom Cruise ainda não estivesse entre nós, por enquanto a fama é dele — ela respondeu, pegando um pouco da mandioca caríssima da minha vasilha. Quis reprimi-la, mas fico com dó dos ingleses que não tiveram o prazer de comer mandioca por uma vida.
— Saudades da minha fase Tom Cruise, as fanfics de daddy e little girl eram bem legais — comentei, recebendo a cara de nojo dela. Shandi gostava de fanfics sobre Crepúsculo, apesar de estarmos em 2019 e não haver mais tantas assim. — Vai me dizer que nunca leu uma fanfic que o Edward era o daddy?
, já falaram que você é estranha hoje? — ela riu.
— Não, esse prazer é exclusivamente seu hoje — também ri, bebericando minha coca-cola.
Comemos em silêncio o resto de nossas refeições, Shandi assistia a vídeos de exploradores em casas abandonadas — o que era nossa atividade favorita para fazer juntas na hora do almoço, principalmente em um dia nublado como aquele. No entanto, recusei seu convite porque estava determinada a ter algum êxito com a minha pesquisa o mais rápido possível.
Site número 15, 16, 17, 18, 19... todos iam sendo riscados da minha lista.

***


Atravessei os portões do zoológico e fui direto para o vestiário colocar meu uniforme de voluntária. Deveria estar mais ansiosa para conhecer o novo morador, mas meus pensamentos agora se alternavam em preocupação com a nota na prova da semana que vem e em não conseguir estudar, porque estava ansiosa demais. Guardei minhas coisas no armário e fiquei um pouco mais animada em tentar me distrair com algo que agregasse no meu futuro. Então, fui até o isolamento do elefante cantarolando, a portinha indicava que o nome dele era Solveig. Lembrei das aulas de intensivo de sueco que estava fazendo duas vezes na semana nas últimas duas semanas, no livro tinha um senhor com esse nome e dizia que Solveig significava “caminho do sol”. O rosto cinza que apareceu de dentro do abrigo mostrava como combinava perfeitamente com esse nome.
— Você e eu vamos ser grandes amigos, porque eu adoro nomes suecos. — murmurei para ele, pegando todas as pastas que foram deixadas no chão com as informações. — Na verdade, eu só conheço um sueco, mas ele é a minha pessoa favorita. O que fazem nomes suecos serem os meus favoritos.
Ele chegou perto do portão que nos separava e me lançou um olhar curioso, como se estivesse entendendo o que eu estava dizendo e realmente interessado. Esse é um dos pontos que os animais sempre ganham. Eles são ótimos ouvintes e sempre parecem te achar o ser mais interessante do universo enquanto você está simplesmente tagarelando aleatoriedades. Eu sempre gostava de considerar aquilo como um convite para continuar verbalizando meus devaneios.
— Vamos ver o que temos aqui — analisei a ficha básica, vi que ele nasceu em uma unidade de conservação de espécies na Índia, que estavam trocando seu ambiente por conta de estresse e que pretendiam reproduzi-lo com uma fêmea local, para depois castrá-lo. A data de nascimento dele era outubro de 1984, ri comigo mesma e ele me encarava com aqueles olhinhos curiosos. — Outubro de 1984 foi quando saiu o primeiro álbum da banda do , seria engraçado se eu não tivesse tentando esquecer dele para o bem da minha ansiedade e vida acadêmica.
Solveig me deu as costas, me deixando com a minha história trágica e indo atrás de comida. Desejei ser ele naquele momento, seria bom esquecer tudo e só ir atrás de comida.
Comecei a trabalhar no relatório, resumindo todas as informações sobre o recém-chegado para só depois analisar o que já tinha no dossiê. Duas horas passaram sem que eu nem percebesse e quando virei a página vi que tinha acabado aquele documento, as folhas envelhecidas do próximo indicavam que seria uma leitura interessante. Virei a página novamente, iniciando, e percebi que eram relatos de pesquisadores e cuidadores que passaram pela vida de Solveig desde seu nascimento.
As duas primeiras páginas foram normais, mas depois alguns começaram a escrever que, na cultura popular, acreditava-se que quem captasse a atenção de Solveig, olhasse em seus olhos e mentalizasse algo, provavelmente veria seus sonhos realizarem. Havia muita gente contando que as visitas de Solveig sempre foram bastante disputadas, todo mundo queria pedir as mais diversas coisas a ele. Quando as pessoas retornavam um tempo depois com seus desejos realizados, sempre traziam algo em forma de agradecimento e afirmavam que o elefante era mesmo mágico.
Com todos os romances que li, eu não duvidei daquilo por nenhum segundo. Sempre via que as mocinhas duvidavam, faziam e não esperavam nada. Já eu, acreditava piamente em Solveig, até mais do que em mim mesma. Afinal de contas, ele tem a pureza dos animais e, por não ter a maldade humana, acredito que criaturas possam mesmo alcançar o nirvana ou algo assim.
Uma onda de felicidade me preencheu e de repente me senti muito grata por ser a primeira ali a ter contato direto com Solveig — a não ser pelos cuidadores que forneceram as necessidades básicas dele durante esses dias. Eu estava na presença de uma celebridade indiana ou melhor: de um animal associado a uma divindade.
Larguei os papeis e o meu notebook em cima do banco em que estava sentada e resolvi tentar a minha própria sorte também. Eu estava desesperada, afinal de contas. Bati no portão de aço e ele veio ao meu encontro com passos lentos, me analisando a cada passada. Nós não estávamos tão perto assim por causa da segurança do isolamento, mas eu consegui ver que sua atenção era minha.
— Bom, Solveig, as pessoas naqueles papeis dizem que você é mágico. — apontei para onde estava meu notebook. — Acho que nenhum desses cientistas que passaram por você levaram esses relatos de visitantes muito a sério. Porém, saiba que, enquanto pesquisadora e cientista, eu acredito e respeito muito você — sorri para ele, mostrando que poderia confiar em mim e olhei em seus olhos que estavam em mim. — Se não for muito incômodo, eu queria achar uma fanfic com aquele cara sueco que te falei. Eu gosto muito dele, ele já morreu e acho que esse é o único jeito de termos alguma chance — soltei uma risadinha. Eu era patética e aposto que Solveig também achava isso lá no fundo, só mantinha aquele olhar curioso para não me deixar sem graça. — Esse deve ter sido o pedido mais idiota que você já recebeu — comentei, baixando a cabeça, talvez quebrando o rito por não ver aquilo se realizando nos olhos dele. Eu percebi que era bobeira pedir isso quando estava tão atolada com outros problemas e sem dar a mínima, por isso senti vergonha de mim mesma.
Voltei ao relatório até dar 19h e não tive mais coragem de conversar com Solveig, até porque ele foi fazer outras coisas que elefantes normais (e não místicos) fazem. Guardei as pastas no meu armário, já que não tinha terminado o relatório, depois coloquei o notebook de volta em sua case para fazer o caminho longo de casa. Na volta do zoológico, para não pegar um trânsito de horas, eu sempre tinha que enfrentar duas linhas do metrô, um ônibus e a caminhada habitual de 10 minutos da parada até minha casa.
Aproveitei aquele tempo no transporte para jogar o nome de nos sites restantes de fanfic e ouvir o quarto álbum inteiro mais uma vez. Era um alívio ouvir a voz dele depois de um dia inteiro de abstinência, senti realmente que era um anjo cantando no meu ouvido — se anjos gritassem ou falassem que hoje é um belo dia para morrer, como na música atual que eu estava escutando, é claro. Vamos considerar que tinha seu jeito único de ser um anjo e eu de acreditar em anjos.
Quando cheguei em casa, eu preparei macarrão instantâneo e coloquei ração na vasilha do Lemmy — meu gato de estimação ingrato que achava que minha colega de apartamento era sua mãe. Ele ainda me pediu sachê, rodeando minhas pernas com seu rabo felpudo, mas Anya tinha escrito em um post-it rosa colado na geladeira que já tinha dado para ele. Depois de ver que eu tinha sacado, ele voltou a me ignorar e a se esconder no quarto da Anya.
Aquela era a hora da verdade, faltava só mais um site da lista. Abri meu computador para poder procurar melhor, digitei o site na barra de pesquisa e, quando abriu, coloquei o nome de e minha mão tremeu na hora de apertar enter. Não tive nem tempo para expectativas, cinco segundos depois a página carregou informando que nenhum resultado havia sido encontrado.
Droga.
Coloquei as mãos na cabeça, pronta para surtar. Senti meu rosto ficar vermelho a ponto de entrar em combustão e era um dos primeiros sinais que eu choraria a qualquer momento. Foram longos dez minutos tentando controlar minha respiração para não ter uma crise de ansiedade, meus olhos passearam pelo pequeno apartamento diversas vezes na tentativa de achar uma solução.
Depois de sentir esse surto inicial ir embora, decidi que não ia me contentar com aquilo. Coloquei a panela cheia de macarrão de lado, me ajeitei na cadeira e ajeitei também meu pijama de natal fora de época. que me aguardasse porque hoje mesmo eu estaria lendo uma cena hot com ele.
Sorri ao pensar nisso, mas senti também meus pelos eriçarem de excitação. Achar aquela fanfic era questão de vida ou morte agora.
Joguei no Google “ fanfic”, apareceram várias que mencionavam músicas de sua banda, mas nenhuma com o próprio. Me concentrei em olhar link por link, quando dei por mim já estava na página 23 de resultados — a última. Os links dessa página eram transcrições de entrevistas que eu tinha visto antes, mas o último era uma página diferente.
A página tinha um fundo preto e letras em vermelho. As letras em vermelho falavam sobre um mito de pessoas que já tinham morrido. Mais para baixo era possível ler que pessoas de décadas e séculos diferentes poderiam ter seu destino atrelados com essas pessoas, as almas gêmeas. Esse erro do destino nunca as permitia serem felizes ou se sentirem realizadas. Depois da história de Solveig, meu apetite com qualquer coisa mística estava a mil, então continuei lendo.

“Se você conheceu a pessoa amada apenas por fotos ou por livros de história e seu coração sofreu com um amor à primeira vista inexplicável, talvez você possa ser mais um atrapalhado pela maldição do tempo.
A lenda diz que é possível alcançar anos em que nem mesmo tinha nascido e continuará com a sua idade atual. Se decidir permanecer naquela data, você envelhecerá normalmente ao lado da pessoa que ama. Mas seu nascimento, sua infância e todas suas memórias serão algo pessoal que nunca terão acontecido com as outras pessoas envolvidas, elas só estarão presentes na sua realidade atual. Ou seja, não poderá haver duas de você.
Se decidir não viver na mesma época que a pessoa amada, abandonando-a, ela mesmo assim lembrará da sua presença e poderá sofrer pelo resto de seus dias com a maldição de amar um viajante do tempo. Há casos aqui reportados que elas enlouqueceram procurando sua alma gêmea e descobrindo que tinham acabado de nascer.
Por isso, é preciso ser cauteloso se deseja prosseguir.
Você deseja saber o segredo?
Prosseguir / Retornar”

Aquele era realmente um site nada convencional, para não dizer outra coisa. Eu não comprei em nada essa história, afinal, há muitas lendas de todos os tipos, de todas os países, religiões etc. Mas nenhuma delas apareciam quando você digitava o nome de alguém que existiu no Google, pensei.
Batuquei os dedos no notebook, a dúvida me consumindo: tentar ou não? Parecia uma história boa, afinal de contas. Bem Outlander. Poderia ser uma fanfic envolvendo Outlander, não? Não faria mal apertar em prosseguir. Não é como se eu pudesse amaldiçoar alguém ou a mim só de clicar em algo em um site.
É, eu não tinha nada a perder.
Apertei em prosseguir e agora era outra página preta, só com os dizeres em branco:

Para efetuar a viagem, digite o nome da pessoa que deseja encontrar, o ano e o local em que deseja estar.

Nome:
Ano:
Local da pessoa:”

Era estranho pensar em qual lugar a pessoa estaria em tal ano, visto que ela poderia se locomover rapidamente e que nem todo mundo saberia onde está a pessoa. Mas, aparentemente, essa era a única pergunta do formulário que não era obrigatória.
Lembrei que tinha uma certeza de onde poderia estar numa data. Era em 1990, quando ele saiu para fazer a promo do novo álbum pela Europa. Passava em seu documentário que eu havia visto um monte de vezes pelo YouTube. O bônus do lugar é que eu sabia o idioma e poderia me comunicar.

Nome:
Ano: 1990
Local da pessoa: Lisboa, Portugal.
Aperte para continuar

Capítulo 2 - Time Warp

— Olá? Estás bem? — escutei uma voz, no meio de muitas, perguntando.
Minha cabeça doía como se eu tivesse levado uma pedrada de uma pedra maior que minha cabeça. Tentei abrir os olhos, mas tinham tantos rostos no meu campo de visão que fechei de novo. A última coisa que eu lembrava era de estar sozinha, sentada na sala da minha casa, e Lemmy no quarto da Anya. Não fazia ideia de como todas essas pessoas tinham entrado ali ou o que estavam fazendo.
— Acho que ela está bem — outra voz comentou. Meus sentidos ficaram em alerta, eu não escutava alguém falando em português sem ser pela tela do computador há um tempo considerável. Por mais que aquele português parecesse bem diferente do que estava acostumada...
Abri os olhos e me levantei rapidamente, me arrependendo logo em seguida, quando minha cabeça piorou e quase bati a testa nos rostos daquelas pessoas que me assistiam.
A memória tinha me atingido com tudo e de uma vez só no segundo seguinte, como se, de repente, minha alma tivesse voltado para o corpo. Lembrei que eu realmente estava em casa e com aquele site estranho aberto, tudo ficou escuro quando apertei o botão. Olhei da esquerda para a direita, tive um sobressalto ao notar as pessoas com cabelos cheios de laquê e bastante fora de moda que me cercavam. Ok, ou eu era sonâmbula e tinha vindo parar no meio de algum desfile do curso de moda da minha faculdade ou, dando razão ao que o site prometeu entregar, eu estava deitada no chão aparentemente no meio de uma rua de Portugal — onde passou em 1990 na promoção do disco novo da época.
O que explicaria o motivo de essas pessoas estarem falando português europeu e indicaria que tinha dado certo.
Minhas mãos começaram a tremer e eu não sabia mais articular as palavras em português para falar com aquelas pessoas. Eles começaram a se aproximar demais de novo, minha cara deveria ser um misto de incredulidade e pavor, podia sentir claramente minha expressão.
— Calma, respire — um homem mais velho com um bigode gigante pediu. — Inspira. Expira. Inspira. Expira.
Obedeci, mas não consegui parar de encarar todas aquelas pessoas e suas roupas tão vintage que pareciam preservadas demais para terem vindas de brechó.
Também temos a opção de terem organizado uma pegadinha comigo de mau gosto, talvez Anya, por eu ter deixado a louça suja na noite anterior. Ela podia ser bem vingativa quando o assunto era limpeza. Só que tudo ali parecia genuíno para ter sido arquitetado pela minha colega de quarto, ela teria que gastar um dinheiro que não tinha para contratar tanta gente e investir uma boa grana nesse figurino. Acho que ela não teria dinheiro nem para o laquê que toda aquela gente estava utilizando, afinal, nós éramos universitárias.
O que me deixa com a outra opção que explicava melhor.
Uma risada nervosa ficou presa na minha garganta enquanto fazia o exercício de respiração. Não podia realmente ter dado certo, não é? As pessoas não apagavam em casa e acordavam vinte e nove anos antes. Eu não posso ser uma viajante no tempo rodeada por todas essas pessoas.
Recuperei um pouco do controle da minha respiração e das minhas funções, seguindo à risca o exercício respiratório do homem. Por isso, coloquei meu cabelo para trás da orelha, tentando processar as palavras novamente.
— Que dia é hoje? — perguntei em português.
— Terça-feira — uma adolescente me respondeu prontamente.
— ‘Tá, mas terça quando? — respondi, ansiosa, soando até um pouco grosseira.
— 5 de maio — outra pessoa respondeu, dessa vez uma mulher loira com um mullet igual das capas de discos que minha vó guardava cuidadosamente em sua casa.
— E o ano? — soei, dessa vez um pouco impaciente demais para aquela conversa. Eu não me dava bem com multidões, ainda mais quando estava tão confusa e todo mundo me olhava assustado demais.
— 1990 — a mulher disse em resposta, depois encarou o homem que me disse para respirar. — Acho que devemos levá-la para o hospital mais próximo.
Puta que pariu. Eu definitivamente tinha viajado no tempo. Eu era Claire Fraser de Outlander fora da ficção. Isso queria dizer que eu estava oficialmente às cegas procurando o meu Jamie.
Ah, droga.
.
Se eu estava em 1990, em Portugal, ele estava vivo. Estávamos respirando o mesmo ar.
Em um pulo fiquei de pé, surpreendendo todo mundo — inclusive a mim mesma.
— Não preciso ir para o hospital. Olhem só, estou ótima. Não se preocupem comigo — forcei um sorriso tentando comprovar, mas deve ter saído mais como uma careta. — Acabei de lembrar que só preciso encontrar uma pessoa. Alguém sabe se hoje tem uma sessão de autógrafos ou algo do tipo com um sueco famoso chamado ?
Todos continuaram me olhando com desconfiança sem falar nada, parecendo até mais perdidos do que eu. O homem do bigode e a mulher que me respondeu ainda me analisavam, provavelmente tomando suas próprias conclusões se deveriam ou não me levar para o hospital. Fiquei cerca de um minuto depois que eu estava encarando-os com esperança de receber alguma resposta. Quando pareceu que eu estava realmente às cegas, um garoto atrás de várias pessoas quebrou o silêncio, dizendo bem baixinho:
— Ele vai estar daqui a duas horas no Dino’s, duas ruas daqui.
Cortei as pessoas que estavam na frente dele e reconhecer sua camiseta da banda de foi um alívio. A sorte estava ao meu lado. Sorri verdadeiramente dessa vez, finalmente algum sinal de que ele estava ali. Eu não estava doida, não era um delírio. Eu estava nos anos 90!
— Você está indo para lá? — perguntei. O garoto parecia ter uns 17 anos. Ele estava todo vestido como se acabasse de sair de uma produção hollywoodiana, calça jeans de lavagem cinza toda furada e desgastada — não era como as que eu via para comprar na H&M que furavam de propósito e vendiam pelo triplo do preço, parecia genuinamente velha. A camiseta era igual a uma das que eu tinha comprado no eBay, só que a tinta preta estava desgastada por lavar com sabão em pó de má qualidade. Por cima, um colete branco com vários patches de bandas antigas dos anos 80. Ele tinha cabelos pretos e olhos chamativos.
— Estava matando tempo enquanto não é hora. Porém, se quiser, posso lhe mostrar o local — ele disse, soando simpático. Minha vontade era de abraçá-lo de tanta felicidade, mas me contentei em sorrir e balançar a cabeça afirmativamente várias vezes. Aos poucos, o aglomerado ia se dissipando atrás dele. A mulher e o homem do bigode já não eram mais vistos.
Eu veria . Não podia ser real. Eu só esperava não acordar naquele momento, me frustraria pelo resto da vida.
Era a primeira vez que eu estava tão perto de conhecer uma das minhas paixões platônicas. Nota mental: eu precisava dar pulinhos de felicidade assim que ficasse sozinha e agradecer qualquer coisa que tenha me trazido até aqui (ou me proporcionado esse sonho louco). As borboletas no meu estômago tinham finalmente aprendido a voar e se sentiam livres para dar cambalhotas, me deixando enjoada de tanta ansiedade.
Andei do lado do garoto, deixando a aglomeração de curiosos para trás, que logo se desfez com cada um seguindo seu destino. As ruas, os carros, o cheiro, era tudo conforme eu imaginei com base nos filmes. As pessoas andando nas calçadas, conversando com a pessoa ao lado e não digitando em seus telefones. Tudo parecia bonito demais para ser verdade, mas milimetricamente pensado para ser mentira.
Virei para o garoto.
— Desculpa, eu nem mesmo perguntei seu nome — notei.
— Ah, é Tiago — ele respondeu, dando um sorrisinho tímido. — E o seu?
— imitei seu sorriso. Ele devia estar me achando muito estranha por estarmos indo para o mesmo lugar e eu estar vestida de pijama natalino enquanto ele estava todo paramentado.
— Nome legal — comentou.
— Obrigada — sorri. — O seu também não é nada mau.
Ele sorriu, concordou com a cabeça e continuou andando ao meu lado em silêncio. Não me incomodei para considerar aquele silêncio desconfortável, a minha atenção estava até mesmo nas pedrinhas do chão enquanto minha mente processava que aquelas ali eram pedrinhas dos anos 90 nas ruas dos anos 90. Afinal, eu aparentemente estava nos anos 90. Dá para acreditar onde eu estava? Ainda estou em choque, sem acreditar totalmente.
Chegando ao lugar, tinha um cartaz enorme informando que aquele seria o dia que o estaria lá, às dezesseis horas. O frio na minha barriga se intensificou e eu engoli em seco. Ainda não tinha fila e nem ninguém esperando do lado de fora, então me sentei em um murinho que ficava perto do vidro da vitrine, onde tinha um monte de exemplares de vinis do disco novo que ele lançou esse ano. Cara, a Shandi não iria acreditar quando eu contasse para ela.
Se um dia eu voltasse a vê-la.
As palavras do site me vieram à mente: “Se decidir não viver na mesma época que a pessoa amada, abandonando-a, ela mesmo assim lembrará da sua presença e poderá sofrer pelo resto de seus dias (...)”.
Suspirei. Era doloroso pensar que nunca mais veria Shandi e Raj. Também era doloroso pensar que teria um leque de possibilidades na minha frente, como: eu poderia nunca encontrar com ou ele nem sequer ligar para mim. Quem dirá chegar a me amar. Imaginar isso também causava um pouquinho de dor. Porém, me deixava mais perto de retornar para casa.
Nada disso importava agora.
— Eu tenho que ir ali buscar alguns amigos antes de começar. Vejo-te mais tarde? — Tiago falou, apontando para trás.
— Tudo bem. Obrigada por me trazer até aqui — nei.
Ele murmurou algo que não entendi pelo forte sotaque e seguiu a rua, sumindo de vista.
Pensei logo que encontrar o caminho pra tinha sido incrivelmente fácil, nós mal andamos cinco minutos. Pensei também que eu poderia aproveitar o fato de estar em 1990, andar por aí para conhecer um pouco e depois retornar para casa, seria o mais seguro a se fazer. Eu poderia até mesmo entrar naquela loja de discos só para conhecê-lo e ir embora. Porém, não sabia como fazer para voltar para 2019, então estava presa ali.
Nunca visitei Lisboa, mas tinha primos que moravam por lá e vivam postando fotos em lugares que lembravam essas ruas, só que versão anos 2010. Era um lugar bonito, digno de várias fotos e de se apaixonar.
Um homem na casa de uns quarenta anos passou bem perto de mim, me assustando a ponto de quase cair do murinho em uma vala que tinha atrás. Ele me segurou pelo cotovelo, apesar de que não tinha tanto risco assim que eu virasse com tudo para trás, mas fiquei grata por diminuir as chances para nulas.
— Perdão — ele disse, assustado, em um inglês carregado de sotaque. Aquele rosto extremamente familiar que já vi milhares de vezes através de uma tela e que tinha traços semelhantes ao de quem vinha me tirando muito o sono. — ‘Tá tudo bem?
Era Börje , pai e produtor do . Ele era dono da produtora que tinha os direitos da banda e os dois trabalhavam juntos. Ninguém sabia que eles eram da mesma família até a morte de ser anunciada na mídia em 2004. Engoli a surpresa e tentei pensar que era um desconhecido, porque afinal de contas, até que era.
— Sim, eu só estava bem distraída. Foi culpa minha — respondi, meio ofegante pela surpresa. Por dentro, querendo morrer por não poder gritar, pular ou comemorar por estar de frente para um membro da família de . Além do mais, Börje era prova de que viajei no tempo, ele nem estava mais vivo em 2019. Estava falando com alguém que já morreu, tecnicamente. Então, sim, o site estava certo e era possível encontrar pessoas que já morreram. Afinal, muitas pessoas que passaram por mim, querendo ou não, tinham fortes chances de não estarem mais vivas quase trinta anos depois.
Levantei do murinho e ele soltou meu braço que ainda apertava suavemente, depois estudou profundamente a minha imagem. Ele já tinha alguns fios grisalhos em meio ao cabelo e seus olhos eram de uma profundidade admirável.
— Por acaso não está com frio? Está ventando muito aqui fora — ele disse, dando um sorrisinho. Olhei meu pijama de natal e minhas pantufas de rena. Patética era o mínimo. O que Tiago não tinha percebido, Börje percebeu. Então minhas bochechas imediatamente coraram e eu quis me jogar na vala por vontade própria. Eu estava mesmo nesses trajes na frente do pai do meu ídolo e no meio da rua? Um pijama fora de moda para a época! Merda, eu estava fora da moda até para onde vim, não era mais Natal, eu só amava aquela combinação por ser tão confortável.
Eu sequer tive tempo de sentir frio de tanta adrenalina desde que acordei aqui, mas, depois do seu comentário, meu corpo abaixou a temperatura em vários graus. Coloquei os braços em volta um do outro em um abraço e olhei para ele totalmente sem graça ao perceber que tinha razão.
Ele soltou uma risada baixa, percebendo tudo.
— Vem, vamos entrar comigo e tomar um café para esquentar — chamou. Ele abriu a porta da loja e me deu passagem. O aquecedor trabalhava, transformando o lugar em uma espécie de caverna aconchegante que fazia a gente relaxar só de pisar ali. Meus olhos passearam pelo local e era simplesmente uma loja só de vinis e fitas — nem os CDs existiam. Nunca entrei e nunca pensei entrar em um lugar desses. Estava além da fantasia. Tudo parecia incrivelmente retrô e me animei com a constatação.
Börje me olhava com curiosidade, contribuindo para o sentimento de forasteira me incomodar. Não era um olhar como recebi quando cheguei à Inglaterra ou viajei internacionalmente, era um que você dá a alguém que vem de um lugar mais longe que a América Latina.
Segui-o até as cortinas pesadas atrás do balcão, separando a loja de um espaço maior com sofás, almofadas em cima do tapete, uma mesinha com vários LPs de aparentemente todos os lançamentos da banda. O lugar não tinha janelas, era iluminado apenas por abajures de luzes amarelas. Tinha jornais e revistas em cima do tampo da mesinha.
— Pode ficar à vontade — ele disse atrás de mim, virei para sorrir em agradecimento. — Como você se chama?
— minha voz saiu esganiçada, pigarrei e repeti. — .
— Bom, , pode ficar à vontade e se sentar onde quiser, vou buscar o café — ele disse, já saindo do lugar. — Ah, sou Börje . Qualquer coisa, pode me gritar.
Assenti, ele passou pelas cortinas em seguida. Eu nem gostava de cafeína, mas tomaria qualquer coisa bebível que ele me desse. Estava extremamente grata por ter encontrado Börje primeiro do que o filho dele, seria a brecha perfeita para treinar minha confiança. Tinha a impressão de que ela seria bastante necessária.
Sentei-me no sofá e fui engolida por ele, era daqueles sofás grandes e fofos que dava a ideia de ser abraçada. Encarei a mesa repleta de revistas de metal e procurei algo de interessante. Puxei um jornal que estava espalhado ali e a primeira coisa que bati o olho foi a data: 5 de maio de 1990. A foto de um Mário Soares bem mais novo do que eu conhecia ilustrava a primeira página e dizia em português “os novos olhares do presidente”.
Eu nem sonhava em nascer em 1990, meus pais nem tinham se conhecido ainda.
É, sou mesmo uma viajante do tempo. Bem típica, aliás. Eu não tinha nada comigo, nem mesmo meu celular no bolso ou uma nota fiscal com a data de 2019 para comprovar que estava falando a verdade. Então não podia falar a verdade para ninguém enquanto não pudesse provar. Não tinha nem dinheiro, porque estava usando pijama. O que levava ao mais importante: não tinha para onde ir, estava completamente jogada à minha própria sorte e teria que me virar não sei como.
Suspirei e coloquei o jornal no lugar que estava. Peguei a cópia novinha do último disco lançado e que estava sendo promovido atualmente. Uau. Isso daria inveja em qualquer colecionador em 2019. Aquele era meu álbum favorito, acho que, além de ser genial, também se deve ao fato de estar em seu auge aos 24 anos. Ele estava absurdamente lindo, por isso me preocupava com minha reação. Como disse anteriormente, sou apaixonada por todas suas fases, mas ele tinha acabado de assumir sua essência, parado de usar tanto couro e... Bom, toda fã tem sua fase favorita.
não sabia da grandiosidade dessa nova fase da banda, o quanto ela foi importante a longo prazo para a carreira dele, foi aqui que ele finalmente criou e consolidou o viking metal. O cara criou sozinho um gênero musical novinho! Queria poder mostrar para ele tudo isso, descrever com detalhes o quanto ele ainda era respeitado de onde vim, depois de quase quinze anos da sua morte. Não sei se é algo que o de vinte e poucos anos entenderia. Provavelmente não. Provavelmente ninguém entenderia se me ouvisse falar que sou do século 21, então precisava guardar esse segredo enquanto estivesse lá.
Fiquei mais um tempo no meu surto de fã, admirando os vinis novinhos — que eu não tinha em casa, porque eram caríssimos, aliás —, até que Börje entrou de novo no ambiente, trazendo uma bandeja com bule, xícaras e um prato com biscoitos. Meu estômago roncou só de sentir o cheiro do café quentinho.
— Trouxe biscoitos, caso esteja com fome — informou, colocando tudo em cima da mesinha de centro. Sentei-me na ponta do sofá e agradeci. Não sei por que Börje estava sendo tão prestativo com uma desconhecida, mas era extremamente grata por ter atraído sua atenção sem querer e ter vindo parar aqui dentro. Facilitou minha vida.
Ele me entregou algumas roupas que estavam em seu ombro e botas que estavam na sua outra mão.
— Peguei essas roupas, caso você queira se trocar. Já vou logo avisando que são o dobro do seu tamanho, mas, pelo menos, vão te manter quente — ele sorriu com simpatia. — A bota talvez sirva melhor, porque comprei para minha filha.
— Não precisava, de verdade — comentei e me levantei com receio para procurar pelo banheiro. — Mas obrigada. — Ele sorriu. Entrei no ambiente e claramente o banheiro era habitado por homens, por causa da desorganização e do fedor. O metal é um gênero musical muito machista desde os primórdios, então não me admirava que a maior parte dos clientes da loja fosse formado por seres do sexo masculino.
Eu estava me sentindo mal por usar as botas da filha de Börje, mas ele me ofereceu de tão bom grado com aquele sorriso simpático, que fiquei sem graça de rejeitar. No fim, também seria melhor me trocar e tentar me encaixar melhor aqui. Já me sentia uma alienígena pelos olhares que recebi do pai de , vestir esse pijama quando começasse a chegar um monte de jovem headbanger* para me julgar pioraria essa sensação em cem por cento.
Quando saí do banheiro, meu cabelo estava molhado com a água da pia e totalmente para trás — não foi difícil imitar o penteado famoso daquela época, visto que meu cabelo estava bem acima dos ombros. Tive que enrolar as pernas da calça e apertar bem o cinto que ele tinha me dado para que não caísse, mesmo assim, o jeans escuro ficou apertado nos meus quadris por ser masculino, mas nada que o tornasse inutilizável. A camiseta de manga longa preta da banda de teve que ser erguida até meus cotovelos. Já a bota era realmente do meu tamanho. A imagem refletida no espelho do banheiro mostrava que claramente as roupas não eram minhas, mas eram mais apresentáveis do que meu pijama.
Procurei por Börje para agradecer e não o achei. Resolvi, então, voltar para o lugar dos sofás para comer e beber o que tinha levado para mim. Meu estômago roncava, mas me lembro de ter me sentido sem fome antes de deixar minha casa, então não sei quanto tempo perdi fazendo a viagem.
Puxei a cortina para entrar e tinha alguém no sofá onde eu estava. Quando aqueles olhos me encararam, não teve uma parte do meu corpo que não ficasse gelada e retesada.
— Ahm... Olá? — ele me analisou minuciosamente, fazendo minha pele arrepiar. — Espera, essas são as minhas roupas? — perguntou, parecendo meio ofendido e divertido ao mesmo tempo.
Era . estava ali. Aquela voz era dele, estava saindo de sua boca e ela estava se mexendo conforme as palavras saíam. Ele existia em carne e osso bem na minha frente.
Derrubei o pijama que carregava dobrado em meus braços.
Fale ou faça algo, .
— E-e-e-eu... — gaguejei tanto que até senti babar um pouco. Tampei a boca com a mão, me sentindo patética e incrédula. Poderia dizer que era como se eu estivesse vendo um fantasma, mas eu realmente estava vendo um.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— Ai-meu-Deus-vou-desmaiar — foi tudo que eu consegui dizer antes de sentir tudo escurecer pela segunda vez em menos de 24 horas.

***


Abri meus olhos pensando nesse sonho esquisito. Provavelmente, eu tinha ido dormir escutando música de novo e por isso sonhei com . Estava ficando bastante preocupada com a frequência que ele estava aparecendo nos meus sonhos ultimamente. Porém, sorri, me lembrando da sensação ao ver aqueles olhos pessoalmente. Até que foi um bom sonho. O teto que estava no meu campo de visão parecia mesmo com o da sala da minha casa, então levantei o tronco em uma mistura de alívio e confusão.
Cocei a cabeça. Deveria considerar voltar para a terapia, aquilo estava bem intenso até mesmo para mim, que era acostumada a ter essas paixonites. O próximo passo era não saber mais distinguir sonho da realidade, já que meus sonhos também estavam se tornando reais demais.
Levantei o olhar e pisquei várias vezes, tentando entender o que estava bem na minha frente. Não, não, não. Esfreguei os olhos para ver se assentava a visão ou acordava — o que acontecesse primeiro —, na outra ponta do sofá bebendo café e lendo o jornal parecia extremamente real. Se estava vendo pessoas mortas... então eu poderia estar morta também.
Soltei um grito. Não consegui pensar antes de soltá-lo, foi automático. Me arrependi logo em seguida.
Ele quase derrubou o conteúdo da xícara em si mesmo e finalmente retribuiu meu olhar com fúria, colocando o jornal e a porcelana em cima da mesinha. Virou o tronco para me encarar.
— Qual o seu problema, hein? — ele resmungou em um inglês com sotaque leve, depois checou a regata preta para ver se não tinha sido arruinada pelo café que quase derrubou.
— Eu morri? — perguntei, olhando fixamente seus olhos a ponto de me enxergar neles. Me arrastei a ponto de ficar próxima dele no sofá.
Ele definitivamente parecia real. Só não podia ser. não podia ser real, eu sabia que ele tinha morrido, Börje morreu, então eu provavelmente assinei meu atestado de morte ontem. Quer dizer, sei lá, qualquer coisa que faça sentido. Meu cérebro estava simplesmente desesperado à procura da razão. Ergui minha mão e toquei seu rosto. Senti sua postura endurecer e ele me lançar um olhar assustado de canto de olho.
— O quê? — ele perguntou de volta com incredulidade enquanto eu puxava a pele de sua bochecha entre meus dedos, conferindo se não era alguém usando uma máscara. — Ai!
Não era, mas não havia espaço para sentir vergonha agora.
— Eu ‘tô morta, ? É por isso que você veio até aqui, para me dar a notícia — respondi, arrancando bem rápido minha mão de sua bochecha e jogando o corpo para trás. — Mas eu não vou! Eu não vou a lugar algum!
Não posso acreditar que morri aos 25 anos de idade, sem aproveitar nada da vida. Deveria ter escutado Shandi e passado menos tempo fantasiando. Deveria ter passado mais tempo com meus pais... meus pais! Como eles vão reagir quando souberem que morri no meio da sala do meu apartamento depois de apertar um botão. Quer dizer, eu morri assim, não é?
— Ai, meu Deus. Como eu morri? — verbalizei.
— O quê? — ele repetiu com a mesma incredulidade agora misturado com um toque de ofensa. — Quem te deixou entrar aqui, garota? Você é completamente maluca!
— O seu... — travei na hora, cerrei os olhos. Pensando bem, se aquilo fosse verdade, ele não poderia saber que eu sabia que o Börje era o pai dele. Eu não era amiga íntima da família e nem tinha informações o suficiente para fingir ser. Então, precisava evitar que sabia demais sobre ele também, pelo bem do meu mais novo segredo. — O Börje.
— Você conhece o Börje? Foi ele quem te deu minhas roupas? — perguntou, desmontando um pouco a pose defensiva e a compreensão banhando gradativamente os olhos . Balancei a cabeça em concordância. — Estranho, ele não me falou nada — coçou o queixo. — Você está bem? Quer que eu chame, sei lá, uma ambulância? Não acho muito normal desmaiar e depois acordar achando que morreu.
A ameaça de ir parar no hospital pela segunda vez me fez despertar para o que estava acontecendo. Era melhor começar a agir como uma pessoa normal e não correr o risco de ir parar na ala psiquiátrica — já que tudo estava conspirando para que eles achassem que eu deveria ter fugido de uma.
— Não, acho que estou bem — respondi, segurando minha cabeça, tentando entender que não era delírio, que escrever o nome dele naquele site tinha realmente me trazido para essa realidade. Eu sabia que corria o risco de estar nos anos 90 mesmo enquanto Tiago me trazia para cá, ao ver Börje e olhando a data no jornal, mas vê-lo só tornou tudo mais fantasioso. estar morto vinha sendo um problema que me abraçava e andava comigo feito um velho conhecido nas últimas semanas, então não conseguia entender como ele poderia estar vivo. Na minha cabeça, estar nos anos 90 fazia mais sentido do que ele estar respirando. De repente, me senti incrivelmente cansada. — Só... Quanto tempo eu fiquei desacordada?
— Quase uma hora — ele olhou para o relógio na parede.
— Ah — murmurei, observando e admirando cada detalhe dele. Ele era lindo e imponente, muito mais que imaginei. Sua presença passava muita segurança e charme. Os olhos , os fios daquele cabelo que parecia muito sedoso, cada singelo ponto daquele homem à minha frente me inspirava. Eu não era boa em nada e nunca senti necessidade em ser, mas, de repente, por causa dele, queria pintar quadros, escrever músicas, livros e poesias, e olhá-lo para sempre. Ele me analisava de volta e parecia curioso, é claro que estava, toquei seu rosto antes de me apresentar. Eu sou tão destrambelhada. Tentando corrigir a situação, acrescentei: — Me chamo .
Ele concordou com a cabeça, continuando com a sua análise por mais alguns segundos.
— respondeu, estendendo a mão na minha direção em cumprimento. Peguei sua mão e parecia que tinha uma corrente elétrica ali nas nossas peles, como se estivéssemos começando a fazer história com apenas aquele toque. Céus, era difícil ser fanfiqueira e apaixonada.
Ele soltou minha mão, voltou a pegar a xícara e o jornal. A minha mão ficou ali, pendendo no ar, e senti minha boca escancarada fazendo par, formando uma expressão boba.
Pela normalidade que voltou a reagir e prevalecer no ambiente, ele estava itando mais minha presença e perdoando minha reação exagerada desde que mencionei o nome de Börje. Isso se devia ao fato de e Börje, além da relação de pai e filho e do trabalho, também serem melhores amigos, até onde eu sabia.
Eu também precisava passar naturalidade e confiança, não podia ficar ali encarando-o com pupilas em formato de corações e correr o risco de estragar tudo. Se eu estava ali, precisava começar a dançar conforme a música. Peguei outra xícara de café na bandeja que o Börje tinha colocado ali, servi um pouco de café e um pouco de leite para não atacar tanto a ansiedade, coloquei o açúcar e bebi, tentando não virar a cabeça para encarar . Eu já nem sentia mais fome, mas comi um biscoito nervosamente pela situação.
Estava bebendo café com o . A minha paixonite mais improvável de encontrar. Ele era o único da minha gigante lista que havia falecido. E, por incrível que pareça, aparentemente o único com quem troquei algumas palavras, por causa de uma viagem no tempo que aparentemente concordei em fazer. Que. Coisa. Doida.
Segundo a “maldição” da viagem, se eu estava ali era porque tinha chances de ser minha alma gêmea, certo? Bem, foi o que entendi. Meu coração lerou só de pensar nessa possibilidade. Se ele fosse mesmo, acho que tudo faria sentido agora, me apaixonar por todas aquelas pessoas até chegar nele... até chegar naquela página da internet, naquele dia. Agora ficava a dúvida: seria obra do destino ou do meu pedido para Solveig?
Börje entrou pela cortina, interrompendo meus devaneios, me lançou um sorriso e depois se virou para o próprio filho. Vendo os dois no mesmo ambiente, era possível notar que havia muitas semelhanças físicas, então eles deveriam se esforçar muito para esconder que eram pai e filho. Na verdade, inteiro sempre foi um mistério para todo mundo, acho que ele se divertia com isso e acabava nem sendo um esforço tão grande. É por isso que ele se apresentou pelo stage name e não por , ele gostava do personagem que havia criado, podia sentir pelo modo como falou.
— Ainda lendo isso e não entendendo uma palavra? — Börje perguntou para ele, que desviou os olhos do jornal para encará-lo.
— Tenho a esperança de que comece a fazer sentido uma hora — respondeu, se referindo ao jornal em português que eu estava segurando momentos antes. — Quem é a garota? — falou em sueco, provavelmente para eu não entender, mas teve o efeito contrário. Já sei um bocado de sueco por causa do intensivo que fiz na faculdade e ele que foi minha inspiração para fazer aquelas aulas.
Börje sorriu de lado e se sentou no sofá do outro lado da mesinha. Notei que eles tinham basicamente o mesmo sorriso, apesar de lábios diferentes. Os lábios de Börje eram mais finos e os de um pouquinho mais cheios.
— Acho que a sabe português, quem sabe ela não possa te ajudar com isso? — sondou a pergunta dele, mas em inglês, para que eu entendesse.
Engoli em seco quando os dois me olharam. Estava visivelmente me sentindo pressionada por estar sentada com e Börje . Me ajeitei no sofá, tomando coragem para responder o questionamento.
— Sim, eu sei — falei. estendeu o jornal, a página 5 falava sobre um jogador de futebol, em português de Portugal “futebolista”. Mas o que prendeu mesmo minha atenção foi a palavra “gozar” em um sentido diferente que usávamos no Brasil e, como eu tinha zero maturidade, eu soltei uma risada alta e impensada. Tratei logo de corrigi-la, pigarreando e querendo me fuzilar. Você prometeu que ia agir normalmente. — Um tal de Albano Narciso Pereira morreu dia 5 de março e aqui é uma coluna relembrando alguns momentos dele.
Eles me olhavam com divertimento mal disfarçado e questionando o motivo de ter rido da morte de uma pessoa.
— É que no Brasil “gozar” é usado assim com outro sentido — expliquei, devolvendo o jornal para .
— Você é do Brasil? — Börje perguntou. Balancei a cabeça afirmativamente. — E o que faz tão longe de casa?
Foi uma pergunta bem repentina, acho que parecia que ele estava puxando assunto e tentando me conhecer, mas eu não tinha como responder. Não mesmo. Não poderia contar que fazia faculdade na Inglaterra, porque isso ficou em 2019, no momento não tinha nem lugar para passar a noite. Nem um passaporte eu tinha.
Pensa, , pensa.
— Eu fugi de casa. — Fui para o lado mais óbvio. — E fiz check-in em um hotel que se revelou ser uma farsa, por isso acabei na rua de pijamas. — Isso deveria servir também para encobrir o passaporte e a falta de mala.
Vi, através da visão periférica, virar a cabeça feito um cachorrinho curioso. Börje se mantinha impassível, como se eu estivesse dizendo algo tão inocente como brincar de esconde-esconde com meus pais.
— Por quê? — foi quem perguntou, se referindo à primeira parte da minha fala.
Droga, por que eu poderia ter fugido de casa? Por que eu percorri milhares de quilômetros para fugir? Eu simplesmente não sabia. Pensei por alguns segundos que podem ter virado minutos. Até que uma ideia — que parecia genial, porque isso me garantiria algum lugar para dormir — passou pela minha cabeça. Assim que eu abri a boca e as palavras saíram, me arrependi pela segunda vez no dia.
— Estou grávida — anunciei, deixando o ar mais pesado.
Eu realmente estava lendo fanfic demais.
Um silêncio se instaurou por alguns segundos entre nós três, o café esfriava dentro da minha xícara em cima da mesinha. Börje foi o primeiro a reagir com seu sorriso tão formidável.
— Que incrível! — Börje disse, agora como se fosse a melhor coisa do mundo. Bom, deveria ser para quem queria e não para alguém que estava mentindo. — Você veio morar com o pai do bebê ou algo do tipo?
Pigarreei. Não tinha como voltar atrás na mentira, então...
— Hm... Sim, é dele — apontei para , minhas pernas tremiam e eu tentei disfarçar, tampando com os braços.
me olhou, sério, e depois olhou para o pai com surpresa. Börje tinha transformado completamente suas feições, o sorriso desmanchou e o cenho franziu. Ele retribuiu o olhar do filho com olhos acusatórios.
Essa era a cena mais vergonhosa da minha existência. Mais vergonhosa do que minha primeira apresentação de teatro, da primeira vez que me fotografaram de biquíni na praia por causa dos meus pais ou de segundos atrás que apareci no meio da rua com meu pijama natalino.
— Ele não se lembra de mim, m-mas — respirei fundo, tentando controlar minha respiração para continuar com a mentira. Eu não costumava ser boa mentirosa, então é por isso essa estava custando sair. Minha mente estava em completo pane. — Há dois meses a gente se conheceu e bom... Até entendo você não lembrar de mim, porque estava visivelmente bêbado.
me olhava fixo a ponto de não piscar. É impossível dizer o que ele pensava, porque ele não demonstrava emoção alguma. Eu tive medo de olhar de novo nos olhos dele. Eram olhos bastante incisivos, então era questão de segundo para vacilar na minha mentira tão frágil.
— Isso é sério? — Börje questionou. Engoli em seco e assenti tremulamente em resposta.
— Realmente, eu não me lembro — ele finalmente respondeu, parecendo estar em um transe.
Ao que tudo indicava, funcionou. Eu esperava. Precisava me aproximar dele de alguma forma, não saberia se conseguiria pensar em outra forma antes que eles me botassem na rua.
— Nossa — Börje murmurou na minha frente. — Bem que desconfiei que tinha algo errado quando te vi lá na frente antes de todo mundo chegar com aqueles trajes, mas não imaginei que seria algo tão... grandioso — ele arqueou as duas sobrancelhas enquanto fitava o chão. Alguns segundos depois, se levantou. — É melhor deixar vocês conversarem.
Ele saiu, fechando as cortinas pesadas para que pudéssemos ficar ainda mais sozinhos. Se fosse possível tremer mais do que eu estava tremendo sem ter um piripaque, com certeza meu corpo trataria de providenciar. Minha respiração estava começando a ficar rápida, mas eu tentei me concentrar em não a deixar ser audível. Não sabia nem como prosseguir com essa mentira, por que fui inventar logo isso? Que vontade de me estapear. Grávida do ídolo? Sério mesmo que isso era o melhor que você poderia inventar, ?
Ele tinha ndido um cigarro e continuava tomando seu café, olhando para o nada. O retrato perfeito da calma. Nós dois éramos os opostos no momento, eu estava tendo um ataque e ele exercitava o seu Buda interior.
Ele não disse uma palavra enquanto eu encarava o ponteiro marcar cada segundo daqueles 21 minutos e 32 segundos que restavam para dar quatro horas. Nada. Ele só bebeu mais café e fumou outro cigarro enquanto olhava para o nada.
Quatro e um, ele se levantou do sofá, deixou a xícara na mesinha, abaixou a cabeça para olhar para mim.
— Podemos conversar depois que eu terminar a sessão de autógrafos? — ouvi sua voz perguntar.
Balancei a cabeça, concordando. Qualquer coisa para me livrar da sua presença um pouco ou explodiria de ansiedade. Ele passou por mim e saiu.
Finalmente pude voltar a respirar.




*Headbanger é a denominação utilizada para fãs do gênero musical metal.

Capítulo 3 - Dealin’ With The Devil

Enquanto ele trabalhava, fiquei absorta em pensamentos. Concluí que deveria ter deixado a senha do meu armário do estágio anotada, porque eles teriam um trabalho arrombando o cadeado para pegar as informações de Solveig quando dessem minha falta. Eu deixei tudo para trás sem explicação nenhuma, sem uma mensagem, como se tivesse simplesmente esvaído — que foi o que aconteceu, eu me teletransportei para cá.
Tinha medo da repercussão que poderia dar, já conseguia imaginar as manchetes no jornal da faculdade: “estudante estrangeira desaparecida e última vez vista em seu apartamento ao redor do campus”. Talvez colocassem a Scotland Yard atrás de mim como em uma fanfic que li há um tempão.
Nah, eu não era tão importante assim para ativar a polícia de Londres.
Meus pais iriam surtar, obviamente. Colocariam Shandi e Anya para surtar junto ou vice-versa. Quem desse minha falta primeiro.
Se não tivesse duvidado do que dizia o site, poderia pelo menos ter escrito uma carta para a Anya entregar a eles antes de entrar nessa realidade maluca. Bem, agora não resta nada a se fazer. Lidaria com as consequências quando voltasse.
Estava o observando, de longe e sentada em um banquinho, conversar com os mais diversos tipos de fãs e assinar LPs, fitas, camisetas e papéis. Ele fazia tudo isso com um sorriso no rosto e eu sorria feito uma trouxa, tentando salvar essa cena na minha memória. Olhando assim tão perfeito em minha frente, não me convencia de que não podia mesmo ser um sonho.
Börje me chamou algumas vezes para ajudar alguns fãs que queriam falar com , mas se atrapalhavam entre o português e o inglês. Eu traduzia sem dirigir o olhar a ele e saía de cena o mais rápido possível. Se íamos conversar, então eu lidaria com tudo aquilo depois.
Isso me fez pensar na possibilidade que ele falaria que não assumiria o filho não-existente e eu teria que dormir na rua de qualquer forma. Se ele quisesse assumir, eu também não sabia o que fazer quando os dias passassem e minha barriga continuasse do mesmo jeito. Demoraria, é claro. Ele não iria perceber tão cedo, barrigas de grávidas demoram a aparecer. Só que exames aparecem em poucas semanas.
Balançava meus pés impacientemente enquanto esperava o resto das pessoas irem embora. Börje tinha me arranjado aquele banquinho que segurava a porta para não ficar indo para trás da cortina e voltando. Era uma maneira bem eficaz também de ter uma visão privilegiada do filho dele. Eu já sabia o jeito que mexia no cabelo — e quais ocasiões ele fazia isso: perguntas pessoais, turnê ou show. Nunca aconteceu um show da banda oficialmente. Apesar de que, em suas respostas, sempre dizia que ia voltar para a Suécia para gravar o vídeo de duas músicas do álbum novo que demorariam bastante, depois retornaria para uma turnê.
Nunca ficou claro se ele considerava mesmo fazer esses shows, se o rumor que circulou depois da sua morte era real e ele já sabia que tinha algo de errado com seu coração que o impedia de subir em um palco ou se ele nunca nem cogitou fazer show mesmo por vontade. Quando dizia que era um mistério, estava falando sério. Era um saco ser fã dele.
Já fazia horas que estávamos ali e ele não sentou por um segundo, dava para ver em seu rosto que o cansaço começava a tomar conta. Perdi as contas de quantas vezes eu controlei o impulso de ir chamá-lo para fazer uma pausa ou alertar seu pai para que o forçasse, mas não tinha intimidade o suficiente para isso. Börje cuidava para que pelo menos ele sempre tivesse água — o que já me aliviava.
Minha cabeça estava uma mistura de pensamentos que variavam de “o que fazer para o pai do meu filho-que-não-existe acreditar na minha gravidez-que-não-existe”, “o desespero que meus pais, Shandi e Raj vão sentir quando perceberem que sumi” e “a falta que vou sentir de 2019”. Ou seja, a ansiedade só crescia. No entanto, não era uma ansiedade ruim que nem sempre senti a minha vida inteira, eu estava finalmente feliz a ponto de querer saltitar e gritar, mas também chorar de desespero. Agora que já estava há algumas horas em 1990, estava começando a sentir um contentamento com o que estava acontecendo.
Depois de um tempo ali, ouvi a voz de chamar o meu nome em cima de mim e levantei a cabeça para olhá-lo.
— Tem um restaurante no final da rua. Podemos comer, se você tiver com fome, e aproveitar para conversar — ele disse, olhando para baixo, porque eu estava no banquinho. Notei que seu cabelo emoldurava muito bem seu rosto. Minhas mãos coçavam para pegar em um fiozinho que fosse, mas me limitei a escondê-las atrás das costas antes que fizessem algo que me envergonhasse de novo.
— Tudo bem — respondi, sem ter muito o que dizer. Eu iria para onde ele quisesse me levar. Não tenho hora para voltar para casa, porque não tenho nem casa.
— Vou pegar minhas coisas e avisar ao Börje, então. Já volto — comentou, dando as costas.
Ele tinha um jeito único de andar, era minimamente desengonçado e altamente charmoso (e não estava nem dizendo isso porque era apaixonada por ele, acreditem em mim). Era mais um detalhe dele que exalava o charme que mencionei enquanto estávamos no sofá.
Levantei do banquinho e na mesma hora vi as últimas pessoas que estavam saindo pela porta, Tiago era uma delas. nei para ele e ele acabou desviando para falar comigo.
— Oi! — saudei, assim que ele chegou perto.
— Olá! — ele disse, sorrindo. — Achei que tivesse ido embora. Você é amiga dos donos da loja?
— Ah, não. Eu ‘tô com o , na verdade — justifiquei. Será que ele acharia ruim por eu ter contado isso para Tiago? Afinal, estou aqui só o esperando.
Tiago pareceu surpreso.
— És namorada do ?! — ele exclamou, colocando a mão no rosto. — és mesmo uma rapariga cheia de surpresas.
— Não! — quase gritei. — Não sou namorada dele — deixei bem claro, com medo que chegasse aos ouvidos do dito cujo que estávamos em um relacionamento. — Só estou com ele não-romanticamente, se é que essa palavra existe — pigarreei e resolvi mudar de assunto antes que eu entregasse algum detalhe crucial pelo nervosismo. — Posso tentar falar com ele para apresentar vocês algum dia desses, fora desse ambiente todo. O que acha? Como forma de agradecimento por me trazer aqui.
Eu nem conhecia direito e já estava armando um encontro com um fã. Só podia ter pedido o juízo. Se Tiago resolvesse me cobrar depois e me desse um pé na bunda, estava lascada.
— Giro! — ele respondeu, animado.
— Me passa seu telefone. Acho que daqui a uns dias ele deve voltar para a Suécia ou ir para outro país, mas posso tentar dar um jeito — falei, com base no que sabia do seu documentário que vi em 2019 e no que o ouvi falando hoje. Pelo visto, terei que me apoiar em todo meu conhecimento sobre e escutá-lo com atenção para sobreviver.
Esperei ele me entregar o celular, mas ele virou para arrancar um pedaço do papel que tinha no bolso e rabiscar o telefone com uma caneta que tinha usado para ganhar o autógrafo. Não era comum as pessoas possuírem um telefone celular em 1990, eu deveria me lembrar constantemente disso.
Os amigos chamavam por ele lá fora.
— Tenho que ir. — Ele me entregou o papel. — Espero mesmo te encontrar mais vezes.
— Também espero! — nei e guardei o papel no bolso da calça que nem era minha.
Tiago saiu andando com os amigos, sumindo mais uma vez de vista. Fiz um amigo mais rápido aqui do que na minha época. Sorri, orgulhosa, ao constatar isso.
apareceu de novo, dessa vez com uma jaqueta de couro preta em cima da camisa e carregando outra no ombro com os dedos.
— Ele vai levar minha mala para o hotel, então aproveitei para pegar isso para você — ele me estendeu a outra jaqueta.
— Não precisa, já peguei muita roupa sua para um dia só — recusei.
— Por isso você precisa dela, para completar o visual — sorriu e senti o sorriso brotando na minha boca instantaneamente. Estava feito boba o vendo sorrir. Peguei a jaqueta e a coloquei.
Quase tive um treco quando ela me vestiu por completo. O cheiro dele me envolvia, como se ele estivesse me afundando em um abraço quentinho. Fechei os olhos e suguei o ar feito uma viciada, me deixando levar por essa fantasia e aproveitando aquele cheiro de homem cheiroso. O cheiro dele era de algum shampoo adocicado e desodorante masculino. Quando cheguei perto dele mais cedo, não tinha sentido tão presente assim, mas agora que estava cercada por itens dele, eu queria esse cheiro todo em mim para sempre.
Quando abri os olhos, ele me olhava com aquele sorriso de quando tem algo estranho e engraçado acontecendo na sua frente, como me olhou quando apareci vestindo suas roupas. Eu não me incomodava de bancar a palhaça agora, desde que me mantivesse abastecida com aquele cheiro.
— Vamos? — ele chamou.
Concordei com a cabeça e o segui pelas portas da loja.
Andamos lado a lado sem falar nada. fumava e observava a rua, eu fingia não o estar observando.
Meu corpo todo estava em alerta a qualquer movimento dele e respondia como se tivesse sido chamado quando ele apenas erguia a mão para ajeitar o cabelo. Reagia até quando ele erguia o cigarro até os lábios. Por vários momentos, não pude controlar a vontade de ser um cigarro.
Pensar nisso não estava me ajudando a manter o silêncio. Vez ou outra tive que apertar o passo por ficar perdida em todo o autocontrole que estava reunindo.
Um pouco menos de dez minutos de caminhada depois, entramos pela porta do restaurante que estava quentinho e sem vento de chuva. Receberam-nos, pediu uma mesa para dois em inglês que permitisse fumantes e imediatamente nos conduziram para uma perto da janela da rua — que estava fechada por conta da chuva, mas permitia ver a vista.
Ele se sentou de costas para a parede e ao seu lado tinha um abajur que refletia a luz, realçando seus olhos. Esses malditos olhos seriam minha perdição, eu tinha certeza.
A garçonete nos entregou dois cardápios e nos deixou sozinhos.
— O que você vai querer? — perguntei a ele. — Porque vou querer o mesmo, não estou acostumada com comidas dessa... estirpe.
Ele sorriu.
— Hm... Talvez esse bacalhau a brás? — ele estendeu o cardápio na mesa e apontou para que eu pudesse ver. — Li em um livro de turismo daqui de Portugal que é um dos pratos mais famosos. Para acompanhar, acho que a alheira de mirandela, que também quero provar.
— Tudo bem, por mim — sorri, tentando levar a confiança para nossa conversa.
Ele chamou a garçonete levantando a mão. Para beber, ele pediu vinho verde e eu pedi uma garrafa de coca-cola de cereja. Talvez não fosse a melhor combinação com a comida, mas era isso ou beber água. Não estava em posição de arriscar minha sobriedade com uma gota sequer de álcool. Além do mais, eu tinha escutado muito sobre a coca de cereja dos anos 90, então nada mais justo do que provar no meu primeiro dia ali.
A chuva começou a cair com tudo enquanto eu olhava pela janela.
— Então... — ele disse e já soube que estava indo direto ao assunto para o qual estávamos reunidos ali. — Eu não queria falar na frente do meu produtor, porque se quiser podemos discutir o melhor para esse bebê. Mas não é meu, tenho absoluta certeza — falou com calma, não em tom acusatório ou repreensivo como era esperado quando descobrisse que era mentira. Porém, mesmo assim engoli em seco. A minha mentira frágil desmoronando bem debaixo do meu nariz. — Sei disso porque faz algum tempo que não bebo para perder totalmente a consciência. Então tenho plena ciência de cada mulher com quem dormi. Eu teria lembrado de você. — Ele alcançou o maço de cigarros dentro da jaqueta que pousava no encosto da cadeira e ndeu um. — Só que acho que, para inventar isso, você deve estar precisando de ajuda e não vou negá-la. Quero apenas que me conte por que escolheu a mim.
É... Eu devia ter imaginado que ele não acreditaria. Até porque lembro de ter lido uma entrevista que ele dizia que, no começo da banda, eles eram muito novos para pensar em dormir com as milhares de garotas que surgiam e sempre estavam bêbados demais. E, agora, claro que o de 24 anos tinha passado dessa fase — ele era muito focado na carreira, a banda era um projeto exclusivamente dele desde o ano passado.
Suspirei, deixando minhas costas descansarem no encosto da cadeira de madeira. Era melhor falar logo a verdade porque não podia sustentar a mentira por mais tempo, era horrível nisso e realmente precisava de ajuda. Se ele não quisesse mais me ajudar por causa dessa mentira, o que me restava era itar e ver o que poderia fazer a partir daí.
— ‘Tá, você tem razão — admiti. — Não tem bebê nenhum, nem seu e nem de ninguém — pontuei, mexendo nervosamente no zíper da jaqueta. — Sou só eu. Mas não tenho para onde ir, realmente larguei tudo para vir até aqui.
Não era mentira, eu tinha largado tudo por ele. Seria melhor se simplesmente começasse a usar verdades adaptadas a partir de agora, mentira apenas para os casos estritamente necessários. Ele parecia surpreso ao ouvir isso, e percebi porque olhava dentro dos olhos dele, o seu rosto continuava a demonstrar nenhuma emoção.
— Gastei meu último dinheiro com a passagem de avião — menti, mas só para que ele se situasse e pareceu finalmente convincente. — Com toda a situação do hotel, eu não tenho nem mais passaporte ou roupas, então você pode entender meu desespero — arquitetei essa “verdade adaptada”, esperando que ele realmente se convencesse. — Não posso contar o motivo que me fez fugir de casa, mas soube que você estaria por aqui e planejava passar na sua sessão de autógrafos, então calhou de ser no mesmo dia que fui posta para fora do hotel. — Mordi o lábio inferior. — Desculpa por ter mentido, não quero me aproveitar de você, só tenho algumas razões pelas quais não quero voltar para casa.
Essas razões consistem em: não quero mais viver em uma realidade onde você não exista. Completei, mentalmente.
Ele me observava, atento, enquanto fumava. Tanta gente fumava em 1990 que basicamente a área de fumantes era todo o restaurante e a fumaça presa no ambiente me deixava meio intoxicada.
— E você quer minha ajuda para não voltar, é isso? — disse, batendo com os dedos no cigarro, em cima do cinzeiro, para tirar o excesso de cinza da ponta.
Não pensei nessa parte.
— Erm... — Fiquei com um pouco de receio de parecer folgada, mas era a única alternativa. — Acho que sim, mas só até conseguir um emprego e juntar dinheiro o suficiente para me manter — disse, com vergonha de pedir isso para qualquer pessoa, mas especialmente para meu ídolo. — Eu posso ser proveitosa! Sei que você precisa de alguém para te ajudar ao longo da promo do disco novo, posso falar com o Börje para ser sua assistente full-time. É só uma ideia. — Fiz questão de acrescentar essa última parte.
Sua mão repousava abaixo do maxilar e seus olhos observavam a janela, pensativo. Dizer que tive medo da sua resposta seria minimizar o que estava sentindo, parecia que as borboletas no meu estômago estavam forçando sua saída pela minha boca enquanto ele parecia pensar. Aquele seria meu fim ou meu começo nos anos 90, então tinha muito com o que me preocupar.
— Ok, me parece um bom plano — disse, por fim. Arqueei minhas sobrancelhas em surpresa. Ok, isso tinha sido relativamente fácil para quem pensou que seria a parte mais difícil.
Depois da minha reação inicial, sorri de lado. Minha vontade era de simplesmente voar nos braços dele e apertá-lo até sentir que agradeci o suficiente. É claro que não faria isso, não iria jogar a chance que foi me dada no ralo tão fácil.
— Então temos um acordo? — perguntei. Ele concordou, mexeu no cabelo e retribuiu o sorrisinho de lado. Estendi minha mão para ele e demos um aperto, oficializando o acordo. Minha pele reagiu a dele novamente, por isso fui eu quem recolheu a mão primeiro e com certo receio. Como disse anteriormente, sou fanfiqueira, então pensei que era apenas figurativo esse contato que vivem descrevendo, mas a pele dele estava me provando que não. O choque existia e era assustador pensar na dimensão que aquele pequeno contato provocava em mim.
Ele apagou o cigarro no cinzeiro quando trouxeram a comida e as bebidas. Ao terminarem de colocar todas as porções em cima da mesa, ele pegou o prato que estenderam para ele e me entregou.
— Obrigada — agradeci, sentindo o sangue se concentrar exclusivamente no meu rosto. Foi uma coisa inocente, por que estava corando?
— Sem problemas — ele respondeu, servindo o próprio prato.
Após ele terminar, servi o meu. Começamos a comer e reparei que ele me olhava, retribuí o olhar, sem saber o motivo de estar me encarando. Será que minha boca estava suja? Passei o guardanapo de pano por ela.
— Vou pedir para o Börje te passar a minha agenda amanhã de manhã — quebrou o silêncio. — Então escolha um horário livre para que possamos comprar roupas para você. É melhor andar com roupas mais... Ahm... digamos que confortáveis quando me acompanhar em entrevistas e outros compromissos.
Larguei o guardanapo e olhei para as roupas dele que eu vestia. Eram roupas que claramente ficavam grandes em mim e por isso engraçadas. Por mais que eu tenha feito um bom trabalho tentando disfarçar que não eram minhas, as pessoas que cruzaram o meu caminho devem ter entendido tudo. Corei de novo ao pensar em Tiago perguntando se eu era namorada de , pudera...
— Bom, estou confortável. Porém, você tem razão, não posso usá-las para sempre — respondi, tomando minha coca-cola de cereja que concluí ser a melhor bebida que já provei. — Obrigada, — agradeci, ele arqueou uma sobrancelha enquanto mastigava. — Obrigada por concordar com isso tudo e se dispor a me ajudar, sei que é meio maluco. Eu tenho 25 anos, fugi de casa e vim até Börje de pijama. Ainda contei essa história absurda de gravidez. — Larguei o garfo e escondi meu rosto com ambas as mãos, pensando que o que parecia tão bom plano agora vinha se provando um motivo para me envergonhar tanto. — Enfim, você não precisava me ajudar e mesmo assim o fez. Então, nunca serei grata o suficiente.
— Tudo bem, eu já fugi de casa antes algumas vezes, mas não fui tão longe quanto você. Deve estar sendo difícil — ele disse, continuando a comer.
Ah, você não conseguiria acreditar se eu te contasse.
Concordei com a cabeça e olhei para a janela.
Aquele parecia até mesmo um encontro, para quem nos visse lá da rua e não soubesse que tínhamos acabado de nos conhecer pessoalmente. É engraçado pensar que não sabia nada sobre mim, já que eu sabia coisas bem importantes sobre ele.
Acho que, se o amor platônico tivesse uma cara, com certeza seria a minha. Ele estava sentado do outro lado da mesa em toda sua glória, tudo que eu pensava era em não vacilar e dar uma de fã obcecada, mas a cada minuto se provava mais difícil executar essa tarefa. Ainda mais porque ele continuava a jogar aquele inferno de cabelo lindo para trás com um charme desnecessário.
Assim que terminamos de comer, ele pagou a conta com cheque — sim, com um cheque! — e nos levantamos, indo para a porta. Ele não quis saber mais sobre mim, nem eu quis saber sobre ele. Quer dizer, seria natural que ele quisesse saber mais sobre mim para ter certeza de que não estava empregando uma serial killer, mas ele parecia cansado demais para pensar em fazer perguntas. Pude ver só pelas suas feições.
— Para onde estamos indo? — perguntei, para confirmar que ele não era um louco me carregando para algum cativeiro.
— Para o hotel — explicou e concluí que era óbvio esperar que fôssemos para onde ele estava hospedado. — Apesar de que eu estou duvidando que um táxi vá parar para a gente com essa chuva — ele comentou.
E ele estava certo, esperamos por uns 30 minutos debaixo da fachada do restaurante. Por sorte, a jaqueta de couro dele estava tampando o vento forte daquela tempestade noturna. Fiquei pensando em como faria, acho que iria sugerir que ele descontasse de um possível pagamento o preço do hotel, já que precisaria dormir em algum lugar e não tinha dinheiro agora para pagar. Viajar no tempo era uma enrascada quando você era leiga, mas estava gostando de estar ao lado do homem que admiro.
— Tenho uma ideia, mas você precisa correr agora e rápido — ele interrompeu meus pensamentos, olhando em direção à chuva.
— Por... — Não tive a chance de continuar a pergunta, ele pegou na minha mão e me puxou para correr em direção ao relento. Corremos e pingos violentos de chuva ricocheteavam em meu rosto. Ele virou para mim, sorrindo, já com o cabelo e o rosto encharcados. Meu coração errou algumas batidas com toda a certeza.
— Mais rápido, ! — ele gritou e me puxou mais ainda em direção à chuva que nos maltratava. Eu só entendi o que estávamos fazendo quando consegui ver em qual direção estávamos correndo, tinha um táxi parado com uns três passageiros desembarcando mais à frente.
A cada passo nosso, uma poça de água espirrava. Não tinha uma parte minha que não estivesse molhada, eu comecei a rir de gargalhar. Era uma felicidade boba, mas eu não me lembrava da última vez que tinha tomado banho de chuva por vontade própria, mas naquele momento eu estava fazendo isso com nesse mundo incrivelmente velho.

***


abriu a porta com a chave, logo em seguida colocando-a no interruptor e ligando a luz e ar-condicionado do quarto inteiro. Ele entrou e me deu passagem, depois fechou a porta atrás de mim.
— Bom, se você quiser privacidade, eu posso dormir com o Börje na casa do amigo em que ele ‘tá hospedado. É que realmente esse era o último quarto, o hotel ‘tá cheio para uma convenção. — Coçou a nuca.
Passeei meus olhos pelo local, era realmente um quarto pequeno e sem privacidade para dois desconhecidos, mas eu não iria mandá-lo sair do quarto que ele mesmo pagou. Na verdade, estava adorando a ideia de ficar presa com ele por mais um tempinho.
— Não, ‘tá tudo bem. Obrigada por me deixar ficar aqui — falei.
Ele concordou com a cabeça e pegou uma toalha no banheiro, secando o cabelo e o rosto. Peguei a que estava em cima da cama e tentei secar um pouco as roupas que eu vestia.
Acho que nunca fiquei sozinha com um homem em um quarto de hotel sem ser para fins sexuais ou que não fosse da minha família. A atmosfera logo mudou para mim. Ele estava abaixado, mexendo na mala, e eu olhava fixamente o tecido molhado grudando na pele de suas costas, pensando em como seria ver aquele abdômen desnudo pessoalmente. Quando eu tinha encontrado fotos dele dos anos 80 sem camiseta, já tinha sido um choque, afinal, eu era uma fã e era . Ele era gostoso e sabia que era. Salvei todas no meu celular para admirar no ônibus, foram muitas horas gastas fazendo isso. Então, eu conhecia aquela barriga e me causava calafrios bons só de imaginá-la na minha frente. Mesmo que ela tivesse coberta pelo tecido da camiseta, sabia o que esperar.
Era melhor eu guardar esse tipo de pensamento na parte mais sombria, escura e distante do meu cérebro de novo, porque não era muito confiável pensar essas coisas com ele molhado na minha frente.
— Pode ir primeiro — ele me estendeu uma muda de roupas e apontou com a cabeça para o banheiro.
— Obrigada — eu disse, logo em seguida me trancando longe daquele homem.
Ele devia me achar patética com esse tanto de “obrigada”, parecia que a única coisa que eu sabia fazer era agradecer.
Suspirei, me encostando na porta.
Qualquer força divina, me ajude. Eu estou tendo o sonho mais louco da minha vida.
Comecei a desdobrar as roupas da pilha que ele tinha me dado, uma camisa do Motörhead desgastada e uma samba-canção listrada em preto e vermelho. Mais uma vez, eu teria que me virar com as roupas dele.
Entrei no chuveiro e abri só o registro quente. Era bem século 20 ter um registro para água fria e outro para água quente, no meu apartamento inglês era apenas um que cumpria as duas funções. Eu lembro de quando era criança e ficava indecisa do quanto abrir de cada, mas a maioria não funcionava os dois no Brasil, então era água escaldante ou gelada, sem meio termo. Aquele funcionava bem, porque a água estava tão quente que começou a pinicar minha pele. Deixei isso acontecer, para ver se esquecia todos os pensamentos que o envolviam sem camisa embaralhados com a confusão de estar em 1990 que ainda rondavam minha mente. Lavei o cabelo com shampoo e condicionador do hotel, depois me esfreguei com o sabonete.
Claro que não rolaria nada entre nós dois. Porém, só de estar ali, sozinha, com ele, me deixava aflita pela chance.
Para. Se controla.
Esfreguei mais a pele que insistia em se arrepiar ao imaginar seu peitoral nu.
Esquece isso.
Eu não deveria estar pensando nessas coisas enquanto estava perdida em um ano que nem nasci ainda. Deveria era estar preocupada em como acordar e sair dali. Se isso fosse um sonho, não teria nada de normal a cada segundo que se passava. Temia muito pela minha sanidade.
Sequei o cabelo com o secador preso na parede e tentei secar um pouco minhas roupas de baixo no aquecedor de toalhas para poder reutilizá-las. Vesti suas roupas e dessa vez serviram um pouco melhor, até porque não era uma calça que cobria suas pernas maiores do que as minhas.
Saí do banheiro e ele tinha aberto um pouco da janela para fumar. Na sua mão, tinha um livro que dava para ver que ele lia antes que eu abrisse a porta. Agora eu era alvo de sua atenção.
— Ficaram melhores do que as outras — eu disse, coçando nervosamente a nuca como ele tinha feito minutos antes.
— Tenho que concordar.
Coloquei as peças molhadas para secar no aquecedor do quarto. Ele voltou a ler o livro. No chão, tinha um cobertor estendido, um travesseiro e uma manta dobrada. Parecia confortável, então me abaixei para me deitar.
— O que está fazendo? — ele perguntou, me assustando.
— Me deitando? — falei em um tom óbvio e ele franziu a testa.
— Não, não. Quem vai dormir aí sou eu.
— Claro que não! Você já fez muito por mim hoje, eu não poderia roubar a sua cama. Pode deixar que eu durmo aqui — respondi, já me ajeitando em cima do cobertor.
— Você ‘tá roubando minha cama deitando aí — ele riu. — Eu insisto que você fique na cama de verdade. Jamais conseguiria dormir, sabendo que deixei uma mulher deitar no chão enquanto estou em uma cama, seria totalmente mal-educado da minha parte.
Já que ele queria assim, eu não iria retrucar mais. Estava mesmo morrendo por uma cama de verdade, com toda a loucura que passei naquele dia. Parecia um bom lugar para cair no sono e sonhar outra coisa que não envolvesse meu ídolo morto. Deitei na cama de casal e todas as minhas juntas gritaram “aleluia”. Era uma daquelas camas que parecia que você estava deitado na nuvem. Soltei um gemido de satisfação e ele me olhou, usando o sorriso de “te acho muito estranha”. Hoje o prazer de me achar estranha não foi exclusivamente de Shandi, como costumava ser.
Ele terminou de fumar e pousou o livro em cima da TV, pegando sua própria muda de roupa e se trancando no banheiro.
Eu adorava livros. E eu sabia que recebia livros de um autor de ficção envolvendo mitologia nórdica e fantasia. Ele tinha escrito a música principal do álbum com base no ambiente que se passava esses livros, inclusive a que ele transformaria em um vídeo. Fiquei num impasse interno entre ir ou não até a televisão para pegar o livro. Metade de mim dizia para não ir, porque não era da minha conta e para não ser tão curiosa assim. A outra metade queria levantar e cheirar o livro para ver se tinha cheiro de livro ou de — sendo que os dois cheiros eram os favoritos do meu nariz.
Vou.
Não vou.
Vou.
Não vou.
Vou.
Não vou.
Vou.
Não vou.
Vou.
Não vou.
Levantei e deitei tantas vezes que, quando levantei, quase corri para pegar o livro de ansiedade. Olhei aquela capa preta, digna de sebo do mundo de 2019. Não deu tempo nem de levá-lo até meu nariz, tinha terminado e abria a porta do banheiro, me pegando no flagra.
Devolvi o livro e comecei a fingir que estava ligando a televisão. O problema é que eu não sabia mexer em TVs de girar o botão, então paguei de maluca mais uma vez.
— Quer ajuda? — ele perguntou ao me ver apanhando com os botões.
— Sim, eu nunca mexi em uma dessas — respondi, me afastando para ele ligar o aparelho. Ele ligou apertando o botão, era só apertar.
— Eu não sabia que no Brasil não tinha televisões.
Engraçadinho.
Deitei de novo, sem responder à provocação, tentando prestar atenção em um jornal português enquanto o cheiro de um muito cheiroso invadia meu nariz sem pedir licença.
— Meu Deus, como você ‘tá cheiroso — falei, sem perceber que isso ia sair da minha boca e não continuar nos meus pensamentos.
Eu me surpreendi com o som que ecoou pelo quarto. Uma gargalhada. Essa era a primeira vez que eu o ouvia gargalhando, também ri, esquecendo a vergonha por ter falado isso e sendo grata porque tinha provocado aquela reação.
— Obrigado — ele respondeu.
— Não era para ter verbalizado isso, mas por nada — comentei, rindo, e, em seguida, escondendo meu rosto com a mão, depois abrindo os dedos para fitá-lo.
— Tudo bem, posso fingir que não escutei — ele piscou, penteando o cabelo molhado com uma escova que estava em sua mala.
Se ele soubesse o perigo de piscar para mim quando eu estava tendo pensamentos tão estranhos, pediria é que eu fingisse que não vi aquilo.
Ele usava uma camiseta verde-escuro e uma calça de moletom preta que realçava seu bumbum típico de europeu. Não posso mentir que era grande coisa, mas qualquer mínimo detalhe dele estava me deixando doida — e olha que nunca tive uma libido tão boa assim, na maioria das vezes eu tinha que me forçar a sair e sentir atração.
Enrolei-me todinha no edredom pesado, de forma a não conseguir fugir dali e me atirar nele. Já ele, foi se deitar na cama improvisada do chão, carregando o livro de capa preta consigo.
— ‘Tá lendo o quê? — perguntei para ele, resolvendo usar a abordagem mais convencional do que olhar escondido. Até porque a primeira opção não tinha dado certo e eu era curiosa, não conseguiria dormir enquanto não soubesse o que ele estava lendo.
— Um livro que um americano muito legal me enviou. ‘Tô relendo para poder escrever o roteiro de um vídeo — ouvi a voz dele responder, não conseguia o ver.
— A música principal do álbum — comentei baixinho.
— Sim, como você sabe? — ele perguntou, curioso.
Eu não sabia que aquilo era um segredo ainda.
Eu ouvi você explicando para as pessoas no Dino’s — improvisei.
— Ah, é verdade.
Suspirei. Essa foi por pouco.
— Esse vídeo... Você fez algum contrato com uma gravadora ou vai fazer por conta própria? — perguntei, só para confirmar o que eu já sabia.
— Gravadoras têm muita burocracia, quero fazer algo em que eu tenha o controle.
Então era verdade o que eu soube, ele iria desembolsar 5 mil dólares do próprio bolso para gravar esse vídeo. Os responsáveis pela gravação iriam sumir com 60 horas de gravação e retornar para ele só umas 3 depois de muito tempo, nunca o dando a chance de rever e escolher as melhores partes sozinho.
Não sei se eu tinha a capacidade de interferir em coisas que eu sabia que iriam acontecer e nem se poderia fazer isso, então preferi ficar quieta para não revelar que sabia demais.
Eu via as imagens da TV e não prestava atenção, tentando juntar tudo o que sabia sobre viagem no tempo com base no que li e vi até sumir do meu apartamento na Inglaterra.
Um tempo depois, finalmente peguei no sono, desejando que aquilo não fosse um sonho e que o outro dia ainda fosse 1990 e não mais um dia sem graça em 2019.


Continua...



Nota da autora: No momento que estou enviando essa att, One Rode to 20th Century (ou como prefiro abreviar, ORT20C) entrou finalmente no site yayyy! Obrigada quem embarcou nessa viagem do tempo comigo e com nossa queridíssima pp. Agora vocês são oficialmente viajantes do tempo! E conhecemos aquele que nos fez viajar quase trinta anos para encontrá-lo, espero que gostem dele tanto quanto eu ;)
Tenho uma curiosidade pra compartilhar com vocês: a partir dessa att, os capítulos vão ter nome de músicas do século 20 que tive uma ajuda especial para escolher, então vou disponibilizar a playlist com elas e também uma com as que me inspiraram na jornada de escrever ORT20C.
Ah, e um agradecimento especial para a Luísa que está betando a fic e vem aturando minhas perguntas incessantes <3
Beijosss, viajantes!





Nota da beta: Adoro essa temática de viagem no tempo e já estou super ansiosa para ver tudo o que acontecerá com a ❤️


Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.

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