Olympus

Última atualização: 05/02/2024

Capítulo 16

agradeceu o garçom quando ele colocou os pratos sobre a mesa do restaurante. Medea nem chegou a perceber que seu almoço chegara, estava avoada demais ao prestar atenção nas pessoas que passavam nas ruas escuras do Submundo.
— Medea? — franziu o cenho e desviou o seu olhar para onde a ninfa fitava, mas só havia uma loja fechada do outro lado da rua. — Está tudo bem? Você está estranha.
— Estranha?
— Ontem você jogou conversa fiada fora enquanto andávamos sem rumo pelo Olimpo. E, nas suas próprias palavras, você acha que todas pessoas que passeiam por turismo têm lugares pré-estabelecidos no Tártaro.
— Renovar os ares é sempre bom — Medea revirou os olhos e voltou a encarar a deusa.
— E hoje você está meio triste. Não teve respostas afiadas, não teve discussão com a recepcionista, não teve nenhuma crítica à Aura. O que está acontecendo?
— Eu não sei — a ninfa mentiu.
Não queria ser a primeira a contar para que iria se casar. Ainda mais quando a deusa não permitiria que isso acontecesse por sua causa. Na verdade, estava confusa com toda aquela situação. Se Héracles escolheu Hebe e tem esse “direito” — arcaico demais para seu gosto, inclusive —, mas está noivo dela, o que acontece com Hebe? O que acontece com Héracles? O que acontece com ? Mas, principalmente, o que acontece com ? Precisava encontrar Hermes o mais rápido possível para descobrir o que tinha acontecido dentro daquele escritório depois que ele foi chamado por Psique.
— Isso é... — estreitou os olhos para ter certeza do que via. — Isso é uma criança? No colo de Hermes?
— Hermes? — Medea imediatamente focou do outro lado da rua, onde algumas pessoas andavam, e avistou o deus.
— Com Hécate? De mãos dadas?
— O que tártaros está acontecendo esses dias? A caixa de Pandora foi aberta no Submundo por acaso?
Quando Hermes se deparou com uma sorridente acenando para eles, sua primeira reação foi arregalar os olhos e tentar esconder sua face atrás de Dionísio, que parecia distraído demais com sua garrafa de vinho lacrada.
— Eu lhe disse que aquele velho alcoólatra iria fazer mal para ele — Hécate suspirou. — Mas você insistiu em... Hermes? Por que você está tentando se esconder atrás do Nísio?
— Porque Medea e estão do outro lado da rua, nos olhando.
— E você acha que isso vai fazer alguma diferença? — a deusa das bruxas franziu o cenho, cética. — Elas já viram a criança, Hermes.
— Eu tenho esperanças, ok?
Hécate respirou fundo e puxou o mensageiro pela mão, fazendo-os atravessar a rua para cumprimentar e Medea. Hermes sabia que não teria o que contrariar naquela situação toda, então apenas aceitou o destino.
— Vejo que estão aproveitando a verdadeira arte culinária do Submundo — Hécate deu uma piscadinha para a deusa da primavera.
— Vocês realmente têm os melhores restaurantes, devo admitir — sorriu, gentil.
— Isso é uma garrafa de vinho na mão de uma criança? — Medea ergueu a sobrancelha e Hermes não conseguiu não sorrir sem graça.
— Oh, que rude da minha parte. Esse é Dionísio. — Hécate colocou o dedo indicador na ponta do nariz dele. — Ele é uma prole de Zeus.
— Uma prole de Zeus com... — a deusa da primavera sorriu, constrangida. — Você?
— Não! — Hécate quase teve uma ânsia de vômito.
— Então onde está a mãe dele? — perguntou.
— Não sabemos. — Hermes inclinou a cabeça. — A única coisa que Zeus me disse foi para cuidar dele.
— Vocês estão cuidando de um filho adulterino de Zeus por trás das costas de Hera? — Medea perguntou em um fio de voz. — Ela vai matar vocês se souber disso! Ela quase me matou por acidentalmente descobrir um objeto inanimado!
— Não temos muitas escolhas. — Hécate tirou os óculos escuros. — Era desrespeitar as ordens do deus dos deuses ou esconder a prole de Hera.
— Espere um pouco — a ninfa estreitou os olhos, desconfiada. — Hermes acabou de dizer que Zeus pediu para ele cuidar disso. — Medea apontou para Dionísio. — Não vocês, ele. E, se Hécate está ajudando você com isso... Então quer dizer que vocês... ESTÃO DORMINDO JUNTOS!
— Shhhh! Mais discrição, por favor. — Hermes suou frio e olhou para os lados freneticamente.
— Se você quiser manter o seu trabalho, claro — Hécate acrescentou, sorrido.
Durante alguns segundos de leve incômodo, a deusa da primavera sentiu um calafrio descer sua espinha. Ainda que a frase da outra deusa tivesse um subtom agressivo, ela parecia calma demais ao se pronunciar. Aquela chantagem pareceu extremamente manipuladora para algo tão... pessoal.
— É por isso que você parou de sair com a Celena — concluiu, esvaindo outros pensamentos de sua cabeça. — Eu achei que as mãos dadas de você e Hécate eram tipo aquela fase do começo de lua de mel, sabe? Mas isso já vem acontecendo há um bom tempo, não? Alguém mais sabe sobre vocês?
— Não. E eu vou pedir para que isso não saia daqui — Hécate pediu.
— É por isso que você deu um pé na bunda do Hélio. Urgh, levemente maléfico. — Medea ergueu as sobrancelhas. — Amei.
— Eu sei que não é da minha conta — apontou para Dionísio —, mas não seria mais seguro tirar a garrafa de vidro da mão dele?
— Você está sendo muito boazinha — a ninfa suspirou, sarcástica. — Isso é uma passagem daquele livro sobre o que não fazer com seu bebê. Guia para pais de primeira viagem, versão do Tártaro, quinta edição, dicas aperfeiçoadas.
— Por que diabos você sabe disso? — a deusa da primavera franziu o cenho.
— Eu precisava fazer algo na Terra enquanto você gastava meu tempo crescendo.
— Oh, ele ama as garrafas de vinho dele — Hécate sorriu, entusiasmada, como uma verdadeira mãe.
— Garrafas? — piscou os olhos, confusa. — No plural? Garrafas no plural?
— Ele acabou de aprender o processo de esmagamento das uvas — Hermes falou com orgulho e seus olhos brilhavam. — O próximo passo é aprender a prensagem para fazer vinho branco.
— Mas ele não tem tipo... três anos? — riu sem graça.
— Ele tem dois meses e meio — Hécate franziu o cenho e Medea quase engasgou com seu Dry Martini.
— Essa criança tem dois meses e meio? — a ninfa perguntou, rouca, ainda tentando respirar normalmente. — Como isso é possível?
— Ele está crescendo mais rápido que o esperado — o mensageiro deu de ombros. — Afinal, ele é um semideus.
— Como Eros e ainda não sabem sobre vocês dois? — Medea ergueu a sobrancelha. Não tinha como Hermes conseguir manter um segredo das pessoas com as quais ele andava grudado o tempo todo. — Eros com certeza já teria nos contado sem querer.
— Porque ele está respeitando o que ela quer — sorriu, terna, e apoiou os cotovelos na mesa. — Porque Hécate pediu para que ele não contasse, porque ela tem medo que contar cedo demais vai estragar algo que poderia dar super certo.
Hécate arregalou os olhos, impressionada, ainda que transmitisse a mesma seriedade de sempre. O fato de a deusa ter acertado com precisão, por mais que constatasse algo que já não pudesse ser escondido, fez a deusa das bruxas se sentir estranhamente invadida. Como ela havia a lido tão facilmente? Estava óbvio? Se sabia ler com facilidade os outros, aquilo com certeza era uma dádiva divina.
— Olha, eu concordo que seja melhor manter isso mais privado. A mídia iria cair em cima de vocês e isso pode gerar certa tensão. — fez uma careta e deu um gole em seu vinho.
— Todo esse papo de amor está me deixando enjoada. — Medea empurrou o prato para longe de si e recostou-se na cadeira. Realmente não tinha paciência para qualquer inclinação à felicidade genuína e purpurina alheia.


Psique desceu as escadas demorando cinco segundos em cada degrau. Ela não conseguia funcionar de manhã antes de tomar seu cereal com leite. Sentia o corpo pesado, independentemente de ter dormido duas ou doze horas. Aquela luz dourada típica do Olimpo também não a ajudava. Tentava fazer tudo de olhos fechados até chegar à cozinha. Em um cenário normal, tudo correria bem, mas aquela mania a fez encontrar uma sorridente a vinte centímetros de si, sentada no balcão da cozinha enquanto segurava o jornal com uma mão e tomava chá com a outra.
— PELO AMOR DE ZEUS! — Psique colocou a mão no peito, sentindo que seu coração iria sair pela garganta a qualquer instante. — Por Héstia, o que você está fazendo acordada tão cedo em pleno sábado?
— Hermes ficou batendo na porta hoje mais cedo para entregar a correspondência.
— Urgh, eu já pedi um milhão de vezes para ele só entrar e deixar a correspondência na ilha da cozinha, mas ele insiste em bater na porta, porque ele quer te ver — Psique falava enquanto abria a geladeira para pegar o leite. — Mas ele não percebe que você sempre volta cansada na sexta e acaba dormindo até tarde no sábado.
— Eu achei fofo.
— O que você não acha fofo? — Psique perguntou, ranzinza.
— O seu humor de manhã — respondeu, falsamente simpática, e riu da expressão irritada da amiga, que nem se deu ao trabalho de responder. — Enfim, acabei pegando a correspondência e decidi abrir as que acumularam durante a semana. Aparentemente, temos um baile de celebração hoje à noite na mansão de Hera e de Zeus.
— Hm — Psique falou, distraída, enquanto comia seu cereal. — Ela e a Perséfone fazem esse baile de celebração aos deuses todo ano. É a maior festa que existe. O Olimpo, os mares, o Submundo e as ninfas e deuses da Terra são convidados. Tudo isso para Hera ressaltar o quanto os deuses são importantes e como nós devemos venerá-los.
— Intenso — ergueu as sobrancelhas e desviou o olhar para o jornal. — Recebemos várias revistas, umas bem interessantes. Teve até um catálogo sobre a escola de castidade de Héstia. As vagas vão abrir na próxima primavera. Tenho quase certeza de que esse envelope veio de Hera.
— Eu não duvidaria.
— Mas a minha revista favorita não é essa — sorriu, divertida, e ergueu a sobrancelha. — Eu prefiro verde oliva.
— O quê? — Psique balançou a cabeça, confusa.
— Verde oliva ou azul marinho, na verdade. Acho mais clássico.
— Clássico? Do que você está falando?
— Sim, mais clássico. Convites de casamentos ficam lindos com as letras nessas cores e fundo creme. Mas uma das revistas de noivado sugeriu a cor magenta terrosa na letra. Eu não achei ruim.
Psique instantaneamente arregalou os olhos e fitou , que a encarava de volta com um sorriso desafiador. A deusa, de modo tranquilo, deu um gole em seu chá e continuou a ler a matéria. Psique abriu e fechou a boca pelo menos cinco vezes em uma tentativa de dizer algo, mas as palavras simplesmente não saíam. O que poderia dizer? Ela engoliu em seco e fechou os lábios em uma linha, pensando se não deveria simplesmente fingir que nada disso aconteceu, porém voltou a falar sem desviar o olhar.
— Você planejava me contar?
— Claro.
— Por que você está se sentindo culpada? — A deusa deixou o jornal de lado e fitou seu relógio.
— Eu... Me desculpe.
— Psique, não seja boba — não conseguiu conter o sorriso alegre. — É óbvio que eu estou feliz por vocês!
— Eu sei que é algo repentino, mas...
— Bom, não é repentino — a deusa riu, divertida. — Quer dizer, você e Eros se conhecem há mil anos. Literalmente. E eu o vejo entrando escondido na casa à noite. E eu também ouço vocês... Enfim.
— Como você ficou sabendo do casamento? Ainda não enviamos o convite.
— E eu acho que deveriam fazer isso o quanto antes — fez uma careta. — Falta só uma semana. Mas, respondendo a sua pergunta, descobri com os mil diferentes modelos de convites que você escondeu nas gavetas da cozinha e com as revistas de noivado. Você precisa achar um lugar melhor para esconder as suas coisas, a cozinha é um lugar muito comunitário.
tinha razão — Psique cruzou os braços e balançou a cabeça em negação lentamente, ainda que sorrindo. — Você não é uma deusa da primavera qualquer.
— Eu realmente estou feliz por vocês! — a deusa da primavera pulou da bancada e deu um abraço em Psique, que sorriu, feliz. — Acho que vão ser felizes juntos!
— É bom ter alguém para falar sobre isso — ela soltou o ar do pulmão e sentiu um peso ir embora junto.
— Claro! — começou a andar até as escadas. — E parabéns pela gravidez também! Me diga uma data livre para organizarmos o seu chá de bebê. — Ela parou antes de pisar no primeiro degrau e virou-se para trás. — Mal posso esperar para virar tia! Tenho certeza de que esse bebê será muito amado. — A deusa estranhou a expressão de Psique, mas continuou a falar. — Eu ficaria aqui e comemoraria com você, mas combinei de me encontrar com Medea daqui a dez minutos e já estou atrasada. Podemos fazer um bolo à tarde ou sair para jantar antes do baile para comemorarmos, o que acha?
— Que gravidez? — Psique perguntou, confusa.
— Como assim que gravidez? — a deusa franziu o cenho e parou. — A sua.
— Do que você está falando? — Psique colocou as mãos na cintura. — Não estou grávida, não tem nenhum bebê.
— Claro que está — riu, mas logo voltou a ficar séria quando percebeu que Psique não estava brincando. — Psique, tem um bebê aí.
— Não tem um... Como você saberia?
— Eu não sei, eu só sei — passou a mão no cabelo.
Ela sentia a vida exalando do corpo de Psique. Era quase como se um imã a atraísse.


— Pelos deuses — Hera olhou dos pés à cabeça e fez uma careta de desgosto. — Deveria existir uma pré-seleção de vestidos. A gente trabalha tanto para fazer tudo ficar lindo e as deusas aparecem... — a rainha apontou para o vestido de e revirou os olhos dramaticamente — assim.
A deusa da primavera fitou Ártemis ao seu lado, que segurava o riso, e passou a mão sobre a saia. Até onde ela via, não havia nada de errado com seu vestido, estava pomposa como qualquer outra deusa. Hera havia deixado muito claro no convite do Baile Anual de Celebração dos Deuses que as deusas deveriam estar de acordo com a etiqueta, o que, nas palavras de Hera, significava vestidos pomposos, cujas saias rodam quando as pessoas dançam. E estava exatamente assim. A saia não era volumosa demais, apenas o suficiente para sustentar uma leve cauda que já a havia irritado umas quinze vezes enquanto andava. O tomara que caia de corte reto justo ao torço e decorado com linhas caóticas de diamantes eram graciosos e o tom azul bebê trazia certa afabilidade que apenas ressaltavam os modos gentis da deusa da primavera. Os cabelos meio presos de possuíam lírios brancos delicados e, embora ela estivesse um pouco nervosa, as mechas não estavam corais. Talvez, finalmente, estivesse aprendendo a controlar seus sentimentos no Olimpo.
Hera, ao seu lado, apenas terminou a contagem das deusas e voltou a andar para o começo da fila. e Ártemis entreolharam-se e sabiam muito bem o que a outra estava pensando. Nada que valesse a pena ser dito, no entanto.
A celebração dos deuses, de acordo com as regras arcaicas da rainha olimpiana, requeria uma abertura triunfal. Deusas desciam duas gigantescas escadarias até o salão principal, onde cada um dos deuses estaria à espera para dançarem. tinha quase certeza de que tropeçaria no terceiro degrau se não fosse pela fenda lateral em seu vestido.
— Aposto uma flecha de prata minha que Zeus vai lhe escolher para dançar e deixar Hera furiosa — Ártemis sorriu, desafiadora.
— Aposto meu mais novo pomo de ouro que Zeus vai escolher Hera e que Anteros vai lhe escolher.
— Anteros? De onde você tirou isso?
— Eu acho que ele tem uma queda por você — sorriu, divertida, e deu um passo para frente enquanto a fila andava.
— Você virou o novo Eros? — Ártemis ergueu uma sobrancelha. — Mas é uma pena se ele realmente tiver, não é à toa que ele trabalha com o amor não correspondido.
— Outch — a deusa da primavera colocou a mão sobre o peito.
— Eu sou devota à castidade.
— Desçam as escadas e fiquem na fila formada pelas deusas — Hera falou, séria, quando e Ártemis chegaram perto da porta. — Não tropecem, não riam, não falem, não acenem, não respirem. Sorriam, coluna reta, queixo erguido, ombros para trás, mão no corrimão.
— Você falou isso rápido demais, não entendi nada — Ártemis estreitou os olhos, confusa.
— Não deveríamos ter ensaiado isso antes também? — perguntou enquanto colocava uma mecha de cabelo atrás da orelha.
— Próximas! — Hera fez um gesto com as mãos para que as deusas saíssem pela porta e ignorou-as.
— Ela disse para não respirarmos? — a deusa da primavera arregalou os olhos para Ártemis.
Quando se colocou bem em frente a um dos lados da escada dupla, tudo o que desejou foi que um holofote muito claro a iluminasse para que ela não conseguisse enxergar nada, por mais que aquilo a fizesse o centro das atenções. O que encontrou, no entanto, foi um salão gigantesco ao pé da escada, com enormes pilastras esculpidas, música ao vivo com o que ela considerou ser uma orquestra de tantos musicistas e absolutamente todos os seres vivos existentes a encarando. Bom, encarando ela e Ártemis também, que descia a outra escada.
Não demorou muito para que os murmúrios tomassem conta do local quando ela começou a descer os degraus e tudo que queria fazer era revirar os olhos. Sabia que pelo menos uma foto sua estaria em alguma revista no dia seguinte. Ela culpava Hera por toda a extravagância desnecessária.
Quando chegou ao andar debaixo, percebeu que só havia uma única fila formada no espaço aberto no meio do salão e teve que apressar o passo quando Ártemis sussurrou para ela correr até seu lado.
— Parabéns, acho que você acaba de ser eleita a deusa mais bonita e graciosa do Olimpo.
— Do que você está falando, Ártemis? — franziu o cenho e fitou a deusa ao seu lado.
— Shhhh. Não podemos conversar.
— Mas você está falando — sussurrou com obviedade.
— Shhh!
A deusa da primavera apenas fez uma careta de confusão e voltou a olhar para as escadas. Nem tinha percebido que Deméter estava ao seu lado e que agora Afrodite e Hera desciam os degraus de maneira devagar, como se apreciassem cada breve segundo do momento. Uma onda de aplausos tomou conta do local e Afrodite sorriu, gentil, colocando a mão no peito em comoção e mandou alguns beijos para toda aquela multidão ansiosa. Uma melodia suave e calma começou a tocar ao fundo e finalmente percebeu o que acontecia. Os deuses paravam em frente à deusa com quem gostariam de dançar, a um metro de distância, até que uma outra fila se formasse.
— Se Héracles parar em frente à , sabemos que ele se casará com ela — Psique sussurrou para Medea, que tentava a todo custo pular para conseguir enxergar adiante. Haviam muitas pessoas naquele salão. — Mas, se ele parar em frente à Hebe, então estamos salvos.
— Héracles não é um deus — Medea retrucou.
— Pelos deuses, é verdade. Então esperaremos escolher.
nunca dança nesses eventos, você esqueceu?
— Droga — Psique respirou fundo e cruzou os braços. — Tínhamos que ter falado com Hermes para saber sobre esse bendito casamento.
— Eu só o encontrei uma vez depois daquele dia e digamos que não consegui abordá-lo como gostaria.
— O que você quer dizer com isso?
— Ele estava ocupado — Medea deu de ombros. — Com quem você acha que ele vai dançar?
— Hermes? Acho que ele vai escolher , já que eliminamos e Héracles.
— Eu acho que é mais provável que ele escolha Hécate.
— Isso é impossível — Psique riu, cética, porém, logo em seguida, Hermes se colocou bem em frente à deusa das bruxas e Psique ficou boquiaberta.
— O que você estava dizendo? — a ninfa sorriu, provocante. — E Eros? Com quem Eros vai dançar?
, eu diria, mas agora já não sei mais.
De uma em uma, cada posição foi preenchida. Como previsto, Zeus parou em frente à Hera, Poseidon em frente à Anfitrite, Ares em frente à Afrodite e assim por diante, até que Hipnos parasse em frente à Eufrosina e fosse a única deusa sem par. Àrtemis apenas franziu o cenho, achando aquilo muito estranho. Nem em um milhão de anos esperava que isso fosse acontecer. , por outro lado, suava frio. O único deus naquele salão que ainda sobrava era Hefesto e ela sabia muito bem que aquela experiência não seria nada agradável. Para sua surpresa, entretanto, apareceu de última hora, abotoando sua manga e passando a mão no cabelo logo em seguida, bagunçando-o. Não foi nem preciso fitar Hera para concluir que seus cabelos começaram a flutuar acima dos ombros, embora ela tentasse a todo custo se manter calma. parou em frente à e colocou as mãos para trás assim como todos os outros deuses. Inicialmente seu semblante era sério, mas quando seus olhos caíram sobre a deusa da primavera, o brilho em seu olhar foi inevitável. não poderia estar mais encantado. Perdera a conta de quantas vezes conseguira reformular sua definição de querer. Na verdade, ele sabia muito bem que ela tinha sido a única a conseguir dar uma definição do que era amar para ele. E, por mais que ele fosse eternamente grato por isso, aquela luz que ela exalava apenas o machucava naquela noite.
— Por que todos estão nos olhando? — engoliu em seco assim que as filas deram um passo para a frente.
— Porque estamos no meio do salão — respondeu, confuso, e segurou-a firmemente pela cintura com uma mão enquanto a outra segurava a dela.
— Não, não foi isso que eu quis dizer. Por que todos estão olhando para nós?
— Porque você está linda, abriu um pequeno, quase imperceptível, sorriso.
— Um elogio? — a deusa falou, falsamente surpresa. — Acho que você deve estar convivendo demais comigo. Ou talvez com Hermes.
— Não se acostume.
— Psique disse que você não viria — fitou-o nos olhos. — O que o fez mudar de ideia? Já estava morrendo de saudades de mim?
— Não se iluda, meu amor — ele riu com uma sobrancelha erguida. — Eu normalmente preferiria estar sentado com o meu whisky.
— Admito que eu preferiria isso também.
— Quer fazer isso depois daqui? — sugeriu enquanto analisava a multidão a sua volta.
— Posso trocar meu whisky por um dry martini?
— O que você preferir.
— Combinado.
— Por que você está nervosa? — franziu o cenho e encarou , preocupado.
— Como assim nervosa?
— Seu estômago está embrulhado e você está com uma leve náusea.
— Como você sabe disso? — a deusa arregalou os olhos.
— De novo, eu não sei, eu só... sei. Mas por que você está assim? Aconteceu alguma coisa? Quer parar de dançar?
— Não, não! Não se preocupe com isso. É só uma sensação ruim. Acontece quando eu acho que algo ruim está prestes a acontecer, mas acho que já vai passar.
— Isso se chama intuição, estreitou os olhos, pensativo. Aquilo não poderia ser um bom sinal. — Se você precisar de qualquer coisa e eu não estiver perto, dê três batidas no chão. Lembre-se que são três, não duas. Duas batidas chamam Hades.
— Eu só preciso dar três batidinhas no chão para lhe chamar? — a deusa indagou, divertida. — Eu queria que você tivesse me dito antes. Sabe, existem panelas que eu não alcanço na cozinha.
— Não abuse — riu e voltou a prestar atenção no arredor.
— Você recebeu o convite do casamento de Eros e Psique?
— Recebi hoje à tarde.
— Nem acredito como Hermes conseguiu entregar tão rápido.
— Você quem ajudou a escolher os convites, não foi? — o deus ergueu a sobrancelha, curioso. — Você sabe o quanto eu gosto de Psique e o quanto eu sou próximo de Eros, mas nem a eternidade daria tempo o suficiente para eles pensarem em fazer algo tão refinado.
— Eu posso ter ajudado em algumas pequenas escolhas — sorriu, gentil. — Você vai?
— Não perderia por nada, mas terei que sair antes de a festa acabar.
— Por quê? — a deusa franziu o cenho, confusa.
apenas a encarou por alguns longos segundos sem dizer uma palavra sequer. Foi o silêncio de que só então fez a deusa perceber que ela não sabia como dançar aqueles passos sincronizados, mas que ele a guiara o tempo todo.
Do outro lado do que agora era uma grande roda de casais dançando no salão, Hermes segurava Hécate em seus braços e tentava falar com Medea e Psique, na multidão, a cada volta que davam.
— Aparentemente Hera se decidiu...
— O quê? — a ninfa perguntou, confusa, mas Hermes já estava longe novamente.
— O que ele disse? — Psique perguntou para Medea.
— Eu não sei. Acho que ouvi o nome de Hera.
— Hebe vai casar com... — Hermes falou rápido, mas não o suficiente.
— Com quem? — Psique quase gritou, embora as conversas no salão abafassem qualquer coisa que ela pudesse dizer.
— Você acha que ele vai falar ? — Medea arregalou os olhos.
— Eu espero que não — Psique fez uma careta de desespero. — Por que está demorando tanto para ele voltar?
— Casar com mesmo. Hera convenceu... — a voz de Hermes soava apressada.
— HEBE VAI CASAR COM ? — a ninfa quase teve uma parada cardíaca ao ouvir aquilo e Psique precisou colocar a mão na boca de Medea quando algumas pessoas olharam para elas.
— Você quer levar nós duas para o Tártaro? — Psique grunhiu, irritada. — Eu ainda tenho que me casar antes disso, pelo menos. Além do mais, você já sabia disso, Hermes já tinha dito antes.
— Você ouviu o que ele acabou de dizer?
— Claro que eu ouvi, eu estou bem ao seu lado. O que eu quero saber é se vai se casar com Héracles.
— Eu sabia que tinha sido louco em propor esse casamento, eu só não sabia que ele era louco o suficiente para continuar com essa palhaçada. Eu genuinamente estou triste pela , eu juro — Medea falou, sincera. — Mas eu também estou tão triste quanto por saber que está fora do mercado.
— Você é impossível — Psique revirou os olhos.
— Hera convenceu Zeus de fazer não se casar — Hermes falou rapidamente antes de dar mais uma volta.
— Isso é ótimo! — Psique bateu palmas, animada. — Pelo menos, não será obrigada a se casar. Mas o que acontece com Héracles?
Do outro lado da roda, e pararam junto com a quebra da melodia e o deus segurou ainda mais firme em sua cintura quando ela desceu seu torso e levantou a perna, como todas as outras deusas fizeram.
— Agora que Eros e Psique vão se casar, onde você vai morar?
— Não tinha pensado sobre isso — ergueu as sobrancelhas com a pergunta de . — Eu descobri hoje de manhã, então nem me passou pela cabeça que em menos de uma semana preciso estar fora da casa deles.
— Não tem chances de eles se mudarem para outra casa? — ajudou a ficar de pé novamente e eles voltaram a dançar, dessa vez um pouco mais lentos por causa do ritmo mais calmo da música.
— Acho que não faz sentido. Aquela casa já é de Eros e seria perfeita para uma família.
— Para uma família? — perguntou, curioso.
— Se... se eventualmente eles quiserem ter filhos — a deusa suou frio. — Apesar de que duas pessoas casadas já formam uma família, não?
— Creio que sim — deu de ombros.
— E a casa seria grande demais para mim de qualquer maneira, acho que eu me sentiria muito sozinha.
— Vai procurar apartamentos?
— Acho que é o jeito. Nunca achei que me mudaria tão cedo. Acho que me acostumei a morar com alguém.
— O que acha de Medea?
— O apartamento dela só tem um quarto e eu duvido muito que ela gostaria de morar com outro ser na mesma casa que ela. Uma vez, na Terra, eu disse bom dia para ela antes das dez horas da manhã e ela ficou sem falar comigo por dois dias.
— Talvez não seja uma boa escolha — concordou. — E Ártemis?
— Ela disse que não vai acolher mais ninguém depois da catástrofe com Perséfone.
— Hm — o deus assentiu a cabeça em concordância. — Realmente foi uma catástrofe.
— O que aconteceu? — perguntou, curiosa, e sorriu com a animação repentina dela.
— Deméter liberou Perséfone para morar na casa de Ártemis. Foi a primeira vez que Deméter deu um pouco de liberdade para Perséfone e aquilo foi o suficiente para que Ártemis acabasse desesperada à procura de Perséfone, porque ela sumiu durante uns dias, justamente quando Deméter veio checar como sua filha estava. Isso tudo resultou em um ato de traição por parte de Perséfone, vários surtos por parte de Ártemis e em uma Deméter bem brava.
— É, talvez Ártemis não seja uma boa escolha mesmo. Bom, isso me deixa com Hermes, mas ele... ele... ele...
— Ele está dormindo com Hécate, eu sei — riu. — Eu também não gostaria de saber demais sobre um romance secreto.
— Talvez eu devesse ir à procura de apartamentos para morar sozinha mesmo.
— Não vai se sentir solitária?
— Acho que eu posso ficar com a Medea nesse meio tempo. Quer dizer, o quão ruim pode ser dormir em um sofá por alguns dias?
— Você deveria ir morar comigo — sugeriu. — Eu tenho um quarto extra.
— Eu não quero incomodar.
— Você não incomoda.
— Bom, nesse caso, eu agradeço.
— Achei que você iria relutar mais.
— E perder a chance de morar com o deus mais desejado pelos seres que possuem visão? Jamais.
— Eu acho que você deveria até se mudar antes. Tipo amanhã. — falou, pensativo. — Por que não dar a eles um tempo juntos antes de se casarem?
— Hm... talvez seja bom para eles — concordou.
Quando a música chegou ao fim, todos os casais da roda pararam de dançar e começaram a aplaudir a orquestra. Hermes, aproveitando o momento de distração de todos, andou disfarçadamente até Psique e Medea e começou a sussurrar.
e Hebe vão se casar, mas na condição de ser livre. Héracles terá direito a dois novos desejos que não incluam se casar com e ninguém quer contar para ela o que está acontecendo. Aparentemente, não sabe nem se vai convidá-la para o casamento.
— O quê? — Psique ficou boquiaberta. — Ele tem que convidá-la.
— Você está doida? — Medea interveio. — Imagina o quão horrível para ela vai ser assistir à cerimônia.
— Quando vai contar para ela? — Psique perguntou, preocupada, e Hermes levantou os ombros.
— Não faço ideia.

Capítulo 17

— Vocês só podem estar brincando comigo! — Hera esbravejou atrás da mesa de seu escritório. — Qual é o problema de vocês?
— Hera — Zeus suspirou e cruzou os braços. — Eles só vão morar juntos por um tempo, ele está ajudando uma amiga, não há nada demais nisso. Vamos voltar para a festa. É uma comemoração para os deuses! Para nós!
— Nada demais? NADA DEMAIS?! — a rainha bateu os punhos na mesa, extasiada.
apenas sentiu um calafrio percorrer todo o seu corpo e fitou , que apenas encarava a situação com tranquilidade, com uma mão no bolso da calça e a outra segurando seu copo de whisky. Ela perguntava-se como Tártaros ele conseguia ficar tão calmo? A voz da rainha olimpiana parecia entrar em sua pele e estremecer seus ossos. O sorriso sem graça na face da deusa da primavera já transmitia seu desconforto, porém ele não fazia jus ao quanto ela sabia que a situação poderia piorar em um piscar de olhos.
— Como não há nada demais nisso, Zeus? vai se casar! O que você acha que a imprensa vai falar quando souber que uma mulher qualquer vai morar com o futuro marido da sua filha?
— A imprensa nem sabe ainda, Hera — Zeus suspirou, esgotado. — Não vai parecer nada demais.
— Você vai se casar?! — franziu o cenho e encarou , perplexa.
— Não... Er... Talvez.
O deus apenas fitou-a sério por alguns segundos e depois desviou o olhar para o chão. Não conseguiria manter contato visual por muito tempo, não conseguiria encará-la nos olhos sem sentir o coração dilacerando violentamente.
Ele nem precisava olhá-la para saber o quanto ele a havia machucado naquele momento. Não somente isso, ele sentia. Sentia o sangue correr em suas veias como pequenos cacos de vidro. Sentiu o coração parar de bater, mas voltar forte e subitamente quando pensou que talvez tivesse acabado de perdê-la, exatamente no momento em que tudo parecia se segurar por um fio. A pior parte, no entanto, é que ele sentia sobretudo a tristeza envolvê-la como um véu que cai lentamente. Cada vez que o tecido tocava sua pele, ela perdia um pouco do seu brilho característico. Ele sentia as lágrimas que ela segurava para que não atravessassem sua bochecha. Ele sentia o coração frágil dela.
— Oh, você não sabia? — Hera perguntou com um misto de interesse e crueldade. — vai se casar com Hebe. Ele mesmo quem vai pedir a mão dela em casamento daqui a uns dias.
— Você vai se casar e não me contou nada? — sentiu os olhos marejarem, por mais que lutasse contra. — Por que você não me contou?
— Eu... eu não sabia como. — passou a mão na nuca, frustrado. — Tudo aconteceu tão rápido.
— Agora que você vai se casar, querido, pare de me dar trabalho — Hera bufou.
— Eu disse que me casaria, não que eu começaria a respeitar suas decisões — ele rebateu, irritado.
— Por que você vai se casar com a Hebe? — a deusa da primavera falou tão baixo que os outros quase não conseguiram ouvir.
— Porque ele está apaixonado por ela — Hera respondeu como se fosse óbvio e cruzou os braços.
— Isso é sério!? — perdeu o último fio de paciência que tinha e encarou a rainha olimpiana com irritação. — Não é possível que você acredite em suas próprias palavras. Você está cega? Precisa fazer outra visita ao Inferno e ver o seu futuro no Tártaro para se arrepender agora? Você tem milhares de anos nas costas e ainda assim se comporta como uma criança! Quando você vai entender que o seu papel é proteger o Olimpo e não achar que todo mundo deve a vida a você?
Zeus e entreolharam-se levemente preocupados quando as plantas do escritório de Hera começaram a murchar, pretas. Não passava de uma coceira leve atrás da orelha, mas Zeus podia sentir a vida desaparecendo.
— Eu mesma cheguei há pouco tempo aqui e a primeira vez que tive contato com foi quando ele estava fugindo da Hebe — continuou. — Quantas vezes vai ser necessário ele dizer explicitamente que não quer se casar com ela para você entender? Pelos deuses, como deve ser bom ser ignorante assim, não? Imagina você filtrar tudo o que você não quer ouvir, fingir que nada daquilo foi dito e ter as coisas entregues de bandeja na sua mão. E pensar que as pessoas fazem isso por medo das coisas que você vai fazer. Eu acho que isso diz o suficiente sobre você e seu comportamento.
— As... — a rainha olimpiana limpou a garganta, supreendentemente chocada. — As pessoas realmente acham isso de mim?
— Você realmente está perguntando isso? — ergueu a sobrancelha, cético, porém a deusa da primavera franziu o cenho, com dó. Nunca vira a voz de Hera tão carregada de... dor.
— Meu amor — Zeus segurou a mão da esposa, que mantinha as sobrancelhas juntas em uma expressão de tristeza genuína —, você tem uma personalidade forte, mas está tudo bem.
— Eu não acredito que o meu povo não gosta de mim.
Enquanto o casal conversava entre si, virou-se novamente para , falando baixo.
— Por que você se comprometeu com isso? Você mesmo me disse que casamentos arranjados não funcionam.
— Eu precisei fazer — o deus respondeu, hesitante. — Eu não tinha outra escolha.
— Precisou?
— Sim — assentiu e respirou fundo. — Porque, em troca de eu pedir a mão de Hebe em casamento, você não precisaria se casar com Héracles. Ele não seria louco de não lhe escolher.
— O quê? — franziu o cenho, incrédula, e aproximou-se dele, colocando as mãos em seu rosto para que ele a fitasse nos olhos. — Eu jamais permitirei isso. , não era da sua conta, você não tinha o direito de fazer isso. Você não pode tomar decisões que não são suas.
— Casar ou não com Hebe era uma decisão minha muito antes de você chegar — o deus disse, irritado, ainda que seu coração estivesse apertado por vê-la desesperada daquela maneira.
— Hera — andou apressada até a mesa dela, mas ainda se mantinha firme. — Hera, eu me caso com o Héracles.
— Quanta audácia, não? Você me insulta com o seu discurso e agora vem implorar. Não importa, de qualquer maneira. O Héracles não quer você — Hera sorriu, vitoriosa. — Ele quer a Hebe, assim como o e assim como qualquer outro deus. Sem contar que agora é tarde demais, o acordo já foi dito.
— Mas se o Héracles queria se casar com a Hebe, por que você não casa os dois, então? — perguntou, confusa. — Isso não resolveria tudo?
— Sim, eu também acho — Zeus concordou. — Mas é politicamente mais valioso.
— Mas... a Hebe não gosta do Héracles? — a deusa da primavera viu Hera fechar o punho.
— Não responda isso, Zeus — a rainha pediu, mas seu marido não hesitou.
— Gosta bastante.
— Então por que vocês não estão fazendo o que é melhor para ela? — estava incrédula.
— Porque estamos fazendo o que é melhor para o Olimpo — Hera rebateu, decidida.
— Mas nossa filha não está feliz, querida — Zeus juntou as sobrancelhas em afeição.
Hera, por breves dois segundos, ponderou a situação. Ela não queria que sua mais amada filha terminasse como a própria mãe: forçada a viver em um casamento infeliz, por mais que ela soubesse que em nada se parecia com Zeus. Era óbvio, todavia, quem realmente amava. Os breves dois segundos, no entanto, não foram o suficiente para fazer a rainha olimpiana mudar de ideia.
— Eu não quero saber, Zeus. Fazemos sacrifícios nessa família e é por isso que ainda estamos no poder. — Hera estava inflexível.
— Que tal resolvermos isso em uma reunião amanhã? — O deus do raio cruzou os braços. Já não gostava muito de ser obrigado a usar um terno, perder uma festa com todas as ninfas do Olimpo não tornava a situação melhor. — Me parece que temos uma proposta interessante. Se Hebe se casasse com Héracles...
— Não. Nem pensar. — Hera colocou as mãos na cintura e fitou seu marido, indignada. — E como você mesmo disse, é bem mais valioso para essa família e Héracles não merece nossa Hebe.
— Não merece? — Zeus estreitou os olhos, levemente irritado. — O que você quer dizer com isso?
— Bom, Hebe é uma deusa de família real, nascida no Olim...
— Héracles é minha prole. Ele tem sangue real e ainda foi considerado digno de subir ao Olimpo. Como assim ele não é bom o suficiente?
— Zeus, você precisa concordar que seria bem melhor para os nossos objetivos.
— Você está levando em conta a felicidade da nossa filha nos nossos objetivos?
— Você acha que será um marido ruim para Hebe? Você não acha que eu, a deusa do casamento, tenho um ótimo senso de julgamento nesse mérito?
e entreolharam-se e ela fechou a boca em uma linha, sentando-se, enquanto ele segurou o sorriso de deboche e deu um gole em seu whisky. A deusa da primavera podia sentir a raiva exalando do casal real. Era como se uma onda palpável atravessasse seu corpo. Ela se mexeu um pouco na cadeira, para achar uma posição mais confortável, e começou a olhar os quadros da sala, evitando a qualquer custo parecer interessada na discussão. Enquanto Zeus e Hera pareciam estar investidos demais, cada vez se aproximando mais e aumentando o tom de voz, apreciava o caos com o seu sorriso, já nem conseguindo escondê-lo. Ele sentou-se no braço da poltrona em que a deusa estava, girando lentamente seu copo. notou como o líquido parecia girar em câmera lenta, com um leve toque dourado que ela nunca vira antes.
— Nós já conversamos sobre isso, Zeus. Hebe vai casar com e isso não está mais em discussão. O problema está resolvido da melhor maneira possível.
— Não, Hera, você simplesmente impôs isso e eu confiei em você.
— Se você confiou foi porque você concordou.
— Não, não foi! — O deus trincou o maxilar e o barulho de um forte trovão fez estremecer sobre a cadeira, o que fez rir. — Você fica no meu ouvido o dia inteiro e eu sou obrigado a concordar com você para você parar de reclamar!
— Olha como você fala comigo!
— Olha como você fala comigo!
— Eu estou farta de você fazendo um monte de merda e eu tendo que limpar depois! É exatamente por isso que eu tomo essas decisões, para você não fazer bostas irreversíveis!
— Eu governo a porra do Olimpo todo e tudo o que você faz é falar que eu não sou competente. Você não consegue reconhecer meu trabalho? Como você acha que esse lugar ainda existe? Você acha que é porque você toma as decisões? Eu que faço tudo!
apenas engoliu em seco quando os cabelos de Hera começaram a balançar freneticamente, assim como as mechas douradas de Zeus. A deusa da primavera arregalou os olhos para , perguntando implicitamente se eles deveriam se retirar do escritório, mas ele apenas balançou a cabeça em negação, de modo discreto.
— VOCÊ QUE FAZ TUDO? A PROVA DE QUE VOCÊ NÃO FAZ TUDO É QUE EU TENHO QUE FICAR AQUI DECIDINDO O QUE É MELHOR PARA A NOSSA FAMÍLIA, PORQUE VOCÊ SÓ CONSEGUE PENSAR EM ME TRAIR! E ME TRAIR É SÓ O QUE VOCÊ FAZ!
— ÓTIMO, ISSO DE NOVO! NÓS NÃO VAMOS ENTRAR NESSE ASSUNTO, HERA!
— Você só evita isso porque sabe que não tem como se defender com argumentos válidos — ela sussurrou entre os dentes.
— CHEGA! — Zeus gritou, furioso, e uma ventania misturada à chuva forte quebrou o vidro de uma janela, fazendo o vento varrer a sala com agressividade e cacos voarem para todos os lados.
, preocupado, apenas estendeu a mão para , que a aceitou imediatamente. Ela levantou da cadeira e ele colocou o corpo dela atrás do seu.
— Eu estou tirando o seu direito de tomar decisões em relação ao casamento deles — o deus do raio falou, firme.
— Mas eu sou a deusa do casamento!
— Sem mas, Hera. Hebe deveria se casar com quem ela quisesse e também. A gente não deveria forçar essas coisas em ninguém. Você, mais do que ninguém, sabe disso, não sabe? — ele ergueu uma sobrancelha e Hera colocou as mãos na cintura com um semblante de aversão.
— Desculpe interromper — sorriu, sem graça, olhando por cima do ombro de , e ele colocou a mão na testa —, mas acho que, por respeito, nós deveríamos nos retirar para vocês terem privacidade.
— Você de novo — Hera estreitou os olhos e apontou para a outra deusa. — Desde que você chegou, não fez nada além de fingir ingenuidade e destruir os meus planos.
— Eu sinto muito se interferi nos seus planos, mas eu nunca, nunca mesmo, fiz nada com intenções ruins — franziu o cenho.
— Não se finja de sonsa. — A rainha começou a andar devagar em direção a ela.
— Não fale assim com ela — grunhiu. — A pessoa que está agindo de maneira errada é você. E você também — ele desviou o olhar para Zeus, que deu de ombros.
— A única coisa que eu fiz foi proteger você, — Hera colocou as mãos na cintura. — Manter você nessa família, manter você no poder e olha só o que eu recebo em troca. Ingratidão.
— Ingratidão? — saiu de trás de . — Você deveria estar feliz que ele está disposto a fazer sacrifícios pelos outros.
— Por você — Hera retrucou.
— Pelos outros — a deusa da primavera repetiu, firme. — Ou você acha que ele trabalha por livre e espontânea vontade com os humanos, que são criações dele? — ela apontou para Zeus, que assentiu a cabeça em concordância.
— Ele precisa fazer isso, se quiser ficar no Olimpo.
— Ele não precisa ficar no Olimpo. É você quem quer que ele fique aqui para ele se casar com Hebe, que francamente quer ficar com o Héracles e seu ego não quer deixar.
— Ele precisa ficar no Olimpo sim, porque é o acordo que ele fez com o meu marido, a não ser que Psique queira ir diretamente para o Submundo. E o resto não é mais discutível.
— Hebe é quem deveria decidir sobre esse casamento, não você — rebateu, porém surpresa com o que Hera havia dito.
— Você não tem o direito de dizer o que eu tenho ou não tenho que fazer. Você quer ser expulsa do Olimpo?
— Mas ela está certa, Hera — Zeus interveio e colocou a mão no queixo, pensativo. — Se você ama a Hebe, você sabe que ela está certa.
— Eu estou fazendo o que é melhor para a Hebe, porque ela ainda não consegue ver que Héracles não é o marido ideal para ela! Eu não acredito que a opinião de uma deusa irrelevante vai interferir na sua opinião! Ou melhor ainda, na opinião da própria deusa do casamento!
— Ela é uma deusa e isso já estabelece que ela está no topo da hierarquia olimpiana, quer você queira ou não.
— Ela é uma deusa nascida de mortais, Zeus. Ela mal conhece a nossa cultura!
— Isso não impede que eu aprenda — falou, mas o casal nem ouviu.
— Ela é uma deusa. Ponto final.
Hera respirou fundo, sentindo a raiva percorrer cada pequena célula em seu sangue dourado. Não iria deixar que arruinasse seus planos. Havia planejado-os minuciosamente e não seria um ser insignificante que atrapalharia tudo. A rainha encarou Zeus nos olhos enquanto rangia os dentes. Só ela mesma sabia o quanto queria jogá-lo do Olimpo, embora nunca fosse fazer isso. Temia o que seu próprio marido faria para lhe castigar. Só de pensar no corpo chicoteado de Prometeu em frente a todos um arrepio subiu sua espinha.
De repente, uma certa conversa com Perséfone e Afrodite passou por sua mente e ela fitou pelo canto do olho, abrindo aos poucos um sorriso perverso.
— Sim, ela realmente é uma deusa — Hera falou e Zeus franziu o cenho com a calmaria repentina. — Uma deusa da primavera. Uma deusa... da fertilidade, não é mesmo?
— E? — franziu o cenho.
— E isso quer dizer que ela... — a rainha deixou uma risada escapar. — Ela consegue reviver os mortos.
— O quê? — Zeus perguntou em choque e fitou , boquiaberto.
— O quê? — a deusa da primavera repetiu, confusa.
— Do que você está falando? — engoliu em seco.
— Uma deusa da fertilidade exala vitalidade, — Hera olhou suas unhas, falsamente desinteressada. — Ela atrai vida. E não é isso que acontece com você?
— Como eu reviveria os mortos? Eu sou a deusa da primavera, não da vida ou da ressuscitação.
— Tecnicamente você tem o potencial — Zeus assentiu com a cabeça e se sentou na ponta da mesa.
— Isso é tudo baseado em o quê? — levantou os braços, confuso. — Em especulações? No que vocês acham?
— Baseado no que a Deméter me contou. Ela disse que atraiu Adônis no inverno. No inverno. Peculiar, não?
— Isso não é possível. — franziu o cenho e fitou a deusa ao seu lado. — Não é?
— Bom... — ela hesitou um pouco. — Sim, ele apareceu, mas eu não vejo como isso é uma prova de que eu consigo reviver os mortos.
Hera apenas sorriu, satisfeita, quando viu seu marido passar a mão na barba. Ela sabia exatamente o que ele estava pensando. As coisas estavam se reestruturando como ela queria. Se realmente pudesse reviver os mortos, ela já não seria mais um problema em sua vida. Na verdade, ela já não seria mais um problema para ninguém.
colocou uma mão sobre o peito e empalideceu de um segundo a outro. Ele já não sentia suas pernas e precisou dar dois passos para trás até se sentar no braço de uma poltrona, desajeitado pela primeira vez. A deusa da primavera limitou-se a encarar cada um na sala quando o silêncio se estendeu por alguns segundos. Nenhum dos deuses parecia querer se pronunciar.
— Alguém pode me dizer o que está acontecendo? — perguntou e logo em seguida três batidas foram ouvidas na porta.
— Com licença — Perséfone enfiou sua cabeça para dentro do escritório de Hera, sorridente.
— Você é tão educada — Ares revirou os olhos atrás dela e abriu a porta com tudo. — Cadê os anfitriões dessa festa? Precisamos de vocês lá no... Oh. Pelo amor dos deuses, estamos atendendo o funeral da felicidade?
— O que aconteceu? — Perséfone jogou seus longos cabelos rosas sobre os ombros, inquieta. Só de pensar do que aquele silêncio se tratava, um calafrio percorreu sua espinha.
— Eu também gostaria de saber — falou.
— Ela pode reviver os mortos — Hera respondeu, sorrindo.
— Eu sabia! — Ares fez uma dancinha em comemoração e ergueu as sobrancelhas, animado. — Eu falei para a Afrodite que isso ia acontecer, mas ela não colocou fé o suficiente! Adivinha só quem tem razão agora.
— Você reviveu um morto? — Perséfone perguntou rápido, quase tropeçando em suas próprias palavras. Ela ficou estática, com a mão ainda na maçaneta, até que balançasse a cabeça em negação, então uma risada histérica saiu de seus pulmões. — Então do que vocês estão falando? Mas é claro que ela não pode reviver os mortos!
— Ela é uma potencial ameaça — Zeus fez um gesto com as mãos para expressar obviedade.
— Exatamente — Hera concordou. — Nada impede que ela reviva todos os mortos e cause o caos na Terra.
— Todos nós somos uma potencial ameaça — interveio, irritado, e cruzou os braços. — Todos nós conseguimos matar outros deuses...
— Menos eu — Zeus interrompeu-o, orgulhoso.
— Então porque uma suposta habilidade de reviver os mortos seria uma ameaça? — o deus continuou. — Suposta. Vocês estão tirando conclusões baseadas em nada.
— Eu não sei reviver os mortos — revirou os olhos. — Seria incrível fazer isso...
— Você não está ajudando — Perséfone ergueu os braços, levemente desesperada. Tudo o que ela mais desejava desde que tivera aquela conversa com as Parcas há meses era que esse fatídico dia não chegasse.
— Mas eu não posso reviver pessoas... — voltou a falar, porém logo se distraiu com Perséfone. Havia algo de errado no semblante da rainha do Submundo.
— Não tem discussão aqui — Zeus falou alto e Perséfone engoliu em seco. — Um julgamento está marcado.
— O QUÊ? — levantou-se. — Que merda você pensa que está fazendo?
— Sugiro que fique fora disso se não quiser ser condenado por um ato de traição — o deus do raio falou em um fio.
Hera, ao fundo, sorriu, vitoriosa, e Ares apenas coçou sua nuca. Apesar de ele ser fã admitido do caos, não havia nada de agradável naquela sala. Muito pelo contrário. Perséfone exalava desespero, , ira pura, e , confusão. Como ela poderia ser condenada por algo que nem sequer poderia ter feito?
Algo que nem poderia fazer, na verdade.


— Isso só fica pior a cada dia. — finalmente fechou a porta de entrada da sua casa. — Esses paparazzis não me dão um segundo para respirar.
— Oh, querida, eu sinto muito — Ártemis suspirou, desanimada, e apoiou os braços no encosto do sofá. — Seu dia foi tranquilo, pelo menos?
— Bom, depende do que você define como tranquilo. — A deusa da primavera sentou na ilha da cozinha e tirou os saltos. — Foi a mesma coisa de sempre. Um milhão de pessoas me abordaram no metrô. Por todo lugar que eu passo, eu viro assunto. Deméter não conseguiu não passar o dia inteiro com dó e as pessoas no Submundo já estão se preparando para a minha chegada definitiva.
— Se seu dia foi assim, então você não vai gostar disso aqui também — Apolo levantou uma pilha de jornais e revistas sem desviar a atenção da televisão. — Só tem reportagens suas e você está na capa de tudo. Inclusive, você está na televisão agora.
— Se essa fosse a minha última refeição no Olimpo, eu com certeza não escolheria esse prato. deve estar confiante em relação ao seu julgamento amanhã, às quatorze horas — os âncoras deram uma leve risada. — E agora vamos para os boletins urgentes...
— Ok — Hermes abriu um armário da cozinha e começou a colocar um monte de garrafas em cima da bancada. — Nós temos dry martini, long island iced tea, whiskey, shots, sex on the beach, bellini e negroni. Em qual drink você quer afogar as mágoas?
— Isso não a ajuda em nada, Hermes! — Psique colocou as mãos na cintura com um semblante irritado.
— Você deveria estar me ajudando a desempacotar minhas coisas — Eros reclamou enquanto abria as caixas.
— Você acha que esses drinks são para ela afogar as mágoas? — Hermes perguntou, indignado, e logo em seguida se jogou sobre a ilha de mármore e colocou a mão na testa da maneira mais dramática que conseguiu. — Esses drinks são para eu afogar as minhas mágoas! O que vai ser de mim sem a mais bela e simpática das deusas?
— Eu... — Ártemis ia intervir, mas o mensageiro continuou a falar ainda mais alto.
— O QUE VAI SER DESSA BELEZURA DE CORPO LINDO SEM O AR PRIMOROSO E CHEIROSO DELA? DE ONDE EU VOU ARRANJAR MOTIVAÇÃO PARA LEVANTAR DA CAMA TODOS OS DIAS?
— Hermes — riu —, não vai acontecer nada de ruim, não se preocupe.
— Você comprou uma briga com Hera — Apolo alertou-a com um olhar frio. — Pelos mesmos motivos que Asclépio. Eu ficaria preocupado, se fosse você.
— Ela não precisa ficar — Psique revirou os olhos. — Até porque ela não pode reviver os mortos. Agora levanta daí e vem nos ajudar, porque ainda faltam muitas caixas.
— Como você consegue ter tantas coisas? — Ártemis reclamou, segurando uma pilha de livros, e Eros deu de ombros.
— Eu ainda não acredito que vai pedir Hebe em casamento — Apolo falou, ignorando o pedido de Psique.
— Eu não acredito que aquele idiota não nos contou! — Eros rangeu os dentes. — Filho da Medusa.
— Exato! Quando foi que ele perdeu a noção? Depois de décadas deixando claro que ele não queria! Que absurdo. — Hermes colocou as mãos na cintura, indignado.
— Bom — sorriu fraco e passou as mãos nos braços —, está tarde e eu tenho um longo dia amanhã. Acho que vou dormir.
— Durma tranquila — Psique foi a única a falar, por mais que ela estivesse tão desconfortável quanto os outros. — Estaremos lá no Palácio da Corte amanhã para darmos apoio.
— Obrigada — a deusa da primavera suspirou e levantou, sentindo os olhares a acompanharem até ela sumir na escada.
De repente, a casa lhe pareceu extremamente silenciosa. Não sabia se era porque eles cochichavam no andar de baixo, mas aquilo não a incomodou. Estava absorta demais em seus próprios pensamentos para querer prestar atenção. Quando entrou no seu quarto, tirou suas roupas e jogou-as em qualquer canto, pronta para mergulhar em sua banheira. Afinal, talvez aquela realmente fosse a última vez que pudesse fazer aquilo no Olimpo. Estava enfrentando uma possível sentença de morte, não estava? Por algo que nem tinha feito. Hera finalmente conseguiria o que tanto almejara: fora de seu caminho. Tudo o que ela tinha feito até agora tinha sido em vão. Tentar conversar com a rainha olimpiana de modo pacífico, tentar se adequar ao Olimpo, tentar cumprir seu papel de deusa da primavera, tentar controlar as borboletas no estômago quando estava com .

.

Como poderia ficar tranquila sabendo que talvez nunca mais o veria? Sentiria falta da pele quente dele tocando sua cintura. Queria sentir a mão dele passando em seu cabelo suavemente. Queria ouvir todas as coisas sujas que ele diria perto de seu ouvido quando estivessem a sós. Queria se sentir protegida como só ele conseguia fazer. A eternidade já não lhe parecia muito tempo agora que tinha entendido o que era amar. Agora seu maior medo era que isso fosse retirado dela.
A água começou a ficar fria e só então ela percebeu que já estava há muito tempo deitada no fundo da banheira. O tempo passa rápido demais quando temos consciência dele. apenas se levantou, enxugou-se e colocou a primeira roupa confortável que viu pela frente. Estava exausta. Exausta de passar o dia inteiro pensando que amanhã poderia ser o último dia de sua vida.
Como ela conseguiria dormir com isso na cabeça? Rolou na cama pelo menos dez vezes. Nenhuma posição parecia confortável. O travesseiro esquentava demais. Ela deitou bem na beirada da cama, quase caindo, onde o colchão ainda estava frio, encarando as cortinas mal fechadas que bloqueavam parcialmente a luz do sol. As frestas cintilantes por entre o tecido a deram uma ideia. engoliu em seco e estendeu o braço devagar em direção ao chão. Queria desesperadamente dar três batidas na madeira, mas toda vez que chegava muito perto, hesitava e recuava.
— Faça — a voz aveludada de soou no quarto e ela imediatamente levantou os olhos para a porta da varanda. Lá estava ele, parado com os braços cruzados e encostado no vidro como se já a observasse por um tempo. O semblante era sério, ela diria até mesmo preocupado, mas seus gestos calmos a tranquilizavam.
— Eu não preciso mais, você já está aqui.
— Como você está? — ele perguntou, imóvel.
— Estou preocupada — engoliu em seco. — Eu não sei o que Hera não faria para me mandar para o Submundo.
— Ela pode fazer o que quiser, ela pode inventar quantas mentiras quiser, mas eu prometo que nada vai acontecer com você.
Um silêncio acolhedor invadiu o quarto por alguns segundos. Segundos que usou para analisar cada pequeno detalhe do rosto dele. Sentiria falta do cheiro amadeirado de seu perfume que sempre invadia o cômodo como uma lembrança insistente de que ela não conseguiria resistir nem se quisesse.
— Não é ruim você estar aqui? Hera vai ficar furiosa se uma reportagem sair sobre...
— Eu não ligo.
— Por que você veio? — ela sentou-se.
— Você está exalando dor, — ele ergueu a sobrancelha, sugestivo. — E eu posso notar a sua mais do que a de todos os outros seres vivos, aparentemente.
desviou o olhar. Não queria ocupar a cabeça dele desse jeito. Já tinha colocado problemas o suficiente em suas costas.
— Quer sentar? — a deusa perguntou ao colocar a mão no lençol ao seu lado. — Você não me parece muito bem.
— Eu fico imaginando as coisas que nós não vamos ter — falou sem hesitar. Sem sequer filtrar. — Eu fico imaginando as coisas que eu queria fazer com você e agora eu não vou mais poder. Cada pequeno centímetro do meu corpo sofre, lutando, como se ele estivesse sendo puxado pelo seu, entende? Me deixa louco saber que eu penso em você o tempo todo e agora não posso nem te tocar. Então não, eu não posso sentar perto de você, porque não seria justo com Hebe a minha falta de autocontrole... Só Eros sabe o que eu não faria por você.
No andar de baixo, todos esperavam silenciosamente alguém ser o primeiro a se pronunciar, mas cada um deles parecia cansado ou tenso demais. De repente, o olhar que a deusa da caça lançou para Psique disse tudo. Algo ia acontecer.
— Precisamos conversar — Ártemis sussurrou assim que sua audição aguçada não conseguiu mais ouvir ou no andar de cima.
— Ela dormiu? — Apolo perguntou e sua irmã assentiu com a cabeça.
— O que aconteceu? — Psique apressou o passo para chegar perto dela.
— Há alguns meses, logo que chegou, recebi uma carta de Apolo — a deusa apontou para seu irmão, que fez um gesto com a mão.
— Certo, e? — Eros apressou-a.
— E existe uma profecia sobre a . Eu falei com a Gaia — Apolo quem se pronunciou, sério.
— O quê? — Hermes arregalou os olhos. — Que profecia?
— Existirá uma terceira deusa da primavera — Ártemis engoliu em seco e um calafrio percorreu o corpo de Psique.
— E você só está contando isso agora? — Eros ergueu os braços, chocado.
— É uma profecia, idiota — Psique revirou os olhos. — Nada que alguém possa fazer para mudar o destino. Não é possível que você tenha milhares de anos e não saiba disso.
— Bela esposa, hein — Hermes ergueu uma sobrancelha e Ártemis deu um tapa na cabeça do mensageiro. — Outch! Por que eu que levo os tapas quando eu digo o que todos estamos pensando?


— Você está bem? Não esqueceu de nada? — Psique perguntou uma última vez e respirou fundo. Ela tremia de ansiedade.
— Estou bem — sorriu doce. — Acho que você que não está bem. Não quer se sentar?
— Não consigo. Preciso fazer alguma coisa quando estou nervosa.
— Não precisa ficar nervosa, vai ficar tudo bem.
A deusa da primavera sorriu, terna. Ela estava tranquila, genuinamente tranquila, embora achassem que ela não deveria estar. Mas, afinal, ela acordou sabendo que estava prestes a entrar em um julgamento não tendo feito nada errado, por que as coisas teriam um final ruim?
— Oh — Psique apontou com a cabeça para o longo corredor. — está vindo. Vou deixar vocês a sós.
— Obrigada — abraçou-a.
— Por favor, não nos deixe, ok? — Psique sussurrou rapidamente.
— Pode deixar — a deusa riu.
— Como você está se sentindo? — colocou as mãos no bolso do terno. Estava evidente que ele não havia dormido. As olheiras escuras debaixo dos olhos denunciavam uma preocupação que o deus nunca havia sentido. Aquilo deixou um pouco inquieta. Não lhe parecia um bom sinal.
— Bem. Você dormiu bem?
— Sim — ele mentiu. Não queria a deixar apreensiva.
— O que você faz aqui? O julgamento vai começar em poucos minutos, você não deveria estar lá dentro?
Sem responder, apenas a segurou firmemente pela cintura, trazendo-a mais para perto até seus corpos colarem em um abraço e beijou sua testa. O cheiro floral do cabelo dela o fez fechar os olhos.
— ela colocou as mãos no rosto dele —, vai ficar tudo bem.
— Eu sei que vai, só não queria que você estivesse passando por isso. Você acabou de chegar ao Olimpo.
— Então você queria que eu só arranjasse problema daqui a cem anos?
— Bom, daqui a um milênio seria o ideal para a convocação de um julgamento no Palácio da Corte. Nem eu cheguei nesse nível ainda.
— Nesse caso, vamos esperar ainda umas centenas de anos para você chegar aos meus pés, pode ser? — ela sorriu, gentil. — Agora vai lá antes que a Hera apareça aqui.
— Pare de se preocupar com a Hera — revirou os olhos.
— Eu só vou parar de me preocupar com ela depois que a gente resolver o seu casamento forçado.
— Isso não está mais em discussão — o deus levantou os ombros e começou a andar de costas.
— Isso não precisaria estar em discussão, se você não tivesse se intrometido — ela sorriu, desafiadora.
— Isso não precisaria estar em discussão, se você tivesse dito “eu te amo” na hora que eu falei.
— O quê? — ficou séria e franziu o cenho. — Do que você está falando?
parou de andar e mordeu o canto inferior dos lábios. Ele não deveria ter falado aquilo, principalmente agora, mas com aquele turbilhão de pensamentos em seu cérebro, era mais do que natural que ele fosse soltar algo que não deveria a qualquer hora.
— Se você dissesse... — ele encarou-a nos olhos e jurou que um brilho de tristeza cobriu a íris dele. — Se você dissesse de volta, eu teria lhe pedido em casamento e nada disso seria um problema.
A deusa da primavera permaneceu estática. Era a última coisa que ela esperava ouvir. Uma avalanche de emoção invadiu o seu corpo e ela estava totalmente dividida entre dois pensamentos: era absolutamente louco por pedi-la em casamento tão cedo. E, pelos deuses, só Eros sabia o quanto ela teria dito sim.
— Bom... — ele riu fraco. — Eu esperaria mais umas centenas de anos normalmente para pedir, mas aqui no Olimpo, quando você sabe — voltou a andar —, você sabe.
? — ela perguntou assim que ele sumiu de vista. — ?!
olhou rapidamente para dentro do salão que deveria entrar em questão de segundos. Zeus já estava posicionado atrás da tribuna e ela sabia que um dos guardas estava prestes a vir buscá-la.
! — a deusa chamou-o mais uma vez, embora ela soubesse que ele já deveria estar no seu lugar dentro da corte. — Eu não acredito que ele saiu depois de falar isso!
— Minha querida deusa? — um guardião chamou-a.
apenas sorriu sem graça e entrou no salão, sentindo o sol forte do Olimpo iluminar a sala inteira por causa da cúpula gigante sobre sua cabeça. Ela jurava que aquilo era feito de ouro e não de vidro, como diabos entrava sol ali?
Assim que as portas fecharam atrás de si, ela percebeu todos aqueles deuses sentados na arquibancada oval do salão. Parecia a Corte do Fim dos Mundos no Submundo, porém toda feita de mármore branco.
, seja bem-vinda — a voz de Zeus ecoou em todo o salão e todos os deuses se levantaram. — Aproxime-se, por favor.
Era estranho estar ali no meio. A deusa da primavera passou os olhos rapidamente ao seu redor, procurando alguns rostos familiares. Perséfone e Hades eram os que estavam mais perto da tribuna. A deusa da morte segurava o braço de seu marido e encarava com seus olhos grandes. Mais ao lado, Eros e Hermes pareciam estar quase sentando sobre o muro que separava a arquibancada da área em que estava. A deusa da primavera pôde ver de relance Deméter, Ártemis, Apolo, Hefesto e Hécate, mas antes que conseguisse encontrar o deus que procurava, Zeus voltou a se pronunciar.
— Hoje nós estamos todos reunidos aqui para uma votação. A nova deusa da primavera será julgada no princípio de poder trazer os mortos de volta à vida.
Antes mesmo do deus do raio conseguir continuar sua fala, murmurinhos tomaram conta de todo o local. Era muito perceptível o choque dos deuses ali presentes e não demorou um segundo para que muitas expressões de reprovação fossem apontadas para , o que fez Hera abrir um largo sorriso. Ah, a deusa da primavera não viveria um dia a mais...
— Silêncio, por favor — Zeus pediu. — Nós queremos saber o que o réu tem a dizer em sua defesa.
— Em minha defesa? — franziu o cenho. — Eu não teria que ter cometido algum crime ou delito para ser réu?
— No momento, você representa uma potencial ameaça. — Hera falou.
— Bom, eu... — ergueu as sobrancelhas e tentou pensar em algo. Ninguém tinha avisado que ela teria que se defender. — Eu não entendo porque esse julgamento está acontecendo, se eu não fiz nada. Quer dizer, até agora vocês estão tomando decisões baseadas em hipóteses e não em fatos.
Novamente, o murmurinho tomou conta do local e Zeus precisou limpar a garganta para que os deuses parassem de falar.
— Você entende que tipo de ameaça você representa?
— Como exatamente uma deusa que é responsável por criar flores é uma ameaça? — inclinou a cabeça.
— Se você puder reviver os mortos, , o equilíbrio de todo nosso sistema será perturbado. Todo o trabalho que cada um desses deuses faz todos os dias será desestruturado. Isso tudo porque nós deixamos isso escapar.
— É desse tipo de entretenimento que eu estava falando — Ares sussurrou, satisfeito, para Afrodite.
— Eu não posso reviver os mortos — respirou fundo. — Tem coisas que eu nem consigo fazer ainda como deusa da primavera, como eu seria capaz de reviver os mortos?
— Isso é porque você ainda está em desenvolvimento, querida — Hera sorriu. — Deméter pode confirmar, ela vem lhe acompanhando. A cada dia de treinamento você fica mais e mais forte. Se não formos cautelosos agora, imagina o que poderia fazer quando estivesse completamente preparada para ser uma deusa da fertilidade.
— Mas... — tentou falar, mas a rainha olimpiana a interrompeu.
— Caos! É isso o que vai acontecer. Você vai conseguir controlar quem permanece morto e quem pode voltar a viver. Ninguém aqui quer ter que depender de você para voltar para o Olimpo caso aconteça, não acham?
— Primeiro que não funcionaria assim se eu fosse capaz de reviver os mortos — revirou os olhos. — Segundo que eu não sou capaz de reviver os mortos, eu não sei porque você está colocando tanta fé nessa ideia. Quer dizer, se fôssemos parar para pensar, todos os deuses representam uma ameaça em potencial, então porque só eu estou sendo julgada por isso?
— Como assim? — Zeus ergueu a sobrancelha, interessado.
— O que impede Ares, por exemplo, de sair numa matança de fúria e eliminar metade da população na Terra?
— Ele me prometeu que não faria isso de novo — o deus do raio cruzou os braços.
— Então eu te prometo não ressuscitar uma vida sequer, se eu puder fazer isso.
— E por que você acha que acreditamos em sua palavra? — Hera interveio.
— Por que vocês acreditam na dele? — apontou para Ares.
— Porque ele está nas nossas vidas há milhares de anos, confiamos nele.
— Bom — a deusa da primavera sorriu, gentil —, nesse caso, eu proponho que você me deixe viver milhares de anos para perceber que pode confiar em mim.
— E arriscar você cometer um ato de traição por ressuscitar um morto e estragar o balanço da natureza que nós nos esforçamos tanto para manter? — Hera perguntou, cética, e riu logo em seguida. — Você está louca. Pare para pensar sobre o que aconteceria se alguém tivesse o trabalho de matar um deus que faz mal ao Olimpo e você o ressuscitasse. Imagina o que aconteceria se você ressuscitasse Cronos.
— Eu não faria isso.
— E se fizesse sem querer?
— Eu... — hesitou por três segundos antes de continuar, mas foram somente três segundos de hesitação necessários para que Zeus arregalasse os olhos com a falta de resposta e que os outros deuses entrassem em choque. — Eu ainda não sei porque estamos tendo essa discussão se até agora você quer me julgar por um poder que eu não tenho. Sem ofensa, mas nessa lógica deveríamos julgar a Afrodite por talvez poder matar alguém de tanta beleza ou a Ártemis por atirar uma flecha sem querer em um ser humano. Matar uma pessoa antes de ser a hora dela não seria um desequilíbrio da natureza também?
— Se uma das duas matassem alguém dessa maneira, não seria coincidência, seria a hora desse humano.
— E, em um mundo onde eu pudesse trazer pessoas de volta à vida, se eu ressuscitasse alguém, não poderia significar que ainda não era a hora dessa pessoa morrer?
— Não é assim que funciona — Hades quem interveio. — A morte é o meio de equilibrarmos a natureza, nós não podemos evitar que ela aconteça, assim como não podemos evitar os nascimentos. O Submundo depende disso para sobreviver.
— Como assim não podem evitar que ela aconteça? Não são as Parcas que decidem quando alguém tem que morrer? Elas não podem estar tendenciosas? E se alguém tem tanto poder como elas, ou como eu supostamente tenho, por que elas não foram julgadas também?
— O réu foi ouvido — Zeus falou. — Como esse julgamento não está fundamentado em um crime já cometido, os deuses possuem direito de voto.
abriu a boca, mas não pôde pronunciar uma palavra sequer. O deus do raio apenas balançou a cabeça em negação e ela respirou fundo.
Um a um dos deuses foram se levantando e andaram até uma pequena urna ao lado da tribuna. Em um papel, eles anotavam seu voto em silêncio e depositavam ali. nunca esteve tão nervosa como naquele momento. Ela não achava que as coisas dariam errado, afinal, como ela mesma ressaltou, não tinha sentido ela ser julgada por algo que não poderia fazer... Mas o que aconteceria se a maioria dos deuses achassem que sim?
Quando se deu conta, a ninfa que contava os votos entregava um envelope amarelado ao Zeus e a deusa da primavera precisou piscar os olhos algumas vezes para voltar à realidade. Nem havia percebido o tempo passar.
— Por favor, sentem-se — o deus o raio disse antes de abrir o envelope.
, ainda parada no centro do salão, entrelaçou as mãos e sentiu seu coração acelerar. Perséfone, no seu campo de visão, tinha os nós dos dedos quase brancos de tão forte que apertava o braço de Hades.
— Por maioria dos votos, o réu foi considerado uma ameaça e agora está sentenciado à morte, além de duzentos e setenta e três anos vagando à beira do rio Estige antes do seu julgamento na Corte do Fim dos Mundos.
— O quê? — levou da cadeira, indignado.
— Oh, meus deuses — Hermes sussurrou antes de desmaiar.

Capítulo 18

— Meu amor, você poderia ao menos considerar isso, não acha? — Perséfone perguntou em um tom manhoso.
— Coração, nós já discutimos sobre esse assunto. — Hades remexeu-se na cadeira, claramente desconfortável. — Eu sei que você quer que eu restitua a vida de , mas isso iria contra o que meu irmão decidiu. Foi uma votação de corte.
— Me parece inútil você ter o poder de ressuscitar as pessoas se você não o usa.
— Eu uso — ele ergueu a sobrancelha, sugestivo, ainda que paciente. — Inclusive, somente quando você pede.
— Então use.
— Já parou para pensar nas consequências que isso iria gerar tanto para ela quanto para nós?
— Mas, Hades, ela não...
— Perséfone, eu não posso atender o seu desejo.
— Não foi você que me falou que enquanto eu estivesse aqui, no Submundo, eu governaria tudo aquilo que vive e se move e teria os maiores direitos entre os deuses imortais?
— Sim — Hades assentiu. — Porém, creio que logo em seguida eu disse que aqueles que a defraudarem e não apaziguarem seu poder com oferendas, realizando ritos reverentes e pagando presentes, seriam punidos para sempre. E eu cumpri minha palavra, não cumpri? — o deus ergueu a sobrancelha. — Aqueles que um dia desafiaram seu valor estão no Tártaro e ali permanecerão pela eternidade, mas isso não está relacionado ao fato de eu poder ressuscitar . Você sempre terá os maiores direitos que eu puder lhe oferecer entre os deuses imortais, me amando ou não, mas dessa vez eu não posso lhe dar o que você quer. Eu não vou entrar em guerra com o Olimpo, não dessa vez, não mais uma vez.
— Na última vez você saiu vitorioso.
— Na última vez eu sacrifiquei muito para que nos casássemos, são coisas bem diferentes.
— Desculpe interromper — a ninfa enfermeira limpou a garganta, constrangida ao entrar bem no meio da conversa. — Hera está na porta, ela quer visitá-lo.
— Não — Perséfone rangeu os dentes e a temperatura do quarto caiu dezenas de graus repentinamente. Um frio que seria até mesmo mortal para um mero humano. — Eu não sei mais quantas vezes eu vou precisar repetir, Hera não entra nunca mais nessa casa.
— Coração...
— Jamais — a deusa da morte pronunciou-se, irritada.
— Certo — a ninfa assentiu. — Os outros também chegaram, mas vou pedir para que ela aguarde do lado de fora.
— Peça para que ela nunca mais volte ao Submundo — Perséfone acrescentou, encarando o corpo pálido de seu filho na cama. — Ela não é bem-vinda aqui.
Hades suspirou e assentiu discretamente com a cabeça. A ninfa entendeu que aquilo era o seu sinal para se retirar. Com a maior delicadeza que tinha, fechou a porta sem ao menos fazer barulho. Hades e Perséfone continuaram em silêncio, encarando o corpo de imóvel. Pálido. Inexpressivo e cheio de cortes dourados que insistiam em não cicatrizar. Ele parecia estar em um sono profundo e... eterno.
Aquele silêncio cortante poderia ser o que a deusa da morte expressava, mas seu marido sabia muito bem as palavras não ditas. Ela estava incomodada. Incomodada com todos. E agora incomodada com ele também.
— Olá! — Hermes entrou, sorridente, quase fazendo a porta voar longe, e jogou-se no colo de Hades.
— Mas o que... — o deus do Submundo recuou o torso.
— Oh, que saudades que eu estou de você! — o mensageiro falou, dramático, agarrando-se no pescoço do outro deus.
— Privacidade? — Hades engoliu em seco. — Limites?
— Ele está sentindo falta de ver sua cara no escritório todos os dias — Psique disse enquanto tentava respirar direito.
Sua gravidez a estava deixando cada vez mais cansada. Ela sabia que isso era uma indicação de que o parto estava por vir, afinal, ela estava muito próxima da quadragésima semana. Apesar de já estar sentindo falta prematura de todo esse processo, ela não poderia estar mais ansiosa para conseguir passar mais de uma hora sem ir ao banheiro.
— Não lhe ver mais no escritório, ter perdido meu trabalho com Hera para Íris, em um coma misterioso e a morte de são coisas demais para mim — Hermes suspirou.
— Onde está Eros? — Perséfone levantou-se da poltrona para oferecê-la para Psique, que se sentou, aliviada.
— Ele está na casa de Afrodite. Ela precisava de ajuda com as crianças. Você sabe como ela é, nada é mais importante do que seu sono de beleza da tarde e não é como se Ares fosse um pai adequa... bom, um pai. Não é como se Ares fosse um pai.
— E como ele está? — Hermes levantou-se e andou até .
— Mesma coisa dos últimos meses — Hades respondeu, dando de ombros, fingindo descaso. Afinal, desde quando o próprio deus da morte, aquele que decide entre a vida e o fim, o monarca das profundezas obscuras e o pai do medo, não seria o primeiro a esconder o que realmente sentia quando via a sua própria prole insípida a sua frente? — Nenhum sinal de melhora, mas nada piorou também.
— Você acha que algum dia ele vai acordar?
— Hermes! — Psique censurou-o.
— Está tudo bem — Perséfone sorriu fraco. — Esperamos que sim. Achamos que sim. Antes temos que entender o que causou isso para podermos solucionar o problema.
— Bom, está claramente conectado à . — Hermes levantou as sobrancelhas em obviedade. — Até porque ele ficou completamente paralisado desde então.

Você está maluco?! Perséfone levantou da cadeira em fúria, com seus cabelos rosas flutuando agressivamente. Você acaba de matar uma deusa em plena Corte!
Vamos lá, Séfi Hera suspirou, tanto frustrada como aliviada. Não tem mais o que fazer e precisamos voltar a trabalhar.
Eu tenho uma papelada grande assim em cima da minha mesa me esperando Zeus abriu os braços com exagero.
Hm... Eu... Você também os viu aniquilando a ou foi só uma impressão minha? Hermes franziu o cenho, ainda desacreditado.
Er... Eros engoliu em seco. Não. Não é possível.
Sim. Não... Claro o mensageiro assentiu.
Então os dois colocaram a mão no queixo ao mesmo tempo. Estavam claramente em negação e Hécate, ao lado de Hermes, balançou a cabeça, frustrada. Já tinha problemas o suficiente no Submundo, a última coisa que precisava agora era ter que lidar com o caos que seria refazer o mundo novamente por causa da falta de uma deusa da primavera.
? Hades chegou perto de seu filho, franzindo o cenho.
Algo estava errado.
Seu corpo estava paralisado. As penas de suas belas asas negras caíam uma a uma, agora em um tom mais acinzentado do que naturalmente tinham, apesar do barulho metálico contra o mármore continuar o mesmo de quando seu filho arrastava suas pesadas asas no hall escuro de Hélio, embora as faíscas já não fizessem parte do cenário. As penas pareciam frágeis, como um cristal que se estilhaça em mil pedaços ao cair no chão.
Quando Zeus lançou seu grande raio, levantou-se em reflexo, mas nem Hermes seria capaz de alcançá-lo. Estava feito. Nada deteria a velocidade da luz e nada resistiria à intensidade e à veemência daquela carga, nem mesmo uma deusa. Quando viu o corpo de desaparecer, como uma poeira cintilante se escondendo no ar, ele parou imediatamente e não conseguiu mover um músculo sequer. Cada pequena parte de si estava rígida como uma das pedras dos montes Dícti. As conversas ao fundo não passavam de sussurros em seu ouvido e o alvoroço parecia estar longe. Seus olhos, fixos no rastro preto que a luz do raio deixou no chão.
Não estava acreditando no que acabara de ver.
Vocês realmente deram conta de erradicar uma deusa que não fez nada?! Perséfone ainda gritava com o casal real. Vocês conseguiram se superar na estupidez dessa vez!
Oh, meus deuses Deméter colocou a mão no peito, percebendo seu coração palpitar. Sentia-se culpada.
Como você acha que as pessoas vão continuar confiando em vocês no poder se fazem esse tipo de coisa? a deusa da morte esbravejava. Isso é um absurdo!
Perséfone, por favor, já está feito Zeus revirou os olhos.
Psique vai surtar Ártemis sussurrou para Apolo. vai sofrer lá embaixo.
Todos vamos sofrer seu irmão respondeu. Hoje, o Olimpo e a Terra perderam uma grande deusa. Zeus e Hera não têm noção do que acabaram de fazer.

— Estando conectado com a morte dela ou não, não tem muito o que fazer — Psique suspirou. — Ela está no Submundo agora.
— Mas nós também estamos — Hermes sorriu.
— São coisas bem diferentes — Psique revirou os olhos. — Ela está à beira do rio, vagando com as almas mortas, na iminência de um resquício de vida e nós estamos na mansão dos deuses do Submundo, rodeados de... — ela segurou uma das frutas sobre o prato ornamental dourado ao lado do bule de chá de cerâmica. — Rodeados de luxo e riqueza.
— Sim, mas o que eu quis dizer é... — o mensageiro colocou a mão no queixo. — Será que podemos visitá-la?
— Não — Hades fechou o semblante, autoritário. — E você sabe muito bem disso, não sabe, Hermes?
— Eu queria que ela pudesse voltar — ele sussurrou, ignorando o tom sugestivo, e Perséfone trocou olhares com Hades. — Talvez isso resolvesse o problema.
— E talvez criasse mais outros mil — Psique cogitou, pensando na fúria de Hera e Zeus, o que fez Hades erguer uma sobrancelha em concordância.
— Valeria a pena se os dois estivessem vivos e juntos, se amando — a fala de Hermes fez Perséfone sorrir, vitoriosa.
— Isso é verdade — Psique acrescentou.
— Mas, ao mesmo tempo, trazer um ser de volta à vida desarmoniza o equilíbrio estabelecido pela natureza — o mensageiro cedeu. — Eu já vi isso acontecer com as almas que eu trago para cá.
— Bom, não vejo como o equilíbrio não esteja desarmonizado agora.
— O que você quer dizer com isso, Psique? — Perséfone interveio, curiosa.
— Vocês estão vendo, não estão? Deméter, chateada do jeito que está, não consegue dar conta de prover a primavera com a mesma qualidade que já estava conseguindo fazer, o que automaticamente afeta os humanos. Não só isso, é nítida a falta da calmaria que só uma deusa da primavera consegue prover ao Olimpo. Já repararam como as pessoas estavam mais felizes só com a mera presença dela?
— É realmente notável esse efeito que ela tem de parecer um anjo flutuante, como se nenhum dos problemas importasse mais — o mensageiro colocou a mão no queixo, relembrando a primeira vez que vira .
— Além disso — continuou Psique —, Eros não para de reclamar como os humanos estão sentindo a diferença que faz.
— Por que não colocam Perses para fazer o trabalho dele? — Hades sugeriu e sua esposa colocou a mão na boca, indignada.
— Perses, filho de Hélio? — Psique inclinou a cabeça. — Ele não é um bruxo?
— Perses, o titã. Deus da luxúria.
— E da destruição — Hermes corrigiu Hades.
— Como se ele pudesse substituir um trabalho primoroso como o de ! — Perséfone sentiu os cabelos começarem a flutuar.
— Ela tem um ponto, afinal, não somente luxúria e prazer são coisas diferentes, como Perses é bem mais inclinado e conhecido pela destruição — o mensageiro engoliu em seco. — Acho que não seria uma boa troca.
— Não adianta tirarmos conclusões assim — o deus da morte afirmou.
— Falando em Perses, você lembra... — Hermes sorriu, nostálgico, falando quase em um sussurro. — Lembra quando nasceu? Todos achavam que não havia necessidade de um deus do sofrimento e do prazer.
— Perses e Ares ficaram com ciúmes, isso sim — Perséfone riu.
— Eu particularmente fiquei traumatizada — Psique arregalou os olhos e sentiu um enjoo instantâneo ao recordar da cena. — Ele literalmente arrancou com os próprios dentes a mão de Deméter.
— Eu não me lembro disso.
— Você estava na ilha de Circe — Psique respirou fundo com a fala do mensageiro. Ela sabia muito bem o que ele e Circe estavam fazendo —, perdendo o verdadeiro show de horrores que foi esse parto.
— Foi lindo! — a deusa da morte contestou. — nasceu banhado em sangue dourado de dois deuses nobres.
— Bom, se você acha que é lindo um deus nascer regado a sangue dourado, porém com olhos completamente pretos e tomados por um ódio jamais visto, então foi lindo mesmo, mas se você acha uma atrocidade um bebê ainda dentro da sua barriga ser capaz de arrancar membros de outra pessoa com os dentes e perfurar a pele resistente de uma deusa com as penas afiadas de suas pequenas asas... Oh, espere. Foi exatamente isso que aconteceu.
— Exatamente! Lindo!
— Oh, Séfi — Psique suspirou.


Era a quinta vez no dia que ela via o Caronte desaparecer no horizonte. Ou talvez a sexta. já não sabia diferenciar o dia da noite ou as horas dos minutos, imagine, então, contar com precisão algo que ela nem sabia se acontecia além de sua vista. A verdade era que o céu continuamente escuro do Submundo era como uma constante avalanche em cima de suas costas e um teimoso lembrete da perda do controle sobre o tempo e espaço. E sobre si mesma.
Sentia falta do sol e do calor que ele trazia consigo. Sentia falta do toque, da faísca quando peles quentes se encostavam. Sentia falta de ver o brilho de esperança nos olhos dos outros. Sentia falta de muitas coisas, se fosse completamente sincera consigo, mas não gostava de pensar sobre isso. Não é como se pudesse ter sua vida de volta agora que estava condenada a chamar o Rio Estige de lar.
— Uau!
levou um susto ao ouvir uma voz estranha, como um pequeno som sussurrado e espontâneo que o vento leva. E talvez fosse. Estava tão absorta em observar o barco desaparecer, que não sentiu a presença de outros ao seu redor. Um pequeno garoto a encarava boquiaberto, em perfeita admiração. Um tipo de admiração que testa a sua capacidade de desviar o olhar, por mais que todos os músculos do seu corpo não queiram. Ele estava atônito com tamanha beleza.
— Você brilha tanto! — ele chegou perto, querendo tocar a deusa, mas hesitante em fazê-lo, o que a fez rir.
— Suponho que sim — sorriu e desviou o olhar para voltar a ver o Caronte.
O barco, no entanto, já havia sumido em meio à neblina e lá se iam mais pessoas sortudas que chegariam à Corte do Fim dos Mundos. A deusa ficava ansiosa em tentar adivinhar quem seria a pessoa que a julgaria lá quando finalmente fosse a sua vez. ? Perséfone? Ou será que o próprio Hades?
— Por que você brilha assim? — o menino perguntou, curioso.
Assim que ela voltou a pousar seus olhos nele, uma pontada atingiu-a no coração. Era inevitavelmente doloroso ver pessoas tão novas ali. questionava-se como a vida poderia ser tão cruel às vezes. Será que, novo como era, ele entendia onde estava? E será que ele entendia o que havia acontecido para ele estar lá?
— É uma ótima pergunta — a deusa sorriu.
— É verdade, você realmente brilha muito — Marcos encarou-a das cabeças ao pé com o habitual desdém.
— Não tem muito o que fazer em relação a isso. Parece algo natural, não acha? — ela perguntou, sugestiva.
— Eu queria ser assim também — o menino olhou para suas próprias mãos, tão pálidas que chegavam a ser transparentes. — Por que eu não sou assim?
— Por que ela é especial — Marcos falou.
— Não comece, por favor — retrucou. — Eu gosto de pensar que, na verdade, as pessoas que são especiais são justamente as que não brilham tanto.
Ela quase distraiu-se com o sorriso genuíno do menino, mas aquilo não foi o suficiente para a deusa não lançar um olhar repreendedor para Marcos. Parecia que não haveria um dia da eternidade no qual ele deixaria de apontar o fato de que demorara um bom tempo para lhe contar que ela era uma deusa caída do Olimpo. Em seu ponto de vista, não faria sentido nenhum ela acordar em uma das rochas, com os pés na água do rio gelado, encontrar Marcos ao seu lado, esperando-a finalmente abrir os olhos, e dizer: “olá, meu nome é e eu sou a deusa da primavera. Ajoelhe-se perante a mim, mero mundano, se deseja que seu julgamento não seja trágico, e prometa-me adoração eterna, pois assim eu lhe pouparei a vida”. Tanto não faria sentido, como não faria diferença também. Ela não tinha mais seus poderes.
— Eu só não consigo entender porque você demorou tanto para me contar.
— Eu fico me perguntando quando será que o Caronte vai vir lhe buscar — revirou os olhos. — Já está na hora.
— Eu sempre achei que uma deusa da primavera deveria ser mais gentil e simpática, não?
— Eu posso ser o que eu quiser, eu só tenho certas inclinações inerentes a mim... às vezes.
— Você é uma deusa? — o menino interrompeu a conversa, curioso.
— Eu era, eu não sou mais — ela sorriu. — Agora eu sou como você.
— Só que mais brilhante — ele acrescentou.
— Sim, um pouco mais brilhante por fora. — deu uma piscadinha e voltou a andar. — Mas não se preocupe, logo mais você verá que todos somos iguais aqui.
— Aqui aonde?
— Na vida após a morte.
— A vida após a morte? — ele arregalou os olhos.
— O importante é que ela é uma vida. Uma vida livre. — parou e tocou docilmente o nariz dele, o que o fez rir. — E aqui você pode ser e fazer o que quiser. Venha! Eu vou lhe mostrar como dar carinho no Cérbero. Ele adora crianças e você vai poder fazer um passeio nas costas dele e conhecer os arredores se ele ficar grande!


— A minha vida costumava ser tão mais fácil com aqui — Eros derreteu no sofá, cansado. — Eu odeio o meu trabalho.
— Se eu me lembro bem, você disse que amava seu trabalho — Hermes falou sem desviar o olhar da panela.
— Isso era antes, quando os humanos sentiam o prazer que ele distribuía e quando as pessoas realmente sofriam pelo amor. Hoje em dia, parece que as pessoas estão relutando para se apaixonarem. Não existe prazer nenhum em ter as borboletas no estômago, nenhum prazer em ir jantar com a pessoa que está interessada em você, nenhum prazer naquele choque quando as mãos se tocam sem querer pela primeira vez.
— Jogue as suas flechas em todo mundo, então — Ártemis sugeriu enquanto montava a tábua de queijo. — Problema resolvido.
— O amor não funciona assim — o cupido rebateu, mas logo se arrependeu de ter falado alto ao sentir a pequena Volúpia se mexer em seu colo.
Ele segurou a respiração até seu pulmão implorar por ar, sem mexer sequer um fio de cabelo. Não ousaria por um milésimo de segundo perturbar o sono dos dois bebês. Aquilo seria no mínimo a sua ruína. Nunca esquecera de uma fatídica noite quando acabou pegando no sono no quarto dos trigêmeos. Três horas da madrugada e um pequeno ronco de exaustão foi o suficiente para fazer ele e Psique passarem a noite tentando não chorar de desespero junto com os bebês. Diga-se de passagem, Eros suspirou, aliviado, quando viu as respirações calmas e ritmadas deles.
— Funciona para mim — Ártemis sorriu, cética.
— Janta pronta — Hermes interveio com um sorriso no rosto, que sumiu rapidamente assim que fitou o lugar em que costumava sentar na mesa de jantar. — Onde está a Psique?
— Ela ainda está dormindo. — Eros mudava os canais da televisão, sem conseguir se concentrar. — Daqui a pouco ela desce.
— Ainda? — Ártemis checou seu relógio. — Mas já são nove horas da noite.
— Você sabe como é cuidar de trigêmeos recém-nascidos — o mensageiro falou enquanto colocava os pratos na mesa. — Ela está exausta.
— Às vezes esqueço que ela é humana — Ártemis suspirou. — E sinceramente, sim, eu sei bem o que é cuidar de trigêmeos recém-nascidos. Não é como se fosse um mar de rosas ser vizinha de três alto falantes que são fanáticos pela madrugada.
Ainda não se tem notícia sobre as condições de . Sem depoimentos da família real do Submundo, acredita-se que as condições se mantêm as mesmas. Hoje completa um ano desde o julgamento da ex deusa da primavera, , e, portanto, um ano também do estado de profunda hibernação de .
— Oh, desligue isso, por favor. — Psique desceu a escada a tempo de ouvir a televisão. — Já basta todas as manchetes de jornais falando sobre eles hoje.


— Marcos! — estava extasiada. — Marcos! Marcos! Marcos!
— Pelos deuses, por que tanta animação? — ele colocou a mão sobre seu peito, mesmo que seu coração já não batesse mais.
Estava tão concentrado em vagar pelos seus pensamentos que a voz de pareceu uma bala atravessando seu cérebro. Estava enganado quando achou que todo aquele tempo no Submundo o faria se acostumar com o excesso de energia dela.
— Eu consegui! Olhe só! — a deusa apontou para um pontinho verde no chão.
— O que eu deveria estar olhando?
— Chegue mais perto — chamou-o com a mão. — Se você olhar de perto, vai conseguir ver.
Então Marcos respirou fundo e levantou-se. Ultimamente estava se sentindo muito sem disposição, até levantar parecia uma tortura. Ele interpretava aquilo como a aproximação do dia em que o Caronte finalmente concordasse em recebê-lo no barco, ao mesmo tempo que evitava a esperança para não se decepcionar, como fizera tantas vezes nos últimos anos.
— Eu não acredito — ele franziu o cenho, verdadeiramente impressionado, algo raro, considerando o que já tinha visto por ali. Afinal, ele chegou a ver uma deusa caída do Olimpo. — Você conseguiu.
Um pequeno sorriso surgiu nos lábios dele e parecia estar na iminência de explodir de tanta felicidade. À frente deles, erguendo-se na terra mais árida e indigente que ela já vira, havia um pequeno broto verde, com duas pequenas folhas de borda cerrada, lutando incansavelmente para se manter vivo.
— É tão pequena e bonitinha — ela sorriu, orgulhosa.
Tantas foram as vezes que ela tentara cultivar qualquer coisa naquele solo, porém nenhuma delas foi com sucesso. pensou em desistir. Estava quase convicta que não tinha mais poderes, ainda mais porque não se sentia conectada com a natureza como quando estava na Terra ou no Olimpo. Ver aquele broto verde tentando sobreviver, no entanto, carregava-a de esperança. Ela já podia sentir a conexão com a natureza surgindo novamente.
— Podemos chamá-lo de Bob — Marcos sugeriu.
— Ela é fêmea, apesar de que podemos chamá-la de Bob mesmo assim.
— Então Mintha.
— Hm — sorriu. — Mintha. Realmente se parece como uma folha de menta.


Hera bateu à porta duas vezes, mas, como sempre, entrou sem mesmo ser anunciada. Ela já se sentia em casa, não sentia a obrigação de ter que esperar alguém dizer que ela poderia entrar.
— Hebe, querida?
— Na cozinha — sua filha falou alto.
— Urgh — a deusa engoliu em seco enquanto tirava suas luvas de renda. — De onde Tártaros ela tirou esses móveis horríveis?
Assim que Hera deixou sua bolsa no sofá da sala, deparou-se com uma visão inesperada. Héracles e Hebe estavam na cozinha, conversando, enquanto almoçavam. E pareciam estar próximos demais para o gosto da rainha.
— Héracles — Hera não conteve o tom de surpresa na voz. — Você por aqui. — E então imediatamente lançou um olhar de reprovação para Hebe.
— Ele vem aqui de vez em quando — a deusa da juventude deu de ombros.
Era uma verdade absoluta que Hebe adorava a sua mãe. Ela transmitia a perfeita imagem de resiliência, carinho e segurança. Nos últimos anos, todavia, o cenário mudou um pouco. Não que aquela imagem tenha mudado, mas Hebe finalmente estava começando a entrar no círculo político da família e percebendo que nem tudo era feito de flores e maravilhas, sobretudo o que sua mãe estaria disposta a fazer para se manter no poder. Incluindo casar sua filha.
O que restava questionar era se sua mãe havia feito sua união com por conta do poder ou porque ela realmente acreditava que aquela união a faria feliz. E ela ainda estava ponderando sobre isso. Porque, por mais que Hebe gostasse de , não seria possível que sua mãe não a amasse o suficiente para fazê-la casar por interesse... certo?
— Companhia é sempre bom — Hera disse, limpando a garganta logo em seguida.
— Sim — Hebe sorriu, ingênua.
— Achei que iria esperar para decorar a nova casa de vocês, querida — a rainha olimpiana sorriu.
— Bom, considerando que ele não acorda há quase dois anos, ficaria meio difícil viver em uma casa sem móveis. Héracles me ajudou. O que achou?
Hera deu um longo e pausado olhar ao seu redor. Seu gosto era positivamente mais inclinado ao clássico e robusto, o que colidia de maneira brusca com o estilo colorido e interiorano daquela casa.
— Eu gosto da lareira na sala — Hera sorriu, falsa.
— Queríamos deixar o ambiente bem alegre e acolhedor — Héracles sorriu, contente.
— Eu vejo — a deusa do casamento falou em desgosto. — Só não sei se é muito o estilo de . Talvez ele prefira algo mais minimalista, industrial, moderno ou talvez até mesmo tradicional.
— Se ele voltar, estaremos de acordo em mudar algumas coisas, não? — Héracles sugeriu para Hebe, que sorriu, doce, em retorno. — Acho que é importante ter um pouco dos dois na casa.
— Quando — Hera corrigiu. — Quando ele voltar. — Então ela andou até a bancada, analisando cada milímetro quadrado da superfície. — Ousado da sua parte falar estaremos, não acha, Héracles? Afinal, não é como se você morasse aqui.
— Bom, eu...
— Não, não. — A rainha olimpiana teve que se segurar para não demonstrar o tique no olho esquerdo. — Não acho que você tenha algo a dizer.
— Mãe, ele...
— E eu e você teremos uma conversa mais tarde — Hera interrompeu-a. — No meu escritório, o que acha?
Antes que qualquer um deles pudesse se pronunciar, algo que não aconteceria enquanto Hera permanecesse na cozinha, dois leves toques puderam ser ouvidos na porta.
— Você está esperando visitas? — Hera perguntou.
— Não — Hebe balançou a cabeça em negação, segurando seu copo na metade do caminho. — A única visita que eu estava esperando era Héracles.
— Bom, se ninguém vai se dar ao trabalho de levantar, eu abro a porta — a deusa do casamento suspirou.
Hebe e Héracles trocaram olhares rapidamente. Era como se as írises em seus olhos tivessem palavras escritas. Ao mesmo tempo que queriam comentar sobre a reação de Hera, uma vez que Hebe tinha o intuito de anunciar para a mãe que Héracles já fazia parte de sua vida agora, uma curiosidade se mostrou mais urgente. Hebe nunca recebia visitas. Quem estava na porta?
— Íris? — Hera perguntou, confusa, ao abrir a porta e dar de cara com sua mensageira. — O que faz aqui?
— Sinto muito se estou atrapalhando, mas trago uma notícia importante.
— O que aconteceu? — Hebe apareceu atrás de sua mãe.
A julgar pelo suor escorrendo pela têmpora e a falta de ar na fala, a deusa do arco-íris tinha voado o mais rápido que conseguia, o que claramente denunciava a urgência da situação.
... — Íris puxou mais ar para o seu pulmão. — O corpo dele sumiu.
— O quê? — Hebe ficou boquiaberta.
— Como assim o corpo dele sumiu? — Hera franziu o cenho, cética.
— Perséfone acabou de avisar Hades que ela entrou no quarto e o corpo tinha sumido.
— Isso quer dizer que ele acordou? — Hebe perguntou.
Uma enxurrada de pensamentos e emoções invadiu seu corpo, como se estivesse sendo puxada bruscamente pela gravidade até colidir. E dentre toda a felicidade que Hebe sentiu ao saber que poderia finalmente ter acordado, uma carga de culpa consumia sua mente.
A verdade é que ela sempre esteve lá, disponível, até mesmo no dia em que ela soube que conversara com na festa de casamento de seus pais. Ele nunca fazia questão de puxar conversa com a deusa da juventude, então ficou muito claro o interesse que ele tinha na nova deusa. Somente os mais observadores, como ela, conseguiam enxergar com clareza. podia não expressar qualquer reação corporal, mas Hebe podia palpar a tensão no ar como se fosse sólida. Linhas azuis brilhantes orbitavam os dois e eles pareciam dois buracos negros tentando não serem pegos no abismo cósmico um do outro, sem estarem cientes do fim óbvio e inevitável: ninguém poderia escapar.
Íris continuou falando, porém Hebe não conseguia ouvir as palavras. Como conseguia ficar tão triste com a notícia de que finalmente havia acordado? Essa pergunta passava por todos os cantos de sua cabeça em vão. Ela já sabia a resposta. Estava demasiadamente triste, porque ela sabia que não poderia ter qualquer futuro com Héracles, se tivesse acordado.
— Bom, sim, é isso que eu estava dizendo... — Íris sorriu sem graça. — Não exatamente.
— Como assim não exatamente? — Hera estava confusa. — Ou ele acordou, ou ele não acordou.
— A enfermeira ficou na porta do quarto desde o momento em que Perséfone saiu para falar com Hades no escritório até ela voltar, que foi quando ela viu que o corpo dele havia sumido. Ninguém entrou ou saiu.
— Pelos deuses — a rainha olimpiana colocou a mão no peito. — O corpo só desapareceu? Não é possível! Traga-me meu marido imediatamente! Não me importa se ele falar que está ocupado!


, eu acho que você deveria parar. — Marcos engoliu em seco.
— Por que você diz isso? — ela perguntou sem desviar o olhar das plantas.
— Você está... brilhando menos.
Desde que criou o pequeno broto na terra, ela havia tido sucesso em cativar mais plantas ao redor, algo indiscutivelmente inovador para o Submundo. O cenário, entretanto, parecia ter tomado proporções enormes. A deusa parecia viver em função de conseguir desenvolver as plantas e agora ela tinha um pequeno jardim. Realmente pequeno se comparasse ao que gostaria de ter, porém grande até demais para aquelas terras inertes. Se dependesse dela, o Submundo inteiro estaria banhado em plantas. Marcos, no entanto, via com clareza o que aquilo estava causando em : sem o sol, as plantas requeriam a energia da deusa e aos poucos ela perdia o seu brilho singular que tanto a destoou das outras almas ao longo dos anos.
— Não seja bobo — sorriu.
Apesar de não aparentar, com aquele véu de inocência inerente a si que a cobria delicadamente, sabia muito bem o que Marcos queria dizer. E ela concordava. Só não queria pensar ainda mais naquilo, afinal já tinha chegado a uma conclusão. Se fosse morrer de qualquer jeito, não é como se gastar energia com algo que ela gostasse fosse ser algo ruim.
— Leve esses dentes de leão e pare de reclamar, por favor — gentilmente colocou uma das flores atrás da orelha de Marcos. — Tome cuidado que qualquer vento pode levar as sementes embora.
— Eu não entendo porque você quer que a gente distribua essas coisas para os outros.
— Você sabe o que significa a semente do dente de leão? — ela ergueu uma sobrancelha e Marcos não respondeu. — Significa esperança.
— E como isso se conecta exatamente comigo sendo obrigado a distribuir essa flor que vira poeira com um espirro?
— Se nós dermos um desejo para cada pessoa, a gente dá esperanças de uma vida após a morte melhor, entende?
— E? — ele a incentivou a continuar, ainda sem entender.
— E isso evita que as pessoas acabem como você. Amarguradas. Agora vá.
sorriu, simpática, e Marcos ficou boquiaberto, perfeitamente indignado.

Capítulo 19

Embora todos ali estivessem reunidos por um único motivo, a tensão no ar ainda era palpável. A deusa da morte não poupava clareza em relação a quem ela culpava pelo estado de seu filho, estava mais do que óbvio. Única, impiedosa e ferozmente: Hera. Um pouco — e insignificantemente, ela diria — Zeus, mas Perséfone considerava-o imaturo e leviano demais para ter noção do que tinha feito. E, afinal, os deuses não tinham obrigação de serem justos. A banalidade, entretanto, não o tirava do seu campo de grosserias, respostas afiadas, espionagem e outras coisas; mas tornava-o menos útil que poeira no ar. Francamente, Perséfone teria a eternidade para começar a pensar em perdoar Hera, dois anos e meio eram o mesmo que um segundo na sua linha temporal. Pouco demais para considerar qualquer indulgência por enquanto.
Depois do sumiço de , aquela ira interna parecia se alimentar com a simples imagem mental do fatídico dia em que morrera, algo que vinha à tona constantemente junto às inúmeras consequências que isso parecia gerar no Olimpo. Se Hera não tivesse implicado por puro orgulho e teimosia, estaria vivo. E Perséfone fazia questão de frisar isso sempre que tinha a oportunidade. Como seu rastro negro natural, ela nem precisava se esforçar. Assim como Hélio queimava a pele de todos ao seu redor quando era contrariado, Perséfone dizimava a vida das pessoas que chegassem perto quando estava brava. Ela mesma não tinha noção do que a sua raiva fazia e, mesmo com milênios de prática, não conseguia controlar quando o assunto era voltado ao emocional. Meros humanos poderiam se tornar ossos esmarridos com um único olhar. Considerando que inicialmente sobrevivessem à baixa temperatura que ela trazia aonde quer que pisasse.
Hades, por outro lado, estava mais reservado e tranquilo. Embora fosse sua prole, o que mexia com suas poucas, porém intensas, emoções, era o descontentamento de sua esposa. Sua necessidade intrínseca de agradá-la guiava-o dentro de si como um farol à beira mar. Tinha que admitir que a sua falta de grandes ressentimentos em relação a era fruto de milhares de anos que o prepararam para uma possível perda. Foram milênios arrastados e regados à implicâncias e falta de maturidade da parte de Zeus em suas escolhas como rei, que — ele sentia-se obrigado a dizer — não foram nada bem pensadas ou elaboradas. Nada. Se para os homens a eternidade era sinônimo de amadurecimento e aprendizado, Zeus precisava de um pouco de mortalidade. Ele parecia estagnado na segurança de que tudo duraria para sempre.
Sentado ali, no entanto, a duas cadeiras de distância de seu irmão, nada surpreendia Hades. Nem a falta de noção que ocorreu no julgamento e que apresentava suas consequências até o presente, nem a insensibilidade que se expressava na face plena do rei dos deuses. Desprezível. Porém habitual.
— Eu sei que vocês não queriam estar aqui... — Hera começou a falar, mas logo foi interrompida por Perséfone.
— Então você deveria ter pensado melhor nos seus atos.
— Mas gostaríamos de ajudá-los, embora não seja nossa obrigação. — A deusa do casamento ignorou o tom frio. — Creio que já devem estar revirando o Submundo para encontrar .
— Então estamos supondo que ele morreu? — Deméter arregalou os olhos.
— Bom — Hermes respirou fundo. Estava exausto. Exausto como nunca antes. Ele passou dias vasculhando todos os possíveis cantos do mundo e a verdade era que nem sabia se tinha conseguido passar pela metade —, essa foi nossa segunda hipótese, já que não achamos o corpo por aqui.
— Ele não pode só ter acordado e escapado do quarto? — Deméter questionou.
— Por que Tártaros ele faria isso? — Hécate franziu o cenho.
— Eu não acredito que alguém pode morrer de amor — Ares falou, indignado, revirando os olhos.
Não estava acreditando que tinha sido interrompido no meio do seu treino para ter que presenciar uma reunião sobre... .
— Você claramente não bota fé no meu trabalho — Afrodite ofendeu-se.
— Nem no meu — Eros acrescentou.
— As pessoas não morrem de amor — Apolo interferiu, carregando sempre aquele semblante de sabedoria que tanto irritava alguns naquela sala. — Elas morrem de solidão.
— Eu acho que elas podem morrer de amor também — o cupido fez uma cara de desdém.
— Talvez alguém o tenha transformado — Deméter propôs e de repente um silêncio cortante tomou conta da sala.
Como Tártaros ninguém havia pensado naquilo antes? poderia ser qualquer objeto naquele quarto. E, agora, fora dele também. Não só alguém podia tê-lo feito, como ele próprio poderia. Perguntas e perguntas iam surgindo em cada uma das cabeças. Se alguém o transformou, por quê? Se ele fez isso consigo, está fugindo de algo? De alguém? Teria ele aberto mão de sua vida por algo em troca? Foi proposital? Em qual objeto ele teria se transformado? Por que nenhum dos deuses sentiu ou rastros dele em nenhum objeto do quarto? Sobretudo Ártemis...
Será porque essa hipótese era falha?
— Hélio já foi avisado sobre ficar de olho em qualquer indício da presença de na Terra. — Hera limpou a garganta. — Eu ficarei responsável pelas buscas no Olimpo e Deméter na Terra.
— Vocês conseguiram fazer Poseidon concordar em procurar os mares? — Hades ergueu a sobrancelha. — Ou eu devo prestar uma visita? — Hermes sentiu um calafrio percorrer sua espinha assim que Hades deu um breve e muito discreto indício de sorriso. O mensageiro sabia muito bem o que isso significava.
Ele, aliás, não entendia porque o deus dos mares estava tão relutante em encontrar o filho de Hades, seu próprio sangue da Tríade Real.
— Estamos trabalhando nisso — Anfitrite respondeu com um sorriso fraco. — Mas não se preocupe, Hades.


— Bom dia, gata — Hermes sorriu abertamente para a recepcionista.
— O que você quer?
O olhar entediado e frívolo de sempre continuava lá.
— Eu quero muitas coisas. O que você tem a me oferecer?
— Deixe-me adivinhar, você não marcou horário. — A ninfa respirou fundo.
Ela não era paga o suficiente para ter que lidar com Hermes àquela hora da manhã. Havia sentado não fazia nem meros quarenta segundos naquela cadeira.
— Eu deveria ter marcado? — ele apoiou o braço no balcão, ainda sorridente.
— Você sabe que sim. — Ela pegou o telefone, já sabendo exatamente o que deveria fazer. — Eu não sei se Hades já chegou. Você sabe que de sexta ele costuma começar às dez.
— Oh, ele chegou — o rapaz piscou, ignorando o cartão branco que a ninfa oferecia.
— Hermes, não! — ela contrariou, manhosa, ainda que realmente irritada. — Suba pelo elevador como um ser apocalíptico normal!
— Desculpa, não consigo ouvir, já estou na porta.
Foi somente necessária uma vez para que Hermes entendesse que usar o elevador não valia a pena. O cubículo de metal não era rápido o suficiente para seu gosto. Além do mais, ele adorava ver a cara de estresse da secretária de Hades quando ele dava toques na janela para que ele pudesse entrar.
— Bom dia, xuxuzinho! — Hermes abriu a porta do escritório do deus da morte com o seu tom de voz mais alegre.
— Xuxuzinho? — Hades ergueu a sobrancelha, incrédulo.
— Você prefere xuxuzinho ou docinho de coco?
— Nenhum.
— Então ficamos com bebê mesmo. — Sentindo-se confortável, Hermes deitou-se no ar e tirou um pergaminho do bolso. — O que acha de começarmos nossa reunião agora?
— Até onde eu sei, não temos uma reunião marcada. — Hades nem desviou o olhar dos documentos em sua mão. — A não ser que a minha secretária tenha falhado em me informar algo — ele continuou, sugestivo, em um tom de voz que a ninfa claramente poderia escutar.
— Não vamos envolvê-la nisso. — Hermes bateu uma única vez sua asa, criando uma corrente de ar que fez a porta fechar. — Que tal começarmos com uma pequena atualização sobre as nossas almas pré-julgamento?
— Atualização?
— Oh, então você não sabe? — A fala do mensageiro atiçou a curiosidade do deus. — Temos um pequeno problema. Bom, talvez não tão pequeno assim. Todas as almas que vagam no Rio Estige sumiram.
— Sumiram? — Hades franziu o cenho, sem desviar o olhar dos papéis, mantendo-se calmo, por mais que estivesse confuso. — Como assim sumiram?
— Exceto uma.
— Quem?
.
— O quê?! — Hades finalmente levantou seu olhar. — Perséfone já sabe?
— Não, ela está dormin...
— Pois trate de contar agora — ele interrompeu-o. — Ela vai querer saber.
— Você não quer saber mais detalhes? — Hermes abriu suas grandes asas em toda sua extensão, já preparado para a missão que acabara de ser imposta. — Para onde as almas foram, por exemplo?
— Para onde elas foram? — Hades suspirou e fechou os olhos, já prevendo o caos que seria aquele dia.
— Todas voltaram de onde vieram. Quem trouxe todas as almas de volta à vida foi a . — Hermes coçou a nuca, lendo o pergaminho. — E não só isso... ela trouxe de volta à vida também. O nome dele está na lista. — O mensageiro deixou o resto do papel rolar no chão, até bater na ponta do sapato de Hades e parar.
estava morto? — O deus recostou-se na cadeira, já não sentindo as suas pernas como antes.
— Aparentemente sim, mas agora ele está de volta ao Olimpo.
— Onde?
— Eu não sei, creio que...
— Encontre-o. — Hades apoiou a mão na cabeça. — E notifique Perséfone nesse instante.


— Você pode fazer o desejo que quiser. — agachou-se na altura do menino.
Era o mesmo pequeno garoto que havia dito que ela brilhava muito a alguns dias atrás. No início, ele gostava de ficar seguindo a deusa para todos os lados, em seu encalço como se fosse parte do longo vestido dela. Não parava de dizer que aquele vestido que ela usava parecia um lençol bem enrolado em seu corpo. Ao longo do tempo, entretanto, ele começou a criar a coragem de se aventurar e cada dia caminhava mais longe sem precisar de companhia, ainda que sempre voltasse para ficar com a deusa e Marcos.
— O que você pediu no seu?
— Eu não acho que meu pedido faria sentido para você — ela sorriu, esperta.
— E eu tenho que lhe contar o que eu vou pedir?
— Somente se você quiser. Ele vai se realizar de qualquer jeito, desde que você acredite no que desejou.
— E depois, o que eu faço?
— Você assopra a flor até ela ficar sem nenhuma parte branca.
O menino sorriu, alegre, balançando a cabeça freneticamente e segurando a flor com as duas mãos com muita força, até os nós de seus pequenos dedos ficarem brancos, como se não quisesse perder aquela oportunidade de jeito nenhum. Foi naquele momento que todo o gasto de energia que sentia, todas as vezes que precisava sentar, pois não saberia se aguentaria o cansaço, valeram a pena. Ela perguntava-se se cada alma vagante reagia assim quando Marcos as oferecia um desejo.
! — A voz distante de Marcos soou ao fundo.
— Aqui! — a deusa respondeu sem desviar a atenção, vendo o menino em sua frente fechar os olhos intensamente e sussurrando palavras que ela não conseguia ouvir.
! — Marcos chegou, apressado, e parou ao seu lado, ofegante.
— Aconteceu alguma coisa? — ela, enfim, desviou o olhar.
Marcos não parecia querer fazer nenhum tipo de esforço além de andar calmamente por aí — ou o que gostava de chamar de arrastar o pé o mais lentamente possível —, esperando pelo contraditório fim da eternidade. Era natural, portanto, que o ver ofegante não parecia um bom sinal.
— Eu estava distribuindo uma das coisinhas verdes que você me deu…
— Flores? — ela perguntou em um tom sugestivo.
— Sim, isso aí — Marcos falou com indiferença.
— Pronto! — o menino gritou, feliz, interrompendo-os como se outra conversa não estivesse acontecendo.
— Fez o seu pedido? — a deusa sorriu, ainda na altura de seus olhos.
— Sim, eu queria ver minha mãe, meu irmão e meu cachorro outra vez. — engoliu em seco com a fala dele. — Então pedi para poder viver de novo.
— Você quer voltar à vida? — ela perguntou, pálida.
— Bom — uma voz estranha soou —, eu particularmente não gostaria de fazer isso.
Familiar. Era isso que aquele tom de voz sarcástico e perigoso era: familiar.
engoliu em seco e se recusou a mexer um músculo sequer, sentindo o calafrio tomar conta de seu corpo. Sentia que todos aqueles anos no Submundo finalmente invadiram a lucidez de sua cabeça.
Aquilo era tortura.
O tom suave, no entanto, era inabalável e irrefutável. Mesmo que ela pudesse ver a fumaça branca da baixa temperatura sair de sua boca enquanto tentava manter sua respiração controlada, aquele timbre escorria em seu ouvido como lava, queimando-a. Quando, enfim, criou coragem para desviar o seu olhar do chão para o lado, a deusa levantou-se e encarou-o.
As imensas asas abertas, escuras e sóbrias como uma noite limpa sem estrelas, chamaram-lhe atenção mais uma vez. jamais se cansaria daquele ar de grandiosidade e intimidação que aquelas belas penas de aço exalavam. Dessa vez, tocavam o chão como se faíscas fossem brilhar se ele desse um passo contra a superfície áspera.
Uma mistura de hesitação e atração fez seu coração disparar. Ela já não conseguia discernir a realidade das projeções de seu cérebro. Sonhou tantas vezes com esse momento que provavelmente era só mais uma manifestação de seu subconsciente... mas a face trazia aquela beleza ameaçadora característica que nem a melhor memória lapidaria com tantos detalhes. Aquele rastro na íris de seus olhos era fúnebre e gélido, como na primeira vez que o vira, o que lembrou da própria morte.
Não estava sonhando.
— ela sussurrou, ainda incrédula. sabia muito bem que Marcos não conseguiria ouvir seu murmúrio, mas sabia que havia escutado.
— Eu estava andando perto das colinas... — Marcos começou a falar, gesticulando as mãos, mas a deusa o bloqueou de seus ouvidos em questão de milissegundos, focando somente no deus.
“Ninguém me contou que afundar sob o pesado fardo do amor realmente me levaria até o fundo”. ergueu uma sobrancelha, mantendo a face neutra, e imediatamente arregalou os olhos com o som da voz em sua cabeça. Como diabos ele estava fazendo aquilo?
“Como? Você está no meu domínio agora. No meu mundo. E, aqui, eu posso fazer o que eu quiser, incluindo invadir a sua cabeça”. jurou que um resquício de um sorriso malicioso passou rapidamente pelos lábios do deus. “Mas não se preocupe, eu não vou mergulhar nas suas memórias.”
— E eu sinceramente acho que todas as almas devem ter esse negócio verde aí, porque chegar perto das colinas para encontrar só uma…
— Por que você está aqui? — a deusa sussurrou.
“Pelo mesmo motivo que você, eu presumo.”
— Você morreu? — não conseguiu conter o suspiro de choque.
“Sim.”
— Alguém... — o cabelo em sua nuca arrepiou com o pensamento que invadiu sua cabeça. — Alguém lhe matou? Como punição?
“Não, não foi a Hera.”
, o que Tártaros está acontecendo? Por que você está aqui? — ela repetiu, quase aumentando o tom de voz, porém se controlando para que Marcos não a ouvisse.
“Assim que você pisou no Olimpo, , estávamos entrelaçados. Eu não sei o porquê.”
— E foi por acaso que eu o encontrei. Ele estava sentado lá em uma pedra, imóvel como uma estátua. Por mais que eu nunca o tivesse visto por aqui, nunca vi uma alma tão familiarizada com a vista…
— Entrelaçados? — ela perguntou, sentindo a ansiedade na sua voz. — , o que aconteceu para você estar aqui?
“Eu sinto a sua dor nos meus ossos, talvez até mesmo mais profundamente que a minha. Nada consegue me controlar tanto quanto a minha vontade de lhe ter por perto. Meu corpo dói com a sua falta.”
— Geralmente as pessoas ficam chocadas, transtornadas, desesperadas. Particularmente, eu detesto quem chega aqui agitado…
“Você é minha única fraqueza e o motivo da minha queda.”
— Quero dizer, tudo bem, você acabou de morrer, mas por que toda essa comoção, sabe? Não é como se você pudesse fazer algo em relação a isso, então só aceita e…
“Mas eu não gostaria que fosse de outra forma.” Agora ela via com clareza o sorriso discreto no canto da boca dele. “Então quando você morre, uma parte minha também morre.” — Eu nunca vi uma pessoa com asas, então achei que você ia ficar curiosa que ele queria lhe conhecer — Marcos sorriu, finalizando sua história.
“Mas, enfim, podemos ficar juntos.”
— Então é você que faz as flores — sorriu, inabalado, em um tom normal que todos poderiam ouvir. A deusa balançou a cabeça, momentaneamente confusa, porém um sorriso esperto não tardou a vir. Oh, ele sabia muito bem fingir ingenuidade.... mas ela também. — Prazer em lhe conhecer.
— Muito prazer, meu nome é .
... — ele passou a mão na nuca, como se procurasse algo no fundo de sua mente. — Que belo nome.
— E o seu?
— O meu nome é o que você vai gritar a noite toda.
— O... o... o quê? — Marcos piscou várias vezes, tentando processar o que tinha acabado de ouvir.
— Era essa a cantada que você usava para quebrar milhares de corações? — ela riu e foi como música para os ouvidos de . Não conseguia descrever como sentira falta daquela risada. — Eu fico feliz que essa não tenha sido a sua estratégia na noite em que nos conhecemos. Você consegue fazer melhor que esse clichê.
“Não me provoque assim, se você não quiser as consequências”. O deus sorriu discretamente, porém seu olhar se perdeu nos fios de cabelo que acariciavam a face da deusa com o vento. De um segundo a outro, uma onda de calor tomou conta de seu corpo. O que era uma vontade cega de agarrá-la e tê-la ali mesmo, transformou-se em uma necessidade de apreciar aquela figura bem em sua frente, um sinal de alívio divino. era simplesmente... perfeita. Cada traço, desenhado com tanta delicadeza e bondade, fazia querer erradicar qualquer pessoa do universo que pudesse machucá-la.
E finalmente ela estava ali. Perto dele. Como deveria.
— Como alguém poderia se orgulhar de sua própria beleza quando você existe no universo? — ele sussurrou, ainda perdido nos fios flutuantes.
— Hmm, melhor.
— Você me teve desde o primeiro segundo, .
— Ótima tentativa, mas sabemos que no primeiro segundo você estava focado demais em fugir de uma outra deusa.
— Focado demais em você — ele ergueu a sobrancelha, sugestivo.
queria dar um passo, mas estava com medo que, caso se movesse, a imagem do deus desaparecesse como poeira no ar.
— Vocês se conhecem? — Marcos perguntou, confuso.
— Sim.
— Não.
Os deuses entreolharam-se após as respostas contraditórias.
— Não faz sentido dizer que não, , ele claramente consegue ver que sim.
— Podemos dizer que sim, então — ele sorriu, sem desviar o olhar da deusa. — Nos conhecemos no Olimpo.
— Então você é um deus também? — Marcos ficou boquiaberto. — O que está acontecendo que os deuses do Olimpo estão morrendo? E por que você não brilha como a ?
O deus do prazer e do sofrimento não conseguiu responder. Ele nem tinha ouvido a pergunta, na verdade, sua cabeça vagava por outro lugar. Estava absorto naquela imagem miraculosa que só os seus mais profundos sonhos poderiam prover: parada em sua frente. Tão perto, tão... palpável. foi atingido violentamente pela aura delicada e dócil dela como nunca antes, em uma avalanche pela qual ele queria se deixar levar. Só Eros sabia o quanto ele esperou por aquele momento.
Em um ato de pura coragem e em uma necessidade inexplicável, ele deu os poucos passos que os separavam, ficando a apenas poucos centímetros dela. Delicada e lentamente, passou a mão pelo seu rosto, querendo registrar aquele momento em sua mente para sempre, fazendo-a fechar os olhos com o toque leve e ardente. Assim que ele terminou o caminho de seus dedos, colocando uma mecha de cabelo atrás de sua orelha, suas bocas se aproximaram perigosamente. Ele podia sentir a respiração dela, descompassada, e ela podia sentir a dele, suplicante. revezava seu olhar entre os olhos dela e sua boca. Seu corpo lutava contra sua mente e ele nunca precisou se concentrar tanto como naquele momento. Existia uma urgência que precisava ser controlada.
No entanto, logo que uma das suas mãos segurou firmemente na cintura dela e outra agarrou firmemente seu pescoço, o toque fez sua pele formigar, como se estivesse predestinado a encaixar de modo tão preciso, mas ao mesmo tempo como se algo não estivesse… certo. De repente, sentiu suas palmas pegarem fogo. Os lábios, que acariciavam um ao outro, afastaram-se tão rápido quanto ambas as testas se franziram.
— Tem algo errado — ele sussurrou e suas íris imediatamente tornaram-se afiadas.
— Você também está sentindo? — engoliu em seco.
E não foi preciso mais que um segundo para que o deus colocasse a mão em frente aos seus olhos. tornara-se uma fonte luminosa como ninguém jamais vira, talvez até mesmo mais irradiante que Hélio em seu pior ato de cólera. Era de queimar a alma.
A deusa fechou o punho e deu um passo para trás, sentindo os nós brancos em seus dedos latejarem e a unha fincar em sua pele. Sentia uma onda de energia fluir e dominar seu corpo. Ela podia ver, através das pequenas frestas entre suas pálpebras que ainda lutavam para se manterem abertas, como a luz iluminava o além do fim do mundo. Nunca enxergara com tanta clareza além das colinas rochosas e nunca o céu fora tão claro. Nem mesmo no Olimpo.
— Urgh! — ela gemeu.
E então um véu de sombra tomou conta do Rio Estige tão rápido quanto Hermes.
Desta vez, deixando a paisagem ainda mais escura do que antes. Todas as almas vagantes haviam sumido. Não havia um sinal de vida sequer. O latejar de sua cabeça e um cansaço indescritível, que parecia quebrar cada osso de seu corpo, a impediu de se acostumar com o breu instantâneo. Tudo parecia tão... silencioso.
?
A deusa escutou sua própria voz ecoar entre as rochas e um calafrio subiu pela sua coluna. Ela colocou a mão na sua testa, em uma falha tentativa de abaixar a temperatura de seu corpo e enxergar.
— Marcos?
Ela olhou para os lados, tentando se localizar.
Estava completamente sozinha.


Eu inclinei a cabeça. Não era possível. Aquela silhueta delineada pelas curvas mais delicadas que já vi. Aquilo deveria ser proibido. Não parecia justo. Girei o whisky dentro do copo pela milésima vez enquanto permanecia apoiado na pilastra, observando-a. A pele macia e brilhante, o cabelo que escorria por seus ombros, naquele tom humano tão natural, os movimentos suaves que pareciam em câmera lenta, o vestido de seda que flutuava em seu corpo como um rio calmo que desce um vale, um cheiro de flores... mas nada dela parecia se encaixar onde estávamos.
Uma urgência nos ossos me fez franzir o cenho. Eu queria chegar perto. Eu precisava chegar perto. Sentir o calor que ela exalava mesmo de tão longe.
— Um corpo perigosamente tentador, não? — Eros aproximou-se, também encarando a desconhecida sentada no bar.
— E uma tranquilidade... — respirei fundo e meu maxilar trincou instintivamente. — Ameaçadora.
— Quem é ela, afinal? — Hermes perguntou, curioso, fascinado pelos gestos, assim como os outros dois deuses.
— Ouvi dizer que é a deusa da primavera — Eros respondeu.
— Sua mãe? — o mensageiro sentiu a pressão cair. Iria para o Tártaro se Hades soubesse o que se passou pela sua cabeça alguns segundos antes.
— Não seja idiota — revirei os olhos.
— Você está sentindo, não está? — o cupido ergueu uma sobrancelha, curioso. — Eu sei que está.
— Talvez — respondi, cuidadoso, antes de tragar o último gole do meu copo.
Eu deveria tomar cuidado. Se eu deixasse aparente demais, não demoraria um segundo sequer para Eros destruir minhas barreiras, vasculhar minha mente e ler os meus pensamentos.
Sem hesitar, andei até o bar. Assim que parei ao lado dela, meu braço direito parecia pegar fogo. Ela me observava. Enquanto eu discretamente olhava os traços delicados de seu rosto, ainda mais bonitos do que eu poderia imaginar, ela me analisava de volta. Seus olhos pararam sobre a mão que estava no bolso da minha calça, então eles subiram até a gola da minha camisa, passando pelo copo vazio em minha outra mão, e, por fim, pararam sobre os meus olhos. Durou questão de segundos, mas a troca de olhares pareceu levar uma eternidade, mesmo que fria e profunda.
— Eu gostaria de um outro whisky, por favor — pedi quando o garçom parou em minha frente. — E ela gostaria de um Dry Martini.
— Não, ela não gostaria — a estranha sorriu, sem me encarar. — O que ela gostaria é de saber se você acha que uma mulher pode ser comprada assim.
— Eu não me lembro de ter dito que eu queria lhe comprar — eu sorri de volta, desafiador.
— Resposta errada — ela abriu ainda mais o sorriso.
— E o que você gostaria de ouvir?
— Para começar, o seu nome, mas, para terminar, o que você acha que seria suficiente para eu lhe dar atenção.
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— Nada seria o suficiente, — ergui a sobrancelha e ela mordeu o canto do lábio, levemente surpresa. — Mas você realmente não deveria se contentar com um drink como um primórdio, se sabe o quanto vale.
— Bom, ... resposta certa.
E, a partir de então, ninguém jamais me pareceu tão interessante quanto a deusa da primavera.

— Você está me dizendo que todo esse tempo esteve vivendo uma simulação dentro da sua própria cabeça onde você estava vivendo o seu conto de fadas com a... ?
ficou em silêncio por alguns longos segundos, segundos os quais corroíam a alma curiosa do cupido.
— Isso antes de você por algum acaso morrer, parar no Rio Estige e encontrá-la? — assentiu, confirmando o que Eros dizia enquanto ele tentava se achar na linha temporal. — E foi lá que ela lhe ressuscitou?
— Sim.
— Pelos deuses! E como termina essa sua história? Quando você percebeu que tinha realmente acordado? Você não teve nenhum sinal de que não estava vivendo a sua vida de verdade? Nós estávamos loucos aqui conversando com você dia e noite!
— Logo antes de acordar, ela me disse uma coisa…
Antes que pudesse terminar sua frase, o deus imediatamente encarou a porta de entrada da casa de Eros e, exatos três segundos depois, dois toques apressados bateram contra a madeira.
— Hermes — os deuses falaram em uníssono.
— Ele sabe que você está aqui? — o cupido ergueu uma sobrancelha, não se movendo.
— Ninguém além de você sabe que eu estou aqui.
— Bom, obrigado por vir me ver primeiro, mas, diga-se de passagem, eu nunca mais vou dormir bem — Eros bufou. — Você podia ter me acordado com uma harpa no fundo.
— Eu não escolhi onde eu ia aparecer — revirou os olhos, apontando com a cabeça para a porta. — Abra logo.
— Seu corpo literalmente caiu em cima do meu durante o meu sono de beleza — o cupido abriu os braços em indignação. — Durante. O. Sono. De. Beleza. Você sabe o quanto você pesa com todos esses músculos que eu nem sei porque você ainda tem?
— Por Hades — respirou fundo.
— Por acaso minha casa virou um bordel? — Eros abriu a porta e deparou-se com Hermes sorrindo.
— Bom dia para você também.
— Desde quando vocês só aparecem de madrugada me trazendo trabalho?
— Vocês? — o mensageiro inclinou a cabeça.
— Não se finja de bobo, nós dois sabemos que você já sabe que ele está aqui. — Eros deu um passo para o lado, convidando-o para entrar. — Você sempre sabe de tudo, é irritante.
— Quando você voa mais rápido que a informação, não é como se tivesse uma opção. — Hermes jogou-se no sofá. — Bem-vindo de volta, . Como foi o passeio no Submundo?
— Você sabia que ele estava morto? — Eros jogou as mãos para o alto, mas logo que percebeu o tom de voz, começou a sussurrar.
— Eu fiquei sabendo faz cinco minutos. Aparentemente, você causou o caos lá embaixo — o mensageiro sorriu, divertido. Ele amava quando a rotina recebia um pouco de... brilho caótico. — Hades está tentando amenizar os danos.
— O que aconteceu? — , ainda de braços cruzados e apoiado na bancada, levantou uma sobrancelha, confuso.
— Você não se lembra?
— Hermes, o que aconteceu? — Eros quem pediu dessa vez, curioso, porém extremamente preocupado.
— Eu só lembro de ter acordado enquanto eu literalmente caía em cima dele — apontou para o deus ao seu lado.
— Mas você lembra do coma, certo? — Hermes colocou a mão no queixo, mas prosseguiu assim que assentiu, trocando olhares com o cupido. — Você deve ser muito bom de cama, porque vinte minutos depois que você chegou no Rio Estige, a explosão de energia da mandou todos de volta para a vida.
— Como isso está relacionado com ele ser bom de cama?
— Por que você não me diz, já que ele acordou em cima de você? — Hermes sorriu abertamente, provocando-o, e Eros revirou os olhos.
— A gente não dormiu juntos lá, se é o que você está sugerindo. Não foi isso que causou a explosão de energia.
— Como você pode ter certeza, se você não se lembra? — o mensageiro sugeriu.
— Eu me lembraria disso — ergueu uma sobrancelha.
— E eu também — Eros concordou.
— O quê? — Hermes arregalou os olhos.
— Eu sinto as coisas e você sabe muito bem.
— Você não deixa eu me divertir.
— Vocês dois são impossíveis de madrugada — passou a mão pelo cabelo, cortando-os. — O que você está fazendo aqui, Hermes?
— Eu tenho instruções diretas do seu pai de encontrar você. E tenho a leve teoria de que a sua mãe quer lhe ver.
— E eu tenho a leve teoria de que todo o Olimpo quer lhe ver — Eros corrigiu.
— Eu não tenho tempo para isso. Se a ressuscitou todos, onde ela está? — perguntou, inquieto, o que chamou a atenção de Eros e o fez olhar intensamente para Hermes.
— Uma excelente pergunta. não saiu do Submundo. Só sobrou ela.
— O que você quer dizer com isso? — Eros engoliu em seco.
— Que ela é uma deusa da fertilidade — fechou os olhos, sentindo o coração acelerar. — Hera estava certa.
— Mas de que adiantou ela morrer, se ela pode causar o mesmo estrago do Submundo? — Eros perguntou.
— E é exatamente por isso que ela acaba de se tornar a deusa mais poderosa do Olimpo. — Niall engoliu em seco. — Precisamos achá-la antes que Hera descubra. Antes que qualquer deus descubra.
— Hmm — Hermes abriu um sorriso fraco e os outros dois deuses imediatamente olharam-no. — Talvez seja um pouco tarde demais.


É uma verdade universal que Perséfone era uma das mais belas deusas. Sua presença era como uma pedra no sapato, impossível de ignorar. Talvez fosse o vento feroz do Rio Estige que batia em seu longo vestido, fazendo as camadas voarem de maneira a lhe conceder um certo ar de poder e domínio. Talvez fossem os traços corporais delineados pelo próprio deus dos deuses. Ou, talvez, fosse aquela mortalidade que contradizia os gestos ingênuos de o que um dia foi uma deusa da primavera. A verdade, no entanto, é que não conseguia discernir exatamente o que lhe chamava atenção, até seus olhos, enfim, focarem na esfera avermelhada entrelaçada nos dedos finos: uma romã.
A rainha do mundo infernal, deitada em uma das rochas como se estivesse entre mil plumas, jogava a fruta para cima, para cima e para cima, em uma repetição infinita. E, então, ela parou, fincando suas unhas na casca.
— A voz dos mortos possui o poder de enlouquecer os vivos.
Ela pronunciava-se sem ao menos desviar o olhar do horizonte. Perséfone, divina como todos os outros, não precisava se mexer para saber que a encarava. Ela sentia a culpa do olhar tocar as suas costas com uma intensidade ensurdecedora.
— Não existe medo maior do que a morte e não existe esperança melhor que a vida, não acha?
engoliu seco. Desde que chegara, Perséfone sempre lhe pareceu uma figura protetora, mas, naquele instante, tudo o que sentia era um calafrio percorrer sua espinha. Ela sabia muito bem, baseado nos inúmeros relatos de Psique, que a deusa da morte precisava de um único estalo para erradicar a sua existência do universo.
— Chegou a hora, , de você ouvir algumas das histórias do Submundo.
Mágica adornava o céu. Até então, aquela tela escura parecia engolir qualquer resquício de luz que passasse por perto, porém, enquanto Perséfone mexia sua mão, estrelas atrás de estrelas surgiam, alinhando-se para formarem a mais bela face que já vira.
é fruto de um casamento muito poderoso. Ele é destinado a grandes coisas. Grandes conquistas. Existem profecias escritas com seu nome, criadas muito antes do seu nascimento — ela riu, escorrendo orgulho. — É fato que os deuses nascem do privilégio, da divindade. Poucos de nós sabemos o que é o esforço, mas sabemos o que isso custa nos seres da Terra. A rapidez, a habilidade, a estratégia, a força, a astúcia, tudo isso nos vem naturalmente. E ... é divino. Ele pode banir os sonhos se quiser, pode inundar o mar de sangue, pode brotar pensamentos nas partes mais profundas de seu cérebro. Quando nós descemos à Terra na Grande Guerra, punhais atrás de punhais voavam dele, facas que acertavam em alvos sem precisar ver, correndo entre os corpos como em um campo aberto. Parecia que já havia feito isso milhares de vezes. Nenhuma mão jamais fora tão suave ou tão mortal.
Um silêncio ensurdecedor tomou conta do ar e, repentinamente, as estrelas sumiram. O que antes parecia uma verdadeira obra de arte, agora era tomado pela escuridão e um único sorriso cínico.
— E, em todos esses anos de vida, o que ele mais aprendeu é que deuses e mortais nunca se misturam de maneira feliz na história — Perséfone ergueu a sobrancelha. A mensagem era clara. — Adônis e Afrodite, Apolo e Dafne, Zeus e suas amantes, infinitos outros. E agora você. Você e as almas mortais do Rio Estige.
— Eu…
— Não — Perséfone interrompeu-a. Levantando-se como se flutuasse para encarar diretamente. — Cada segundo da vida de está traçado. — A deusa da morte dava passos lentos e calculados. — Sabe por quê? Porque até meu casamento com Hades estava traçado. Uma união tão rica, nascida do amor, do respeito e... do poder — uma risada cruel soou na escuridão. — Ah, o poder. Ser uma deusa da primavera é ótimo, não é? — sentiu uma ardência na garganta enquanto Perséfone passava sua unha extremamente afiada pela pele dela, deixando um rastro de sangue escorrer. — Mas ao mesmo tempo é tão... chato. Tudo o que você quer dar para todos é esperança, alegria e cor.
A deusa da primavera engoliu em seco. Toda a bondade e aconchego que ela já chegou a sentir perto de Perséfone pareceu sumir em segundos. Aquela Perséfone, com o suco da romã escorrendo pelos seus braços e os olhos vermelhos com traços dourados não a lembravam nem um pouco da deusa que escovou seus cabelos com gentileza.
— Mas eu, eu queria poder. E Hades viu isso assim que colocou seus olhos em mim — ela sorriu. jurou ver um resquício de nostalgia, mas não arriscaria mover os olhos de novo. O sangue em seu colo a prevenia de fazê-lo. — E você? Você não é assim, não é mesmo? Você não se diverte dando esperança aos outros e tirando-as no último segundo, mostrando do que é capaz. Você não quer enlouquecer os vivos, quer? Você não quer poder.
A deusa da primavera contentou-se a engolir em seco. Um único movimento de assentir com a cabeça e aquela unha entraria em sua carne.
— Ótimo — Perséfone sorriu e afastou-se subitamente, fazendo as estrelas retornarem e iluminarem o Submundo. — Então agora que você revelou o nosso segredo, volte e prove a todos o contrário.
— Desculpe, o quê? — colocou a mão na garganta, confusa.
— Oh, você acha que é a única deusa da fertilidade por aqui? — Ela jogou a romã para trás, como se não fosse nada. — Não seja ingênua, querida. A única diferença entre nós é que eu realmente sou predestinada ao caos.
— V-você ressuscita humanos?
— Nós não temos tempo para essa discussão. — Perséfone jogou seus cabelos sobre os ombros. — Você acabou de retornar todas as almas de volta, de onde elas vieram. Temos problemas maiores agora.
— Eu o quê?!
— E por causa disso o Olimpo vai saber que somos deusas da fertilidade. Então suba e dê um jeito de provar que mortais e deuses podem acabar juntos, caso contrário nem Hades poderá nos salvar.
— Eu achei que eu não era mortal. — estava confusa. Era muita informação para processar de uma só vez.
— É engraçado como a sua frase esbanja ironia, não acha? — Perséfone deu uma risada contida antes de estalar os dedos.

Capítulo 20

A vontade de vomitar pode ter durado alguns poucos segundos, mas ela veio. colocou a mão em seu peito assim que sentiu o gosto ácido em sua boca, mas se arrependeu instantaneamente. Seu braço estava dolorido.
— O que... o que Tártaros está acontecendo?
A deusa sentou-se devagar, tentando controlar a respiração. Ela sentia os ossos quebrados de suas costelas se regenerando, movendo seus órgãos de lugar, e precisou morder os lábios para não gritar de dor. Em um esforço que parecia excruciante, arrastou seu corpo para a árvore mais perto, apoiando suas costas e conseguindo finalmente respirar com mais facilidade, sentindo o ar gelado consumir as paredes de seu pulmão.
A primeira coisa que notou, mesmo com a escuridão da noite, foram os hematomas em seus braços e em suas pernas passarem de roxo para verdes, de verdes para amarelos e, enfim, sumirem, sem deixarem nenhum traço. A segunda foram os rasgos bruscos em seu vestido. Se não estivesse enlouquecendo, tinha quase certeza que via parte do tecido pendurado em um galho bem acima de sua cabeça. Não somente isso, quando se convenceu de que não estava delirando, as linhas familiares, até demais, de uma floresta, ganharam forma.
— Ouch — colocou a mão em sua cabeça. — Eu realmente acabei de... cair do céu? — Então ela sentiu algo áspero em seu cabelo. — Isso são... folhas?
Enquanto a dor finalmente parecia deixar o seu corpo, suas pupilas foram se ajustando ainda mais à falta de luz. O lugar e seu cheiro terroso tinham algum traço de memória, mas a deusa não conseguia identificar com mais detalhes. Passou seu olhar devagar por cada tronco, analisando as linhas familiares. Foi assim que um resquício de brilho prata fez seu coração pular. Entre as folhas, olhos não treinados não seriam capazes de reparar na pequena lâmina. instantaneamente arregalou os olhos e jogou seu corpo de volta no chão, por mais que seus músculos protestassem. Alguns fios de cabelo que ficaram não foram rápidos o suficiente e entrelaçaram-se na flecha, agora fincada na madeira onde suas costas descansavam.
— O que Tár... — puxou o cabo de prata, analisando o objeto. — Ártemis?
?! — A deusa da caça levantou-se atrás de um arbusto, tão confusa quando a outra deusa.
A luz da lua iluminava a deusa com uma graciosidade invejosa, como se um véu delicado a cobrisse. Só Afrodite conseguiria ser mais bonita do que a deusa em sua frente e sabia que seria uma competição acirrada. A cada passo que ela dava, sua pele refletia a luz lunar como se metal cobrisse seu corpo, projetando uma armadura brilhosa. O cabelo roxo estava preso tão firmemente que nem os ventos de Éolo seriam capazes de mover um fio de lugar. Ela era simplesmente a personalização da beleza olímpica, com um toque de destreza e habilidade que eram perigosamente atraentes. Talvez tenha passado tanto tempo com os mortais que ela havia esquecido como Ártemis fazia jus ao divino.
— Você tentou me matar?!
— Eu não sabia que era você! — Ártemis colocou seu arco em seu torso. — Pelos deuses, você está viva!
— Por muito pouco — ela ergueu a sobrancelha em resposta.
— Pare com o drama. — A deusa pegou de volta sua flecha. — Você não teria morrido. No máximo, teria sentido um incômodo.
— Que bela recepção.
— O que você está fazendo na Terra? — Ártemis ofereceu sua mão e aceitou. — Achei que você estava no Tartáro depois que Hera a condenou.
— Com certeza é onde ela gostaria que eu estivesse. — A deusa da primavera passou a mão no que restou de seu vestido.
Ela não sabia dizer o quê, mas algo não parecia estar alinhado no universo. Considerou que ficou tanto tempo em terras infernais que havia esquecido o que era estar viva. levantou seu olhar para analisar a face preocupada e confusa de Ártemis, que a estudava também. Estava muito claro que ela não havia ideia de como a deusa da primavera fora parar nos confins de uma floresta e tentava descobrir, perdida entre suas reflexões. O que estava ainda mais claro, no entanto, era que não iria dizer a verdade. Por mais que eventualmente todos ficassem sabendo que ela estava ressuscitada, ninguém precisaria saber que Perséfone quem o havia feito.
— Por Zeus, como você veio parar aqui?
— Shh! — colocou a mão na boca de Ártemis. — Não fale o nome dele assim, você pode convocá-lo!
— Então é um segredo que você está de volta? — A deusa da caça retirou a mão delicadamente.
— Acho que sim. Na verdade, ninguém além de você sabe.
Mentira.
— E você pretende só chegar ao Olimpo e dizer que está de volta?
— Bom, não me parece tão diferente da primeira vez que eu apareci.
— Hmm... — Ártemis se apoiou sobre uma perna, pensativa. — Você não é só imortal, você é imortal imortal.
— Bom... — desviou o olhar. — Se eu estou aqui, talvez eu seja.
Mentiras.
— Ártemis! — A voz de Atenas soou ao fundo e as deusas se entreolharam, arregalando os olhos.
— Atrás da árvore! Agora!
não pensou duas vezes antes de jogar-se contra o tronco áspero, sentindo os rasgos sendo segurados por algumas farpas, mas ignorando completamente se aquilo rasgaria ainda mais o tecido frágil. Ela segurou sua respiração para que Atenas não ouvisse.
— Aqui! — Ártemis respondeu.
— Apolo estava procurando por você.
Uma pequena fresta entre galhos baixos fez com que pudesse analisar a situação. Atenas, com sua face neutra de sempre, cruzava os braços na altura do peito, mas não demonstrava nenhum sinal de tensão, o que deixou as deusas aliviadas.
— Aparentemente, causou um estrago no Submundo.
— Um estrago? — Ártemis franziu o cenho. — ?
— Você está bem? — Atenas estranhou a confusão da outra deusa.
— Sim, só não entendo como ela conseguiria fazer um estrago no Submundo.
— Apolo me disse que ela ressuscitou todos os mortos.
— ELA O QUÊ? — Se fosse possível, a boca de Ártemis teria tocado o chão.
— E estava entre eles.
— O que Tártaros está acontecendo? Thanatus e Hermes vão recuperar as almas?
— Eu não sei. Hades vai resolver o problema, como sempre, mas o Olimpo e a Terra estão em estado de caos por enquanto. — Atenas abriu um sorriso esperto. — Não estão, ?
A deusa da primavera encolheu-se ainda mais contra o tronco, virando a cabeça para que Atenas não pudesse vê-la, apesar de que era tarde demais.
— Você realmente acha que eu não consigo sentir energia exalando de você? — Atenas revirou os olhos. — E você — ela apontou para Ártemis —, ainda não sabe que não adianta omitir? Milênios de anos nas costas e nada de aprender.
— Você fala como se ninguém tivesse segredos — a deusa da caça ergueu uma sobrancelha. — Inclusive você.
— Você realmente consegue sentir minha energia? — saiu de trás da árvore, com cuidado para não pisar em galhos e pedras com seus pés descalços.
— Deusas da fertilidade exalam muita energia — Atenas assentiu. — Você e Perséfone são como sóis.
— Você sabe? — perguntou, chocada.
— Vocês duas me subestimam.
— Quem mais sabe?
— Não se preocupe, não são todos os deuses que captam essas coisas. Agora vamos, precisamos ir para o Olimpo, mostrar que o Submundo não é o seu lugar e que Hera precisa reiterar toda a situação urgentemente.
— Eu gosto desse plano — Ártemis concordou.
— E fique tranquila, — Atenas abriu um leve sorriso e olhou profundamente nos olhos da deusa da primavera, fazendo-a sentir um leve calafrio. Dessa vez, nós vamos lhe proteger. Você nunca mais volta para lá.

— Você o quê?! — o deus da morte afundou seu rosto em suas mãos, frustrado e cansado.
— Hades, meu amor — com uma mão, Perséfone mordia sua maça, deitada no sofá como quem não quer nada, enquanto a outra pairava no ar para ela apreciar suas unhas —, você sabe muito bem que eles estão conectados. Isso é divindade antiga! Quando foi a última vez que você viu deuses nascerem com uma ligação natural assim? Nem nós temos isso.
— E você acha que isso justifica algum dos seus atos? — Sua voz saiu abafada.
— Eu e você sabíamos há anos que isso iria acontecer, Hades. As Parcas nos disseram semanas depois que pisou no Olimpo.
— Coração, o que elas nos disseram era que podia trazer almas de volta à vida.
— Pode — ela corrigiu-o.
— Aparentemente, qualquer deusa da primavera pode — Hades rangeu os dentes.
Ele estava chateado que sua própria esposa havia escondido esse segredo dele. Centenas de anos juntos. Não havia nada que Perséfone não soubesse sobre ele, mas seu único ponto de controle era o fato de que ele escondeu alguns segredos nos primeiros anos em que eles se conheceram. Hades, na verdade, não considerava aquilo como esconder segredos, mas sim ser uma pessoa mais reservada que a sua esposa.
— Nós não vamos entrar nesse assunto agora, Hades.
— Como Tártaros as Parcas acharam que esse problema gigante estaria a nosso favor? Olha quantas almas sumiram! Vai ser um trabalho colossal recolher todas de volta e sabe-se lá o que elas já fizeram na Terra e nos mares!
— Recebemos nosso maior bem de volta, não recebemos? — Perséfone cruzou os braços e ergueu uma sobrancelha, sentando-se.
— Por que você não o ressuscitou? Por que você não ressuscitou só o nosso ?
— Hades. — Ela finalmente cedeu, chegando perto, e colocou as mãos no rosto dele. — Primeiro que era um oráculo, não havia nada que pudesse ser feito. Se eu intervisse, o universo me retaliaria, sabemos disso. Era quem iria trazê-lo de volta à vida. Não eu e nem você. Além do mais, eu sou a deusa da morte há muito tempo, minha fertilidade mal existe mais, ela quase não deu conta da .
— Um bom primeiro ponto, tenho que admitir.
— Não é como se você pudesse discordar — Perséfone sorriu. — Segundo, lembra quando nós nos apaixonamos? Diga-me que você não destruiria a Terra inteira para me ter ao seu lado.
— Não — Hades estreitou os olhos —, você sabe que eu destruiria muito mais.
— O que são algumas almas quando eles dois podem finalmente ficar juntos?
— Hm.
— Eu tive anos para pensar no que fazer, Hades, querido. E quer saber? Eu faria tudo de novo.
— Você me dá muito trabalho, coração — ele disse, colocando a mão na cintura dela. — Mas também é verdade que você me dá muitas aventuras também.
— Obrigada por ver esse lado. — Perséfone colocou os braços sobre os ombros dele e sorriu. — Agora vamos para o escritório, temos muito o que reverter e corrigir.


— Pelo meu marido inútil, me mate agora.
Hera derreteu em sua cadeira, cabelos sobrevoando a cabeça, e logo em seguida enterrou sua testa em sua mão, a outra segurando uma caneca gigante de café. Havia dias em que ela simplesmente queria jogar todos aqueles papéis para cima, esquecer todas as suas responsabilidades, ir até uma ilha paradisíaca e viver de frutas e dias ensolarados. Sem um traço de vida à vista.
— Você não está brincando, está?
Hermes respirou fundo e balançou a cabeça de um lado ao outro, apoiando-se sobre o batente da porta e cruzando os braços. Ele já nem tentava manter o sorriso gentil que lhe era peculiar, nenhum comportamento seu seria o suficiente para aliviar a irritação da deusa do casamento, sobretudo com uma notícia tão importante quanto a que ele acabara de dar.
— Quer saber, eu não ligo. Eu. Não. Ligo.
Por alguns segundos preenchidos de silêncio, Hermes pensou que Hera havia dormido, apesar de que seria um pouco estranho alguém dormir com o cenho franzido em uma mistura de raiva e desapontamento, embora os olhos se mantivessem fechados. Hera, no entanto, com os dedos nas têmporas, nunca deixava de decepcionar quando o assunto era comportamentos estranhos.
O mensageiro sentiu um toque em seu ombro e imediatamente abriu suas asas no susto. Estava tão concentrado em receber alguma ordem da deusa à sua frente, que, a julgar pelo semblante cansado, não ia falar nada, que não percebeu que havia companhia.
— Atenas? — ele encarou-a confuso. — Ártemis? ?
— Hermes — a deusa da primavera sorriu, acolhedora.
Antes mesmo que ela pudesse falar qualquer coisa outra, o mensageiro já havia segurado sua cintura, rodopiando-a em um abraço apertado.
— Eu vou ter um colapso interno — Hera sussurrou, com os olhos ainda fechados.
— Hera — Atenas entrou na sala, sentando-se em uma das cadeiras macias —, precisamos discutir a situação atual.
— Sem estratégias para cima de mim — a deusa interrompeu, levantando-se. notou que sua íris estava mais dourada do que ela se lembrava. — Quer saber, façam o que você quiser.
— Hera... — Ártemis colocou as mãos na cintura.
— Eu não ligo. — A rainha do Olimpo pegou sua bolsa e colocou seu casaco, dirigindo seu olhar para enquanto falava. — Você quer ressuscitar almas no Submundo? Quer desafiar as leis do Olimpo? Quer causar o caos e desequilibrar a natureza? Quer estar acima de todos os esforços de que os deuses colocam para fazer o universo fluir? Quer ensinar a todos que qualquer um pode fazer o que quiser? Então que ensine. Eu não vou me responsabilizar por nenhuma das suas ações a partir de agora. — Ela colocou seus óculos de sol. — Só, pelo amor dos deuses, resolva os problemas que você criou. Por favor, não me contatem. Eu estou oficialmente de férias a partir de agora.
Assim que o salto de Hera ecoou pelo corredor de mármore, a única coisa que quebrou o silêncio foi Ártemis engolindo em seco.
— Bom — Atenas respirou fundo —, não foi tão difícil.
— Foi catastrófico — Hermes corrigiu.
— Como assim? — a deusa da guerra perguntou, confusa. — Ela não mandou de volta para o Submundo.
— Não é como se ela não pudesse voltar... de novo. — O mensageiro abriu os braços. — Que escolha Hera tem?
— Ela deixou a gente fazer o que quisermos desde que nós resolvamos os problemas — Ártemis sorriu.
— Eu sei o que você quis dizer com isso — Hermes estreitou os olhos.
— Por favorzinho — a deusa da caça alargou mais o sorriso e juntou as mãos na frente do peito.
— Você tem certeza de que vai ficar? — Hermes segurou a mão de , apertando-a como se temesse que ela fosse sumir a qualquer momento.
— Eu não sei se eu posso garantir algo, nem eu entendo o que está acontecendo — a deusa da primavera respondeu.
— Mas você quer ficar?
— Com certeza — encarou-o, decidida.
— Tudo bem — Hermes suspirou. — Eu trago as almas de volta.
— Você vai trazer todas as almas de volta ao Rio Estige?
— Todas as almas. Por você.
— Não, você não vai. — A voz grave de Zeus fez todos olharem para a porta, ao lado de Hermes.
Ártemis ficou tão pálida que jurou que ela poderia desmaiar a qualquer segundo. Atenas, por outro lado, parecia completamente despreocupada, bocejando levemente. Um calafrio passou pela espinha da deusa da primavera quando ela sentiu o olhar zangado do deus dos deuses sobre si. Ela sentia o ar ficar estático só com a sua mera presença. Um claro sinal de que as coisas não dariam tão certo como Atenas dava a entender de acordo com sua postura.
— Você estar aqui transgride leis absolutas do Olimpo, . Eu não posso deixar que você permaneça.
— Sim, você pode — interrompeu-o, aparecendo atrás de Zeus. — Na verdade, você deve.
— E por que eu deveria? — Zeus ergueu uma sobrancelha, entediado e levemente irritado com a intromissão.
— Porque a agora está protegida pela lei. — cruzou os braços, deixando-o ainda mais intimidador.
— Que lei?
, sem falar mais nada, ergueu o envelope amarelo para Zeus, que o abriu e imediatamente arregalou os olhos, não conseguindo nem se expressar. Aquilo fez a curiosidade da sala ficar palpável. Hermes, e Ártemis trocavam olhares suplicantes entre si. Parecia que Zeus demorava horas para ler aquelas linhas.
Enquanto o mensageiro batia a ponta do pé no chão incansavelmente e a deusa da caça se inclinava para tentar bisbilhotar o documento, procurou o olhar de , mordendo o canto dos lábios. Ela foi recebida pelos olhos mais acolhedores que aquela figura letal já havia mostrado. Borboletas forravam o seu estômago, mas ela tentou controlar a sensação, hesitante por causa da raiva que ocupava as entrelinhas da íris de Zeus.
— Que lei? — repetiu a pergunta do deus do raio. — A palavra da sua esposa. Ela é obrigada a fazer de tudo para proteger as mulheres casadas.
— O quê? — puxou o papel das mãos de Zeus, nem se preocupando se aquilo o irritaria.
Hermes e Ártemis automaticamente se aproximaram, um em cada lado dela, devorando cada palavra daquela folha como se estivessem famintos. Quando chegou ao final da página, o olhar de estava vidrado em somente uma única coisa e nada poderia fazê-la desviar: a assinatura de Hera. Atestando solenemente que ela abençoava o pedido de casamento e, por conseguinte, era compelida e coagida a proteger .
— Vocês... Vocês estão casados! — Hermes não conteve o sorriso.
— Não — e responderam em uníssono e entreolharam-se.
— Como não? — Ártemis apontou para o papel. — Está escrito aqui.
— Nós temos a aprovação do pedido — explicou.
— Isso é inteligente — Atenas sorriu, finalmente se levantando. — Vocês não têm o laço do casamento, mas têm a proteção de um. Como você fez Hera assinar isso?
— Não vem ao caso. — fechou o semblante.
— Eu anulo esse documento — Zeus balançou a cabeça em negação.
— Você não pode — Atenas revidou.
— Eu sou o deus dos deuses, rei do Olimpo. Eu posso.
— Isso é jurisdição do universo — a deusa da caça revirou os olhos. Sentia como se estivesse discutindo com uma criança. — É maior do que você. Se quiser, vá discutir com a sua esposa.
— Apesar de nós já sabermos como essa discussão vai se desenrolar — Hermes sussurrou para a .
— Onde ela está? — Zeus, fazendo a ventania abrir a janela do escritório, fechou os punhos. — Hermes, onde ela está?
— Desculpe-me — o mensageiro ergueu os ombros. — Hera está de férias. Ela não está disponível para discutir assuntos do trabalho.
— Eu mesmo vou achá-la — Zeus respirou fundo e saiu da sala, levando a tempestade consigo.
— Então finalmente podemos ter smack smack? — Hermes cruzou os braços, erguendo uma sobrancelha e nunca vira seu semblante tão sério.
— Smack... smack? — a deusa da primavera perguntou, confusa.
— Um beijo! — Ártemis levantou os braços e falou com obviedade. — Estamos esperando isso há séculos.
Sem permitir que mais alguém acrescentasse qualquer outra palavra, segurou a maçaneta da porta e apontou com a cabeça para o corredor, convidando todos, exceto , a saírem. Atenas não precisou de um segundo convite para atravessar a porta, segurando o sorriso. Ártemis e Hermes, por outro lado, jogaram a cabeça para trás em protesto, mesmo sabendo que seria em vão. Eles estavam investidos demais, mas seria irracional ficar. Tudo o que eles causariam se ficassem seria o incômodo do e eles sabiam que suas curiosidades não seriam saciadas. Arrastando os pés sobre o chão de mármore, os deuses finalmente se retiraram, deixando e a sós.
— Você está bem? — ele fechou a porta atrás de si, encostando-se nela.
encostou seu quadril na mesa de Hera, estudando o deus. Só então ela parou para analisar a figura do homem à sua frente, a poucos passos de distância. As mangas dobradas da blusa social branca e botões abertos abaixo do colarinho apenas sugeriam o quão confortável ele estava, ao mesmo tempo que mantinha as maneiras naturais de seriedade, exatamente como nos seus primeiros encontros no baile de celebração do casamento de Hera e Zeus, porém, dessa vez, com um leve toque de alívio e nervosismo. não se permitiu dar nem um passo cômodo adentro. Ele apenas a encarou lentamente, dos pés à cabeça, querendo guardar cada detalhe daquela imagem divina. Assim como naquele dia, ele se perguntou de novo se ela havia sido feita sob medida para enlouquecê-lo, se ela tinha noção da sua beleza que fazia jus ao divino.
Você está bem? — ela retrucou.
— Eu não poderia estar melhor. — começou a dar passos lentos em direção a ela, desejando que aquele momento nunca acabasse. — Você está sentindo dor?
— Você saberia se eu estivesse, não saberia? — ela ergueu uma sobrancelha, desafiando-o.
— Não me olhe assim — ele sorriu de lado.
— Por que não? — inclinou a cabeça, fingindo inocência. Aquela mulher iria matá-lo.
apenas sorriu esperto em resposta e segurou-a firmemente pela cintura, levantando-a até que ela estivesse sentada na mesa e ele encaixado entre suas pernas. Seu corpo foi inteiramente consumido pelo desejo, implorando pelo prazer, e suas mãos formigavam com o toque quente contra a pele macia da perna dela, obrigando-o a apertar suas coxas. Seu intuito, no entanto, era poder finalmente aproveitar aquilo que ele esperou tanto, cada centímetro daquela deusa. Ele passou a mão devagar na parte interna da coxa dela, levantando um pouco seu vestido ao fazê-lo, mas sua mão continuou com delicadeza até sua cintura, subindo até que ela parasse em sua nuca, puxando seus cabelos para que ela o encarasse nos olhos. inclinou-se perigosamente, acabando com a distância, até suas bocas se tocarem em um beijo suave. colocou sua mão no rosto de , trazendo-o ainda mais para perto e aprofundou seus lábios no dele. O beijo, no entanto, foi interrompido, fazendo-o morder levemente o lábio inferior dela e sentiu a mão dele apertar ainda mais sua coxa, como se ele lutasse violentamente contra uma vontade interna.
— Porque, se você continuar me olhando assim, eu não vou conseguir me controlar.


FIM



Nota da autora: É com um grande carinho no coração (e dor também) que eu anuncio o fim de Olympus. Muito obrigada para todas as leitoras, as melhores que qualquer autora poderia ter. Obrigada pela paciência, pela confiança, pelas lágrimas que eu chorei enquanto lia os comentários de vocês (e continuarei voltando para ler como eu sempre faço quando eu preciso de um abraço virtual) e pela oportunidade de eu poder compartilhar um pedacinho de mim e ser recebida tão bem. Um agradecimento em especial para a minha scripter Ells, que me acompanhou no começo, e para a minha beta maravilhosa, Lu, que é sempre um amor e um poço de paciência e sem a qual essa fic não estaria aqui.
Depois de três anos, eu estou envolvida demais na vida dessas personagens loucas para não perguntar para vocês: O que vocês acham da ideia de existir Olympus 2? Nada de promessas, mas os comentários que pode vir sobre isso talvez influenciem uma possível continuação hahahah
No momento, eu convido vocês a esperarem um tempinho (nada muito longo, prometo), porque um novo projeto já está no forno. Se ele for recebido com metade do carinho que Olympus foi, eu serei a autora mais feliz do universo.


Nota da beta: Que delícia foi poder fazer parte da história do e da , essa fic foi um grande presente para mim! Olympus 2 já é uma realidade aqui, não existe a menor possibilidade de não aproveitarmos mais de todo esse universo hahahaha parabéns pela história e pelos novos projetos, você arrasa ❤️


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