O lugar que ocupam

Fanfic Finalizada

Capítulo Único

only if you knew how much i liked you


Ele a está olhando. De novo.
O motivo pelo qual não conseguia tirar os olhos dela, daquela vez, eram os eventos da última sexta, que, apesar de terem acontecido há três dias, fazia três dias que não paravam de bater nas paredes de sua cabeça, o fazendo ansiar ainda mais por café, nicotina e explicações.
Ele já passara longos períodos de tempo a encarando antes, mas então eles ainda não eram nada. Não que fossem algo agora, depois daquela sexta, mas já eram alguma coisa maior que o nada de antes. Ou assim ele preferia pensar.
Não era justo que não fossem nada agora que a realização de que esteve tão próximo, agora que a simples possibilidade de beijá-la havia se tornado real e lhe tirado várias noites de sono.
O titereiro controlando cada ser humano lá de cima, quem quer que fosse, era um sacana.
Ele não teria pensado isso na sexta. Na sexta as coisas correram tanto a seu favor que, caso o parecer tivesse lhe ocorrido antes, seria o exato oposto do que era agora. Na sexta o titereiro manipulou a ela e a si de maneira perfeita, desde o momento em que abriram os olhos ao acordar até os fecharem para dormir. Cada decisão foi conduzida de modo que a noite ocorresse da exata forma em que ocorreu. E refletindo sobre, ele pensava que parecia até magia.
Não acreditava em magia, astrologia ou destino, entretanto, depositando suas crenças nas coincidências cotidianas da vida. Era mais saudável aquela linha de raciocínio que escolhera seguir. Só que há muitos dias - muitos dias antes da última sexta-feira -, seus pensamentos tomaram vontade própria, cogitando magia, astrologia e destino pra justificar a forma com que ela se inseriu em sua vida.
Isso já fazia três meses.
Há três meses ela fora a nova designer do jornal em que ele trabalhava havia três anos como revisor. Chegou absurdamente segura de si com um piercing no nariz, tatuagens em ambos os braços, língua solta e sotaque, especialmente para trabalhar no mesmo setor que ele. Naquele primeiro dia há três meses, quando olhou pela primeira vez pra ela, de longe, pensou que aquela parceria seria um desastre. Ela o odiaria por inteiro: a sua objetividade, o cheiro de cigarro que não saía mais de suas camisas, sua irritação toda vez que encontrava uma crase aplicada incorretamente, o fato de ser extremamente metódico na organização de sua mesa de trabalho e vida, sua ojeriza a redes sociais e cachorros.
Mas, apesar das características que ele próprio via como problemáticas, de certa forma, ela gostou dele de cara, e ele percebeu nos olhos dela, quando descobriu qual nome tinha e lhe contou o seu, apertando sua mão. Lembrava-se que ela dissera achar seu nome lindo, e que nem por um momento lhe passou pela cabeça que seu comentário poderia ser apenas por educação.
Aconteceu que ela também fumava, também mantinha a mesa de trabalho mega organizada, preferia gatos a cachorros, estava passando por um detox do instagram e não tinha paciência pra filmes franceses porque eles eram lentos demais. E todas essas informações ele descobriu porque passou a conversar com ela durante quase todo o dia, passou a acompanhá-la na área de fumantes durante os happy hours às sextas, passou a levar café pra ela quando ia buscar para si próprio durante o expediente e passou a observá-la de longe.
De longe e com as outras pessoas ela era a mesma que era de perto com ele; não havia indício maior, para si, de que o gostar era recíproco.
Contudo, dentro daqueles três meses ele não sabia precisar quando o gostar mudou de natureza. Tentou buscar na mente algum momento que pudesse encabeçar aquilo, mas não conseguiu. Apenas viu-se ansioso por sua presença, preocupado com seu bem estar, lembrando dela nos momentos mais aleatórios e sentindo sua falta, assim, de repente, de forma que aquilo só poderia ser magia, astrologia ou destino.
E ele não sabia lidar com aquela novidade, com aquela vontade de tomar doses dela como se fosse uma droga, até ter uma overdose e morrer chapado e feliz. Esforçou-se para não agir de maneira estranha, não parecer desconfortável ou deslumbrado demais, não a tratar de uma forma nitidamente especial. E vinha sendo bem sucedido em seu plano de abafar as coisas que seu peito queria gritar.
Até aquela sexta três dias atrás.
De início aquela sexta não lhe pareceu ter nada de especial em relação às outras. Era esse o principal motivo pelo qual contemplava a configuração surreal das coisas, a neblina que posicionou milimetricamente todos os agentes responsáveis pelo encerramento da noite, a sutileza em que tudo foi se sucedendo de modo que nenhum dos dois se deu conta até que tudo aconteceu.
Os dois não estavam a fim de ir para o sagrado happy hour naquela sexta. Ele porque estava cansado do fluxo de trabalho absurdo daquela semana, e ela porque tinha um compromisso familiar no sábado de manhã, e estava convencendo a si mesma de que deveria dormir cedo. Mas então ambos foram convencidos pela massa proletária da redação de que eles mereciam um bom encerramento para aquela semana tão pesada, e que seria apenas uma cervejinha no novo snooker bar a algumas ruas do prédio comercial sede da redação.
Era fato que eles mereciam um bom encerramento para aquela semana além do recibo do ponto eletrônico entregue pelo relógio e um “até segunda!” do segurança na portaria. E claro que não foi apenas uma cervejinha no novo snooker bar quase vizinho ao prédio.
Passava de uma da manhã de sábado quando ele decidiu que já era hora de pedir a saideira, chamar um uber e ir pra casa. Lembrava-se com clareza de dar risada da reclamação coletiva, de acenar perante a afirmação “jovem demais pra ir embora antes do bar fechar!” e de levar sua comanda até o caixa.
E então ela apareceu do seu lado, perguntando se ele se importava em dividir a corrida porque ela não queria ir embora sozinha tão tarde. “Claro que não!” ele respondeu, já alterando o trajeto no aplicativo para incluir o endereço dela, que era um pouquinho fora de mão, mas não havia problema nenhum. Aquele era seu encerramento de semana perfeito. Como dizer que aquilo era coincidência e não magia, astrologia ou destino?
Depois disso, pelo menos em sua memória, as coisas começaram a ficar um pouco embaçadas, e ele não soube precisar com certeza como os acontecimentos decaíram para o desfecho. Tentou diversas vezes, repassando tudo como uma fita cassete rebobinando, mas existia um vácuo entre eles entrarem no HB20 e o momento em que os olhos dela estavam fixos nos dele, brilhando com as luzes dos postes ao longo das ruas.
Não conseguia lembrar o que disse, se foi algo engraçado ou político ou político e engraçado, e também sabia que não estava bêbado a ponto de esquecer quinze minutos de sua vida ao lado dela. Mas entrava no carro e de repente via-se completamente relaxado e em silêncio com a cabeça apoiada no banco e virada para a esquerda, onde ela estava, tão relaxada quanto ele, o carro há três minutos de chegar à casa dela.
E tudo aconteceu dentro daqueles três minutos.
Três minutos se tornaram um infinito particular e o carro se movendo a setenta quilômetros por hora os envolveu numa cápsula de privacidade e magnetismo. Dentro daqueles três minutos ele pensou se o que estava sentindo era real, se o que parecia estar se desenrolando perante seus olhos era recíproco, se deveria se aproximar mais ou a assustaria, se não existia a possibilidade de estar ficando louco.
As mãos dos dois apoiadas no assento próximas uma da outra funcionaram como um termômetro pra ele. Veria a temperatura subir ou descer se tocasse nela? Resolveu não arriscar, mantendo a mão estática. Quando o motorista virou numa esquina, seu corpo involuntariamente inclinou-se para a esquerda e eles ficaram próximos de maneira nunca antes intencionada. Ele não conseguiu evitar olhar pros lábios dela, os quais tentava ignorar desde que se percebeu apaixonado. No escuro, não saberia dizer se ela notou onde sua atenção se encontrava.
E então a voz do motorista invadiu seus ouvidos e quebrou a bolha em que estavam inseridos. Ela sorriu, agradeceu, se despediu e saiu do carro, levando a calmaria que o envolveu naqueles três minutos, deixando-o completamente consciente da bagunça que fizera de si, a ponto de que quando chegou à casa, quatro quilômetros depois, e mesmo com o cansaço do dia absurdo de trabalho e as cervejas que anestesiaram um pouco, mas não completamente, ele não conseguiu dormir.
Também no sábado ele não conseguiu dormir. E no domingo, seu corpo cansado simplesmente resolveu desligar suas funções para recarregar as baterias no meio do dia, mas seu cérebro permaneceu operante e ele sonhou com diferentes versões do que poderia ter sido aquilo que aconteceu no carro se eles tivessem cinco minutos ao invés de três.
E então era segunda. E ele a estava olhando do outro lado da redação.
E ela caminha em sua direção.

as she walks by what a sight for sore eyes


Sua mente percebe que é em sua direção que ela caminha e demora alguns segundos para passar a informação para o corpo, a fim de olhar para absolutamente qualquer outro lugar, resguardando a própria dignidade. Esse delay o desorganiza o suficiente para aflorar seu lado estabanado e ele esbarra no copo plástico com café, entornando pela mesa, molhando os arquivos quase prontos para envio e sujando sua calça jeans.
Ele olha para a bagunça ao redor e suspira. Seu cérebro prejudicado pela falta de sono foi completamente efetivo em tirar sua atenção da figura dela que continuava a caminhar em sua direção.
— Eita, precisa de ajuda? — Ela pergunta ao chegar, solícita, educada, perfeita.
— Pega papel pra mim, por favor?
Levanta da cadeira erguendo as folhas pingando café em cima da poça de café derramado sobre sua mesa. Era de suas mãos pro lixo, não havia salvação, precisaria imprimir tudo novamente. A calça jeans ao menos a máquina de lavar resolveria a mancha no fim do dia - embora ainda fosse duas da tarde e ele só batesse seu ponto às seis.
Ela volta e o ajuda a tirar o excesso de café da mesa. Diz que chamou a moça da limpeza pra passar um pano molhado e tirar o açúcar para que ela não ficasse grudenta. Ele joga as folhas na lixeira e vai em direção ao banheiro tentar dar uma disfarçada na mancha em sua calça. Não dá muito certo, e o algodão que compõe o material do jeans absorve e espalha por sua coxa a água que usou para neutralizar a cor de café.
Ela o aguarda do lado de fora da porta do banheiro, um suéter cinza nas mãos.
— Imaginei que isso fosse acontecer. — Sorri. — Parece que você fez xixi na calça. — Ele sorri também, porque é verdade. — Deixa eu…
A respiração dele fica presa na garganta quando ela se aproxima.
As mãos são ágeis e desenrolam as mangas do suéter, passando ao redor do corpo dele, como que o abraçando, só para voltar para frente e abraçá-lo de verdade, só que com o suéter, amarrando-o em seu quadril como um adolescente faria.
Tudo não demorou mais do que dez segundos, mas na cabeça dele eles estavam de volta aos três minutos infinitos vividos no carro na madrugada de sábado. Naqueles poucos segundos ele percebe detalhes que a escuridão do carro não o deixou perceber: a curvatura natural dos cílios dela, o perfume de flor de laranjeira dando seu último adeus, a entortadinha sutil que o nariz dela dá logo abaixo da ponte, a proximidade maior do que a que tiveram no carro e sua completa incapacidade de tentar fazer qualquer coisa além de existir ao redor dela, exatamente como naquela madrugada de sábado.
— Obrigado — ele diz, estupidamente estático.
— Imagina, depois você me devolve. — Ele acha que ela vai embora, mas ela continua o olhando e sorrindo, parecendo hesitante. — Escuta, eu queria falar com você sobre sexta…
Sábado, ele quase a corrige, mas não estragaria a oportunidade que o titereiro estava lhe dando de entender pelo que passaram e o que sentiram e o que seria deles a partir de então.
— Pode falar. — Tenta não parecer ansioso, mas seu coração bate acelerado dentro da caixa torácica. Ela o olha no olho e começa a falar.
— Eu não sei se tô ficando doida e percebi coisas que na verdade não estavam lá, e se for isso, você me perdoa que eu vou sair daqui sem saber onde enfiar minha cara... — não, você não tá ficando doida! ele pensa, nervoso, sem nada dizer. — Mas percebi que algo ia rolar quando você me deixou em casa e vim dizer que eu também queria, — por um milésimo de segundo, o movimento de rotação da terra é interrompido — mas eu namoro.
Um apito agudo e sonoro começa a soar em seus ouvidos no momento em que seu cérebro processa a informação que acabou de receber. Ele sabe que ela ainda está de pé na sua frente, olhando no seu olho, falando alguma coisa que seus ouvidos não conseguem escutar por conta do apito agudo. Aos poucos ele vai diminuindo, diminuindo, diminuindo até acabar e ele ouvir a voz dela novamente, gritando sinceridade.
— … e eu não queria que nada ficasse estranho entre a gente.
— Tá tudo bem, — ele consegue falar, apesar de não ter certeza do tom e firmeza empregados em sua voz, e de tudo não estar nada bem.
— Mesmo? — Ela sorri e ele vê alívio nos olhos dela.
— Mesmo.
Com o suéter dela abraçando seu quadril, ele recebe o abraço dela e retribui meio que no automático. Então ela o deixa em frente à porta do banheiro em muitos níveis mais desnorteado do que quando ele chegou lá com a mancha do café marrom viva na calça.
Titereiro filho da puta.

why would you ever kiss me?


Na terça ela lhe deu uma caneca de porcelana de presente, cinza como o suéter dela que, naquele momento, estava em sua lavanderia. Disse que pensou no presente porque, se ele era desastrado como ela, copos de plástico não eram a melhor pedida - e as canecas tinham o bônus de serem mais sustentáveis ao ambiente.
Na quarta ele lhe devolveu o suéter, lavado, dobrado e com cheiro de amaciante, agradecendo novamente pelo galho quebrado na segunda.
Na quinta a reunião de pauta durou a tarde inteira e ela ficou trancada na sala de reuniões definindo o layout das edições da semana.
Na sexta ele negou e sustentou a negativa ao happy hour sagrado no mesmo snooker bar da semana anterior. Ela pareceu chateada e disse que sua namorada finalmente aceitara encontrá-los no bar e justo naquele dia ele estava dizendo que não iria. Ele sorriu o mais sincero que conseguiu e disse que não deixaria de ir na próxima.
A verdade era que ele precisava dormir.
Depois que o titereiro lhe deu com a realidade na cara múltiplas vezes na segunda-feira, as noites insones se estenderam pelo resto da semana. Cada hora de sono contínua que conseguia ter era um progresso, mas se a hora de sono fosse despendida em sonhos com ela, voltava três casas naquele jogo de tabuleiro que jogava consigo mesmo.
Mas naquela sexta ele mais uma vez não conseguiria dormir porque a informação nova que recebeu mudava todo o panorama.
Ela não tinha um namorado, como ele passara a semana toda pensando; ela tinha uma namorada, e com aquilo ele não poderia competir.
Não havia nada de especial em si que a fizesse preterir ele em desfavor da namorada, porque o fato de esta ser mulher já a colocava muitos pontos de vantagem acima dele naquela competição. Homens são complicados, em geral possuem mais ônus que bônus, têm comportamentos tóxicos até inconscientemente e detém inerentes a si uma cultura machista das quais alguns poucos são capazes de se livrar. Ele não conseguiria fazer uma avaliação neutra de si pra dizer com certeza que não possuía nenhuma ressalva, para que ela pudesse ao menos considerá-lo.
Ele com certeza tinha, já que ela hesitou apenas beijá-lo, então não haveriam argumentos suficientes para fazê-la enxergar que o que ele sentia era real e merecia um voto de confiança, uma oportunidade.

but i watch your eyes as she walks by


Ele a está olhando. De novo.
Era sábado novamente e ele se viu obrigado a ir ao shopping comprar um novo HD externo pois esquecera o seu no trabalho e não confiava na nuvem. Levara pendências para casa durante o fim de semana e seu notebook meia boca não daria conta do peso dos arquivos que precisaria levar prontos.
Então pegou o carro, dirigiu os seis quilômetros que separavam a sua casa do shopping que possuía a maior loja de itens de escritório da cidade, estacionou numa vaga péssima porque era sábado em dezembro e o shopping estava lotado, caminhou metade do estacionamento até chegar na entrada mais próxima, resolveu que merecia um sorvete.
Estava a meio caminho da loja, a meio caminho do fim de sua casquinha de limão, quando a viu. As viu, na verdade, na esquina da loja onde precisava entrar, seguindo reto em direção à praça de alimentação.
Avançavam de mãos dadas, ela usando a saia verde favorita e a namorada, o suéter cinza que cinco dias antes estivera ao redor dos seus quadris, mas que agora já estava lavado e com o cheiro de outra pessoa e não de seu amaciante favorito.
Ele passou reto pela loja e resolveu segui-las.
Foi magia, astrologia ou o destino que fizeram com que nós três estivéssemos no mesmo lugar no mesmo intervalo de tempo, ele pensa, porque só pode ser uma dessas três coisas.
Esquece do sorvete, que começa a derreter e melar sua mão, como o café teria feito na mesa se ela não houvesse pensado em chamar a moça da limpeza na segunda-feira, cujos acontecimentos gerais estragaram o restante de sua semana. E a mulher de mãos dadas com ela era justamente o motivo, então ele se sente em total direito de saber mais sobre ela.
Claro que sua perseguição amadora dentro de um shopping não lhe daria material suficiente para saber com quem estava tacitamente competindo - ou pensando em competir. Evita pensar que estaria em desvantagem em qualquer espécie de competição. Afasta de si a concepção de que nem ao menos existe uma competição.
Uma compreensão ocorre entre as duas quanto à mesa perfeita e ele as perde de vista momentaneamente, tentando localizar uma que lhe desse visão ampla delas, mas não de si, pra tentar ser discreto sentado estupidamente chupando um sorvete de limão. Se não estivesse encarando aquilo com a seriedade que a situação lhe pedia, poderia chorar de rir do quão ridículo provavelmente estava.
Mal elas sentam, a outra levanta-se, indo em direção ao KFC localizado logo atrás da mesa que escolheram, enquanto ela pega o celular. Pensa em ir até lá, fingir que acabara de vê-la por acaso sentada sozinha na praça de alimentação, mas repensa; ia até lá pra quê? Pequenas humilhações que ele pode evitar.
Como costuma fazer quando estão na redação, fica de longe olhando-a, analisando-a. Se pergunta se o sorriso em seus lábios é fruto de algum meme no twitter, que há não muito tempo ela passou a usar em substituição ao instagram. “Uma substituição inofensiva” ela justificou, e ele não teve como contestar porque não usava nenhum dos dois.
Da distância que escolheu manter, não consegue enxergar os detalhes que a compõem, mas saber que todos eles estão lá apenas o faz querer ignorar a sensatez e se aproximar. Que mal haveria de fazer, se o fizesse? Ela pode me pedir pra esperar e conhecer a namorada, ele responde mentalmente a própria pergunta, enquanto mastiga o final de sua casquinha de sorvete de limão.
E ele ainda não está psicologicamente pronto pra conhecer aquela da qual ele não sabe nada e, por não saber nada, pode imaginar que é uma péssima pessoa. Que é uma péssima pessoa que não a merece e nem sabe valorizá-la, apesar da vantagem que possui em ser mulher. Como se ela ser ruim automaticamente o qualifique como bom.
De repente ela sorri um sorriso diferente, um sorriso cheio de todos os dentes de quem já usou aparelho, um sorriso que queria dizer algo que ele, da distância em que estava, jamais descobriria. Ela ergue a cabeça e olha pra trás, encontrando com o olhar a outra na fila do KFC, também com o celular na mão e um sorriso parecido nos lábios, mas ao mesmo tempo diferente.
Acontecia ali, sob o olhar de todos os presentes, que diferente dele não prestam a menor atenção, uma conexão que ele poucas vezes vira na vida. Um entendimento mútuo sem palavras, uma cumplicidade, a explanação do sentimento. Ele percebe refletido nos olhares que ela pode até ter tido vontade de beijá-lo sete dias atrás, sob efeito de muitos chopps, cigarros e da proximidade, mas ele jamais teria chance longe daquele contexto.
Ela gosta da namorada, provavelmente a ama, e elas são lindas individualmente e ainda mais lindas juntas porque o sentimento está ali, palpável, e intensifica toda a beleza.
Ele gostaria que existisse alguma possibilidade de ocupar o lugar daquela linda estranha, que tão impiedosamente mina suas esperanças sem saber que o faz, mas sabe que não há. Não há espaço pra que ele ocupe qualquer lugar próximo ao que gostaria na vida dela. Lhe resta apenas decidir se vai saber lidar com o lugar que tem.
Limpando as mãos no guardanapo ele levanta, fazendo uma anotação mental de ligar para o plano na segunda-feira e marcar terapia.

she’s got you mesmerized while i die




Fim



Nota da autora: Sem nota.
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