Capítulo único
A primeira vez que vi , ele estava dançando. Seu uniforme apertado e preto destacava seu corpo torneado e bem definido. A melodia da música era lenta, calma. Apenas piano, reconheci. Ele erguia os braços e abria as pernas com leveza, equilibrando-se numa posição na qual eu cairia se ao menos tentasse. A expressão em seu rosto era de pura melancolia e dor, como se a música estivesse tomando-o por inteiro, dos pés à cabeça, do corpo à alma. Quando nós, meros espectadores, menos esperávamos, a música explodiu em batidas fortes, entrando bateria, guitarras e baixo, porém, ainda assim, sem perder a leveza do piano, ele ainda estava ali, junto com a dor que a apresentação de passava. Seu corpo saltitava pelo palco, as posições ficavam cada vez mais complicadas, como se ele fosse capaz de dar um nó em si mesmo.
Meus olhos encheram de lágrimas quando o vi dar um giro perfeito, como se estivesse sobre patins no gelo. Girou, girou e parou, caindo de joelhos e erguendo a cabeça devagar ao fim da música, parando junto com a melodia. Os cabelos dourados caíram sobre os olhos pequenos e arregalados, a respiração saía intensa e forte, ofegante, por entre os dentes tortinhos e os lábios carnudos e vermelhos — ele tinha a mania de mordê-los, logo notei.
Mais cedo naquele dia, tinha brigado com meus pais e minha irmã mais nova. Eu não queria estar ali, não queria ir até àquela apresentação. Estava inspirado demais, argumentei, queria e precisava finalizar aquele capítulo — estava escrevendo meu segundo livro, precisava firmar meu nome no mercado literário e manter o sucesso que obtive com meu primeiro romance —, mas ninguém parecia me entender. “Você não pode perder mais uma apresentação de sua irmã, ”, mamãe gritou, “Você sequer sai desse quarto!”, finalizou. Com um suspiro derrotado e papai gritando tanto quanto mamãe, desisti de escrever. “Tudo bem”, respondi, “Mas só assistirei à apresentação de Yoonji e sairei”, completei.
Àquela altura, mamãe me encarava com um sorriso no rosto, como se me questionasse em relação a esta frase em específico. Eu queria ir embora depois da apresentação de ballet clássico de minha irmã mais nova. Juro que queria.
Mas aquele rapaz, — Yoonji fez questão de me dizer seu nome e explicar que era seu novo professor de ballet e dança contemporânea —, após sua belíssima coreografia de dança contemporânea moderna, me enfeitiçou.
Sempre fui amante da arte. Sempre escrevi, li e tentei desenhar e pintar. A arte me fascinava, me libertava. Eu também sempre fui muito livre, liberto. A dança me era um mistério. Artístico, forte e lindo, mas ainda um mistério para mim. Minha altura me desfavorecia, meu corpo era muito duro e a timidez era a cereja do bolo. Yoonji tentou me ensinar passos básicos de ballet, jazz, hip hop e outros mil estilos. Falhei em cada um deles, então ver as pessoas dançando me fascinava. Eu adorava ver minha irmã dançar, ela havia nascido para isso, assim como nasci para brincar com as palavras e seus sentimentos. Contudo, naquela tarde, eu só queria ficar em casa escrevendo, sendo meus personagens, vivendo por eles, narrando suas realidades e esquecendo minha própria.
Porém… Algo dentro de mim se agitou e se misturou assim que o vi. A inspiração tomou meu coração, uma ideia nova me surgiu e minha pele se arrepiou por inteira: as pernas, os braços, a nuca. O arrepio cortou meu corpo e me eletrizou de dentro para fora. Eu precisava conhecê-lo e escrevê-lo. gritava inspiração e transbordava talento.
Eu precisava retratá-lo da única forma que sabia: com palavras e sentimentos verdadeiros.
era como eu: livre e liberto quando fazia sua arte, quando dançava aos giros sobre o palco.
Céus, eu precisava escrevê-lo.
Voltei para casa em silêncio, fora de órbita. Yoonji tagarelava sobre como tudo havia sido incrível e como era bom saber que teria aulas com no dia seguinte, sua coreografia havia sido feita por ele. Sorri para minha irmã, ainda fora de meu corpo, e a pergunta me escapou automaticamente:
— Posso te acompanhar amanhã, Yoonjinnie?
Naquela aula, foi a segunda vez que o vi.
E a primeira que o escrevi.
*
O amanhã chegou.
Naquele dia, minha irmã fazia aula sozinha. De acordo com ela, estava se preparando para uma apresentação especial, um teste que faria para uma grande companhia de dança internacional e poderia lhe render uma bolsa importantíssima na faculdade. havia se oferecido para treiná-la sem custos adicionais, Yoonji me explicou, pois ele já tinha feito parte daquela mesma companhia e havia recebido ajuda de seu professor.
Que era um bom homem eu já imaginava. Sua aura e sorriso diziam isso claramente. No entanto, ouvir minha irmã dizer aquilo, me causou uma impressão melhor. Ali, eu soube que o dançarino era algo muitíssimo além do que eu imaginei na noite anterior — a qual quase passei em claro apenas lembrando de suas expressões corporais.
Nós não éramos uma família pobre. Definitivamente, não. Meus pais tiveram um bom emprego e eu, com apenas um romance, me tornei um escritor best-seller. Com isso, veio a fama que nunca almejei e o dinheiro além do necessário. Nós tínhamos como manter Yoonji no curso e, com um pouco mais de trabalho da minha parte, eu poderia pagar ao menos intercâmbio caso ela não passasse nos testes.
E mesmo sabendo disso, não quis cobrar nada, pois, para ele, era necessário que os alunos tivessem uma atenção especial e nem tudo era sobre dinheiro. A dança era sobre ter amor, talento e expressão, ou ao menos força de vontade. Minha irmã tinha os três. E, de extra, tinha , o melhor dançarino da Coreia do Sul e um dos primeiros no ranking mundial — descobri ao jogar seu nome no Google enquanto estava sentado no canto da sala de prática, em silêncio, tímido, com medo de atrapalhá-los.
— . — a voz tranquila e melodiosa de me chamou. Ele sorria. — Nunca pensei que iria conhecer meu escritor favorito pessoalmente.
Minhas bochechas coraram instantaneamente ao ouvir suas palavras. E seu sorriso continuou pintando a boca bonita que possuía.
— Só não digo que você se tornou meu dançarino favorito após a apresentação de ontem, porque Yoonji está aqui e ela jamais aceitaria ser a segunda favorita em alguma coisa. — respondi num tom de voz baixo e contido, também sorrindo.
riu de maneira gostosa e cobriu a boca com as mãos rechonchudas e pequenininhas, jogando a cabeça para trás. Aquele foi o momento em que percebi que se pudesse morder e guardar no bolso uma risada, seria a dele. Ela ecoava tão bem pela sala tranquila, onde uma música clássica tocava baixinho, servindo de trilha sonora.
Yoonji olhou para nós através do espelho e me sorriu. Seus olhos negros brilhavam de maneira travessa e seu sorriso gritava malícia. Eu conhecia aquelas expressões de cabo à rabo, minha irmã era muito transparente. Mas a ignorei.
O homem ao meu lado ainda ria, agora baixinho.
— Na frente dela — apontou para minha irmã —, irei fingir que não sou o favorito. Porém, mais tarde, quando formos tomar um café, posso deixar explícito que sei do nosso segredo. — ele se aproximou da minha orelha e sussurrou: — Que eu sou, sim.
— Nós vamos tomar um café?
— É claro, não irei deixar passar a oportunidade de conversar com meu escritor favorito de todos os tempos. Preciso também, é claro, saber se o John voltou ou não para o Hoseok.
O encarei levemente chocado, e perguntei:
— O quê?
— As pessoas normalmente não percebem, ou fingem não perceber, que eles eram um casal, né?
Após dizer isso, se levantou e voltou auxiliar minha irmã, deixando um eu bobo e chocado para trás.
Mas o sorriso permanecia em minha boca. Ele havia notado, mesmo com toda a sutileza que utilizei, que aqueles dois não eram só amigos. Fiquei feliz e esperançoso.
A primeira vez que escrevi foi naquela sala espelhada, no teclado miúdo do celular.
A segunda, foi no nosso café horas mais tarde.
Quando cheguei em casa, já era noite.
E descobri: eu não queria ser só seu amigo.
Durante aquele mês, nos encontramos todos os dias. Todos os dias mesmo. Yoonji fazia piadas, ria da minha timidez e, vez ou outra, se juntava aos nossos cafés depois das aulas.
Quando eu chegava em casa após passar horas ouvindo falar pelos cotovelos — ele adorava conversar e rir; seu riso era fácil, bonito e espontâneo —, as palavras escorriam pelos meus dedos automaticamente, dando vida a mais um romance implícito e proibido.
Eu tentava negar e esconder, mas um dos personagens era inspirado em . No livro, foi a terceira vez que o escrevi. E só então percebi que desde que pousei meus olhos sobre ele, não parei mais de escrevê-lo.
era minha maior fonte de inspiração. E agora um de meus personagens também.
Sem perceber, me transformei em outro personagem naquele livro.
O personagem que completava . O romance proibido era nosso, os sorrisos dos personagens eram os nossos, as mãos tímidas entrelaçadas eram as nossas.
Eu queria completá-lo da mesma forma que, em minha cabeça, ele me completava.
Fingindo não perceber, me deixei apaixonar.
*
— Você devia contar para ele. — Yoonji murmurou, baixinho, ao meu lado. Era fim de tarde, em plena primavera, estávamos sentados em frente ao rio Han.
Suspirei, e, sem tirar os olhos do notebook em meu colo, perguntei:
— Contar o que e para quem, Yoonji?
— Contar para o que está apaixonado por ele. — ela respondeu com tranquilidade, se jogando para trás e deitando na toalha. — É meio óbvio o que vocês dois sentem. Veja bem, irmão, você é escritor. Sequer sabe esconder quando está no mundo da Lua. E é transparente. Extremamente transparente. — frisou. — Os olhos dele chegam a brilhar quando você está por perto. Enquanto estamos aqui conversando e você fingindo que está escrevendo e revisando algum capítulo, ele olha para cá o tempo inteiro. Ensaiar ao ar livre e te convidar para vir junto não é algo rotineiro.
— Você não sabe o que está dizendo. — rebati calmamente. — gosta de criar coreografias ao ar livre. Ele apenas juntou o útil ao agradável, já que ele precisava te ajudar. O que você está fazendo aqui comigo ao invés de estar ensaiando?
— Estou aqui evitando que você o perca. Ele volta para a Europa em dois meses.
Com isso, Yoonji finalmente se retirou.
E de medo, meu coração pesou e congelou.
Eu o perderia em dois meses?
A fala de Yoonji ecoou em minha cabeça por toda aquela noite. Escrevi com medo e melancolia, sofrendo antecipadamente. O sentimento já começava a me sufocar e jogar tudo em palavras vazias em forma de romance num livro em andamento não estava resolvendo como no início.
Eu estava apaixonado e não sabia o que fazer, exatamente igual ao meu personagem.
Jaehyun, meu personagem, estava sofrendo pelo seu primeiro amor. Ele insistia em fingir que não sentia nada, que estava tudo bem, ele não amava ninguém, sequer sabia o que era amor — pensava de forma idiota. Aos poucos, a cada palavra que me escapava, em meio a tantos sentimentos conflituosos daquele adolescente, entendi que o espelhava em mim mesmo.
Eu era Jaehyun, Jaehyun era eu.
Eu amava e não queria aceitar.
E quando percebi, as palavras pareciam dançar dentro de mim, prontas para saírem rodopiando mundo afora, com saltos, giros e piruetas, dizendo o quanto eu sentia, o quanto eu amava.
Não, eu não iria perdê-lo em dois meses.
Não pensei muito quando saí de casa. Ainda vestia calça de moletom e chinelos com meia, além de uma camisa duas vezes maior do que eu e surrada. Não estava nada apresentável e naqueles momentos eu questionava minha sanidade e o meu medo de ficar só.
Quando cheguei em frente ao prédio residencial no bairro vizinho, suspirei. O que eu estava fazendo e o que eu esperava? O que diria?
Enquanto pensava e me xingava mentalmente, uma chuva fina de primavera começou a cair. Praguejei, nervoso. A cada segundo que passava, a chuva ficava mais forte, me molhando por inteiro. Não tinha mais escapatória, eu precisava chamá-lo.
Aquela era minha primeira loucura por amor. E embora quisesse me arrepender, não conseguia. Eu não queria perdê-lo, e não iria.
Com os dedos trêmulos, puxei o celular do bolso.
“Ei, vem aqui embaixo. Estou sem guarda-chuva.”
Enviei. Em poucos segundos, recebi uma resposta.
“Aqui embaixo onde, doido?”
Ao ler a resposta-pergunta, pude vê-lo, em minha mente, claramente rindo. sempre ria facilmente das coisas. Principalmente de mim. Comigo.
“No seu prédio, ande logo!
A chuva está ficando cada vez mais forte.
Estou começando a sentir frio, .
Por favor, me traga um guarda-chuva.”
Em pouco menos de cinco minutos, atravessou o hall de entrada de seu prédio e destrancou o portão. Ele não estava muito diferente de mim — também vestia calça de moletom e chinelos com meias.
— Eu já esperava você por aqui, mas não imaginei que seria no meio da madrugada e em plena chuva. — foi a primeira coisa que ele me disse, enquanto colocava o guarda-chuva aberto sobre minha cabeça. — O que deu em você, hyung?
O encarei, ignorando os arrepios que percorriam meu corpo amedrontado.
— Fique. — sussurrei, encarando-o nos olhos. — Comigo. Fique comigo. Não vá embora.
piscou os olhos, confuso. Pude notar sua mão se fechar com mais vontade em volta do guarda-chuva e, por um segundo, pensei em desistir. Poderia dizer que estava em meio a um surto onde sequer conseguia diferenciar realidade de fantasia. Poderia alegar também que estava bêbado, ou que havia perdido o juízo. Mas não conseguia me mover. Só sabia olhá-lo e esperar por uma resposta que parecia não vir nunca.
Longos segundos se passaram e, quando menos esperei, sorriu.
Seus lábios entreabriram devagar, mostrando os dentinhos que eu tanto amava, e o sorriso fora crescendo à medida que ele entendia do que eu estava falando.
Uma gargalhada reverberou pela rua vazia e se misturou ao som da chuva. O vento bagunçava seus belos cabelos dourados e eu permanecia confuso, apenas observando a obra de arte que pairava à minha frente, a chuva caindo forte atrás dele, o riso alto, a boca aberta, o guarda-chuva escorregando e eu voltando a me molhar dos pés à cabeça.
— Você é um bobo. — sussurrou enquanto se aproximava mais, como se me contasse o mais secreto dos segredos. — Não vou embora. Não sem antes beijá-lo ao menos uma vez.
Meu coração passou a bater de forma desenfreada após ouvir tais palavras. Eu não conseguia acreditar no que estava ouvindo.
não demorou a colar os lábios nos meus, tentando equilibrar-se nas pontas dos pés sobre os chinelos e meias molhados e segurar o guarda-chuva na mãozinha tão pequena. Nossos olhos estavam conectados, não tínhamos coragem de fechá-los ainda. Era bom fitar um ao outro tão de pertinho. Era reconfortante. A proximidade era gostosa e nossas bocas pareciam perfeitas daquele modo, mas queríamos mais e era explícito.
Não tardei, portanto, a segurá-lo pela cintura e permiti que meus olhos finalmente se fechassem. Quase no mesmo instante, nossas bocas se abriram e nossas línguas foram de encontro uma a outra.
O beijo de era doce e refrescante. Algo que me lembrava chocolate e menta. Era gostoso, lento e excitante. Ele possuía uma sensualidade fora do comum, fazendo com que eu me sentisse esquentar e ficasse prestes a explodir em plena chuva.
Os pingos que caíam do céu chicoteavam o guarda-chuva com força, servindo de trilha sonora para nosso beijo público. E ele não parecia se importar; eu muito menos.
se afastou, deixando um suspiro sobre meus lábios. O sorriso que sustentava era o mais bonito que eu já havia visto em toda minha vida, e totalmente diferente de todos os sorrisos que ele já havia me direcionado. Quando pensei que não poderia me apaixonar mais, me encontrei ainda mais perdido. Meu coração poderia explodir a qualquer momento. E ele explodiria em emojis melosos de corações coloridos e bichinhos com olhinhos de coração também. Um coração explodindo corações. Tão clichê e romântico como eu realmente era.
Como nós realmente éramos.
— Por um momento cheguei a pensar que você nunca faria isso, hyung. — sussurrou enquanto acariciava meu rosto com uma das mãos. — Não consigo acreditar que precisou sentir que me perderia para vir até mim. Por que tanto medo? Não ficou claro o quanto eu te desejava?
— Me desculpe, sou um escritor que não sabe lidar com sentimentos. Mas agora consigo ver o quanto sinto por você.
— Eu não vou embora. — mudou de assunto, sorrindo. — Quero dizer… Ainda vou precisar viajar. Mas voltarei. Preciso voltar. Ao contrário de você, sei lidar bem com tudo que sinto. Estou apaixonado, . Por você, pelos seus romances, seus sorrisos, seus mínimos detalhes, cada faceta sua. E eu jamais iria te deixar para trás.
As palavras e os sentimentos se agitavam e se misturavam dentro de mim, como quando eu estava escrevendo. Eles percorriam meu corpo, minha mente, minha alma e meu coração. Me penetravam e me marcavam. Através deles, eu era capaz de perceber cada sentimento, cada vontade, tudo o que queria me fazer entender.
O que eu sentia não era diferente. Eu o amava. Muito. Estava cegamente apaixonado. Contudo, minhas respostas, minhas próprias palavras, não queriam sair; eu não conseguia colocá-las para fora. Não daquela vez. Naquela situação.
Pela primeira vez, em vinte e poucos anos, eu estava experimentando a sensação que tanto descrevi: estava sufocado de sentimentos. Sentia o peito arder, o estômago afundar e a garganta seca.
Eu só queria beijá-lo novamente.
Eu não precisava mais falar. Pela primeira vez, não precisava falar. Não precisava colocar as palavras para dançarem ao redor de mim — de nós. Pela primeira vez, estava amando de verdade e nada mais importava. Meu sorriso bobo o mostrava o quão apaixonado eu também estava.
Eu não disse mais nada, apenas o puxei pela cintura e colei nossas bocas novamente. ficou mole entre meus braços e deixou o guarda-chuva cair ao lado de nossos pés. Com paixão e vontade, sem se importar com a forte chuva que nos banhava àquela hora da madrugada, agarrou minha nuca com ambas as mãos.
Entre suas mãos, seus lábios e seu corpo, cercado de amor, desejo e reciprocidade, percebi que não precisava mais de palavras dançantes. Não enquanto eu o tivesse comigo. Nossos textos se misturavam em silêncio, as palavras dançavam dentro de nós.
Naquela madrugada, sob a chuva, decidi que escreveria para sempre.
Meus olhos encheram de lágrimas quando o vi dar um giro perfeito, como se estivesse sobre patins no gelo. Girou, girou e parou, caindo de joelhos e erguendo a cabeça devagar ao fim da música, parando junto com a melodia. Os cabelos dourados caíram sobre os olhos pequenos e arregalados, a respiração saía intensa e forte, ofegante, por entre os dentes tortinhos e os lábios carnudos e vermelhos — ele tinha a mania de mordê-los, logo notei.
Mais cedo naquele dia, tinha brigado com meus pais e minha irmã mais nova. Eu não queria estar ali, não queria ir até àquela apresentação. Estava inspirado demais, argumentei, queria e precisava finalizar aquele capítulo — estava escrevendo meu segundo livro, precisava firmar meu nome no mercado literário e manter o sucesso que obtive com meu primeiro romance —, mas ninguém parecia me entender. “Você não pode perder mais uma apresentação de sua irmã, ”, mamãe gritou, “Você sequer sai desse quarto!”, finalizou. Com um suspiro derrotado e papai gritando tanto quanto mamãe, desisti de escrever. “Tudo bem”, respondi, “Mas só assistirei à apresentação de Yoonji e sairei”, completei.
Àquela altura, mamãe me encarava com um sorriso no rosto, como se me questionasse em relação a esta frase em específico. Eu queria ir embora depois da apresentação de ballet clássico de minha irmã mais nova. Juro que queria.
Mas aquele rapaz, — Yoonji fez questão de me dizer seu nome e explicar que era seu novo professor de ballet e dança contemporânea —, após sua belíssima coreografia de dança contemporânea moderna, me enfeitiçou.
Sempre fui amante da arte. Sempre escrevi, li e tentei desenhar e pintar. A arte me fascinava, me libertava. Eu também sempre fui muito livre, liberto. A dança me era um mistério. Artístico, forte e lindo, mas ainda um mistério para mim. Minha altura me desfavorecia, meu corpo era muito duro e a timidez era a cereja do bolo. Yoonji tentou me ensinar passos básicos de ballet, jazz, hip hop e outros mil estilos. Falhei em cada um deles, então ver as pessoas dançando me fascinava. Eu adorava ver minha irmã dançar, ela havia nascido para isso, assim como nasci para brincar com as palavras e seus sentimentos. Contudo, naquela tarde, eu só queria ficar em casa escrevendo, sendo meus personagens, vivendo por eles, narrando suas realidades e esquecendo minha própria.
Porém… Algo dentro de mim se agitou e se misturou assim que o vi. A inspiração tomou meu coração, uma ideia nova me surgiu e minha pele se arrepiou por inteira: as pernas, os braços, a nuca. O arrepio cortou meu corpo e me eletrizou de dentro para fora. Eu precisava conhecê-lo e escrevê-lo. gritava inspiração e transbordava talento.
Eu precisava retratá-lo da única forma que sabia: com palavras e sentimentos verdadeiros.
era como eu: livre e liberto quando fazia sua arte, quando dançava aos giros sobre o palco.
Céus, eu precisava escrevê-lo.
Voltei para casa em silêncio, fora de órbita. Yoonji tagarelava sobre como tudo havia sido incrível e como era bom saber que teria aulas com no dia seguinte, sua coreografia havia sido feita por ele. Sorri para minha irmã, ainda fora de meu corpo, e a pergunta me escapou automaticamente:
— Posso te acompanhar amanhã, Yoonjinnie?
Naquela aula, foi a segunda vez que o vi.
E a primeira que o escrevi.
O amanhã chegou.
Naquele dia, minha irmã fazia aula sozinha. De acordo com ela, estava se preparando para uma apresentação especial, um teste que faria para uma grande companhia de dança internacional e poderia lhe render uma bolsa importantíssima na faculdade. havia se oferecido para treiná-la sem custos adicionais, Yoonji me explicou, pois ele já tinha feito parte daquela mesma companhia e havia recebido ajuda de seu professor.
Que era um bom homem eu já imaginava. Sua aura e sorriso diziam isso claramente. No entanto, ouvir minha irmã dizer aquilo, me causou uma impressão melhor. Ali, eu soube que o dançarino era algo muitíssimo além do que eu imaginei na noite anterior — a qual quase passei em claro apenas lembrando de suas expressões corporais.
Nós não éramos uma família pobre. Definitivamente, não. Meus pais tiveram um bom emprego e eu, com apenas um romance, me tornei um escritor best-seller. Com isso, veio a fama que nunca almejei e o dinheiro além do necessário. Nós tínhamos como manter Yoonji no curso e, com um pouco mais de trabalho da minha parte, eu poderia pagar ao menos intercâmbio caso ela não passasse nos testes.
E mesmo sabendo disso, não quis cobrar nada, pois, para ele, era necessário que os alunos tivessem uma atenção especial e nem tudo era sobre dinheiro. A dança era sobre ter amor, talento e expressão, ou ao menos força de vontade. Minha irmã tinha os três. E, de extra, tinha , o melhor dançarino da Coreia do Sul e um dos primeiros no ranking mundial — descobri ao jogar seu nome no Google enquanto estava sentado no canto da sala de prática, em silêncio, tímido, com medo de atrapalhá-los.
— . — a voz tranquila e melodiosa de me chamou. Ele sorria. — Nunca pensei que iria conhecer meu escritor favorito pessoalmente.
Minhas bochechas coraram instantaneamente ao ouvir suas palavras. E seu sorriso continuou pintando a boca bonita que possuía.
— Só não digo que você se tornou meu dançarino favorito após a apresentação de ontem, porque Yoonji está aqui e ela jamais aceitaria ser a segunda favorita em alguma coisa. — respondi num tom de voz baixo e contido, também sorrindo.
riu de maneira gostosa e cobriu a boca com as mãos rechonchudas e pequenininhas, jogando a cabeça para trás. Aquele foi o momento em que percebi que se pudesse morder e guardar no bolso uma risada, seria a dele. Ela ecoava tão bem pela sala tranquila, onde uma música clássica tocava baixinho, servindo de trilha sonora.
Yoonji olhou para nós através do espelho e me sorriu. Seus olhos negros brilhavam de maneira travessa e seu sorriso gritava malícia. Eu conhecia aquelas expressões de cabo à rabo, minha irmã era muito transparente. Mas a ignorei.
O homem ao meu lado ainda ria, agora baixinho.
— Na frente dela — apontou para minha irmã —, irei fingir que não sou o favorito. Porém, mais tarde, quando formos tomar um café, posso deixar explícito que sei do nosso segredo. — ele se aproximou da minha orelha e sussurrou: — Que eu sou, sim.
— Nós vamos tomar um café?
— É claro, não irei deixar passar a oportunidade de conversar com meu escritor favorito de todos os tempos. Preciso também, é claro, saber se o John voltou ou não para o Hoseok.
O encarei levemente chocado, e perguntei:
— O quê?
— As pessoas normalmente não percebem, ou fingem não perceber, que eles eram um casal, né?
Após dizer isso, se levantou e voltou auxiliar minha irmã, deixando um eu bobo e chocado para trás.
Mas o sorriso permanecia em minha boca. Ele havia notado, mesmo com toda a sutileza que utilizei, que aqueles dois não eram só amigos. Fiquei feliz e esperançoso.
A primeira vez que escrevi foi naquela sala espelhada, no teclado miúdo do celular.
A segunda, foi no nosso café horas mais tarde.
Quando cheguei em casa, já era noite.
E descobri: eu não queria ser só seu amigo.
Durante aquele mês, nos encontramos todos os dias. Todos os dias mesmo. Yoonji fazia piadas, ria da minha timidez e, vez ou outra, se juntava aos nossos cafés depois das aulas.
Quando eu chegava em casa após passar horas ouvindo falar pelos cotovelos — ele adorava conversar e rir; seu riso era fácil, bonito e espontâneo —, as palavras escorriam pelos meus dedos automaticamente, dando vida a mais um romance implícito e proibido.
Eu tentava negar e esconder, mas um dos personagens era inspirado em . No livro, foi a terceira vez que o escrevi. E só então percebi que desde que pousei meus olhos sobre ele, não parei mais de escrevê-lo.
era minha maior fonte de inspiração. E agora um de meus personagens também.
Sem perceber, me transformei em outro personagem naquele livro.
O personagem que completava . O romance proibido era nosso, os sorrisos dos personagens eram os nossos, as mãos tímidas entrelaçadas eram as nossas.
Eu queria completá-lo da mesma forma que, em minha cabeça, ele me completava.
Fingindo não perceber, me deixei apaixonar.
— Você devia contar para ele. — Yoonji murmurou, baixinho, ao meu lado. Era fim de tarde, em plena primavera, estávamos sentados em frente ao rio Han.
Suspirei, e, sem tirar os olhos do notebook em meu colo, perguntei:
— Contar o que e para quem, Yoonji?
— Contar para o que está apaixonado por ele. — ela respondeu com tranquilidade, se jogando para trás e deitando na toalha. — É meio óbvio o que vocês dois sentem. Veja bem, irmão, você é escritor. Sequer sabe esconder quando está no mundo da Lua. E é transparente. Extremamente transparente. — frisou. — Os olhos dele chegam a brilhar quando você está por perto. Enquanto estamos aqui conversando e você fingindo que está escrevendo e revisando algum capítulo, ele olha para cá o tempo inteiro. Ensaiar ao ar livre e te convidar para vir junto não é algo rotineiro.
— Você não sabe o que está dizendo. — rebati calmamente. — gosta de criar coreografias ao ar livre. Ele apenas juntou o útil ao agradável, já que ele precisava te ajudar. O que você está fazendo aqui comigo ao invés de estar ensaiando?
— Estou aqui evitando que você o perca. Ele volta para a Europa em dois meses.
Com isso, Yoonji finalmente se retirou.
E de medo, meu coração pesou e congelou.
Eu o perderia em dois meses?
A fala de Yoonji ecoou em minha cabeça por toda aquela noite. Escrevi com medo e melancolia, sofrendo antecipadamente. O sentimento já começava a me sufocar e jogar tudo em palavras vazias em forma de romance num livro em andamento não estava resolvendo como no início.
Eu estava apaixonado e não sabia o que fazer, exatamente igual ao meu personagem.
Jaehyun, meu personagem, estava sofrendo pelo seu primeiro amor. Ele insistia em fingir que não sentia nada, que estava tudo bem, ele não amava ninguém, sequer sabia o que era amor — pensava de forma idiota. Aos poucos, a cada palavra que me escapava, em meio a tantos sentimentos conflituosos daquele adolescente, entendi que o espelhava em mim mesmo.
Eu era Jaehyun, Jaehyun era eu.
Eu amava e não queria aceitar.
E quando percebi, as palavras pareciam dançar dentro de mim, prontas para saírem rodopiando mundo afora, com saltos, giros e piruetas, dizendo o quanto eu sentia, o quanto eu amava.
Não, eu não iria perdê-lo em dois meses.
Não pensei muito quando saí de casa. Ainda vestia calça de moletom e chinelos com meia, além de uma camisa duas vezes maior do que eu e surrada. Não estava nada apresentável e naqueles momentos eu questionava minha sanidade e o meu medo de ficar só.
Quando cheguei em frente ao prédio residencial no bairro vizinho, suspirei. O que eu estava fazendo e o que eu esperava? O que diria?
Enquanto pensava e me xingava mentalmente, uma chuva fina de primavera começou a cair. Praguejei, nervoso. A cada segundo que passava, a chuva ficava mais forte, me molhando por inteiro. Não tinha mais escapatória, eu precisava chamá-lo.
Aquela era minha primeira loucura por amor. E embora quisesse me arrepender, não conseguia. Eu não queria perdê-lo, e não iria.
Com os dedos trêmulos, puxei o celular do bolso.
Enviei. Em poucos segundos, recebi uma resposta.
Ao ler a resposta-pergunta, pude vê-lo, em minha mente, claramente rindo. sempre ria facilmente das coisas. Principalmente de mim. Comigo.
A chuva está ficando cada vez mais forte.
Estou começando a sentir frio, .
Por favor, me traga um guarda-chuva.”
Em pouco menos de cinco minutos, atravessou o hall de entrada de seu prédio e destrancou o portão. Ele não estava muito diferente de mim — também vestia calça de moletom e chinelos com meias.
— Eu já esperava você por aqui, mas não imaginei que seria no meio da madrugada e em plena chuva. — foi a primeira coisa que ele me disse, enquanto colocava o guarda-chuva aberto sobre minha cabeça. — O que deu em você, hyung?
O encarei, ignorando os arrepios que percorriam meu corpo amedrontado.
— Fique. — sussurrei, encarando-o nos olhos. — Comigo. Fique comigo. Não vá embora.
piscou os olhos, confuso. Pude notar sua mão se fechar com mais vontade em volta do guarda-chuva e, por um segundo, pensei em desistir. Poderia dizer que estava em meio a um surto onde sequer conseguia diferenciar realidade de fantasia. Poderia alegar também que estava bêbado, ou que havia perdido o juízo. Mas não conseguia me mover. Só sabia olhá-lo e esperar por uma resposta que parecia não vir nunca.
Longos segundos se passaram e, quando menos esperei, sorriu.
Seus lábios entreabriram devagar, mostrando os dentinhos que eu tanto amava, e o sorriso fora crescendo à medida que ele entendia do que eu estava falando.
Uma gargalhada reverberou pela rua vazia e se misturou ao som da chuva. O vento bagunçava seus belos cabelos dourados e eu permanecia confuso, apenas observando a obra de arte que pairava à minha frente, a chuva caindo forte atrás dele, o riso alto, a boca aberta, o guarda-chuva escorregando e eu voltando a me molhar dos pés à cabeça.
— Você é um bobo. — sussurrou enquanto se aproximava mais, como se me contasse o mais secreto dos segredos. — Não vou embora. Não sem antes beijá-lo ao menos uma vez.
Meu coração passou a bater de forma desenfreada após ouvir tais palavras. Eu não conseguia acreditar no que estava ouvindo.
não demorou a colar os lábios nos meus, tentando equilibrar-se nas pontas dos pés sobre os chinelos e meias molhados e segurar o guarda-chuva na mãozinha tão pequena. Nossos olhos estavam conectados, não tínhamos coragem de fechá-los ainda. Era bom fitar um ao outro tão de pertinho. Era reconfortante. A proximidade era gostosa e nossas bocas pareciam perfeitas daquele modo, mas queríamos mais e era explícito.
Não tardei, portanto, a segurá-lo pela cintura e permiti que meus olhos finalmente se fechassem. Quase no mesmo instante, nossas bocas se abriram e nossas línguas foram de encontro uma a outra.
O beijo de era doce e refrescante. Algo que me lembrava chocolate e menta. Era gostoso, lento e excitante. Ele possuía uma sensualidade fora do comum, fazendo com que eu me sentisse esquentar e ficasse prestes a explodir em plena chuva.
Os pingos que caíam do céu chicoteavam o guarda-chuva com força, servindo de trilha sonora para nosso beijo público. E ele não parecia se importar; eu muito menos.
se afastou, deixando um suspiro sobre meus lábios. O sorriso que sustentava era o mais bonito que eu já havia visto em toda minha vida, e totalmente diferente de todos os sorrisos que ele já havia me direcionado. Quando pensei que não poderia me apaixonar mais, me encontrei ainda mais perdido. Meu coração poderia explodir a qualquer momento. E ele explodiria em emojis melosos de corações coloridos e bichinhos com olhinhos de coração também. Um coração explodindo corações. Tão clichê e romântico como eu realmente era.
Como nós realmente éramos.
— Por um momento cheguei a pensar que você nunca faria isso, hyung. — sussurrou enquanto acariciava meu rosto com uma das mãos. — Não consigo acreditar que precisou sentir que me perderia para vir até mim. Por que tanto medo? Não ficou claro o quanto eu te desejava?
— Me desculpe, sou um escritor que não sabe lidar com sentimentos. Mas agora consigo ver o quanto sinto por você.
— Eu não vou embora. — mudou de assunto, sorrindo. — Quero dizer… Ainda vou precisar viajar. Mas voltarei. Preciso voltar. Ao contrário de você, sei lidar bem com tudo que sinto. Estou apaixonado, . Por você, pelos seus romances, seus sorrisos, seus mínimos detalhes, cada faceta sua. E eu jamais iria te deixar para trás.
As palavras e os sentimentos se agitavam e se misturavam dentro de mim, como quando eu estava escrevendo. Eles percorriam meu corpo, minha mente, minha alma e meu coração. Me penetravam e me marcavam. Através deles, eu era capaz de perceber cada sentimento, cada vontade, tudo o que queria me fazer entender.
O que eu sentia não era diferente. Eu o amava. Muito. Estava cegamente apaixonado. Contudo, minhas respostas, minhas próprias palavras, não queriam sair; eu não conseguia colocá-las para fora. Não daquela vez. Naquela situação.
Pela primeira vez, em vinte e poucos anos, eu estava experimentando a sensação que tanto descrevi: estava sufocado de sentimentos. Sentia o peito arder, o estômago afundar e a garganta seca.
Eu só queria beijá-lo novamente.
Eu não precisava mais falar. Pela primeira vez, não precisava falar. Não precisava colocar as palavras para dançarem ao redor de mim — de nós. Pela primeira vez, estava amando de verdade e nada mais importava. Meu sorriso bobo o mostrava o quão apaixonado eu também estava.
Eu não disse mais nada, apenas o puxei pela cintura e colei nossas bocas novamente. ficou mole entre meus braços e deixou o guarda-chuva cair ao lado de nossos pés. Com paixão e vontade, sem se importar com a forte chuva que nos banhava àquela hora da madrugada, agarrou minha nuca com ambas as mãos.
Entre suas mãos, seus lábios e seu corpo, cercado de amor, desejo e reciprocidade, percebi que não precisava mais de palavras dançantes. Não enquanto eu o tivesse comigo. Nossos textos se misturavam em silêncio, as palavras dançavam dentro de nós.
Naquela madrugada, sob a chuva, decidi que escreveria para sempre.