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Um


“I'm not calling for a second chance
I'm screaming at the top of my voice”
(Same Mistakes - James Blunt)


180ª dia, cidade de Nova Iorque

Apontando o lápis grafite 02, acomodado na sala, com as costas contra o sofá, terminava a planta de uma microempresa, os papéis organizados em ordem sobre a mesinha de centro. Não era tão organizado quanto parecia, até se casar.
Com um rápido olhar para o relógio no pulso, notou que passava das oito e meia da manhã.
— Descobri o seu problema. — Escutou sua esposa dizer, após um bocejo, enquanto atravessava o corredor.
— Pensei que estivesse dormindo.
— É ciúme. — constatou, bem-humorada.
— Deve ser porque tenho motivos, e o seu problema é não perceber. Enquanto isso, os homens do quartel caem matando.
— Literalmente. — Sorriu.
— Não estou brincando.
— Os meus colegas de trabalho são apenas colegas, casados, com namoradas, filhos, dívidas, menos atraentes. O único homem que me atrai está com ciúme deles e mal sabe que não existe concorrência.
— Quem é Roberto?
— É o coronel.
— Hum. — Voltou a desenhar. Escutou, então, a porta do quarto ser fechada. Ergueu a cabeça, e não estava mais ali, apenas o cheiro da sua colônia. Tentando se concentrar, suspirou e encheu a boca com café forte.

Três dias depois, retornando do quartel, abriu o apartamento, pegando o buldogue inglês, branco com manchas marrons, que pusera a língua para fora.
— Percy! — Afagou suas orelhas curtas. — Onde está seu dono? Aquele cara nervosinho, meio pirado.
O cão latiu.
— No quarto? — Avistou a última porta do corredor. — Obrigada.
havia sido promovida ao posto de tenente do Exército Regular dos Estados Unidos, tendo assumido como major cerca de dezesseis anos, durante as primeiras semanas, após o término da mudança para a cidade. Ela, que, até então, estava prestes a se casar, encontrando-se diariamente com o noivo, teve que adiar o casamento. Ali, vivendo como nômades¹, comparação retrucada por , oficializaram a união. Seis meses antes, discutiram outra vez. Em abrir mão do trabalho, em prol à carreira do outro, acabou cedendo.
Novamente.
— Cheguei. — avisou, abrindo a porta e vendo o marido puxar a camiseta pelas costas. Aproveitou para se aproximar do closet, recolhendo uma peça de roupa, e tirou o uniforme, juntamente com as botas pretas.
De soslaio, observava-o.
— Pedirei algo para comer. — comentou, sem lhe dar atenção. — Comida mexicana. Vai querer?
— Estou faminta.
— Quando trouxeram, chamarei você. — Afastou-se do seu espaço reservado no closet, andando em direção à porta do quarto.
o segurou, antes que saísse.
— Por que está estranho? Mereço, ao menos, um “Oi! Tudo bem?”, não acha?
— Não quero iniciar outra discussão. Prefiro evitar.
— Me evitar não é maduro e não resolve nosso problema de comunicação. Temos algo pendente? Então conversaremos sobre.
hesitou, abrindo a boca para refutar, mas desistiu.
— Preciso ligar para o restaurante. — Olhou para a mão dela, que tocava seu braço.
concordou, deixando-o ir.

1825ª dia, início da primavera

Em um restaurante, Thomas e Daphne esperavam pacientemente. Haviam marcado de encontrar o irmão de criação de um, e cunhado da outra, enquanto passavam alguns dias na cidade.
Daphne olhou para seu marido e, depois, desviou o olhar para , que parecia perdido, procurando-os.
— Aqui, ! — Thomas chamou e acenou. — Não está atrasado. Nós chegamos cedo.
— Aproveitamos para ir à Baby Loon. Nola deve nascer antes do Ano Novo.
— Isso é bom. — Sorriu ternamente, sentando-se à mesa, de frente para eles. O sorriu tornou-se melancólico ao visualizar rapidamente a saliência da barriga de Daphne.
— Como você está? — ela perguntou.
— Sobrevivendo.
Thomas tocou a mão da esposa por baixo da mesa.
, por que não vem conosco à Filadélfia?
— Você tem uma rede de contatos por lá.
— Uma rede menor que a que formei aqui. Abri mão de tudo o que possuí naquela cidade e tive que batalhar para tornar Nova Iorque meu novo negócio.
— Mesmo assim, sua família está lá.
— Minha esposa não.


As lâmpadas dos outros cômodos estavam apagadas, restando somente a da sala de jantar, onde comiam silenciosamente.
Desconfortável, pigarreou.
— Como foi seu dia?
Ele deu de ombros.
— Nenhuma novidade.
— Tenho certeza que foi menos dramático que o meu.
— Não foi bom porque não havia nenhuma “Roberta” para me fazer companhia. — Limpou a boca.
, que pegara a taça com vinho, afastou a mão, fechando os olhos.
— Estávamos indo tão bem, mas você necessitava dessa ceninha.
— Nossa vida desandou quando mudamos para cá, para esta maldita cidade.
— A questão não é essa. Poderíamos ter nos mudado para qualquer lugar no mundo e você arranjaria um defeito! O mais “engraçado” é que o defeito é o mesmo: quem trabalha comigo. Os homens do quartel, da rua, da vizinhança, sempre eles! Está preocupado com o que podem fazer para que eu te largue, mas o que você não sabe, — refutando, alterou o tom —, é o que sou capaz de fazer para não ter que te largar.
Ele mantinha a postura ereta, o olhar na parede.
— Por que não contou que recebia ligações do coronel?
— Isso é ridículo.
.
— Robert recolheu os números dos telefones de todos os militares. Seria para uma festa de boas-vindas.
— Quantas vezes ele ligou?
— Algumas.
— Todas eram com a mesma finalidade?
assentiu, e empurrou o prato.
— Perdi a fome.
Observando-o se levantar, ela respirou fundo, levando as mãos à testa.
— Pare de agir assim, como se eu tivesse pecado. Você é o homem que escolhi para partilhar uma vida, não todos os outros. É o meu marido. Comporte-se como tal!
— Se tivéssemos trocado de posição, e minha certeza não falha, você agiria como uma esposa, não é? E o que espera que uma esposa faça? Cobre explicações.
— Confie.
— Confio em você, mas não nesse coronel. — Levantou-se de vez, seguindo para o quarto.
. — chamou. — !
Ele entrou no quarto, apanhou o cobertor e um travesseiro, saindo em seguida, em direção à sala, onde deitou-se no sofá.
— Então é dessa forma que será? Não reclame depois!

***


Nova Iorque acordou em chuva. Uma tempestade forte, escurecendo as ruas. Por isso, optou por esperar dentro da cafeteria, receosa com os trovões. Esquentando-se com as mãos, que roçavam uma na outra, as lufadas de ar desmanchavam entre os lábios ao conversar:
— Ele até parece a mulher da relação — contou sobre as desavenças com .
bebericou o cappuccino, em silêncio.
— Está esgotando a minha paciência. Costumava ser menos irritante. Ultimamente, não suportamos a presença do outro, sem trocarmos grosserias e indiretas. Um probleminha virou essa bola de neve, e nem estamos no inverno.
— Vocês ou você não o suporta?
tomou o café expresso.
— Eu, talvez.
apanhou o celular e discou algumas letras.
— Como e quando isso começou?
— Há duas semanas, para ser exata. Concluí que ele estava incomodado com os meus colegas do quartel. O coronel ligou para mim, e viu as chamadas. Desde então, age como se eu estivesse mentindo.
— Por que o coronel ligaria para você se não estivesse interessado?
— Não sei.
, se uma cliente ligasse para o seu marido, fora do horário de trabalho, você não seria pacífica, tampouco agiria normalmente no dia seguinte. Mesmo que não tenha tido um caso com esse coronel, ele, provavelmente, mantém esperanças de, um dia, isso acontecer. — E sorriu ao completar: — A melhor parte de uma briga é a que a sucede, ou seja, brigas não servem para nada mais que acalentar o rancor. Faça as pazes com seu marido. Sabe o que dizem sobre sexo de reconciliação.

Solicitada a comparecer à sala do coronel, dias depois do encontro com a melhor amiga da “época” do ginásio, entrou, demonstrando reverência ao superior, e posicionou-se ereta, à espera.
— Não dormiu bem, senhorita? — ele questionou, visualizando seus ombros retraídos.
Senhora, senhor coronel — corrigiu-o. — Estou muito bem.
— Entendi. Desentendimentos pessoais devem permanecer fora daqui, como sabe. Solicitei sua presença, tenente, por duas razões: primeiramente, a senhora substituirá, a partir de amanhã, o capitão, que se ausentará por um período curto. Logo, sua carga horária aumentará. Espero que compreenda. Segundo, para mim, você não está bem coisa nenhuma. Pegue. — Elevou, sob seu olhar, uma cartela de comprimidos brancos.
abriu e fechou boca, sem esperar tamanha preocupação demasiada.
— Agradeço. — Abriu um. — O senhor pode ficar com os demais.
— Leve. Souu prevenido em relação às doenças, pelo menos, e na maioria das vezes. Adoeço porque teimam em me aposentar. Acha que possuo aparência de um velho, tenente?
— Experiente — respondeu, hesitante. — Peço licença para retornar ao meu serviço, senhor coronel.
— Licença consentida.

(...)


— Percy — chamou, fechando a porta do apartamento, à noite —, vem para a mamãe! Boa noite, . Preparou o nosso jantar?
Ele deitou-se nas almofadas sobre o tapete, acariciando a cabeça e as orelhas do cão.
— Existe drive-thru pela cidade. Ao vir, há dois, ao menos.
— Pressuponho que já tenha jantado.
— Nesta hora, eu estaria ceiando, mas não como tarde. Darei uma volta com o Percy.
— Então tá. Vou me deitar.

Na cama, o espaço vazio ao seu lado estava frio. sentia a necessidade do calor do corpo do marido. Embora relutasse em alimentar o ciúme e as atitudes irracionais de , considerava que, numa análise, ele estivesse com razão em relação aos acontecimentos passados, como, por exemplo, ter aberto mão do emprego onde residiam para acompanhá-la a Nova Iorque e fazer o casamento dar certo.

Na cabeça de , agira com pouca maturidade e fora egoísta. Aquele último mês apenas confirmou a suspeita de que a mudança para a cidade impuncionou as transformações nos comportamentos, tornando-as mais evidentes e afetando diretamente o que os sustentavam naquela união:
Aparentemente, compromissos distintos.
Notou que ela adormecera virada de lado, com a coberta até a cintura esguia, então, antes sequer de trocar de roupa, ergueu o edredom, e , acordada, fechou os olhos.
afastou-se, andando para o closet, trocou-se e retornou à cama, deitando-se.
Desligou o abajur.
— Em que momento exato nos perdemos? Por que, de repente, tudo conspira e afeta nossas promessas de nunca dormir brigados? O centro do nosso casamento é Deus, e Ele é amor. Portanto, respiremos amor à nossa volta e entre nós — dialogava para si, quieto, parado. — O amor deixou de ser amor aqui? — Virou-se para o lado oposto ao de .
— Não — respondeu baixinho, com o propósito de que não a escutasse.
— ...Pois, se foi, não era amor. E eu não sei o que poderia ser, além disso.

***


— Um buquê com trinta rosas para a sexta pela manhã. — encomendou através do telefone. — Quarenta dólares? Eu sei. Beleza. Entregam em domicílio? Fechado.
O buldogue correu para seus pés descalços, e agachou-se.
— Ei, amigo, a dona ainda está sonhando? O que acha de eu preparar o café dela? Tipo, só o café puro, mesmo, para não acabar estragando seu dia com meus dotes culinários em ascensão.
Escutando latidos, muitos, aliás, caminhou até a cozinha, convicto de que teria que funcionar assim.
O casamento estava desmoronando. Os sentimentos bons dedicados esvaiam por debaixo da porta como se não suportassem quem os mantinham.
Sem habilidade, realmente, não progrediria.
Evitando pensar muito e refletindo pouco, concluiu que poderia catar seus pertences, incluindo Percy, organizar numa caixa e deixá-la livre, com a aliança e o pedido de divórcio. Obviamente, o pedido demoraria a ser efetivado, porque, é claro, somente daria uma volta de alguns dias pela cidade, até que acalmassem os ânimos e pudessem, sozinhos, balancear suas próprias ações e terminarem com um acordo de deitar na cama, e resolver os problemas mais tarde.

“Tá forte, com duas colheres de açúcar, do jeitinho que você gosta =)”



Encheu a caneca até a borda, levando-o ao criado-mudo e posando nele. O bilhete escrito a caneta foi colocado na frente, aberto.

(...)


sorria, tocada e convencida a abaixar a guarda, neste caso, diante da tentava gentil do marido.
— Estou dizendo, amiga, ele fez café, e tá gostoso! — contou pelo telefone, esboçando um sorriso significativo.
cozinha bem.
— Quando quer agradar ou está morrendo de fome, tipo, quase todo dia, depois do trabalho.
— Quem não?
— Olha, este bilhete é bonitinho, porém não pede desculpa, nem insiste em expor seus erros.
, você não suporta que te adulem. Nem vem com essa pose para cima de mim! Eu te conheço há mais tempo que o e, com certeza, afirmo: você é uma bruaca! Peça desculpa a ele, façam as pazes e, por favor, experimentem o prazer.
— Não está na hora.
— Ridículo.
— Duvidou da minha fidelidade, tem mais é que sofrer!
— Tá, né?
— Beijo! Vou ver o que ele deixou escapar no serviço de casa!

Em menos de uma semana, lá estava de frente para o coronel novamente, devidamente uniformizada, com a mente povoada de problemas sem resoluções em casa, mas que não diziam respeito a terceiros.
— Tenente ! — cumprimentou-a. — Por favor, siga-me.
Acompanhou-o atrás, curiosa.
— Garanto que serei objetivo. — Apontou para a poltrona de couro. — Faz cerca de seis meses que as Forças Amadas acamparam nos arredores de Bagdá. A fronteira e a capital enfrentarão dias movimentadíssimos. Soldados, tenentes, sargentos, capitães, coronéis foram requisitados. A base do nosso exército.
— Hum.
— A tenente foi convocada para se deslocar.
— Convocada? — repetiu, meio desorientada. — Por amor à pátria.
— Amor à pátria. Exatamente, tenente.
— Quando embarcaremos? — questionou, num misto de euforia, entusiasmo e receio, forçando a danificar sua mente e corpo.
— De hoje a oito.
— Na sexta-feira?
— Pela madrugada.

refazia, apagando por vezes, algumas plantas de casas do Brooklyn, pelo notebook, tendo, anteriormente, deletado outras dez. Impaciente e distraído, não se importava, enquanto bebericava café, sua quarta paixão.
O apartamento estava tácito. Percy cochilava na caminha, próxima à porta de entrada e, com o rosto apoiado na mão, , esporadicamente, olhava o relógio da tela.
Escutou o som da tranca sendo aberta, fingindo, com maestria, não sentir alívio por tê-la em casa. O cachorro do casal despertou e caminhou rapidamente para as pernas de , abanando o rabo e expondo a língua molhada.
— Lindão! — Acariciou atrás de suas orelhas.
pôs o óculos de grau para descanso sobre os papéis e afagou a cabeça com os dedos.
— Hoje é quarta, como você sabe... — Pigarreou, chamando atenção. — Estive pensando que, sei lá, poderíamos jantar fora.
— Dia de semana é terrível para a minha dieta. Não tenho mais vinte anos. Perder peso é uma dificuldade triste.
— Você continua com o corpinho de dezenove — confessou honestamente, para dar ênfase ao tanto que notava e gostava do que via. — Põe muitas garotas no chinelo. E, se quiser, pode ser mais tarde. Inaugurou um restaurante italiano na Quinta Avenida.
— Massa, ?
— Não precisa recorrer às dietas loucas, nem nada, porque você está muito bem assim. De coração.
— De coração, é? — Riu fraco. — Eu acredito. Vou me arrumar. Assim que eu terminar, chamarei.

Eles se acomodaram numa das mesas redondas do restaurante, num canto reservado, de frente para o outro, como se avaliasse a postura, olhar e marcas do tempo em cada um, e visse um pedaço do que o futuro ainda traria.
O convite e a sugestão partiram de , e ele imaginava que, na pior das hipóteses, tivesse que recorrer a um assunto fugaz para não tornar o jantar desconfortável, como das vezes anteriores, porém, para espanto, se encarregou de cuidar dessa parte.
Por exemplo, atiçando como um espeto o passado constrangedor dele, só que apenas para rirem enquanto relatavam as situações:
— Não me diga que você realmente dedurou e arruinou a festa da sua prima! — acusou-o.
sorria, com os ombros curvados, e ela mantinha a postura de soldado.
— Claro que não. Ela quem arruinou a própria festa. Escute, eu tive que subir a escada e buscar algo para nossa avó, mesmo indisposto, e minha prima não deveria estar se pegando com o ex, enquanto o noivo a esperava no andar de baixo. Ao menos, fossem mais cautelosos e estratégicos. A culpa é absolutamente deles... Não sei até que parte.
— Alguém já te pegou em situações cabulosas?
— Quer dizer me amassando em outra pessoa? — debochou. — Ou assistindo algo proibido? Não. Na minha casa, tudo era explicado, não detalhadamente, mas abertamente para que nada fosse proibido, porque ele não escapa à curiosidade, e, sim, desestimulado.
— Entendo... — gracejou. — Você se esqueceu de que está falando com sua namorada de sete anos atrás, na casa dos vinte, comecinho da vida adulta..., eu te conheço.
— Mas, nessa “época”, eu era bem quieto, até porque tinha você, né?
— Uhum.
— Agora, na adolescência, é perdoável. Eu tentava ficar com todas as minhas colegas de turma, pra você ter uma ideia.
— Em relação à sua priminha do interior, você jogou a merda no ventilador.
A quantidade de álcool, com o vinho tinto, ingerido pelos dois e, principalmente, por , seria capaz de embebedar e ocasionar um acidente.
— Ah, ela nunca serviu de comparação. Eu tinha dezesseis anos também, é compressível. — Observou os olhos de e o modo como bebia sem parar, de vez, como água.
A tenente brindou outra vez a taça na sua e terminou.
— Hora de voltarmos ao apê. — Com um gesto, ele chamou o garçom. — Você não sabe beber.
— Eu tô ótima e leve! — protestou. — Para de bancar o responsável!
se sentiria ofendido se não soubesse da alteração dela. Geralmente, bêbado não mede as palavras e desabafam.
Até que ouvi-la falar sobre, entregaria a raiz dos problemas conjugais.
— Quer acabar com o estoque do restaurante? Foi inaugurado há pouco. Deixa os outros aproveitarem.
— Exagerado.
levantou-se, rodeou a mesa, apanhando a jaqueta pendurada na cadeira, colocou sobre os ombros dela e a guiou com a mão na sua. Perto do carro, no outro lado da rua, a pegou nos braços sob reclamações arrastadas:
— Não precisa me carregar como se estivéssemos indo a um hotel para aproveitar a nossa lua-de-mel.
— Somos recém-casados. Tecnicamente, estamos numa lua-de-mel prorrogada, apesar de brigarmos mais do que fazemos sexo. Quer que eu te leve a um desses? Tudo bem, mas acredito que não será proveitoso, já que você vai cair na cama e dormir.
fechou os olhos, os lábios curvando-se.
— Deixe-me andar sozinha.
— Tá bêbada. — Colocou-a no banco do passageiro, prendeu o cinto e foi se sentar no banco do motorista.
sentia tontura.
No prédio, a viu descansar o peso do corpo em si, com a cabeça em seu peito, dentro do elevador, até a porta se abrir e eles irem para casa.
— Não vou dormir com você fedendo a álcool! — alertou, e ela parou de andar no meio do corredor.
— Pois vai dormir no sofá!
— Você é quem dormirá no sofá, querida. Eu tranco a porta.
choramingou.
— Eu te suporto porque você é sexy, nada mais.
— Claro. — Sorriu, esperando-a entrar no banheiro. — Vou te levar para o chuveiro, e aí vai me dizer que me suporta porque também te dou banho como se você fosse um bebê.
— Não, finjo que isso ofende meu ego, mas que, no fundo, eu gosto.
Ele se desfez das roupas de cima, permanecendo com a calça ajustada num cinto.
— Não precisa molhar o cabelo, é mais tempo para secar.
cuidou dela como um marido atencioso de que tanto sentiu falta, tocando-a com ternura.
— Obrigada.
— Não me agradeça.

¹Nômades não têm moradia fixa.

Dois


“The storms are raging
On the rolling sea
ncont the highway of regret
Though winds of change
Are blowing wild and free
You ain’t seen nothing
Like me yet”

(Make You Feel My Love - Adele)


A tenente adentrou à sala do regimento, portando sua boina na mão, e a pôs quando notou a presença inesperada de um representante na porta. Alguém muito diplomático, que se importaria com a falta do uniforme sobre a cabeça.
— Bom dia, tenente ! — disse a capitã Vânia, acenando, e demonstrou respeito trocado com a tenente, que aguardou. — Trouxe notícias.
— De que natureza?
A capitã olhou ao redor.
— Não é sobre a guerra. Estamos todos eufóricos e deprimidos em relação a isso. Organizaram uma despedida para o coronel. Ele se aposentará em breve, visto que possui anos de serviço suficiente. Obviamente, optou por não alarmar e fazer disso um evento.
— Quebraram o protocolo?
— Certamente.
— Onde será realizada?
— Aqui. Pudera, em breve, nos instalaremos em território desconhecido. Não podemos chamar atenção.
— Eu sei. A pergunta foi besta.
A capitã concordou.
— Pois bem, se quiser, venha. Às nove em ponto.
preferia ir para casa, descansar e curtir os dias longe do frio que viria a seguir.
— Agradeço o convite, capitã.

O telefone de tocou repetidamente, em menos de seis minutos, enquanto ela atravessava a rua, fora da faixa de pedestre, acenando para o carro aguardar no semáforo.
Estava atrasada.
Enfiou a mão no cardigã vermelho e apanhou o aparelho, colocando-o sob a orelha.
— Oi?!
— Nem vem com essa vozinha de quem não faz ideia de quem tá falando, ! — reclamou , do outro lado da linha, sem fôlego. — Encontro você em frente à Forever 21, às 15h.
— Mas já vai dar três horas! O trânsito não colabora!
— Não demore. Tenho um vestido para escolher.
— Já estou chegando!

— Não tô acreditando que minha amiga caçula completará trinta anos! O tempo poderia pausar imediatamente! — dizia ao sair da loja com sacolas de compras.
— Listando minhas aquisições, moro num apê em Manhattan, tenho um carro quitado, novinho, construí minha carreira militar, sou, modéstia à parte, bem-sucedida, me casei com um arquiteto sexy, mas... Enfim. Não é nada.
— Há sempre um “mas”, né? O ser nunca tá satisfeito. Agradecer o que se tem é importante!
— Sou muito grata, de verdade. A questão é que falta um filho para estarmos transbordando. Meu apito biológico não tá gritando, porém é hora de pensar nisso, caso realmente tivermos esse plano.
— Vocês discutiram?
— Não, o evita o assunto para me poupar e se poupar também. Criar expectativas, em nossa vida atarefada, sem tempo, é frustrante.
— Está se esquecendo do Percy, aquele cachorro fofo! — Sorriu.
— Claro, o Percy.
— Quer ser mãe, ?
Ela parou de andar.
— Não sei.
— De qualquer forma, você será titia.

Correndo, embaixo de um guarda-chuva, chegou em casa, deixando as luzes apagadas. Sem barulho, não incomodou o cachorro, mesmo que ele tenha aberto os olhos.
dormia no sofá, a corrente de ar vinda da janela tocando seu corpo descoberto, fazendo-a se virar. Havia voltado para casa cedo e adormecido.
guardou o guarda-chuva.
— Você está aí — disse, sonolenta, ao notar o cobertor quente cobrir seus ombros arrepiados. — Obrigada, amor.
— O que uma sonâmbula não diz, né?
— Onde você esteve?
— Por aí, caminhando... Não, no trabalho. Achei que viria mais tarde. Nem para em casa. — Arrancou o casaco.
— Abrace-me — pediu.
tirou os sapatos e ajoelhou-se perto do sofá, colocando os braços sobre seu corpo encolhido e beijando-a na cabeça.
— E você?
— Fui dispensada.
— Motivo especial?
— Não.
se virou.
— Estou bem agora. Você chega e muda tudo ao redor. É impressionante!
— Creio que seja recíproco quando você não está aqui e volta para casa. — Sorriu ternamente. — Coisa de casados, será?
— Não faço ideia, mas parece físico.
Disseram quase ao mesmo tempo:
— Então, vai dormir ainda?
— Vai dormir?
— Tá cansado?
— Eu quero tirar esta roupa, me trocar..., tá frio. Daí, volto pra me deitar com você.
— Pensei igual. Posso arrancar essa sua calça jeans e te esquentar. Garanto que frio você não sentirá comigo.
Ele lambeu os lábios.
— O que tem nessa mente criativa?
— A mente criativa é sua, mas a iniciativa é minha. — Ergueu-se. — Várias coisas, aliás.
— Humm, tô gostando de ouvir isso. Que tipo de coisas?
aproximou a boca do seu ouvido, sussurrando e, entregue, sentou-se ali, no tapete, vendo-a se levantar do sofá e montar em seu colo.
— Você verá. — Tocou os lábios nos dele.
afundou a cabeça em seu pescoço.
— Adoro seu cheiro. Tenho algo para te contar.
— O quê?
— Fui chamado para trabalhar com uma funcionária de outra empresa. Ela quer juntar nosso trabalho.
— Quem é essa mulher?
— Noiva e vive bem com o dito cujo. Não existe concorrência, porque você é a mulher da minha vida.
o abraçou apertado pelo pescoço, mordiscando o lóbulo da orelha esquerda e sentindo o tato das mãos de na base de suas costas, tocando e guiando uma sob a blusa, na pele.
Gradativamente, se deteve, e ele estranhou.
A primeira explicação foi o dia do ciclo menstrual, o que, para si, virou um aprendizado desde que juntaram escovas.
Ele segurou seu quadril.
— Amor?
.
— O que te incomoda? — Penteou com os dedos os fios do cabelo no rosto, procurando seus olhos. — Diz.
, eu...
— Não consegue me falar? Então vou contar algo, agora, que tá na minha cabeça faz tempo: quero muito ser pai.
olhou para ele.
— Não acho que estejamos prontos para virar pais.
— Basicamente, uma criança necessita de amor, e todos os seus direitos serão respeitados. Temos condições de criarmos uma.
— Sabe como é a vida de um militar, me ausento a qualquer hora, passo dias, semanas longe de casa; corro perigo, sofro crises de ansiedade, tento ser forte por nós dois. Agora, por três, é exigir mais do que posso oferecer neste momento.
— Como se fôssemos ter outra chance. Outra escolha de carreira.
— Não quero largar tudo para virar dona de casa e ser mãe. Mudamos de cidade como mudo de lingerie, lembra-se? — Sorriu, triste, com o rosto dele nas mãos.
— É definitivo? Não dá pra aprofundarmos o assunto, discutir direito?
Ela abaixou a cabeça.
— Nunca serei pai?
— Podemos começar a tentar quando eu voltar.
Nem deu tempo de se alegrar, absorvendo a dimensão das palavras.
— Voltar da onde?
engoliu em seco.
— Embarcarei para terras iraquianas amanhã.
— Como? — perguntou, incrédulo, tentando se levantar. — Quando pretendia me contar?
— Eu não...
Ele levou as mãos à cabeça.
— Amanhã, ?
— Amor, escute, não é o fim do mundo. Por mais irônico que seja, é exatamente por isso que estamos nos deslocando com as Forças Armadas Americana. Voltarei o mais breve possível para casa, então, aí, teremos um propósito de fazermos um bebê em menos tempo. Eu te darei esse filho, .
— Vai mesmo? E se você não vir? Se a porra do Iraque explodir com você lá dentro... . — Deu as costas, para se acalmar, e tapou a boca. — É o que todos dizem aos familiares: eu vou voltar, prometo. Promessas vazias, cheias de esperanças que morrem junto com eles. Vão e levam consigo uma parte da gente, aquela que teima em acreditar que nada vai impedir de trazê-los de volta. É uma invasão! Merda! E se você não voltar?
Ela o arrastou para seus braços, mesmo sendo menor.
— Você verá. Eu volto logo. Quando o sol estiver se pondo, em algum dia, no final da guerra, estarei em casa.
— Odeio, com todas as minhas forças, o seu emprego, e falo sério, ainda que te ofenda.
— Não estou.
afastou-se.
— Faça uma boa viagem.

***


No dia seguinte, de manhãzinha, o homem percebeu alguém andar pelo quarto. Olhou para o relógio no criado-mudo, e eram quatro horas. A cabeça doía, a vista estava cansada, e a garganta, seca. Ergueu-se, deparando-se com uma mala aberta no canto.
Do exército.
— Lamento ter te acordado — disse em voz baixa, guardando os sapatos dentro. — Tentei não fazer barulho.
— Quando sair, não se esqueça de apagar todas as luzes.

Mais tarde, não conseguindo dormir, com o travesseiro e enrolado numa coberta, atravessou o corredor para ir à cozinha e buscar um calmante, remédio para dor de cabeça, qualquer coisa que o fizesse descansar a mente nem que fosse até a hora do rush.
havia ido e levado uma parte sua, como mencionara. Respirava o frescor da sua colônia.
Percy abriu os olhos, mas continuou deitado, observando.
— “Apague as luzes quando sair”, e ela faz algo que achei ser impossível: esquecer a da cozinha. — Aproveitou para pegar o comprimido, um copo com água e beber, antes de desligar.
Era o trigésimo aniversário de . Idade importante. Representava o modo como ela se sentia: mais feminina, mulher, independente e madura.
Analisou rapidamente, do caminho da cozinha à sala, o que fariam, caso estivesse em casa:
Um bolo, como ela amava inventar atividades do tipo; passariam o dia na cama, ou caminhariam pelo Central Park, num passeio divertido com Percy. Porém, não seria nenhum, nem outro. Apenas ele, o cobertor com o cheiro dela, que ele quis usar, e o cachorro.

Outra hora, a campainha tocou.
— Não iria me esquecer da minha melhor amiga. Bem-vinda à casa dos trinta! — gritou, entusiasmada, e a animação caiu por terra ao ver na porta, vestido para o trabalho, fechando o relógio no pulso.
Esboçou um sorriso, sem graça, o rubor na face.
— Feliz Ani... — Brincou. — Oi, . Desculpa! Me excedi.
— Sem problemas.
— Impressão ou você tá triste?
não está, viajou bem cedo.
— Sério? Não me contou nada. Que amiga, hein!
— Também foi me revelado sem antecedência.
— Captei a mensagem. Ela recebeu a notícia há muitos dias?
— Não faço ideia. Tô me adaptando ao fato de ela ter ido ainda.
— Olha, hoje é o aniversário dela, de qualquer maneira. Trouxe um presente. Espero que guarde para quando a voltar. — Entregou-lhe. — Obrigada.
não disse, mas imagino que, para ela, ter ido sem te falar foi por um descuido. Obrigado, . — Sacudiu devagar o objeto.
— É um globo de Natal com a Torre Eiffel. — explicou. — É lindo.
— Ela gostou de ter ido a Paris.
— Tô sabendo. Bem, vou indo. Fique firme, , por favor.

***


telefonou? — Thomas perguntou, complacente, numa volta pelas avenidas, no sábado à tarde, indo à casa de amigos.
Havia vários, em considerável quantidade, pedestres e veículos de um lado ao outro.
— Não. Nenhuma mensagem antes de ir.

“Segundo o Presidente George Bush e o Primeiro-Ministro britânico Tony Blair, o Iraque estaria desenvolvendo armas de destruição maciça, que ameaçam a segurança mundial. Esse seria o motivo dado sobre a invasão liderada pelos Estados Unidos com apoio de forças britânicas”

O peito de doeu, o coração enlouquecido. Não se tratava de uma operação militar de curtos dias. Uma invasão resultaria numa guerra sangrenta.
— Escutou isso?
Thomas bateu em seu ombro.
— Ela prometeu, . Calma.
— Nem me despedi.

Quando retornou ao apartamento, no mesmo dia, independentemente da insistência deles, preferindo ficar sozinho, ligou a TV, assistindo mais informações que sobrecarregavam, a cada segundo, os noticiários.
Eles invadiram.
Estão deduzindo que o líder iraquiano, Saddam Hussein, fugiu.
Não comentavam sobre as mortes e os feridos. Resolveu, por fim, em desordem, orar, ato que deveria ter sido feito quando ainda estava em solo americano.

200ª dia, cidade de Nova Iorque, 04h57

— Tenente ! — a capitã solicitou formalmente, em continência, no regimento. — O essencial está na mochila. Vamos agora. Pronta?
— Não — admitiu. — Eu deveria, mas não estou, capitã.
— Será injetado, naturalmente, adrenalina em suas veias quando o jato subir. Em posição!
— Sim, capitã.
— Espere, tenente! — A voz do coronel a alcançou. — Deixaram este buquê para você. — Entregou-lhe educadamente.
— Tenente , em posição! Não poderá levar o buquê. Sinto muito.
estava estupefata com as rosas, tentada a rir feito menininha.
Seu aniversário.
— Entendido, capitã! — Apanhou uma única rosa vermelha, cheirando-a e guardando por dentro do uniforme, com receio de arrancar a raiz.


A campainha tocou outra vez, e ele demorou a atender.
— Senhor, deixaram este buquê no nome da sua esposa — o porteiro anunciou.
recebeu e agradeceu.
Havia um cartão escondido entre as flores com um bilhete longo.
Ele releu, e seus olhos lacrimejaram.

Três


“Cause you know
You know, you know
That I love you
I have loved you all along
And I miss you...”

(Far Away - Nickelback)


Passaram-se duzentos dias desde o aniversário de e, a cada hora, mais notícias trágicas de bombardeios e mortes na guerra. Esperançoso, , que não via uma gilete há dias, marcava a data em que viviam, percorrendo o olhar em cada corpo caído no chão ou correndo entre as centenas de militares, pela televisão. Escutava a rádio, lia jornais impressos e orava sem parar. Durante esses meses, poucas vezes vira o sol nascer, evitando sair para se distrair. Ia do escritório ao apartamento, sentava no sofá e assistia aos noticiários. Raramente, passava em alguma banca, no retorno, para adquirir o The New York Times. Perdia muito sono, devido à ansiedade e às xícaras de café esvaziadas, pois, independentemente de ser casado com uma militar, nunca se acostumaria. Até entendia e se conformou em dividir com o mundo, mas não seria a primeira vez em que agiria com tanto medo.
O número de mortos, na segunda-feira, subiu de três mil para seis.
Thomas e Daphne, amigos do casal, visitaram .
— O que é isto? — o rapaz questionou, averiguando, cético, rabiscos espalhados sobre o tapete.
— A probabilidade de estar viva.
Daphne trocou olhares com o marido.
— Hoje, a Broadway lançará um musical imperdível. Venha conosco.
— Não quero.
, olhe para mim! — pediu pacientemente, esperando que realizasse o ato. — Ficará fraco e doente se continuar à base de cafeína e madrugando atrás de tragédias. Não é confortante pensar que, se ninguém entrou em contato, é porque nada aconteceu com ?
— Raciocina um pouco, cara.
ponderou, massageando a testa.
— Não sei. Talvez não tenha área e, caso contrário, telefonarão, enquanto estou me obrigando a rir.
— A secretária eletrônica avisará, para todo caso.

***


— Obrigado por ter vindo, mãe. Não foi um pedido de socorro e não queria incomodar a senhora com meus problemas. — Soltou a senhora de cabelo curto e acinzentado, bem bonita.
— Nem me agradeça, filhote. Eu viria sem convite. Você tá cheirando à falta de fé e precisa de colo.
— Preciso também acordar desse pesadelo.
— Prepararei o almoço, então espero que esteja faminto.
não estava, mas não faria tamanha desfeita. Sentou-se na banqueta para assistir a CNN.

“Nesta quarta-feira, manifestantes anti-guerra marcham em Londres”

Havia passado sete meses inteiros. Cerca de dois meses atrás, atendeu uma chamada, que foi uma gravação feita com chiados no fundo, tendo, como protagonista, a voz que tanto esperava ouvir preenchendo a linha:
Consegui! — gritou para alguém. — , tá me ouvindo? Espero que receba esta mensagem. Só quero que saiba que tô bem... Pouco ferida e cansada, mas inteira. Logo, quando o sol estiver se pondo, em algum dia, a guerra terminará, e voltarei para você, e... — A ligação cortou.

— Ela disse que estava bem, na medida do possível — alertou a mãe, resgatando-o de suas lembranças.
— Para os padrões de uma guerra, tudo é suspeito. Nada me traz alívio, exceto tê-la ouvido falar. Sinal de que está viva.
— Não importa como ela venha?
— O que importa é vir.
— O almoço está pronto.
— Eu sirvo.

***


Indira sentou-se ao lado de , dozes dias depois da viagem da mãe dele à Filadélfia, no horário de intervalo para o almoço. Era cinco, seis anos mais nova que , trabalhava no ramo de decoração há anos, tendo experiência no exterior, e pousou na cidade para experimentar o clima de trabalho e as oportunidades.
— É a mesma proposta, na verdade... — explicava com doçura, ciente de que os efeitos de cafeína e remédios que passou a tomar poderiam surtir efeito, como a oscilação do humor. — Montar a empresa e inaugurá-la. Será mais que um escritório de Arquitetura e Urbanismo. Traremos engenheiros, pessoas qualificadas e formaremos uma equipe. Eu e você seremos sócios — sugeriu.
— Uma imobiliária? — Mordeu o hot-dog.
— Exatamente. Você é o arquiteto, e eu, a paisagista, com formação em Publicidade e Propaganda também. No caso, uma especialista nisso trabalharia conosco.
— É bom.
— É ótimo. Pense sobre isso.
— Vai parecer descaso, mas é que, ultimamente, não tenho tido tempo para distração e cabeça para analisar as boas propostas que recebo. Tenho alguém para me ajudar com a administração, além da, é claro, minha companheira de trabalho. Agora, preciso ir comprar o jornal. — Levantou-se, sacando a carteira. — Aqui o meu número. O do escritório, pra falar a verdade. Ligue e marcamos uma reunião.
— Investiga novidades sobre a guerra? Fará um artigo a respeito, por acaso?
— Não, apenas sanar dúvidas.
— Posso te acompanhar, se quiser.
Com o passar dos meses, ambos estreitaram laços, investido e insistido por Indira, que se manteve atenta e perto, sem intenções inapropriadas. Há quase oito meses, a Guerra do Iraque teve início e, três deles, sem saber absolutamente mais nada a respeito do paradeiro de .
estava com saudade, carente e emocionalmente exaurido.
— O que especificamente pesquisa?
— Número de falecimentos. Em especial, dos americanos.
— Diz aqui que passa de dez mil homens.
— Deus do céu! — Virou as páginas de um exemplar igual, temendo.
— Possui parentes por lá?
— Minha esposa é militar e foi convocada.
Indira apanhou outro exemplar, genuinamente preocupada.
— Lamento.
— Eu também, todos os dias durante mais da metade do ano.

Distante de Nova Iorque, na Base Militar dos Estados Unidos em solo iraquiano, a tenente era socorrida e levada à enfermaria por ter sido acertada com um tiro de rifle, sem saberem exatamente de quem e de qual localização. Por proteção, não foi de uma das armas de grande porte e numa região extremamente delicada.
Enquanto os médicos retiravam a bala, seu último pensamento foi .
Depois, apagou.

***


— Soube que abrirá uma empresa com Indira... — comentou Thomas, de repente, subindo os degraus da escada para o metrô.
— Ela sugeriu a ideia de sermos sócios.
— Sabe que essa mulher é solteira e elegante, não é?
entrou num estabelecimento.
— Aonde quer chegar com essa insinuação?
— Pode ser interessante. Siga em frente, .
— Não tô crendo no que me disse. — Levantou-se do assento.
Ele o olhou.
— Somos amigos, tenho noção do seu amor pela , da dedicação ao casamento de vocês, mas quero o seu bem, e isso, infelizmente, não está fazendo bem a você. Ela pode não voltar. Faz quase um ano!
— Não, você não sabe nem da metade, porque, se soubesse, jamais me aconselharia a seguir em frente, enquanto minha esposa está viva, longe, ferida, em qualquer canto, tentando sobreviver por nós dois. Isso é golpe sujo, até para você, cara! — Caminhou para fora.
, espera.
— Vá à merda!

“Já passam de vinte mil o número de mortos na Guerra do Iraque. Na última sexta-feira, correspondentes do Governo Americano alertaram que pode demorar anos para acabar. A ONU decidiu suspender todos os embargos econômicos há tanto tempo impostos ao Iraque e reconhecer a Autoridade Provisória de Coalizão”

Ele escutou uma repórter da CNN dizer.
— Quantos por cento de chance a tem? — Pegou o papel rabiscado para realizar mais contas.

63ª dia, Base Militar dos Estados Unidos

Na fronteira, sentiu-se zonza e parou de andar, então alguém a tocou, protegendo seu corpo, e a tirou da zona de perigo, onde bombas e tiros estavam sendo disparados por todo lado. Foi colocada no chão, por detrás da base, e começou a vomitar. O enjoo preocupou o soldado, que agachou para encher seus lábios de água, ainda que quente e com gosto salobro.
Ela não havia se alimentado direito.
— Melhor, tenente?
— Vou ficar... Agradeço, soldado.


Quatro


“And I will love you, baby, always
And I'll be there forever and a day always
I'll be there till the stars don't shine
Till the heavens burst and the words don't rhyme
And I know when I die you'll be on my mind”

(Always - Bon Jovi)


Um ano depois do início...


— 31 anos — disse , melancólica, numa reunião com amigos e, entre eles, , aparência nova e menos dramática — é a idade que a está completando hoje, onde quer que esteja.
— Parece que foi ontem quando eu entrei para a casa dos trinta — falou uma das mulheres presentes. — Agora, tô com trinta e cinco.
— Quer comentar algo, ?
— Não, só estava pensando alto. e eu não tivemos o casamento perfeito, sinal de que ele realmente existiu e sobreviveu ao tempo, mas fomos muito felizes juntos, transformando os erros em experiência de vida. Um brinde a ela. — Ergueu a taça.
— Viva à vida de !
— Viva!
Em determinado momento, levantou-se, afastando-se do pessoal, reflexivo.
— Você tá passando mal?
— Não, o Senhor tem me sustentado de pé.
afagou seu ombro.
— Tive a mulher da minha vida ao meu lado e me preocupei apenas em ser ciumento, e idiota, e afastá-la, sendo que, agora, o que mais quero é tê-la perto.
— Não diga isso.
— Não me leve a mal, , mas me deixe sozinho.
— Tudo bem, só, pela sua saúde, não se afogue nesse mar de amargura.

A mãe de estava no apartamento novamente, preocupada com o estado crítico do filho, que não se isolou, porém sofria calado.
— Coma mais um pouco — pediu gentilmente. — Não aceito “não quero” como resposta.
— Tô farto.
.
Ele bufou, garfando o filé de frango.
— O Thomas apareceu aqui quando você estava na rua.
— O que ele queria? — perguntou para seguir um script.
— Pedir desculpa e deixar o presente que a Daphne comprou para a .
— Não sabem que ela não voltou? Ele me pediu desculpa faz um ano.
— Thomas é um homem bacana e sente muitíssimo pelo que disse. O modo como expôs sua opinião, naquele momento, foi uma falha.
— Tentou me induzir a trair minha esposa. Que opinião de merda é essa?
A senhora suspirou.
— Você ama demais a .
— Estou na espera, crio expectativa, sonho com esse dia, de revê-la, há um ano, mãe. Se isso não for uma prova de amor, não sei o que é.
— Será que ela tá apagando velinhas lá?
— Sério? — Arqueou a sobrancelha, carrancudo. — Estão à base de lanternas e sirenes... Perdi o apetite.

730ª noite, Base Militar dos Estados Unidos

Enrolada num saco de dormir, encolhida e com a cabeça contra um pano, estava com o rosto mais limpo que todo o corpo dolorido, exausto e tenso. Os demônios do ano anterior não permitiam que seu sono fosse aproveitado. Os olhos se mantinham arregalados, e os ouvidos, atentos, a mão sobre o peito. Havia assistido a muitas mortes e, lamentavelmente, a da capitã Vânia, que não resistiu. Levou a mão para dentro do uniforme, buscando a rosa amassada, com todas as pétalas, e posou no nariz.
teria que perdoá-la.

***


retornou da loja, disposto a abrir as cortinas, deixar o sol entrar, esvaziar a lixeira, ainda que, com a ajuda da mãe, tivesse se movimentado mais, largou o material do trabalho em cima da mesinha de centro.
Percy correu para seus pés, induzindo-o a pegá-lo.
A mãe de dormia no quarto de hóspedes. Ele apertou a secretária eletrônica, à espera dos recados:
Ei, cara, é o Thomas. Sei que você deve estar ocupado, se matando com o trabalho ou compensando o sono. De qualquer forma, ligo para avisar que estamos de mudança. Arranjei um emprego no setor de advocacia na Filadélfia, para prestar serviços a uma revista que, inclusive, a Daphne gosta das edições. Hum... Também estamos te esperando na cafeteria amanhã, às nove, mais ou menos. Ela e eu queremos que você apareça. É isso. Não doeu. Vou desligar. Abraços!
Gregório permitiu que o cachorro escapulisse quando tocaram a campainha.
— Está em seu nome — o porteiro avisou com um envelope personalizado e endereçado a ele.
Das Forças Armadas Americana.
— É uma carta formal, datada de dias atrás. — Àquela altura, já havia fechado a porta. — ...Senhor , queremos prestar as devidas condolências por meio deste documento, em nome de todos nós, ao falecimento da tenente do regimento 4 A, Louisa . O corpo estará sendo transportado para os Estados Unidos da América e será velado em cerimônia oficial.
O grito de pavor deveria ter saído, porém não conseguiu externá-lo. Ao invés disso, releu inúmeras vezes, porque a ficha não caia. Ironicamente, não fazia sentido. Como quando nos apegamos e estamos confiantes em algum acontecimento futuro, alguém, e acordamos decepcionados, pois nossas expectativas foram terrivelmente frustradas.
Daí, ele conseguiu gritar, apavorado.
? Você gritou. O que foi? — A senhora correu, desesperada.
está morta — revelou —, mãe.
, respire.

Cinco


“Belive me
You’ll be in my heart”

(You’ll Be In My Heart - Phil Collins)


Parte um


É assim que você se sente ao perder um ente querido: como se também estivesse morto, mas por dentro?
concluiu, em menos de 48 horas, que detestava ter lembranças, porque, dadas às circunstâncias, seriam apenas elas que manteriam viva a ausência de .
Gostaria de reencontrá-la, abraçá-la, afagar sua cabeça e rir à toa, por nenhum motivo em especial, apenas pelo prazer de terem o outro. Perdoar pelos erros e começarem a planejar o primeiro filho. Não se contentaria com um, mas com uma reca.
Virariam o novo casal de coelhos!
Chorou como nunca feito antes, em todos os anos, por não ter algo que arremetesse tantas lágrimas.
— Abra a segunda gaveta e pegue o cartão com o nome da no papel.

70ª dia, Base Militar dos Estados Unidos

— A febre não cede, tenente! — a capitã Vânia avisou, em tom crítico, enquanto media com o toque das mãos, outra vez, sua testa.
Ambas estavam na enfermaria montada na base, enquanto o esquadrão lançava bombas do lado de fora, afastados.
— Lamento ter adoecido.
A capitã maneirou:
— Não, é que estar doente no meio da guerra é dramático além do limite, mas é melhor que morrer aqui.
Viram mais enfermos serem trazidos; corpos desacordados, com ferimentos, por soldados.
— Eu não consegui mastigar, apenas beber água.
— Seu corpo necessita de nutrição. Espere um segundo. — Atravessou a enfermaria pequena, detendo-se de frente para uma militar, que prestou continência, e trocaram breves palavras. — Aqui. — Retornou e lhe entregou discretamente uma caixa.
— O que é isto? — abriu os olhos. — Tomo anticoncepcional.
— Quando foi a última vez?
murmurou, sem lembrar.
— Faça o teste, tenente. É hora de voltar à América.


— Oi. — Indira resolveu visitar , solidária.
— Indira, sócia... — disse, observando-a se sentar no sofá, ao seu lado. — Você está bem? Não me pergunte como estou, por favor.
— Você ficará bem. Vamos estancar seu sangramento e cuidar direitinho da sua dor.
Ele não contestou.

73ª dia, Base Militar dos Estados Unidos

— O que me diz?
negou, balançando a cabeça freneticamente, até a capitã detê-la, notando que estava em estado de choque.
— Tenente, exijo que me conte o resultado, ou terei que anunciar que alguém pode estar esperando um bebê. Voltará para casa, de qualquer forma.
— Negativo.
— Deixe-me ver.
deslocou-se num passo para trás, e a soldado atrás de si confiscou o teste, entregando-o na mão da capitã Vânia.
— Prepare o helicóptero.
Ela segurou seu braço, numa atitude ousada, para atrasar a capitã.
— Não volto antes do fim da guerra.
— Não seja tola. Seu filho nascerá sendo iraquiano, tenente.
— Isso não está aberto a discussão.
— Sua gravidez pode ser de alto risco!
— Não volto!
— Perderá sua patente, se ficar.
— Você está me ameaçando?
— Acalmem-se! — pediu a soldado. — Sem mais estresse!
— É sua decisão definitiva?
— Sim, é.
— O que fará quando a criança nascer?
— Eu a trarei ao mundo. Isso é tudo o que você precisa saber, capitã.
— Se estiver sangrando por debaixo das pernas, não grite por socorro, tolinha.


Como Indira havia ido embora há pouco, quando a campainha tocou, cogitou ser ela, que se esqueceu de lhe dizer alguma coisa.
Abriu a porta, e não havia ninguém. Ele ia fechando quando notou uma criança correndo. Sem se importar, ergueu o papel para terminar de ler a carta.

275ª noite, Base Militar dos Estados Unidos

estava se revirando no saco de dormir, enquanto os demais descansavam como podiam. Sua gravidez foi revelada a alguns, nos primeiros meses, e descoberta por outros, no decorrer da gestação. Não teve sangramento, mas viveu dias de solidão e tormento, mesmo na guerra. Desencadeou problemas psicológicos antes, durante e imaginava que depois seria pior, já que não teria o filho consigo. A capitã Vânia cuidou dela como uma grande amiga e, neste dia, na madrugada, dentro da base, sentiu dor e chorou.
— Você é louca, — disse a capitã, exasperada —, e tola. Acho que, depois disso, somos íntimas o suficiente para tanto.
estava desorientada, enquanto a capitã a acalmava.
— Sinto como se um caminhão tivesse passado em cima de mim.
— Já acabou. Você está bem.
virou o rosto e fechou os olhos.


Parte dois


Cinco anos depois...


15 de dezembro de 2011

— Você estava maravilhoso ontem! — elogiou o namorado, beijando sua boca.
Como proposto, demorou cerca de doze meses para que todo o planejamento da associação empresarial saísse do papel. Ergueram um prédio em Manhattan, numa localização agradável, organizaram a equipe e, cinco anos após o primeiro, abriram uma filial.
O romance entre e Indira começou meses depois da conformação da morte da esposa dele, não do falecimento. Porque, por muito tempo, o homem esteve de luto. Com sua viuvez, poderia se permitir se interessar por outras mulheres, sair e conversar, ver no que daria. Aquilo, para ele, era esquisito. Nas primeiras semanas, imaginava ter perdido o charme, que tornava todo o processo prático, e não tinha ânimo. Conviveu com uma mulher por muitos anos, dividindo sua história e vida, então voltar ao início foi complicado. No entanto, para Indira, solteira há mais tempo, era simples como bater o olho e gostar, e, assim, pacientemente, derrubou sua muralha, entrou e o convenceu a tentar consigo.
Escreveram uma nova história.
— Você é gentil — ele respondeu. — Obrigado.
— Vamos jantar fora ou pedimos?
— Tem um restaurante italiano na Quinta Avenida, que, não é por acaso, comi lá uma vez. Gostei bastante.
— Você é quem sabe. Italiano, então? Não me importo de comer massa, até engravidar.
e ela trocaram olhares conhecidos. Com o tempo de análise da personalidade do outro, passaram a se ler através deles.
— Não brinca — reclamou, calmo.

Ao entrarem no restaurante de aparência retrô, escolheram uma mesa próxima à janela. Logo, o garçom atendeu-os.
virou a cabeça em direção à TV na parede, prestando atenção, tal como os demais clientes, no plantão de notícias.

“Após oito anos e oito meses, a Guerra do Iraque chegou ao fim. O governo determinou o retorno das tropas de combate que estavam no país até o final de agosto, de acordo com o plano de retirada proposto pelo novo presidente, Barack Obama”

Os clientes gritaram, contentes e aliviados. assistia a animação e, vagamente, lembrou-se da morte de , do dia do casamento, do pedido, mudança, aquisição da residência de ambos.
Alguma coisa deu uma volta em seu estômago.
— Finalmente! — Indira comemorou, levantando a taça cheia. — Vamos brindar a paz?
— Claro.

***


Eram sete e trinta e cinco da noite, afastado dos Estados Unidos da América. Muitos dos soldados atravessavam a base militar, carregando feridos. Viam-se cinzas e tanques de guerra ao redor. O céu estava limpo. O local onde estavam fora bombardeado por horas. Iraquianos e descendentes jaziam nas ruas, pois não havia sobreviventes que se arriscassem mais, depois das fatalidades decorridas, a arrastar os homens no chão.
Morreram, afinal.
O coronel do regimento 4 A limpou a testa com o braço e suspirou.
Durante esses anos, pôde presenciar a divergência entre a luta pela sobrevivência e a da honra. Propósitos distintos, estratégias iguais. Grupos armados almejavam vitória. Famílias buscavam proteção e aguardavam a bonança.
Ele caminhou até a moça sentada do outro lado. Retirou a boina, deixando seu cabelo ralo aparecer. Respirando o ar impuro, crivou:
— É perigoso, tenente, permanecer aqui fora. Nunca sabemos o que os rebeldes pensam.
— Matamos muitos. O resto não aparecerá.
— Sabe, a senhora fez um bom trabalho.
Com delicadeza, tocava as pétalas amassadas e sem vida da rosa, que sobreviveu a oito anos guardada.
— Mal posso esperar para ir para casa.
— Vejo que não se livrou da rosa; pelo contrário, teve um apego incomum a ela — comentou, curioso. — O que ela representa? Não há mais o perfume similar.
— O motivo que me mantém viva. Não sou mais a mesma de oito anos atrás. Tenho feridas na alma, mas ainda amo o mesmo homem que me deu esta rosa.
O coronel pigarreou.
— Temo que esteja enganada. Certamente, a tenente não me ama.
deteve o toque e demorou a se virar para olhá-lo.
— O senhor?
— Naquele dia em que embarcamos, eu disse que alguém havia trazido o buquê, e quem trouxe foi eu. Não por gentileza, mas porque mantive um interesse implícito ao seu respeito. Nada como querer te tornar minha amante, porém existia algo. Agora, seu marido deve ter se esquecido do passado, e a senhora está livre.
— Não diga asneiras.
— Dá a sensação de dever cumprido retornar com a senhora. Perdemos a capitã Vânia. Ter a tenente conosco é quase surreal. Por tudo o que passou, pelas decisões e braveza, pelo mérito e patriotismo, a tenente será promovida e condecorada ao retornamos. Que isso fique entre nós, por enquanto. Discuti sobre sua astúcia muito superficialmente com o general.
— Eu já deveria ganhar uma medalha, por ser mulher. Talvez, como homem, não estivesse chorando a dor do próprio erro. Não tenho certeza do meu mérito.
— Espero que seu marido tenha recebido a correspondência e compreendido.
fitou a lua.
Nada disse.
Em poucos minutos, o coronel percebeu uma movimentação afastada, por detrás de arbustos, ao sul, e muito rapidamente iria alertar a tenente, quando algo foi lançado em direção a eles, e o som se fez presente.
Então a granada explodiu.

Desembarcando na base aérea de outra cidade, a mais perto do local do atentado, sendo levada numa maca, com o corpo paralisado, foi dirigida para o hospital, possuindo ferimentos nos braços e pernas limpos. Dentro da sala, após a cirurgia na cabeça e horas desacordada, lhe entregaram um espelho. Tocou a face com a ponta dos dedos ásperos, que causariam arranhões na pele, caso friccionasse. Analisou a própria imagem e assustou-se consigo; com o que o sol, pó, medo, fome, sede e o tempo fizeram em si. As linhas de expressão, rugas desenhadas no canto dos olhos, na testa. Uma cicatriz teimou em se marcar no supercílio. O cabelo abaixo dos ombros estava maior, na metade das costas. A capitã Vânia havia cortado à navalha. Sorrindo, checou se os dentes continuavam inteiros. Estavam amarelados.
— Você acordou — disse uma enfermeira com sotaque forte e em inglês, mesmo não sendo sua língua nativa. — Está com todos os membros.
— Não sinto minhas pernas. Não consigo erguê-las.
estava calma, depois de ter sido dopada e engolido os analgésicos, mas, quando notou que havia algo errado, um vazio, desesperou-se.
— Estão aí?
— Estão. Vou erguê-las. — Levantou a perna direita, e chorou porque não conseguia sentir o tato. — Nenhuma sensibilidade?
— Não. Cadê o médico?
— Chamarei.
Ela fechou os olhos e tornou a abri-los ao ouvir a porta ser fechada.
— Tenente, estou aqui. Vamos fazer um teste. Enfiarei esta agulha descartável — explicava, tirando do tubinho —, e pode, sim, doer um pouquinho, caso sinta o toque.
— Certo.
O médico havia enfiado na palma do pé, e esperava pacientemente.
— Agora?
— Eu já pus faz um minuto.

Iraque - Base Militar dos Estados Unidos - 2006

— Você precisa voltar agora, tenente. Diga que não está morta, como todos acham! — o soldado, que a ajudou, aconselhou certa vez.
firmou a metralhadora em mãos.
— Meu objetivo de vir foi permanecer até o fim, custasse qualquer plano secundário. Agradecerão depois.
— Perderá seu marido. Como é o nome dele?
— respondeu. — , mas o chamamos de .
— Você tem uma foto? — O rapaz de aparência jovem enfiou a mão no bolso. — Esta é a minha esposa.
— Não.
— Casamos cedo. — Sorriu para a foto da moça, nostálgico.
— Enviei uma correspondência para Nova Iorque. Sabe se já chegou?
— Pelo visto, não. — Semicerrou os olhos por causa da claridade. — Também enviei para Nova Orleans.
assentiu.
— Aprende rápido.


***


pestanejou, levantando-se da cama às pressas, ao ter dormido na casa de Indira.
Faltava meia hora para chegar ao trabalho.
— Ainda está cedo! — ela alertou, deitada, visualizando o horário pelo relógio do celular.
— Vou correr antes de ir! — Entrou no banheiro.
— Está se esquecendo de um detalhe... — Lembrou-lhe, aumentando a voz: — Você é o dono. Toma banho com calma, corre e vem se deitar mais um pouquinho comigo.
apareceu na porta, e Indira o observou, calada. A camiseta não cobria os bíceps, músculos, pele dele.
— Eu te achava um cara muito bonito sem barba, centrado, dedicado, antes de te conhecer e, quando te conheci, achei uma criação melhor que apenas o desenho. Melhor ainda com barba. O conteúdo é seu charme. Você é um cara simples, prático, família... Combinamos bastante.
— Concordo. — Retornou com a toalha no ombro e deitou-se na cama, abraçando-a com as pernas e braços. — É a terceira vez que isso acontece?
— Perdi a conta. — Sentiu cócegas em seu corpo, enquanto enchia seu pescoço de beijinhos. — Ainda não se conformou em ocupar o cargo de CEO, Hurt?
— Hurt?
Ela se virou de lado.
— Falamos sobre, conversamos por horas, mas poderíamos... Apenas no civil.
— Quer morar comigo?
— É um convite?
— Não, ainda. Olha, nós podemos, outra hora, discutir sobre o civil e o religioso... Qual das opções se encaixa com a gente, apesar de eu já ter sido casado no último, então não rola. Somos namorados. Vamos curtir esse estágio da relação, sem nos sobrecarregar com o futuro dela. Tudo bem? Estamos nisso sem reservas, numa preparação para a etapa dois.
Indira sorriu.
— Etapa dois? — Mordeu o lábio. — , nós ainda nos casaremos. Você não vai fugir de mim.

Antes de ser levada para casa, intermináveis semanas após o retorno, parou de frente para o local onde trabalhava, com um oficial atrás de si, mas não sabia como reencontrá-lo, o que dizer, como se portar. As mãos transpiravam, a aparência suavizou, por ter lavado o rosto no regimento, mantendo o uniforme e a medalha no peito.
Deveria ser motivo de orgulho. Então por que pesava na consciência e causava dor?
— Não! Estou embarcando para Los Angeles à tarde!
escutou falarem alto. Alarmada, fechou as mãos em punho. O trânsito também contribuía para estas reações.
— Estou saindo da 14th Street. Manhattan, sim.
Ela seguiu a voz, sem reconhecê-la, apenas pela melodia contente, de que tanto sentira falta, da mulher alta e vestida formalmente.
— Ok, babe! — finalizou. — Falo com você quando eu chegar! Tenho que dirigir agora. — Guardou o celular na bolsa cara, colocou o óculos de sol no rosto e caminhou para o carro.
— Com licença, moça! — pediu, atrás dela. — Espere.
— Eu te conheço? — questionou, impaciente. O olhar se estreitou, averiguando, minutos depois.
Ela franziu a testa e, por fim, abriu a bolsa, apanhando o celular. Destravou a tela e clicou no arquivo de imagens.
— Você me conhece?
— Não. Não sei. Não me lembro, na verdade. — lamentou. — Quem é você?
— Quem sou eu? Você me para e pede licença para perguntar quem sou eu?
— Desculpa. Estou fora de órbita. Não faço ideia de que construíram esse prédio atrás de mim, por exemplo. Faz tempo que não venho aqui.
— Você se mudou? Eu também irei. O terrorismo me assusta.
— Acabei de pousar na cidade.
— Hum.
esquentou as mãos dentro do uniforme.
— Eu me ausentei há oito anos, mais ou menos. Perdi todas as mudanças.
— Não espere que eu conte sobre elas — refutou —, .
estranhou.
— Você me chamou de ?
— É o seu apelido desde os encontros da república. , acaso não se lembra realmente de mim? Sua melhor amiga. Eu sou a . — Àquela altura, chorava sem parar, trêmula. — Você está viva, numa cadeira de rodas...
... — Abraçou-a com força, recordando mais o nome que a pessoa. — Oh, Deus... É a ... Você tá linda demais!
sorriu, afagando sua cabeça.
— Explica como você ressuscitou.
— Não morri. Acabei de chegar de uma cidade em que fiquei em observação.
! — Tornou a abraçá-la. — Você foi condecorada. Parabéns!
maneou a cabeça.
— É... Onde estão nossos amigos?
— Vou contar depois que você me falar direitinho o que, de fato, houve com você enquanto esteve lá.
— E o ? — perguntou, preferindo ocultar a chama fraca de emoção, que estava acesa e alimentada apenas por saber que, em algum momento, o reencontraria.
— Thomas e ele não se falam mais, pelo que a Daphne me contou... Por causa de você.
— O que eu fiz?
— Eles brigaram há anos, mas isso não importa. É passado. Nos últimos anos, meu contato com seu marido tornou-se escasso, até pelos novos projetos de ambos. O não trabalha mais aí. Abriu uma associação. Tenho uma foto que tiramos no primeiro ano da sua ida. Fizemos uma reunião. Veja. — Procurou a imagem, mostrando a ela. Na foto, aparecia sério.
Igualzinho ao seu , na maioria das ocasiões.
— Ele era o mesmo cara aqui.
, quero que me faça um favor, em nome da nossa amizade.
— Para celebrar sua vida? O que quiser.
— Consiga informações sobre quem está morando no apartamento, se foi vendido, alugado, e eu procurarei o paradeiro do .
— Esteja ciente de que oito anos não foram oito dias.

Indira não queria sair da sala de , beijando seu rosto, enquanto o abraçava pela cintura.
— Agora, eu vou. Vejo você na hora do almoço.
— Até lá!
A assistente dele, Tarry, entrou logo após a ida de Indira, com um copo térmico e um saco de papel kraft.
— Está com fome? Espero que sim. Não peguei fila à toa.
sorriu, sentando-se em seu assento.
— Bom dia. Obrigado pelo bolo, desculpe pelo trabalho, mas fico apenas com o café. — Recebeu o copo. — Muitos agendamentos para hoje?
— Temos arquitetos disponíveis para esses daqui, começando pela família Travis em meia hora.
Ele checou o calendário na mesa.
— Hoje, estarei indo à Filadélfia com a Indira para o aniversário da minha mãe, antes das cinco. Aproveitarei para levar flores ao cemitério.
— Quer companhia?
— Não, ficarei bem.
— Acho que a família se adiantou. Peço para que entre?
— Sim.

— Então, assim que eu retornar, na quarta-feira, irei ao Brooklyn. Existe algo de especial lá. Talvez, como a filha de vocês diz, o ‘Todo Mundo Odeia o Chris’ tenha contribuído.
— Com certeza, senhor.
— Me chamem de . Bem, combinado, então?
— Combinadíssimo! Aguardaremos sua ida!
— Ok. — Acompanhou-os até a porta educadamente.
— Oi. — Indira entrou em seguida, enquanto estava de costas. — Não aguentei esperar até a hora do almoço para ver você. — Sorriu. — Muito trabalho?
— Não, por enquanto. Está esperando alguém?
Ela assentiu.
— É uma pena. — Beijou-o. — Dá tempo de irmos à sua mesa e eu te mostrar minha lingerie?
ponderou.
— Que cor?
— Vermelha.
— Você tá querendo me matar? — Brincou. — A Tarry não está interessada e ela vem aí.
Escutaram batidas na porta.
— Fica para a viagem.

cumpriu o pedido de e visitou o prédio em que a amiga morou com o marido oito anos atrás. No apartamento, que não fora vendido, vivia outro casal com três adolescentes.
O porteiro disse que não poderia fornecer o endereço do proprietário, por motivos óbvios.
— Por favor! O senhor já me viu aqui! Eu sou amiga do antigo casal que morava no apartamento. Perdi o contato do senhor . Preciso encontrá-lo. Trouxe notícias.
— Ele não dá notícias há mais de anos. Sumiu. Correspondências chegaram, até que pararam. Talvez os novos moradores possam te ajudar. Suba.
— Muito obrigada!
Dentro do apartamento, sendo convidada a entrar ao relatar a história dos amigos, ouvia atentamente o que a senhora dizia:
— Quando recebemos a chave, o falou que não havia feito reparos porque o apartamento estava em ótimas condições, com dois quartos, que, inclusive, um era destinado a uma criança. Ele não tinha necessidade de continuar morando aqui, sem família, pois o espaço é grande. Então se foi. Parece que se mudou para o centro. Está trabalhando numa dessas imobiliárias. É um arquiteto bem-sucedido.
— Ela é amiga dele, querida — o marido lembrou.
A senhora sorriu.
— Pois bem, é o que sei. Ah, tem algumas correspondências que o dono deveria pegar, mas nunca apareceu. — Foi buscar, trazendo e entregando a , que passou um envelope por baixo do outro.
— Obrigada. Acho que ele mudou de número. Vocês têm o dele?
— Sim, temos. Anote aí.

Enquanto isso, discava o número do pai, na Filadélfia, hospedada no apartamento de . Chamou-o numa vídeo-chamada e contou tudo o que passou, resumidamente, prometendo ser detalhista quando fosse visitá-lo:
— O te viu?
— Não.
— Ele veio aqui umas duas, três vezes quando esteve de passagem. Estava arrasado. Depois, não mais o vimos. Espero que esteja bem. Assim que encontrá-lo, mande lembranças minhas.
— Tá. Vou desligar e descansar agora.
— Senti sua falta, meu bem. Todos os dias.
— Eu também senti a sua. Vejo você em breve.
abriu a porta.
— Oi!
— Olá.
— Trouxe algo para você! — avisou, pegando as correspondências na bolsa. — Estavam com os novos moradores. O apartamento foi alugado. nunca apareceu para buscar. Uma delas foi escrita para você.
abriu.
— Há uma estrada para pegar imediatamente. Sugiro que leia no caminho.
— Para onde?
— Entrei em contato com a Daphne e o Thomas. Estão morando fora. Contei a história, e torcem por você. Não sabem como o está, nem nada, mas tenho o número dele. Liguei para o , não atendeu, então liguei para a imobiliária, e a tal de Tarry falou que ele viaja hoje, a descanso. Acredito que o destino é onde tudo teve início. Onde vocês se conheceram, se apaixonaram, começaram a namorar, até se casarem, mudarem de cidade e, de repente, terminarem aqui. Nova Iorque é uma vadia, mesmo. A Filadélfia é como uma terapeuta, e é pra ela que recorreremos.
respirou fundo.
— Vamos nessa.

***


O bairro em que cresceu continuava intacto. Parecia até que a prefeitura tinha receio de mexer com a rua e arrancar a beleza do lugar. Havia um balanço no jardim. Porém, aquela não era a sua, mas a casa dos pais de sua falecida esposa. pediu que Indira esperasse no carro alugado porque iria cumprimentar e checar o estado de saúde do pai de . Nutria muito carinho e consideração por ele, que era bem mais novo que a esposa. Os dois filhos viviam em cidades distantes. Eram três. foi a única mulher. Rapidamente, desceu os degraus e retornou ao carro, dando partida.
Na casa dele, em outro bairro, foram recebidos pelos pais de , que conheciam Indira e gostavam dela, pois ela fazia o filho viver. No quintal, um balanço e um triciclo, e muitas flores, e plantas. abraçou a irmã, pegou o sobrinho pequeno e deixou ser guiado para os brinquedos novos dele, que queria mostrar.

teve dificuldade para subir a cadeira nos degraus da casa, sendo ajudada por , que carregava as bolsas, e o pai, que saiu. Ele a pegou nos braços, sendo abraçado, e fechou a cadeira.
— Pai, obrigada.
— Não precisa me agradecer. Você é minha filhinha.
— Onde a mãe está?
— Lá dentro. esteve aqui.
— Sério?
— Ele foi para casa. Passará uns dias.
— Eu preciso ler o bilhete.
— Que bilhete?
— Este.

20 de março de 2003

Querida,

Acreditou mesmo que eu deixaria esta data passar em branco? Você lerá este bilhete no dia vinte. Estarei no trabalho e, infelizmente, não poderei ver seu sorriso espontâneo e o olhar que me tenta e pede, silenciosamente, qualquer coisa, sem que eu tenha como negar, mas quero que saiba, meu amor, que meus pensamentos estarão em sua imagem linda. Sabe, um dia, como em tantos outros esporádicos, falei sozinho e acabei perguntando se você ainda me amava. Como não obtive resposta alguma, além dos seus roncos — brincadeira! —, passei a refletir em que parte havia defeito. Onde eu estava falhando. Meu casamento vivia numa corda bamba e minha adorável esposa, aparentemente, apenas me tolerava. O meu primeiro pensamento foi que eu estava ferrado. Quis juntar minha bagunça e deixar esse espaço vago para que pudéssemos tentar afastados. Se você estivesse a fim de voltar a viver como solteira, eu permitiria que fosse feliz com outra pessoa porque é isto o que o amor faz: liberta. Minha felicidade é fazê-la feliz todos os dias, do bom dia ao sexo — faz parte. Não pense, por favor, que outras mulheres e minha “marcação” conseguiriam me seduzir quando você está fora, pois uma chamada veio primeiro, realizando o serviço completo: seduziu meu corpo e roubou meu coração. Se, um dia, você for para a guerra, lute por nós três: eu, você e o nosso filho. Não peço muito, apenas um.
Prometo, garanto, juro de pés juntos que ajudarei a limpar sua bundinha!
Espero que ele seja tão bonito quanto à mãe!

P.S. São 30 rosas para uma rosa de 30 anos!
Feliz Aniversário!

Com amor,
.


sempre com bom humor! — crivou , guardando as bolsas.
— Às vezes.

Demorou dois dias para algo acontecer. O seu pai foi convidado pela conterrânea, ex-sogra de , para o almoço que haveria na casa dela, apesar de, geralmente, recusar convites por cuidar da esposa, que necessitava de sua ajuda com remédios, troca de roupas, o básico. Levá-la gastaria muita energia e, ao trazê-la, não teria forças. Por isso, contentavam-se em caminhar ao redor, para tomar sol, todos os dias pelas manhãs.
admirava o amor dos pais, que ultrapassou trinta e cinco anos de casamento.
Atemporal.
O que seriam oito anos ao lado deles? Oito dias.
Eles tinham sede de aproveitar o resto da vida a dois.
Com o apoio de , vestiu um vestido comportado, simples. Ela mesma penteou o cabelo, usou maquiagem, borrifou perfume nos pulsos e atrás das orelhas e se deslocou para a sala, onde esperavam.

***


O veículo do pai foi estacionado em frente à casa de . O triciclo e o balanço no jardim causaram um ardor nos olhos de . Abriu a porta e esperou que a ajudasse mais uma vez. Foi empurrada jardim a dentro, até a porta entreaberta da residência. O som de vozes na sala de jantar ocasionou um burburinho; risadas, piadas, brincadeiras entre familiares e amigos. O pai de empurrou a porta e chamou a amiga de longa data, que se aproximou agilmente, sorrindo.
— Muda de ideia tão rápido que até estranho! — comentou, cumprimentando-o. — Quem são estas adoráveis moças? — Olhou para e, em seguida, seus olhos pairaram sobre encolhida na cadeira de rodas. — Você me recorda... Não. Esqueça. É impossível. — Virou-se para o senhor.
— Esta é a , amiga da família, e esta é minha filha, sobrevivente à guerra... .
Lá na sala de jantar, tentou prestar atenção na conversa e no porquê sua mãe demorou a retornar.
— É mentira. Você nem parece com ela.
— Mudei muito, e isso é perceptível, mas sou . Casei-me com seu filho quando tinha vinte e três anos.
— Entrem. Vamos conversar na sala. Não consigo assimilar direito. Dê-me um minuto. — Afastou-se por uma porta adiante, e , dali, conseguia ouvir, sentir e ver a presença de à mesa.
— Ele está na mesa — disse baixinho. Começou a prosseguir no caminho, sozinha, com cuidado e devagar.
Ninguém notou ou teve noção de que estavam sendo observados por uma cadeirante, até o garoto de, mais ou menos, oitos anos, entre Indira e , chamar atenção deles.
Os murmúrios cessaram.
— Quem é essa mulher? — perguntou a Indira.
Indira olhou para , estático e confuso no assento.
?
sentiu os olhares em sua cadeira, no corpo paralisado da cintura para baixo.
— Garotinho fofo. É filho de vocês? — questionou.
— É...
pigarreou.
— De criação. Consideramos nosso filho.
maneou a cabeça e sorriu, os olhos lacrimejando.
— Fui convidada para o almoço.
— Fique aqui — a irmã de instruiu —, .

No fim do almoço, sentaram-se no sofá para trocar ideias, e assistia a harmonia entre , Indira e a criança de longe. Apática, moveu a cadeira para se retirar, e ergueu a cabeça.
— Estou cansada — revelou a um tio dele.
— Levo você ao quarto deste andar. É de hóspedes. Fique à vontade!
Ele tentou ajudá-la, mas subiu na cama sozinha com o sustento dos braços. Um pouco depois, retornou à cadeira, e a porta foi aberta.
— Minha mãe iria trazer o café, mas pedi para vir — falou . — Você tem dez minutos para explicar o que houve no dia em que achei que estivesse morta durante esses oito anos. Está me ouvindo? Dez, , ou juro que nunca mais te darei outra oportunidade.
recusou o café.
— Você conseguiu um filho.
— É sobrinho dela, e eu o amo como se fosse meu.
— Quanto tempo levou para assumir um romance com essa mulher?
— Não importa. Você perdeu metade dos minutos com essa enrolação.
pegou o pires com a xícara e bebeu.
— Estou aleijada por causa de uma granada. Foi azar. Quando estive prestes a voltar à América, lançaram, e não tive como correr.
massageou a nuca, atento.
— Recebi dois tiros, sofri um atentado, carreguei um bebê, perdi meu filho, vi pessoas morrerem, lutei pela minha vida por nós dois, voltei, e você está com outra, seu idiota!
Os braços estapearam sua barriga, regiões em que alcançavam, descontrolados, e tentou detê-la.
.
— Não me chame de !
, pare!
Ela apanhou a xícara e lançou o café quente nele.
— Você tá fora de si!
— Estou emocionalmente exausta! Infelizmente, nenhum repouso é capaz de sarar as feridas de dentro!
— Noto como você mudou, mas eu me apaixonei pela sua versão doce, determinada e equilibrada.
— Ingrato.
— Está delirando.
— O corpo trazido não era meu. Era de outra . Eu não quis vir. Preferi que você não me esperasse por obrigação porque sabia que demoraria a voltar, e se eu voltasse no fim.
— Você estava grávida, mas, ainda assim, não retornou quando surgiu essa brecha. Abriu mão da gente, de nós três, então não venha me dizer que eu sou um idiota e abandonei o barco. Você pulou fora antes! Independentemente de entender suas razões egoístas, patriotas, não faz diferença! Não morri com você! Tranquei-me num casulo, e aquela mulher lá fora me escolheu! Não o emprego, nem o país!
respirava resignadamente, enquanto a encarava.
— Eu escrevi para você.
— Quando?
— Um dia, escrevi uma carta e enviei. Acreditei que você tivesse lido. Pensei que fora extraviada, mas, na verdade, está aqui. Encontrei no apartamento.
assumiu uma postura menos defensiva.
— Não faz diferença — repetiu. — A Indira quer se casar comigo. Até hoje, eu era viúvo.
— Faz diferença se você acha que eu te abandonei, que desisti. Leia isto. São relatos do que vivi lá. — Estendeu o papel em sua direção.
Ele balançou a cabeça.
— Muda o futuro, a partir de agora, se estou viva. O papel ficará no criado-mudo.

Seis


“I'll rise up
And I'll do it a thousand times again
For you”
(Rise Up - Andra Day)


tirou uma licença, como afastamento, quando sofreu o atentado, descobriu que o buldogue inglês, o Percy, morreu de causas naturais, alugou o apartamento de , em Manhattan, adaptando-o à sua condição física, e retomou a vida aos poucos, sem ultrapassar os próprios limites. Decorou todos os cômodos, contratando quem pudesse orientá-la, e se mudou de vez para ele. Tomava os remédios prescritos, tinha sessões de fisioterapia e havia a probabilidade de voltar a andar. Com afinco, acordava, a cada dia, para movimentar as pernas e tentar, sem perder a paciência.
Era uma provação que lhe traria experiência.

Por sua vez, retornou, calado e pensativo, da casa dos pais. No dia, deixou Indira em casa e foi embora. Usou a semana para se encontrarem esporadicamente e, no fim, se reuniram na casa dela para relaxarem.
Havia lido a carta de , no dia anterior, com doses de vinho, para chorar de profunda tristeza, ou compensar com risadas desgarradas pelo mesmo motivo.
Agradeceu pela sua vida, livramento e bonança.
Nesta noite, Indira tinha planos para dividir e o abraçou por trás, tendo esperado por ele no quarto, com o filme pausado.
— Você tá estranho desde que voltou da Filadélfia quando se encontrou com a aleijada.
— É a , minha “falecida” esposa.
— Hum.
— Sofreu um atentado e perdeu o movimento das pernas.
— Lamento pela condição dela, de verdade.
segurou suas mãos.
— Eu preciso dar uma saída.
— Aonde vai?
— Tenho que buscar uma coisa em casa.
— Não vai fazer nenhuma besteira, não é? — Olhou para ele.
— Acho que já estourei a cota de besteiras na minha vida. O que eu fizer será bem arquitetado. Não é à toa que nasci pra exercer essa profissão.
— Tudo bem.
— Não voltarei hoje.
Ela ficou calada.
— Indira, por que não damos um tempo?
— Não acredito em “tempo” para relacionamento. Ou você tá comprometido, ou não.
— Eu necessito desse tempo.
, o que houve?
— É melhor pararmos aqui.

***


abriu a porta do seu apartamento, ao receber uma ligação, e deixou encostada, enquanto fingia que iria até um ficante na porta, como se tivesse um. Daí, subiu os andares pelo elevador, parou em frente à porta e a empurrou, entrando em seguida. Trancou, arrancando a chave da fechadura e enfiando no bolso do jeans.
Na cozinha, tentava se erguer em cima da cadeira de rodas para alcançar o armário e buscar uma lata. Exagerando na força, tornou a se sentar e, então, o corpo maior, de , alcançou, sem nem precisar ficar na ponta dos pés.
olhou para ele, sentada, em silêncio. Deu “ré” na cadeira para lhe dar espaço. Ele pôs a lata sobre o balcão, como se fosse um ato habitual, corriqueiro fazer isso. Abriu, mergulhou a colher e colocou na panela sobre o cooktop.
— O que você está fazendo? — perguntou a ele.
tinha agilidade na cozinha. Não respondeu de imediato, concentrado no mingau.
— Isto é sua janta?
— Não estou com muita fome, mas preciso comer. Só tenho ossos.
— Continua sendo bonita em excesso, como antigamente.
— O que você está fazendo, ? O que tá fazendo comigo?
— Mingau. Com você, nada.
— Como entrou?
— A me deu cobertura.
esperou que ele mexesse o mingau.
— Eu me pergunto o que você estava pensando quando resolveu ir atrás de mim.
— Nós éramos casados. Acha mesmo que você não seria a primeira pessoa para quem eu correria?
desligou.
Pra falar a verdade, não.
— Está aqui porque leu a carta?
— Eu iria jogar no lixo, mas fiquei curioso para saber como você lidou com a gestação.
— Perdão por não ter protegido e salvo o nosso bebê.
Shhh! — Ergueu o dedo. — Você tá salva. Deus sabe o que faz. Como seria sem você aqui?
enxugou os olhos.
— Não dá pra tentar ser indiferente à sua vinda. Parece que absolutamente nada, exceto o físico, sofreu mudanças. Mas eu me deparo com minha realidade e cai a ficha de que, sim, absolutamente quase tudo, menos o que sinto, mudou. Você levou consigo uma parte minha quando se foi na primeira vez. A sua morte arremeteu o que faltava. Finalmente, consegui juntar as sobras e me erguer. Daí, você volta e traz de volta o que é meu. E eu tento ser coerente, agir normalmente, como se não me importasse, mas é tão óbvio que chega a ser desnecessário dizer o que te ver me causou.
— Eu tentei salvá-lo.
— Eu sei, . Eu sei. Você faria qualquer coisa por ele, mesmo sem conhecê-lo. Ele te amou por isso.
estava agachado de frente para ela e a trouxe para perto, colando o peito no seu e afagando sua cabeça.
não se moveu.
— Podemos fazer outro.
Ela viu o toque das mãos em suas pernas e nas costas, até que sentiu ser erguida e levada nos braços ao quarto.
Ele a colocou com zelo na cama de casal, tirou suas pantufas e sentou-se ao seu lado. Tocou novamente as pernas dela, de baixo para cima, devagar, prestando atenção às reações faciais, lendo através de seu olhar.
— Nenhuma sensibilidade?
— Não.
Ainda que não sentisse nada, sabia e via-o tocá-la, e, para si, neste momento, dava prazer.
— O doutor disse que tenho trinta por cento de chances de andar de novo.
— Então transformaremos o trinta em cem. Se existe a possibilidade de, um dia, você andar, não tema.
fechou os olhos.
— Tá com sono?
— Você sabe que, em qualquer canto que eu me escoro, durmo. Imagina numa cama...
ergueu-se, sustentando o peso do corpo nos cotovelos, e foi abaixando sobre ela, o torso cobrindo-a. Deslizou a manga da blusa, e a cicatriz do tiro ficou evidente.
Ele a contornou e beijou.
— Mas eu tô aqui agora. Foram oito anos longe do seu cheiro, voz, toque.
não conseguia conter a vontade de tocar com os lábios cada parte dela, do rosto, pescoço, colo.
Tudo o preenchia de uma saudade voraz.
— Você sempre dorme nos melhores momentos.
— Me aguarde quando o efeito do remédio passar. Eu tô meio grogue. Não estaria com os braços estendidos se não fossem eles. Você é quem não terá sossego.
Ele a beijou, passando para o lado, virando-se e deslizando a mão na sua.
Psiu! — chamou, escutando um “hum?”. — Eu te amo.

Fim



Nota da autora: Se eu devo agradecer a alguém, agradeço a Deus, que abençoa a minha vida em todos os aspectos, e não seria diferente na literatura. A história, como podem ver, não possue nenhuma ligação com o filme de mesmo título. Sem dúvidas, Greg e Beatrice são um dos meus casais literários favoritos (e lindões!), e que todos os casamentos se baseem em amor... Ontem, hoje e sempre!




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