Golpe de Amor

Última atualização: 21/09/2023

Capítulo 1

Os dedos de Jacqueline deslizavam pelas notas verdes e sujas como se fossem um verdadeiro tesouro. Mesmo morando em um pequeno apartamento alugado, suas mãos macias já haviam se habituado ao peso de tamanha quantia. Aos seus quatorze anos, ouvir sobre a primeira oportunidade fez seu coração pareceu querer sair de seu peito e por dias a culpa a consumiu, afinal, não haviam ido parar no bolso de seu velho casaco azul de forma honesta. Na segunda vez, sua consciência ainda gritava, contudo, a partir da terceira, viu que nada que faria seria o suficiente para fazê-la parar e resolveu ficar quieta.
Como sua mãe sempre dizia: “Minha doce Jacqueline, esses homens não são santos. Acha que esse bolo de dinheiro que está na sua mão veio de uma fonte legal? Ah, minha filha, você tem muito que aprender. Nós temos esse direito, o direito à sobrevivência. Depois que o seu pai nos descartou como se fôssemos lixo, só temos uma à outra! Por isso temos que nos ajudar sempre. Posso contar com você?” Toda vez, a jovem fazia que sim com a cabeça e partia para o próximo golpe.
Quando ainda morava no abrigo, costumava tremer ao ver na sua frente os homens das revistas de fofoca que sua mãe mostrava e dizia serem “a isca perfeita”. As manchetes eram quase sempre iguais: “Ex mulher de famoso empresário exige metade de todo o património” ou “filho de milionário dá um golpe e destitui o pai da empresa”. Homens vulneráveis eram sempre os escolhidos, afinal caíam quase que imediatamente na lábia de uma bela loira que os oferecia conforto. A missão não era difícil e até vinha com regalias, como jantares em restaurantes chiques, vestidos caros e até mesmo passeios de iate pelo atlântico. Desfrutava do melhor e tudo que ela precisava fazer era convencer estes “pobres” homens de que estava completamente apaixonada por eles. E no momento em que suas jogadas de cabelo e olhos verdes enormes já os haviam hipnotizado o bastante, era a hora crucial. Jacqueline se considerava até capaz de escrever um roteiro de cinema depois de tantas histórias mirabolantes que saíram de sua mente para arranjar um bolo como aquele que estava em suas mãos.
— É o suficiente para pagar o tratamento de sua mãe? — indagou Tommy, fazendo a jovem tirar os olhos daquilo que realmente queria e focar no ex ator deprimido, porém cheio da grana pela última vez. Apesar de ser um ex ator, a mídia não se importava com ele, o que tornava o trabalho da garota mais fácil, afinal não podia correr o risco de ter o rosto estampado em uma revista e ser conhecida durante um futuro golpe.
— Sim, eu nem te agradeço, meu amor! — A frase saiu de maneira automática dos lábios de Jacqueline, até porque, depois de tantas vezes, chamar alguém de meu amor já não tinha mais nenhum significado. Contudo, bem no fundo de seu coração, ela ainda desejava algum dia ouvi-las em sua voz de uma forma sincera. No entanto, esse dia não era hoje. No momento, o que ela precisava era pagar o aluguel do mês que havia vencido há mais de uma semana.
— Imagina, Liana, minha vida, estamos juntos nessa! — o homem afirmou, segurando as mãos de Jacqueline, que lutavam para não se esquivar de mais um toque frio.
— Claro, você é o melhor! Minha mãe com certeza vai te agradecer de joelhos, depois que ela levantar da cama é claro… — A tristeza em sua voz soava sincera depois de tanto treino.
Tommy sorriu antes de dar um gole no vinho, contudo, seu gesto era o momento mais torturante para Jacqueline.
Como uma coreografia ensaiada, ela se levantou e beijou os lábios gélidos da vítima da vez. Depois de beijar tantos milionários excêntricos e carentes, sua boca já estava anestesiada e, mesmo não sendo agradável, a golpista preferia encarar como parte do trabalho, nada mais. Porém nunca deixava de se perguntar: como seria beijar alguém de quem realmente gostasse? Seu coração doía ao constatar que provavelmente nunca teria a resposta para essa pergunta.
— Eu tenho que ir, mas nos vemos amanhã para o passeio pela cidade que me prometeu! — exclamou Jacqueline, lutando para não sentir pena do coitado que estaria em prantos no dia seguinte.
— Não perderia por nada! — A voz de Tommy exalava empolgação.
A garota se limitou a lançar um sorriso falso antes de sair.
Como sempre, ela combinava um local e não apareceria, simples assim, e, depois de anos, já havia aprendido a não pensar nas lágrimas que seriam derramadas.
Logo a suavidade da música clássica do restaurante foi substituída pelo ruído ensurdecedor criado pelos inúmeros veículos que cruzavam a cidade. Para não chamar atenção, Jacqueline colocou o bolo de dinheiro em sua bolsa preta antes de entrar no ônibus para chegar em casa e ouvir que “apenas tinha cumprido seu dever”. Os falsos fios ruivos esquentavam sua cabeça, assim ela os tirou, revelando os belos loiros que tinha desde a infância.
Ao passar a chave pela porta de madeira enferrujada e entrar na cozinha empoeirada, viu a bolsa vermelha da Prada em cima da mesa, sinal de que sua mãe provavelmente havia acabado de chegar de um de seus vários encontros.
Apesar de seu estômago estar revolto devido ao vinho, ela sabia que teria de enfrentar a situação, por isso respirou fundo antes de ir até a sala, onde sua mãe estava jogada no surrado e pequeno sofá azul, com seu minúsculo vestido verde água e com as pernas para cima, falando no telefone como se fosse uma adolescente. Estava tão distraída com os chamegos idiotas que só notou a presença da filha quando esta pigarreou.
— Ah, você chegou, minha filha! E então, como foi? — indagou, se levantando do sofá e encarando a filha de cima a baixo.
— Cadê sua peruca? — indagou, dando uma bronca.
Jacqueline engoliu em seco antes de responder.
— Eu tirei antes de entrar no ônibus, estava me incomodando muito! — se limitou a dizer, quase em um sussurro.
A frase vez sua mãe dar um longo suspiro de preocupação antes de continuar.
— Quantas vezes eu já te falei que você só pode tirar a peruca em casa para não correr o risco de alguém te reconhecer ou de o cara ter te seguido! — explicou a mãe de Jacqueline, sem um pingo de paciência, enquanto mexia nas unhas de gel cumpridas que havia colocado há alguns dias.
Jacqueline evitou encará-la e manteve a cabeça baixa como sempre fazia quando era chamada a atenção.
— Ela estava esquentando muito a minha cabeça, eu não aguentava mais.
Sua mãe a lançou um olhar de que tinha ouvido a frase mais idiota do mundo, o que fazia o coração da golpista se transformar em um corredor de maratona.
Um longo suspiro, seguido de mais uma demorada olhada para as unhas em gel veio antes e uma pergunta cruel.
— Você usa peruca quase todos os dias e nunca reclamou. Por que dessa seria diferente?
Jacqueline queria colocar para fora as pedras que carregava nas costas desde a adolescência. Um nó se formava em sua garganta toda vez que era tratada como um objeto, clamava pelo amor materno que sempre a foi negado. Porém manteve todas essas emoções enterradas em seu peito e olhou para baixo, envergonhada, antes de responder quase em um sussurro.
— Tem razão, eu sinto muito. Na próxima vez, vou voltar a ser cuidadosa.
— Ótimo, isso que eu gosto de ouvir. E então, conseguiu? — indagou, pouco se importando com os sentimentos da filha.
A garota fez que sim com a cabeça antes de tirar do bolso o bolo dinheiro. Apesar de tudo, esse era seu momento favorito, pois era o único em que recebia uma migalha de carinho da mãe.
— Boa menina! E qual foi a desculpa que inventou para o trouxa da vez? — perguntou, de maneira irônica, sem tirar os olhos das notas verdes.
— Mãe doente no hospital! — Sua voz saiu seca e mais uma vez quase que como um sussurro.
— Clássico, acho que já usou essa antes, não é? Ah, minha filha, você é ótima para criar histórias, tão convincente que aí é que os idiotas caem mesmo na sua lábia.
Jacqueline não sabia mais se receberia essa fala como um elogio.
— Pois é, eu sei. O Tommy principalmente não demorou a ceder, sabe como os atores fracassados são — a garota zombou e, por alguns instantes, se sentiu mal pelo pobre homem abandonado no restaurante. Ele provavelmente naquela noite mesmo afogaria as mágoas nas bebidas.
Na noite em que conversou com ele pela primeira vez, não foi muito difícil convencê-lo de que estava apaixonada, até porque um cérebro cheio de álcool funciona bem menos. Assim ela foi incentivando o vício, sempre estagnado ao lado dele, até que, no fim, ele não conseguia mais ir ao bar sem que ela estivesse junto. Ela havia se tornado um novo vício para ele e aí era onde o golpe entrava em seu estágio final.
Jacqueline já tinha se aproveitado da fraqueza de inúmeros homens solitários, porém, pela primeira vez, começou a se indagar se era certo magoar alguém e deixá-lo no fundo do poço com seus vícios somente para se dar bem. Não, o que ela estava dizendo? Tommy, assim como todos os outros que já havia enganado, não era nenhum santo e os relatos de companheiras de cena provaram isso.
Quando sua mãe o apresentou como possível alvo, a garota sentiu um frio na barriga. O medo de ser abusada de alguma forma fez seus pelos do corpo arrepiarem, já era ruim o bastante ser tratada como um objeto de alívio, porém esse tipo de atitude ela não iria suportar, nem por um milhão de dólares. Contudo, sua mãe acabou a convencendo, apesar dos indícios, dizendo:
“Ele está solitário, alcoólatra e cheio da grana! O que são alguns relatos de atrizes recalcadas sem importância perto disso?” Jacqueline até tinha vontade de argumentar, entretanto, acabou desistindo.
Tommy, por sorte, não fez nada do que havia sido relatado, talvez porque a garota havia aprendido certos truques para evitar esse tipo de situação, como, por exemplo, somente marcar encontros em locais públicos extemporâneos e dar uma desculpa para não ir para um quarto de hotel com ele. A pobre jovem não sabia quantas vezes viu acontecer no abrigo e até na própria casa. Os gritos de sua mãe, desesperados, vindos do quarto, ainda ecoavam sob sua mente e a davam a certeza de que não estava fazendo nada além de conseguir o que era seu por direito.
— Sim, os idiotas não pensam muito quando encontram um par de lábios atraentes.
— Essa é sempre a parte mais difícil… — a garota disse para si mesma, até porque, se contasse para sua mãe o quanto a incomodava ter que beijar lábios frios pelos quais não tinha nenhum afeto, mais uma vez receberia risadas como respostas.
— Desculpa, meu bem, como é? — indagou a mãe mais uma vez, distraída demais com as unhas para prestar atenção na filha.
— É, que bom, porque aí fica mais fácil conseguir o dinheiro do aluguel. Afinal, a senhora sabe que estamos atrasadas em dois meses, não é?
A mãe, parecendo não ter escutado, tomou o bolo de dinheiro de Jacqueline e sorriu para o tesouro como se ele fosse sua cria e não a pobre jovem que estava na sua frente.
— Sim, eu sei, mas eu já marquei aquele ajustezinho no nariz para semana que vem e a moça só aceita pagamento adiantado.
A jovem golpista suspirou, já sabendo aonde aquela conversa iria chegar.
— Ajustezinho, mãe? Eu não aguentei o Tommy tirando fotos minhas com vestidos super desconfortáveis no meio de um bar e corri riscos sorrindo alegremente para você fazer um ajustezinho do nariz.
— Nossa, filha, deixa de ser egoísta. Eu, sua mãe, com toda a dificuldade e amor do mundo, te criei sozinha, te ensinei como sobreviver nesse mundo cruel, e é assim que você me agradece? Sendo a única que tem o direito de permanecer jovem e bonita nessa casa? — afirmou mais uma vez se sentando no sofá.
— Não, mãe, não foi isso que eu quis dizer.
— Tudo bem, eu passei noites em claro para cuidar de você enquanto meu estômago roncava porque seu pai não nos deixou nada, mas tudo bem. Se mesmo depois de tudo isso você achar que eu não tenho direito nem a um ajustezinho para sentir menos o peso da idade…
Jacqueline suspirou, ela sabia o que mãe estava fazendo, já sabia o discurso de cor, contudo não deixava de dar a razão à sua mãe. Mesmo não sendo perfeita, ela era a única que estava lá em todos os momentos e não a havia abandonado, por isso, como sempre, cedeu.
— Como quiser. Bom, agora, se me der licença, eu vou descansar no meu quarto!
Percebendo certa tristeza no tom de voz da filha, a mãe foi até ela e, como quase nunca fazia, acariciou seus fios loiros, porém não como uma mãe que acaricia uma filha, mas como alguém alisa sua fonte de renda.
— Ah, minha doce Jacqueline. Você ainda é muito jovem, tem jeito que aprender, mas está no caminho certo!
— Graças a você.
A mãe sorriu antes de voltar a encarar as unhas de gel, deitada no sofá, como se nada mais importasse na vida. Enquanto isso, Jacqueline abriu a porta enferrujada de seu quarto para se deitar na cama quebrada e se cobrir com os lençóis rasgados e de péssima qualidade que sempre aguardavam depois de um longo dia de trabalho.


Capítulo 2

A parede de seu quarto com a pintura desgastada era a primeira imagem que os olhos de Jacqueline contemplavam pela manhã, o que já dava uma ideia de como seria o resto seu dia. Era sempre assim, ela ia para o armário e colocava sua blusa amarela favorita, que possuía a mancha de café especial, como costumava chamar, já que estava ali há séculos e a blusa já estava tão velhinha que se lavasse não sobraria um fio do tecido. Claro que a garota adoraria comprar uma nova, afinal era para isso que se sacrificava fingindo estar apaixonada por homens com o dobro da sua idade. No entanto, toda vez que tocava no assunto, sua mãe sempre dava alguma desculpa: “Ah, esse mês eu já marquei aquele retoque na bochecha. Meu rosto está envelhecendo rápido, já sua camisa está aí inteira. Não seja egoísta” e assim Jacqueline aprendeu quais eram as regras da casa. Sua mãe tomava conta do dinheiro e o usava para o que era melhor. Bom, a garota não podia reclamar, afinal não lhe faltava comida e sua cama era confortável de certa maneira, mesmo com as pernas bambas, porém doía saber que ela nunca usava o dinheiro de seu trabalho para o próprio conforto. Se pelo menos algum dia ela pudesse comprar um travesseiro novo, que não fosse tão fino e duro, para ter uma noite de sono decente, já estaria satisfeita, contudo nem isso sua mãe achava que ela merecia. Às vezes questionava se o que fazia realmente lhe trazia benefícios. Não, ela não podia pensar desse jeito, sua mãe a havia criado com todo o sacrifício mesmo depois de ter sido abonada, havia passado noites em claro para olhá-la. Esse era ao mínimo.
Assim, a jovem golpista, depois de vestir a blusa, foi até a cozinha, onde as panquecas murchas que haviam sobrado do dia anterior a esperavam. Sua mãe, mais uma vez, estava dando risadas bobas, enquanto olhava para o celular como se não houvesse mais ninguém no mundo. Pelo jeito como levantava as sobrancelhas e ria, com certeza era um novo caso. Jacqueline havia se habituado desde adolescente. Na verdade, para ela, chegar em casa depois de sair com um novo alvo à noite e encontrar um cara estranho no sofá já era completamente normal. Sua mãe só não trocava mais de namorado do que fazia plástica, eram os seus dois hobbies favoritos. Quanto a Jacqueline, bom, ela não tinha tempo de descobrir quais eram seus próprios interesses, afinal precisava compensar sua mãe por todo o esforço feito mais cedo trabalhando e arrancando o máximo de dinheiro que pudesse daqueles homens estúpidos e vulneráveis.
O aroma da panqueca murcha invadiu seu nariz, fazendo seu estômago embrulhar. Com certeza o vinho de ontem não havia feito nada bem, para dizer a verdade, Jacqueline odiava beber, principalmente vinho. Era tão irritante quando um dos alvos a levava a um restaurante chique, pedia ao garçom que enchesse sua taça e começava a falar de como aquele vinho era único e especial. Para ela, todos tinham o mesmo gosto enjoativo, contudo, dependendo da personalidade que assumia para o golpe, precisava fingir que estava extremamente encantada e grata por estar ali, com um belo sorriso falso no rosto, enquanto no fundo tudo que que queria fazer era assistir tevê e ficar uma noite sem sentir uma peruca sob seus fios loiros, sabe? Somente relaxar e não ter que interpretar ou fingir, uma noite sendo apenas a Jacqueline, sem precisar impressionar ninguém com sua atuação certeira. Antes de todo golpe, a loira e sua mãe faziam uma profunda pesquisa sobre o alvo, seus interesses e gostos pessoais. Uma vez, ela precisou conquistar um milionário excêntrico que adorava cangurus, então ela passou noite em claro, decorando cada informação que conseguiu sobre o animal e até mesmo inventou que tinha um de estimação. Óbvio que, para parecer real, precisou fazer montagens no photoshop. A questão é, os caras sempre se encantavam por personagens criados cuidadosamente para seduzi-los até o ponto de não se importarem em pagar uma suposta viagem de emergência para conseguir um emprego ou a cirurgia de uma suposta mãe doente.
A garota era muito boa em encenar conversar e em fingir que adorava um assunto para o qual não dava a mínima, porém, em seu peito, morava uma profunda crise de identidade. Um dia ela era Nicole, uma navegadora master encantada por barcos, no outro, Roxy, uma dançarina impecável, supostamente premiada na Rússia, mas nunca Jacqueline, uma garota órfã de pai que vivia de enganar os outros e mentir até para si mesma, dizendo que não sentia falta de amor, que tudo bem desperdiçar sua juventude enganando homens mais velhos, até porque ela não servia para mais nada. Não sabia quem era, se a perguntassem os melhores truques para encantar alguém que nunca viu na vida, ela respondia com confiança, mas se a perguntassem qual seu filme favorito, ou o que gostava de fazer no seu tempo livre, a jovem congelava. A Jacqueline não era interessante o suficiente para tirar a atenção de um rico milionário, afinal era só uma pobre coitada que vivia para ajudar a mãe. Mas, mesmo assim, às vezes ela pensava em como seria bom se alguém gostasse da Jacqueline e não de uma personagem, contudo esse era outro sonho impossível e a garota gostava de viver na realidade, até porque sonhos eram perigosos, como sua mãe dizia. “A única coisa que sonhar te traz é decepção”.
Esse era seu lema, por isso não valia a pena sonhar que algum dia encontraria seu grande amor. Precisaria se contentar que sua mais constante companhia eram os papéis com números nos quais a sociedade depositava tanto valor.
— Ah, filha, você chegou, que bom! Já ia te acordar, sabe? Os sites de fofoca já não são mais como antes, preciso que você dê uma volta e tente encontrar um próximo alvo! — exclamou sua mãe, sem nem mesmo desviar a atenção do celular para uma conversa olho no olho.
— Bom dia para você também! — Apesar de querer gritar, a voz de Jacqueline saiu como um sussurro.
Em vez de responder ao cumprimento, sua mãe continuou o assunto como se não tivesse ouvido nada e Jacqueline, a essa altura, já não duvidada de que ela realmente não tivesse escutado, até porque sua mãe só a escutava quando estava com um maço verde na mão.
— Tenho certeza de que, se for nos lugares certos, conseguirá ótimas informações! Vários salões no centro da cidade costumam ter vaga de última hora. Tenho certeza de que alguma das desocupadas que estiverem lá vão saber de algum pobre coitado com o coração vazio e conta bancária cheia!
A garota engoliu seco, sabendo que, se não aceitasse, teria que escutar mais um discurso sobe como era ingrata e não sabia valorizar a mãe que havia feito tudo por ela anos atrás. Contudo, além disso, ela também não queria ser despejada por não pagar o aluguel, se bem que a jovem golpista duvidava muito de que o dinheiro de um suposto futuro golpe seria usado com esse propósito. Ignorando tudo que se passava em sua mente, Jacqueline forçou seus lábios a formarem um sorriso.
— Claro, mãe, essa é uma grande ideia. Com certeza aquelas mulheres fofoqueiras vão me levar ao próximo alvo! — afirmou, não se importando em colocar um falso entusiasmo na voz.
A mãe, no entanto, deu uma risada com ar de deboche.
— Óbvio que é uma ideia brilhante, minha filha, afinal fui eu quem pensou nisso! — Afirmou, enquanto admirava o próprio rosto através do pequeno espelho da sala.
— Muito bem, então, vou me arrumar para ir ao centro a tarde…
— Essa é a minha garota!
O guarda roupa de Jacqueline não era exatamente o que se podia chamar de diverso, até porque a maioria dos looks que usava durante os golpes eram “emprestados” de uma botique falida do bairro, cujos donos haviam feito a gentileza de deixar as mercadorias na sede abandonada. Jacliene havia ouvido boatos sobre eles terem se mudado para o Havaí, ou algo parecido. Sorte a deles. Normalmente, em um momento de desespero fashion como aquele, a loira iria correndo para a loja e escolhia algo que mais a chamasse a atenção, porém essa era a primeira missão de trabalho em que finalmente poderia se vestir como ela mesma, para dizer a verdade era até um pouco difícil, depois de tantos anos somente se arrumando com base nos dados que havia criado para uma falsa personagem. Contudo, ao mesmo tempo, era empolgante. 0
No fim, ela acabou optando por uma blusa roxa clara com manga rolê e uma calça jeans que apesar de surrada parecia estar na moda e a fazia se sentir como uma jovem comum, sem responsabilidades. Esse também foi o primeiro dia em anos onde ela se olhou no espelho quebrado do banheiro e abriu um sorriso, já que enfim conseguia se enxergar.
Empolgada, ela foi até a sala e parou em frente à sua mãe, que mais uma vez tinha os olhos grudados no celular, exibindo um sorrisinho fofo.
Jacqueline fez uma pose e esperou por alguns segundos, na esperança de que a mãe notasse sua presença, porém, como isso não aconteceu, ela perguntou com o tom mais alto que conseguiu:
— E então, como estou?
A mãe deu um suspiro incomodada por ter sido interrompida e, ao fitar a filha de cima a baixo sem demonstrar nenhuma emoção, respondeu:
— Nossa, simples demais! Credo, esse tom de roxo faz seus olhos verdes gritarem e não de um jeito bom, e esse cabelo partido ao meio, pelo amor de Deus! Entretanto, como tenho certeza de que escolheu esse look horrendo de mediano no intuito de passar despercebida, digo bom trabalho!
Jacqueline, como já estava acostumada, forçou um sorriso para não deixar transparecer o quanto aquelas palavras a haviam magoado, afinal, ela não havia escolhido o look com aquele propósito e sim para ter pelo menos um momento de autenticidade em sua vida, já que tudo que fazia era fingir e era muito exaustivo. Mas claro que sua mãe não daria a mínima para os seus sentimentos e nunca entenderia, por isso ela só concordou com a cabeça, como se tivesse ficado feliz com a migalha de atenção, o que geralmente era o caso.
— Agora pode ir e lembre-se, não gaste muito, faça o básico!
Jacqueline concordou antes de fechar a aporta e caminhar até o ponto de ônibus, rumo ao centro da cidade
Depois de passar por inúmeros salões vazios e dizer que só estava fazendo uma pesquisa, Jacqueline finalmente encontrou um onde haviam várias mulheres com a pinta de ricas, fazendo as unhas e rindo como se não houvesse amanhã. Devia ser muito bom poder relaxar assim, sem se preocupar com as contas no dia seguinte, sabendo que tudo estava resolvido.
— Posso ajudar? — Uma simpática funcionária, com sorriso largo e cabelos lisos pretos indagou, interrompendo a observação da jovem.
— Ah, oi. Claro, eu gostaria de dar uma aparada no meu cabelo agora, será que seria possível? Estou vendo que estão lotados…
— Geralmente, não temos nenhuma vaga, no entanto, minha cliente acabou de desmarcar e estou com o horário livre. É seu dia de sorte! — exclamou.
— Ótimo, muito obrigada!
— Por favor, pode me acompanhar!
A claridade e o alto astral do local eram contagiantes. Por um momento, a garota esqueceu que estava ali a trabalho e aproveitou. As mulheres sentadas, que conversavam com suas cabeleireiras e manicures, pareciam realmente felizes, o que não era difícil quando sua casa era gigante e você não precisava passar os dias enganando os outros. Por um momento, Jacqueline realmente sentiu que aquela alegria era genuína, ao contrário do que sua mãe sempre dizia: “Filha, essas mulheres ricas, geralmente amantes ou ex mulheres dos nossos alvos e que geralmente são os motivos para eles estarem vulneráveis, só fingem alegria, isso é tudo pose. Lembre-se que elas não são melhores do que a gente, porque, no fim, quem vai conseguir uma parte do dinheiro que sempre almejam somos nós.”
Sua mãe estava certa, essas mulheres não estão realmente felizes. Ela estava ali em uma missão para encontrar o próximo alvo, não podia se distrair com futilidades.
A mulher a guiou até uma cadeira que girava — Jacqueline achava que só existiam em escritórios dos poderosos que enganavam — e, à sua frente, o espelho enorme com o quádruplo do tamanho dos de sua casa quase a fez chorar.
— Seja bem vinda! Pode se sentar!
Jacqueline olhou para a cabeleireira, confusa.
— Espera, eu me sentar aqui?
A trabalhadora do local deu uma risada.
— Claro! Como acha que eu vou mexer no seu cabelo? Espera, é a sua primeira vez em um salão? — indagou, sem acreditar.
Jacqueline, com as bochechas queimando, fez que sim com a cabeça. Como nos golpes sempre usava peruca, sua mãe achava uma perda de tempo e dinheiro levá-la a um salão de beleza.
— Como se chama?
— Jacqueline! — Ouvir seu nome verdadeiro em voz alta em um lugar que não era sua própria casa era estranho e maravilhoso ao mesmo tempo
— Muito prazer, Jacqueline! Eu sou a Izzy, cabeleireira profissional! Pode ter certeza de que vou fazer o que estiver ao meu alcance para que sua experiência seja a melhor possível. Agora, por favor.
A garota entendeu o recado e se sentou na cadeira, tentando não girar como uma criança tola, enquanto Izzy mexia em seus fios, hipnotizada.
— Tem algo errado com o meu cabelo, não é? Pode falar!
Izzy soltou uma leve risada.
— De maneira alguma. Bom, ele realmente está um pouco mal cuidado, mas tenho certeza de que podemos dar um jeito. Para dizer a verdade, ele é lindo!
O comentário inédito fez um sorriso dessa vez surgir no rosto da jovem. Como era bom receber um elogio para variar. Seria um sonho poder voltar ali sempre para ter seus cabelos cuidados e… o que ela estava pensando? Precisava manter o foco! Assim sendo, começou a prestar atenção na conversa da mulher que estava fazendo as unhas do seu lado. No início, eram só bobagens sobre o carro de última geração que ganharia do marido, ou como como a filha havia vencido um concurso de modelo internacional na Europa, tudo inútil. Mas quando Jaqueline já estava perdendo as esperanças, algo interessante surgiu:
— Menina, você ficou sabendo do filho do Hartford?
— Pois é, pobre Nate. O pai está precisando de um herdeiro verdadeiro para tomar conta daquele império em forma de indústria farmacêutica — respondeu a manicure, sem desviar a atenção das cutículas da madame
— O menino deve estar tão desesperado que seria capaz de casar com qualquer uma à sua frente, o que não seria mau negócio com fortuna da farmacêutica Hartford! Ah se eu já não fosse tão bem casada e minha filha estivesse noiva de um piloto italiano famoso, eu não perderia essa chance.
Foi aí que uma ideia maluca surgiu na cabeça de Jacqueline, se ela se casasse com um herdeiro rico, nunca mais teria que dar golpes, fingir ser alguém que não era ou correr riscos para conseguir migalhas que sua mãe gastaria com procedimentos! Seria perfeito.
Ainda com o cabelo molhado, ela pediu desculpas a Izzy e foi correndo para casa. No caminho mesmo, procurou no google o nome de sua futura liberdade.


Continua...



Nota da autora: Sem nota.




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