Capítulo Único
Minha família tem um legado: proteger uns aos outros. Quando digo família, não estou falando apenas de sangue, e sim de honra; honrar onde nascemos, vivemos e colhemos nossos frutos. Minha terra é poluída, nossos rios têm venenos e parece que a nossa sorte foi embora. Achava que minha vida seria a mesma de tantas outras ali, porém, os guerreiros Wind me escolheram. Fui treinado para matar, para proteger e para me tornar invisível. Passei boa parte dos meus treinamentos conhecendo partes do mundo, até que fui chamado. Um evento (A Escolha) ocorreu e eles precisavam de mim lá... invisível, só mais um guarda entre todos os guardas reais.
Eu tenho uma missão cheia de buracos, tenho tudo escrito na minha mente. Caso aconteça, ou não, algo.
Serei seu anjo, seu fiel amigo, que provavelmente nunca saberá meu nome. Foi assim que pensei que seria.
Endres trabalhou para o reino de Iléia por anos antes de tudo acontecer. Sabia das escapadas do rei e conhecia os segredos do filho, Max. Tinha noção da mulher que andava pelos corredores, enquanto Amberly estava dormindo por causa da bebida que seu marido lhe dava. Sabia também que havia mais uma pessoa com sangue real, que não era filha da rainha. Além de conhecer mais coisas sobre outras pessoas dali de dentro do castelo, segredos que somente usava caso precisasse. Mas ele sempre foi e ainda é um homem que anda na lei, na lei de Iléia, na lei dos homens e na lei de Deus.
Amberly
Max estava lindo, como sempre foi. Acho que ele puxou o seu pai no quesito charme, não posso negar isso para ninguém. Percebi o quanto estava sendo complicada a escolha de sua noiva. Só que ele não tinha percebido que já tinha escolhido uma há muito tempo atrás.
Foi tudo tão rápido. Vi Max sorrir para mim e no outro instante alguém recebendo um tiro na cabeça. Gritos recuaram pelo salão, pessoas correndo... Um homem apontou a arma para Clark e, como eu jurei proteger o Rei de Iléia, o homem que amo, recebi o tiro no lugar dele. Senti uma parte do meu corpo esquentar e tudo ficar preto. Ainda escutava gritos, mas agora parecia que estavam todos longe de mim. Tentei abrir os meus olhos mais uma vez, percebendo que eu estava no chão, e o Clar... Não! Eu tentei gritar “não”. Não poderiam matá-lo, eu o amo. E eu prometi... Novamente não vejo nada... Então tudo começou... Era como se eu estivesse em uma sala de cinema 3D pela primeira vez. Alguém ofereceu a mão para eu me levantar e assim que eu aceitei o cenário mudou de lugar. Estou novamente na seleção, mas isso foi há anos... como eu voltei aqui? Impossível. Vejo o rei e a rainha, ou seja, meus sogros, e seu filho, Clark. O cenário muda novamente e eu estou na cama com o meu marido, ele dá aquele sorriso que faz tudo de ruim parecer longe demais para me machucar. Tudo fica branco e quando alguém aparece, é um médico dizendo: Lamento rainha, mas você perdeu a criança. Quando vou dizer algo, apareço em um salão com pessoas dançando para lá e para cá. Tento falar com elas, mas ninguém me escuta, ninguém me vê. Estou ficando desesperada. Grito socorro e fecho os meus olhos, e quando abro estou em casa... não no castelo, mas em minha casa. Aquela antes de me tornar rainha, mas tudo está tão diferente agora, está tudo mais limpo e mais lindo... Não é real. Eu sei que não é real, mas me sinto bem. E tudo se apaga novamente.
Endres
Ajude-a!
Foi uma ordem que recebi, mas também como não poderia fazer isso? Foi bem complicado tirá-la daquele local. Todos achavam que ela estava morta, assim como o rei. Eu fiz com que todos pensassem isso. Eles nunca parariam de tentar matar a rainha. Fiz com que em seu enterro o caixão não fosse aberto em respeito de algo que ela tinha dito – tudo mentira, ela nunca falou sobre isso; havia outras coisas ali dentro para que ninguém duvidasse que não tivesse um corpo. O mais complicado foi sair do castelo e da cidade com ela, usei um carro que se misturava com os do buffet, mas por dentro uma ambulância e tirei-a de lá. A rainha estava morta e aquela agora era outra mulher. A mulher que eu jurei proteger e para isso precisava deixar que todos pensassem que ela estava morta, até o seu filho. Que ela posso me perdoar um dia.
— Será que ela irá acordar?
Lucia e André são as únicas pessoas que sabem que a mulher naquela choupana é a Amberly. Fizemos uma comunidade bem longe da movimentação da cidade. As pessoas que ali estão não se encaixam em nenhuma casta, são pessoas que gostam de ficar longe de problemas ou pessoas que são os problemas e foram expulsas de casa. Ali tem filhos do que antigamente se chamavam ciganos e eles não quiseram mudar seus costumes. Também tem famílias de veganos que gostam de ficar longe da movimentação das cidades e trabalham no campo, onde não á agrotóxicos. Entre outras, que chamamos de tribos. Ali usamos tudo que a natureza pode nos dar, as casas, comidas e remédios. Temos as chamadas Lilás, moças que se vestem como a sociedade manda e vão até as cidades mais próximas – o que demora dias de viajem – e compram o que precisamos. A energia que usamos é solar e temos equipamentos de ponta, pelo menos nos “hospitais”, que são as choupamos mais limpas, amplas e reservadas que temos. E é uma delas que Amberly está há meses, desacordada.
— Não sei, juro que não sei. – Disse preocupado.
Eu escolhia algumas ervas para poder fazer um chá. Não estava com sono esses últimos dias.
— Endres! – Escutei um grito — Você é o mais forte daqui, me ajuda a pegar lenha? – Vanessa se aproximou e sorriu assim que olhei para ela.
— Já irei.
— Cuidado com a cobra... com a Vanessa. – Cochichou Lucia.
Ninguém dava muito pelo Endres quando mais jovem, alto e magrelo, seus cabelos longos o deixavam estranho, mas com o passar do tempo foi ganhando músculos e, também, certo charme, que deixava as empregadas do castelo babando nele, e claro que às vezes ele se aproveitava disso. Na comunidade não era diferente e Vanessa era só mais uma que dava em cima dele descaradamente. Ela tem apenas 29 anos e já é viúva, seu marido morreu quando foi defender uma carga de mercarias que ele vendia para os rebeldes.
— Que braços fortes você tem Endres – Ela se aproximou dele, levantando a mão para tocar seus músculos.
— Desculpe – Pegou ela pelos braços e afastou com delicadeza.
— O que está acontecendo? Você não é assim.
— Você me chamou para pegar lenha – Sorriu de lado.
— Você sabe o que eu quero... Você mudou bastante. – Passou a mão no rosto, tirando uma joaninha que caminhava entre seus cabelos e jogou inseto pelo ar, fazendo-a voar e repousar em uma planta.
Ela o observava enquanto ele pegava alguns galhos grossos.
— Quem é a pessoa que você vai visitar na casa 16? – Cruzou os braços e ficou esperando a resposta que demorou a vir — Diga!
— É uma amiga.
— Uma amiga que te fez mudar bastante. Vou lá vê-la – Deu as costas para Endres e começou a caminhar em direção ao local.
—Não! – Gritou e jogou os galhos no chão, correndo e parando na frente de Vanessa.
— Não? Porque não?
— Ela é minha esposa.
Vanessa
Vanessa ficou chocada e chateada por Endres nunca ter lhe contado sobre isso. Ainda mais chateada por não poder mais dar suas escapadas com o homem.
Então é por isso que Endres estava tão mudado; antes era mais aventureiro. Precisava apenas de um sorriso de lado e um aceno para ele vir até mim e “brincávamos” juntos, escondidos no mato ou em algum celeiro. – Pensei.
— Então a pessoa que esta lá é a mulher dele? – Perguntou Kim.
— Sim...
— Acabou a brincadeira – Deu uma gargalhada — Vanessa vai ter que arranjar outro homem.
— Se ela morrer, quem sabe posso ficar com ele...
— Teria coragem de matá-la? – Perguntou Kim enquanto arrumava a saia longa de seu vestido marrom.
Não tenho coragem de matar e nem de pedir aos céus por isso. Foi só um comentário com minha amiga. Ela tem razão, a brincadeira acabou. Ele é casado, e mulher está aqui na comunidade. Irei respeitar isso. Além disso, deve estar doente. As únicas pessoas que entram no local são Endres, Lucia e André. Lucia por ser muito amiga de Endres e se conhecerem há bastante tempo. André é médico, mesmo que ele não tenha terminado os estudos é o mais próximo de um doutor que temos por aqui e já foi companheiro de estrada de Endres; é assim que eles falam quando pergunto de onde se conhecem. O coroa bonitão foi fisgado e eu não sabia. Talvez eles tenham brigado quando eu tinha um rolo com Endres na mata... Mas agora não posso ficar pensando nele.
Branco, alto e musculoso. Seus cabelos longos e cacheados dão um ar selvagem. Suspiro sempre que o vejo. Endres é um homem que tiraria qualquer mulher do sério. Muito mais lindo que o rei era. Se bem que faz anos que não o via. Vi ele na TV quando apresentou seu filho Max para a população de Iléia. Depois nunca mais, afinal aqui não temos TV. Somente algumas pessoas têm rádios velhos que pegam muito mal, para saber das notícias. É... bem-vindos a comunidade Pale.
Amberly
A luz do Sol clareava o local, tentei olhar para o lado e não consegui. Parecia que meu corpo pesava uma tonelada. Meu marido, onde está? Não... Ele morreu. Uma lágrima caiu dos meus olhos. Foi quando uma mulher entrou e ficou paralisada, pensei que ela não falaria nada. Parece que não acreditava que estava olhando para mim.
— Rainha – Ela sabe quem é. — Digo, Amberly. Fique calma, está bem? Está entre amigos.
— Senhorita, onde eu estou? – Disse cada palavra com dificuldade e dor no peito.
— Está em Pale. Uma comunidade que fica bem longe de Iléia.
— Meu filho?
— Ele está bem – Deu um sorriso reconfortante. — Pode me chamar de Lucia. – Disse a mulher de cabelos loiros — Não sou senhorita, ohh, há muito tempo. – Falou com ar brincalhão.
Não perguntei de meu marido, não queria saber a resposta, mesmo sabendo. Ela cuidou de mim e me deu uma canja de galinha, sem sal nenhum, mas saborosa.
— Obrigada por cuidar de mim.
— A senhora ficou muito tempo desacordada, temia que nunca mais acordasse. Endres ficaria desolado. – Pegou a tigela e colocou sobre a mesa.
— Não sei quem são vocês, mas sinto que são pessoas de bem. – E cada palavra que falei saiu como um “muito obrigado”, mas usou toda a minha energia e acabei pegando no sono.
Narrador
Endres passou a noite do lado de Amberly e saiu assim que começa a amanhecer. Queria estar por perto caso precisasse de algo, e queria continuar invisível. Mal sabia ele que ela sempre o via, sempre ali cuidando dela.
Mais um dia tinha amanhecido e Endres levantou e foi em direção à saída.
— Não vá, por favor. – Amberly estava somente de camisola, mas não se sentia desconfortável em sua presença. Sentia-se fraca, e pudera já que perdeu peso. — Fique.
— Amberly, eu estou fugindo de uma conversa muito desagradável. – Abaixou a cabeça e olhou para o chão.
— Ele morreu? Eu sei. – Sentou-se para poder olhar para Endres.
— A senhora também morreu.
Amberly
Não estava acreditando nas palavras daquele moço. Fiquei sem reação por horas, mas logo o chamei de volta, ele me devia explicações, e cada palavra dele me deixava mais confusa. Como ele ousava me dizer aquilo tão bruscamente? Eu estou morta para o meu filho e toda Iléia. Não era justo.
Mais dias se passaram e fiquei esperando ansiosamente que Endres voltasse da caça, ele era a única pessoa que conversava comigo. Aquilo era praticamente uma prisão. Ele me contou sobre o casamento de meu filho Max e América, sobre as coisas boas que ambos estão fazendo lá. Eles ainda devem estar naquele momento Lua de Mel do casal.
Lucia, André e Endres. Somente via os três. Pessoas passavam por perto, mas nada de sair daquela choupana.
— Preciso voltar para Iléia.
— Para que? – Perguntou Endres.
— Para ver o túmulo de Clar...
— Aquele homem não prestava! – Cuspiu as palavras.
— Era meu marido! – Disse quase gritando. Quando senti uma dor no meu peito e sentei na primeira cadeira que encontrei, Endres correu para me ajudar e se ajoelhou perto de mim.
— Eu sei que o amava. Mas você sabe...
— Eu sei.
Eu sei. Lucia me contou tudo que sabia. Passei mal a noite toda por causa disso, mas ela disse que eu deveria saber das escapadas do rei. Como fui boba e ingênua. Acho que no final só queria ficar perto de Max e do homem que eu idealizei. Além de ter enchido o meu coração de esperanças com a seleção, afinal iria ganhar uma filha, da qual agora nem poderei aproveitar. Endres sabia dos meus sentimentos. Todos os dias quando estava quase anoitecendo, ele vinha ao meu “quarto” para conversamos. Ensinou-me algumas brincadeiras usadas com papel e aproveitávamos a companhia um do outro. Nos jogos de tabuleiro ele sempre se distraia – ou me deixava ganhar, mas acho que é a primeira opção. Contava suas historias enquanto estava no reino. Percebi que era difícil ele contar algo sobre mim. Não sei se ele sabe que Lucia me contou boa parte das coisas.
Depois parece que veio tudo em minha mente novamente. O amor da minha vida morreu. Foi um ciclo muito desgastante. Eu chorava a noite, e de dia quando não tinha ninguém por perto. Eu queria acabar com tudo aquilo – Por que eu não morri junto com ele? Estava devastada, triste e sem saber o que fazer. Passei anos da minha vida com ele e agora ele se foi. Não queria comer mais nada, estava fraca e me entregando à tristeza. Como Endres e Lucia são delicados comigo. Ele tinha viajado havia uns 2 meses – meses de tristeza por lembrar de meu marido. Quando ele voltou, soube de como eu estava e continuou a me visitar.
Se passaram praticamente 9 meses depois que acordei. Passei por todas as etapas da perda, mas eu precisava fazer uma última coisa. Levantei-me da cama naquela manhã com um só objetivo. Coloquei o vestido que Lucia me deu e um pano na cabeça para ninguém me reconhecer. Diria que era coisa da religião, se me perguntassem. Sempre achei aquelas mulheres elegantes e só as tinha visto nos livros de romance que lia. O véu seria a minha salvação para qualquer curioso.
— Está louca? – Endres não entendia o que eu precisava fazer.
— Eu preciso e irei fazer isso, agora me dê licença. – Ia passar pela porta, mas ele a bloqueou. — Endres, eu preciso dizer adeus.
— Não posso deixar a senhora sair daqui... – Ele olhou nos meus olhos — Por favor, preciso saber se André irá te liberar ou não. Você esteve entre a vida e a morte durante muito tempo. Cuidamos de você. E a sua recuperação está sendo ótima, para depois você querer sair e estragar tudo.
— Se quer assim, vou respeitar... – Minha cabeça começou a dor — Mas irei hoje.
— Está bem. – Falou como se tivesse perdido uma guerra.
Endres
— Claro que pode ir – André olhou de lado para mim. —Se você for.
Balancei a cabeça concordando.
— Não a deixarei sozinha – Nem hoje e nem nunca, pensei.
Depois do exame rápido de Amberly, saímos em direção a Iléia. Durante maioria do caminho, ela ficou calada, mas às vezes cantava alguma canção baixinho. Passamos por rebeldes, mas eles nem olharam para nós. Os cavalos estavam cansados de carregar a carroça e nós dois, então decidi acampar.
— Como assim nunca dormiu fora de casa? – Arrumava os gravetos que peguei, queria tentar fazer uma fogueira.
— Bem... quando era jovem, eu não tinha tempo isso. – Arrumou o vestido entre as pernas, parecia que não estava ligando muito para etiqueta.
— Ainda dá tempo, senhora.
— Temos a mesma idade, praticamente. Pode me chamar de Amberly? – Pediu docemente.
— Posso sim. – Levantei e balancei a terra que estava em minha calça.
— Obrigada por cuidar de mim. – Ela sorriu e eu automaticamente sorri para ela.
Eu montei a barraca e ela dormiu lá dentro. Enquanto o meu teto foi as estrelas. E pela primeira vez eu sonhei com ela. A mulher que eu sempre via do lado de outro homem, que jurei proteger. Agora estamos indo em direção de Iléia. Ela me pediu para vir, pois, precisava fazer algo muito importante.
Na manhã seguinte, antes mesmo do Sol levantar-se, nós seguimos viajem. Ela às vezes parecia tão frágil, mas sei que por trás dessa doçura e fragilidade tem uma mulher forte. Senão ela não teria vivido tantos anos com o rei, muito menos aguentado as perdas de seus bebês.
— O que foi? – Perguntou Amberly.
— Nada. – Respondo para ela.
Vejo-a pegar o cobertor e se enrolar nele. Parece que nem é a rainha mais ali, apenas uma mulher comum com um cobertor rasgado. Não demorou muito tempo para avistarmos a cidade, mas ela me pede para irmos a outro lugar. E cá estou eu, na entrada esperando-a voltar.
Amberly
Ele é tão gentil vindo comigo aqui. Iria vir sem ele, mas Endres não me deixou. Caminhei devagar até chegar onde eu queria, arrumando o pano na cabeça que cismava em cair. Até que cheguei aonde Clark estava... E eu logo ali, ou é o que todos pensam. Dá um aperto no coração, mas não dói tanto quanto antes.
— Oi, amor. Eu sei, eu sei, você me amava. Amava-me do seu jeito. – Sorrio como se ele pudesse me ver. — Eu sempre te amei, desde pequena... Acho que era pra acontecer, e aconteceu. – Paro para pensar em tudo que vivi com ele — Tivemos um filho lindo e digno, será e está sendo um ótimo rei. Vim me despedir de você. É errado isso? Eu fiz tudo que estava no meu alcance, tentei te proteger, eu juro. Não me arrependo do que eu fiz, faria novamente. Só que não é assim que as coisas acontecem. O destino gosta de brincar com as pessoas. Você teve um lugar importante na minha vida, mas não está aqui mais. – Respirei fundo, não sei como aguentei até agora. Sinto uma lágrima cair. — Mas agora vou viver outra vida – Sorrio — Eu sinto que preciso. É isso. Adeus.
Sinto que alguém se aproxima, mas não senti medo. Levanto, arrumando a barra do vestido e escuto os passos cada vez mais perto.
— Amberly, temos que ir. – Diz a voz familiar.
Coloco a flor branca no jarro e parto junto com Endres.
O caminho de volta para casa foi um silencio total, mas me sentia leve e, o mais importante, livre.
— Obrigada mais uma vez. Não sei o que seria de mim sem você.
— Estou às suas ordens.
Dou uma pequena risada.
— E eu sou muito grata por isso.
(Espaço de tempo)
Dias passam. Estou cada vez mais familiarizada com as coisas no vilarejo e com as pequenas fofocas também. Mudei de cabana graças à alta que tive do doutor, e fui para a casa/cabana de Endres. Ele disse para todo mundo que sou sua mulher, por isso estamos morando juntos.
Escolhi correr o risco que andar pelo local. Amei ver as crianças correndo e mulheres conversando. Ninguém olhou para mim; tão diferente do castelo onde sempre tinham pessoas de olho. Não posso ficar pensando nisso, agora tudo aquilo é passado. Converso com algumas crianças, são tão doces e encantadoras. Não me atrevo a falar com as pessoas mais velhas, com medo de me reconhecerem. Naquele mesmo dia, quando chego à cabana, Endres tinha preparado o jantar: javali assado, que ele mesmo caçou, e arroz.
— Hum, o cheiro está ótimo.
— Espere até experimentar, coloquei um tempero especial. – Diz orgulhoso.
Ele colocou o Javali assado sobre a mesa e eu o ajudei, pegando a panela com o arroz. A cabana de Endres... a nossa cabana, é bem limpa e arejada. Não sinto falta de nenhum quarto do castelo, quase nem lembro como era, mesmo que só tenha passado pouco tempo depois que acordei. Endres cortou com facilidade um grande pedaço do assado.
— Acho que você exagerou um pouco. – Olhei o pedaço do cortado no meu prato, assim que me sentei na cadeira.
— Você vai pedir mais. – Falou com a voz rouca, me olhando de um jeito diferente, logo ele balança a cabeça e ri. — Do Javali – Completou.
Pegou um pouco do arroz. Estava um cheiro maravilhoso. Acho que é a panela de barro que deixa a comida mais saborosa.
E pior, Endres tinha razão. Aquilo estava uma delícia.
— Faz dias que cheguei de Iléia, e não me perguntou sobre nada.
— Eu sei que, se tivesse algo errado, teria me falado.
Ele concordou com a cabeça.
— Eu sempre falo.
— Quero ir com você na próxima viajem. Não se preocupe, não quero ir para Iléia, pode ser outra cidade ou vilarejo.
— Com qual finalidade, se me permite saber?
— Coisas de mulher. – Coloquei uma garfada na boca, mas ele não parou de me olhar. Depois que engoli, continuei. —Quero comprar um presente para o bebê da Hanna.
Tinha feito amizade com a jovem Hanna. Ela nunca me viu como rainha, iguais muitas pessoas por ali. Então está sendo fácil conviver nesse meu primeiro ano como esposa de Endres.
— Gosto de saber que está se saindo bem por aqui.
Mais algum tempo passou. Pude acompanhar o nascimento de Vini e também me tornei algum tipo de madrinha. Aquela pequena criatura não tinha nada a ver com Max, mas não tinha como não se lembrar da maternidade. Nunca poderia falar que fui mãe, todos ali achavam que eu e Endres não tivemos sorte, e com a nossa idade não pensávamos mais nisso.
Estava bordando uma roupa, ajudando Lucia. Ela as vende pelas cidades para conseguir dinheiro para outras coisas na comunidade, assim como remédios e material escolar. Quando começou com uma conversa diferente que me fez ficar vermelha.
— Não descobriu até hoje que ele gosta de você?
— Não fale bobagens, Lucia. Endres apenas cuida de mim, porque prometeu isso há muito tempo.
— Os guerreiros deram um destino quando ele ainda era jovem, mas não mandam no coração. E o que tem vocês terem algo? Continua lhe protegendo do mesmo modo.
— Não temos mais idades para isso. – Furei meu dedo e isso lhe chamou atenção. Lucia jogou suas coisas de lado, vindo ao meu alcance. Pegou meu dedo e olhou.
— Ficou nervosa, mas vai sobreviver. Não existe idade para o amor, não existe idade para viver o amor.
Acabamos dando uma risada e voltei a fazer os bordados. E assim cessou a conversa.
(passagem de tempo)
Aquilo ficou na minha cabeça por vários dias. Que bela tolice. Eu não gosto do Endres, não da forma que Lucia acha. Na realidade, é mais do que isso. Acabei me apaixonando, e isso está me matando por dentro. Endres não é meu marido de verdade. Só tive um homem em toda a minha vida, e até tempos atrás pensava que seria assim; Clark saiu do meu coração e ninguém jamais entraria ali.
Estou totalmente errada. Ah, Amberly, você que sempre teve pés no chão, está voando por quê?
Endres
Estava pensando nos acontecimentos recentes. O velho Tião tinha feito uma festa na comunidade Pale, para comemorar a abundante colheita de trigo que fizemos. Lucia estava muito feliz, pois conseguiu transformar sua parte da horta em uma plantação de morangos, mesmo não sendo a época certa para isso. Quando um está feliz e suas coisas andam para frente, toda a Pale ganha. É assim que vivemos, um ajudando o outro, trabalhando para não nos faltar nada. Claro que tem coisas que cada um tem que se virar para conseguir, mas o importante que no fim estamos todos juntos. Não pude ir à festa de Tião, pois Amberly não estava se sentindo bem.
A mulher fala que depois que veio para cá suas dores diminuíram, mas, para a minha tristeza, não foram embora, então, nos dias e nas noites complicadas, gosto de ficar por perto.
— Deveria ter ido.
— Confesso que queria dançar com você.
— Confesso que danço muito mal. – Brincou ela com aquele olhar inocente, mas que me prende de um jeito diferente. —Endres?
— Poderíamos somente fingir que dançamos?
Balançou a cabeça e riu. Como ela é doce, doce, Amber.
Ela colocou a panela com uma mistura estranha sobre a mesa. Aquilo era nossa janta.
— Eu que fiz.
— Estou lascado. – Brinquei e recebi um tapa com o pano de prato, o mesmo que ela jogou para longe antes de se sentar ao meu lado. E não é que aquela gororoba estava uma delicia?
No dia seguinte, fui até o grande celeiro vermelho. Era meu dia de juntar a palha e dar para os animais. Estava me esforçando para pegar os mais pesados e o suar começava a cair em meu rosto. Não tenho mais idade para isso, mas aparentemente ainda sou o mais forte dali. Escutei passos e sorri achando que era Amberly me trazendo água, como ela sempre faz.
— Vejo que não sou quem esperava.
— Oi, Vanessa. Estou quase terminando, quer alguma coisa? – Peguei um bolo de palha e joguei do outro lado. Bati minhas mãos uma na outra, fazendo um pó subir.
— Estou indo embora.
— Para onde? – Perguntei preocupado, afinal, Vanessa ainda era minha amiga.
- Para Ramon, você sabe que eles estão fazendo outra comunidade por lá, querem expandir os negócios. E meu namorado quer que eu vá com ele.
— Espero que tenham sorte por lá, Vanessa, de coração.
— Endres... – Deu um passo em minha direção. — Faz mais de dois anos que sua esposa apareceu, ou seja, que não nos agarramos por ali. Se quiser dar um tchau diferente – Seu sorriso travesso nos lábios me fez imaginar o que seria.
— Muito obrigado, mas sou um homem fiel.
— Fiel? Você me disse que já era casado quando veio para cá, então, sua fidelidade começou quando? – A mulher loira deu mais uns passos até chegar perto de mim. — Amo sentir o seu cheiro.
Escutei um barulho e quando olhei era Amberly, imóvel e assustada.
Deixei Vanessa sozinha e corri atrás de Amberly, que parecia estar muito bem, pois correu como ninguém.
— Amber – Chamei.
— Desculpe por ter... – Ela se virou para mim. Aparentemente nervosa e pálida, como se tivesse visto um fantasma. — atrapalhado vocês dois. – Foi o que ela conseguiu dizer, antes de desmaiar. Corri para pegá-la antes de chegar ao chão.
Amberly
Me levantei ainda com dor de cabeça e fiz um chá para mim. Quando uma sombra surgiu, pensei que seria Carla, porém, foi Vanessa que me surpreendeu.
— Posso entrar?
— Claro que sim. – Respondi de imediato.
Ela entrou e sem muita cerimonia sentou-se em uma das cadeiras de madeira e deu um sorriso sem graça.
— Quero falar de Endres...
— Não precisamos falar sobre isso – A interrompi.
— Precisamos, sim. Eu gostava muito dele, mas foram tempos atrás. Vivíamos nos agarrando por aí – Ela riu e isso me fez sentir um sangue querer subir, mas tentei me tranquilizar. — O que quero dizer é: tudo é passado, faz muito tempo que tive alguma coisa com ele. Desde que você chegou, ou voltou sei lá de onde, Endres não me quis mais. E foi muito ruim o que fiz em ter tentado algo novamente com ele, peço que não fale isso com ninguém.
— Se está preocupada com isso, tem minha total discrição.
— Jura? – Ela parecia aliviada, levantou-se arrumando o vestido simples e marrom, mas que aparentava ser novo. — Nunca mais mexerei com o seu marido.
Marido ela disse. Marido. Queria que ela ficasse para tomar um chá comigo, mas Vanessa precisava ir embora, por isso, naquela tarde, fiquei sozinha.
Na manhã seguinte, Endres não estava por ali, então decidi ir atrás. Perguntei por ele e me informaram que estava no rio, provavelmente lavando roupas ou ajudando alguma pessoa; sabia que não estava pescando, porque já me disse que não tem paciência.
Endres
Não quis importunar Amber sobre o que estava fazendo com a Vanessa. Tenho que confessar que no fundo eu estava aliviado por ela sentir alguma coisa por mim, ou eu estou muito enganado? Amber foi uma moça simples, mas também foi rainha e teve sempre do bom e do melhor. E mesmo que aqui não falta nada, não tem o mesmo conforto. Será que ela sente saudades? A única coisa que ela diz é que sente saudades do Max, mas que em seu coração sabe que o filho está bem. Além de escutar pelo rádio as notícias de Iléia, o que a deixa mais tranquila.
Para tirar todos esses pensamentos que eu não posso ter resposta, fui tomar banho no rio. Tirei toda a minha roupa, apenas deixando o calção. A natureza é mesmo o melhor remédio que posso imaginar. Quando abri os olhos, vi Amber olhando para mim.
— Desculpe. – Ela se virou.
— Não tem problema, até parece que nunca viu um homem nu.
Esperei qualquer reação dela, mas ainda continuava parada.
— Amber? Eu não estou totalmente pelado, pode olhar para mim.
Ela se virou e parece que admirou o que viu, instantaneamente dando um sorriso.
— Vim ver se estava bem.
Ela estava sentindo a minha falta? Nunca uma mulher veio atrás de mim sem querer ajuda ou outra coisa mais... mais para o lado sexual.
— Eu estou bem e fiquei sabendo que Vanessa foi ver você, espero que não tenha dito que nós não somos...
— Não, não falei. E quando terminar pode, por favor, vir conversar comigo? Hoje fiquei com curiosidade sobre alguns assuntos.
Assenti para ela.
— Ótimo. – Disse ela dando meia volta e indo embora.
Amberly
Aqui estamos, nós dois. Endres ainda de cabelo molhado e eu estava aparentemente em dia. Algumas dúvidas, ele já tinha me respondido.
— Então algumas pessoas estão aqui fugindo dos rótulos que as castas dão.
— Isso mesmo.
— O que são guerreiros Wind?
— Eles são professores dos futuros guerreiros. São homens que escolhem garotos das fazendas ou pequenas cidades e se assim eles quiserem, os treinam. Saiba que é uma grande sorte ser escolhido, trabalhar por um ideal.
— É seu? – Suspirei.
— Eu fui treinado para cuidar da futura rainha, mas também fui treinado para salvá-la. Sabia do perigo que corria, pois temos informações dos rebeldes. Guerreiros não se intrometem nos casos deles, mas esse poderia ser diferente. Envolvia você.
Falava com certa delicadeza e também com certo receio. Talvez algum tipo de raiva surgisse por ele ter me tirado do reino, mas sei que me matariam de qualquer forma, naquela noite ou em outra.
— Tinha vários esquemas e escapatórias. Não pude fazer nada para salvar o rei, não escutei seus batimentos, mas você, sim. Não me pergunte como foi. Uma loucura total. Por isso lhe protejo, mas para falar a verdade cumpri meu proposito há um ano.
— Porque continua aqui então?
— Porque eu amo você, Amber, mas sei que uma rainha nunca olharia para mim...
Eu me joguei nos braços deles, sentando-me em seu colo. Ele parecia assustado quando lhe dei um beijo e fechei meus olhos, para me entregar àquele novo sentimento. Senti suas mãos abraçarem meu corpo e também senti seus cabelos quase secos quando o toquei.
Endres
Nada aconteceu naquela noite. Depois que o beijo terminou, Amber apenas fez uma carícia em meu rosto e levantou-se. Não tentei trazê-la de novo para mim, mesmo que desejasse, tudo tem seu tempo. Naquela noite eu preparei o jantar, mas nenhum dos dois parecia estar com fome.
Como alguém estaria? Se o peito já estava cheio de ternura e cheio de coisas que não consigo explicar. Talvez ainda tenha perguntas que não consigo explicar aqui dentro de mim. Como se por acaso ela realmente terá coragem de se entregar ao amor. E isso eu tenho de sobra para lhe dar.
Estava mergulhado nos meus pensamentos quando John entrou correndo em minha cabana, gritando algo que não escutei de primeira.
— Levanta, Endres. Acorde.
— O que aconteceu? – Perguntei assustado, mas ainda sonolento, tentando deixar aqueles pensamentos para depois.
— Rebeldes estão por perto, precisamos chamar a atenção para eles irem a outra direção.
— Rebeldes? – Repeti. — Eles nunca caminham por esse lado da floresta, por ser muito longe. O que deve ter acontecido?
— Não sei, só resolveram abrir a mata, mas podemos chamar a atenção, como disse antes.
Concordei com ele, não poderia deixar que determinado grupo descobrisse aqui, mesmo sabendo que alguns já foram rebeldes, mas que hoje vivem normalmente. Chamei mais homens e mulheres para nos acompanhar nessa jornada. Colocávamos sinais de rivais nas árvores, alguns desses sinais faziam mudar o caminho, outros faziam continuar, mas algo deu errado. Muito errado. Acho que caímos em nossa própria armadinha.
Escutei um tiro e os pássaros voarem assustados, um grito ecoou na mata. A Guerreira Francine... posso saber que é ela. Muito boa com luta corpo a corpo, mas uma arma? Corri naquela direção e vi a briga. Quase não dava para diferenciar um povo do outro. Francine estava machucada, mas ainda caminhava e a vi se jogar em um homem e os dois se jogaram no chão. Vi um homem barbudo correr na minha direção, e aí começou a briga maior. Chutes, socos e arranhões e fomos para o chão. Quando ambos cansaram, demos um tempo e nos levantamos, somente assim o vi pegando algo de seu bolso, esse objeto brilhou com a luz do Sol, e ele veio em minha direção. Agora a briga minha não era para bater, era somente para não ser pego por aquele objeto pontudo. Senti uma dor penetrar em minha carne, e o calor do sangue que saía. E outra vez, quase no mesmo lugar. Não tive tanta sorte. Vi um guerreiro de o meu grupo pegar o meu inimigo, enquanto Francine me perguntava se eu estava bem. Não acredito que apenas aquilo me faria cair. Eu fechei os olhos por alguns instantes e depois abri, mas não aguentei por muito tempo e tudo escureceu, enquanto ainda escutava a voz assustada de Francine. Ainda queria sentir o cheiro de Amber... quero sentir o cheiro dela antes de desabar de vez, mas isso é impossível. Quero escutar a voz de Amber, mas é impossível. E foi aí, com esses pensamentos, que tudo desapareceu.
Amberly
Os dias foram passando quase como se fossem para machucar. Ficava tentando ocupar a minha mente, enquanto trabalhava nas hortas; era muito diferente de trabalhar na fábrica, ali, na natureza, era praticamente uma terapia. Logo depois chegava a tarde e a noite junto dele, escutando cochichos de que não sobreviveria. E eu? Perder mais uma pessoa que amo... não sei se iria aguentar. Essa nova Amber aguentaria perder um amor que nem pode viver? Perguntava isso para mim nesses dias. Porém, enquanto estava na horta, escutei alguém me chamar. Meu coração gelou, corri até a cabana onde ele estava quase sem fôlego. O vi sentado, tomando algum líquido que o médico dava para ele. Cheguei perto, me sentando no chão próximo a ele. O doutor se afastou, nos deixando a sós. Endres, ainda sentindo dor, se ajeitou.
— Eu achei que...
— Não fale — Sussurrou — ainda não cumpri minha promessa.
— A de me salvar?
Ele negou e uma confusão transpareceu em minha face.
— A de te fazer feliz.
Endres
Ela falou muitas vezes que não poderia me dar um filho, e nem poderia me acompanhar caso eu precisasse ir à Iléia. Muitas vezes também me explicou sobre a sua saúde frágil. Porém, para mim nada importava, nada mesmo. Quando eu olho para aquela mulher, vejo algo que eu não trocaria por nada desse mundo, muito mais do que uma paixão, eu me apaixonei por ela. E por mais que a mulher relutou em aceitar, também se apaixonou por mim. Então, tudo o que talvez eu não possa ter é preenchido por aquele sorriso. E hoje aqui, longe dos guerreiros Wind, longe também de onde estávamos e muito mais longe do reino, estamos felizes e tranquilos. Terminei a casa que já tinha começado quando oficializamos nossa união. Fica no alto de uma montanha, onde Amber pode ver o jardim e horta que ficam mais embaixo. Mais do lado estão nossos animais, para eu não precisar ficar sempre saindo dali e a deixando sozinha. A saúde da “minha rainha” está um pouco melhor, pois o ar daqui é limpo e o lugar é tranquilo. E é claro que ela me fez arrumar um rádio para saber notícias do castelo, inclusive ficou encantada por saber do nascimento dos gêmeos. Sabe que nunca poderá vê-los, anão ser por TV ou foto, mas o que reconforta é saber que tudo está bem na medida do possível.
— E eu não poderia estar mais feliz — Ela declarou.
— Vida longa à rainha.
— Vida longa a nós dois.
E com um beijo doce e delicado, termino de contar o começo da nossa longa história juntos.
Eu tenho uma missão cheia de buracos, tenho tudo escrito na minha mente. Caso aconteça, ou não, algo.
Serei seu anjo, seu fiel amigo, que provavelmente nunca saberá meu nome. Foi assim que pensei que seria.
Endres trabalhou para o reino de Iléia por anos antes de tudo acontecer. Sabia das escapadas do rei e conhecia os segredos do filho, Max. Tinha noção da mulher que andava pelos corredores, enquanto Amberly estava dormindo por causa da bebida que seu marido lhe dava. Sabia também que havia mais uma pessoa com sangue real, que não era filha da rainha. Além de conhecer mais coisas sobre outras pessoas dali de dentro do castelo, segredos que somente usava caso precisasse. Mas ele sempre foi e ainda é um homem que anda na lei, na lei de Iléia, na lei dos homens e na lei de Deus.
Amberly
Max estava lindo, como sempre foi. Acho que ele puxou o seu pai no quesito charme, não posso negar isso para ninguém. Percebi o quanto estava sendo complicada a escolha de sua noiva. Só que ele não tinha percebido que já tinha escolhido uma há muito tempo atrás.
Foi tudo tão rápido. Vi Max sorrir para mim e no outro instante alguém recebendo um tiro na cabeça. Gritos recuaram pelo salão, pessoas correndo... Um homem apontou a arma para Clark e, como eu jurei proteger o Rei de Iléia, o homem que amo, recebi o tiro no lugar dele. Senti uma parte do meu corpo esquentar e tudo ficar preto. Ainda escutava gritos, mas agora parecia que estavam todos longe de mim. Tentei abrir os meus olhos mais uma vez, percebendo que eu estava no chão, e o Clar... Não! Eu tentei gritar “não”. Não poderiam matá-lo, eu o amo. E eu prometi... Novamente não vejo nada... Então tudo começou... Era como se eu estivesse em uma sala de cinema 3D pela primeira vez. Alguém ofereceu a mão para eu me levantar e assim que eu aceitei o cenário mudou de lugar. Estou novamente na seleção, mas isso foi há anos... como eu voltei aqui? Impossível. Vejo o rei e a rainha, ou seja, meus sogros, e seu filho, Clark. O cenário muda novamente e eu estou na cama com o meu marido, ele dá aquele sorriso que faz tudo de ruim parecer longe demais para me machucar. Tudo fica branco e quando alguém aparece, é um médico dizendo: Lamento rainha, mas você perdeu a criança. Quando vou dizer algo, apareço em um salão com pessoas dançando para lá e para cá. Tento falar com elas, mas ninguém me escuta, ninguém me vê. Estou ficando desesperada. Grito socorro e fecho os meus olhos, e quando abro estou em casa... não no castelo, mas em minha casa. Aquela antes de me tornar rainha, mas tudo está tão diferente agora, está tudo mais limpo e mais lindo... Não é real. Eu sei que não é real, mas me sinto bem. E tudo se apaga novamente.
Endres
Ajude-a!
Foi uma ordem que recebi, mas também como não poderia fazer isso? Foi bem complicado tirá-la daquele local. Todos achavam que ela estava morta, assim como o rei. Eu fiz com que todos pensassem isso. Eles nunca parariam de tentar matar a rainha. Fiz com que em seu enterro o caixão não fosse aberto em respeito de algo que ela tinha dito – tudo mentira, ela nunca falou sobre isso; havia outras coisas ali dentro para que ninguém duvidasse que não tivesse um corpo. O mais complicado foi sair do castelo e da cidade com ela, usei um carro que se misturava com os do buffet, mas por dentro uma ambulância e tirei-a de lá. A rainha estava morta e aquela agora era outra mulher. A mulher que eu jurei proteger e para isso precisava deixar que todos pensassem que ela estava morta, até o seu filho. Que ela posso me perdoar um dia.
— Será que ela irá acordar?
Lucia e André são as únicas pessoas que sabem que a mulher naquela choupana é a Amberly. Fizemos uma comunidade bem longe da movimentação da cidade. As pessoas que ali estão não se encaixam em nenhuma casta, são pessoas que gostam de ficar longe de problemas ou pessoas que são os problemas e foram expulsas de casa. Ali tem filhos do que antigamente se chamavam ciganos e eles não quiseram mudar seus costumes. Também tem famílias de veganos que gostam de ficar longe da movimentação das cidades e trabalham no campo, onde não á agrotóxicos. Entre outras, que chamamos de tribos. Ali usamos tudo que a natureza pode nos dar, as casas, comidas e remédios. Temos as chamadas Lilás, moças que se vestem como a sociedade manda e vão até as cidades mais próximas – o que demora dias de viajem – e compram o que precisamos. A energia que usamos é solar e temos equipamentos de ponta, pelo menos nos “hospitais”, que são as choupamos mais limpas, amplas e reservadas que temos. E é uma delas que Amberly está há meses, desacordada.
— Não sei, juro que não sei. – Disse preocupado.
Eu escolhia algumas ervas para poder fazer um chá. Não estava com sono esses últimos dias.
— Endres! – Escutei um grito — Você é o mais forte daqui, me ajuda a pegar lenha? – Vanessa se aproximou e sorriu assim que olhei para ela.
— Já irei.
— Cuidado com a cobra... com a Vanessa. – Cochichou Lucia.
Ninguém dava muito pelo Endres quando mais jovem, alto e magrelo, seus cabelos longos o deixavam estranho, mas com o passar do tempo foi ganhando músculos e, também, certo charme, que deixava as empregadas do castelo babando nele, e claro que às vezes ele se aproveitava disso. Na comunidade não era diferente e Vanessa era só mais uma que dava em cima dele descaradamente. Ela tem apenas 29 anos e já é viúva, seu marido morreu quando foi defender uma carga de mercarias que ele vendia para os rebeldes.
— Que braços fortes você tem Endres – Ela se aproximou dele, levantando a mão para tocar seus músculos.
— Desculpe – Pegou ela pelos braços e afastou com delicadeza.
— O que está acontecendo? Você não é assim.
— Você me chamou para pegar lenha – Sorriu de lado.
— Você sabe o que eu quero... Você mudou bastante. – Passou a mão no rosto, tirando uma joaninha que caminhava entre seus cabelos e jogou inseto pelo ar, fazendo-a voar e repousar em uma planta.
Ela o observava enquanto ele pegava alguns galhos grossos.
— Quem é a pessoa que você vai visitar na casa 16? – Cruzou os braços e ficou esperando a resposta que demorou a vir — Diga!
— É uma amiga.
— Uma amiga que te fez mudar bastante. Vou lá vê-la – Deu as costas para Endres e começou a caminhar em direção ao local.
—Não! – Gritou e jogou os galhos no chão, correndo e parando na frente de Vanessa.
— Não? Porque não?
— Ela é minha esposa.
Vanessa
Vanessa ficou chocada e chateada por Endres nunca ter lhe contado sobre isso. Ainda mais chateada por não poder mais dar suas escapadas com o homem.
Então é por isso que Endres estava tão mudado; antes era mais aventureiro. Precisava apenas de um sorriso de lado e um aceno para ele vir até mim e “brincávamos” juntos, escondidos no mato ou em algum celeiro. – Pensei.
— Então a pessoa que esta lá é a mulher dele? – Perguntou Kim.
— Sim...
— Acabou a brincadeira – Deu uma gargalhada — Vanessa vai ter que arranjar outro homem.
— Se ela morrer, quem sabe posso ficar com ele...
— Teria coragem de matá-la? – Perguntou Kim enquanto arrumava a saia longa de seu vestido marrom.
Não tenho coragem de matar e nem de pedir aos céus por isso. Foi só um comentário com minha amiga. Ela tem razão, a brincadeira acabou. Ele é casado, e mulher está aqui na comunidade. Irei respeitar isso. Além disso, deve estar doente. As únicas pessoas que entram no local são Endres, Lucia e André. Lucia por ser muito amiga de Endres e se conhecerem há bastante tempo. André é médico, mesmo que ele não tenha terminado os estudos é o mais próximo de um doutor que temos por aqui e já foi companheiro de estrada de Endres; é assim que eles falam quando pergunto de onde se conhecem. O coroa bonitão foi fisgado e eu não sabia. Talvez eles tenham brigado quando eu tinha um rolo com Endres na mata... Mas agora não posso ficar pensando nele.
Branco, alto e musculoso. Seus cabelos longos e cacheados dão um ar selvagem. Suspiro sempre que o vejo. Endres é um homem que tiraria qualquer mulher do sério. Muito mais lindo que o rei era. Se bem que faz anos que não o via. Vi ele na TV quando apresentou seu filho Max para a população de Iléia. Depois nunca mais, afinal aqui não temos TV. Somente algumas pessoas têm rádios velhos que pegam muito mal, para saber das notícias. É... bem-vindos a comunidade Pale.
Amberly
A luz do Sol clareava o local, tentei olhar para o lado e não consegui. Parecia que meu corpo pesava uma tonelada. Meu marido, onde está? Não... Ele morreu. Uma lágrima caiu dos meus olhos. Foi quando uma mulher entrou e ficou paralisada, pensei que ela não falaria nada. Parece que não acreditava que estava olhando para mim.
— Rainha – Ela sabe quem é. — Digo, Amberly. Fique calma, está bem? Está entre amigos.
— Senhorita, onde eu estou? – Disse cada palavra com dificuldade e dor no peito.
— Está em Pale. Uma comunidade que fica bem longe de Iléia.
— Meu filho?
— Ele está bem – Deu um sorriso reconfortante. — Pode me chamar de Lucia. – Disse a mulher de cabelos loiros — Não sou senhorita, ohh, há muito tempo. – Falou com ar brincalhão.
Não perguntei de meu marido, não queria saber a resposta, mesmo sabendo. Ela cuidou de mim e me deu uma canja de galinha, sem sal nenhum, mas saborosa.
— Obrigada por cuidar de mim.
— A senhora ficou muito tempo desacordada, temia que nunca mais acordasse. Endres ficaria desolado. – Pegou a tigela e colocou sobre a mesa.
— Não sei quem são vocês, mas sinto que são pessoas de bem. – E cada palavra que falei saiu como um “muito obrigado”, mas usou toda a minha energia e acabei pegando no sono.
Narrador
Endres passou a noite do lado de Amberly e saiu assim que começa a amanhecer. Queria estar por perto caso precisasse de algo, e queria continuar invisível. Mal sabia ele que ela sempre o via, sempre ali cuidando dela.
Mais um dia tinha amanhecido e Endres levantou e foi em direção à saída.
— Não vá, por favor. – Amberly estava somente de camisola, mas não se sentia desconfortável em sua presença. Sentia-se fraca, e pudera já que perdeu peso. — Fique.
— Amberly, eu estou fugindo de uma conversa muito desagradável. – Abaixou a cabeça e olhou para o chão.
— Ele morreu? Eu sei. – Sentou-se para poder olhar para Endres.
— A senhora também morreu.
Amberly
Não estava acreditando nas palavras daquele moço. Fiquei sem reação por horas, mas logo o chamei de volta, ele me devia explicações, e cada palavra dele me deixava mais confusa. Como ele ousava me dizer aquilo tão bruscamente? Eu estou morta para o meu filho e toda Iléia. Não era justo.
Mais dias se passaram e fiquei esperando ansiosamente que Endres voltasse da caça, ele era a única pessoa que conversava comigo. Aquilo era praticamente uma prisão. Ele me contou sobre o casamento de meu filho Max e América, sobre as coisas boas que ambos estão fazendo lá. Eles ainda devem estar naquele momento Lua de Mel do casal.
Lucia, André e Endres. Somente via os três. Pessoas passavam por perto, mas nada de sair daquela choupana.
— Preciso voltar para Iléia.
— Para que? – Perguntou Endres.
— Para ver o túmulo de Clar...
— Aquele homem não prestava! – Cuspiu as palavras.
— Era meu marido! – Disse quase gritando. Quando senti uma dor no meu peito e sentei na primeira cadeira que encontrei, Endres correu para me ajudar e se ajoelhou perto de mim.
— Eu sei que o amava. Mas você sabe...
— Eu sei.
Eu sei. Lucia me contou tudo que sabia. Passei mal a noite toda por causa disso, mas ela disse que eu deveria saber das escapadas do rei. Como fui boba e ingênua. Acho que no final só queria ficar perto de Max e do homem que eu idealizei. Além de ter enchido o meu coração de esperanças com a seleção, afinal iria ganhar uma filha, da qual agora nem poderei aproveitar. Endres sabia dos meus sentimentos. Todos os dias quando estava quase anoitecendo, ele vinha ao meu “quarto” para conversamos. Ensinou-me algumas brincadeiras usadas com papel e aproveitávamos a companhia um do outro. Nos jogos de tabuleiro ele sempre se distraia – ou me deixava ganhar, mas acho que é a primeira opção. Contava suas historias enquanto estava no reino. Percebi que era difícil ele contar algo sobre mim. Não sei se ele sabe que Lucia me contou boa parte das coisas.
Depois parece que veio tudo em minha mente novamente. O amor da minha vida morreu. Foi um ciclo muito desgastante. Eu chorava a noite, e de dia quando não tinha ninguém por perto. Eu queria acabar com tudo aquilo – Por que eu não morri junto com ele? Estava devastada, triste e sem saber o que fazer. Passei anos da minha vida com ele e agora ele se foi. Não queria comer mais nada, estava fraca e me entregando à tristeza. Como Endres e Lucia são delicados comigo. Ele tinha viajado havia uns 2 meses – meses de tristeza por lembrar de meu marido. Quando ele voltou, soube de como eu estava e continuou a me visitar.
Se passaram praticamente 9 meses depois que acordei. Passei por todas as etapas da perda, mas eu precisava fazer uma última coisa. Levantei-me da cama naquela manhã com um só objetivo. Coloquei o vestido que Lucia me deu e um pano na cabeça para ninguém me reconhecer. Diria que era coisa da religião, se me perguntassem. Sempre achei aquelas mulheres elegantes e só as tinha visto nos livros de romance que lia. O véu seria a minha salvação para qualquer curioso.
— Está louca? – Endres não entendia o que eu precisava fazer.
— Eu preciso e irei fazer isso, agora me dê licença. – Ia passar pela porta, mas ele a bloqueou. — Endres, eu preciso dizer adeus.
— Não posso deixar a senhora sair daqui... – Ele olhou nos meus olhos — Por favor, preciso saber se André irá te liberar ou não. Você esteve entre a vida e a morte durante muito tempo. Cuidamos de você. E a sua recuperação está sendo ótima, para depois você querer sair e estragar tudo.
— Se quer assim, vou respeitar... – Minha cabeça começou a dor — Mas irei hoje.
— Está bem. – Falou como se tivesse perdido uma guerra.
Endres
— Claro que pode ir – André olhou de lado para mim. —Se você for.
Balancei a cabeça concordando.
— Não a deixarei sozinha – Nem hoje e nem nunca, pensei.
Depois do exame rápido de Amberly, saímos em direção a Iléia. Durante maioria do caminho, ela ficou calada, mas às vezes cantava alguma canção baixinho. Passamos por rebeldes, mas eles nem olharam para nós. Os cavalos estavam cansados de carregar a carroça e nós dois, então decidi acampar.
— Como assim nunca dormiu fora de casa? – Arrumava os gravetos que peguei, queria tentar fazer uma fogueira.
— Bem... quando era jovem, eu não tinha tempo isso. – Arrumou o vestido entre as pernas, parecia que não estava ligando muito para etiqueta.
— Ainda dá tempo, senhora.
— Temos a mesma idade, praticamente. Pode me chamar de Amberly? – Pediu docemente.
— Posso sim. – Levantei e balancei a terra que estava em minha calça.
— Obrigada por cuidar de mim. – Ela sorriu e eu automaticamente sorri para ela.
Eu montei a barraca e ela dormiu lá dentro. Enquanto o meu teto foi as estrelas. E pela primeira vez eu sonhei com ela. A mulher que eu sempre via do lado de outro homem, que jurei proteger. Agora estamos indo em direção de Iléia. Ela me pediu para vir, pois, precisava fazer algo muito importante.
Na manhã seguinte, antes mesmo do Sol levantar-se, nós seguimos viajem. Ela às vezes parecia tão frágil, mas sei que por trás dessa doçura e fragilidade tem uma mulher forte. Senão ela não teria vivido tantos anos com o rei, muito menos aguentado as perdas de seus bebês.
— O que foi? – Perguntou Amberly.
— Nada. – Respondo para ela.
Vejo-a pegar o cobertor e se enrolar nele. Parece que nem é a rainha mais ali, apenas uma mulher comum com um cobertor rasgado. Não demorou muito tempo para avistarmos a cidade, mas ela me pede para irmos a outro lugar. E cá estou eu, na entrada esperando-a voltar.
Amberly
Ele é tão gentil vindo comigo aqui. Iria vir sem ele, mas Endres não me deixou. Caminhei devagar até chegar onde eu queria, arrumando o pano na cabeça que cismava em cair. Até que cheguei aonde Clark estava... E eu logo ali, ou é o que todos pensam. Dá um aperto no coração, mas não dói tanto quanto antes.
— Oi, amor. Eu sei, eu sei, você me amava. Amava-me do seu jeito. – Sorrio como se ele pudesse me ver. — Eu sempre te amei, desde pequena... Acho que era pra acontecer, e aconteceu. – Paro para pensar em tudo que vivi com ele — Tivemos um filho lindo e digno, será e está sendo um ótimo rei. Vim me despedir de você. É errado isso? Eu fiz tudo que estava no meu alcance, tentei te proteger, eu juro. Não me arrependo do que eu fiz, faria novamente. Só que não é assim que as coisas acontecem. O destino gosta de brincar com as pessoas. Você teve um lugar importante na minha vida, mas não está aqui mais. – Respirei fundo, não sei como aguentei até agora. Sinto uma lágrima cair. — Mas agora vou viver outra vida – Sorrio — Eu sinto que preciso. É isso. Adeus.
Sinto que alguém se aproxima, mas não senti medo. Levanto, arrumando a barra do vestido e escuto os passos cada vez mais perto.
— Amberly, temos que ir. – Diz a voz familiar.
Coloco a flor branca no jarro e parto junto com Endres.
O caminho de volta para casa foi um silencio total, mas me sentia leve e, o mais importante, livre.
— Obrigada mais uma vez. Não sei o que seria de mim sem você.
— Estou às suas ordens.
Dou uma pequena risada.
— E eu sou muito grata por isso.
Dias passam. Estou cada vez mais familiarizada com as coisas no vilarejo e com as pequenas fofocas também. Mudei de cabana graças à alta que tive do doutor, e fui para a casa/cabana de Endres. Ele disse para todo mundo que sou sua mulher, por isso estamos morando juntos.
Escolhi correr o risco que andar pelo local. Amei ver as crianças correndo e mulheres conversando. Ninguém olhou para mim; tão diferente do castelo onde sempre tinham pessoas de olho. Não posso ficar pensando nisso, agora tudo aquilo é passado. Converso com algumas crianças, são tão doces e encantadoras. Não me atrevo a falar com as pessoas mais velhas, com medo de me reconhecerem. Naquele mesmo dia, quando chego à cabana, Endres tinha preparado o jantar: javali assado, que ele mesmo caçou, e arroz.
— Hum, o cheiro está ótimo.
— Espere até experimentar, coloquei um tempero especial. – Diz orgulhoso.
Ele colocou o Javali assado sobre a mesa e eu o ajudei, pegando a panela com o arroz. A cabana de Endres... a nossa cabana, é bem limpa e arejada. Não sinto falta de nenhum quarto do castelo, quase nem lembro como era, mesmo que só tenha passado pouco tempo depois que acordei. Endres cortou com facilidade um grande pedaço do assado.
— Acho que você exagerou um pouco. – Olhei o pedaço do cortado no meu prato, assim que me sentei na cadeira.
— Você vai pedir mais. – Falou com a voz rouca, me olhando de um jeito diferente, logo ele balança a cabeça e ri. — Do Javali – Completou.
Pegou um pouco do arroz. Estava um cheiro maravilhoso. Acho que é a panela de barro que deixa a comida mais saborosa.
E pior, Endres tinha razão. Aquilo estava uma delícia.
— Faz dias que cheguei de Iléia, e não me perguntou sobre nada.
— Eu sei que, se tivesse algo errado, teria me falado.
Ele concordou com a cabeça.
— Eu sempre falo.
— Quero ir com você na próxima viajem. Não se preocupe, não quero ir para Iléia, pode ser outra cidade ou vilarejo.
— Com qual finalidade, se me permite saber?
— Coisas de mulher. – Coloquei uma garfada na boca, mas ele não parou de me olhar. Depois que engoli, continuei. —Quero comprar um presente para o bebê da Hanna.
Tinha feito amizade com a jovem Hanna. Ela nunca me viu como rainha, iguais muitas pessoas por ali. Então está sendo fácil conviver nesse meu primeiro ano como esposa de Endres.
— Gosto de saber que está se saindo bem por aqui.
Mais algum tempo passou. Pude acompanhar o nascimento de Vini e também me tornei algum tipo de madrinha. Aquela pequena criatura não tinha nada a ver com Max, mas não tinha como não se lembrar da maternidade. Nunca poderia falar que fui mãe, todos ali achavam que eu e Endres não tivemos sorte, e com a nossa idade não pensávamos mais nisso.
Estava bordando uma roupa, ajudando Lucia. Ela as vende pelas cidades para conseguir dinheiro para outras coisas na comunidade, assim como remédios e material escolar. Quando começou com uma conversa diferente que me fez ficar vermelha.
— Não descobriu até hoje que ele gosta de você?
— Não fale bobagens, Lucia. Endres apenas cuida de mim, porque prometeu isso há muito tempo.
— Os guerreiros deram um destino quando ele ainda era jovem, mas não mandam no coração. E o que tem vocês terem algo? Continua lhe protegendo do mesmo modo.
— Não temos mais idades para isso. – Furei meu dedo e isso lhe chamou atenção. Lucia jogou suas coisas de lado, vindo ao meu alcance. Pegou meu dedo e olhou.
— Ficou nervosa, mas vai sobreviver. Não existe idade para o amor, não existe idade para viver o amor.
Acabamos dando uma risada e voltei a fazer os bordados. E assim cessou a conversa.
Aquilo ficou na minha cabeça por vários dias. Que bela tolice. Eu não gosto do Endres, não da forma que Lucia acha. Na realidade, é mais do que isso. Acabei me apaixonando, e isso está me matando por dentro. Endres não é meu marido de verdade. Só tive um homem em toda a minha vida, e até tempos atrás pensava que seria assim; Clark saiu do meu coração e ninguém jamais entraria ali.
Estou totalmente errada. Ah, Amberly, você que sempre teve pés no chão, está voando por quê?
Endres
Estava pensando nos acontecimentos recentes. O velho Tião tinha feito uma festa na comunidade Pale, para comemorar a abundante colheita de trigo que fizemos. Lucia estava muito feliz, pois conseguiu transformar sua parte da horta em uma plantação de morangos, mesmo não sendo a época certa para isso. Quando um está feliz e suas coisas andam para frente, toda a Pale ganha. É assim que vivemos, um ajudando o outro, trabalhando para não nos faltar nada. Claro que tem coisas que cada um tem que se virar para conseguir, mas o importante que no fim estamos todos juntos. Não pude ir à festa de Tião, pois Amberly não estava se sentindo bem.
A mulher fala que depois que veio para cá suas dores diminuíram, mas, para a minha tristeza, não foram embora, então, nos dias e nas noites complicadas, gosto de ficar por perto.
— Deveria ter ido.
— Confesso que queria dançar com você.
— Confesso que danço muito mal. – Brincou ela com aquele olhar inocente, mas que me prende de um jeito diferente. —Endres?
— Poderíamos somente fingir que dançamos?
Balançou a cabeça e riu. Como ela é doce, doce, Amber.
Ela colocou a panela com uma mistura estranha sobre a mesa. Aquilo era nossa janta.
— Eu que fiz.
— Estou lascado. – Brinquei e recebi um tapa com o pano de prato, o mesmo que ela jogou para longe antes de se sentar ao meu lado. E não é que aquela gororoba estava uma delicia?
No dia seguinte, fui até o grande celeiro vermelho. Era meu dia de juntar a palha e dar para os animais. Estava me esforçando para pegar os mais pesados e o suar começava a cair em meu rosto. Não tenho mais idade para isso, mas aparentemente ainda sou o mais forte dali. Escutei passos e sorri achando que era Amberly me trazendo água, como ela sempre faz.
— Vejo que não sou quem esperava.
— Oi, Vanessa. Estou quase terminando, quer alguma coisa? – Peguei um bolo de palha e joguei do outro lado. Bati minhas mãos uma na outra, fazendo um pó subir.
— Estou indo embora.
— Para onde? – Perguntei preocupado, afinal, Vanessa ainda era minha amiga.
- Para Ramon, você sabe que eles estão fazendo outra comunidade por lá, querem expandir os negócios. E meu namorado quer que eu vá com ele.
— Espero que tenham sorte por lá, Vanessa, de coração.
— Endres... – Deu um passo em minha direção. — Faz mais de dois anos que sua esposa apareceu, ou seja, que não nos agarramos por ali. Se quiser dar um tchau diferente – Seu sorriso travesso nos lábios me fez imaginar o que seria.
— Muito obrigado, mas sou um homem fiel.
— Fiel? Você me disse que já era casado quando veio para cá, então, sua fidelidade começou quando? – A mulher loira deu mais uns passos até chegar perto de mim. — Amo sentir o seu cheiro.
Escutei um barulho e quando olhei era Amberly, imóvel e assustada.
Deixei Vanessa sozinha e corri atrás de Amberly, que parecia estar muito bem, pois correu como ninguém.
— Amber – Chamei.
— Desculpe por ter... – Ela se virou para mim. Aparentemente nervosa e pálida, como se tivesse visto um fantasma. — atrapalhado vocês dois. – Foi o que ela conseguiu dizer, antes de desmaiar. Corri para pegá-la antes de chegar ao chão.
Amberly
Me levantei ainda com dor de cabeça e fiz um chá para mim. Quando uma sombra surgiu, pensei que seria Carla, porém, foi Vanessa que me surpreendeu.
— Posso entrar?
— Claro que sim. – Respondi de imediato.
Ela entrou e sem muita cerimonia sentou-se em uma das cadeiras de madeira e deu um sorriso sem graça.
— Quero falar de Endres...
— Não precisamos falar sobre isso – A interrompi.
— Precisamos, sim. Eu gostava muito dele, mas foram tempos atrás. Vivíamos nos agarrando por aí – Ela riu e isso me fez sentir um sangue querer subir, mas tentei me tranquilizar. — O que quero dizer é: tudo é passado, faz muito tempo que tive alguma coisa com ele. Desde que você chegou, ou voltou sei lá de onde, Endres não me quis mais. E foi muito ruim o que fiz em ter tentado algo novamente com ele, peço que não fale isso com ninguém.
— Se está preocupada com isso, tem minha total discrição.
— Jura? – Ela parecia aliviada, levantou-se arrumando o vestido simples e marrom, mas que aparentava ser novo. — Nunca mais mexerei com o seu marido.
Marido ela disse. Marido. Queria que ela ficasse para tomar um chá comigo, mas Vanessa precisava ir embora, por isso, naquela tarde, fiquei sozinha.
Na manhã seguinte, Endres não estava por ali, então decidi ir atrás. Perguntei por ele e me informaram que estava no rio, provavelmente lavando roupas ou ajudando alguma pessoa; sabia que não estava pescando, porque já me disse que não tem paciência.
Endres
Não quis importunar Amber sobre o que estava fazendo com a Vanessa. Tenho que confessar que no fundo eu estava aliviado por ela sentir alguma coisa por mim, ou eu estou muito enganado? Amber foi uma moça simples, mas também foi rainha e teve sempre do bom e do melhor. E mesmo que aqui não falta nada, não tem o mesmo conforto. Será que ela sente saudades? A única coisa que ela diz é que sente saudades do Max, mas que em seu coração sabe que o filho está bem. Além de escutar pelo rádio as notícias de Iléia, o que a deixa mais tranquila.
Para tirar todos esses pensamentos que eu não posso ter resposta, fui tomar banho no rio. Tirei toda a minha roupa, apenas deixando o calção. A natureza é mesmo o melhor remédio que posso imaginar. Quando abri os olhos, vi Amber olhando para mim.
— Desculpe. – Ela se virou.
— Não tem problema, até parece que nunca viu um homem nu.
Esperei qualquer reação dela, mas ainda continuava parada.
— Amber? Eu não estou totalmente pelado, pode olhar para mim.
Ela se virou e parece que admirou o que viu, instantaneamente dando um sorriso.
— Vim ver se estava bem.
Ela estava sentindo a minha falta? Nunca uma mulher veio atrás de mim sem querer ajuda ou outra coisa mais... mais para o lado sexual.
— Eu estou bem e fiquei sabendo que Vanessa foi ver você, espero que não tenha dito que nós não somos...
— Não, não falei. E quando terminar pode, por favor, vir conversar comigo? Hoje fiquei com curiosidade sobre alguns assuntos.
Assenti para ela.
— Ótimo. – Disse ela dando meia volta e indo embora.
Amberly
Aqui estamos, nós dois. Endres ainda de cabelo molhado e eu estava aparentemente em dia. Algumas dúvidas, ele já tinha me respondido.
— Então algumas pessoas estão aqui fugindo dos rótulos que as castas dão.
— Isso mesmo.
— O que são guerreiros Wind?
— Eles são professores dos futuros guerreiros. São homens que escolhem garotos das fazendas ou pequenas cidades e se assim eles quiserem, os treinam. Saiba que é uma grande sorte ser escolhido, trabalhar por um ideal.
— É seu? – Suspirei.
— Eu fui treinado para cuidar da futura rainha, mas também fui treinado para salvá-la. Sabia do perigo que corria, pois temos informações dos rebeldes. Guerreiros não se intrometem nos casos deles, mas esse poderia ser diferente. Envolvia você.
Falava com certa delicadeza e também com certo receio. Talvez algum tipo de raiva surgisse por ele ter me tirado do reino, mas sei que me matariam de qualquer forma, naquela noite ou em outra.
— Tinha vários esquemas e escapatórias. Não pude fazer nada para salvar o rei, não escutei seus batimentos, mas você, sim. Não me pergunte como foi. Uma loucura total. Por isso lhe protejo, mas para falar a verdade cumpri meu proposito há um ano.
— Porque continua aqui então?
— Porque eu amo você, Amber, mas sei que uma rainha nunca olharia para mim...
Eu me joguei nos braços deles, sentando-me em seu colo. Ele parecia assustado quando lhe dei um beijo e fechei meus olhos, para me entregar àquele novo sentimento. Senti suas mãos abraçarem meu corpo e também senti seus cabelos quase secos quando o toquei.
Endres
Nada aconteceu naquela noite. Depois que o beijo terminou, Amber apenas fez uma carícia em meu rosto e levantou-se. Não tentei trazê-la de novo para mim, mesmo que desejasse, tudo tem seu tempo. Naquela noite eu preparei o jantar, mas nenhum dos dois parecia estar com fome.
Como alguém estaria? Se o peito já estava cheio de ternura e cheio de coisas que não consigo explicar. Talvez ainda tenha perguntas que não consigo explicar aqui dentro de mim. Como se por acaso ela realmente terá coragem de se entregar ao amor. E isso eu tenho de sobra para lhe dar.
Estava mergulhado nos meus pensamentos quando John entrou correndo em minha cabana, gritando algo que não escutei de primeira.
— Levanta, Endres. Acorde.
— O que aconteceu? – Perguntei assustado, mas ainda sonolento, tentando deixar aqueles pensamentos para depois.
— Rebeldes estão por perto, precisamos chamar a atenção para eles irem a outra direção.
— Rebeldes? – Repeti. — Eles nunca caminham por esse lado da floresta, por ser muito longe. O que deve ter acontecido?
— Não sei, só resolveram abrir a mata, mas podemos chamar a atenção, como disse antes.
Concordei com ele, não poderia deixar que determinado grupo descobrisse aqui, mesmo sabendo que alguns já foram rebeldes, mas que hoje vivem normalmente. Chamei mais homens e mulheres para nos acompanhar nessa jornada. Colocávamos sinais de rivais nas árvores, alguns desses sinais faziam mudar o caminho, outros faziam continuar, mas algo deu errado. Muito errado. Acho que caímos em nossa própria armadinha.
Escutei um tiro e os pássaros voarem assustados, um grito ecoou na mata. A Guerreira Francine... posso saber que é ela. Muito boa com luta corpo a corpo, mas uma arma? Corri naquela direção e vi a briga. Quase não dava para diferenciar um povo do outro. Francine estava machucada, mas ainda caminhava e a vi se jogar em um homem e os dois se jogaram no chão. Vi um homem barbudo correr na minha direção, e aí começou a briga maior. Chutes, socos e arranhões e fomos para o chão. Quando ambos cansaram, demos um tempo e nos levantamos, somente assim o vi pegando algo de seu bolso, esse objeto brilhou com a luz do Sol, e ele veio em minha direção. Agora a briga minha não era para bater, era somente para não ser pego por aquele objeto pontudo. Senti uma dor penetrar em minha carne, e o calor do sangue que saía. E outra vez, quase no mesmo lugar. Não tive tanta sorte. Vi um guerreiro de o meu grupo pegar o meu inimigo, enquanto Francine me perguntava se eu estava bem. Não acredito que apenas aquilo me faria cair. Eu fechei os olhos por alguns instantes e depois abri, mas não aguentei por muito tempo e tudo escureceu, enquanto ainda escutava a voz assustada de Francine. Ainda queria sentir o cheiro de Amber... quero sentir o cheiro dela antes de desabar de vez, mas isso é impossível. Quero escutar a voz de Amber, mas é impossível. E foi aí, com esses pensamentos, que tudo desapareceu.
Amberly
Os dias foram passando quase como se fossem para machucar. Ficava tentando ocupar a minha mente, enquanto trabalhava nas hortas; era muito diferente de trabalhar na fábrica, ali, na natureza, era praticamente uma terapia. Logo depois chegava a tarde e a noite junto dele, escutando cochichos de que não sobreviveria. E eu? Perder mais uma pessoa que amo... não sei se iria aguentar. Essa nova Amber aguentaria perder um amor que nem pode viver? Perguntava isso para mim nesses dias. Porém, enquanto estava na horta, escutei alguém me chamar. Meu coração gelou, corri até a cabana onde ele estava quase sem fôlego. O vi sentado, tomando algum líquido que o médico dava para ele. Cheguei perto, me sentando no chão próximo a ele. O doutor se afastou, nos deixando a sós. Endres, ainda sentindo dor, se ajeitou.
— Eu achei que...
— Não fale — Sussurrou — ainda não cumpri minha promessa.
— A de me salvar?
Ele negou e uma confusão transpareceu em minha face.
— A de te fazer feliz.
Endres
Ela falou muitas vezes que não poderia me dar um filho, e nem poderia me acompanhar caso eu precisasse ir à Iléia. Muitas vezes também me explicou sobre a sua saúde frágil. Porém, para mim nada importava, nada mesmo. Quando eu olho para aquela mulher, vejo algo que eu não trocaria por nada desse mundo, muito mais do que uma paixão, eu me apaixonei por ela. E por mais que a mulher relutou em aceitar, também se apaixonou por mim. Então, tudo o que talvez eu não possa ter é preenchido por aquele sorriso. E hoje aqui, longe dos guerreiros Wind, longe também de onde estávamos e muito mais longe do reino, estamos felizes e tranquilos. Terminei a casa que já tinha começado quando oficializamos nossa união. Fica no alto de uma montanha, onde Amber pode ver o jardim e horta que ficam mais embaixo. Mais do lado estão nossos animais, para eu não precisar ficar sempre saindo dali e a deixando sozinha. A saúde da “minha rainha” está um pouco melhor, pois o ar daqui é limpo e o lugar é tranquilo. E é claro que ela me fez arrumar um rádio para saber notícias do castelo, inclusive ficou encantada por saber do nascimento dos gêmeos. Sabe que nunca poderá vê-los, anão ser por TV ou foto, mas o que reconforta é saber que tudo está bem na medida do possível.
— E eu não poderia estar mais feliz — Ela declarou.
— Vida longa à rainha.
— Vida longa a nós dois.
E com um beijo doce e delicado, termino de contar o começo da nossa longa história juntos.
FIM
Nota da autora: Sem nota.
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