Finalizada em: 20/20/2020

Capítulo 20

fechou a proteção da escotilha e afastou-se dela. De pé, diante dos seis companheiros, olhou-os apreensivo.

- Em alguns minutos as coisas devem ficar um pouco turbulentas, como devem lembrar. – Informou. A expressão confusa dos outros Guardiões atraiu sua atenção
- Eles não sabem, . Estávamos dormindo. – Violet explicou.
- O quê? O que você fez enquanto dormíamos? – Brock questionou.
- Ah! – ele olhou em volta. – Pelas luas! Nenhum de vocês se transportou para outro planeta de forma consciente?
- Eu costumava visitar minha família... – Amber começou.
- Sem ser pegando o interplanetário. Por meio de portal? – todos negaram com a cabeça. – Certo. Quando vocês vieram para cá, os coletores os trouxeram. Foram apagados para evitar o estresse. Eu, quando recebi a visita dos coletores, pedi para que me deixassem ir com a ajuda dos naqmia.
- Naq quem? – Viper o olhou sem entender.
- Naqmia. São primos das sereias, você pode já ter visto algum e ter confundido com uma sereia. Estão entre os poucos seres capazes de abrir portais. Enfim, fui conscientemente com a ajuda deles para Mirth. A travessia é uma das piores sensações que você poderia sentir. É... Impossível de descrever. Será bastante desconfortável e sua estabilidade só retorna depois de alguns dias. É por isso que vocês ficaram dias apagados na enfermaria. Nós, agora, passaremos por um portal criado pelos naqmia. Quanto maior o portal, pior a sensação. É por isso que esse tipo de transporte não é frequentemente usado. Estejam preparados. Apertem os cintos.
Ele sentou-se ao lado de e tratou de prendê-la bem ao assento, antes de fazer o mesmo consigo. A advertência foi repassada para os demais naquela e nas outras naves. observou o rosto franzido da ruiva ao seu lado.
- Você está bem? – questionou. Ela agarrava o cinto que formava um X sobre seu peito com as duas mãos. – , eu estou ficando realmente preocupado com você. – passou uma mão pela testa dela, afastando alguns fios de cabelo que se colaram a sua pele por causa do suor frio.
- Nós fomos apagados porque passar por essas sensações conscientemente é pior? – ela perguntou baixo demais, fazendo-o esforçar-se para entender suas palavras. Ele pensou com cautela antes de responder.
- Acredito que sim. Seu corpo se recupera melhor quando o transporte é inconsciente, porque você não registra o trauma. – ele brincou com os dedos nos fios da franja dela.
- Por que não nos apagam agora, então? – Viper, do outro lado dele, inquiriu.
- Seria pior. – respondeu debilmente. Ao olhar curioso de Viper, Violet explicou:
- Apagar essa quantidade de pessoas é pedir para receber um ataque quando chegarmos em terra firme. Teremos um número enorme de Guerreiros apagados por até quatro dias, é muito perigoso. Vale mais a pena deixar todos esses corpos passarem por tanto estresse e deixar que nos movimentemos lentamente.
- Eu não acho que consigo... – mas foi cortada pelos gritos.
Segundo , aquela era uma situação difícil de descrever, mas, se fosse extremamente necessário colocá-la em palavras, poderia se dizer que a sensação era a de ser violentamente rasgado ao meio, apressadamente colado errado, entusiasticamente puxado para todos os lados, tendo todo o seu corpo sendo atravessado por uma quantidade estonteante de espadas com lâminas estupidamente afiadas. Então parecia que colocavam todos os pedaços do corpo juntos e tentavam colá-lo com apenas pressão. Muita pressão.
Quando acabou, estava confusa. Seu corpo todo doía, o cinto que usava parecia ridiculamente frouxo, seu rosto estava molhado, algo pingava em sua perna e sua mão ainda estava imersa na sensação de pressão. Ao abrir os olhos, percebeu-se encarando . Ele segurava a mão dela com força. Seus corpos, assim como os dos demais, tremiam e a respiração era difícil. Ele estendeu a mão livre e, trêmulo, secou as lágrimas que escorriam pelo rosto dela. Depois passou um dedo pelo lábio inferior dela, fazendo-a sentir uma leve ardência. O que pingava na perna cessou e ele afastou um dedo sujo de sangue.
- Você está bem? – a voz dele parecia insegura e não tinha qualquer semelhança com seu tom normal.
A ruiva não se forçou a responder, apenas continuou encarando-o até que ele a puxasse contra seu peito. Sem a resistência do cinto, ela apenas permitiu que seu corpo se encostasse ao dele. O carinho que ele fazia em seu cabelo era desajeitado e um pouco desconfortável, mas o aceitou sem reclamações. Ninguém ali se via em condições de falar muito.


O caminho até a terra firme foi longo e exaustivo. Por mais que houvesse olhos fechados naquelas naves, nenhum deles se permitia dormir. Consequência pura da travessia pelo portal. Toda vez que alguém estava próximo de adormecer, o corpo entrava num estado de vigília estarrecedor, trazendo de volta a sensação de estar no portal.
Caminhar era exaustivo e requeria mais forças do que eles imaginavam, então os passos eram curtos, arrastados, trôpegos. Por isso, assim que deixaram os veículos aquáticos, as tropas se movimentaram lentamente. A primeira parada estava, afortunadamente, marcada para aquela mesma cidade, num acampamento levantado por aliados.
Os que pareciam estar se saindo melhor naquela situação eram os Soldados, talvez porque já tivessem passado por outros transportes daquele tipo em vezes anteriores. Kyle, mesmo sentindo o incômodo por todo o corpo, se dispôs a fornecer apoio para a irmã e Violet, que andavam perto dele. Outros Soldados buscaram oferecer ajuda aos que aparentavam maior fragilidade. , Breeze e Brock apoiavam um aos outros enquanto Amber parecia fazer um bom trabalho mantendo Viper em pé. Os Protetores tomaram formas que os permitissem carregar os mais incapacitados. Desse modo, o grupo todo levou umas poucas horas para cruzar toda a distância do porto ao acampamento.
Quando chegaram, foram recebidos pela discreta euforia dos guardas, que fizeram questão de guiá-los até as enormes tendas que serviam como enfermarias.
- Infelizmente não há muito que fazer. – uma mulher disse num suspiro. – Porém as camas da enfermaria promoverão um descanso mais confortável. Com o repouso, o bem-estar vem mais rápido. Por isso sugiro que os Guardiões e os melhores Guerreiros fiquem com as camas da enfermaria. Os demais acabarão por se curar de qualquer modo.
, nesse momento quase dormindo apoiada no ombro do irmão, se fez alerta imediatamente, soltando um muxoxo desgostoso. Retomando a postura, mesmo com toda a dor, ela forçou a voz a projetar-se para fora.
- Não. Deixaremos as camas confortáveis para aqueles que estiverem em pior situação. Percebi vários dos nossos Guerreiros e alguns Soldados desmaiando pelo caminho. A prioridade é deles. – a guarda deveria estar tão assustada quanto a própria com seu tom firme. – Os demais ficarão bem montando acampamento do lado de fora das tendas. – olhando para o irmão ela prosseguiu: – Preciso dos Soldados mais dispostos para que possam realizar a filtragem.
- Tem certeza quanto a isso? Alguns podem ficar incomodados com...
- Tenho muita certeza. Dormiremos em camas confortáveis quando voltarmos para casa. Agora o que precisamos é ter certeza de que poderemos contar com todas as crianças que trouxemos. Não podemos nos dar o luxo de enfrentar uma batalha com um número ainda menor do que o que já trouxemos. – um pequeno sorriso orgulhoso nasceu nos lábios de Kyle, mas ele o conteve enquanto assistia à irmã caminhar para fora da tenda. Apertando o braço em volta da cintura de Violet, ele virou o rosto em sua direção.
- Ela é natural. – ele viu a Guardiã assentir com um sorriso sereno.
- É uma pena que seja a única que ainda não percebeu isso. – Violet apontou. – Pronto para a triagem?
Baelfire alongou-se com alívio quando Cytron tirou de suas costas o último Guerreiro. O estalar de suas costas soou alto enquanto se aproximava e os dois foram tomados por uma feição satisfeita nos rostos.
- Como está, Bael? – ela acariciou a cabeça do Protetor e sorriu quando ele se transformou sob sua palma, assumindo a forma de fênix.
- Um pouco cansado, mas pareço melhor que você, criança. – ele roçou a cabeça no pescoço dela. – Está escurecendo, seria bom se você arranjasse logo um lugar para dormir. Estou orgulhoso da sua decisão sobre a enfermaria.
- Não seja tolo, Protetor, o próprio nome já diz que lá é um lugar para os enfermos. Eu jamais ficaria bem ocupando o lugar de quem realmente precisa. – os dois começaram a caminhar enquanto observavam o acampamento começando a ser tomado por sacos de dormir e camas improvisadas.
De forma involuntária, Baelfire guiou a protegida até uma tenda um pouco menor que as demais. Dentro dela encontrava-se um pequeno tanque onde Ceryn remexia-se desconfortável. a encarava com um olhar chateado. Ao ver Baelfire e entrando ali, o rosto da sereia se encharcou com um sorriso.
- Olá, queridos! – ela saudou com entusiasmo. Sua cauda bateu em uma das paredes do tanque, espirrando água para fora.
- Olá, Ceryn. . – Bael retribuiu a animação. – Sinto muito que esse tanque seja tão pequeno.
- Oh, não! Você também, não! – a sereia forçou uma expressão desagradada, seus belos olhos se voltando para . – , você já esteve em uma cama desse tamanho? – ela apontou para as dimensões do tanque. A Guardiã considerou a pergunta. Certamente não. Embora não fosse muito profundo, o objeto tinha espaço para pelo menos três sereias deitarem uma ao lado da outra.
- Não, com certeza não. Você parece ter espaço de sobra para dormir. – piscou um olho para Ceryn e ela riu animada.
- Viram? Temos aqui uma criança sensata. – ela girou em torno do próprio corpo e então pareceu lembrar-se de alguma preocupação, aproximando-se de uma das paredes e segurando-se ali, levantando de leve o corpo. – Ei, Bael! Passe a noite comigo, sim?
Por mais que ele tentasse bloqueá-la, sentiu, naquele momento, que o Protetor manifestava um misto de animação e constrangimento. Seu corpo se impulsionou para frente com o pedido da amada e ele precisou de alguns segundos para se recompor.
- Tem certeza? – ele questionou com a voz contida. A sereia mexeu a cabeça veementemente para cima e para baixo, confirmando. – Se estiver tudo bem para ... – a fênix olhou na para a protegida.
- Não esquente a cabeça, Bael. – ela deu de ombros.
- Eu cuidarei dela, não se preocupe. – aproximou-se de e passou com delicadeza um braço em volta de sua cintura.
- Oh! Vocês não precisam nos deixar a sós, se é o que estão pensando. – Ceryn continuou animada. Apoiou o queixo sobre a borda do tanque e olhou para o casal de Guardiões. – Devem passar a noite conosco. Será bom para a recuperação de vocês. Além disso, quase nunca tenho a presença humana ao meu redor. Não sem ter que dividi-la com outras sereias, pelo menos. Muito menos a presença do Fogo! Ah, , diga que ficará durante a noite, diga?
Ceryn parecia um peixinho animado. Seu rabo batia na água, fazendo pingos saltarem por todos os lados. Seus olhos estavam presos em .
- Você não precisa dizer sim para ela. Lembre-se que é uma sereia traiçoeira e que está tentando te seduzir para que faça seus caprichos. – argumentou.
- Já estou seduzida, . – a ruiva deu de ombros, sentando-se no chão duro. – Nunca achei que um ser da água fosse tão encantador. Se é o que quer, ficarei com certeza, Ceryn.
- Ah, ! Sim! – a sereia gritou empolgada, batendo palmas e girando o corpo dentro do tanque.
- Está criando um monstro, criança. – Baelfire advertiu, pousando na borda do tanque de Ceryn.
- Ela está feliz, Bael. Deixe que pelo menos uma criatura fique feliz em meio a essa situação. – esforçou-se para sorrir.
sentou-se ao seu lado, fazendo uma careta ao sentir a dor se espalhando por seus músculos.
Por longos minutos, os dois Guardiões apenas observaram o casal de Protetores interagindo. A sereia ria animada enquanto a fênix brincava com a água e o fogo, os dois parecendo crianças novamente. Estavam imersos demais na interação das criaturas, então talvez a voz os tenha assustado, quando finalmente veio.
- Você acha que é minha culpa?
encarou , procurando nos olhos dela uma resposta. O que poderia dizer?
- Por que diz isso? – questionou.
- Algumas vezes eu me pergunto o que teria acontecido se eu tivesse deixado a ilha quando tive a chance. – ela suspirou. passou com cuidado um braço por trás dela e mexeu os dedos entre os cabelos vermelhos e rebeldes da Guardiã.
- Ceryn e eu estaríamos aqui. Os outros Guardiões na enfermaria, recobrando as forças. Possivelmente eu teria uma cama confortável também. E então, em alguns dias, seríamos surpreendidos por um bando de desgarrados. – ao perceber o olhar descrente dela, ele sorriu e continuou. – Você teria ido embora antes de causar mudanças cruciais na ilha, então ninguém veria com problema a hierarquia da ilha, ou as desavenças entre as casas. Também você nunca teria criado um laço de confiança com Violet, então é possível que só fôssemos descobrir que ela não enxerga com os próprios olhos durante as batalhas. Isso causaria um rompimento enorme entre os Guerreiros e Guardiões, desestabilizaria a equipe durante a batalha e destacaria grande parte do nosso pessoal para o outro lado. Você não teria feito Targ voltar para a ilha, então nem você, nem ele, nem mais ninguém poderia fazer a conexão entre a criatura que apareceu para nós naquela noite com a criatura de um dos livros que você estudou. Você não teria aperfeiçoado os laços entre os líderes da sua casa e, muito menos, unido todas as casas. E, claro, você não teria trazido de volta aquele cara ali. – ele apontou para a fênix. – Ou esse aqui. – ergueu as sobrancelhas, indicando a si mesmo.
Os olhos de cintilaram ao ouvi-lo, sua expressão se alterando minimamente com o traço de sorriso que queimava nos cantos de seus lábios. Ela encostou a cabeça no ombro de , que a envolveu num abraço delicado. Não era uma posição confortável e a dor fazia seus músculos arderem, mas eles não reclamaram e permaneceram ali.
Lentamente, quase sem perceber, seus corpos começaram a relaxar e a buscar uma posição confortável. Foi quando a soltou e projetou uma almofada de água para cada um deles. fez careta ao tocar o aglomerado de água e aqueceu a própria mão para secá-la depois que ela atravessou o objeto.
- O que você espera que eu faça com isso? – questionou. olhou-a curioso, já com a cabeça apoiada contra o travesseiro improvisado.
- Imagino que não funcione para você. É uma pena, é bastante confortável.
- Bem... – ela começou enquanto apalpava o chão. – Não será a pior coisa em que já dormi.
- Está brincando? – sua testa se enrugou. Sua cabeça se mexeu em negativa e ele puxou a garota, trazendo a cabeça dela para seu peito. – Não vai ser a mesma coisa, mas você pode me usar como travesseiro.
riu baixinho, a ideia de recusar a oferta passou rapidamente por sua cabeça, porém ela apenas se aconchegou sobre o peito do rapaz e inspirou fortemente o cheiro dele, deixando que isso acalmasse seu corpo e finalmente se deixando descansar. Ela puxou o ar, prestes a falar qualquer coisa, mas se conteve. Sorriu e fechou os olhos quando repousou uma mão entre seus cabelos.


Todo o arrependimento que a noite mal dormida poderia ter ocasionado se foi quando viu os Guerreiros e Soldados que saíram da enfermaria bem dispostos. Afinal, aquelas camas confortáveis eram mesmo capazes de fornecer melhoras significativas. A Guardiã aproximou-se de Suri, uma das crianças recém-saídas da tenda.
- Como está, Suri?
- Indescritivelmente melhor, . Obrigada pela preocupação. – o sorriso da garota se abriu com facilidade.
- Fico feliz. Você acha que você e os outros precisarão de mais uma noite na enfermaria?
- Não, de forma alguma. As dores já nos abandonaram e todos concordamos que a próxima noite nas camas será para aqueles que precisarem mais.
- Excelente. Então conto com você para coordenar o grupo que esteve na enfermaria. Como são os que estão em melhores condições, vão fazer a proteção da nossa equipe e, assim que chegarmos ao próximo acampamento, deverão ser responsáveis pela organização. Tudo bem para você? – deixou um sorriso faiscar por seus lábios.
- Perfeito, chefe. – a morena lhe deu uma piscadela e deixou-a, correndo na direção dos companheiros e integrando-se à conversa.
Quando a equipe finalmente ficou pronta para voltar a se mover, aproximou-se do grupo dos Guardiões, sorrindo fracamente quando Viper abriu espaço para que ela ficasse ao seu lado. Não foram precisos dez minutos de caminhada para que todos os Protetores e Fintan se juntassem ao grupo.
- É bom que estejam todos reunidos. – Skye abriu a conversa.
- O que querem de nós? – Breeze perguntou com um sorriso cômico.
- Exato. Porque sempre que se aproximam assim de nós é porque querem algo. – Amber acrescentou, espelhando o sorriso da companheira. – Não conseguem nos ver quietos.
- Você principalmente, velhote. – arrematou enquanto olhava diretamente para Fintan.
- Não falem assim, eu quase me ofendo. – Cytron gracejou, sua voz grave não combinava em nada com aquela frase. – Mas se querem ir direto ao ponto, iremos. Estabelecemos paradas durante nossa caminhada até o próximo acampamento, para que os que estão mais fracos possam descansar. Durante essas paradas, treinaremos.
- Acabou de falar que as paradas são para descansar. – Brock lançou um olhar confuso ao Protetor.
- E são. Aqueles que precisarem, descansarão, mas a nossa preferência é de que a maioria se junte aos treinos conosco. – Zarafee explicou. – Percebemos que falhamos como Protetores. Deveríamos tê-los treinado desde sempre para batalhas reais, mas confiamos na paz que se estabeleceu durante as últimas gerações, nos deixamos enganar pela quietude, acreditamos que não seríamos pegos de surpresa. Por isso pedimos o perdão de vocês. Para reverter à situação treinaremos até a exaustão. Sabemos que não é culpa de vocês o nosso erro, mas depende de vocês consertá-lo.
- Certo. Assim o faremos. – Violet afirmou.
- Também contamos com vocês para manter a equipe unida e confiante. Para isso, sei que é um pedido bruto, mas devem esquecer suas próprias inseguranças. A partir de agora tenham apenas certezas. Certeza de que iremos vencer essa batalha. Certeza de que somos fortes. Certeza de que estamos preparados... – Bael enumerou. Seu olhar recaiu precisamente sobre e ela não entendeu se era para ela ou sobre ela que o Protetor falava. Talvez fosse os dois: deveria tanto adotar essas certezas quanto propagá-las aos demais.
Mas se perguntava se era realmente capaz de acreditar. Aquilo a fez refletir como há tempos não refletia. Se fosse sincera consigo mesma, acreditar cegamente em verdades que os outros contavam a ela era o que vinha fazendo desde que chegara a Mirth. Primeiro acreditou que aquele lugar era real, depois, que ela pertencia ali, que era uma Guerreira. Ainda mais tarde foi forçada a acreditar que era muito especial e, para completar, que era uma Guardiã. Desde sua chegada os outros lhe diziam no que acreditar.
Desse modo, concluiu que acreditar não seria um problema. Mas ter certeza... Fazia quanto tempo desde sua última certeza? Pelas luas, se tivesse que arriscar, diria que ainda estava em Novaterra quando isso aconteceu. Tinha certeza de que a mãe não era louca.
Ou será que...
Não, ainda lá ela tinha dúvidas.
Lembrou-se de sequer ter certeza de que a plantação sobreviveria até a Lua da Colheita. Será mesmo que nunca tivera certezas na vida?
Ela olhou na direção de , uma sensação quente tomando conta de seu peito. Aquilo não era uma dúvida, ela decidiu. E, olhando para os amigos em volta, sentiu-se acender novamente. Estava rodeada por certezas. Com um sorriso esquentando os lábios, ela enfiou a própria mão dentro da de Viper, que a olhou surpreso, mas apertou-a levemente.
- Acho que estamos pensando as mesmas coisas, centelha. – ele sussurrou discretamente em seu ouvido. não o olhou, mas seu sorriso aumentou. Agora sim ela pareceria confiante.


Havia sido, sem dúvidas, um longo caminho. Se sua mente confusa não estivesse enganada, aquela era já a terceira parada desde que acordaram. franziu a testa, pensativa. Olhou em volta e procurou por alguém que pudesse responder suas perguntas. Os Protetores estavam reunidos, preparando-se para a próxima rodada de treinos.
- Olá, Guardiã. – Cytron fez uma reverência quase cômica. A ideia de um sorriso brincou nos lábios da garota antes que ela finalmente retomasse a linha de pensamentos.
- Por que estamos parando tanto? Se seguirmos nesse ritmo, faremos mais quatro paradas antes do próximo acampamento. Entretanto, sei que poderíamos ter feito todo o percurso sem parar. Continuando assim, perderemos mais de um dia em deslocamento. O que está acontecendo?
- Pelas luas, eu achei que as crianças estavam exaustas! – Skye mexeu a cabeça em negativa. Em seguida olhou para Baelfire sugestivamente. Quando ele fingiu não entender, ela revirou os olhos. – Ela é sua. O plano é seu. Acabe logo com isso.
- Plano? – ergueu uma sobrancelha vermelha.
- Nesse ritmo atrasaremos o deslocamento em dois dias. – Bael explicou como se isso bastasse.
- Ah, não me diga! – ironizou. – E o que tem?
- O que tem? – a fênix parecia realmente exaltada. – Criança, você não sente?! Este planeta está prestes a receber a Lua Vermelha. Diminuindo nosso ritmo, chegaremos para a batalha quando a Lua Vermelha estiver reinando. Isso significa que você estará em sua maior força.
olhou-o chocada. Estava certo, mas algo não fazia sentido.
- Tudo bem, só que...
- O que foi?
- Esse ataque não foi decidido repentinamente. Foi estudado... Por que então os desgarrados o marcariam justo para a Lua Vermelha?
- Não sabiam de você. Talvez ainda não saibam. – Bael explicou.
- Certo. Então... a Lua Vermelha seria um fator de desvantagem para todos, não? Os Guerreiros e Guardiões que não são da nossa casa não conseguiriam agir de forma satisfatória sob essa Lua... Mas os desgarrados também não...
- Está certa. Mas há algo que ainda não levou em conta. Até pouco, quem era considerado o líder da equipe era . E ele seria o mais prejudicado sob essa Lua. Isso seria suficiente para desestabilizar a todos.
assentiu com a cabeça, assimilando a informação. Agora, entretanto, teriam de lidar com esse novo problema.
- Bem... Entendo seus planos, de fato. Porém...
Os sete Protetores suspiraram alto.
- Porém? – Zarafee tentou soar compreensiva, mas todos já sabiam o que se seguiria.
- Não é justo com os outros. Quero dizer... Como posso dizer que prezo por igualdade entre todos se compactuar com essa desvantagem? Vejam: se efetuarmos esse plano, estarei, realmente, mais forte, bem como meus Guerreiros. Porém – ela frisou – meus companheiros levarão a pior! Já pensaram que estar sob outra Lua afeta suas habilidades de luta, seus poderes e, pior, suas capacidades de cura? Um ferimento mais sério durante a batalha seria o suficiente para que algum Guerreiro morresse. Não podemos fazer isso, pessoal. – passou as mãos pelo cabelo, puxando-o levemente perto da raiz.
- Já debatemosss a quessstão o sssufissciente, . – Rohan informou. – Chegamosss à conclusão de que vosscê é a nossssa melhor chanssce.
- Como assim? – ela parecia atordoada. Não esperava que fosse Rohan a falar aquilo.
- Acreditamos que com seus poderes aflorados é quando estaremos mais fortes. – Leorhys tomou a palavra. – Segundo o breve levantamento que fizemos nos últimos tempos, são poucas as crianças do Fogo que se desgarraram. Claro que só podemos contar com as que deixaram a ilha e precisaríamos considerar as que podem ter sido recrutadas antes de conhecer Mirth, bem como crianças de outras qualidades, por...
- Outras qualidades? – interferiu, não estando familiar ao termo.
- Crianças que não respondem à nossa crença. – Leorhys disse como se parecesse óbvio. Como a Guardiã ainda parecia confusa, ela continuou: – Que seguem outros costumes. Cultuam outras entidades...
- Ah! E todos se juntam aos desgarrados? Pensei que eram só Guerreiros que negaram Mirth!
- Bem... O que chamamos de desgarrados são as crianças de Mirth que debandaram para os Filhos da Escuridão, como o grupo todo é chamado, claro. – Leorhys pareceu se aperceber do que estava acontecendo e sacudiu a cabeça, tentando expulsar o assunto da mente. – De qualquer forma, não é isso que é importante. O que importa é que, daqueles que receberam o dom da sua Lua, poucos foram os que nos deixaram. Dessa forma, os Filhos da Escuridão não teriam uma vantagem tão boa quanto nós temos. Por isso, , pedimos que aceite a proposta e...
- Mas não seria justo!
- Vê? É por isso que não a queríamos envolvida. – Baelfire revirou os olhos. – Se apenas acontecesse, não teríamos todo esse debate sobre justiça! – a Guardiã estava pronta para responder, mas a fênix se antecipou. – Criança! Não vê que essa é nossa única chance? Tenho certeza que, se fosse qualquer um dos seus colegas, eles entenderiam. Por que tem que ser tão difícil com você?
estreitou os olhos para o Protetor. O modo como ele falava parecia quase humilhante, como se ela fosse uma criança que ainda não conseguia entender o básico de plantio. Nem seus pais lhe haviam falado assim quando ela plantara as sementes erradas no valioso solo púrpura. Percebendo a situação que se estabelecia ali, Cytron virou-se aos demais.
- Devemos deixá-los a sós. Precisamos nos focar nos treinos dos demais.
Os seis Protetores saíram. mordia o lábio inferior com fúria, sua respiração estava pesada e ela sentia-se arder em chamas.
- ...
- Então é assim que você acha que deve se portar? Bloqueando minha mente e deixando-me às escuras quanto ao seu plano? O que está pensando, Baelfire? Pretendia algum dia me contar sobre toda essa conspiração? “Ei, lembra-se daquela batalha contra os Filhos da Escuridão? Pois é, não foi coincidência nenhuma termos chegado ao campo justamente sob a Lua Vermelha, pelo contrário, tramamos isso durante todo o caminho. Bons tempos”? Isso é tão errado, Baelfire. Foi muito sujo.
- Sujo? Sujo? – a fênix indignou-se. – Sujo é nossos inimigos nos mandarem para uma emboscada. Sujo é querer nos pegar desprevenidos e vulneráveis. O que estamos “tramando” aqui é uma forma de vencer, garota. Ou não é isso que você quer? – ele lançou um olhar acusador na direção dela. não sabia se vinham dele ou dela, mas de repente as imagens que Leorhys um dia mostrara de seus possíveis futuros brotaram em sua mente.
- Você não pode estar... – ela o olhou com fúria. Sacudiu a cabeça e virou-se, pronta para abandoná-lo ali.
Baelfire alçou voo e pousou na frente dela, impedindo-a de continuar. Abaixou a cabeça e pensou durante meio segundo. Quando voltou a encará-la, suas íris vermelhas demonstravam arrependimento.
- Eu sinto muito, . Sei que espera a vitória tanto quanto qualquer um de nós. Confio em você e sei que fará um excelente trabalho. Não quis chateá-la, mas entenda que essa será uma jogada necessária para vencermos.
- Algum dia me contaria?
- Claro, assim que a batalha acabasse. – a ruiva pôde sentir a honestidade nas palavras dele. – Entenda, não quis envolvê-la porque sei o quão duro será para você agora. Terá de lidar com a ansiedade, sabendo que todos depositam suas esperanças em você. Isso é que não é justo, . Nunca quis que se sentisse pressionada. Espero que entenda, ...
- Precisarei falar com os demais. Com os outros Guardiões, os Guerreiros e os Soldados, todos precisam estar cientes dessa decisão.
- Então você concorda?
- Não temos opção, temos, Baelfire? Já estamos atrasados, para recuperar o tempo perdido, não poderíamos parar para dormir no próximo acampamento, o que apenas serviria para cansar mais a equipe.
- Tem razão. Porém... Não acredito que deva avisar aos demais. Essa situação serviria para desanimar o grupo. Além disso, esperariam que apenas seus Guerreiros treinem a partir de então, visto que seriam eles a esperança que teriam.
- Não estaria sendo justa se fizesse isso, Baelfire. – ela começou a se afastar, desviando do Protetor no meio do caminho.
- Eu sinto muito, mas fará. – ele sussurrou para si mesmo. Em meio segundo parou, coçou a nuca como se tivesse esquecido o motivo para estar ali e virou-se, vendo Baelfire logo atrás de si.
- Ah! Aí está você, Bael! Não deveríamos ir treinar? – o sorriso dela dançava pelos lábios vermelhos. A fênix sorriu tentando não demonstrar a tristeza que sentia e confirmou com a cabeça.
- Sim, deveríamos, doce criança. Só estava esperando por você.


- Bloqueou a lembrança, Baelfire?! – Leorhys falou alto demais, fazendo o outro estender uma asa na tentativa de fazê-la calar-se. A esfinge arregalou os olhos, ainda tentando absorver a informação. – O que deu em você? Que a Lua finalmente me colha! Está insano?
- O que mais poderia fazer? Implorar para que ela se calasse? Sabe bem como é a garota. Acredite, eu sou quem está pior em toda a situação. Ela pelo menos nem sabe o que está acontecendo.
- E vai fazer o que na próxima vez que ela vier questionar o motivo de pararmos tanto? Bloquear e bloquear e bloquear? E por que veio contar a mim? Eu preferia que as Luas me transformassem num basilisco a ter que conviver com esse segredo.
- Não seja dramática, criatura! Desbloquearei antes da batalha ainda. Só em tempo o suficiente para que ela não tenha muito que fazer, além de aceitar. – ele deu de ombros.
- Baelfire, não consigo acreditar. Ela vai odiá-lo, não consegue ver?
- E o que esperava que eu fizesse, Rhys?
- Que não brincasse com a mente de dessa forma, para começar por baixo... Oh, sou muito grata por minha cabeça não estar ao seu alcance dessa forma. Só as Luas sabem o quanto você teria ceifado de mim. – a esfinge pareceu ser percorrida por um calafrio.
- Está exagerando. – o Protetor disse em tom monótono.
- Eu? E o que você...
- Com licença, atrapalho algo? – aproximou-se hesitante dos dois.
- Nunca, minha criança. – Baelfire sorriu para ela. Leorhys olhou-o desacreditada, mas apenas sacudiu a cabeça.
- O grupo já está pronto para seguir viagem.
- Ótimo! Devemos ir, então! – a fênix parecia exageradamente empolgada.
- Que há com você, Bael? – a garota riu da animação dele.
- Nada. Vamos, vamos. Coloquemo-nos em movimento. – ele falou a última parte mais alto, como uma ordem. Obedecendo-o, o grupo inteiro começou a se mover. – Muito bem. Tudo ótimo. – recitou para si mesmo, numa tentativa de manter o controle.
- Certo. Há algo de estranho com Baelfire, não acha, Leorhys? – questionou.
Leorhys apenas olhou do amigo para a Guardiã e deu de ombros, afastando-se em seguida.
- Perdão, Bael, por acaso interrompi algum tipo de discussão?
- Algo como isso, , mas não há com o que se preocupar, tudo ficará bem.
Caminharam alguns minutos em silêncio, lado a lado, até que os demais Guardiões e Protetores juntaram-se a eles novamente. A ruiva percebeu um clima estranho conforme os Protetores a encaravam, mas escolheu ignorá-lo.
- Queridos, a batalha se aproxima e há algo em que ainda não pensamos. – Skyler soltou com cautela. Ao receber olhares curiosos, continuou. – Precisamos montar uma estratégia. Não podemos lutar de maneira desorganizada. Fomos pegos desprevenidos e não temos nada preparado...
- Necessitamos de um bom estrategista. – Breeze buscou o olhar de . Quando ela correspondeu, abriu um sorriso, captando a ideia.
- Acho que conheço alguém que servirá para a missão. – com uma piscadela ela se afastou, pondo-se a procurar por um grupo específico. Não deveria ser tão difícil achá-los.
Com destreza ela conseguiu vencer a distância que os separava e infiltrou-se no meio do quarteto. Apoiou um braço no ombro de Muncie e sorriu animada.
- Olá, queridos.
- Hm. – Sunday fez após analisá-la. – A que devemos a honra?
- Pensei que me dariam o privilégio de caminhar ao lado de vocês enquanto conversamos.
- Manda, chefe. Qual o assunto? – era surpreendente o quanto Tharja parecia bem mais animada do que a loira.
- Na verdade é coisa rápida. De fato, é com você mesmo, cara, que eu queria falar. – ela cutucou o líder dos inteligentes. Quando Muncie virou um rosto interessado para ela, a garota prosseguiu. – Sabe como você é... Sei lá, o líder dos inteligentes e por isso, hm... Bom, tem de ser um ótimo estrategista?
- Sei...
- Então. O grupo conta com você para bolar a nossa estratégia de guerra. Vai ser fácil, não é? – abriu mais o sorriso, mas Muncie parou.
Talvez parar não fosse exatamente a palavra certa. Muncie travou no lugar. Seus olhos encaravam o vazio onde antes tinha estado o rosto de , que teve que voltar alguns passos para ter sua atenção novamente.
- Muncie? – chamou hesitante.
- Está brincando, ? Eu não consigo.
- Sim, consegue.
- Não consigo! Não dá. Eu sinto muito, mas...
- Muncie, você já fez isso milhares de vezes. É fácil para você. Não estava sempre fazendo na ilha?
- É claro que na ilha é fácil. Não valia qualquer coisa além de uma folga ou um prêmio. , estamos falando de uma luta de verdade! Muita coisa está em risco agora. São muitos fatores para considerar. É demais para mim. Muitas pessoas sob minha responsabilidade. Não consigo. O que me pede é impossível, inconcebível. Eu não consigo. Não posso fazer isso. Simplesmente não dá, entenda. Eu não...
Antes que ele pudesse terminar o som que se ouviu foi o estalo da mão de contra seu rosto. Os dois permaneceram encarando-se, ela ainda com a mão levantada e ele com a marca alastrando-se pela face. Ao redor, vários outros Guerreiros também olhavam, estupefatos, a cena. Tharja, como que acordando do transe causado pelo som do tapa, respirou fundo e falou com calma e determinação:
- Talvez possamos pensar na estratégia juntos. Creio que seria bastante sensato. – pontuou.
mexeu a cabeça em afirmativa, mas nada falou.
Permaneceu encarando o líder dos inteligentes. Os demais voltaram a mover-se, deixando o par chocado para trás.


Capítulo 21

Quanto mais os segundos passavam ao redor deles, mais tensão parecia se instaurar entre os dois. Os olhos de seguiam firmes nos de Muncie, que os piscava exageradamente, como se tentasse entender o que se passava. Ele finalmente inspirou com força e aquilo pareceu quebrar seu momento de reflexão.

- Eu entendo. – afirmou. Ela franziu a testa. – Essa foi uma atitude necessária. Obrigado. Realmente reagi de maneira exagerada, você fez o certo.
- Sim, eu fiz. Você estava fora de controle.
- De fato. E seu gesto deixou claro a todos que tomará as medidas que forem precisas para controlar qualquer situação, defendendo sua postura como líder da equipe. Foi inteligente, uma boa estratégia.
- Obrigada, eu acho.
- Só gostaria que não tivesse deixado uma marca no meu rosto. – ele finalmente riu e entendeu que estava tudo bem entre os dois.
Sem pressa eles voltaram a alcançar os outros líderes, juntando-se a eles na caminhada. Nenhum deles falou qualquer coisa durante os poucos minutos em que estiveram reunidos, até que Baelfire atraiu para o lado para que tivessem uma conversa privada.
- Estou orgulhoso de você. Com certeza não foi uma ação fácil, mas foi correta. E reaparecer ao lado de Muncie mostra como o grupo deve se portar. Bastante maduro da parte dos dois. – Baelfire comentava, caminhando ao lado da protegida.
- O que foi que aconteceu? Como você está, Muncie? – Sunday puxou levemente seu rosto para poder analisá-lo. – Ela o machucou? O que estava pensando, afinal?
- Ei, está tudo bem. – ele assegurou.
-Não, não está. Ela não pode simplesmente bater no seu rosto.
- Sunday... – Tharja interferiu. – Realmente não entendo você. Não queria que se provasse uma verdadeira Guardiã? Aí está. Quantas vezes você não viu os outros Guardiões tomando atitudes similares para chamar atenção de seus Guerreiros?
- Tharja tem razão, Sun. – colocou uma mão consoladora em seu ombro quando a garota tentou revidar. – Além disso, não foi uma agressão mal intencionada. Muncie estava nervoso, entrando em crise, e qualquer carinho não iria funcionar. Se ele continuasse assim, as outras crianças ficariam preocupadas. Se o líder dos inteligentes não pode nos criar uma estratégia, quem poderia então?
- E por falar nisso, podemos realmente considerar a ideia de Tharja. – Muncie retomou a palavra. – Talvez não apenas nós quatro, mas se nos reunirmos com os Guardiões, os Protetores e os estrategistas das outras casas, possamos formar uma estratégia sólida. É claro que é difícil trabalhar com tantas cabeças, mas faremos dar certo. Precisamos que dê certo.


O som das espadas batendo do lado de fora da tenda era como uma música de fundo suave. Há quanto tempo não relaxavam e tocavam boa música? Já parecia que fazia uma era. lembrou-se dos sons doces dos instrumentos que tocavam ao redor da fogueira, o fogo crepitando manso, acompanhando a melodia com sua dança envolvente. Lembrou-se da boa sensação que aquilo trazia, das faces vermelhas pelo calor, pelas risadas ou pelo néctar. Ao recordar do néctar, recordou-se também do que Viper havia falado. “Se interessar para você, pergunte a ele sobre a história do néctar”. Uma curiosidade boba brincou em sua mente enquanto ela encarava . Queria perguntar a ele.
O rapaz levantou seu olhar em direção a ela e sorriu, e aquela mudança no ambiente foi o suficiente para fazê-la lembrar de onde estava. Pelas luas, tinha assuntos mais importantes a tratar do que néctares. Focou-se no mapa a sua frente.
- O maior problema – Elba continuava sem qualquer consciência da desatenção da Guardiã – é que eles estarão com a vantagem naquele terreno. Chegaremos depois, então um ataque repentino é muito provável. E eles já conhecem muito bem a localização. Não temos como saber quais foram as mudanças que ocorreram depois da primeira batalha na cidade.
- Precisamos então armar uma formação que diminua o máximo possível nossa exposição ao perigo. – Terra expôs, jogando seus longos cabelos de volta para as costas. Eles desmoronavam sobre seus ombros toda vez que ela se inclinava sobre a mesa para analisar o mapa. – De repente com uma linha de frente amplamente destacada? – ela fez surgir sobre o mapa bonecos feitos de terra, separando parte deles numa linha bastante afastada dos demais.
- Não... É muito arriscado, o tempo que os demais levariam para chegar seria o suficiente para que a linha de frente fosse cercada. – Luster destacou enquanto enfiava uma mão por dentro da gola da camiseta amarela e coçava as próprias costas. já o tinha flagrado fazendo a mesma coisa inúmeras vezes durante a conversa e começava a supor que aquilo fosse um sinal de ansiedade.
- Uma formação em V, como pássaros fazem? – Breeze sugeriu, mas tão logo a ideia deixou sua boca, ela percebeu a falha. – Suicídio para os que estiverem na frente, claro.
- O mais sensato – Albero chamou a atenção para si, secando as mãos nas calças verdes ao notar que todos o observavam – seria uma entrada maciça.
- É uma boa ideia. – Rohan apontou. Os bonecos de Terra se reorganizaram sob seu comando, aderindo à formação proposta.
- E também fechada! – Muncie adicionou. – Usando os escudos formaremos uma parede quase impenetrável. Para isso, claro, precisaríamos que nossos escudos tocassem os das pessoas aos lados. Com todas as linhas da formação aderindo ao padrão, é muito mais difícil sermos atingidos.
- Precisamos também pensar em economizar Guerreiros. Muitos ainda não estarão no seu melhor até a chegada. – foi Aria quem lembrou. Seus olhos percorreram os demais, buscando alguma solução.
- Quando achamos que resolvemos um ponto, esbarramos em outro desafio. – Brock reclamou. – Gostaria que pudéssemos simplesmente usar nossas antigas estratégias da ilha. Funcionava lá...
- Talvez possamos. – finalmente abriu a boca. Seus olhos flamejaram na direção de Violet. – Quantos de seus Guerreiros podem fazer aquelas ilusões?
- Alguns... – Violet respondeu cautelosa.
- O suficiente? – inquiriu.
- É difícil saber. Não temos ideia do tamanho do exército que nos espera... – ao perceber a ansiedade da amiga, ela suspirou, dando-se por vencida. – Sim, talvez seja o suficiente. Não por muito tempo, no entanto. Mexer com a mente das pessoas não é fácil.
- Pensei em usarmos a mesma tática daquela vez. A formação real em volta da ilusória, apenas para dar a ideia de grandeza. Enquanto isso, caçadores se infiltrariam nos esconderijos que estivessem disponíveis e atacariam. Os demais se juntariam à primeira formação logo que se certificassem da situação como um todo.
- São muitas mentes para comandar, . Bastaria falhar com uma para garantir um ataque. Ademais, já sabemos que o dom de Violet não é segredo entre os desgarrados... – Lavender se posicionou.
- Certo, só para deixar claro, as estratégias citadas pelos Protetores, que nossos ancestrais usavam, estão todas fora de cogitação? – Amber buscou a confirmação dos demais. Todos assentiram, mas abriu a boca, surpresa com o que recebia de Baelfire.
- Isso pode dar certo. – ela o olhou, mal percebendo que falava em voz alta.
- Fale conosco, , o que é? – Viper pediu. Ela percebeu que a fênix preferia que ficasse calada, mas não se conteve.
- Baelfire lembrou-se de uma estratégia que Kiazur certa vez pensou em usar. Na época pode não ter sido acolhida, pois acreditaram que não daria certo, mas... – sorriu e seu olhar correu para Targ. – Acredito que Kiazur tenha se dedicado tanto às leituras quanto eu, percebo isso pelas memórias de Bael da mente dele. De qualquer modo, ele sugeriu imitar uma tática usada ainda na Terra, pelo exército persa. Ficaram conhecidos como “os dez mil imortais”, a tropa tinha sempre a mesma quantidade de soldados durante a batalha e, para respeitar esse número, quando algum combatente era ferido, ele era recolhido e substituído por outro que ainda não estivesse lutando. Era uma estratégia inteligente para assustar os inimigos, que tinham a impressão de que os homens daquele exército não podiam ser mortos, já que nunca parecia haver baixas.
- Pode dar certo, se queremos realmente poupar Guerreiros. – Terra ponderou. – Assim estabeleceríamos certo número para entrar em combate e os demais se preparariam, esperando sua vez.
- Talvez a substituição não precise ser imediata, também. Um dia eles podem achar que fizeram uma grande baixa, mas no dia seguinte estaríamos de pé de novo, com o mesmo número, e isso seria inesperado. – Elba sugeriu.
- É uma estratégia inteligente. E ainda podemos adaptá-la com o que já havíamos decidido. – Albero concordou.
- Certo... – Muncie soltou devagar. notou que ele parecia ansioso, como se esperasse que alguém notasse mais alguma coisa. Como ninguém parecia corresponder às suas expectativas, ele suspirou pesadamente e focou os olhos no mapa. – Há algo...
- Diga, criança. – Skyler pediu quando ele não continuou.
- Imagino que já tenham percebido, mas... Chegaremos sob a Lua Vermelha. – ele apontou.
Leorhys lançou o olhar diretamente a Baelfire, preocupada. O Protetor engoliu em seco.
- Isso significa que o Fogo terá vantagens, sobretudo .
- E também significa que o resto de nós sofrerá consequências. – Luster percebeu. Metade dos presentes levou uma mão ao rosto ao entender a situação.
- Bem... Isso pode ser bom. – apoiou um cotovelo sobre a mesa. Todos os olhares se fixaram nele. – pode tentar moldar o clima a nosso favor, tenho certeza.
- Não estou tão certa quanto a isso, . – a garota se pronunciou depois de pensar alguns segundos. – A Lua Vermelha deixará o ar mais seco. Peixes como você sufocariam sem a umidade necessária para respirar. – o tom dela era levemente provocativo, mas ela mantinha o sorriso bem escondido, apenas uma brasa nos cantos da boca. – Teremos queimadas por toda a parte. Meus Guerreiros se beneficiarão delas, é claro, e absorveremos tudo que pudermos. Entretanto, não creio que será o suficiente. A não ser que... – os olhos dela cintilaram ao notar algo no canto do mapa. – Ora, é um palpite arriscado, porém acho que meus pensamentos podem estar certos... Aqui se apontam “reservatórios” de água. – correu os dedos por pontos marcados na imagem. – No entanto, se bem me lembro, essa palavra em Ubrac não é usada no mesmo sentido de Novaterra ou Kielv, como em estruturas construídas, e sim lagoas, córregos e riachos, indicando pequenas quantidades de água. Se conseguirmos o suficiente de calor para aumentar a temperatura dessas águas, poderemos obter uma quantidade boa de vapor d’água no ar. Minha lua deixaria o céu baixo, não choverá e o vapor ficará preso no nosso nível.
- Mas quem não tem guelras sofreria. – Brock contestou.
- Faremos funcionar. – Aria assegurou confiante. Corou ao notar o olhar do Guardião para ela e prosseguiu – Nossa casa se esforçará em providenciar uma boa experiência. Se e seus Guerreiros conseguirem manejar os incêndios de forma satisfatória, o Ar ajudará os Guerreiros que estiverem em maior necessidade de uma respiração mais seca.
- Essa é, honestamente, a primeira vez que me sinto segura desde a mensagem da falsa íris. – Breeze anunciou com um sorriso aberto. – Conseguiremos, meus caros.
Guardiões, Guerreiros e Protetores entreolharam-se e, por um segundo, permitiram-se sorrir também.


Metal, madeira, couro, gelo, fogo, vento, raios, água, plantas, terra, raízes, rochas... A sonoridade que todos os elementos produziam juntos era excitante. Provocava arrepios que percorriam dos pés à cabeça. Se ela ouvia uma espada bater contra uma lâmina de gelo, seu sangue borbulhava, animado, o Fogo queimava com selvageria as suas veias. Se uma flecha atingia um escudo, pelas luas, o som macio da madeira sendo perfurada era prazeroso em demasia para ser descrito em meras palavras.
A guerra, agora ela percebia, era um sentimento. Ela a sentia por seu íntimo, como parte dela, mais presente do que a felicidade ou a apreensão. Usara esse novo sentimento para destituir o medo.
Com precisão, projetou uma parede de fogo para proteger-se do ataque de um Guerreiro da Fertilidade. Dela, já lançou uma chama que o acertou em cheio. O treino corria perfeitamente já fazia algumas horas. Todos os participantes pareciam animados.
Era inegável: a iminência de uma luta de verdade transformara o grupo e, agora que pareciam mais unidos e decididos, os treinos fluíam com leveza. bem sabia que externar seus sentimentos poderia ser um mau agouro, mas sentia que venceriam.
Quando o treino terminou, suas mãos tremiam. Foi com os dedos trêmulos que afastou o cabelo do rosto. Secou o suor com o pedaço da manga da blusa que ainda restava no braço. Estava suja, cansada, bagunçada e eufórica. Pegou, com dificuldade, um cantil e o entornou contra os lábios. Aquele néctar em nada se parecia com os da ilha, mas não deixava de ser bom. Era certo em sua boca.
- Está se saindo muito bem, para uma Guardiã pouco treinada. – Muncie provocou-a. Ela riu e bateu de leve no peito do amigo.
- Diga uma calúnia dessas para e ele lhe dará a surra que você tanto procura, caríssimo. – jogou o cantil na direção dele, que quase o deixou cair, mas o recuperou poucos centímetros acima do chão.
- Eu não ousaria. – ele bebeu um gole do néctar. – Estou orgulhoso de você, . Ninguém poderia imaginar, há ainda pouco tempo, que você se tornaria tudo isso. Quase sinto ciúmes. Faz a gente imaginar se, se tivéssemos nos empenhado um pouquinho mais, não estaríamos no mesmo lugar que você.
- Você sabe que infelizmente não é assim que são as coisas, Muncie. Mas tenho certeza de que as luas souberam escolher bem o destino de cada um de seus filhos.
- Quem é você e o que fez com ? – inquiriu risonho. Ela revirou os olhos e alongou os braços acima da cabeça com um sorriso contido.
- Está muito gracioso hoje.
- E por que não haveria de estar? O treino foi um sucesso, nossa estratégia está se encaixando no grupo, cada vez mais Guerreiros voltam a sentirem-se dispostos... Às vezes sinto que era isso que nos faltava.
- De fato. Entretanto... Percebi que não tem descansado. – Muncie revirou os olhos com a observação. – Não, não se aborreça. Estou preocupada com vocês. No próximo acampamento, quero que os quatro líderes passem a noite na enfermaria.
- Não vejo necessidade. – os dois caminharam juntos em direção à fogueira onde a comida estava sendo feita.
- Pois eu vejo! Precisam de uma boa noite de descanso. Não aceitarei negativas, Muncie. – segurou o punho de sua espada na bainha.
- Então também terá de passar a próxima noite lá.
- Passarei quando souber que todos os Guerreiros e Soldados já estão recuperados. – afirmou.
- Você é insuportável. – ele riu.
- Aprendi com os Guardiões. – ela lhe ofereceu um sorriso cúmplice, fazendo rir mais uma vez.
- Seu namorado ficaria chateado. – Muncie advertiu. o olhou com curiosidade.
- Meu... – ela pareceu entender e seu rosto se aliviou em mais um sorriso. – Ah, quer dizer ? Duvido, ele concordaria. – quando já estavam prestes a parar na fila para a comida, ela tomou fôlego. – Sabe, é estranho estar entre eles. Ter conhecimento de tudo o que eles passaram, entender que eles se sentem do mesmo jeito que eu... Mas eu não me sinto diferente dos Guerreiros, mesmo assim. Não sou diferente da de Lores ou da Guerreira. Eu não mudei, certo?
- Certo. E esse é o problema. – quando ela o olhou franzindo a testa, ele sorriu complacente. – A maioria esperava que se tornasse uma Guardiã no exato momento em que recebeu o amuleto novo. Mas acho que você é verdadeira demais consigo mesma para se submeter a isso. – ele pegou uma tigela e esperou que o Guerreiro encarregado servisse a comida. fez o mesmo. – Não estou dizendo que isso é ruim. Acho ótimo. Você sempre foi... Perfeita. – deu de ombros.
- Obrigada, Muncie. Você é sempre muito gentil.
- Tenho que bajular a chefe. – gracejou.


Exausta. Com dores. Desconfortável. Sequer conseguia manter os olhos abertos. Ainda assim, mantinha-se de pé, ao lado da entrada da tenda da enfermaria, registrando os Guerreiros e Soldados que lá passariam a noite. Viu Elba finalmente se render ao descanso. Muncie e Tharja também foram obrigados a juntar-se ao grupo. só entrou depois que concordaram em deixá-lo ficar com seus pertences. Ninguém o faria descuidar-se de sua espada. Olhando para dentro, deu falta de alguém. Respirando fundo ao ter certeza de que uma das camas permanecia desocupada, buscou a cabeça loura pelo acampamento.
Sunday observava um grupo de pralas que passavam tranquilamente entre as tendas quando a encontrou. A Guardiã aproximou-se e sentou-se ao lado dela.
- São umas criaturas adoráveis. – comentou.
Um dos animais chegou perto das duas e abocanhou algumas flores que cresciam no meio da grama. Olhou-as com curiosidade e, não percebendo qualquer ameaça no par, meteu a cabeça entre as panturrilhas das duas para comer mais algumas das plantas. sorriu e afagou o pelo do pralas bem atrás da orelha, fazendo-o sacudir a cabeça euforicamente. Já fazia alguns minutos e ela não acreditava que Sunday falaria qualquer coisa, então tentou buscar algo mais para falar.
- Lembro quando você saiu da floresta sendo perseguida por um. Assustou a todos nós. Na época nunca nos passou pela cabeça que poderia ser Baelfire. – Sunday finalmente soltou enquanto deixava o animal cheirar e, em sequência, lamber sua mão.
- Na época nunca achei que Baelfire poderia assustar alguém.
- Claro que não. Ainda hoje deve achá-lo inofensivo. Essa é a vantagem que têm os Guardiões, não enxergam os Protetores como os demais. – a loira argumentou.
- Como assim?
Sunday soltou uma risada breve e desacreditada e então sacudiu a cabeça.
- Esse é o único ponto que distingue você dos demais Guerreiros. – comentou. – Para nós todos os Protetores são figuras de verdadeiro poder. Não parece, para mim, que eu poderia ser amiga de um deles, mas sim que devo obedecer a eles. Mesmo quando Baelfire está na forma mais “fofa” que você pode imaginar, ele continua tendo uma presença... Sóbria, talvez. Séria. Não sei. Continua impondo seu poder, entende?
pensou por alguns segundos. Entendia, mas não era aquilo que queria dizer à outra.
- Sinto sua falta. – quando viu que ela buscava uma resposta, mexeu a cabeça em negativa. – Ouvi o que falou de mim, ainda lá na ilha. – notou quando Sunday arregalou os olhos e mais uma vez tomou fôlego para responder, mas cortou-a antes disso. – Não. Escuta. Você precisa me escutar. Talvez eu realmente seja explosiva, impulsiva, e admito que sequer possa ser comparada aos outros Guardiões. E por dias ter ouvido o que falaram me machucou demais. Porque sempre soube que era verdade. Entretanto, confio nas luas. E sei que também confiam, pois aqui seguem. E se todos acreditamos nas decisões delas, devemos crer também que não é um acaso que eu esteja aqui, nessa posição. Não é algo temporário. Não vai surgir amanhã alguém reclamando o meu posto. Sabemos que não é assim que funciona. Porém entendo o que os deixa inseguros. O problema, para vocês, é que não mudei o suficiente. Não me tornei . E, perdoe-me, Sunday, jamais me transformarei nele. Porque hoje entendo que os seis Guardiões tiveram anos de treino e moldes para tornarem-se quem são hoje: confiantes, decididos, seguros. E tiveram quem os ajudasse a esculpir esse caráter. Eu, por outro lado, assim que descobri meu verdadeiro amuleto, recebi daqueles de quem esperava apoio apenas olhares estranhos, confusos, assustados. Percebi desde o início que você e não se sentiram confortáveis com a revelação, porém tentei me enganar, fingi não notar e quase acreditei na minha própria farsa. Mas tudo se desmanchou naquele dia, porque doeu tanto ouvir o que falaram pelas minhas costas. Só que... – brincou com o pé na grama enquanto coçava o rosto com uma mão, buscando as palavras. – Tudo bem. Entendo vocês. Também não me mostrei segura do que fazia. Só espero que a partir de agora sinta-se bem em confiar em mim novamente, Sun, porque finalmente penso que sei o que estou fazendo. Sinto que estou na posição certa. Admito que ainda não sou uma Guardiã exemplar, nunca deixarei de seguir meus impulsos, porque tenho o Fogo correndo dentro de mim, muito mais rápido do que em qualquer outro momento de minha vida. E sinto-me, finalmente, pertencendo a algum lugar. Então, por favor, pode tentar confiar em mim? Prometo que me esforçarei para não decepcioná-la.
- , eu... Sinto-me extremamente envergonhada. Se falei o que falei aquele dia, foi simplesmente porque... – ela abaixou a cabeça e mexeu-a em negativa. – Isso é muito feio de admitir. Acho que foi porque eu tinha inveja. Não posso negar, você realmente não parecia treinada o suficiente para a posição de Guardiã e esse era um fator para aumentar a minha insegurança. Mas acho que a inveja falava ainda mais alto. Porque não parecia justo que uma recém-chegada tivesse esse privilégio. Mas é claro que percebi tudo pelo que passou desde então, tendo de provar para si mesmo e para os outros que as luas estavam certas... Tentei duvidar ainda de cada atitude sua, porém entendi todas. Além disso, sei que se tem uma coisa que merece de mim, de e de todos, é respeito. Não por ser uma Guardiã. Qualquer um pode ser Guardião, olhe para e entenderá. – ela conseguiu arrancar uma risada da ruiva. – E sim porque se esforçou para conquistar o seu lugar aqui. Sinto muito que tenha ouvido palavras tão cruéis de quem só lhe devia apoio incondicional. Sinto muito que essas palavras tenham sido minhas. E sinto muito por não confiar em você, mesmo quando confiar era a escolha mais fácil. A partir de agora não falharei mais com você.
deixou que o sorriso fosse lentamente queimando seus lábios, saboreando-o. Apertou levemente a mão de Sunday, que repousava entre as duas e expirou com força, satisfeita.
- De verdade? – ouviu a outra soltar um som de concordância. – Então preciso que me faça um favor.
- Claro. Diga.
- Mexa esse saco de ossos e carne que você chama de corpo até a enfermaria e vá repousar. Preciso de todos os meus líderes nas melhores condições para nossa batalha.
Sunday riu ao ouvir o pedido. Tomou impulso para levantar, mas, antes de fazê-lo, passou os braços em volta de e a apertou contra si. Em seguida ergueu-se e obedeceu à Guardiã. Quando olhou por cima do ombro, ela ainda estava sorrindo.


Em breve o exército de Mirth chegaria ao quarto acampamento montado pelos aliados à sua espera. Os dias de caminhada tinham valido à pena, a maioria constatava, ao ver como o grupo parecia tão unido. A melhora nas relações era gritante e o desempenho durante os treinos evoluíra como jamais imaginaram que poderia acontecer.
A marcha, em si, era cansativa. A exaustão caía em peso, principalmente sobre aqueles que ainda não haviam passado pelas enfermarias. As dores, a fadiga e as noites mal dormidas cobravam seu preço. Porém o grupo seguia firme. Avançava com ferocidade. E sentia a luta correr pelas veias.
A excitação da batalha iminente dominava aquelas crianças que pouco sabiam sobre guerra, vida ou morte. Que jamais haviam passado por uma cidade devastada, por um campo estraçalhado. Que só conheciam a beleza da destruição pela natureza, calma e pacífica. Pura.
Os Soldados bem sabiam daquela realidade e, embora não falassem em voz alta, perguntavam-se como se certificar de que todos aqueles jovens estavam preparados para o que encontrariam. Ou pior: para o que fariam.
Um arrepio percorreu a espinha de Kyle ao lembrar-se de suas primeiras batalhas.
No entanto, lembrar não era o mais horroroso. Imaginar, sim, era. Sua mente criava cenas de sua irmã, sua adorada irmãzinha, cometendo as mesmas atrocidades que tivera de cometer. Sofrendo o mesmo que ele sofrera. Olhou-a de longe. Em alguns dias ela mudaria. E jamais tornaria a ser a pequena a quem abandonou enquanto dormia.
Nunca mais seria a garotinha que vivia agarrada num vulp de pelúcia.
Nenhuma daquelas crianças permaneceria igual.
- Está preocupado. – Rex apontou.
Kyle desviou o olhar do rosto da irmã e o transferiu para o colega. Rex havia sido seu primeiro amigo naquela tropa. Os dois haviam chegado ao grupo no mesmo dia. A noite em que Kyle abandonou a família havia sido a mesma noite que Rex deixara tudo para trás. Naquele tempo ele era um garoto mirrado, trêmulo e apavorado. Gaguejava toda vez que um Soldado mais antigo se aproximava dele, suava frio se tinha que responder a alguma pergunta. Ele também tinha mudado.
- Não deveria? – encarou-o com dureza.
Rex havia deixado aquele garoto, seja lá qual fosse o nome que tinha antes de se juntar à tropa, para trás. Sufocou-o entre seus novos músculos, rasgou-o com sua rigidez e afugentou-o com sua coragem. Kyle não se lembrava de quando exatamente aquilo tinha acontecido.
- Eles se sairão bem, Kyle. Confie. Afinal, as luas os escolheram por algum motivo. – deu de ombros, analisando os Guerreiros em volta. – A maioria é mais velha que nós quando começamos a entrar em batalhas.
- Esse não é o problema. – foi inconsciente, mas seu olhar buscou novamente .
- O problema é a sua irmã? – Rex acompanhou a direção que ele mirava. – Cara. Ela está melhor do que a gente podia imaginar, não é? Quer dizer, semanas atrás você ainda acreditava que ela era uma Guerreira que nunca havia treinado, agora ela é...
- Uma Guardiã que nunca treinou? – Kyle ergueu as sobrancelhas. Rex riu.
- Não. Uma Guardiã, de fato, mas você não pode dizer que é destreinada. Sua irmã pode chutar a bunda de todos os Filhos da Escuridão que nasceram treinando, você sabe. Fora que... Ela está cercada pelos grandes. A fênix está sempre rondando e... Bom, caso você não tenha percebido, ela tem ainda mais um “protetor”. – ao receber o olhar curioso do amigo, Rex sacudiu a cabeça, rindo em descrença. – Qual é, Kyle. Aquele Guardião ali morreria antes de deixar que alguém ferisse sua irmã. Somando você, Baelfire e ele, sua irmãzinha tem um time de guarda-costas excelente para entrar em campo.
- Entrar em campo nunca foi o problema, e você sabe, Rex. Ninguém precisa de proteção ou ajuda para entrar em uma batalha. Sair é a questão. Sair inteiro. Sair como entrou. Sair e viver a vida depois de tudo o que passou.
- Kyle... – Rex apertou de leve o ombro do amigo. – Não é porque é sua irmã mais nova que ela precise ser tão... Frágil. Ela é forte. Ela é o Fogo. – ele sorriu e Kyle reparou que quando ele sorria a cicatriz que cortava seus lábios de cima a baixo se destacava.
Doeu em Kyle lembrar que nem sempre Rex teve aquela cicatriz.


- Pelas luas! – Breeze largou alto demais, apoiando as mãos nos joelhos quando finalmente encontraram o guarda que deveria conduzi-los ao quarto acampamento. Suas roupas estavam empapadas de suor e ela tinha certeza de que se demorassem mais outra hora cairia de cansaço.
- O acampamento não está distante, Guardiã. – o guarda informou, fazendo um sinal para que o seguissem. Entendendo a exaustão do grupo, guiou-os no ritmo deles, deixando-os diminuir o ritmo da marcha.
Ao chegarem ao acampamento, metade do grupo sentou-se onde podiam: troncos velhos caídos, pedras, bancos ou mesmo no chão duro. Não havia espaço para grandes exigências. acomodou a cabeça no ombro de e estava quase cochilando ali mesmo quando ouviu a conversa ao seu lado.
- Por que ainda está com isso no pescoço? – Zarafee questionava Amber. abriu um pouco os olhos e notou que ela olhava em volta e mexia a cabeça em negativa. – Por que todos ainda estão?
- Como assim? São nossos amuletos, Zara. – Amber replicou.
- Mas não devem estar pendurados em seus pescoços, minha criança. Seus amuletos serão as primeiras coisas que seus inimigos tentaram arrancar de vocês, se forem espertos. Porque são eles que os ajudam a dominar seus poderes.
- Zarafee está certa. – Cytron entrou na conversa. – Devem dificultar ao máximo que os tomem.
- Como? Se os deixarmos, perderemos o controle de nossos dons. – Viper argumentou.
- Não os deixarão. Farão como os antigos e os prenderão nos pulsos. Para protegê-los, enrolem pedaços de suas camisetas ou qualquer pano nos pulsos. – Baelfire instruiu. foi a primeira a rasgar duas tiras da própria blusa, mas a fênix segurou sua mão antes que ela pudesse enrolá-la. – Também seria inteligente que não usassem necessariamente as cores de suas casas, tanto nos punhos como durante as batalhas.
- Exato. Não há necessidade de ajudar os inimigos a identificarem suas procedências tão facilmente. – Skyler concordou. – É melhor que estejam com cores diferentes de suas casas, pois seus inimigos tentarão derrotá-los de acordo com as maiores fraquezas delas. Quanto mais os confundirem de início, melhor.
olhou para os pedaços da camiseta que tinha nas mãos e ofereceu um pedaço a Violet e outro a . Recebeu em troca um pedaço da camiseta azul do Guardião e um de Viper, que fez questão de ajudá-la a amarrá-los de modo a esconder os dois amuletos que ela tinha, bem como as pulseiras que definiam suas divisões no Fogo.
Aquela era uma cena capaz de alegrar qualquer habitante de Mirth: todas as suas crianças trocando faixas de tecidos, antigos rivais oferecendo os panos coloridos para reafirmar a paz entre as diferentes casas.
- Finalmente amadurecemos. – constatou enquanto passava um braço ao redor dos ombros de . Ela concordou com a cabeça.
- As luas estão sorrindo. – ela apontou para o céu, onde as sete luas se mostravam próximas, todas presas na mesma fase em que pareciam sorrisos perdidos no meio da noite.


O sol mal tinha terminado de se esconder quando os Guardiões começaram a se recolher. Finalmente era chegada sua vez de utilizarem as instalações da enfermaria. puxou pela mão e guiou-a até um dos pequenos quartos em que o local era dividido. Ali dentro havia duas camas, que ele fez questão de juntar. Deitaram-se e ela já quase dormia dentro de seu abraço quando se lembrou de algo.
- Ei, ? – chamou baixinho, sem saber se ele continuava acordado. Ouviu-o soltar qualquer som para indicar que estava consciente. – Eu... O que é a história do néctar? – seu tom tinha uma curiosidade quase infantil que fez sorrir. Se ela conseguisse ver seu rosto naquele momento, perceberia que estava corado.
- Você tem falado muito com Viper, não é? – questionou enquanto a apertava mais entre os braços.
- Vai me contar?
- A história do néctar... – pensou por alguns instantes. – Certo... Lembra quando aquela ninfa contou que o néctar serve de ingresso à sua lua no pós-morte? – ele a viu mexer a cabeça em concordância. – Significa que se eu beber o néctar de água, serei bem-vindo na minha lua no futuro, bem como Breeze será na lua dela se beber o néctar de ar.
- Essa parte eu entendi. – ela informou com graça.
- Acalme-se. Lembra-se, também, de que não éramos os melhores amigos, no início?
- ... – já ficava impaciente, percebendo que ele parecia prolongar a história.
- Tudo bem, ok. Só que eu sempre, hm... Sempre me senti da mesma forma em relação a você. Quer dizer, meus sentimentos nunca foram diferentes do que são agora, entende? – , com o rosto escondido no peito dele, sorriu abertamente. – Então em algum momento eu meio que entendi que nós nunca poderíamos ficar juntos, porque não dava, a minha presença te causava incômodo e a sua presença me causava... Pelas luas, eu nem sei descrever esses sentimentos. Bom, pelo menos não poderíamos ficar juntos aqui, nessa vida. Foi quando me lembrei dos néctares e... Eu precisava provar para a Lua Vermelha que eu era alguém que valia à pena para a filha dela, não é? Logo, roubei a primeira garrafa de néctar de fogo da reserva das ninfas. O gosto, para quem não é da sua lua, é horrível. Mas eu a bebi inteira. E outra. E várias outras depois. Porque eu precisava ter a chance de te encontrar de novo, um dia, pra poder criar algo ao seu lado. Viper descobriu o que eu fiz, me viu bebendo uma dessas garrafas que eu roubava. O fiz prometer que não contaria para os demais. Acho que me esqueci de mencionar seu nome no pedido... – a Guardiã, devagar, afastou o rosto do peitoral dele e o encarou.
- E se eu não o quisesse no pós-morte? Nunca pensou sobre isso?
- Pensei. Mas a ideia de te ver pelo resto da eternidade foi excelente. Não me importaria que você me rejeitasse todos os dias. Além disso, um dia você entenderia o que fiz por você e talvez começasse a me considerar como pelo menos um amigo. – ele tinha o antigo sorriso gotejando no canto dos lábios.
- Ah, claro. Ou talvez ficasse com medo de você. Eu poderia começar a odiá-lo então.
- Significa que você não me odeia, ainda. – ele apontou. Ela revirou os olhos.
- Só às vezes. – piscou um olho, sorriu e inclinou-se sobre seu rosto, beijando com delicadeza os lábios dele. – Mas então você apenas tomou atitudes precipitadas, não foi? Porque cá estamos nós.
- Eu não diria isso. Não me arrependo. E, depois de passar essa vida inteira do seu lado, ainda vou poder gastar a eternidade te incomodando. Você nunca vai se livrar de mim, nem quando estiver tão velha a ponto de não lembrar quem é.
Ao ouvi-lo, lembrou-se de uma das visões que Leorhys lhe havia mostrado sobre seu futuro. Lembrou-se dela mesma, já idosa, usando seus poderes pela última vez, e de seu chamado. Com um sorriso queimando seus lábios, ela entendeu o que aquilo queria dizer e olhou-o com ternura.
- Você é o meu “querido”. – disse com satisfação. olhou-a curioso.
- O quê? – ele era incapaz de não imitar o sorriso largo que ela exibia.
- Uma vez Leorhys me mostrou uma visão e... – pensou melhor e mexeu a cabeça em negativa. – Deixemos o futuro para o futuro. Ainda temos uma guerra pela frente.
- Tudo vai dar certo, . E, então, teremos todo um futuro pela frente. – afirmou.
se permitiu sorrir com a promessa. Confiava em e o futuro que Rhys lhe mostrara deixava que ela acreditasse que tudo sairia bem. Porém ela acabou recordando as palavras que a esfinge lhe dissera sobre aquela visão. “Essa é você, , após uma estadia tranquila em Mirth. Nenhuma luta aconteceu e você cumpriu com todos os seus deveres durante sua vida útil. Como recompensa, pôde ir para a casa e ter uma vida tranquila. Essa será a última vez que usará seus poderes”, ela dissera. “Nenhuma luta aconteceu”, o trecho ecoou por sua mente. Então, cenas de outros futuros voltaram.
Ela suspirou e viu seus olhos serem tomados pela dor.
- O que houve?
- Eu não estou pronta para perder, . – confessou.


Capítulo 22

Finalmente chegar à cidade que pedira ajuda teve um impacto mais forte do que qualquer um podia ter suposto. Com o alerta de uma guerra por vir, não imaginavam que talvez uma batalha já tivesse ocorrido no local. O grupo caminhou por um campo parcialmente destruído. Restos de armas e escudos jaziam ao chão compondo o cenário de devastação junto aos corpos. Corpos tão imóveis que não chegaram a assustar os jovens. Aquilo tudo poderia ser apenas mais uma simulação. Alguém retirou uma espada do meio daquela confusão. Por vezes eles pisavam em poças escuras, fazendo respingar um líquido avermelhado. O odor de ferrugem, carne queimada e deterioração impregnavam o ar e trazia um gosto estranho à boca. O ar estava quente e pesado. A terra ao redor estava revirada como se Brock tivesse treinado com sua casa ali. O som de algo afiado cortando o ar foi o único a ser ouvido. Um garoto da Luz caiu ao chão, uma flecha ensanguentando seu peito. Outras flechas voaram contra o exército. projetou seu escudo a tempo de evitar um ataque. Ao seu lado, os cabelos loiros de Sunday começaram a se tingir de ruivo conforme ela atingia o chão. Os olhos da líder se arregalaram enquanto a vida se esvaía de seu corpo.
mordeu o lábio inferior e o Fogo fez borbulhar seu sangue, evaporando as lágrimas que queimavam seus olhos e tomando-a em fúria. Ela arrancou a flecha da têmpora de Sunday e lançou-a de volta ao inimigo. Ouviu, ao longe, o som de alguém caindo.
Sem pensar muito, a Guardiã puxou seu arco e começou a atirar flechas na direção do ataque. Seu exército a imitou, disparando contra os inimigos. Aos poucos passaram a se aproximar deles. já não respondia por si, então sequer percebia como toda a estratégia estudada nos dias anteriores ia se desmantelando conforme avançavam. Ela tinha apenas uma coisa em sua mente: a imagem de Sunday caindo ao seu lado. A necessidade de vingar a morte da líder a tomava em conjunto com o Fogo.
Era óbvio que , como qualquer um dos líderes, se sentia ultrajado com a morte de Sunday. Entretanto, olhando atirar flechas, ele notava que ela se encontrava ainda pior. Em seus olhos não havia rastros de chateação ou pesar, apenas fúria. Estava transtornada. E atirava flechas contra os inimigos como se a ação fosse instintiva. Ele mesmo arrumou melhor o dispositivo que trazia na mão. Aquele anel parecia pesar em responsabilidade. Achou que nunca chegaria o dia em que o usaria. Puxou da bainha a espada e buscou Tharja com o olhar. A caçadora disparava sua besta com rapidez e habilidade invejáveis. Muncie, por sua vez, olhava ao redor, mexia a cabeça em negação e parecia ansioso. Nada seguia como o planejado e isso o desestabilizava, já sabia. Aproximou-se do amigo, a espada erguida em posição de defesa.
- Muncie! Sei que as coisas não estão... – ele defendeu com sua espada o líder de uma flecha. – Não estão como você planejou, mas precisa reagir... – percebendo que não adiantava, puxou o rosto do amigo e o fez encarar . – Faça por ela. – e puxando de volta o rosto dele em sua direção, ele fixou o olhar no fundo dos olhos de Muncie. – Faça por todos nós. Perder Sunday é o suficiente por essa guerra. Se mais um de nós se for... Não será apenas que perderá o controle.
Como que tomando um choque de realidade, Muncie reagiu. Puxou a própria espada da bainha e mexeu levemente a cabeça de cima para baixo.
- Precisamos confiar em nós mesmos, não é? – questionou ao amigo. soltou qualquer som de concordância.
- Precisamos confiar em Mirth. – ele disse antes de desferir um golpe contra o primeiro inimigo que chegou perto o suficiente do exército. Sua espada entrou pelo lado esquerdo do pescoço do homem a sua frente, cortando uma parte do lóbulo da orelha dele, e saiu pelo lado direito, rente à espalda. A cabeça de olhos arregalados do oponente caiu a seus pés. foi percorrido, pela primeira vez em sua vida, por um calafrio.
Muncie, ao seu lado, batia espadas com uma garota morena. Suas narinas se dilatavam mais a cada vez que o líder conseguia prever e evitar seus golpes.
Percebendo que o amigo permanecia encarando, hipnotizado, a cabeça decepada, Muncie bloqueou a garota com uma parede de chamas por tempo o suficiente para chutá-la para longe de como uma bola.
- E-eu nunca... – gaguejou. – Não de verdade...
Muncie, ao voltar ao duelo, respirou fundo e, com força e precisão, empurrou sua espada contra o punho da garota, que berrou de dor e desespero ao ver a própria mão cair ao chão, ainda envolvendo a espada.
- Lute. – Muncie pediu ao companheiro. Numa tentativa de ajudar, ergueu o braço que usava para empunhar a espada.
O outro sacudiu a cabeça como que para afastar os pensamentos ruins e apertou os dedos em volta da empunhadura de sua lâmina. Sentindo um inimigo vindo contra suas costas, ele ativou o dispositivo em volta do dedo médio da mão esquerda. Espinhos vermelhos saltaram, aparentemente de sua pele, e se enfiaram no torso do rapaz que tentara atacá-lo. Funcionava bem, ele constatou.
Notou o olhar de Tharja sobre si e encarou-a de volta. Ela sorria com ternura. Uma ternura completamente deslocada no meio da batalha. permitiu que seus lábios se curvassem levemente para cima, mas pensou que o sorriso parecia forçado e quase rude. Não se importou porque sabia que, de qualquer modo, o que fizera os dentes brancos de Tharja se emoldurarem entre os lábios rosados não era exatamente ele, mas sua arma, até então inédita.
pensou, enquanto desferia golpes contra os oponentes que agora chegavam aos montes, se Tharja não se sentia estranha por fazer brotar, em meio àquela selvageria, seus melhores sentimentos. Por um segundo tentou fazer o mesmo, trouxe a imagem de uma linda garota de cabelos curtos da cor da areia molhada para sua mente, porém ela logo se transformou na garota loira e radiante sendo assassinada diante de seus olhos e o amor que tentara sentir se esvaneceu com a mesma rapidez com que a raiva o assolou. Sunday estava morta, ele lembrou, e de nada adiantava buscar a memória de alguém que amava se ele não pudesse, um dia, regressar a essa pessoa também.
O exército rival parecia ser infinito. Quanto mais pessoas chegavam de encontro às crianças de Mirth, mais oponentes pareciam brotar à distância. Viper já estava suando e a espada em sua mão direita tremia.
Não poderia estar acontecendo.
Não ali.
Não depois de tanto tempo.
O Guardião olhou em volta, percebendo que ninguém tinha tempo para se importar com que ele estivesse fazendo naquele momento. Apenas a visão do amontoado de gente o exauria. A massa disforme da qual ele fazia parte tornava o calor e o abafamento típicos da Lua Vermelha ainda mais insuportáveis. Sentiu que algo o apertava em torno do pescoço, sufocando-o. Quando tocou a própria pele, entretanto, nada sentiu. Era apenas uma impressão, tentou se acalmar com o pensamento, uma lembrança.
Lembranças, no entanto, não deveriam ser capazes de asfixiá-lo daquela forma. Não poderiam ser tão físicas a ponto de sugá-lo assim. Respirando o mais fundo que podia, Viper tentou lembrar-se. Estava tendo um ataque de pânico, sabia. A sensação de estrangulamento vinha da primeira vez que tomou consciência do que significava ser um Guardião. O que se enrolava em torno de seu pescoço e o impedia de respirar não era uma corda, ou mãos, ou um pedaço de cipó. Era o cordão de seu amuleto. Ele puxou o ar com dificuldade. O amuleto estava em seu pulso agora, e não poderia sufocá-lo. Quem puxava o cordão era um garoto de Sivos, grande e odioso. Queria saber se Viper servia para o posto. Fora ele, Daran, quem apelidara assim o pequeno e franzino Crawler. Porque, desde aquela época, o projeto de Guardião tinha a mania de revidar com palavras venenosas qualquer insulto que recebesse. E porque era “um desgraçado escorregadio”, também, nas palavras do valentão. Porém Viper jamais reagira com agressividade a qualquer insulto ou maltrato. Até aquele dia.
E Viper lembrou que o problema nunca foi a sensação de ser estrangulado por Daran, e sim o que veio depois. A sensação de estrangulá-lo de volta. De invocar os cipós das árvores próximas e forçá-los a se enrolarem contra o pescoço do outro garoto. De apertá-lo até que seus dedos largassem o cordão dele. Até que seu rosto estivesse muito vermelho e seus olhos saltando das órbitas. Até que seu corpo se agitasse em espasmos. Sufocá-lo até que o fizessem parar.
A sensação de... Viper finalmente conseguiu recuperar a respiração e não pensou na palavra seguinte. Sabia que precisava encarar seus medos agora. Porque se o oponente não fosse ferido, seus amigos é que seriam. E ele não permitiria. Pensou em puxar da bainha a urumi, mas notou que usar a arma com tantos aliados em volta era perigoso demais, então levantou sua espada.
- Tudo bem por aqui, Viper? – Terra questionou, erguendo com rapidez um trecho do solo e conseguindo acertar um oponente no queixo, levantando-o no ar e, ao abaixar o mesmo trecho, deixando-o estatelar-se no chão.
- Ótimo. – replicou sem empolgação. Afastou uma garota que tentava atacá-lo. – Com tanta gente amontoada fica difícil agirmos com tudo o que temos. É muito arriscado. – olhou-a rapidamente, esperando que ela entendesse o recado. Terra mexeu a cabeça em concordância e abriu um sorriso breve.
- Vou passar o recado para Breeze. Aposto que ela vai cuidar de repassá-lo. – usando as movimentações do solo a seu favor, Terra afastou-se. Era uma das poucas crianças de Mirth familiar com a crueldade da guerra, quase como se estar ali fosse natural.
Era tanto que, na ilha, sentia-se quase incomodada, deslocada no meio da paz. De fato sentia-se culpada por desfrutar da calmaria daquele território quando sabia que seus pais e irmãos ainda esforçavam-se para sobreviver a ataques diários em sua antiga cidade. Se é que ainda sobreviviam, a esse ponto. Terra tentava não pensar naquilo enquanto ouvia o som do metal contra metal. Era como uma antiga canção de ninar, ela lembrava. Afinal, desde bebê era aquele o ruído que a acompanhava ao ir para a cama. E quando cresceu, aprendeu a produzir a mesma melodia. Era natural. Não assustava que fosse a melhor estrategista de sua casa, já que conhecia melhor do que qualquer outro sobre batalhas. Lutara em inúmeras antes de ser coletada para Mirth.
Seus reflexos eram treinados para rebater os golpes que agora recebia. Foi reagindo pelo reflexo que chegou em segurança a Breeze, que a ouviu com atenção e mordeu os lábios quando compreendeu suas palavras.
- Posso tentar fazer com que se espacem, mas nunca produzi tantos mensageiros ao mesmo tempo... – ela soou preocupada.
- Precisamos disso, Bree. Do contrário, seremos espremidos por esses sem-lua.
Os mensageiros do vento de Breeze percorreram o campo sussurrando ordens aos ouvidos das crianças de Mirth. Não era fácil criar espaço com a quantidade absurda de inimigos que chegava, claro, porém esforçavam-se para abrir a formação.
Brock foi o primeiro a conseguir algum efeito: tão logo criou espaço entre si e seus aliados, passou a mover o solo, o abrindo e fechando, prendendo oponentes em suas armadilhas. Ele evitava olhar para as consequências. Precisava evitar, se quisesse manter a sanidade.
Logo o campo de batalha começou a ceder às vontades dos filhos das luas. Viper por fim pôde puxar a espada símbolo de sua casa e a fez dançar ao seu redor. Era tão flexível que mais parecia um chicote, mas tão afiada que qualquer um que se arriscava a aproximar-se do rapaz era fatiado.
Kyle secou o suor da testa com a confiança de quem já havia participado de inúmeras batalhas. Quando uma lâmina desceu perto demais de seu estômago ele sequer se moveu, porque a adaga de Rex de repente estava lá para salvá-lo. Como de costume. Rex torceu o punho, prendendo a espada nas duas lâminas extras de sua arma e quebrando-a com destreza. Kyle enfiou a própria espada contra o corpo do garoto que tentou atingi-lo. Ele se dobrou sobre o ferimento enquanto o Soldado retirava rapidamente a lâmina. Rex fez menção de finalizá-lo, mas Kyle depositou a mão esquerda sobre seu ombro direito e mexeu a cabeça em negativa.
- Deixe-o. Essa batalha não precisa ser vencida apenas com mortes. – Rex olhou-o curioso, mas concordou e juntos avançaram pelo campo.
Já avançavam para dentro da cidade e Amber se escondia dentro de uma das casas abandonadas. Fazia muito calor e ela estava exausta. A espada pesava, mas, mais do que isso, seu machado de guerra já estava acabando com seus músculos. Com certeza não estava acostumada a carregá-lo por tantas horas. Seus braços estavam fervendo e ela se sentou com as costas contra a parede, escorando-se ali e esperando que as pedras ajudassem a resfriar seu corpo. Mal percebeu quando passos rápidos invadiram aquele lugar.
Quando finalmente abriu os olhos, já erguendo a espada, notou Harela ali. A garota levou o dedo indicador aos lábios, pedindo silêncio enquanto encostava o próprio corpo à parede. Fez um gesto para que Amber se recompusesse. A Guardiã obedeceu sem hesitar. A Guerreira da Fertilidade seguiu gesticulando. Haviam a visto entrando ali. Precisava ter mais cuidado. Ela jogou uma garrafa para a loira. Quando Amber provou, descobriu que era água. Tomou metade do conteúdo de uma só vez. Passou a garrafa de volta para a dona.
Enquanto Harela guardava a garrafa de volta no cós da calça, cinco desgarrados invadiram a casa. Amber bateu seu machado de guerra no chão e suas lâminas se abriram, mas não foi isso que impediu os cinco de atacarem. O que os paralisou foi o conjunto de raios que passou por dentro da casa e os envolveu no mesmo instante. Harela observou em silêncio enquanto os inimigos tremiam com a corrente elétrica passando por seus corpos. Quando finalmente Amber os soltou, eles caíram desacordados.
- Eles estão...? – Harela começou. Amber sacudiu a cabeça.
- Não... Não sei. – seus dedos trabalharam para desgrudar os fios de cabelo grudados no rosto. – Não quero descobrir. Vamos.
A Lua Vermelha já começava a se expor no céu quando Aeno lançou uma lâmina de ar contra mais um garoto. Ele tentou não olhar para a perna decepada. Mas não olhar não era a mesma coisa que não pensar, e Aeno pensava muito. E criava imagens em sua cabeça. Começava a se perguntar o motivo dessa nova mania. Na ilha isso não acontecia. Se feria um colega, ele se preocupava e buscava ter a certeza de que ele seria levado com urgência até a enfermaria. Mas agora, toda vez que cortava um inimigo a sensação era boa. E a imagem dos ferimentos lhe causava alguma coisa. Alguma coisa boa. Uma sensação muito satisfatória o preenchia. E ele se focava tanto nisso que mal percebeu quando os adversários bateram em retirada. A escuridão já tomava a cidade.
- Aeno! Está ferido. – Lurion constatou ao erguer uma esfera luminosa em sua direção. – Venha! Vamos te fazer uns curativos. – ela tentou conduzi-lo gentilmente.
- O que aconteceu? Por que Aeno não se move? – Aria questionou.
- Não sei. Acho que está em choque. – Lurion constatou ao aproximar a esfera do rosto do rapaz. Juntas elas o conduziram com dificuldade até o acampamento.
Carregaram-no até a enfermaria, onde várias macas se estendiam pelo chão. Enquanto entravam na tenda, esbarrou neles. Ela tinha um olhar vazio e sequer se despediu conforme saía do lugar.
Com pressa ela voltou ao campo de batalha, assim como muitos outros. Procurou entre o solo remexido. Não precisou de muito tempo para achar um garoto ferido. Passou um braço em volta do seu corpo e o levantou. Não parecia que ela estava levantando mais peso do que uma folha enquanto o carregava de volta a enfermaria. Assim que o soltou sobre uma das macas voltou ao campo de batalha, de onde tirou mais um ferido.
acompanhava preocupado enquanto ela entrava e saía da enfermaria, sempre carregando mais alguma pessoa. Nem sempre eram as crianças de Mirth que ela trazia nos braços, mas isso não parecia ser sua maior preocupação. Ela trazia aliados e inimigos sem mudar sua feição distante e decidida.
- O que ela está fazendo? – Sean ergueu uma sobrancelha, curioso. Tinha uma bandagem branca aberta entre as duas mãos, pronta para se estender sobre um braço, mas parada no meio do caminho. – Alguém precisa avisar de que temos recursos limitados. Não podemos nos dar o luxo de gastar com...
- Deixe-a. – Baelfire colocou uma pata sobre seu ombro, forçando-o a focar-se em seu paciente. Assim que voltou a fazer o curativo no garoto deitado a sua frente, ele prosseguiu. – Entendo o que se passa na mente de . Ela precisa disso. E tenho certeza de que Mirth fará questão de manter a dignidade de qualquer sujeito, independente de sua procedência.
Sean inclinou a cabeça, incomodado com a afirmação, mas aceitou-a sem dizer muito mais. Assim que terminou de apertar a bandagem em torno do braço do rapaz, depositou um de seus colegas de casa a sua frente e deitou uma garota desconhecida na maca logo ao seu lado.
Seu amigo tinha um corte na coxa, enquanto a desgarrada estava desmaiada e perdia muito sangue pelo ferimento no estômago. Sean alternou o olhar entre os dois. O garoto era bastante capaz de manter a pressão na coxa, mas ela...
- Ah! Que as luas me recompensem! Espero que vocês estejam me observando aí de cima. – ele falava pra o teto da tenda. – Volga, mantenha o ferimento pressionado. – pediu para o companheiro. Entregou para ele um pedaço de bandagem e virou-se para a garota. Com cuidado limpou seu ferimento e tratou de fechá-lo. Enquanto isso ia instruindo Volga a tratar do próprio ferimento.
Já era o meio da madrugada quando voltou pela última vez do campo de batalha, dessa vez de mãos vazias. Sentou-se perto da fogueira, onde já se reuniam outros Guerreiros e Soldados para comer. Encontrou lugar aos pés de Breeze e contra as pernas dela recostou-se. Sentiu os dedos delicados da amiga penetrarem a confusão de seus cabelos num afago gentil.
- Por quê...? – Suri a encarou, incapaz de terminar a pergunta. voltou o olhar cansado a ela. – Quer dizer... Um deles pode ter... Sunday...
correu os olhos por todos os rostos curiosos que se voltaram a ela, esperando por sua resposta. Viu compreensão e dúvidas. Olhou para o fogo ardendo logo em frente e viu-se refletida ali, exausta. Brincou com as pontas dos dedos no pedaço de pano em volta do próprio pulso.
- Eu acredito que... – parou. Sua voz parecia estranha, frágil. Limpou a garganta e tentou mais uma vez, mais alto. – Eu acredito que nossas desavenças acabam quando as últimas espadas param de brigar. Se desejamos estar do lado certo da briga, não devemos nos igualar a nossos inimigos. No final da batalha um ferido é um ferido, não importa se ele usa um medalhão ou uma lâmina com o nosso sangue. – vendo que nenhuma feição mudou, ela repensou. – Eu vou dizer uma coisa: se fosse eu jogada ali – ela apontou na direção do campo de batalha – e meus parceiros me deixassem para trás, sangrando, pra morrer, eu gostaria sim que meus inimigos me recolhessem e me ajudassem. E não faço isso pensando que vai mudar a percepção deles sobre nós. Não espero que se aliem a nós. Não espero que desistam de lutar ao lado dos desgarrados assim que se recuperarem. Porém sei que deixaremos nossa marca neles. Aqueles em quem enfiamos espadas sequer se recordarão de nossas faces quando o dia amanhecer. Mas sei que esses que socorremos nos terão incrustados em suas memórias. Jamais esquecerão nossas faces e o que fizemos por eles. Se estiverem agradecidos, nos lembrarão em um final de tarde, olhando a própria família mais uma vez. E se nos odiarem, a memória de nossos rostos os assombrará num pesadelo, no meio da madrugada. – abaixou o olhar para as próprias mãos. Respirou fundo. – Fiz isso porque é o certo. Fiz isso porque é a minha crença.
Ela evitou olhar, porque sabia que encontraria mágoa nos olhos de Suri, então apenas deu de ombros e permaneceu quieta. Sua mente calculava modos de escapar daquela situação sem parecer que estava fugindo. Entretanto, certamente não contava com o que realmente aconteceu.
- Hm... Precisamos da próxima equipe de voluntários para a enfermaria. – ouviu Sean dizer em algum ponto atrás dela. Notou que alguns rostos se ergueram para encará-lo. Era claro que ninguém estaria disposto a ser o primeiro a se oferecer. Ainda nem tinham se alimentado.
- Eu vou. – declarou.
- ? Não, eu acho que não. Eu vi você entrando e saindo de lá há pouco. Não parecia em condições de... Você sequer estava presente. – o Guerreiro protestou.
- Você me vê agora, Sean? Porque eu estou aqui. Estou em condições.
- Eu acho que você não entendeu... Trabalhou a noite toda resgatando crianças do campo. Não pode passar o resto dela...
- Não estou perguntando o que eu posso ou não fazer, Sean. – ficou de pé e finalmente o encarou. – Estou dizendo que vou. É um trabalho voluntário, então creio que caiba apenas a mim, decidir se devo ou não realizá-lo, correto?
Sean respirou fundo. Mexeu a cabeça para cima e para baixo.
- Se é o que deseja.
Ela caminhou em sua direção. Ouviu outros se erguendo de seus assentos.
Quando estava perto o suficiente, Sean segurou-a pelo ombro.
- Você não tem que... – ele falou baixo.
- Não. Eu preciso, Sean. Tudo o que fiz naquele campo... – a Guardiã sussurrou. Os olhos dele estudaram-na com atenção e ele desfez a pressão que a segurava.
- Certo. – e então falou mais alto, para que os outros escutassem. – Sei que ainda não puderam comer, então terão uma refeição na enfermaria, junto com os enfermos. Tratem de encher essas barrigas se querem ter energia pelo resto da noite.
e a equipe voluntária se encaminharam para a enfermaria, mas ela foi parada pela grande ave de fogo que pousou a sua frente.
- !
- Eu já vou, certo? Preciso resolver um assunto! – ela informou a Boulder, que seguia perto dela. Quando ele se afastou com os demais, a Guardiã lançou um olhar furioso ao Protetor.
- , precisamos conversar. Por quanto...
- Precisamos, Baelfire? E quantas vezes vamos ter essa conversa? Até que eu finalmente diga o que você quer e então você não vai mais ter que bloquear a minha memória? Baelfire, você tem noção do que fez? Tem ideia do quão repugnante foi o seu... – ela mexia excessivamente as mãos enquanto falava, fagulhas dançando em torno delas. – Você me violou. De todos que poderiam ter esse poder sobre mim... Leorhys, Violet... Você era quem eu menos esperava que realmente... Eu sequer tenho palavras pra dizer como isso me enoja.
- , seja razoável...
- Razoável? Você quer que eu... – soltou uma risada incrédula. Sua mão esquerda esfregou seu rosto com impaciência. – Você só pode estar brincando. Pelas sete luas, Baelfire! Eu confiei em você e você invadiu o meu lugar mais íntimo e trancou uma parte da minha vida para que eu não entregasse esse seu plano estúpido? – ele tomou fôlego para replicar, mas ela apontou um dedo acusatório em sua direção. – Não, não, não! Eu não terminei ainda! Sim, seu plano é estúpido. Ou parece para você que ele está sendo efetivo? Porque eu tenho dezenas de crianças na enfermaria que poderiam dizer o contrário para você. Eu tenho dezenas de crianças que estão... Pelas luas, Baelfire. Sunday está morta. Sunday! – secou uma lágrima antes mesmo que ela caísse e, recuperando o fôlego, sua voz saiu agressiva em seguida. – E você quer me dizer que esse é um plano inteligente? Matar seis em cada sete Guerreiros porque a lua supostamente está a meu favor?
- Entendo que esteja magoada, . Foi injusto da minha parte brincar com a sua mente assim e prometo que isso jamais se repetirá...
- É claro que não se repetirá, Baelfire. Porque eu nunca mais vou deixar você ter esse tipo de poder sobre mim. Você não tem mais o direito de me invadir, de se sobrepor à minha mente e à minha vontade. Você vai falar aqui – ela apontou para a própria têmpora – quando eu quiser ouvir, do contrário estará falando sozinho. E você sabe por que eu sei que isso vai funcionar? Porque estamos sob a Lua Vermelha, Baelfire, e eu consigo o que eu quiser dela.
- , eu realmente sinto muito. Criança, eu falo sério. Foi uma atitude egoísta, mas ao menos... Pode imaginar o que teria acontecido se tivéssemos mantido o ritmo ideal? Se chegássemos dois, três dias antes? Por dias eles estiveram esperando a nossa chegada, criança. Nossa demora os pegou cansados. Imagine se tivéssemos vindo antes? Com nossos inimigos nos esperando em plena capacidade? Não teríamos chances.
- Não sou boba, Baelfire. Por favor, não me trate como se eu fosse. Dois dias mais cedo e nossos Guerreiros ainda teriam alguma capacidade de cura... – esfregou o rosto com as duas mãos, as fagulhas estalando ao seu redor. – É o seguinte: não discutiremos mais esse assunto. Não até voltarmos para a ilha. Não posso me dar o privilégio de ter a cabeça preocupada com qualquer coisa além de ganhar essa batalha. Eu ouvirei seus conselhos, desde que realmente sejam conselhos e não ordens ou tentativas de conversa. Ignorarei que essa situação toda um dia fez parte de um plano seu e aceitarei tudo como uma grande coincidência. Sim, Baelfire, isso envolve não contar sua brilhante estratégia para os outros. A não ser que alguém venha me perguntar algo. Não mentirei para ninguém, me entendeu?
- Sim.
- Temos um acordo, então?
- , apenas me escute...
- Temos um acordo, Baelfire? – ela foi firme. O Protetor inspirou profundamente.
- O que você quiser, criança.
- Ótimo. – e, sem mais, seguiu na direção da enfermaria.
Entrou na formação à entrada da tenda e escutou atentamente as instruções que já eram passadas.
- Cada um de vocês será responsável por um setor da enfermaria. Logo mais será servida uma refeição, já que não comeram ainda. Os primeiros a serem servidos serão os Guerreiros e Soldados feridos, logo em seguida vocês e, se sobrar qualquer coisa, os inimigos. Entendido?
O grupo concordou e começou a tomar posição entre os leitos. As refeições foram distribuídas entre os enfermos e, logo mais, entre os voluntários. Quando um garoto entregou um prato a , ela o entregou à inimiga mais próxima dela. Ele fez que não viu e entregou um segundo prato, que ela repassou a outro inimigo ferido. Quando ele entregou o terceiro e ela repetiu a ação, ele bateu as mãos nas coxas e encarou-a firmemente.
- , essa comida é para você!
- Sim, eu sei. – ela deu de ombros. O rapaz olhou-a inquisidor. – É para mim e eu a estou oferecendo a quem precisa mais do que eu, pois sei que se a aceitar talvez não sobre para o restante. Entretanto, se eu repassá-la, sempre haverá mais um prato, pois não me deixarão passar fome. Então, se eu tiver que dar várias vezes meu prato para cada um aqui, eu farei isso.
O silêncio recaiu sobre a enfermaria. Os voluntários ainda olhavam atônitos para quando os primeiros começaram a passar seus pratos para os enfermos inimigos. As crianças responsáveis por servir os alimentos trocaram olhares entre si, mas se deram por vencidas e trataram de entregar a comida para todos igualmente.
- Obrigada. – sequer teria ouvido o sussurro, não fosse pela mão gelada que tocava a sua. A garota deitada ali, logo ao seu lado, estava pálida e tremia. Seus olhos pretos sequer conseguiam ficar abertos por muito tempo, embora isso não dificultasse a percepção de que eles já não tinham mais brilho.
A Guardiã rapidamente tomou a cabeça da garota em seus braços e aproximou uma tigela com sopa de seus lábios, forçando o líquido para dentro. Ela engoliu com dificuldade e a lembrança de um sorriso forçou os músculos de seu rosto.
- Bom. – ela sussurrou. Entreabriu novamente a boca e entendeu o sinal, entornando mais uma vez a tigela. Com cuidado ela ia direcionando calor ao corpo da rival, tentando mantê-la aquecida o suficiente.

A noite ainda nem se fora quando saiu da tenda. Endireitou sua postura ao ver que boa parte dos colegas já estava de pé, mas a verdade era que estava exausta.
- Ei, Guardiã! Como está se sentindo hoje? – o rosto sorridente de Rex surgiu perto demais do dela, fazendo-a saltar para trás enquanto sua mão esquerda puxava uma adaga da bainha. Poderia tê-lo ferido, se ele mesmo não a tivesse segurado pelo pulso. – Ei, calma. Desculpe, foi bobagem minha surpreendê-la assim. Eu só queria...
- Não me surpreendeu. – seus olhos se estreitaram enquanto ela soava levemente ofendida.
- Não, claro que não... Quis dizer... – Rex entortou um pouco o rosto. Notou que ainda segurava o punho dela. Lentamente soltou-a e esfregou o local, como que para limpar alguma sujeira que ele tivesse deixado ali. – É tão cedo e você... Hm... Na verdade eu apenas vim lhe entregar... – ele estendeu na direção dela o prato que carregava. – Imaginei que talvez estivesse com fome. – quando olhou desconfiada para ele, Rex tentou abrir mais o sorriso nervoso. – Eu sou Rex.
Kyle o observava de longe e riu. Ali estava um eco do antigo Rex. O Rex de antes de tudo aquilo. Estava tremendo e sua postura diante de sua irmã estava curvada, diminuída frente àquela autoridade. E ali estava uma que ele desconhecia. Notava o cansaço em seus olhos, notava como seus músculos pareciam fazer força para não desmoronarem. Ela era durona. Era forte. Ele a viu pegar o prato que Rex oferecia. E viu quando finalmente a lembrança de sua irmãzinha surgiu no rosto daquela mulher quando ela, ao enfiar a comida na boca, ficou sabendo que Rex o considerava um grande amigo. Ele leu aquelas palavras na boca rasgada dele. A irmã deixou um sorriso sincero aparecer e, instantaneamente, buscou-o com o olhar. Piscou um olho para ela e por fim se aproximou, desculpando-se pela inconveniência do amigo.
- Por que estão todos de pé tão cedo? – finalmente indagou.
- Ah, ninguém falou com você ainda? Um dos garotos que você resgatou ontem, dos desgarrados, disse que deveríamos estar posicionados antes do alvorecer, do contrário os sem lua é que nos pegariam de surpresa, maninha. – Rex informou. Ao perceber o olhar estranho de sobre ele, seus lábios se abriram num sorriso. – Eu posso te chamar de maninha, não é?
- Rex, eu não acho que você tenha tanta intimidade com... – Kyle começou.
- Tudo bem. – ela riu. – Pode me chamar do que você achar melhor. - pareceu lembrar-se de algo importante e o sorriso deu espaço à feição séria. – Estão confiando neles? Isso é novidade.
- Enquanto você esteve lá dentro, os que estavam melhores de saúde ajudaram em muitas coisas aqui pelo acampamento. É claro que não podemos confiar cegamente neles, mas tomaremos essa informação como verdadeira. – Kyle deu de ombros. – Conversei com alguns deles, deixamos claro que não são nossos prisioneiros e que estão livres para ir embora e se unirem novamente ao seu exército. Eles disseram que, embora não os estejamos segurando, já não serão bem vindos de volta em sua terra. Não entendi muito bem. Mas parece que teremos sua ajuda por aqui.
mexeu a cabeça em concordância. Terminou de engolir a comida que Rex lhe dera e afastou-se deles, tomou posição onde mais cedo estivera ardendo a fogueira e, inclinando ligeiramente a cabeça, fez voarem pelo ar entre os companheiros pequenas aves de fogo que obtiveram o exato efeito que ela desejava: chamar a atenção para si. De modo sucinto ela deu ordens para que os que ainda podiam lutar se preparassem, enquanto os demais deveriam ficar e guardar o acampamento. Quando terminou, Suri vinha em sua direção.
- Temos um problema. – informou, os olhos arregalados.
- O que foi? – olhou em volta, procurando a fonte. Suri estendeu o pulso em frente ao seu rosto. – O que é? – afastou o braço da colega, analisando-o brevemente. Tinha cortes em processo de cicatrização e a pulseira dos hábeis. Mas parecia diferente.
- A pulseira... – a Guardiã a estudou melhor. Deu de ombros.
- Parabéns. Sunday deve estar orgulhosa em saber que será bem substituída.
- Eu não posso ser uma líder. – Suri sussurrou a palavra como se alguém pudesse se ofender ao ouvi-la. A ruiva coçou a testa enquanto olhava em volta, notando que os demais já se preparavam para a batalha.
- Bom, então eu acho que sabe como eu me sinto. – tentou sorrir com simpatia. – Mas é isso que nós do Fogo fazemos, não é, Suri? Nós nos adaptamos, nós não questionamos as luas, nós aceitamos. Se te consola, posso te dizer que a mesma lua que te escolheu como líder me escolheu como Guardiã. Então ou estamos as duas no posto certo, ou estamos as duas erradas. E, acredite, dessa vez tenho quase certeza de que estamos no lugar certo. – colocou uma mão sobre o ombro de Suri. – Você era quem melhor conhecia Sunday, não é verdade? Tenho certeza que ela sabia que você seria a próxima. Não coloque mais fogo nessa sua cabeça, você se sairá bem.
Suri alternou o olhar entre ela e a pulseira. rasgou um pedaço da blusa amarela que usava e o amarrou no pulso da colega, tapando aquela lembrança de responsabilidade.
- Diga-me, Suri. Você acredita que eu seja a pessoa certa para ser a Guardiã de nossa casa?
- Sim. – ela respondeu sem hesitar.
- Então você não tem do que duvidar. – Suri assentiu ainda incerta. Sabia que o que falava tinha sentido, mas ainda era esquisito.
Sunday era quem deveria estar ali.
O exército deixou o acampamento em silêncio.
Na linha de frente, Terra mantinha os ouvidos atentos. Viper e Violet investigavam a reação das plantas ao redor, buscando qualquer sinal de um desequilíbrio que pudesse ser provocado pelos inimigos. e seus Guerreiros tentavam manipular o ambiente a favor do grupo. As queimadas que ocorriam perto de onde estavam eram rapidamente sugadas por eles, e algumas crianças já seguravam o máximo de poder que poderiam suportar. Aqueles com maior controle direcionavam o fogo para os reservatórios de água mais próximos, fazendo a água evaporar.
Breeze e as crianças de sua casa forçavam o vapor d’água a circular entre o exército, refrescando-o com correntes geladas e aliviando o clima típico da Lua Vermelha. Aquela preparação deveria ser o suficiente até o fim da manhã. Depois disso os esforços deveriam ser ainda maiores.
Caminhavam pelo meio das casas, apenas ouvindo o som de suas passadas macias e seus equipamentos se movendo junto com seus corpos. Porém, aqueles que estavam mais a frente pararam, congelados apesar do clima quente, ao ouvir o que parecia um sussurro. Não estava claro se havia sido real ou apenas a imaginação atiçada àquela hora da madrugada, depois de tantas histórias do mundo dos mortos contadas durante a noite ao redor da fogueira. Entretanto, para Terra havia sido bastante claro. O sussurro viera de alguma daquelas casas que até então julgavam abandonadas. “São eles” uma voz masculina havia murmurado de dentro de algum daqueles conjuntos de paredes. Terra ergueu uma mão, sinalizando que os demais deveriam parar. O medo se espalhou. Os mais sensatos empunharam as espadas.
Lavender ouvia o martelar dos corações em torno dela em uníssono. Desesperados, rápidos, apavorados. E, como se a situação já não fosse suficientemente amedrontadora, ela escutou todos os corações pararem quando o som quase mudo de dezenas de portas se abrindo percorreu o território.


Capítulo 23

Targ nunca achou que aquele seria um som que, alguma vez, viria a ser responsável por gelar sua alma. Porém, o arrastar suave de inúmeras portas, lhe causou algo que não poderia explicar. Mas ele estava pronto. Ergueu sua espada, preparado para proteger aquelas crianças.
Da porta mais próxima deles saiu um homem grisalho. Portava uma espada na mão direita e com a esquerda agarrou um escudo. Numa janela da mesma casa se empoleirava uma criança. O menininho ofereceu para o lado de fora uma bandeja cheia do que parecia um pão quentinho e grãos apetitosos. De outra casa uma mulher saía com cantis repletos de água. Das outras portas outros homens e mulheres saíam, alguns com grandes sacolas, outros portando armas, alguns com suas famílias, outros totalmente sozinhos. O primeiro homem parou em frente a Terra e embainhou a espada, largou o escudo, demonstrando respeito. Ele disse que seu povo queria ajudá-los. Que algumas famílias estavam de partida. Que alguns iriam se voluntariar no acampamento, cuidariam dos feridos. Que os demais iriam lutar. Que as casas seriam abandonadas. Que serviriam de abrigo. Terra olhou para os Guardiões. Eles não podiam aceitar. Ao mesmo tempo, precisavam.
Eles pareciam decididos, então o exército concordou. Pegaram a comida e a água que eles ofereciam e entraram nas casas conforme elas eram abandonadas.
Rex pegou um cantil e o abriu. Cheirou o conteúdo e sorveu um pouco do líquido. Mexeu a cabeça em afirmativa. Pegou uma fatia do pão e o cheirou também. Provou uma pequena mordida e deu de ombros, botando todo o resto do pedaço dentro da boca em seguida. Sabhona, uma de suas grandes parceiras de luta, lhe lançou um olhar repreensivo.
- O que? – ele falou ainda com a boca cheia.
- Um dia você ainda morrerá envenenado, teuil. – ela mexeu a cabeça em negativa. Rex revirou os olhos. Odiava quando ela o chamava daquele modo. Teuil, de onde Sabhona vinha, era algo semelhante a “vira-lata”, termo que, na verdade, se aplicava bem a Rex, não só pela grande mistura de povos que o acabou gerando, mas pela sua própria personalidade depois de se voluntariar com os Soldados.
- Só se for por você. – ele deu um peteleco em sua orelha.
- É possível... – Sabhona deu de ombros. – Não vai entrar? – indicou as casas.
- Achei que você já soubesse. Eu não me escondo. – Rex sorriu confiante.
- Ah, mas você vai. – Viper puxou o Soldado pela gola da camiseta até que ele estivesse oculto por uma das casas. – Logo mais amanhecerá e ninguém ficará de fora. Quando aqueles sem lua chegarem, nós os surpreenderemos, e não será você quem estragará tudo.
Elba, perto dali, cobriu a boca com uma mão para conter uma risada. Logo, entretanto, seu sorriso sumiu e deu lugar à expressão atenta. Ela podia ouvir um exército se aproximar junto ao alvorecer. Olhou para cima, para as árvores mais altas. Entre as folhagens identificou Tharja, que estendia discretamente uma mão fechada para os companheiros.
Esperava o momento perfeito. Tharja trocou um olhar rápido com , que também mantinha uma mão fechada e, assim como ela e mais alguns arqueiros dos caçadores, havia escalado uma das árvores para ter melhor visão da aproximação do exército inimigo. As duas voltaram a olhar para a frente e pareceram trocar pensamentos, pois, numa sincronia invejável, abriram as mãos e fizeram o gesto que indicava o ataque.
Ao mesmo tempo seis flechas se transformaram em seis pássaros de fogo em pleno ar. As majestosas aves percorreram o céu em direção aos inimigos, deixando para trás as nuvens que talvez tivessem sido coloridas por aquela visão, ou talvez apenas pelo amanhecer. Ainda sincronizadas, as aves se estilhaçaram em centenas de flechas de fogo que caíram rápidas contra o exército. Sob a influência da Lua Vermelha o fogo não se acovardava frente a qualquer proteção e perfurava escudos, armaduras, peles, carnes e ossos com facilidade.
sinalizou o número dois e gesticulou novamente para o ataque. Dessa vez, quando as seis fênix se desfizeram em flechas, o fogo permaneceu queimando, ignorando os gritos de desespero e tentativas de apagá-lo. Era o fogo perpétuo. Quando o terceiro sinal foi dado, agora para o longo alcance, apenas três aves alçaram voo. A de , no centro, era a maior. Enquanto seus colegas pareciam perder forças, ela ganhava mais. Sentia a cada segundo as luas se encaminhando para o alinhamento perfeito e o fogo martelava em seus tímpanos, corria por seu corpo e a queimava prazerosamente. As aves se desmancharam pela última vez, agora onde se concentrava a maior parte dos soldados inimigos. olhou para Tharja, buscando aprovação para mais uma tentativa. Encontrou-a fraca, entretanto, mexia a cabeça em afirmativa. Suas mãos trêmulas ergueram o arco mais uma vez e de seu dedo indicador uma fagulha brilhava obediente, pronta para ser disparada. A Guardiã mexeu a cabeça de um lado para o outro, impedindo-a. Lançou mais uma vez uma flecha. Uma grande fênix deu o sinal para o início dos ataques dos demais. Indicou a cintura para Tharja, exatamente onde a líder levava um cantil cheio de néctar. Encarou-a até que ela tivesse bebido o suficiente, depois olhou para as outras árvores em que os arqueiros haviam se posicionado. Alguns terminavam de entornar seus cantis, outros já desciam das árvores parecendo revigorados.
Dale foi o primeiro dos arqueiros a chegar ao chão, então não chegou a ver a cena que assustou aqueles que permaneciam atacando dos telhados das casas e topos das árvores. Lá na frente, das primeiras casas e árvores, um grupo de soldados saía dos esconderijos e começava a atacar os inimigos. Tharja e foram as primeiras a notar que eles não tinham a menor chance. Logo foram engolidos pela massa inimiga. A Guardiã enfiou uma adaga na casca macia da árvore e, com a ajuda dela, deslizou pelo tronco até atingir o chão. Sacou a lâmina de lá e limpou-a no tecido de sua blusa enquanto procurava alguém que lhe explicasse o que estava acontecendo. Sabhona descia de um telhado próximo a ela e foi o alvo de sua irritação.
- O que estão fazendo?
- São wicachites. – ela respondeu como se fosse óbvio, mas também soava desagradada. seguiu encarando-a, dando a entender que a explicação fora insuficiente. – São voluntários... – ela parou, procurando a palavra apropriada. Sabhona vinha de uma aldeia onde o idioma comum aos sete povos era um conhecimento destinado a poucos. Ela mesma começou a aprendê-lo só depois de se juntar aos Soldados. – Voluntários suicidas! Sua crença abraça a morte tão fortemente que eles não a temem. Acreditam que morrer em batalha é uma honra.
- Ontem eles não fizeram isso. – olhou-a desconfiada.
- Ontem estavam todos sãos. – Sabhona sorriu, sua voz continha um humor peculiar. Ela tinha que falar mais alto por causa da gritaria que se instaurou conforme os ataques a distância aumentavam. a puxou para trás de uma parede quando uma flecha passou perto demais delas. – Não os entenda mal. Eles lutarão e seguirão nossas estratégias, como qualquer Soldado. Se arriscarão da mesma forma que todos nós. Mas os wicachites, em geral, preferem ser deixados para morrer no campo de batalha, quando o dia termina. Quando você os levou de volta a enfermaria muitos deles perderam partes de seus corpos. Mãos... Daerk... – ela apontou para baixo.
- Pernas. – ajudou. Sabhona mexeu a cabeça em concordância.
- Agora se sentem... Bahous. – não tinha qualquer conhecimento da língua da garota, mas o jeito como ela pronunciou a palavra lhe deu a noção que queria passar. Vazios. Inúteis. Sem valor ou sentido.
- Eu entendo, mas... Quando a batalha de hoje acabar, não pretendo perguntar a cada um que eu for ajudar qual é sua preferência. São todos Guerreiros e Soldados que tinham a capacidade de se recuperar, visto que hoje estão de pé. E estão lutando conosco, independente de sua crença. E Mirth precisa do máximo de pessoas lutando por ela, nesse momento.
- Guardiã, não me entenda mal. Não estou criticando suas decisões. Inclusive acho que fez certo. Wicachites são oponentes perigosos quando se sentem... Bahous... – ela repetiu a expressão, por falta de uma melhor. – Porque, quando um povo abraça a morte... Ele não tem mais medo de nada. – Sabhona olhou na direção dos wicachites. Suspirou profundamente. Sentiria falta daqueles suicidas. Deu de ombros – um costume que vinha copiando de Kyle e Rex. – Não é mais nosso problema. A Guardiã deve ir. Tem uma batalha para liderar agora. – levou a mão esquerda ao peito de , num ato típico de sua aldeia para desejar boa sorte. Não esperou que a outra retribuísse e pulou através da janela da casa mais próxima.
Dale já estava longe dali e também não viu aquela cena. Não faria diferença alguma, porque ele nunca soube que alguns Soldados eram wicachites, e nem que alguns wicachites haviam cometido um suicídio honroso. Na verdade, Dale nem sabia o que eram wicachites, então ele realmente não se preocupava com aquilo. Entretanto, Dale se preocupava com a onda de inimigos que se aproximava da linha de frente. Eram muitos. E, quando passou a analisar a situação, percebeu que aquela linha de frente era uma linha suicida – também. Só que, de novo, ele não sabia dos wicachites.
Dale ergueu a espada. Estava tão cansado. A arma parecia pesar tanto.
Ignorou.
Seus olhos pareciam secos, arenosos.
Piscou três vezes.
Concentrou-se no fogo ao seu redor. Se mantivesse a concentração, poderia escutar seu crepitar por cima do barulho da guerra. Ou podia ser que a guerra crepitasse daquela forma, também. Tentou canalizar um pouco da energia dançante das chamas ali perto para si. Sentiu-as queimando dentro de suas veias. Era gostoso. Estava pronto. Ouviu algo ao seu lado, porém sequer teve tempo de decifrar o que Terra gritava, os inimigos haviam se aproximado demais.
Enquanto ele erguia a espada e atacava o primeiro deles, Dale entendeu que era exatamente isso que ela havia dito. Que os inimigos estavam ali. Ordem para atacar. Ele enfiou a ponta da espada na barriga de uma garota. Com a lâmina ainda gotejando, cortou a pele de um garoto. Seus golpes eram automáticos e ele tentava não pensar no que fazia. Anos de treino em Mirth jamais teriam sido o suficiente para prepará-lo para aquilo. Cortar a carne humana como se fosse insignificante, ignorando o sofrimento que causava era algo que nunca imaginara fazer. Seu estômago embrulhou quando viu o olho de alguém saltar para fora da órbita, preso na ponta de uma lâmina. Àquela altura, ele mal sabia se aquele era um aliado ou oponente. Tirou um momento para olhar em volta, buscando algum rosto conhecido no emaranhado de gente que lutava em volta. Foi exatamente aí que ele sentiu a dor.
Olhou para baixo e percebeu sua camiseta laranja rapidamente se tingir em vermelho. Era sangue, ele tinha quase certeza. Ou então estava alucinando, porque teve certeza que viu algo pulsar prensado contra sua camisa. Bom, talvez estivesse mesmo alucinando devido à perda de sangue. Segurou o ferimento com a mão e pensou que talvez fosse uma boa hora para descansar um pouco. Se tivesse muita sorte, conseguiria chegar até uma das casas ali perto e ela estaria vazia, então ele poderia fechar os olhos. Afinal, estava tão cansado. E a espada parecia pesar tanto.

O calor era demais, talvez. Suor brotava da testa de e pingava de seus cabelos, encharcava sua blusa e escorria por sua pele. O esforço que fazia era excessivo e parecia que a qualquer momento iria explodir com toda a energia que a circundava. Era óbvio que não gostava do que estava prestes a fazer, porém não lhe sobravam escolhas. A Guardiã deixou-se cair sobre os joelhos e, quase soluçando, sua mente gritou um nome. “Baelfire”.
A fênix surgiu sem deixá-la esperar um segundo sequer.
- O que há, criança?
- Dói. - ela disse simplesmente, as mãos na cabeça e a espada caída ao lado do joelho esquerdo. Baelfire suspirou.
- Erga-se. Está numa batalha, não há tempo para isso. - ele enfiou o bico por baixo de um dos seus cotovelos, tentando motivá-la.
- Dói, Baelfire. - ela enfatizou. Uma lágrima ameaçou cair de seus olhos, mas a fênix não permitiu. Uma lança voou na direção deles, mas parou dois centímetros distante dos cabelos da ruiva e ficou presa por algumas frações de segundos no escudo quase invisível que ela projetara, até que caiu ao chão.
- ! É claro que dói. Continuará doendo se você não deixar a energia fluir. Está represando toda força do Fogo dentro de si, sem motivo algum. Olhe em volta. - a fênix mandou. Hesitante, ela o fez. Viu a batalha acontecendo ao seu redor e as sete luas no céu, muito próximas. - Sua lua é a que mais se beneficia com as guerras. Cada vez que uma espada bate contra outra, a Lua Vermelha vibra de excitação e te alimenta com mais energia. , você não tem porque prender isso dentro de você. Libere tudo o que te é dado, com certeza retornará para você mais tarde.
- Como? - ela tremia.
- Apenas relaxe. Lembre-se que a cada segundo que essas crianças liberam suas energias nessa guerra, elas se voltam para você. E você tem o dever de canalizar todo esse poder e jogá-lo de volta para onde pertence, para a sua Lua. Ela vai moldá-la de volta para você. Coloque-se em pé e faça isso decentemente. Não faça com que me arrependa de ter voltado por você. - ele disse como última medida. Viu a moça levantar-se imediatamente enquanto agarrava sua espada, com o olhar duro e a expressão fechada.
- Vá buscar a sua luta, Baelfire. - soltou entredentes. Embainhou a espada mexeu levemente o pescoço, aliviando a tensão. Sacudiu os ombros e jogou as mãos em frente ao corpo, projetando para a frente uma parede de fogo. Observou-a lamber o território a frente.
- O que está fazendo?! - escutou gritar enquanto o fogo se aproximava dele. O rapaz se abaixou, tentando proteger o corpo, mas olhou-a curioso quando a parede passou por si sem feri-lo. Em torno dele, os inimigos queimavam. sorriu satisfeita e piscou um olho para ele. - Continue. - ele soou divertido, fazendo-lhe uma reverência brincalhona.
testou novamente o truque, agora controlando-a com leves movimentos da mão esquerda, sendo então capaz de aumentar e diminuir a quantidade e intensidade do fogo. Mexeu a cabeça numa afirmativa rápida, entendendo por fim o funcionamento de sua nova habilidade.
Não era porque não confiava na amiga, mas Lavender se afastou da Guardiã assim que ela começou a usar a nova técnica. Preferia não ter a chance de ser flambada. Ela girou a espada ao lado do corpo, sentindo uma dor incômoda irradiar do ombro. Perguntou-se há quantas horas estava agarrada à arma. Um desgarrado pulou sobre ela. Lavender defendeu-se, forçando a espada contra o inimigo. Quando ele caiu ao chão, inerte, os lábios dela moveram-se rapidamente.
- Que a Ceifadora lhe tenha clemência. - ela murmurou, e já tinha perdido as contas de quantas vezes o fez durante o dia. Não era algo que ela fazia com intenção, mas as palavras pulavam de sua boca tão logo constatava a morte dos rivais. Sinal do quão forte sua crença estava enraizada em si. Notou dois rapazes aproximando-se pelo flanco esquerdo. Apenas ergueu a mão do mesmo lado, movendo-a como se limpasse algo no ar. Os dois pararam no mesmo momento, confusos ao ter seus sentidos arrancados. Quando Lavender os devolveu, um enxergou no outro a garota, e sozinhos os dois se derrotaram.
A Guerreira repetiu sua prece para os rapazes e deixou-os sangrando. Olhou para o céu, notando que a Lua Azul já começava a entrar no alinhamento. Buscou rapidamente pelo território. Encontrou-o não muito distante e correu em sua direção.
Sentindo uma ameaça vinda de trás, bateu seu tridente no chão. Os jatos de água que saíram de seus dentes, perfuraram meia dúzia dos inimigos à sua volta, mas logo pararam. Ele estava fraco. Olhou para cima. Balançou a cabeça ao ver que sua lua já tinha sumido, ajeitou o tridente nas duas mãos e passou a atacar os inimigos com suas pontas afiadas. Pontas que ele nunca imaginou que veriam sangue durante seu tempo de Guardião.
Viu Lavender se aproximar correndo. Ela enfiava a espada em alguns inimigos que tentavam atacá-la, mas sem parar de se mover. Logo a garota já chegava perto dele.
- É melhor você dar o sinal para os seus Guerreiros se retirarem. Logo o alinhamento estará fechado e vocês serão os em piores condições. Lembre-se que aqui não temos a proteção que Mirth tem. - eles atacaram alguns desgarrados que se aproximaram. Quando um deles tentou usar a vegetação em volta para atacá-los, Lavender riu e apenas lançou um olhar ameaçador para as plantas, que caíram inertes, mortas. - Você não sabe com quem está brincando. - observou enquanto erguia a mão esquerda, vazia. De repente, nela surgiu uma foice muito parecida com a que sua irmã usava. Com agilidade a Guerreira movimentou-se em meio aos desgarrados que ainda estavam em pé. Quando encerrou sua dança, todos estavam jogados ao chão. A foice desapareceu de sua mão e ela murmurou preces para cada um.
- Woah! Eu não tinha ideia que você… - olhou para os inimigos. - Como…? Sempre me lembre de que eu não comprar briga com você ou com sua irmã. - a Guerreira soltou um riso breve.
- Estamos fortemente associados ao Fogo. Mas logo perderemos nossas capacidades, também. - deu de ombros. - Vamos, . Dê o sinal de retirada. - pediu por fim.
O Guardião suspirou alto, mas obedeceu. Formulou o sinal e, com a ajuda da ceifadora, conseguiu espalhá-lo para os destinatários corretos. Logo viram os Guerreiros da Água deixando a batalha conforme podiam. Ela lhe estendeu um sorriso satisfeito e deu-lhe dois tapinhas no ombro.
- Agora vá. Lembre-se: não corra direto para o acampamento. Talvez vocês sejam necessários como serviço de emergência. - seu tom era humorado. Entretanto, sabia que a garota falava sério.
Depois de jogar um até logo sobre o ombro, correu para dentro da casa mais próxima. Havia algo errado com o ar ali. Começou a revistar o local. Na sala de jantar jaziam pratos deixados pela metade e um copo quebrado no chão. Próximo dele viu um brinquedo de madeira, um guerreiro com uma espada, parecido com um que teve quando era criança. Quase sorriu com a lembrança. O cheiro piorava conforme adentrava mais a casa. Finalmente chegou ao seu auge quando abriu a porta do quarto principal. Sobre a cama havia uma mulher com um ferimento no peito. Seus olhos estavam abertos e encaravam o teto sem expressão. No chão, um homem sentado com as costas contra a parede parecia descansar de olhos fechados. aproximou-se e tocou um dedo no pescoço dele, sentindo-o gelado e sem qualquer sinal de vida. Uma sobrancelha do rapaz se ergueu em dúvida e ele afastou o homem da parede, vendo, finalmente, o grande ferimento que rasgava suas costas.
Ele coçou a têmpora, percebendo que algo ainda parecia errado. Olhou em volta. Notou embaixo da cama um pedaço de pano. Puxou com cuidado, revelando um pralas feito de restos de tecidos. Enrugou a testa. Mesmo não querendo, seus olhos se voltaram mais uma vez para a mulher sobre a cama. Notou um medalhão em seu pescoço e, ao abri-lo, viu o retrato de um garotinho. Um garotinho que também deveria estar naquela casa. Voltou a procurar. Havia um segundo quarto. Tudo ali parecia fora do lugar. Tudo, exceto por um baú. Ele parecia preso ao chão. se aproximou e tentou abri-lo, mas estava trancado, mesmo que não houvesse sinal de uma fechadura. Enfiou a ponta da espada na fresta dele e forçou-a como uma alavanca. Cedeu depois de três tentativas. arregalou os olhos tão logo o baú se abriu. O garotinho do retrato estava ali, sujo, tremendo, porém vivo e sem qualquer ferimento. E apontando uma adaga para o seu pescoço.
- Ei. Ei. - embainhou a própria espada e ergueu as duas mãos em sinal de paz. - Está tudo bem. Eu não vou machucar você. - seus olhos examinaram o garoto enquanto ele fazia o mesmo com o mais velho. notou algo interessante. - Você tem um desses também? - apontou para o amuleto em volta do pescoço da criança. Lentamente, como se pedisse permissão, moveu as mãos para descobrir o amuleto que ele escondia no punho. - Eu também tenho. Não é exatamente igual, mas… Eu conheço alguém… uma garota. Ela tem um igualzinho ao seu. E ela é incrível. - o garoto entortou a cabeça, curioso. - Escuta… tem uma batalha acontecendo aí fora e… E você precisa ficar num lugar seguro. - ele e o garoto examinaram a caixa onde o pequeno havia se escondido. - Eu sinto muito. Prometo que vou levar você pra um lugar seguro. Você confia em mim?
- Eles… Eles me falaram que quando fosse seguro iriam me tirar daqui. - olhou hesitante na direção do quarto dos pais do garoto. - Estão mortos, não é? - a criança suspirou. O mais velho mexeu a cabeça levemente, concordando timidamente. O mais novo guardou com agilidade a adaga. O Guardião o ajudou a sair do baú. Tirou do bolso uma trouxinha de pano, desfazendo seu nó e revelando um pedaço de pão e alguns grãos típicos da região. Ofereceu para o outro. O pequeno olhou mais uma vez para o amuleto do Guardião e aceitou a comida, devorando tudo rapidamente. Com a mesma pressa consumiu a água do cantil que lhe ofereceu.
conduziu gentilmente o garoto até o espaço entre a cama e parede, e os dois se sentaram ali, escondidos da janela. O Guardião passou um braço em volta dos ombros dele e esperou.
Do lado de fora, aos poucos outras casas se retiravam da batalha. Depois da Azul, a próxima a sair tinha sido a Verde, de Viper. O Guardião não ficara nem um pouco feliz de deixar a luta, porém teve de aceitar quando Muncie e Terra quase o arrastaram para longe da ação.
Agora era a vez de Breeze mandar seus mensageiros do vento com a ordem de retirada. Antes que ela mesma abandonasse o campo de batalha, entretanto, ela se dirigiu à uma em condições que nunca antes a havia visto. Muito mais poderosa, de fato, mas também podia reconhecer a dor estampada no rosto da Guardiã a cada golpe que ela desferia.
- Você precisa de alguma coisa, ? - questionou enquanto a ajudava a derrubar alguns desgarrados com a espada de lâminas paralelas. Tentou usar as lâminas de ar, mas já não tinha tantas forças para o longo alcance.
- Você já deu seu toque de recolher? - ela questionou sem precisar olhar para cima. Estava em plena conexão com as luas e sabia exatamente onde cada uma delas estava no caminho do alinhamento.
- Meus Guerreiros já estão se retirando. Porém, se você quiser… - ela parou de falar para enfiar as lâminas da espada em duas moças que tentaram atacar a amiga com lanças. - ... eu posso ficar.
- Não. Você deve ir. - puxou de volta a parede de fogo que tinha lançado minutos atrás, varrendo o território de fora para dentro dessa vez. Ela sentia cada um dos que caíam no ataque e seu corpo estremecia em dor.
- Você não me parece bem, … - a de cabelos anil secou o suor da testa. - Está com dor. Se machucou? Eu posso curá-la.
- Não me feri, Breeze. É o Fogo. - explicou, embora a outra não fosse entender o sentido daquilo. - Apenas vá procurar cobertura. Ficarei bem. Só… - ela começou quando a outra ia se afastar. Breeze olhou-a curiosa. - Não vá muito longe. E não fique sozinha.
- Certo. - a Guardiã sorriu e deixou a outra no meio do campo. Àquela altura eram poucos os que tinham coragem de chegar perto de onde estava.
Sabia que a próxima casa a deixar o território era a terra e, tão logo eles saíssem, a luz e a colheita partiriam rápido demais. Concentrou-se em mandar um sinal para os próprios Guerreiros. Deveriam se mexer rápido se quisessem estar reunidos antes do alinhamento perfeito. Notou-os correndo em direção ao local marcado e ela assumiu a frente do grupo. Baelfire planou sobre eles com um grito agudo.
A ruiva mexeu o pescoço numa tentativa falha de aliviar a tensão. Olhou para os Guerreiros que guiava, percebendo que o cansaço que lhes marcava o rosto ia aos poucos desaparecendo, dando lugar a expressões confiantes e preparadas. sorriu. Amava a guerra.

- Por que seu amuleto estava escondido? - o pequeno finalmente questionou.
encarou a peça em seu pulso e voltou a cobri-la com o pano vermelho. Apertou o braço em volta dos ombros da criança e com a mão livre coçou a têmpora.
- Para que nossos inimigos não o roubem com facilidade. Você já deve saber que ele nos ajuda a controlar nossos poderes. - o garoto mexeu a cabeça para cima e para baixo uma vez.
- Você também não está com a cor da sua casa… - ele apontou. Antes que o outro pudesse responder, no entanto, ele ligeiramente prosseguiu. - Para que eles não saibam a qual você pertence?
- Você é inteligente, garoto. - bagunçou os cabelos dele. - Exatamente. Assim temos um elemento surpresa. Ao me olharem de camisa verde e sem acesso ao meu amuleto, eles esperam um Guerreiro da Fertilidade. Assim, é mais provável que alguém com vantagem sobre os férteis venha me atacar, e não alguém que tenha mais força sobre a água.
- E eles também não sabem que você é um Guardião… Assim você não se torna um alvo principal. É isso?
- Você é um estrategista, huh? Vai se dar bem com os inteligentes do Fogo. Muncie vai te adorar.
- Muncie? - o pequeno olhou-o curioso.
- O líder dos inteligentes. - apertou o garoto contra seu corpo quando ele se encolheu com um estrondo que fez a casa tremer. - Está tudo bem. É só um trovão. Isso significa que minha amiga, Amber, está botando mais alguns desgarrados para correr. Consegue ver o céu daqui? - ele apontou a janela da qual estavam escondidos. O pequeno olhou para cima e mexeu a cabeça em afirmativa. - Então lá em cima você está vendo a Lua Vermelha, a Lua Amarela, que é a lua de Amber, a Lua Laranja, que é a de Brock, ele é quem causa alguns dos tremores de terra que você deve ter sentido aqui, e a Lua Violeta, da minha amiga Violet. Ela é a mais discreta de todos nós.
- Ela mexe com os sentidos das pessoas, não é? - o mais novo o olhou curioso.
- Exato. Você já sabe bastante. E porque a Lua Azul, a Verde e a Anil já se alinharam, os que obedecem a essas luas estão praticamente fora de combate agora. - estendeu a mão livre à frente dos dois e esforçou-se para produzir uma pequena esfera de água. - Eu sou o Guardião da minha lua, e isso é o máximo que consigo fazer agora. Meus Guerreiros, a esse ponto, devem estar totalmente secos.
- Mas todos vocês têm espadas. - o menino apontou. O Guardião olhou-o, mas ele encarava o céu lá fora. - A qualquer momento agora. - ele disse, referindo-se ao alinhamento. ergueu-se, olhando pela janela. Não havia ninguém perto da casa. Ele puxou o garoto.
- Vamos aproveitar o momento para sair daqui. - os dois correram para fora da casa. olhou em volta assim que saíram pela porta da frente, segurando firmemente a mão do outro. Viu ao longe os filhos do Fogo agrupados não muito perto dos inimigos, mas não conseguia ver o que faziam.
- Uau. O que é isso? - o pequeno perguntou com o rosto voltado para cima. Tão logo o Guardião acompanhou seu olhar, viu uma enorme fênix de fogo cruzar o céu, escondendo brevemente o perfeito alinhamento da Lua de Fogo. Os dois acompanharam a ave que mergulhou em direção aos inimigos. As chamas se espalharam pelo território e passaram a queimar tudo o que se botava em seu caminho.
- Isso, meu caro, é a garota de quem te falei. - parecia satisfeito. - Vamos, vou te levar para um lugar seguro.
- Mas… agora? - ele parecia realmente abalado. A mão dele que não segurava produzia centelhas ansiosas.
- Você não pode lutar essa batalha, garoto. - segurou mais forte a mão da criança conforme ele tentava se soltar. Durou pouco, entretanto. Logo a mão livre do pequeno apontava na direção dos filhos do Fogo.
- Olha! - disse extasiado.
Quando obedeceu, sentiu o estômago embrulhar. Estava longe e qualquer um teria dificuldade em identificar o corpo que corria para o meio dos inimigos. Só que ele sabia. Ele a reconheceria a qualquer distância.
Os cabelos vermelhos de estavam transformados em verdadeiras chamas enquanto ela adentrava o que restava da formação inimiga. Sua espada flamejava na mão esquerda e com a direita ela atirava bombas de fogo. Seu corpo vibrava com toda a energia que recebia diretamente das luas e de seus companheiros de casa. Seus movimentos eram puramente instintivos e ela ia, aos poucos, derrotando cada um daqueles que ainda se atrevia a permanecer no território.
Sequer sabia onde sua espada ou suas bombas estavam acertando, mas tinha a certeza de que ao menos estavam acertando. E isso era suficiente. Às vezes sentia um pouco de sangue quente respingar em si, mas não ligava. Não tinha tempo para se importar com isso. Estava no meio de algo maior ali. Quando percebeu, estava totalmente envolta em fogo, seu corpo estava em chamas e ela queimava qualquer um que ainda fosse estúpido o suficiente para tentar atacá-la. Logo já não havia mais ninguém ali. E quando ela constatou que estava sozinha, quando notou que já havia encerrado o seu trabalho e que as luas já haviam encerrado o alinhamento, deixou seu corpo se desligar.
correu puxando o garotinho ao seu lado. Não tinha muita certeza, mas achou que no meio do caminho era Breeze que tinha visto e largou a mão da criança, gritando um “cuide dele” enquanto continuava correndo. Passou pelo local onde os filhos do Fogo estavam, todos caídos ao chão, alguns inconscientes, outros sentados e exaustos. Não parou. Continuou correndo até alcançá-la no meio do caos. Estava caída em meio a tantas coisas que já nem saberia dizer. Havia sangue, havia carne e havia o que não fosse nenhum dos dois. tomou-a em seus braços e tentou acordá-la da forma que podia. Notou o cantil que ela levava preso à cintura e o sacudiu, escutando um resto de líquido ali dentro. O arrancou do laço que o prendia e destampou, entornando um pouco do néctar pelos lábios abertos de . Nenhum reflexo funcionou e a bebida escorreu para fora de sua boca. limpou-a cuidadosamente.
Tocou-lhe o pescoço e sentiu sua pulsação muito fraca. Sem saber mais o que fazer, sentou-se no chão e puxou a garota para seu colo, abraçando com força seu corpo. Alguns Guerreiros já invadiam o campo de batalha e começavam a levar os feridos para o acampamento. Ele encostou sua testa à de . Foi quando se lembrou do procedimento arriscado que uma vez ela fez com Violet. Tinha que dar certo. Ele não podia perdê-la.
Tremendo ele descobriu o amuleto que ela levava no pulso esquerdo, que sabia ser o de Guardiã. Fez o mesmo com seu amuleto e juntou seus pulsos. Os amuletos grudaram-se e emitiram uma luz que oscilava entre azul e vermelho. mordeu o lábio inferior ao sentir sua energia ser sugada de forma tão violenta, mas não interrompeu o contato. Fechou os olhos e deixou que a garota tomasse de si tudo o que precisasse para se recuperar.
Estava perto de perder a consciência quando parou de sentir a força estranha. Antes de abrir os olhos, porém, o que sentiu foi um forte tapa na bochecha esquerda. Quando voltou a enxergar, viu a face vermelha de numa expressão dura.
- Nunca. Mais. Você. Ouse. Fazer. Isso. - ela disse pausadamente. - Está me entendendo? Nunca mais. - frisou.
- Que a Lua Azul inunde os sete planetas! Eu poderia morrer de felicidade agora. - apertou-a com força entre os braços.
- Não! Você poderia ter morrido de verdade. O que estava passando pela sua cabeça, estúpido? - saiu de seu colo, olhando-o irada.
- Você estava morrendo. O que esperava que eu fizesse? Ficasse olhando? - ele soava ofendido, mas o sorriso aliviado não saía de sua face.
- Se eu estou morrendo, você me deixa morrer! Ou prefere que Mirth perca dois Guardiões de uma só vez? E no meio de uma guerra! - ela gritou exasperada.
- Eu não acho que eu conseguiria seguir bem sem você. Sem fazer tudo o que estivesse ao meu alcance para salvá-la. - ele disse simplesmente. Isso fez com que a guarda da garota caísse.
- Bom, mas é melhor você conseguir. Porque, se eu morrer antes e você cometer alguma bobagem como essa, ou apenas encerrar sua vida antes do tempo, eu…
- Você…? - ele provocou bem humorado ao vê-la hesitar.
- Eu não vou ficar com você na minha lua. Não importa quanto néctar de fogo você beba. - ela sorriu triunfante. mexeu a cabeça em negativa e abraçou-a. - Não faça esse tipo de bobagem de novo, está bem? É muito perigoso. - sussurrou contra sua pele ao retribuir o abraço.
- Sinto muito. Estava desesperado. - os dois se afastaram.
- Deveríamos estar ajudando. Temos que levar os feridos para a enfermaria. - ela se pôs de pé em um pulo.
- Não mesmo. Você é quem tem que ir para a enfermaria. Deve descansar.
- Eu descansarei quando a guerra acabar, . Não posso me dar esse luxo agora. Vamos, temos muito a fazer. - começou a caminhar pelo campo. Ele se viu forçado a segui-la e passou a procurar pelos feridos.
Era uma tarefa cansativa, ainda mais agora que tinha cedido parte de sua energia, mas ele continuava indo e voltando do acampamento sem reclamar. certamente estava em piores condições e não parecia sequer perto de parar, então ele deveria acompanhá-la. Porém, enquanto saía da enfermaria, avistou os Protetores conversando ali perto. Embora tentassem ser discretos, seus ânimos estavam exaltados e a conversa não conseguia se manter baixa por muito tempo.
- Você não está sendo razoável, Baelfire! - Leorhys argumentava.
- Lua sangrenta! É claro que não estou! Se fosse Violet, você também não estaria! - a fênix falava de um jeito esquisito, como se gritasse, porém em sussurros.
- Mas não era. Não era nenhum dos nossos. Era . E você sabia! E você concordou com isso, antes de tudo. Sabia muito bem o que poderia acontecer. - Cytron acusou.
- Nunca pensei que realmente… - Baelfire balançou a cabeça. - Só estou dizendo que da próxima vez que tiverem uma ideia estúpida como essa… A próxima vez que estiverem dispostos a matar um Guardião, que não seja um dos meus! Nunca mais na minha vida eu deixarei que isso aconteça com um dos meus Guardiões.
- Vosscê ficou mole, Baelfire. - Rohan provocou. - Antesss nunca teria agido assssim.
- Não o cutuque, Rohan. - Skyler interveio. - Bael, você sabia dos riscos. Sabia que poderia morrer durante o alinhamento.
- O quê?! - finalmente entrou na conversa. Os Protetores o olharam assustados. - Vocês sabiam que ela poderia morrer e deixaram que ela batalhasse mesmo assim? Vocês planejaram isso?! - de repente a situação se encaixou completamente na cabeça dele. - Todo esse tempo vocês sabiam! Calcularam o tempo preciso para que chegássemos aqui sob a Lua de Fogo, assim usaria todo o poder possível e… Esperavam que ela morresse. - algum dos Protetores tentou falar, mas ele não deixou. - Era uma possibilidade calculada por vocês.
- Porém ela não morreu. - Sky tentou amenizar.
- Porque eu não deixei. Porque parece que eu a protejo mais do que o próprio Protetor dela! Onde você estava, afinal? Quando a vida de estava quase se esvaindo? Deveria ter sido você tomando atitudes desesperadas, não eu! - encarou Baelfire.
- Ele estava morto. - Zarafee contou. Sua voz era calma e ela parecia ser a única ali que não concordava com toda a situação. - Baelfire se colocou como um filtro entre todo o poder que a Lua de Fogo e os Guerreiros mandavam e . Se ele não tivesse feito isso, sua colega teria morrido. Como ele o fez, foi ele quem morreu.
- Como…? Por quê…? O que aconteceu? - tentava compreender, mas aquilo tudo era novo demais para ele.
- Normalmente não há batalhas durante os alinhamentos, porque isso torna os Guardiões fortes demais. Entretanto, quando isso acontece, o poder que o Guardião recebe durante a batalha é tão forte, que às vezes são necessários filtros para que ele não morra. Existem alguns poucos Guerreiros que são destinados a serem esses filtros de proteção. Se um Guardião morre durante o ápice do alinhamento, certamente os Guerreiros que lhe serviram de filtro também morrem. Eles servem para que a energia chegue ao Guardião em quantidades um pouco mais leves, já que se divide entre seus filtros. De qualquer modo, Baelfire notou que os Guerreiros que serviam a essa função para não estavam sendo o suficiente, e se colocou como o filtro principal, na tentativa de salvar tanto ela quanto os Guerreiros. Isso significa que todo o poder passou por ele antes de qualquer um. Seu corpo não foi preparado para isso. E Baelfire morreu. - Zarafee finalizou.
- Mas… - apontou para a fênix.
- Mas nós somos imortais, . - Baelfire explicou sem muita paciência. - Significa que não temos a sorte de deixar para sempre essa vida. Não significa que não sofremos. Eu morri e, como toda fênix, renasci. - ele ergueu as asas, mostrando que alguns pontos de seu corpo permaneciam sem penas. - Por sorte a cada vez o processo de renascer é mais rápido.
- Isso não significa que as coisas estão bem. Vocês deliberadamente deixaram para morrer.
- É assim que sempre fizemos, querido. - Ceryn finalmente se pronunciou. A testa do rapaz se enrugou ao olhá-la. - Desde sempre. Os Guardiões sempre souberam os riscos que corriam. Esse posto nunca foi um privilégio como vocês pensam agora. Ele requer sacrifícios quando a hora certa chegar.
- Certo. Vocês ao menos falaram para ela sobre esses sacrifícios? Ou apenas imaginaram que ela adivinharia se fosse esperta o suficiente? Porque… Se um dia vocês estiverem dispostos a me matar durante uma batalha, eu ao menos gostaria de saber disso antes. - deu as costas a eles, sem esperar respostas. Estava furioso e nada poderia consertar aquilo. Viu sair do acampamento mais uma vez e suspirou.
A Guardiã correu os olhos pelo campo de batalha, seus sentidos aguçados procurando por qualquer sinal de vida no meio da destruição. Viu um rapaz se mexer no meio dos destroços de uma casa e se apressou para ajudá-lo.
- Está tudo bem? - ela analisou a situação. A perna dele estava presa embaixo de uma parede e ele parecia ter dificuldades para soltá-la. - Fique calmo, conseguiremos te tirar daqui. - afirmou. Passou a retirar pedaços da grossa parede de pedra. Em alguns minutos conseguiu livrar a perna dele. - Ótimo! Consegue ficar de pé? Aqui, se apoie em mim. - puxou-o com delicadeza.
- Muito obrigado! - o homem disse com alívio, enquanto passava um braço sobre os ombros dela. o segurou pela cintura para que não caísse e juntos começaram a caminhar em direção ao acampamento. - Eu não deveria estar aqui. - ele disse com certo ressentimento.
- Como assim?
- Eles invadiram nossa cidade, mas… Bom, a minha família nem a considera nossa, se você me entende. Nos mudamos para cá há pouco, e eles acreditavam que eu não precisava me dignar a lutar por causa disso. Só que eu me senti realmente ofendido, sabe?
- Então você estava lutando conosco?
- Foi uma ideia idiota, não foi? - ele riu um pouco sem jeito. - Eu vi você. É brilhante, Guardiã. - ela o olhou curiosa. - Seu amuleto. - ele apontou para seu pulso esquerdo, onde o amuleto estava descoberto. riu sem graça.
- Era a Lua de Fogo, eu não poderia decepcionar. - gracejou.
- Certo. Aposto que faz isso todos os dias. De olhos fechados. Enquanto isso, olhe para mim. - ele tentou fazer piada do próprio estado.
- Não está tão mal. - a Guardiã tentou amenizar. O rapaz riu.
- Obrigado. - ficaram alguns segundos em silêncio. - Na verdade… Eu e minha família já estávamos de saída. Eu fiquei para trás, por que tinha uma coisa pra fazer em casa. Tenho um combinado com a minha irmã. Quer dizer, é mais um combinado comigo mesmo, porque talvez ela sequer saiba disso. Enfim, eu precisava cumpri-lo de qualquer forma.
- O que tem sua irmã? Que combinado é esse? - questionou de forma simpática.
- Hm… Ela nos deixou há algum tempo. Foi cumprir seu destino ou qualquer coisa assim. Ela era como vocês, eu suponho. Quando éramos mais novos ensinou-me uma magia boba, de sangue. Para que sempre pudéssemos encontrar um ao outro. Então, em toda a casa em que moramos, eu faço essa magia. É algo que marca uma parede. Só quem pode ver são as pessoas com as quais você compartilhou seu sangue anteriormente. Então eu marco a parede da casa, para que ela possa me rastrear e saber por onde andei e onde ela pode me encontrar. Como chegamos aqui há poucos dias, eu ainda não havia tido a chance de fazer a magia. Achei que mesmo assim precisava. Para ela saber que passamos por aqui. Pra ela saber que estou bem. Então quando eu estava indo embora, voltei para fazer isso. Tão logo terminei esta porcaria, aquele pássaro gigante que você fez, caiu e derrubou as paredes da casa do vizinho, por onde eu passava na hora. Fiquei preso. - soltou uma risada constrangida.
- Lua sangrenta! Eu lhe imploro o seu perdão. - olhou-o nos olhos.
- Está tudo bem. Você me salvou. - ele bateu de leve a mão em seu ombro.
- Então eu presumo que agora você vá embora? - ela voltou ao assunto. Agora estavam se aproximando da entrada do acampamento.
- Sim! Aqui é um planeta bom, mas essa guerra… - ele deu de ombros.
- Entendo. Qual é o próximo destino?
- Novaterra. - falou cheio de expectativas. A informação atingiu-a em cheio, pegando-a de surpresa.
- Oh! - foi só o que teve tempo de dizer. Em seguida os braços de uma mulher arrancaram o rapaz de perto dela.
- O que lhe deu na cabeça, tonto? - a mulher ralhou enquanto o analisava. Viu o ferimento na perna dele e o olhou com raiva. - Olhe só no que se meteu! Espero que sinta dor por um bom tempo para deixar de ser bobo. - olhou para . - Obrigada por trazê-lo de volta, moça. Agradeça-a, Ramra.
- Obrigado, Guardiã. - disse enquanto tentava segurar o riso. mordeu a parte de dentro das bochechas tentando conter o sorriso e piscou para ele.
- De nada, Ramra. Mande lembranças ao seu novo planeta! - ela disse antes de se afastar.
- Estes são os últimos, chefe. - uma garota do ar informou enquanto entrava com três feridos no acampamento. fez um sinal afirmativo e seguiu em direção à enfermaria. Conforme se aproximava, viu alguns catres serem retirados da tenda. Em cima deles, reconheceu com dor alguns dos Guerreiros do Fogo. Tapou a boca com a mão conforme os corpos eram retirados. Entre eles notou Reed. Seus olhos encheram-se de lágrimas ao ver o parceiro ali. Lembrou-se do seu primeiro jogo de caça à bandeira e que ele estivera ao seu lado, inclusive quando Sean tentou atacá-la. Contudo, foi quando viu Dale que ela começou a soluçar. O caçador ruivo foi um dos primeiros filhos do Fogo a interagir de forma espontânea e simpática com ela em seus primeiros dias. Ele tinha um grande ferimento na barriga e o que pareciam ser seus intestinos, estavam para fora do corpo. Mesmo assim, ela o sentiu durante o ataque final. Tentou não pensar no que isso significava. Ele havia morrido por causa dela.
respirou fundo e tentou recompor-se. Precisava ficar sã. Não podia perder a cabeça agora. Engoliria seu Morgov pessoal até que a batalha acabasse. Depois, quando não tivessem mais inimigos para derrotar, quando estivessem em segurança de novo, aí sim ela poderia enlouquecer.
- Ei, eu estava te procurando. - ela sentiu a mão de em seu ombro. Secou as lágrimas antes de virar-se de frente para ele com o melhor sorriso que poderia arranjar naquele momento.
- Sim? - ela notou a criança que ele trazia pela mão.
- Eu queria te apresentar… Este é Athos. Eu acho que ele é seu maior fã, agora.
- Uau! - o garotinho soltou maravilhado ao encará-la. - Você se parece com… Com… Com uma lenda.
- Hum? Obrigada, eu acho. - ela disse com graça.
- Não, eu quero dizer… Minha mãe me contava a lenda de uma brava guerreira. E ela era… Eu acho que ela era igual a você. - seus olhos brilharam. - O que você fez hoje foi demais! Mal posso esperar para treinar com você!
- Como assim? - alternou o olhar entre os dois. O garoto mostrou a ela seu amuleto e ela mexeu a cabeça em concordância. - Ah, mas isso vai demorar ainda mais alguns anos, não é? Até que os buscadores te levem para Mirth…
- disse que não preciso esperar por isso. Vou com vocês, quando a batalha acabar. - ele informou com satisfação. olhou duramente para o rapaz.
- Claro que ele disse isso. Você se importa se eu conversar com por um instante? - a garota questionou. Puxou o Guardião pelo braço até que estivessem longe o suficiente do garoto. - O que é isso?
- Eu o encontrei em uma das casas. Seus pais morreram. Ele estava trancado em um baú, esperando que a guerra acabasse. Ele nunca ia sair de lá. E eu o encontrei, . Vamos levá-lo para Mirth depois que isso acabar e…
- E o que, ? Você vai adotar uma criança? - disse descrente.
- Eu pensei que… - ele começou, meio sem jeito.
- O que está pensando, ? - ela esfregou a mão no rosto. - É uma criança. Não tem idade para ir para Mirth. Ele tem que viver sua vida aqui fora.
- Tem mesmo? Porque, sejamos sinceros, o quanto antes ele for para lá, mais seguro estará. Mais poderá treinar. Entenderá melhor a ilha. , ele não tem nada mais aqui. Sua família morreu. Ninguém quer tomá-lo. Nós seremos a família dele.
- Você não é o pai dele, .
Ele a olhou frio. Cruzou os braços e negou com a cabeça.
- O garoto vai para Mirth. Não cabe a você decidir isso.
- O conselho já sabe disso? O que eles acharam?
- Se o conselho já sabe? - ele debochou. - É óbvio que o conselho não sabe, . Estamos no meio de uma guerra. O que você espera? Que eu apareça agora para Fintan e diga “é, essa situação é mesmo chata, mas, olha só, falando de uma coisa séria agora, tem esse garotinho que eu achei e eu acredito que a gente deve adotá-lo”? Ele me quebra no meio, !
- Você vai resolver essa situação, . Sozinho. - complementou. - Não tente me envolver nisso. Não tente me derreter com a fofura da criança ou dizendo que ele é meu fã. Todos aqui são meus fãs. Você é meu fã. - já parecia mais calma e sorriu. Passou os dedos delicadamente pela bochecha do rapaz. - Não quero brigar com você. E você já fez bobagens o suficiente por hoje. Então vá se alimentar e trate de descansar. Amanhã será um longo dia.
- Eu diria o mesmo para você, mas duvido que você vá fazer algo do tipo. Está indo para a enfermaria, não é? - ele beijou a bochecha dela.
- Sim. Você sabe como alguns dos Guerreiros ainda são resistentes em tratar os desgarrados que trazemos. Eu preciso ter certeza de que estão recebendo o suficiente para pelo menos se manterem vivos. - ela deu de ombros.
- Você não existe. Tente descansar, mesmo assim. Está com uma cara horrível. - ele fez graça.
apenas riu para ele enquanto se afastava. Entrou na tenda da enfermaria e mexeu a cabeça em negativa ao ver a quantidade de feridos. Catres improvisados se estendiam por todos os cantos.
- Ei, . Hoje as coisas estão um pouco mais intensas por aqui. Com sorte o resto de nosso exército chega durante a madrugada e teremos um pouco mais de recursos. - Sean parecia um pouco desconfortável. - Eu tenho que te perguntar. Tem certeza de que você está bem? Tem muitos Guerreiros do Fogo aqui. Alguns não sobreviveram… E você esteve bastante mal, pelo que soube.
- Sean, não se preocupe comigo. Eu devo começar pelos desgarrados?
- Sim. Tem um deles que se recusa a receber tratamento de qualquer um que não seja você. Uma garota. - ele procurou com o olhar. Seu dedo apontou um catre na área leste da enfermaria. - Ali.
- Certo. Obrigada - ela lhe bateu de leve no ombro, indo em seguida até o leito que o rapaz apontou, encontrando uma moça em péssimo estado. - Ei, como você está hoje? - ela não respondeu.
- Está do mesmo jeito. - um garoto informou. Era um dos desgarrados. - Ela não deixa que os seus amigos cheguem perto dela. Acho que confia em você. - observou-o. Mexeu a cabeça em afirmativa e se abaixou à altura do rosto da moça.
- Certo. Eu vou aplicar algumas ervas sobre os seus ferimentos. Você vai sentir uma ardência no início, mas é normal e logo passa. Tudo bem? - a garota se remexeu desconfortável, mas não fez nada para impedi-la.
- Você é boa nisso. - o rapaz declarou. Estava apoiado num dos postes que sustentavam a tenda e tinha os braços cruzados em frente ao peito. - Por que está fazendo isso, afinal? Poderia ter nos deixado para morrer.
A Guardiã não respondeu de imediato. Aplicou com calma as ervas nas feridas da garota. O outro já estava aceitando que não teria uma resposta quando ela finalmente voltou o olhar para ele.
- Eu estou no meio do campo de batalha. Está escuro. Eu encontro uma pessoa inconsciente, ensanguentada e com o rosto completamente irreconhecível por tantos machucados. Eu me pergunto “eu conheço essa criança? É uma das minhas? Eu devo levá-la?”. Durante o tempo que eu perco tentando decifrar quem é essa pessoa, ela morre. Se eu a tivesse apenas pegado no colo e trazido para a enfermaria, ela poderia ter recebido o cuidado necessário rápido o suficiente para permanecer viva. Como eu me sentiria se descobrisse que é um dos meus? - antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, ela continuou. - É muito mais fácil se eu não tentar decifrar. Além disso, eu realmente acredito que, no final do dia, somos todos apenas pessoas. Eu não estou lutando contra você. Estou lutando contra algo muito maior, contra a ideologia do grupo do qual você participa. Isso não impede que você seja uma boa pessoa. Ou que eu seja uma boa pessoa para você. - o rapaz assentiu pensativo. - Por que vocês não foram embora? Por que não voltaram para o seu exército? - ele riu.
- Hayala é minha parceira. Jamais iria embora sem ela. E ela precisa de cuidados. Mas nenhum de nós vai embora. Não temos mais um exército ao qual nos unir. Os que ficam para trás, ficam para trás. Se não voltamos com eles, somos considerados mortos.
arregalou os olhos. Esse era um jeito de tratar o próprio povo que ela jamais compreenderia.
- Por quê? Por que aceitam isso? Por que agem assim? - questionou. Moveu-se para o catre do próximo desgarrado, desfazendo um curativo no torso dele e começando a trocá-lo por um novo.
- Tem certeza de que quer perguntar isso? - ele entortou a cabeça. Ela fez um som afirmativo. - Então é bom você se preparar, porque teremos uma longa noite de conversa.


Capítulo 24

Quanto mais olhava a cena que se desenrolava ali, mais aquilo lhe incomodava. Passou a mão pelos cabelos e, sem conseguir se conter mais, marchou para dentro da enfermaria.
– Ei, chefe! Ainda bem que você está aqui – Sean conferiu uma pequena tela holográfica que levava consigo. – Como está depois da batalha de hoje? Se sente bem? – examinou seus olhos e deu uma observada rápida em seu corpo. – Alguns cortes por cicatrizar e irritação nos olhos. Eu apostaria que por causa da fumaça, hein?
– Sim, Sean… Eu… – olhou na direção da ruiva, tentando ir vê-la, mas Sean não parecia interessado em lhe dar atenção.
– Fora isso, chefe, você parece estar bem. Então eu estava pensando… Bom, não exatamente eu. De qualquer modo, você sabe que hoje precisamos de todos que estiverem disponíveis, não é? Quem está em melhores condições está cuidando de quem está na pior, e claro que temos o pessoal da cozinha que está fazendo um ótimo trabalho, e também…
– Sean… – olhou-o aflito, mas o rapaz estava de novo conferindo a tela.
– Se você não estiver muito ocupado, óbvio, será que poderia receber os Guerreiros que estão chegando?
encarou por cima do ombro do Guerreiro. Ela se dividia entre diversos feridos e conversava alguma coisa com um desgarrado. O Guardião mordeu o lábio.
– Você não precisa de ajuda aqui? – questionou.
– Nunca vi você levando muito jeito pra esse tipo de trabalho – Sean por fim desviou os olhos para ele. Ele tinha um sorriso bem-humorado e mexeu a cabeça em negativa.
– Mas não… Já temos Guardiões o suficiente por aqui – ele apontou na direção de Breeze, Viper e . – Tenho certeza de que os Guerreiros recém-chegados farão melhor uso de você e dos outros.
– Você fala de mim, mas o Fogo está muito mais longe da cura do que a Água – ele apontou intrigado.
– É verdade. Mas acho que ela tem um dom para isso. E ela cresceu em meio a plantações, então sabe que ervas usar. E isso é algo que você ainda não pode nos oferecer, garoto da cidade – Sean lhe deu um tapinha brincalhão no ombro. – Então… Você pode?
revirou os olhos. Deu uma última olhada em e entregou-se.
– Sim. Mas se você precisar de qualquer coisa aqui…
– Pode deixar, chefe.
– E cuide de . Ela deve estar exausta. Garanta que ela descanse algumas horas.
– Se ela não me matar quando eu sugerir isso, claro – Sean riu e começou a empurrar o Guardião para fora da tenda. – Agora vá.
Sem ter mais como resistir, abandonou a enfermaria. Honestamente, estava agradecido, porque os sons de sofrimento lá de dentro eram insuportáveis para sua cabeça. Os sons da guerra eram insuportáveis.
Tão logo começou a andar na direção da saída do acampamento, esbarrou em Amber. A Guardiã lhe ofereceu um sorriso radiante sob o semblante cansado e, sem qualquer palavra, envolveu um braço em sua cintura.
– Ei, meu trovãozinho – ele a ouviu rir baixinho.
– Todos esses anos comigo e você ainda não aprendeu a diferença entre trovão, relâmpago e raio? – a voz dela era arrastada, mole e sem vontade. trincou os dentes e sentiu o corpo inteiro enrijecer.
Amber, aquele filhotinho de fada, nunca tinha soado assim antes. Nem depois de treinos, nem depois de dar surras em Viper. E agora a maldita guerra a transformava. Mesmo sem querer, seu olhar buscou o rosto da amiga. Procurou nos olhos dela o brilho que lhe era peculiar. E encontrou apenas uma centelha dele.
– O que há, ? – quando ela falou, ele notou seus dentes manchados de sangue. Seu braço envolveu carinhosamente os ombros dela. – Algo errado? – sacudiu a cabeça e a garota estreitou os olhos. – Não minta para mim.
– Nada. Só… – ele suspirou pesadamente enquanto escolhia as palavras. – Só estou ansioso para que isso aqui acabe. Foi tudo uma emboscada atrás da outra – ele soltou a última parte sem querer. Ele projetou a cabeça para a frente, como se tentasse inutilmente recapturar as palavras antes que a amiga as decifrasse. Ela franziu a testa e seus pensamentos foram mais rápidos do que esperava.
– Você sabe de algo, não sabe? – deduziu e, como ele não respondeu, continuou. – É sobre o que os Protetores estavam falando hoje? O mistério que fez Zarafee me bloquear de sua mente?
– Que… Como assim? Que mistério? – ele tentou disfarçar. Amber riu da péssima atuação do amigo.
– Está tudo bem, . Você não precisa me contar o que foi. Sei que há um bom motivo para eles não nos desejarem em suas mentes para discutir o que quer que tenha sido. E se você ouviu e está tentando não contar, deve ser importante que mantenha em segredo até… até que não tenha mais que manter. Só não se pressione com isso, tudo bem? – emitiu qualquer som afirmativo. – Mas também não se sinta obrigado a fazer algo só porque os Protetores mandaram – ela sussurrou. – Se você achar que deve contar alguma coisa, não hesite.
Ele engoliu em seco. Ensaiou algumas palavras, mas nenhum som saiu.
– Acho que preciso guardar isso, por enquanto – soltou depois de alguns minutos. – Porém sei que alguns de vocês me odiarão por não ter falado agora. Principalmente . Ela vai querer me matar – Amber olhou-o, indicando que continuasse. – Mas também sei que se eu falar agora, as coisas vão desandar. Perderemos essa batalha.
– Eu odiaria estar no seu lugar agora – ela soltou num precário consolo. O amigo riu e lhe apertou os ombros.
– Odeio estragar o clima, mas… – Violet, que vinha alguns passos atrás, emparelhou com os dois e apontou para uma massa que se aproximava ao horizonte.
– São…? – Amber não soube terminar.
– Fique tranquila, são nossos reforços. Mas eles não estão em situação muito melhor que a nossa. Devemos nos apressar para encontrá-los. Vamos! – a Guardiã tomou a liderança do grupo, deixando os amigos para trás.
– O que deu nela? – ergueu uma sobrancelha enquanto um sorriso tentava aparecer em seu rosto.
– Parece que a ceifadora finalmente achou seu local de liderança – Brock observou enquanto apertava o passo para seguir a colega.
O grupo não tardou em segui-los, e em poucos minutos finalmente encontraram o restante das crianças de Mirth, que chegava com ares tão cansados como se eles mesmos tivessem acabado de sair de uma batalha.
– Saímos assim que pudemos. Sequer tivemos tempo de treinar a nova leva – a garota que vinha liderando o destacamento apontou para o grupo de crianças que os Guardiões não conheciam. – E encontramos com os Guerreiros dispensados no meio do caminho – a mão dela indicou pessoas que pareciam ter a idade de alguns membros do conselho. – Espero que seja o suficiente – os Guardiões analisaram o grupo. Com certeza não eram os melhores combatentes que Mirth poderia oferecer. Não... Os melhores estavam agora no acampamento, na enfermaria, ou mortos. Mas era o que tinham. Jovens e não-tão-jovens destreinados, com pouca prática, porém descansados. E em número. – Ainda deixamos uns poucos na ilha, para o caso de... Bom, para proteger. E trouxemos um apoio extra – a garota olhou para trás e levou uma mão até a boca, soltando um alto assovio. Como se fosse um sinal combinado, a massa de gente se abriu em dois grupos e, através do espaço que eles deixaram, o grupo de busca enxergou centauros, fadas, ninfas e mais tantas criaturas que habitavam a floresta de Mirth. – Como a Lua Vermelha está cedendo, eles terão mais força para lutar daqui para frente.
– Brilhante! – Amber bateu palmas e de repente sua voz soava muito mais viva e enérgica. – De quem foi a ideia de trazê-los? Como eles concordaram?
– Devo dizer, Guardiã, que não foi fácil convencê-los – ela deu um sorriso sem jeito e abaixou o rosto. Talvez sua face estivesse corada, mas era difícil dizer. – Eu que realizei as negociações, entretanto não posso afirmar que a ideia tenha sido minha. Imagino que muitos de meus colegas tenham pensado o mesmo, só que essa é uma decisão muito difícil de tomar.
– Mas foi você quem tomou a iniciativa – Brock apontou. A garota deu de ombros como se não fosse grande coisa. – Talvez você vá me odiar, mas eu não me recordo o seu nome...
– Oh, e você nem tinha como! – ela riu totalmente descontraída. – Eu sou da leva recém-chegada em Mirth. Sou Nova!
– Ah! Eu jamais diria. Os novatos não costumam tomar lideranças assim tão rápido – Brock estendeu a mão para um cumprimento. – Nesse caso, eu sou Brock, e você? – ela riu de algo que o Guardião não entendeu enquanto apertava sua mão.
– Eu sou Nova – ela mordeu o lábio inferior tentando conter o riso.
- Sim, entendi. Quis dizer... Qual é o seu nome? – o rapaz entortou a cabeça enquanto os outros à sua volta começavam a rir. Amber foi a primeira a ajudá-lo.
– É um prazer conhecê-la, Nova, eu me chamo Amber.
– Ah! – Brock levou uma mão ao rosto, sacudindo levemente a cabeça. – Eu sinto muito, demorei a entender. Prometo que sou melhor como Guardião.
– Está tudo bem – Nova riu mais uma vez. – E eu sei seus nomes. Tenho uma irmã aqui, a B.B., ela já me contou tudo sobre vocês.
– Oh, então foi ela que te preparou para chegar aqui como uma líder, huh? – Violet lhe ofereceu um sorriso gentil. – Pessoal, precisamos levá-los para o acampamento e prepará-los para a batalha. Quanto antes chegarmos, mais tempo eles terão para descansar as pernas e botar suas mentes em ordem.
Nova deu mais um de seus assovios, fazendo o grupo entender que deveria voltar a se mover. Uma das Guerreiras da Colheita que estava mais próxima deles os alcançou.
– Como estão as coisas por aqui? O que devemos esperar, Vi?
A Guardiã virou o rosto na direção dos companheiros, esperando que eles a ajudassem com a difícil resposta. tocou sutilmente sua mão e tomou um segundo para pensar.
– Essa é uma questão que gostaríamos de discutir com o grupo todo, se você não se importar, Guerreira. Porém, posso antecipar que não é nada parecido com nossos treinos e simulações. O que enfrentamos aqui é muito pior do que qualquer coisa que poderíamos fazer de conta em Mirth. Vocês precisarão estar prontos para ver a morte de frente e mais... Prontos para causá-la – ele ouviu sons de espanto ao seu redor e percebeu que outros Guerreiros também o ouviam, então aumentou o tom de voz. – Digo isso porque quando o primeiro destacamento veio para cá – o nosso – não viemos preparados para isso. Claro que sabíamos que veríamos os resultados de uma batalha, e sabíamos que marchávamos para uma, também. Entretanto, ninguém havia nos dito com todas as palavras que precisaríamos tirar vidas. Por isso foi chocante quando batemos espadas com desconhecidos, quando ninguém apareceu para remover do campo de batalha nossos inimigos que sangravam incessantemente. Lembro-me de pensar que se ninguém buscasse logo aquelas pessoas, elas morreriam. Demorou para que eu compreendesse o que realmente estava fazendo aqui. Que matá-los é nossa intenção.
As palavras de foram absorvidas em silêncio por alguns momentos.
– Há outra coisa... – Violet resolveu adicionar quando julgou apropriado. – Alguns de nós carregam em si uma pureza que os demais jamais serão capazes de entender e, por isso, são capazes de atos que muitos de nós podemos julgar até... Insensatos. Seja como for, há, entre nós, aqueles que não aceitam ver o sofrimento de qualquer criatura viva ao final da batalha, e por isso levam todos à enfermaria. Isso significa, companheiros, que entre os nossos vocês verão também – além de moradores da cidade que nos ofereceram ajuda – sobreviventes desgarrados – ela ouviu os sons de surpresa novamente e o início de um burburinho. Ergueu uma mão, pedindo silêncio. – Sei que para muitos de vocês isso pode parecer inaceitável, mas a convivência no acampamento é pacífica e os desgarrados que salvamos têm se provado de boa ajuda, de modo que, até que haja um verdadeiro motivo para tal, eles não serão expulsos do acampamento.
– Eu não entendo... Eles estão sendo mantidos como prisioneiros? Achei que não fizéssemos isso.
– Não – Brock replicou como se a pergunta fosse uma ofensa. – Todos eles sabem que são livres para partir. Só que, por algum motivo, nenhum deles quer. Deixamos claro que não cobramos e nem cobraremos nada pelo tratamento que oferecemos a eles após a batalha, que não esperamos seu apoio, sua ajuda ou sua lealdade, e mesmo assim eles cismam em permanecer lá, em fazer algumas de nossas tarefas, mesmo sabendo que não confiamos neles, mesmo sabendo que a cada lenha que eles pegam, a cada nó que eles dão, a cada cobertor que dobram há alguém os observando de perto. Ainda assim eles seguem lá.
– Vai ver é uma estratégia dos desgarrados. Se infiltrar e, quando estivermos relaxados, nos atacar de dentro – um rapaz de anil falou.
– Já pensamos nisso, claro. Estamos atentos. Porém eles teriam que estar muito confiantes de que alguns de nós iriam estar dispostos a salvá-los para abandonar seus parceiros. De qualquer forma, o que queremos é que vocês não estranhem e nem os hostilizem. Estamos tentando manter o acampamento como uma zona livre de conflitos. É o mínimo que podemos fazer nessa situação – Amber finalizou.
Mais um burburinho se iniciou, com os recém-chegados criando teorias e enchendo-os de perguntas. Os Guardiões tentaram acalmá-los, mas o som das vozes era alto demais para que fossem ouvidos agora. Cansado e, agora, irritado, puxou da bainha a versão reduzida de seu tridente que, num gesto rápido, tomou seu tamanho normal, e bateu com ele uma vez no chão. O tremor de terra e o som rascante que irromperam do ato em nada pareciam com algo proveniente da Água. Todos calaram.
– O que tiver de ser discutido, – ele começou num tom forçadamente polido – o será feito no acampamento. Agora, marcharemos em silêncio. Que as luas os afoguem. – acrescentou baixo demais para ser ouvido pelos demais, mas Violet riu discretamente.

Havia mais barulho do que o de costume naquela madrugada no acampamento. O time de reforço recebia atualizações efusivas dos companheiros que haviam chegado antes e passavam a ser apresentados aos moradores do que costumava ser a cidade que agora lhes servia de campo de batalha. Àquela hora já estavam todos despertos, aprontando-se para o próximo dia dentro daquela guerra.
O sol ainda não pensava em surgir no horizonte para aquecer a superfície, mas isso pouco importava. Porque ali, meio escondido atrás de tendas vazias, Aeno suava. Sua camiseta cinza tinha marcas escuras nas axilas, na gola e especialmente nas costas. Aeno não podia ver suas costas, e isso o deixava ansioso.
Havia alguém ali.
Ele olhou sobre o próprio ombro esquerdo, nervoso, as pupilas dilatadas e atentas a qualquer movimento. Um espasmo rápido deformou brevemente metade de seu rosto, fazendo apenas um de seus olhos piscar de maneira anormal.
Havia alguém ali.
Foi rápido demais, ele nem teve tempo de captar exatamente o quê. Tinha sido um ruído ou um vulto? Ele realmente não se importava, embora sua mente ainda tentasse decifrar exatamente o que estava acontecendo.
Havia alguém ali.
Ele empunhou rapidamente a adaga e jogou o corpo para a direita, de onde tinha certeza que havia captado o som. Ou o vulto. Atacou-o porque agora tinha certeza.
Havia alguém ali.
Sua lâmina deslizou com facilidade pelo pescoço do inimigo, que levou as duas mãos até o corte, tentando impedir que o sangue lhe escapasse. Um fio de saliva escorreu pelo canto da boca de Aeno, e ele investiu mais uma e outra vez com a adaga contra o inimigo, um sorriso perigoso lhe surgindo conforme o aço rasgava carne e ossos.
– Aeno? – ele ouviu a voz chamar. – O que você está fazendo?
– Ele... – respirou fundo, retomando o fôlego enquanto secava o suor que agora lhe escorria sobre os olhos. – Ele me atacou – conseguiu balbuciar por fim.
– Ele? – Lurion deu um passo a fim de enxergar melhor. – Você está bem? Do que está falando?
– Ele tentou me atacar, precisei me defender – Aeno não queria olhar naquela direção, porque a imagem dos corpos mutilados... Duas partes dele ainda lutavam para entender se gostavam ou não daquilo.
– Por favor, Aeno, solte a faca... – Lurion pediu com um tom calmo. Forçou a saliva espessa a descer pela garganta seca e agradeceu às luas que o rapaz não parecia particularmente interessado em encará-la. Quando ele obedeceu, ela encurtou a distância apenas o suficiente para puxar a lâmina com a ponta do sapato. Chutou-a pelo cabo para longe. – Agora me diga o que está acontecendo. Quem te atacou?
– Ele – fez um gesto vago para aquilo ao seu lado. As sobrancelhas de Lurion se juntaram quando ela franziu a testa.
– Aeno. Olhe para ele.
– Não.
– Olhe.
– Não posso.
– Aeno! Olhe! – ela ordenou por fim. Venceu os passos que os separavam e agarrou o rosto do rapaz, virando-o na direção de seu inimigo.
A parte sensata dele fechou fortemente seus olhos, porque sabia que não queria ver a cena. A outra parte, entretanto, aquela com a imaginação fértil e a curiosidade aguçada, forçou seu olho esquerdo a se abrir minimamente, apenas para uma espiada. A imagem já estava plantada em sua cabeça: a massa confusa de sangue, carne e cabelos, um osso branco despontando de algum lugar e brilhando sob as luas. Mas ali havia apenas terra remexida e grama revirada. Os cortes feitos pela adaga eram visíveis no solo macio.
– Quem te atacou, Aeno? – Lurion se colocou no foco de sua visão.
– C-como? Eu o vi. Eu cortei sua garganta – ele afirmou.
A língua de Lurion passeou pelos lábios enquanto ela pensava numa explicação. Pegou a mão do amigo e começou a conduzi-lo entre as tendas.
– Você deve ter batido com a cabeça. Ou tomou uma daquelas coisas com veneno. De qualquer modo, vamos para a enfermaria.
– Eu não...
– Não estou te convidando. Você vai – finalizou. Entrou com o rapaz pela enfermaria e marchou para o primeiro Guardião que localizou. – , precisa ajudá-lo. Aeno atacou o chão ao lado dele porque acreditava sinceramente que havia alguém ali tentando atacá-lo.
– Você faz parecer ridículo – ele reclamou.
– Cale a boca. Você fala quando alguém falar com você. Ele estava suando muito, tremendo... Será que está sob efeito de algum veneno? – Lurion continuou.
– Quantas outras pessoas te atacaram dentro desse acampamento? – foi o desgarrado que vinha conversando com quem perguntou.
– Eu não sei... Talvez cinco ou seis.
Os olhos confusos de se alternavam entre Aeno e o desgarrado.
– Achei que você tinha dito... – ela começou entredentes, a mão buscando instintivamente a espada.
– Ei, calma – ela ouviu a voz do irmão atrás de si. – Dessas pessoas que te atacaram... Você consegue se lembrar quantas se pareciam com as que viu durante a batalha?
– Acho que... Acho que todas. Por isso sabia que eram inimigos.
– E, se você vasculhar bem na sua memória, você não as viu morrer lá? – Kyle questionou. Aeno não conseguiu falar.
– O quê? – olhou-o assustada. – Um necromante? Murrough, eu confiei em você... – encarou o desgarrado com raiva.
– E não fez nada errado, centelha. Não acha estranho que apenas uma pessoa tenha relatado esse tipo de ataque? Se fosse um necromante, com certeza estaríamos vendo mais vítimas. Não... – Kyle coçou o pescoço antes de continuar. – Sei bem o que é isso. É algum tipo de reação ao que se vive em batalhas, algumas pessoas não conseguem lidar com o trauma. Já vi em alguns Soldados. E pelo visto seu amigo também.
– É... – Murrough deu de ombros. – Vi em alguns Soldados também – seu tom de voz parecia querer alfinetar Kyle, que deu um passo ameaçador na direção do rapaz. – Meu pai... – explicou. – Ele costumava ser um Soldado de Mirth. Mas algo aconteceu durante um dos combates em que se envolveu. O que quer que tenha sido, foi o suficiente para que ele me implorasse que jamais me juntasse a Mirth. Foi por causa dele que eu me desgarrei. Achei que, se fosse para a ilha, ficaria igual a ele. Só depois foi que descobri que esse tipo de sofrimento existe em qualquer lugar.
– Bem... Se vocês dois sabem tanto sobre isso, podem ajuda-lo, certo? – Lurion olhou-os ansiosa.
– Claro, Lurion. Fique tranquila – lhe ofereceu um sorriso confiante, mas os dois rapazes trocaram olhares apreensivos.
– Por que você não arranja um pouco de néctar para o seu amigo? – Murrough sugeriu com um sorriso gentil. – Enquanto isso, , nós conversamos sobre algo – antes que a Guardiã pudesse responder, ele puxou-a delicadamente pelo braço até que estivessem longe o suficiente dos demais. Kyle os seguiu de perto e foi o primeiro a falar.
– Certo, hoje durante a batalha um de nós fará o serviço... Quando ninguém estiver olhando, o atacaremos e parecerá que ele morreu em batalha, com dignidade.
– O quê? Kyle, como pode sugerir algo assim?
, é o que podemos fazer de melhor por ele. Acredite, eu acompanhei alguns Soldados nessa mesma situação, e eles prefeririam que um de seus companheiros fizesse isso por eles do que ter que passar o resto de suas existências com esse sofrimento – o Soldado desviou o olhar, como se lembrar daquilo já fosse duro o suficiente.
– Mas trataremos Aeno! Ele ficará bem.
– Não, ele não ficará. Não há tratamento para o que ele tem. A alma dele está quebrada, não há conserto. Acredite, matá-lo em batalha é o mais digno a se fazer por ele – Kyle insistiu.
– Não! Já não basta a quantidade de mortes inevitáveis? Já não basta que nossos inimigos nos estejam matando? E agora você fala... – ela abaixou o tom de voz. – Fala em matarmos os nossos? Não permitirei. Além disso, não é o único que entende disso, Murrough pode nos contar como curaram o pai dele – a ruiva olhou em expectativa para o desgarrado. Ele arregalou os olhos.
– Você deve ter me entendido errado, Guardiã. Eu nunca disse que ele foi curado. Muito pelo contrário, jamais pudemos leva-lo de volta para casa. Tentamos, e ele teve uma de suas crises... – Murrough abaixou a gola de sua blusa para mostrar um conjunto de cicatrizes na base do pescoço. – Ele tentou me matar enquanto eu dormia. Tivemos que deixa-lo em um centro de recuperação de Soldados. Se seu irmão está nessa vida há algum tempo, ele sabe que a recuperação está apenas no nome desses lugares. São depósitos de Soldados quebrados. Concordo com Kyle, a morte em batalha é o mais digno para o seu amigo.
– Pois digam o que quiserem, eu não aceitarei. Nós cuidaremos de Aeno. Temos ótimos curadores e acesso a uma quantidade imensurável de ervas e livros... Descobriremos um modo de ajuda-lo.
– É inútil, – o desgarrado tentou intervir.
– Não me importa! Ninguém dirá que eu não dei o meu melhor por esse garoto. E é melhor que vocês torçam para que ele não morra em batalha! Porque se ele morrer e eu, mesmo que por meio segundo, imaginar que algum de vocês tem algo a ver com sua morte... Vocês vão desejar que outra pessoa os encontre antes de mim – ela ameaçou e uma de suas mãos foi parar instintivamente na espada. – E eu falo sério! Não estou aqui como irmã ou amiga de vocês. Nesse momento eu sou o que Mirth precisa que eu seja, e isso não é uma Guerreira ou uma Guardiã, mas sim a líder de nosso povo. Então não ousem desafiar minhas ordens, ou pagarão com suas vidas. Não pensarei duas vezes quanto a isso. Estamos entendidos? – o fogo em seus olhos era quase capaz de queimá-los. Os dois rapazes anuíram com a cabeça, mesmo que não parecessem muito felizes com a ideia.
– Ele irá te odiar por fazê-lo viver com isso – Murrough declarou antes de voltar para seu posto dentro da enfermaria.

Qualquer bom estrategista estaria enlouquecendo agora. Se sobrevivesse, Aira tinha certeza de que a primeira coisa que faria em Mirth era botar em prática aulas de estratégia em batalha. Afinal, não adiantava nada que eles discutissem durante a noite as melhores táticas contra os inimigos, se durante a batalha as crianças simplesmente passassem a agir randomicamente. Estavam assustados, claro, e o medo por vezes tinha a capacidade de desligar a lógica em suas cabeças, mas ela sabia que isso não aconteceria com tanta frequência se eles soubessem para quem olhar durante a batalha. Porque, por mais que a hierarquia devesse ser respeitada e os Guardiões devessem ser os líderes do ataque, eram os estrategistas os que mantinham a calma na guerra.
Agora, por exemplo, ela via ao longe jogar fora toda a estratégia pensada com cuidado, agindo descontroladamente enquanto corria no meio dos inimigos. Logo ela estaria exausta pelo tanto de poder que desprendia sem cuidado, e influenciava as crianças a sua volta a agirem da mesma forma, já que era a figura de autoridade ali.
Aira revirou os olhos, resolvendo ignorar a cena que a Guardiã protagonizava. Se tivessem ensinado desde o início que as crianças se inspirassem nos estrategistas, eles ao menos teriam uma chance. Afinal, aqueles com melhores chances de sobreviver numa guerra não eram os melhores em luta corporal ou os que atacavam de longe, mas sim os estrategistas. Eram os últimos a morrer, porque sempre mantinham a calma.
Algo no chão lhe chamou a atenção. Eram os olhos abertos de Albero, fixos num ponto perto do horizonte. Seu corpo travou. Aproximou-se do amigo, ajoelhou-se ao seu lado e seus dedos trêmulos tocaram a pele gelada dele. Ela o sacudiu, tentando acordá-lo sem sucesso. Olhou em volta, notando a batalha que ainda acontecia.
– Acorde, Albero! Vamos, precisamos sair daqui – ela pediu com a voz frouxa. Como o rapaz não tinha qualquer pretensão de respondê-la, Aira pegou seus dois braços e o arrastou para o mais longe que conseguiu da confusão. Escondeu-se atrás das paredes destruídas do que um dia deveria ter sido um armazém.
Beliscou com os dentes o lábio superior, já sabendo o que deveria fazer e ignorando o fato de não gostar da ideia. Com um suspiro ela canalizou toda a sua energia até a mão que seguia segurando um braço de Albero. Sabia que Mirth condenaria aquela prática, mas naquele momento o que precisava era salvar a vida de seu amigo.
Observou enquanto ondas anis vagueavam de seu braço até o braço de Albero, espalhando-se pelo corpo dele até desaparecerem por completo. Sua mente tentava com afinco bloquear o pensamento do olhar julgador que Fintan lhe daria se descobrisse o que estava fazendo ali.
Que as luas o punissem! Ele e sua hipocrisia! Enquanto trabalhava na enfermaria, utilizando da mesma prática para curar os quase incuráveis, ele não reclamava. Quando fizera isso inúmeras vezes para salvar vidas após os jogos mais violentos em Mirth, ele a elogiava. Agora, só porque buscava salvar a vida de um amigo que já estava...
Aira sacudiu a cabeça, expulsando os pensamentos. Albero não estava morto! Não estava, nunca esteve e ela jamais o deixaria estar.
As ondas agora se espalhavam até pontos mais distantes do corpo dele. Abriu um sorriso dolorido em meio às lágrimas. Ela o curaria.
Estava concentrada demais no procedimento para perceber o que se desenrolava ali perto, então não escutou os passos que se aproximaram. Mas sentiu a dor. A dor lancinante que se estendeu do braço para o resto do corpo. Exceto na direção da mão, que já não correspondia mais aos seus comandos. A mão que repousava junto ao braço do amigo.
Aira trincou os dentes e domou o ar ao seu redor. Manipulou-o como uma lança e forçou-a contra o inimigo, que de imediato caiu ao chão com o peito perfurado. Ela olhou para Albero, e precisava pensar rápido agora. Via que ele começava a recobrar a cor, e seu corpo começava a ter pequenos espasmos. Porém ela mesma começava a ceder. Se continuasse alimentando o corpo dele, morreria. Engoliu com dificuldade a saliva que se acumulava e sentiu uma lágrima solitária escorrer por sua bochecha.
– Se eu continuar, nenhum de nós sobreviverá. Eu sinto muito – ela sussurrou enquanto se inclinava sobre o rosto dele. Antes das ondas cessarem, ela depositou um beijo cuidadoso em sua testa. – Eu amo você, mas preciso continuar – sussurrou contra sua pele. As ondas desapareceram e ela projetou um escudo ao seu redor. Quando se levantou, sua mão ainda estava segurando o braço de Albero, e lá permaneceu enquanto se afastava.

Parecia uma dança.
Passos tão bem executados que só poderiam ter sido coreografados. O modo como sua lâmina dançava ao seu redor em movimentos tão flexíveis, surreais para a dureza do aço, lembrava uma dança com tecidos que uma vez assistira. O metal quase tocava sua pele, como a promessa de um beijo que nunca se concretizaria. Seus cabelos, de um preto tão escuro que talvez mesmo a ausência de luz nunca fosse capaz de reproduzir, se insinuavam perto de pingos de sangue, sussurravam ao vento e mesmo assim nunca pareciam desorganizados. Seu vestido – pelas luas! A mulher usava um vestido durante a luta – permanecia intocado, sem rasgos ou um pingo de sangue que indicasse o contexto. De um branco tão branco como o preto de seus cabelos era preto, fornecendo um contraste perfeito e distrativo.
Às vezes existia algo nela que a fazia sumir, e Sean, que passara a última hora observando a inimiga, ficava mesmerizado com aquela capacidade. Porque ela não desaparecia, não ficava invisível ou qualquer coisa do tipo. Na verdade, seus olhos sabiam muito bem onde encontra-la, mas era como se algo em sua mente simplesmente não pudesse captá-la, como se ela se tornasse apenas um ruído de fundo ao qual ele se acostumara rápido demais.
Durante o tempo em que a esteve observando, escondido em uma árvore, Sean a viu matar mais de seus companheiros do que era capaz de contar. Não estava orgulhoso de si, pois sabia que ao menos poderia tentar confrontá-la. Entretanto, sentia-se hipnotizado. E não poderia lutar se fosse ficar prestando atenção nos traços dela, no modo como ela se movia com graciosidade. E... Se fosse para ser sincero, tinha medo dela. Sua imaginação já criara cenários em que ela o matava tão fácil e simplesmente como uma faca cortando espuma.
Porém, enquanto a olhava, algo aconteceu. Porque ela apenas parou de frente para uma casa, com a boca entreaberta e parecendo tão hipnotizada pelas paredes quanto Sean estava por ela. A moça ficou parada ali por tempo o suficiente para que o Guerreiro juntasse a coragem necessária para descer de seu esconderijo e resolver ataca-la. Tinha a espada erguida e vinha correndo da forma mais silenciosa que conseguia, pronto para machucá-la.
– Não ouse – ele a ouviu dizer, parecendo finalmente sair de seu transe. Mas já era tarde demais. Ela continuava olhando para a casa quando uma parede o atingiu.
Não exatamente uma parede, mas era duro feito uma, e o fez perder o ar quando atravessou seu peito. Sean cuspiu sangue. Não era muito, e talvez tivesse sido porque ele mordeu a própria língua com a força do impacto daquela barreira invisível. De algum modo, ainda que parecesse que todos os ossos de seu corpo tivessem se quebrado em mil pedaços, ele seguia segurando a espada firmemente quando ela abriu um rasgo na pele dela.
Ela passou os dedos de uma mão na ferida e por um momento apenas encarou o sangue escuro que os manchou. Por algum motivo, Sean imaginou que tudo havia acabado. Que aquela entidade iria se desintegrar conforme o sangue vazava de seu ombro. E, talvez, quando ela desaparecesse, o restante dos inimigos também iria.
A moça, porém, apenas sorriu sinistramente para o líquido espesso e, com a mão limpa, ergueu sua perigosa espada. Sean sequer sentiu o golpe. A próxima coisa que viu foi a lâmina saindo de si, manchada de sangue.
– É uma pena que coragem não seja o suficiente para lutar esta batalha – ela apontou.
Sean quis gritar, mas quando abriu a boca, mais sangue saiu. Dessa vez era demais, e ele tomou um segundo para se preocupar consigo mesmo antes de lembrar o motivo para o grito.
Viu chegar sorrateiramente por trás da inimiga, e viu a lâmina dele despontar através da pele dela. Ela sequer parecia sentir dor, seu rosto permaneceria impassível, não fosse pelos olhos que se estreitaram, como se ela estivesse, de algum modo, ofendida pela audácia do outro rapaz.
Se ela tinha usado a mesma técnica que com Sean, então dessa vez a barreira veio por trás de , porque seu corpo foi impelido para a frente, para mais perto da moça, enquanto ele arregalava os olhos e não parecia capaz de respirar. Sean investiu contra ela, enquanto ela investia contra , e quando ele bateu com a espada no braço dela foi apenas o suficiente para que o ataque da moça não se encaminhasse para o torso do Guerreiro do Fogo, então sua lâmina penetrou a coxa do rapaz.
Como ela havia se inclinado para o ataque, foi fácil para jogar o cotovelo contra o rosto dela. Antes que ela pudesse se recuperar, o punho de sua espada encontrou o ponto certo em sua orelha e deixou-a tonta. Quando sua postura cedeu ainda mais alguns centímetros, como ele esperava, ergueu a própria perna, pronto para a joelhada no queixo que a deixaria desacordada. A dor na perna de apoio, contudo, o fez parar no meio do ato.
A moça aproveitou o momento de falha do rapaz para fazer um de seus movimentos circulares com a espada, e ela acertou novamente a perna de e o estômago de Sean em um só golpe.
– Não se preocupem – ela soltou tranquilamente uma vez que já estava de pé sobre os dois oponentes, que agora estavam caídos no chão, um de cada lado dela. Arrancou uma parte rasgada de seu vestido e com ela limpou a lâmina da espada e os próprios ferimentos. – Eu prefiro vê-los sofrendo do que finalizá-los – e deixou-os ali. Se sentia alguma dor nos machucados que adquirira naquela curta briga, ela não demonstrava, pois caminhou para longe com a graciosidade de uma deusa.
Com dificuldade, rastejou até Sean, que segurava a própria barriga na esperança de diminuir o sangramento, que agora vazava por entre seus dedos. Sua cara não estava das melhores, mas ele conseguiu juntar forças para ser o primeiro a falar.
– Por que fez isso? – questionou com muita dificuldade. – Agora nós dois morreremos.
– Cale a boca – respondeu enquanto verificava o ferimento do rapaz. Ignorava a própria perna que esguichava sangue. – Você não vai morrer.
Sean tentou rir, mas seu riso não passou de uma expirada sofrida, acompanhada de tosse e mais sangue. Ele segurou a mão de , que tentava examiná-lo, com a sua própria, suja de sangue. Balançou-as fracamente juntas e sorriu um sorriso frouxo.
– Eu vou, . Olhe para... Isto... – ele soltou a outra mão da própria barriga e o Guerreiro do Fogo percebeu um órgão rosado escapando da ferida. Sean agora respirava com mais dificuldade pela boca e algumas bolhas de sangue lhe escapavam por ali.
– Não! Eu posso ajudá-lo. Não vai ser confortável, mas se você deixar eu tocar aí... – ele levantou a mão livre, mostrando-a incrivelmente vermelha e quente. – Eu posso cauterizar os ferimentos...
– É melhor que você... guarde toda a sua... energia... para si – Sean conduziu as mãos juntas até a perna de , indicando o enorme rasgo que não parava de perder sangue. – Aceite... ... – Sean sorriu mais uma vez, e parecia que não sentia mais dor. – Eu vou morrer. Eu já... aceitei isso. Não há... nada... – o ar já não parecia alcançar seus pulmões e ele fazia um som molhado ao tentar puxá-lo. – Que eu ou... você... possa fazer – Sean soltou um gemido incômodo. – Só... vamos fazer... um trato... sim?
– Diga – conseguiu soltar em meio às lágrimas.
– Você manterá... um olho em... Elba... minha irmã... por mim. E eu... – ele tossiu mais uma vez e uma enorme quantidade de sangue escorreu por seu queixo. – Eu prometo que... cuidarei de Sunday... até a despedida – parecia satisfeito com o acordo que oferecera. Os lábios de tremeram e pela primeira vez ele deixou que o choro tomasse conta de seu corpo inteiro, soluçando e tremendo. – Sim, ? Prometa.
O Guerreiro do Fogo engoliu os soluços e mexeu a cabeça em afirmativa. Apertou a mão do colega e, ainda soluçando, olhou no fundo de seus olhos.
– Eu prometo. Diga a ela que eu sinto muito – pediu.
– Vou dizer... a ela que... você... a ama – Sean mostrou seus dentes pintados de sangue num sorriso brincalhão. – Agora... Elba é apaixonante... mas... por mais que... você caia por ela... nunca a deixe... abusar de você.
– Eu não vou... – começou, mas o outro o cortou.
– Sim... você vai. E está... tudo bem. Desde que você... cuide... dela – Sean apertou mais uma vez a mão de .
– Prometo.
– Bom – Sean disse com mais um sorriso. Virou a cabeça para o lado oposto e despejou uma quantidade alarmante de sangue. – Por favor... fique só... mais um segundo... – voltou a olhar o companheiro, e seus olhos já começavam a perder o brilho. – Obrigado – ele murmurou por fim, e mais nenhum som escapou de seus lábios. Sua mão repousava agora frouxamente entre os dedos de , e ele permaneceu ali ainda alguns segundos.
Depois, o lutador soltou-o e apertou com força a mão em chamas na própria perna, cauterizando a ferida que ainda então esguichava e segurando entre os dentes o grito de dor que aquilo lhe causava. Levantou-se e, mancando, seguiu de volta à batalha. A dor da ferida queimada era uma tortura de se aguentar, mas ele o faria, porque agora tinha um propósito.

– Pelas luas, mas o que essa garota está fazendo? – alguém gritou do meio do campo de batalha.
– É ! – outra pessoa exclamou depois de olhar para a cena por alguns segundos, mas sem deixar de trocar golpes de espada com algum inimigo. Por fim o imobilizou e enfiou a espada em sua garganta, até que sua ponta aparecesse através da nuca.
– O que é que aconteceu com ela? – foi Muncie quem questionou. Ele suava e seu braço da espada já doía.
– Você não sabe? – Tharja apareceu logo acima dele, uma de suas tranças roçando seu rosto quando ele o ergueu para enxerga-la, e, por um segundo, ele achou que a garota estava voando. Foi só depois que percebeu o brilho do fio que a sustentava desde um galho de uma grande árvore. – Aquela desgarrada de quem ela estava cuidando na enfermaria morreu logo antes da troca de equipe. ainda tentou salvá-la, mas não houve sucesso. Ela está possessa – a caçadora disparou uma sequência de flechas com sua besta, bem ali, centímetros acima do colega. O rapaz ainda teve a indecência de se abaixar, como se temesse ser atingido. Por isso, ela movimentou-se com agilidade naquele sistema de fios que só ela entendia e deu-lhe um leve chute na nuca.
– Alguém precisa ir pará-la – Muncie observou. – Desse modo vai gastar toda sua energia, vai se acabar antes do fim da batalha. Ela sequer está agindo coerentemente. Se não a conhecesse, diria que não passou pelo treinamento de estratégias...
– Fique à vontade – Tharja riu, impulsionando-se de modo a voltar a subir para os galhos da árvore. O rapaz olhou em volta e todos os Guerreiros pareciam concordar com ela, pois não se moveram na direção da Guardiã.
– Vocês só podem estar de brincadeira – ele reclamou, passando a mão pelos cabelos e deixando-os ainda mais bagunçados. Como ninguém mesmo parecia inclinado a ajudá-lo, foi sozinho até onde a Guardiã soltava rajadas descontroladas de fogo para todos os lados. – ...
– Saia antes que se machuque, Muncie! – sua voz exalava ódio. Àquela altura, havia uma porção de inimigos insanos o suficiente para querer lutar contra ela. Eles tentavam derrubá-la de toda forma, mesmo que alguns sequer conseguissem chegar perto o suficiente da Guardiã.
Muncie pensou por dois segundos, até conseguir estabelecer uma boa estratégia. Colocou-se de costas para as costas dela, próximo o suficiente para que ela pudesse escutá-lo, e de modo que os inimigos não poderiam ataca-los desavisadamente.
– Escute... Sei que você está chateada com o que aconteceu hoje mais cedo. Mas não pode deixar que isso a consuma. Perder alguém de quem cuidamos é horrível, e sei que você depositou nessa garota os cuidados que queria ter a oportunidade de dedicar a Sunday... – pela visão periférica ele notou quando a Guardiã parou por um segundo, percebendo que havia atingido o ponto certo. – E está tudo bem. Só que você sabe que, como fez em relação à Sunday, nesse caso, você também precisa engolir seu sofrimento e voltar a se limitar aos planos que havíamos traçados. Eu sinto muito, mas agora nós não podemos sofrer. Precisamos sobreviver, . E você é a nossa melhor chance pra isso.
– Eu... Não consigo, Muncie – declarou enquanto suas mãos continuavam lançando ondas de fogo por todos os lados. Ela estava suada e fios de seus cabelos haviam se grudado ao seu rosto, formando padrões interessantes e se assimilando a linhas de sangue.
Mais uma vez o rapaz pensou. Dessa vez não porque precisava encontrar o que dizer, mas porque sabia que o que diria a seguir a acertaria de uma maneira que não era capaz de prever. Sabia, entretanto, que era o necessário a ser dito naquele momento.
– Não é um pedido, . Eu até poderia ser bonzinho com você e tentar te consolar, mas não dá! No momento você está atrapalhando nossos planos, Guardiã. Está assustando os demais Guerreiros e dando o exemplo para que eles fujam da estratégia. E eu não posso permitir isso, porque nós trabalhamos duro, perdemos tempo de nosso descanso para criar um bom plano, e não é você quem vai estragar tudo! Então eu sinto muito, mas, por todo fogo que ainda há de queimar, engula o seu sofrimento e comporte-se como a Guardiã que eu sei que você é. Mostre aos demais porque o Fogo respeita sua representante e aja de acordo com o motivo pelo qual você representa a liderança de todo o nosso povo. Não nos faça arrepender da confiança que depositamos em você, e não constranja Sunday, que ainda vaga por aqui – sua voz tinha assumido um tom autoritário que nem ele sabia que poderia produzir, e quando ele terminou tinha os olhos arregalados e arfava.
por fim olhou-o, e seus olhos queimavam. Ele achou que ela o mataria a qualquer segundo, mas, para seu espanto, ela mexeu minimamente, porém decididamente a cabeça em um único movimento para baixo, demonstrando acatar à ordem. Quando ele achou que ela simplesmente partiria, a moça virou-se totalmente para ele.
– Obrigada – e envolveu-o com os braços. Foi tão rápido que, quando acabou, ele duvidou que realmente tivesse acontecido. Observou-a tomar ar e partir, como se a conversa nunca tivesse acontecido, e como se nunca tivesse perdido o rumo na batalha. De repente ela estava novamente focada na estratégia da guerra e retomara a postura de líder, trazendo de volta também alguns Guerreiros próximos que haviam perdido a organização da luta.
– Você é muito bom com ela. Se eu falasse coisas assim, as luas que me protejam, mas por mais resistente ao fogo que me tenham feito, eu seria queimada por inteiro – Tharja apareceu novamente por cima dele, fazendo-o pular de susto. Muncie riu e negou com a cabeça.
– Ela é diferente dos outros Guardiões. Nos respeita e entende que as luas nos fizeram líderes porque podemos saber mais do que ela sobre algumas coisas. só não escutaria você porque sabe que os caçadores são inúteis – alfinetou. Quando ela tomou impulso para acertar um chute em sua cabeça, errou, pois ele se abaixou rapidamente. – Estrategista, meu bem – Muncie lhe deu uma piscadela. Tharja riu.
– Acho que finalmente entendo porque as luas te colocaram nesse papel – ela bagunçou os cabelos dele, e antes que ele pudesse lhe perguntar o que queria dizer com aquilo ela já havia sumido entre as árvores.

– Oh, pelas luas! Esse é Albero – Rio informou. Suri ajoelhou-se ao lado do rapaz, tocando seu pescoço. Mexeu a cabeça de leve para um lado e para o outro. – E o que...
– É o braço de Aira – a moça respondeu ao notar a oração em forma de redemoinho que a garota levava marcada no antebraço. Apontou-a para que a outra a visse. Rio abaixou-se ao seu lado e congelou o braço amputado, repetindo o processo em seguida com o corpo do colega. – Você consegue colocá-lo na carroça sozinha?
Rio soltou um som que parecia com um sim e começou a arrastar o corpo. Suri continuou a exploração. Arrastava consigo uma carroça menor, destinada a recolher armas e escudos. Ela não gostava da parte dos mortos, embora não houvesse como escapar. Estacionou perto de uma casa e se pôs a resgatar espadas e flechas caídas por ali. Um pouco mais distante notou colegas com carroças parecidas com a sua, que retiravam entulhos do meio do campo.
Sinceramente, Suri também não gostava de recolher espadas, pois conseguia reconhecer muitas como as de colegas seus, e por elas descobria que, provavelmente, a próxima vez que os veria seria na despedida. Se tivessem sorte, na enfermaria. Tentava não pensar nisso, especialmente quando reconhecia uma espada do Fogo. Porém, quando pegou aquela, seu coração falhou uma batida e seus sentidos ficaram confusos. Olhou ao redor, confusa, e esperando que as luas iluminassem com mais força onde ele estava. Finalmente o encontrou, caído, com o rosto voltado para o chão, mas sabia que era.
! Não, por favor, não! – pediu enquanto corria na direção dele. Antes mesmo de chegar, atirou-se de joelhos no chão, derrapando sobre eles até atingir o amigo. Virou-o de barriga para cima e segurou seu rosto. – , por favor, não! – olhou para as luas acima de si, pedindo silenciosamente para que poupassem o amigo. Como gostaria de saber uma oração agora. Se ao menos tivesse o braço de Aira consigo ali. Poderia lê-la. As luas iriam entender. As luas lhe devolveriam . Porque ela já havia perdido Sunday. E Reed. E uma porção de outros amigos. Elas tinham o dever de lhe devolver . Na falta da oração, ela apenas pediu. Finalmente tocou o pescoço do amigo, mas ele estava gelado. Colocou a espada logo abaixo de seu nariz e viu o aço extremamente polido embaçar minimamente. – ? ? – o sacudiu.
Como se estivesse num sono muito bom, do qual não queria acordar, ouviu o rapaz resmungar minimamente. Um de seus olhos se abriu. O outro estava inchado e roxo demais para seguir o comando.
– Está... frio – o rapaz murmurou. Ela lançou fogo num amontoado de entulhos ali perto e o arrastou para que se aquecesse. – Estou cansado... Suri... Amanhã – ele suspirou e virou o corpo a fim de deitar-se sobre seu lado esquerdo. Foi a dor que o trouxe de volta, fazendo-o praguejar como se nunca houvesse estado quase morto. Usou tantas palavras feias em tantas línguas diferentes que Suri desistiu das lágrimas para rir. Ela o abraçou com carinho e beijou-lhe as bochechas.
– Está vivo! – celebrou.
– Como não estaria? – ele disse por fim, com um sorriso que era só seu. – Não achou que a deixaria ser líder sem atormentá-la, certo? – Suri se colocou de pé e ofereceu a mão para ajudá-lo, mesmo sabendo que ele recusaria. Para sua surpresa, entretanto, o rapaz aceitou e se deixou ser içado para cima.
A moça prestou atenção nele, finalmente percebendo a força que ele fazia para manter o sorriso seguro no rosto, e como cada passo parecia ter um nível de dificuldade alarmante. Ela o parou antes que ele começasse a se afastar.
– Está ferido, – finalmente percebeu. Viu o amigo estagnar por um segundo enquanto seu sorriso esfriava, mas logo ele o rearmou e sacudiu a cabeça.
– Não. Mas obrigado por se preocupar – tentou se desfazer da companhia dela.
– Eu não perguntei. Estou lhe dizendo que está. E você sabe – Suri parou de frente para ele e abaixou-se, notando o rasgo em suas roupas e o corte feio e mal curado do amigo. – Precisa ir para a enfermaria, ! Isso está horrível – ela estendeu a mão para tocar na ferida.
– Não! – ele finalmente pareceu desesperado. Suri afastou a mão, mas permaneceu encarando o machucado. – Se eu for, não me deixarão lutar nos próximos dias. E eu preciso lutar, Suri! Por favor, não conte a ninguém e nem me faça ir lá. Eu lhe imploro – quando ela fitou seus olhos, notou a lâmina de água que os cobria.
– Se você não for, , poderá perder essa perna. Precisa de um curador! – ela se colocou de pé novamente, encarando-o e deixando que percebesse que ela também estava desesperada.
– Eu não ligo! É um preço baixo, se considerarmos todas as mortes que já foram. Todas as mortes que posso evitar. Por favor, Suri, deixe-me lutar. Se você contar a alguém... Além de me humilhar, fará com que nunca mais me dirija a você.
A nova líder considerou durante um momento. Como se aquilo lhe doesse, consentiu.
– Faremos do seu jeito então. Mas me deixa pelo menos te ajudar – pediu. afirmou com a cabeça e desviou o olhar quando ela dirigiu a própria mão quente até sua perna. Quando ela o queimou, percebeu as mãos dele fechando-se fortemente e notou gotas de sangue escorrendo de suas palmas.
Quando ela terminou, viu um rastro molhado no rosto do amigo. Ele ofereceu, como agradecimento, um sorriso fraco no rosto agora lívido de dor.
– Você é uma boa amiga, Suri – deu leves tapas no ombro dela.
– Sou. Agora vá descansar. Rio deve partir com a carroça agora, sente-se nela e não faça mais nenhum esforço. Se eu souber que não pegou a carona ou que não seguiu essa ordem, contarei a todos e ficará de castigo na enfermaria até o fim da batalha. Estamos entendidos? – seu tom foi firme e o rapaz não teve escolha, senão confirmar com a cabeça e dirigir-se para a carroça que ela apontava. Quando ele já estava distante, ela olhou para as luas e deu um sorriso de alívio. – Obrigada – soltou por fim, e teve a impressão de ter sido compreendida.


Capítulo 25

As cortinas que faziam as vezes de portas das tendas adjacentes da enfermaria foram abertas em sequência. A cada vez, inchados e preocupados olhos azuis escrutinavam o espaço ali dentro, procurando. Seu alvo não estava ali. O rosto cansado onde eles repousavam abandonou a fresta daquela porta improvisada e o corpo já entorpecido buscou outra direção. De algum modo, todo aquele conjunto de membros doloridos encontrou o que buscava num dos cantos menos desejados do acampamento. Ele não saberia sequer dizer como havia chegado até ali, porque naquele momento era um caminho que apenas os seus pés lanhados sabiam.
Como se tivesse ouvido seus passos quase silenciosos, secou o rosto antes mesmo dele a alcançar. Não fazia diferença, porque mesmo que sua expressão fosse dura e fechada, ele sabia que ela estivera chorando. Nada ali indicava isso, e esse era justamente o motivo porque ele sabia.
Tão logo percebeu que era ele, sua expressão dura se desmontou.

– O que está fazendo... aqui? – ele completou depois de olhar em volta. Era o ponto do acampamento em que eles conservavam os cadáveres congelados de seus colegas. Um arrepio percorreu suas costas, involuntário e provocativo, fazendo sua pele doer.
– Eu não aguento mais perder – ela murmurou. Estava encolhida contra uma grande pedra e tinha os braços em torno dos joelhos, segurando-os com força contra o próprio peito. terminou de se aproximar dela.
– Como? Eu não diria que estamos perdendo... Na pior das hipóteses, estamos em pé de igualdade com eles.

A princípio, ele recebeu como resposta seu olhar que demonstrava incredulidade e sofrimento. Desistindo, a Guardiã simplesmente apontou para o amontoado de corpos, deixando que novas lágrimas escorressem por seu rosto. Sua boca já se havia aberto algumas vezes, mas demorou alguns segundos para que sua voz conseguisse se projetar.

– Não estamos? – o gesto precisou ser amplo, porque ali havia muitos corpos. – Estamos perdendo amigos todos os dias, ! Estamos perdendo Guerreiros, perdendo Soldados, perdendo aliados. Perdemos enfermos a cada hora – seus lábios se comprimiram numa linha muito fina, quase desaparecendo.

aproximou-se ainda mais, sentando-se ao seu lado e entendendo agora o que ela queria dizer, e finalmente envolveu os braços ao redor do corpo dela. Foi o necessário para que ela derretesse, então a Guardiã enroscou fortemente os dedos na camiseta dele e pressionou o rosto em seu pescoço, inundando-o de lágrimas. Uma das mãos dele deslizou calmamente pelos cabelos vermelhos, onde seu rosto também se escondia e seus olhos escorreram sobre aquele mar rubro. Se o choro de era silencioso, o seu lhe causava sôfregos soluços que sacudiam seu corpo inteiro.
Porque ele também não aguentava mais perder.
Seria errado dizer que com o tempo eles se acalmaram, mas ao menos deixaram de chorar. Agora, apenas permaneciam abraçados e ele tinha o queixo apoiado sobre o topo da cabeça dela. Os olhos permaneciam fechados, porque não conseguiam encontrar um ponto adequado para se fixarem. Afinal, para onde quer que os dirigisse, encontrava uma pilha de cadáveres. Não significava que a escuridão dentro de suas pálpebras fosse diferente. Nela se escondiam rostos familiares, se reproduziam as cenas insanas da batalha, se repetiam num loop infinito as mortes que presenciara e, ainda pior, as que causara.
Entre seus braços, se remexeu, secando as poucas lágrimas que a camiseta dele falhou em absorver. finalmente voltou a abrir os olhos, notando como a escuridão ali, fora de suas pálpebras, era pouco distinta. Ele suspirou.

– Está assim por causa dela, não é? – apontou com o queixo para uma das pilhas de mortos. Não tinha certeza se ela estava exatamente ali, mas sabia que estava em algum lugar lá. – A desgarrada?
– Hayala – ela afirmou com a cabeça enquanto falava o nome. Uma de suas mãos correu para secar novamente o rosto, mesmo que não houvesse mais lágrimas ali. – Eu não sei o que fiz de errado, . – por um momento a testa dele se enrugou, como se esse estímulo o ajudasse a processar melhor a informação. Finalmente, pareceu entender o que ela queria dizer.
– Você não fez. Deu o seu melhor, ofereceu seu tratamento mesmo quando todos os outros desistiram dela. E não por ela ser uma desgarrada, mas porque viram que ela não tinha salvação, . E você também viu. Não é estúpida. Você sabia – ele a segurou pelos ombros para que ela o olhasse. Quando ela o fez, o rapaz notou a dor em seus olhos vermelhos. Sentiu um nó lhe tomar a garganta. Era difícil respirar ao vê-la daquele jeito.
– Mas realmente achei que ela sobreviveria. Ela estava resistindo, lutando tanto. – a Guardiã abaixou a cabeça, como se o chão lhe fosse oferecer alguma explicação plausível para os últimos acontecimentos. – Não consigo nem pensar em como vou encarar Murrough depois disso. Ele irá me detestar, e não há nada que possa fazer contra isso, pois estará certo.
– Não, ele não vai – o rapaz parecia ofendido. – Tenho certeza de que tanto Murrough quanto Hayala estão gratos pelo que você fez. Deu a eles a chance de estarem juntos por mais tempo, facilitou sua despedida. Deu tempo para que ele se acostumasse com a perda que ele já sabia que enfrentaria – quando ela não pareceu acreditar, ele inalou profundamente, tentando não se aborrecer. No fundo já sabia que isso aconteceria, porque sempre buscaria em si as explicações para as falhas dos sete mundos. – Você a estava tratando. Diga-me, qual seria o prognóstico de Hayala, se sobrevivesse.

o encarou com a testa franzida. Durante os momentos que demorou para responder, ele viu passarem por seus olhos a dor, a tristeza e um pouco de compreensão. Ela apertou um lábio contra o outro, passou os dentes fortemente por eles, transformou-os num bico e por fim expirou por entre eles, passando a língua por ali antes de começar lentamente a explicação.

– S-se sobrevivesse... – começou gaguejando. Tomou ar, decidida, fincou os olhos nos dele e continuou. – Se sobrevivesse ela possivelmente passaria o resto de seus dias em uma cama, com mobilidade limitada, devido aos ferimentos. Pela extensão deles, parecem ter sido causados por uma lâmina de ar ou de água. Numa hipótese muito forçada, talvez pela espada de Viper. Mas não vejo possibilidade desses cortes terem sido causados por outra casa. Eles se estendem por todo o torso dela, afetaram severamente o estômago, um dos pulmões e seu coração. Ela não poderia mais fazer força, teria dificuldades para respirar e precisaria de constante auxílio dos curadores. – ela terminou fracamente.
– Se fosse você...? – ele ajeitou uma mecha do cabelo dela. arquejou, despreparada para a pergunta, os olhos novamente se revestindo em lágrimas. Antes que elas pudessem cair, apertou os cantos dos olhos com o polegar e o indicador, como se assim as fosse segurar ali. Não olhou para ele quando respondeu.
– Se fosse eu, assim que soubesse desse futuro, pediria que me deixassem morrer. Jamais permitiria que alguém tivesse me tratado, mesmo que do modo como eu a tratei, pois sei que isso lhe causou ainda mais dor. Imploraria para que me deixassem partir – os dentes dela se prenderam fortemente contra o lábio inferior. Um pequeno corte que já havia ali se abriu e o sangue tingiu a carne e os dentes como uma pintura.
– Mas ela não conseguia falar, não é mesmo? – questionou. Ela anuiu com a cabeça. – Às vezes precisamos aceitar a derrota, . Precisamos deixar partir, mesmo quando não entendemos o motivo. Não é o que espera que façam por você? – seus dedos afastaram alguns fios rebeldes que se colavam à testa suada dela.
– Eu só queria ter dado o meu melhor – ela disse por fim. soltou um risinho sem força, apertando-a contra o próprio corpo.
– Você deu, centelha. Não pode se exigir demais.

Quando seus olhos se encontraram, ela se esforçou para lhe dar um sorriso. Talvez não fosse o momento mais romântico, mas ali, em meio aos corpos, a beijou. Não porque precisava, não porque havia urgência. Beijou-a porque estavam em guerra, e só as luas sabiam quando o fariam novamente.
Afastar-se dos lábios dela foi sofrido, quase como se aquilo significasse uma despedida. Um adeus que os dois esperavam que não fosse necessário. Entretanto, por fim o fizeram. Ainda mantiveram as testas juntas por alguns instantes, como se compartilhassem pensamentos e sentimentos indizíveis.
Por fim ela se levantou, pegando-o pela mão e forçando-o a fazer o mesmo, e então voltaram pelo caminho que ele tinha feito antes, devagar, sem falar qualquer coisa. Andaram lado a lado, quietos e observando os demais que ainda se espalhavam pelo acampamento. avistou por ali, e pensou em perguntar-lhe se estava bem e o porquê de estar coberto em sangue. Viu, no entanto, que ele conversava com Elba e que a Guerreira começara a chorar e fora amparada pelo amigo, portanto decidiu que não era um bom momento para intrometer-se. Eles acabaram de frente para enfermaria.
definitivamente não queria entrar ali. vAquele não era um bom dia para cuidar dos feridos. Não para ela.
foi quem afastou a cortina-porta. Tão logo deram o primeiro passo para dentro, Murrough apareceu dois passos adiante, carregando uma tela holográfica com as informações dos feridos.

– Ah, aí está você! – ele tinha os olhos levemente vermelhos, mas já secos. Eles se dirigiram a um dos cantos da tenda, de modo a não atrapalhar o trânsito de quem precisava entrar ou sair da enfermaria. – ... Sequer sei o que dizer. Talvez... muito obrigado por tudo o que fez por Hayala. Significou muito para nós dois que você tenha se dedicado a ela daquela forma, que tenha se importado. Jamais poderei agradecer o suficiente pelo tempo extra que me deu com ela. Você foi excelente. E o que você precisar... qualquer coisa, você poderá contar sempre comigo. – ele hesitou por um segundo, calculando se sua próxima frase seria apropriada, mas por fim deu de ombros e abriu meio sem jeito os braços. – Eu posso...? – fez um gesto meio amplo. soltou a mão dela, num incentivo, e apenas se deixou envolver pelos braços dele.
– Eu sinto muito – ela sussurrou enquanto ele a abraçava. Não sabia de onde estava tirando tanta água, mas sentia que estava prestes a chorar mais uma vez.
– Pelo quê? – afastou-se para olhá-la. Notou a lembrança de culpa em seus olhos e mexeu a cabeça em negativa. – Não seja boba. Estou falando de coração. Sei que fez o melhor por Hayala, e eu mesmo não esperava que ela sobrevivesse por tanto tempo. Mas você me presenteou com dias o suficiente para que pudéssemos nos despedir. Ela já tinha aceitado, e eu também. Estou realmente grato por você ter aparecido – seu sorriso era honesto e ele a apertou mais uma vez entre os braços antes de soltá-la.
– Por que está coordenando a enfermaria? – quis saber, interrompendo rudemente o momento e apontando a tela que ele portava.

Murrough pareceu levar um tempo para entender o que ele queria dizer, mas por fim olhou para o que levava em mãos e franziu o cenho.

– Ah! Sean me deixou responsável pela área durante a batalha. Ele ainda não apareceu, por isso ainda estou aqui.

– Sean não voltou? – pareceu preocupado. – Estranho, ele é sempre um dos primeiros... – a voz de foi morrendo conforme ela completava o quebra-cabeças em sua mente.

Se Sean não havia voltado para a enfermaria, se todos já haviam retornado do campo de batalha, trazendo os corpos e os feridos... e se Sean também não estava entre os feridos. E se Elba estava chorando ali do lado de fora...
Ela olhou para , notando-o estático ao seu lado. Seus olhos miravam o nada e seu corpo estava travado. A face deixava transparecer o nervosismo.
Murrough também notou o estado do rapaz. Os três permaneceram ali, estáticos, com o ar pesado mal entrando por seus narizes ou bocas, como se o simples movimento fosse o suficiente para transformar em realidade seus pensamentos.
já sentia que nem toda a água dos mundos seria o suficiente para hidratar sua garganta, que agora estava seca feito um deserto. Havia um nó ali, algum material se acumulara em seu pescoço e agora o impedia até de respirar. Seus olhos estavam tão secos quanto a golada de ar que ele tentou engolir. Pelas luas, como doía!
Antes que qualquer um ali pudesse quebrar o estupor, as cortinas da enfermaria se abriram mais uma vez, agora para dar entrada a Elba. Os olhos úmidos dela perscrutaram o espaço e finalmente caíram sobre o trio. O espaço entre suas sobrancelhas se franziu e ela se aproximou deles.

– O que ainda está fazendo aqui? – questionou a Murrough. Como ele não conseguiu vencer o choque para responder no exato momento, ela insistiu. – Achei que agora que... Que não tem mais sua amiga para te prender, você iria embora.
– Eu... – Murrough começou apenas para fazê-la parar de falar e a fim de ganhar tempo. – Não... Eu queria falar com alguém sobre isso. Eu gostaria de ir com vocês para Mirth, quando essa batalha acabar. Se for possível, claro – acrescentou rapidamente. Os outros não responderam e ele tomou isso como uma deixa para se explicar. – Alguns de vocês sabem – ele olhou para ao falar – que eu nasci um Guerreiro e meu destino era me juntar a Mirth. Porém, antes que isso fosse possível, fui dissuadido da ideia por minha família, que temia que meu futuro se concretizasse na mesma realidade que meu pai então vivia. Foi por isso que me desgarrei, e para que seus buscadores não viessem atrás de mim, me juntei a outra crença – ele gesticulava amplamente durante a fala, nervoso pelos olhares dos outros três. – Sei que talvez não vá ser bem recebido entre os demais, mas estou disposto a aceitar qualquer condição.

Os quatro trocaram olhares ansiosos e parecia que um milhão de anos haviam se passado sem que falassem qualquer coisa. pensou em falar, mas foi interrompida antes de sequer tomar fôlego.

– Será bem-vindo se continuar fazendo bem o seu trabalho – Elba decretou, deixando os demais surpresos. – E, falando nele, assim que o seu turno se encerrar você deve passar a função para o próximo Guerreiro ou Soldado com maior conhecimento dos feridos – quando notou que alguém faria a pergunta, Elba resolveu respondê-la. – Sean está morto. E nós choraremos por ele quando for a hora. Mas agora devemos honrar o Guerreiro que ele foi e respeitar sua morte, então por ele lutaremos até o fim, seja ele o desta guerra ou o de nós mesmos.

Eles todos tiraram um momento para refletir sobre aquelas palavras. Duas lágrimas escaparam dos olhos de , mas ele aprumou o corpo como se o peso delas o fizesse acordar. Deixou que a própria pele as reabsorvesse e mexeu a cabeça em afirmativa.

– Concordo com você – Murrough apertou levemente o ombro esquerdo dela. – Mas não posso seguir suas ordens.

Elba o olhou chocada. A fúria e a mágoa disputavam o poder de sua expressão no momento. Num movimento rápido ela o fez tirar a mão de seu ombro, como se agora ela a queimasse. O rapaz deu de ombros.

– Sean parecia um ótimo Guerreiro. Não consigo deixar de pensar que se morreu em batalha foi porque se cansou por ter passado as últimas noites em claro cuidando da enfermaria. Assim, não posso permitir que outra pessoa que está envolvida ativamente na guerra passe a comandar a enfermaria. Temos muitos voluntários aqui que são excelentes curadores e aos quais não damos chances. Passarei o comando da enfermaria a um deles, se vocês não se opuserem.

Os Guardiões e a Guerreira se entreolharam. Não pareciam ter qualquer objeção e por isso se sentiu à vontade para ser o primeiro a concordar.

– É uma sugestão muito sensata, Murrough. Obrigado por pensar em nosso bem-estar, mesmo e principalmente quando nós mesmos esquecemos dele.
– Talvez tenha sido por isso que Sean me escolheu para substituí-lo como líder da enfermaria – o desgarrado disse meio sem jeito.
– Tenho certeza de que não foi só por isso – Elba esforçou-se para um sorriso.

Depois disso, não tardou para que Murrough tomasse a liderança das tarefas do acampamento, e em pouco tempo aqueles que lutavam nas batalhas foram corridos de seus postos para que os demais voluntários assumissem funções como as de curadores, cozinheiros e ferreiros de armas. Foi a primeira noite em que todos os combatentes puderam descansar. E seria a última, também.
Para uns a retirada do peso daquelas funções fez o sono vir tão fácil que adormeceram antes mesmo de se deitarem. Os Soldados e vários Guerreiros estavam nesse grupo. Para outros, entretanto, a culpa pela falta de produtividade pró acampamento falava ainda mais alto, e foi por causa dela que Amber, e Viper se encontraram por acaso na tenda que servia como cozinha e área de refeições.
O último a chegar, Viper passou cada braço sobre os ombros de uma das moças e beijou-lhes as cabeças enquanto discutia com o casal responsável pela cozinha.

– Não importa o que disseram – ela soltava num tom baixo, porém exasperado, por vezes fazendo-os encolher um contra o outro. – Eu não consigo dormir e não quero um chá de noctis. Você pode pegar a mesma água que usa para fazê-lo e colocar uma porção de erva-de-espinho, e eu vou bebê-la gratamente.
– Guardiã, com todo o respeito, erva-de-espinho só vai despertá-la ainda mais – o homem dizia calmamente, como se explicasse para uma criança o porquê de não poder atear fogo na própria cama. – Um bom chá de noctis vai acalmar seu corpo e deixá-la dormir tranquila. Confie em mim, eu sei prepará-lo bem e prometo que o farei na medida ideal, de modo a não deixá-la dormir além da hora amanhã.
– Não estou dizendo que não sabe – afirmou depois de soltar um gemido embebido em frustração. – Eu só não quero.
– Chega do que ela quer ou não – Amber pedia baixinho. – Só me dê um pouco de néctar.

Viper riu o mais baixo que pôde. A mulher do outro lado da mesa negou com a cabeça.

– Estão sendo incoerentes, Guardiãs. As bebidas que pedem só vão fazê-las ficar ainda mais alertas. As terão pela manhã, se assim ainda o desejarem. Agora, as moças devem tomar algo quente e tranquilizante – ela disse definitiva. – E você, querido, o que deseja?
– Ah... Era um copo gelado de folha de jeruó – ele disse meio sem jeito, e as duas Guardiãs gargalharam enquanto a mulher fechava a cara.
– Nada de entorpecentes – declarou enquanto cruzava os braços. Sua expressão dura se desfez ao notar que mais alguém entrava na tenda.
– Por favor... – o rapaz começou e notou com satisfação que era Kyle. – Dê um copo de leite de pralas para cada um deles – instruiu coçando os olhos sonolentos. – Essa aí não tomará nada feito com plantas que induzem o sono, especialmente noctis – ele informou enquanto apontava para a irmã. – E os outros dois ficarão contentes com a bebida. Só deixem os demais descansarem – Kyle pediu num tom sofrido. Como o casal estava prestes a reclamar que o leite de pralas não era o mais indicado, o Soldado foi até onde eles estavam e começou ele mesmo a preparar as bebidas. Ao invés de servi-las frias, como era de costume, ele as aqueceu e, sem que os demais vissem, misturou em cada copo um pozinho translucido que levava no bolso. Aquele era um truque que aprendera com outros Soldados para dormir mais rápido. O pó tinha um nome quase impronunciável e era um veneno se ingerido de qualquer outra forma. Porém, misturado ao leite quente de pralas – e essa era a única receita que até então se sabia que funcionava – era um efetivo calmante para os nervos. Ele serviu um copo a cada um dos Guardiões e lhes ofereceu um sorriso cansado. – Vão se deitar e tomem isso. O leite de pralas vai fazer com que pelo menos ocupem as bocas com alguma coisa além de falar.
Viper pensou em se ofender, mas apenas tomou um gole da bebida preferida de sua infância. Ele e as moças observaram Kyle sair trôpego da tenda, e em seguida seguiram seu caminho. Os três sentaram-se em alguns troncos que agora serviam de bancos e que estavam dispostos ao redor de uma fogueira que ardia baixo. O fogo ali exalava um odor agradável, pois queimava alguns ramos de plantas com a finalidade de afastar do acampamento os animais indesejados.

– Bom... – Viper começou, erguendo seu copo e colocando-o em frente ao fogo como se o analisasse. – Tudo a essa hora parece tão sereno, que quase posso me esquecer do que acontece aqui.

tentou rir, mas nada lhe escapou dos lábios se não um suspiro sofrido. Sentada no chão, passou os braços por baixo dos joelhos e apoiou a testa neles.

– Feliz de você, que a realidade te possa escapar por um ou dois segundos. Para mim essa calmaria serve apenas para lembrar do que nos aguarda amanhã.
– Não quis dizer assim... Sinto muito. Claro que não me esqueço do que se passa – Viper consertou. – Só achei que... Que era por isso que você também ficava acordada a noite toda. Para ao menos lembrar da tranquilidade de nossa ilha.
– Não. Passei as noites acordada porque para mim foi impossível dormir. Se me deito, o silêncio na tenda me traz o eco dos mortos. Eles permanecem aqui. Até que... Até que acabemos a luta e voltemos à ilha. Até que possamos fazer os rituais de despedida. E talvez eu soe absurda, mas tenho certeza que os escuto quando tento dormir – a Guardiã levantou o rosto de modo a apoiar apenas o queixo sobre os joelhos. – Do lado de fora há o crepitar do fogo e os ruídos dos animais, mas para mim saem muito mais claros os gemidos da enfermaria. Pelo menos por eles tenho o que fazer. Ou melhor, tinha. Porque agora Murrough nos arrancou de lá...

O ronco de Viper a interrompeu. O corpo do Guardião estava meio jogado sobre o tronco e o copo jazia vazio em sua mão. Amber desviou o olhar da cena e riu para a amiga.

– Fraco – gracejou. Tomou um pequeno gole da bebida e arrastou-se até sentar-se ao lado de . – Há muito ocupando sua mente, . Por isso dormir é tão difícil.
– É o que há com você também? – virou o rosto para olhá-la.
– Estou preocupada com todos. Há algo acontecendo... Uma tensão entre os Protetores, você não sente?

A Guardiã pensou em morder a língua, impedir-se de falar, mas sua mente já estava embaçada pelo efeito da bebida. então abriu um sorriso que parecia estúpido e mexeu a cabeça em concordância.

– Sim, estão nervosos porque não querem que alguém descubra seus segredos. Que eles nos trouxeram aqui sob a Lua de Fogo de propósito. Que a morte de incontáveis Guerreiros e Soldados e voluntários estava em seus planos.
– O... Como...?
– Eu gostaria de ter feito algo para impedi-los, mas Baelfire bloqueou minhas memórias dessa conversa – suspirou, e aquele ato parecia doer.
– Como você sabe, então? – Amber olhou-a intrigada enquanto sorvia os goles finais da bebida.
– Conheço minha mente. Sei quando algo está faltando. Senti um vazio onde essa memória deveria estar, e não sosseguei até trazê-la de volta. Ela veio durante a batalha. Já era tarde demais, e no momento isso apenas iria enfraquecer o grupo. Me sinto péssima, sinto como se fosse um deles ao pensar assim. Porém...
– Porém se você falasse, mais pessoas iriam morrer – ela completou. – Porque lutar deixaria de ser uma opção para alguns deles. Então era com isso que estava preocupado.
sabe? – a ruiva deixou o copo vazio no chão.
– Parece que sim. Ele está muito preocupado. Teme que você o odeie por não contar para você, mas acha que seja melhor assim. Por favor, não seja cruel com ele quando ele resolver falar – ela apertou de leve o ombro da amiga.
– Ele é um bom garoto, não é? – deixou que um sorriso tomasse seu rosto enquanto tentava não fechar os olhos.

Não soube se Amber chegou a responde-la. Em poucos segundos as duas já descansavam encostadas uma na outra.
Não parecia fazer mais do que alguns segundos desde que seus olhos se fecharam quando ela sentiu o ataque. Seu corpo inteiro se retesou e antes mesmo de abrir os olhos sua mão já buscava na bainha a espada ausente enquanto o instinto a colocava de pé. Sem qualquer dúvida seu corpo estaria sempre preparado para a luta ao invés da fuga. Sua pele doía e parecia que pequenas estacas de gelo a penetravam com crueldade. sequer conseguia abrir os olhos porque aquilo estava por todo o seu rosto. Sua mão, entretanto, se abria sem dificuldade juntando uma bola de fogo sobre a palma.

– Ei, relaxa – ela ouviu finalmente a voz de Kyle. A mão que não achou a espada correu para o rosto, afim de secá-lo. Quando finalmente voltou a enxergar, percebeu o irmão com um sorriso aliviado enquanto segurava um balde do qual agora apenas algumas gotas escorriam. O resto do conteúdo, ela percebeu com desgosto, havia sido despejado sobre ela. – Estou te chamando há algum tempo, achei que nunca acordaria. Foi o único modo que encontrei de te despertar – ele lançou um olhar na direção do balde. A Guardiã viu o rosto do irmão perder a cor conforme o corpo dela esquentava tanto a ponto de fazer a água evaporar de suas roupas e pele. A peça de madeira escorregou do aperto dos dedos de Kyle e caiu sobre seu pé, entornando sobre sua bota as últimas gotas.
– Nunca mais... – ela começou, agora que seus cabelos também já não continham uma gota de água.
– Nunca mais pelo resto de nossas vidas, irmãzinha – ele levantou uma mão em sinal de promessa. mexeu o pescoço de um lado para o outro e pareceu aceitar a promessa. Olhou em volta, percebendo de repente os ruídos do acampamento. Ou os poucos ruídos. – Ah... Estamos atrasados – Kyle informou ao notar a expressão curiosa da irmã. Jogou a espada que ela tinha deixado nos ferreiros na noite anterior na direção dela, sem qualquer preocupação em feri-la com a lâmina. A Guardiã a agarrou com destreza e girou-a num movimento rápido para encaixá-la na bainha até então vazia. – Já estão lá. Pelo menos a maioria. está liderando, a Lua de Água está próxima – ele explicou já começando a correr ao lado da irmã –, é um evento bem raro, pelo que sei.
– O quê? – olhou-o com o cenho franzido.
– Que a Lua de Água venha logo em seguida de uma de Fogo. Ousaria dizer que não houve previsão desse evento para agora. Parece então que as Luas estão nos ajudando. – eles passavam pela entrada do acampamento agora. Bem ao longe já se podiam ouvir os sons da guerra e sentiu seus pelos se arrepiarem em excitação.
– Nos ajudando? É o mínimo que deveriam fazer, intervir a nosso favor. Deveriam ter feito isso antes de dezenas ou centenas de seus filhos morrerem – ela soltou amargurada.

Kyle percebeu que aquele talvez não fosse um bom momento para aquele tópico. Ou talvez para qualquer conversa. De qualquer modo, resignou-se a ficar calado enquanto corriam, cada vez mais próximos dos tinidos de espada e da confusão de gritos. Em algum momento os dois se separaram, e, por mais inconsciente tivesse sido, o rapaz tinha a certeza de que a iniciativa havia partido dele. Não porque não quisesse estar perto da irmã ou qualquer coisa do tipo, mas justamente o contrário. A vontade de estar perto da moça e de protegê-la durante aquela confusão o toraria vulnerável. Porque Kyle não tinha dúvida que em qualquer cenário, a vida dela teria mais valor para ele do que a sua própria. E, por mais que a vontade de mantê-la a salvo dominasse cada partícula em si, sabia que não podia se deixar tomar. Primeiro porque o odiaria, depois porque era estúpido e ele deveria dar-lhe espaço para vencer suas próprias batalhas. Era difícil, doloroso e sofrido, mas a irmã já era uma mulher agora, mesmo que ele tivesse perdido aquele processo. Ou principalmente por causa disso. Ele escolhera se ausentar e agora tinha que aceitar que a centelha que deixara num quarto escuro havia se tornado a chama mais ardente daquela batalha. Então agora ele precisava batalhar por si e não por ela. E só poderia fazer isso se estivesse o mais longe possível da Guardiã.
Ele correu pelo campo de guerra com a espada em punho, ferindo qualquer um que ousasse se meter em seu caminho. Sem tempo para parar ou raciocinar, ele apenas deixava que seus instintos guiassem seu corpo, fazendo-o abaixar, desviar ou pular por cima de corpos já jogados ou chão. A guerra, há anos, havia se tornado sua vida e agora ele a sentia pulsar dentro de si com uma intensidade nunca antes experimentada. Nada mais era racional e ele se movia pela energia que emanava por ali. Estava tão concentrado em seu objetivo de sobreviver que sequer reconheceu a voz de Fintan ali no meio, só seguiu correndo para o centro da confusão.
Fintan, por outro lado, caiu ao chão depois de um grito agoniado. Não havia um material nos Sete Planetas que pudesse ter lhe causado o ferimento que que lhe partira quase ao meio. Ainda assim, ali estava, jogado no solo, com o rosto enfiado na terra já fétida e se esvaindo em sangue. Quem o percebeu ali foi Lavender. Ela na verdade tropeçou no corpo do homem. De qualquer modo, ao notar que era o chefe dos Guerreiros caído ali, ela logo tentou erguê-lo, só então notando o repugnante corte que ele sustentava ao longo do corpo. Engolindo com esforço a onda que seu estômago tentava mandar de volta por estar tão próxima àquela cena, a garota correu os olhos em volta buscando algo que pudesse fazer pelo homem. Notou uma árvore repleta de cipós, distante apenas alguns metros. Sem esforço, fez com que as plantas se aproximassem dela e envolvessem o corpo do homem, de modo a conservá-lo unido à parte que quase lhe fora arrancada. Segurando nas plantas que se enroscaram no tronco e nas pernas do homem foi capaz formar alças com os cipós, de modo a finalmente conseguir erguer Fintan como se fosse uma enorme mala, na horizontal, não mais que trinta centímetros longe do chão. Começou a tentar se afastar do campo de batalha, sentindo logo as investidas inimigas contra o próprio corpo e o do tutor. Tão logo surgiram, desapareceram. Curiosa, ousou olhar para trás, tentando identificar o que acontecia, e percebeu Targ atrás de si, recebendo os golpes e revidando-os na medida do possível.

– Corra! – ele instruiu.
– Ei, vá embora! Não esquente com isso! Ele já era – Lavender informou olhando na direção do tutor. – Só estou... É o que tenho que fazer por ele. Mas ele já era. Não pode sobreviver a esse ferimento – apontou, tentando esquecer a visão que tivera do corte que atravessara o crânio do homem. Ainda assim, continuava correndo.
– Este é o meu dever também – Targ revelou, mas logo fez uma careta ao ser atingido pelas costas. Ele usava ambos os escudos, o físico e o de fogo para proteger a garota e o homem que ela carregava. Empertigou-se e lançou uma rajada de fogo para trás, ganhando alguns segundos de vantagem. – Fintan também foi meu mentor. Devo muito a ele. E não posso deixa-lo ir sem dar o melhor de mim para que não vá.
– Targ, só estará se ferindo. Deixe-me ir, invista na batalha. Está se sacrificando por nada – Lavender suava absurdamente, os músculos querendo partir-se com o peso que carregavam. E seguia correndo.
– A deixarei quando já estiver fora de perigo, ceifadora – ele disse antes de levar mais um golpe, quase sendo derrubado dessa vez. Agora já ficavam mais escassos, porque estavam cada vez mais longe do centro da batalha e mais próximos do acampamento. Quando ela finalmente alcançou a área onde os assistentes da enfermaria esperavam pelos feridos, ele deu-se por satisfeito e voltou a correr, agora na direção da qual fugiam anteriormente.

Lavender deixou que a ajudassem a carregar Fintan para dentro do acampamento, finalmente aliviando a tensão nos músculos. Viu-o sendo colocado numa maca e desaparecer entre os tecidos da entrada tenda da enfermaria e, por mais que quisesse acompanhá-lo e saber de seu estado, cedeu ao chamado da luta que acontecia fora da proteção do acampamento, permitindo que aqueles que sabiam mais que ela auxiliassem como pudessem o pobre homem. Olhou para as próprias mãos, cortadas e sangrando, e arrancou tiras da própria roupa para enrolar em volta delas. Deu-se por satisfeita e pensou em seguir caminho. Antes de voltar ao campo, entretanto, apoiou-se em um dos muros que cercava o acampamento e despejou todo o conteúdo de seu estômago. Os miolos de um conhecido nunca eram uma boa visão.
Era uma raridade, então Tharja dedicou dois segundos de seu tempo para olhar para cima, por entre as folhas e os galhos da árvore em que se escondia. Um buraco na copa revelava o pequeno pedaço de céu onde a Lua Vermelha e a Lua Azul disputavam o destaque. Fez uma prece silenciosa, por todos os Guerreiros do Fogo e da Água que tinham partido, em seguida complementando com as demais casas e os Soldados e Voluntários. Mesmo sabendo que era tolice, uma parte sua pediu para que não tivesse que repetir aquelas preces, para que não houvesse mais mortes. Ela suspirou. Deu uma última olhada para as luas e jogou-se do galho em que estivera.
O frio inicial na barriga sempre vinha, mesmo que ela soubesse que os fios de seu aparato nunca falhavam. Sua espada estava preparada em posição de ataque e cortou três inimigos durante a queda. Com o movimento preciso, ela se sentiu puxar novamente para cima, chegando o mais próximo de voar que conseguiria em toda sua vida. Sentindo o coração queimar livre em seu peito, a caçadora habilmente guardou a espada na bainha e sacou a besta que trazia cruzada nas costas. As flechas disparadas tornaram-se incontáveis e ela sequer precisava conferir para saber que haviam alcançado o alvo desejado.
Estava preparando uma nova sequência de disparos quando sentiu o ar se deslocando estranhamente às suas costas. Virou o rosto a tempo de ver as garras de Baelfire dilacerando um inimigo que tentara cortar os fios que a mantinham no ar. Uma gota de suor gelado escorreu por sua espinha enquanto ela engolia com dificuldade a saliva. Lançou ao Protetor um olhar de gratidão.

- Não podemos perder você, caçadora! – a voz grave da fênix soou, e ainda parecia imponente mesmo no meio dos sons da batalha. A cabeça de Tharja assentiu inconsciente.

Seguindo um sinal da fênix, a líder dos caçadores o acompanhou pelos céus do combate. Uma das primeiras pessoas que avistou e reconheceu de imediato foi , e isso a fez lembrar do item que levava no bolso, junto ao pedaço de pão que deveria comer quando já não tivesse mais forças. Tharja saltitou entre as altas árvores com a ajuda do seu incomum aparato. Foi no meio de seu deslocamento, ainda no alto, que percebeu como o colega parecia ter dificuldades de se movimentar. Lembrava que ele costumava ter muitas dores na perna de apoio, principalmente depois de dias seguidos de treinos e jogos, porém agora não se parecia nem um pouco com seus piores dias. Ela podia ver no rosto dele a dor que lhe causava apenas sustentar-se na perna de sempre.
Ainda assim, lá estava ele, com um sorriso de diversão em meio ao rosto marcado pela dor, rodeado por uma porção de inimigos, golpeando-os e derrotando-os como se tivesse nascido para aquele momento. Tharja estava perto o suficiente quando soltou os fios das árvores, aterrissando agachada ao lado do companheiro. No caminho ela havia sacado a adaga e a enfiara num dos oponentes, que pareceu só ter notado o ferimento ao vê-la ali no chão. O rapaz ainda tentou estancar o sangue que esguichava do pescoço, mas em poucos segundos desfaleceu, ainda com a mão sobre o ferimento.
- Vá buscar sua própria briga, enxerida – o líder dos lutadores gracejou enquanto ela se inseria no combate dele. Tharja riu e enfiou uma mão no bolso, enquanto a outra seguia golpeando com a adaga.
- Achei que gostaria de recuperar isto – mostrou o dispositivo que ele pouco usara durante aqueles dias de batalha. Se assemelhava a um anel, feito de um metal avermelhado que levava um pequeno símbolo entalhado. Nenhum dos dois sabia, mas aquela era uma inscrição antiga, que na primeira escrita de Mirth representava o nome da Lua Vermelha, a rainha do fogo. Era exatamente aquela a parte que se pressionava para que os espinhos saltassem, mas os líderes sabiam muito pouco sobre o modo como a arma funcionava. Para , apenas saber como fazê-la ativar era o suficiente.

O líder sentiu uma onda gelada assolar seu estômago ao ver aquela peça entre os dedos da colega. Imediatamente foi tomado pelo pensamento de que, se não tivesse perdido a arma no início do dia anterior, talvez Sean ainda estivesse vivo agora.
Sacudiu a cabeça enquanto Baelfire torrava todos os inimigos com quem estivera lutando nos últimos minutos.
Não.
Sean já estava condenado quando entrou na briga com ele. Aqueles ferimentos não eram culpa dele, e ele não poderia tentar tomar aquela responsabilidade para si, por mais tentadora que fosse a opção naquele momento. Porém... Se ele tivesse os espinhos naquele momento, talvez – só talvez – ele não teria se ferido tão gravemente. Talvez teria conseguido derrotar a garota de branco. Talvez, portando a arma, sua perna não estaria naquele estado.
respirou fundo, evitando pensar naquela parte de seu corpo. Quando não pensava, a dor passava de impossível para apenas insuportável. Mas ele não admitiria aquilo.
Percebendo que talvez já tinha perdido segundos demais perdido nos pensamentos que aquele simples gesto da amiga lhe evocou, ele forçou seu melhor sorriso – que ainda assim parecia uma careta rude – e pegou o anel vermelho no ar quando Tharja o lançou. Ao mesmo tempo em que seus dedos se fecharam em torno da pequena argola, ele viu a amiga alçar voo sustentada novamente pelos estranhos fios.
Baelfire mergulhou em direção ao chão, o corpo estendido na vertical ganhando cada vez mais velocidade. Seu bico afiado penetrou na carne de uma ntorah que atacava alguns Guerreiros com suas poderosas ondas sonoras. As penas bege da criatura se tingiram de vermelho, quase imitando a plumagem da fênix. A metade humana do pássaro gritou e tentou se agarrar ao Protetor quando as garras de Baelfire quebraram a asa da ntorah. Conforme ia caindo pelo ar, mais a criatura ia perdendo sua forma de ave. Quando atingiu o chão já tinha assumido completamente a forma de uma moça de longos cabelos escuros que agora se estendia sobre uma poça de sangue.

- É uma pena – Tharja comentou quando a fênix se juntou a ela mais uma vez. – Ntorahs são uma raridade nesses dias. E essa era especialmente linda. – olhou uma última vez para o corpo estendido no chão.
- Se estivessem do lado certo da batalha, talvez sobrassem mais algumas – Baelfire rebateu fingindo não dar importância. Ntorahs eram crianças muito poderosas que, entre seus incríveis dons, eram capazes de transformar-se numa figura meio humana meio pássaro. Em toda a sua existência, Baelfire vira pouquíssimas dessas crianças em Mirth.

Eles seguiram juntos pelo ar, abatendo inimigos com sua vista privilegiada do campo de batalha, cuidando de seus Guerreiros, Soldados e Guardiões. Puderam perceber como seu exército já não se movia com a mesma destreza de dias antes, como pareciam cansados. Mesmo Baelfire já parecia exausto, assim como os demais Protetores. Ainda assim, continuavam tentando ajudar da maneira como podiam.
Aos poucos, unindo-se a eles nas alturas, apareceram Skyler, Zarafee e Leorhys. O grupo avançava como uma espécie de guarda protetora daqueles que permaneciam no solo, tentando ao máximo impedir ataques surpresa. Decidiriam, sem muita discussão, que cada um ficaria encarregado de um setor do campo de batalha, de modo que todos lá embaixo estivessem razoavelmente protegidos. Quando Baelfire notou, entretanto, a quem fora destinado, fez de tudo para convencer uma de suas companheiras a trocar de setor. Lá embaixo estava sua Guardiã, e as coisas já não iam bem entre os dois há alguns dias.

- Pode deixar comigo, ranzinza – a fada disse sem hesitação. Ao ouvir um resmungo da fênix, virou-se para ele e soprou-lhe um beijo dourado.

Logo abaixo, girou a espada depois de ferir mais um desgarrado e a colocou de volta na bainha, o sangue dos inimigos ainda manchando a lâmina. Retirou das costas o arco entalhado para parecer com Baelfire de asas abertas e puxou uma das flechas da aljava.
A primeira flecha flamejante acertou um ponto onde seis Filhos da Escuridão se encontravam. O fogo perpétuo os rodeou e a prisão sem grades jamais se apagaria. Ela lançou mais uma. E outra. E ainda outra.
Quanto mais flechas lançava, mais viva sentia-se, como se gastar suas próprias energias contra os inimigos de alguma forma a fizesse renová-las. Entretanto, sabia que era só uma ilusão causada pelos raros efeitos da Lua de Fogo sendo substituída pela Lua de Água, como Baelfire fez questão de lhe lembrar em sua cabeça assim que notou seu pensamento.
Ao pensar na Lua de Água, olhou carinhosamente para onde lutava. Ela percebia, contra o ar, seu escudo quase invisível de água, tão sutil que aqueles que o atacavam pareciam não entender porque seus golpes não eram efetivos. O moreno lançava lâminas aquáticas afiadíssimas contra os inimigos. Ao sentir o olhar dela sobre ele, a encarou e lançou um sorriso brincalhão. A garota mexeu a cabeça em negativa e sorriu de volta. Não era o mais inteiro de seus sorrisos, mas ainda era sincero e ardente.
Dentro de sua cabeça, Baelfire gritou ordens rudes. Envolviam qualquer coisa como deixar sua paixonite de lado durante a batalha. Suas mãos ferveram e ela lançou uma torrente de fogo a sua volta.
“Concentre-se. Pare de gastar sua energia, , conserve-se. O alinhamento tomou todo aquele poder que sentia antes, não seja tola. Além disso, a Lua de Água está se formando e te prejudicando. Se continuar assim, você estará acabada antes da luta terminar, é isso que deseja? Sabia que não deveria confiar em você. É claro que não.”
Ela respirou fundo. Enxergou, pela visão da fênix, uma ntorah negra atacar. Sentiu as asas de Baelfire como se fossem suas asas fechando-se como um casulo de proteção. Sentiu a dor repentina dele. Baelfire, mesmo ferido, atacou de volta, uma rajada violenta de fogo destruindo as asas da criatura. Os canais mentais dos dois estavam complicados, confusos e misturados. O elo que os unia parecia ter criado raízes para os dois lados daquela estranha corrente, trazendo inclusive as sensações físicas um do outro.
Tentando ignorar aquela mistura estranha, continuou a luta. Entre flechas e espadas, checou seus amigos.
Violet privara os sentidos de algumas dezenas de desgarrados a sua volta e usava sua foice para derrotar alguns deles. Outros lutavam entre si como se fossem inimigos de longa data, uma confusão certamente causada pelos dons da Guardiã. Além disso, a garota ainda estava invisível para qualquer olhar inimigo.
Brock levantava pedras e causava terremotos numa área longe o suficiente de qualquer Guerreiro ou Guardião, derrubando qualquer um além dele naquele espaço. Sua lança envenenada ameaçava quem ousasse se aproximar de onde ele estava.
Amber causava um espetáculo de luzes ao seu redor. Seu machado com a haste em forma de raio sugava a energia dos inimigos mais próximos e a liberava em forma de descargas elétricas.
Viper entrara numa dança particular com sua espada extremamente flexível, a lâmina chicoteava qualquer inimigo tolo o suficiente para se aproximar, causando cortes violentos. Mesmo assim, o rapaz ainda controlava a natureza ao seus redor, criando árvores que agarravam, esmagavam e machucavam os Filhos da Escuridão.
Bree era quem estava se saindo melhor. Envolta em um escudo de ar, ela voava acima dos inimigos, um braço invisível mexia sua espada de duas lâminas contra os desgarrados, e suas rajadas de ar eram fortes o suficiente para arrancar pedaços.
fora encurralado. Percebera por uma breve visão que Baelfire logo tratou de tentar esconder. Ceryn estava sendo atacada e o Guardião tentou salvá-la. Com a guarda baixa, dois Filhos da Escuridão o pegaram. Ele tentava invocar seu tridente enquanto era sufocado – a sereia destruiu as armas dos dois e agora tentava ajudar o protegido. , sem sequer hesitar, lançou seu fogo perpétuo sobre os dois homens.
“Envolva-se com suas batalhas, criança tola.” Baelfire dizia em sua mente. Ela pensou algo bem feio como resposta.
Viu sorrir agradecido para ela enquanto esfregava a garganta dolorida. O tridente voou de volta para sua mão e seus olhos se arregalaram. Os dela também. A dor a atingiu e fez com que se dobrasse sobre si mesma. Enxergou a lâmina que atravessara seu corpo.
A dona da espada retirou o metal que agora era prata-sangue do peito da Guardiã, um sorriso malicioso brincando nos lábios cheios. sentiu a fúria crescer em si. Com apenas um olhar fez a garota queimar de dentro para fora, o corpo definhando a sua frente. A mão cauterizou o próprio ferimento e ela riu para , que parecia aliviado.
“Isso não aconteceria se você prestasse atenção. Droga, , achei que você valia a pena. Pare de olhar para esse garoto e concentre-se na sua luta. Qual é o seu problema? Não me faça acreditar que me enganei sobre você.”
“Feche o bico, passarinho irritante.”
puxou de volta a espada, derrubando rapidamente a corja de desgarrados que se formou a sua volta. Derrubara uma das grandes, ela pensava, será que Bael não se satisfazia com isso? A resposta mental dele veio em segundos, algo sobre sua agressora ser tão estúpida quanto ela.
“E você não deveria gastar energia infligindo esse tipo de ferimento. É poderoso demais para usar assim. Parece que você nunca vai aprender.”
escondeu a voz dele num canto escuro de sua mente. Seguiu sua batalha.
Havia derrubado mais alguns quando começou a se sentir estranha. A espada e o arco pareciam pesados demais, sua visão estava confusa e seus sentidos, alterados. Olhou para Violet, mas ela estava longe o suficiente para seu poder não exercer influência sobre a ruiva. As cenas a sua volta pareciam estar passando devagar e rápido demais ao mesmo tempo, e ela já não entendia qualquer coisa. As formas e cores estavam distorcidas. Entretanto, a voz em sua mente soou clara.
“Eu falei! Está cansada demais. Como fui confiar numa criança incompetente como você? Era claro que não era a Guardiã que eu esperava. Irresponsável, inconsequente e egoísta. Como todos os outros. Eu deveria saber que você era só mais uma rebeldezinha…”
Baelfire continuou o monólogo mental até perceber que a garota deveria ter arrancado seu amuleto. A comunicação fora cortada. “Ora, mas que pirralha mais insolente. Mas será melhor assim”, ele pensara.
Mas Baelfire jamais vira a cena real.
o ouviu ralhar. Contudo, sua mente jamais fora capaz de absorver qualquer significado naquele amontoado de palavras, porque estava enevoada demais. Seus dedos formigavam e ela já não tinha mais forças para se manter em pé. Percebendo sua rápida decadência, lançou mão de suas últimas energias para formar mais uma prisão de fogo. Para ela mesma, dessa vez. Dentro da gaiola flamejante, caiu.
Bree combinou sua rajada de ar com as lâminas aquáticas de , cortando inimigos ao meio sem pudor. Brock e Viper controlaram o terreno e a natureza de modo a esmagar vários deles. Amber ajustou suas habilidades com a luz em conjunto às de Violet com os sentidos alheios, fazendo com que os restantes agredissem uns aos outros. Os Guerreiros e Soldados estavam focados em destruir o que sobrava do exército de desgarrados.
Os espertos grandes líderes haviam se retirado, eles sabiam. Mas quanto menos soldados eles tivessem para brincar no futuro, mais vantagem os moradores de Mirth tinham. No meio do jogo de sentidos, Violet parou. Amber reclamou, mas a ceifadora não deu atenção, concentrada na própria visão. Assustada, a Guardiã da Lua Violeta deu alguns passos para trás, esbarrando em . O rapaz a encarou, temendo a expressão de pavor da amiga.

? – ela perguntou, os lábios tremendo e lágrimas vazando dos olhos roxos.
– Sim? – o Guardião envolveu os dois no escudo aquático, preocupado com a repentina fragilidade da mais nova. – Está tudo bem, Vi? O que aconteceu? Você viu alguma coisa? Está vendo o futuro?
… Eu espero que não – a garota soluçou. Passou os braços em volta do pescoço do outro e tremeu contra ele. – Você viu a ? – a pergunta estava pesada em significados. Ele franziu a testa.
– Ora, ela… – com mais um soluço de Violet, procurou pelos amigos. Os outros quatro Guardiões continuavam derrubando os inimigos restantes com suas brincadeiras. Os líderes das casas do Fogo lutavam ao lado de seus Guerreiros. O desespero tomou conta de sua mente e seu coração pareceu apertado.
– A profecia… Você se lembra? – a Guardiã murmurou. aproximou seu rosto do dela, tentando ouvi-la melhor. Sua mente varreu em vão as inúmeras profecias que conhecia. – A que fala sobre ? Lembra-se de como acaba? – ele tentou dizer que não, porque na verdade não conhecia qualquer profecia que falasse sobre a ruiva, mas Violet não parecia escutá-lo. – E… Eu acabo de ver… Ela… – a garota guinchou, incapaz de terminar a frase. Pelo pouco que o rapaz conhecia sobre profecias e pelo estado da amiga, pôde deduzir o final daquela. Seus olhos seguiram procurando por , incapazes de aceitar o que Violet tentava afirmar. Percebeu que os locais onde as flechas da Guardiã acertaram mais cedo não flamejavam mais. Só um lugar seguia queimando.

Soltou-se de Violet de forma violenta, deixando-a protegida em seu escudo aquático e correndo em direção à gaiola de fogo. Quanto mais perto chegava, mais seu coração se contorcia e acelerava. Ele não aceitaria.
Quando finalmente se aproximou do local, percebeu que não era o único ali. Alguém tentava inutilmente invadir as chamas. . O rapaz tinha as roupas chamuscadas e queimaduras feias que se curavam rapidamente por todo o corpo.
Ele viu o rosto de banhado em lágrimas. Antes que o rapaz investisse mais uma vez, o segurou. O líder lutador o olhou com dor nítida nos olhos.

… – ele balbuciou, forçando-se contra os braços do Guardião.

o afastou. Testou o fogo com a própria mão. Reconheceu como chamas de proteção, não de dentro para fora, como ela vinha fazendo para segurar os inimigos, mas de fora para dentro, para impedir que alguém a machucasse. gastara suas últimas energias nessa defesa avançada.
Reunindo toda a força que tinha, gerou o máximo de água que conseguiu. Foram precisas cinco tentativas para que uma parte da gaiola se desfizesse por tempo o suficiente para entrar e tirar a Guardiã dali. Os dois se olharam em dúvida quando o rapaz deitou a garota, já gelada, no chão.
a levantou no colo e correu o quanto pôde.


Capítulo 26

morreu lutando”, era o que diriam as lendas.
morreu fazendo aquilo que aprendeu a amar. Aquilo que, sem saber, nasceu amando”, diriam a Eleanor e Finley quando lhes entregassem sua espada.
expirou com uma última chama e um sorriso no rosto. Apagou-se como uma vela recém-acesa, cedo demais.”

Quando correu contra as cortinas da entrada da enfermaria, já não sentia mais qualquer de seus membros. Abaixo do tronco havia só o vento e pendendo de seus ombros, apenas o corpo inerte, que deveria estar sendo suspenso por mágica naquele momento. Sem conseguir controlar o nada abaixo de seu corpo, esbarrou no primeiro catre da tenda onde, havia pouco, Murrough deitara. Finalmente o Guardião parou, sentido por fim palpitações nos músculos de suas pernas. Permaneciam ali.
Murrough, arrancado violentamente de seu sono de exaustão, despertou num susto. Os olhos arregalados do desgarrado buscaram a explicação no rosto lívido de .

- A -... E-eu... A... – balbuciou, como se de repente tivesse esquecido o que queria com toda a pressa. O gosto de sangue que emanava do ar, a visão de um corpo meio aberto logo ao lado, o cheiro de feridas e de morte iminente o distraíram o suficiente para que ele perdesse a linha de pensamento. Como se a ideia o atingisse na nuca, ele gritou em seguida: – Ajuda!

Os braços do Guardião ergueram-se meio centímetro, apenas o suficiente para chamar a atenção para sobre eles.

- O que houve? – Murrough se pôs de pé, examinando a moça. Não precisou de um segundo para entender. Ainda assim, demorou-se apenas para confirmar a hipótese que lhe gelou a espinha. Seus olhos, agora tristes, ergueram-se para o Guardião.
- Você precisa fazer alguma coisa! Ajude! – o suor que transbordava de , que molhava sua camisa, que escorria por sua nuca, que percorria o específico caminho de sua têmpora até sua gola poderia encher um rio.
- Sabe que eu faria qualquer coisa por ela, – o desgarrado suspirou, tornando a olhar para a Guardiã nos braços do rapaz. – Mas ela já se foi. Não há o que eu possa fazer – murmurou cauteloso, deixando que a expressão melancólica em seus olhos invadisse a voz.
- Aqui... – uma voz muito débil soou do catre mais próximo. – Aqui não... Levar... Mirth. Campo de cura... Ajuda – só então, e com muita dificuldade, o Guardião reconheceu Fintan por baixo do corte horrendo que o partia quase ao meio. Ainda ficou confuso, tentando decifrar o que o homem falava. – Reti-... -rada... – ele finalizou com dificuldade.

finalmente pareceu entender. Era hora de bater em retirada, o quanto antes voltassem à ilha, mais chances teriam de poder salvar a Guardiã. E eles tinham que conseguir. Mesmo que ela já estivesse gelada, que a cor lhe tivesse escapado das feições, que o Fogo parecesse ter a abandonado. Algo ainda poderia ser feito.
Com essa certeza em mente, correu mais uma vez, gritando por cima do ombro o pedido de envio da ordem de retirada. Com a pouca sorte que ainda jogava a favor de Mirth, a Lua de Água que se aproximava fez encher durante a última noite os reservatórios próximos ao campo de batalha. Assim, um dos pequenos riachos da região agora tinha alcançado profundidade o suficiente para que um portal dos naqmia pudesse ser aberto ali, a fim de transportar as naves até Mirth.
Enquanto o Guardião se encaminhava ao reservatório para o contato com os naqmia, um Guerreiro do Ar enviou os mensageiros do vento para o campo de batalha com o aviso de retirada. Era quase desnecessário, àquela altura, uma vez que as lutas já tinham quase que se encerrado totalmente, porque também aqueles que pareciam ser os líderes dos inimigos já se haviam retirado. Ainda assim, era importante que entendessem a nova ordem: não retornar ao acampamento, ir direto ao reservatório mais próximo do território. Mesmo sem entender o que estava acontecendo, Guerreiros e Soldados obedeceram à ordem e, aos poucos, foram ocupando os lugares disponíveis nas naves.

Mirth se estendia, como sempre, colossal e impenetrável. Ainda assim, o número de desgarrados que a ocupava era alto. Murrough era um deles. Chegara à ilha de mãos vazias, roupas rasgadas e imundas e com a incômoda noção de que fedia. Agora se permitia tomar um banho longo numa tina em que a água deixou de ser translúcida assim que imergiu. Limpou-se com afinco dos dias de batalha, esfregando manchas de terra e crostas de sangue dos braços e torso. Num ato de coragem, enfiou a cabeça debaixo da água também, e esfregou-a com o pedaço de sabão que lhe fora dado. Lhe ardeu, ainda submerso, o agora descoberto corte no couro cabeludo. Aquilo era uma novidade. Tirou a cabeça da água e recostou-a na borda da tina. Seus pensamentos voaram para Hayala.
Se estivesse viva, estaria agora ao seu lado, contando uma das inúmeras histórias engraçadas que ele tinha quase certeza de serem inventadas só para fazê-lo rir. Ela esfregaria as costas dele, e os dois trocariam olhares cheios de significados.
Entretanto, a moça estava morta, assim como dezenas de Guerreiros, Soldados e desgarrados. E uma Guardiã.
Murrough sacudiu a cabeça, espantando os pensamentos junto com a água acumulada em seus cabelos. Ergueu-se e saiu da tina, secando-se com uma toalha tão áspera quanto gasta. Sentindo-se limpo como nunca estivera no que pareciam anos, vestiu roupas novas, a camiseta folgada demais, a calça quase apertada, o sapato que já havia sido moldado por um pé que não era o seu, e abandonou a tenda improvisada no meio da área comum.
Quando chegaram ali, ele havia insistido para ajudar na enfermaria, porém os curadores o recusaram, notando de imediato a imundície em que se encontrava. Agora não teriam desculpas, caprichara na limpeza e até suas mãos pareciam mais macias e menos calejadas. Em silêncio e sem pedir permissão, entrou na cabana, onde os feridos mais graves estavam alocados. Os que precisavam de cuidados menos urgentes estavam espalhados sob um toldo ao lado da área de refeições.
Dentro da cabana, reviu as cenas de horror que já encontrava no acampamento. Ao menos ali tudo parecia mais limpo e mais fácil de manejar. Ainda assim, sangue pingava dos catres, gemidos preenchiam o ar junto do cheiro pungente de feridas e elementos que deveriam ser mantidos apenas dentro de um corpo humano. Os leitos eram separados de maneira a identificar a prioridade de cada enfermo. Os primeiros a partir da entrada eram aqueles que necessitavam de mais atenção. Ali estava Fintan, deitado com a barriga para baixo e completamente enrolado em bandagens que faziam o esforço de mantê-lo em um só pedaço. A partir do meio da enfermaria, estavam aqueles que ainda podiam esperar. Lá, para sua surpresa, encontrou . Estava deitado com uma colcha cobrindo-o até o queixo e suava frio. Quando Murrough se aproximou, percebeu que o Guerreiro tremia.

- O que houve com você? – buscou pela volta uma das telas holográficas na intenção de entender qual era a situação do rapaz. – Parecia bem quando te vi entrando na nave.

tentou rir, mas sequer conseguiu abrir a boca, de modo que o riso ficou preso em sua garganta. Pareceu engasgar-se com aquilo e, com muita dificuldade, pôde respirar fundo.

- Aconteceu no portal... – murmurou com dificuldade. – Depois disso, parece que meu corpo reconheceu Mirth e se permitiu desligar. A próxima coisa que soube era que eu estava na enfermaria, mas minha perna não.

Por mais que ele parecesse falar aquilo com naturalidade, como se não fosse grande coisa, Murrough notou a dor em seus olhos. Não só a dor física, mas emocional. Aquele era o líder dos lutadores, e perder uma perna significava não poder mais lutar. Perder seu cargo. Sem saber o que fazer, o desgarrado afagou os cabelos de . Olhou em volta, procurando alguém que pudesse lhe designar alguma tarefa.
Foi então que viu o último catre da cabana. Lá estava , seu olhar desolado fitando o corpo de sobre o colchão. Antes que pudesse se mover até lá, entretanto, foi interrompido pela porta que se abriu estrondosamente.

- Afinal, qual a pressa, pessoal? Mal cheguei e já fui convocado. Sequer tive tempo de encontrar minha irmãzinha.

Era Kyle. A próxima coisa que aconteceu foi que seu sorriso desapareceu de súbito de seu rosto, que de repente também perdeu a cor. Ele primeiro reconheceu e depois seu cérebro processou a informação de que aquela era deitada sem vida sobre os lençóis brancos. O Soldado venceu os passos até a cama cambaleando, porém mais rápido do que se poderia imaginar. Uma mão sua buscou pelo pulso da irmã e a outra correu para debaixo do nariz dela. Nada.
Um grito cortou a garganta de Kyle, que caiu de joelhos ao lado do leito da irmã. Seu rosto enterrou-se na barriga dela e ele balbuciava frases incompreensíveis enquanto vazavam lágrimas sobre a camiseta de .
Depois de alguns minutos ele ergueu a cabeça e suas mãos trêmulas tocaram o rosto e o ombro da irmã, e ele a sacudiu com delicadeza, como se tentasse despertá-la de um sono profundo.

- ... ? Não, por favor. Não! – pediu enquanto segurava as mãos, pela primeira vez, frias da irmã. Murrough não conseguia fazer nada, senão assistir àquela cena devastadora. – Por favor. Vocês podem curá-la, não podem? Podem consertá-la? – lançou seu olhar suplicante a Bree e Viper, que se mantinham a um canto da enfermaria, ambos com os olhos vermelhos de lágrimas. Os Guardiões trocaram um olhar, mas Kyle já não estava preocupado com eles. – , acorda, vamos. Não faça isso comigo, por favor. O que eu... O que vou fazer sem você? – a voz dele falhou e os pontos em seu torso, recém-suturados sob o toldo lá fora, se romperam com seus soluços.

Ninguém teve coragem de contar a Kyle que os Guardiões já haviam tentado de tudo junto aos curadores. Bree tentara curá-la com os conhecimentos de sua casa. Viper tentou trazer de volta a vida a ela com seu dom da fertilidade. Amber lhe aplicara inúmeras descargas elétricas a fim de fazer seu coração voltar a bater. Até Violet, secretamente, havia tentado usar seus dons. Como ceifadora, imaginou que poderia, ao menos uma vez, trazer de volta alguém. Nada teve efeito.
levantou-se e soltou a mão de , afastando-se. A dor tomava conta de cada parte de seu corpo. Amber e Viper haviam ajudado a restaurar sua energia, mas ele continuava sentindo como se nunca tivesse dormido na vida. Já carregara diversas vezes para enfermarias e cabanas, porém essa certamente fora a pior de todas. Exatamente porque, desde que saíra da nave, conforme apressava o passo ele ia tomando ainda mais noção de que já era tarde demais. E agora, ver o irmão dela se lamentando também era péssimo. Ele ouvia Kyle dizer como era sua culpa e que deveria ter cuidado de sua irmãzinha, mas sabia bem a verdade.
Era ele quem deveria estar cuidando da Guardiã. E era culpa dele que ela estivesse... Ele mal conseguia pensar na palavra. A garota abaixou a guarda para salvá-lo e pagou o preço. decidiu que não continuaria em Mirth depois dessa. Acreditava que Violet sabia e, no futuro, muitos outros saberiam também. Não aguentaria. Não sem ela.
Violet estava sentada no chão, os braços envolvendo os joelhos e a expressão vazia no rosto. Sua mente ecoava as palavras da profecia, em especial a última frase: “A lâmina do destino não tardará, porém, a encontrar seu corpo, impregnando sua alma e trazendo-lhe a morte”. Ela também reexaminava sua visão, que fora um misto de passado e futuro. há muito tinha sido atingida quando ela mesma viu a cena. Primeiro a espada entrando em seu peito. Depois, os amigos chorando sobre o corpo pálido e sem vida.
Com os olhos focados no nada ela repetia mais uma vez a visão, parando-a exatamente no momento em que a lâmina abandonou a carne da amiga. O sangue formava um padrão interessante sobre a superfície prateada. A Guardiã inclinou o corpo para a frente, como se assim pudesse enxergá-lo melhor. Ela reconheceu os símbolos de um idioma diferente. Reconheceu-os simplesmente porque a palavra, ou melhor, o nome que formavam correspondia ao de uma antiga entidade que, dentre suas muitas facetas, também representava o destino. A Guardiã sentiu as mãos esquentarem de ódio.
A espada agora estava guardada entre os pertences de Violet. Alguns testes mostraram que havia sido envenenada especialmente para . Quem quer que a houvesse matado, tinha sido enviado para a batalha exatamente com essa finalidade. A arma inclusive não havia sido usada para outro propósito, não havia cortado mais ninguém.
Brock já havia deixado a enfermaria, e estava preso em um terremoto particular, as unhas que já estavam compridas e um pouco irregulares cortavam as palmas de suas mãos enquanto ele tentava se conter. Era insanamente injusto que tivesse que ter sido . Ele mesmo fizera os testes na espada responsável pela morte da amiga, e tinha certeza de que o veneno encontrado na lâmina havia sido formulado especialmente para a Guardiã. Como aquilo era possível ele não sabia. Só podia imaginar que alguém havia ficado realmente irritado com o poder que demonstrou sob a Lua de Sangue e, de algum modo, teve acesso a alguma quantidade de sangue dela, conseguindo assim produzir um veneno singular.
Lavender abandonou o catre onde deveria ficar por causa de um grave ferimento na barriga e passou os braços em volta dos ombros de Kyle. Tentava não derramar lágrimas enquanto abraçava o Soldado, mas o pensamento aterrador de que se fora era intenso demais. Se ela estava sofrendo com essa realidade, mal podia começar a imaginar como Kyle se sentia. Nem em seus piores pesadelos era capaz de imaginar um mundo sem a própria irmã ou a dor de perdê-la. Não pôde conter um soluço que escorregou de sua garganta, mas apertou ainda mais Kyle contra si ao senti-lo tremer em meio ao choro.
Cortando o ar, Baelfire entrou voando na enfermaria. Pousou sobre a cabeceira do catre de e olhou-a apreensivo. Sentia-se culpado. Culpado demais. Suas últimas palavras para a Guardiã... Ele deveria ter percebido que aquilo não era cansaço. Deveria ter cuidado dela, protegido. Afinal, era seu Protetor, não era? E o que fez? Deu-lhe um sermão na hora da morte.
Estava claramente nervoso, mas só percebeu ao começar a mudar de forma repetidas vezes, como na primeira vez que encontrara . Respirou fundo e por fim assumiu a forma de vulp que a Guardiã tanto gostava, como num último pedido de desculpas. Ninguém ousou perturbar a cena, e permaneceram daquela forma por longos minutos.

A cerimônia de despedida estava prestes a começar e já fazia algumas horas que andava em meio à floresta, sem qualquer certeza de se gostaria de estar lá. Deveria estar, entretanto. Era o responsável pela despedida dos Guerreiros da Água e todos contavam com ele para que os mortos pudessem descansar.
Estava prestes a dar meia volta e ir para a praia quando escutou vozes. Não bem vozes, mas uma voz conhecida. Sem poder conter a curiosidade, aproximou-se discretamente.

- ... dizer com “não deve contar”? Não é injusto? – Baelfire questionava um pouco exasperado. não ouviu qualquer resposta, entretanto parecia ter havido, já que a fênix parou de falar. O que quer que fosse, deixou Baelfire ainda mais enfurecido. – Mas e os Guerreiros de Fogo? E Violet? Fintan? E... E ? – o rapaz aproximou-se mais, tentando ver algo entre as plantas, mas eles ainda estavam muito longe. – E Kyle? – a fênix tentou por último, parecendo triste. Aquilo chamou a atenção de . Só poderia estar falando de uma pessoa. – Não acha que merecem saber que está viva?

sentiu o corpo inteiro gelar. A surpresa foi tão grande que teve que se agarrar ao tronco da árvore mais próxima para não cair, já que suas pernas pareciam ter perdido todo o poder de sustentação.
Mesmo que ainda não escutasse a outra pessoa falar, tinha certeza de que era quem estava respondendo curtamente a Baelfire. Ele grunhiu irritado.

- Bom, eu não me importo com os seus planos. Isso é egoísmo. É ridículo. E não me dê esse olhar. Eu já não respondo a você. Faça o que tiver que fazer, mas já não conte comigo.

A fênix alçou voo e partiu dali. correu para o local onde estiveram conversando instantes antes, mas ninguém estava ali. Ainda conseguia ver as pegadas das patas de Bael, contudo não havia prova de que mais alguém estivera lá. Exceto, talvez, pelo cheiro no ar. Cheiro do Fogo.
correu para a praia animado. Ainda não entendia bem a conversa de Baelfire e o porquê de não contar que estava viva. E como estaria viva se ele mesmo carregara seu corpo gelado de volta para Mirth. Porém sabia que existia uma boa explicação para tudo aquilo e não podia deixar de acreditar que ela se daria durante a despedida. Certamente apareceria ali, contaria o que aconteceu, talvez até pedisse desculpas pelo susto.
Quando alcançou a praia, entretanto, a realidade fez questão de dar-lhe um tapa no rosto. Podia ser que estivesse viva, mas tantos outros Guerreiros e Soldados não tinham a mesma sorte. E estava ali para celebrar a vida deles, e para permitir que eles finalmente abandonassem esses mundos e partissem para seu local de descanso.
A cerimônia começava e, no lugar de Fintan, era quem falava. Ele conseguira uma permissão especial para deixar a enfermaria aquela noite, mesmo que seu rosto transparecesse toda a dor que sentia. Estava sobre o palco, apoiado sobre uma perna e uma muleta, o toco de sua coxa ostentava bandagens e já mostrava um pouco de sangue. Ainda assim, falava alto, imponente. não conseguiu prestar atenção em suas palavras, mas espelhou as reações dos Guerreiros a sua volta.
Ignorante da falta de atenção de , continuava seu discurso sem hesitar, mesmo com a dor tentando lhe roubar os sentidos, mesmo com a sensação de que algo abaixo das bandagens ainda lhe machucava. Ele se esforçava para sequer suspirar.

- O protocolo, depois de tantos anos sem ser usado, hoje nos parece um pouco nublado. Entretanto, me parece que não estaria sendo coerente com a memória da Guardiã de minha casa se ainda agora voltasse a me debruçar sobre antigos protocolos e hierarquias. Se já não existem em nossas memórias, seria esse o momento ideal para que os renovássemos de acordo com as ideias que temos hoje. Assim, a fim de demonstrar respeito àqueles que lutaram ao nosso lado, àqueles a quem essa luta não dizia respeito, àqueles que se envolveram em nossa batalha sem qualquer obrigação, a primeira cerimônia de despedida será a dos nossos aliados de Ubrac. – enquanto ele tentava se manter firme sobre o palco, Violet e alguns Guerreiros da Colheita aproximaram-se da primeira pilha de corpos. Pesados mantos violeta os cobriam da cabeça aos pés, arrastavam-se pelo chão e só permitiam que os nós de seus dedos fossem vistos, fechados firmemente em torno dos cabos de suas foices. – Aqui estão mulheres e homens que lutaram ao nosso lado, que se dedicaram a cuidar de nós. Estão aqui aqueles cujas famílias já não estavam mais em Ubrac, cujas famílias também estão entre os mortos, aqueles que não foram reclamados e ainda aqueles cujas famílias pediram para que tivessem sua despedida em nossas terras, de forma a honrar seu sacrifício. A eles nós agradecemos – Violet e os Guerreiros banhavam os corpos em néctar, a fim de possibilitar a passagem segura. Quando percebeu o sinal de que havia terminado, quando todos em volta levaram o punho direito cerrado em direção a testa, os ceifadores ergueram suas foices e raízes agarraram os corpos. Em seguida já não havia mais qualquer sinal de quem um dia estiveram ali.
Alguns momentos se passaram em silêncio, como se aquelas crianças os usassem para assimilar a drástica mudança. pigarreou, espantando o choque do olhar e voltando a falar de maneira firme:

- A lição que mais forte me marcou após essa batalha foi a de respeitar e tratar a todos como meus semelhantes. Não se trata apenas de tolerar a existência daqueles que se mostram como meus oponentes, mas de entender que, para além disso, quando as espadas param de tinir, eles sentem as mesmas dores que eu, eles precisam dos mesmos cuidados que os meus. Honrar nossos inimigos significa que prestaremos agora respeito às suas crenças, mesmo que sejam opostas às nossas. Tomaremos esse momento em silêncio para que seus companheiros, os desgarrados que escolheram reunir-se a Mirth, possam fazer as cerimônias de despedidas mais adequadas a cada um deles. Aqueles que, por qualquer motivo, não receberem sua despedida, serão acolhidos também pela Colheita. Porque, mesmo aos nossos inimigos, jamais poderíamos desejar crueldade como a de vagar para sempre e sem descanso entre os mundos.

Timidamente os primeiros desgarrados separaram-se da multidão, encontrando aos poucos os corpos daqueles que conheciam de vista, dos seus parceiros e dos seus amigos. Aos poucos eles foram liberando-os do tormento eterno, permitindo que partissem.
De propósito ou não, Hayala foi a última. Murrough não tinha certeza se havia se dirigido a outros companheiros antes porque estavam mais perto, porque parecia mais certo ou porque não queria se despedir da garota tão cedo. Contudo, agora não tinha mais escapatória. Estava de frente para seu corpo e precisava dar-lhe adeus. Suspirando, meteu a mão em seu bolso e resgatou de lá uma moeda preta. Olhou-a uma última vez e depositou-a na palma de Hayala, pressionando-a ali e fechando com dificuldade os dedos rígidos dela em torno da peça. Os demais parceiros já haviam se afastado quando ele fez seu caminho de volta para a multidão silenciosa. Mais uma vez Violet e seus Guerreiros fizeram as raízes agarrarem aqueles corpos.

- Debati muito com os Protetores, com os membros mais antigos de Mirth e com Fintan sobre o que viria a seguir. Tentaram me convencer de que o certo seria agora a despedida dos Soldados, porém acredito que ainda há outros que mereçam nosso respeito antes de reassumirmos hierarquias. Por isso, peço que, junto a mim, prestem um momento de respeito, uma oração ou até mesmo o seu silêncio para aqueles cujos corpos, por qualquer que seja o motivo, não foram recolhidos. Os corpos que foram demasiadamente destruídos, aqueles que não foram encontrados, aqueles que não puderam ser movidos, aqueles que não deviam ser movidos. – interrompeu a frase ali. A massa de pessoas a sua frente não falava, embora algumas bocas se movessem.

Entre eles, os Soldados pensavam em seus parceiros wicachites, cujos cadáveres seriam consumidos pelas terras de Ubrac. A cultura daquele povo não acreditava numa despedida do corpo. A morte em batalha era adeus o suficiente. Ainda assim, não houve Soldados que não dedicaram seus pensamentos a eles. Também aos corpos que sabiam que não tinham sido encontrados. E que pudessem encontrar seu caminho para fora daqueles mundos.
A cerimônia seguiu, e não conseguia prestar atenção ao seu redor, ansioso pelo retorno de , quando os Soldados ganharam suas despedidas. Ao longo dos anos, eles estabeleceram um ritual independente de Mirth, uma vez que seria inviável transportar todos os seus mortos sempre para a ilha com a finalidade de fazer sua despedida. Quando finalmente ergueu o olhar para observar o rito, os corpos já não estavam mais lá.
O Guardião ainda ruminava os motivos possíveis para que escondesse que estava viva. Repassava mentalmente os fragmentos da conversa que ouviu, sua cabeça trabalhando forçosamente para imaginar a voz da moça respondendo a Baelfire. Estava concentrado demais na tarefa para ver os corpos dos Guerreiros do Fogo sendo consumidos pelas chamas que e Tharja lançaram juntos, ou quando os da Terra foram engolidos pelo solo ao comando de Brock. Também não percebeu quando foi a vez dos Guerreiros da Luz e da Fertilidade de receberem as despedidas e, se o chamaram para fazer a despedida dos da Água, não escutou. Foi Elba, depois de alguns momentos de um silêncio constrangedor, quem foi realizar essa parte da cerimônia. deveria estar prestando atenção, sabia que sim, mas não conseguia parar de pensar e repassar aquilo tudo em sua cabeça. Porque ele carregou o corpo de , viu que ela já não respirava, seu coração não batia mais. Presenciou os esforços dos amigos para trazê-la de volta. Entretanto, quando Baelfire conversava na floresta...
Um pensamento assombrou . Seus olhos se arregalaram em compreensão e ele preferia nunca ter entendido aquilo. Porque se fosse verdade o que pensava...

- Engraçado... – ele ouviu voltar a falar, agora ainda mais nítido, já sem a sensação de abafamento em suas orelhas que tinha antes ao estar preso em seus próprios pensamentos. Percebeu que, embora usasse aquela palavra, não parecia engraçado para o Guerreiro. – odiaria que reservássemos um momento especial para falar dela. Que sua despedida fosse separada. Todos sabemos, qualquer que tenha sido o nível de convivência que tenham tido com ela, que gostaria de ser tratada como uma Guerreira. Que preferiria ter sua despedida igual aos outros. Porém, por mais que eu queira respeitar minha Guardiã, sei que isso não pode acontecer. Ela merece ser honrada pela força que demonstrou... – o Guerreiro soluçou. notou como uma lágrima percorreu o caminho de seu olho esquerdo, brilhou no topo de sua bochecha e escorreu por seu queixo até o pescoço. Viu engolir com dificuldade a saliva e retirar um papel do bolso. Suas mãos tremiam. – Eu sinto muito. Todos sabem que me expresso melhor através da luta – ele ainda conseguiu arrancar algumas risadas leves com seu sorriso sem graça. – Eu tenho aqui algumas palavras de Fintan, que com certeza é mais sábio do que eu, e que estaria aqui se não fosse pela gravidade de seus ferimentos.

Com dificuldade por causa da muleta e pela tremedeira que agora parecia tomar conta de seu corpo, desdobrou o papel e correu os olhos pela escrita. Pigarreou. Engoliu a saliva espessa. Pigarreou mais uma vez.

- morreu lutando. morreu fazendo aquilo que aprendeu a amar. Aquilo que, sem saber, nasceu amando. expirou com uma última chama e um sorriso no rosto. Apagou-se como uma vela recém-acesa, cedo demais. E vai demorar para que nossos olhos se acostumem novamente à vida sem a sua luz. Será cruel um mundo em que já não existe o crepitar de sua risada, a faísca em seu olhar diante de um desafio, o calor de seu afeto – parecia que ele ia continuar, mas sua testa se enrugou como se não entendesse as próximas palavras. Sua mão amassou o papel e o guardou de volta no bolso. – Não tenho certeza se isso continua ou não. Acabou aqui, talvez Fintan não tenha terminado de ditar. O caso é... morreu – declarou. E agora já tinha compreendido isso. E que a conversa de Baelfire existiu apenas na mente da fênix. Que não estava mais ali. Que ela não seria cruel a ponto de deixar toda a ilha chorar por sua morte se não fosse verdade. – Assim. Sem últimas palavras. Sem um olhar ao qual recorrer. Sem uma mão para se agarrar. Uma morte crua, desprovida de beleza ou poesia. Sozinha. Porém, com a certeza de que fez seu tempo aqui valer. De que seu legado será passado para ainda muitas gerações de Guerreiros e Guardiões. Então, para honrar e seus ensinamentos, hoje nos despedimos dela. Do único jeito que ela não gostaria – tentou uma risada no final, recebendo risos fracos de volta da multidão. A maioria chorava, ainda assim. E quando finalmente perceberam que alguém teria que tomar a iniciativa de queimar seu corpo, ninguém teve a coragem de dar o primeiro passo.

Foi quando Baelfire apareceu. Voou acima de todos e mergulhou em direção ao peito da Guardiã, pousando sobre o ponto em que fora ferida. Aninhou-se ali e, sem aviso, a fênix pegou fogo. Queimou sobre o corpo da melhor Guardiã da Lua Vermelha que já havia encontrado.

- Oh, não... – ouviu Tharja murmurar em algum lugar ali perto. Enxergou-a cobrindo a boca que se abrira em espanto. Quando seus olhares se encontraram, ela murmurou com pavor: – Ele está se sacrificando.

Rapidamente o fogo de Bael se estendeu por todo o corpo de , consumindo-a junto com ele. Kyle gritou pela irmã, mas nada mais podia ser feito. Violet amparou o Soldado e o abraçou fortemente, tentando ao máximo conter suas lágrimas. A multidão assistiu enquanto o corpo era engolido pelas chamas.
Durou por vários minutos, mas aos poucos o fogo foi diminuindo e então nada mais restava onde antes estivera o corpo, se não uma pilha de cinzas. Aqueles que ainda encaravam o local notaram quando, aos poucos, uma centelha pareceu brilhar, avermelhada, entre as cinzas. Devagar, tomando seu tempo, tornou-se cada vez mais evidente.
Tharja foi a primeira a chegar mais perto, quase enfiando o nariz nas cinzas, tentando entender de onde vinha aquela brasa. Estava tão perto que deu um pequeno pulo para trás quando uma cabeça pequena saltou dos restos queimados. Pequeno, sem penas, um passarinho muito feio surgia. A líder demorou alguns segundos para entender que aquele, claro, era Baelfire. Afinal, era um dos Imortais.
Todos ainda estavam em volta do palco e do local onde estivera o corpo de quando Baelfire finalmente conseguiu recuperar suas penas. Parecia ter se passado quase uma hora desde que renascera das cinzas, e aquele era um processo incrivelmente aborrecedor para ele. Ainda não estava em seu tamanho ideal, muito menos em seu esplendor habitual, mas era o suficiente. Alçou voo e, por um momento, se deteve acima de todos.

- As luas me falharam – disse alto o suficiente para ser ouvido por todos. – Não posso continuar aqui. Não voltarei enquanto não a trouxer de volta! – avisou, partindo antes que alguém pudesse falar qualquer coisa. Veloz, cruzou o céu já escuro e, em pouco tempo, escapou da barreira protetora de Mirth.

O peso de sua promessa ainda pairava no ar, mesmo dias depois de sua partida.




Fim.



Nota da autora: PELAS LUAS, eu não acredito que tive coragem de enviar esse último capítulo! Acredito que seja nessa hora que vocês gritam, brigam comigo e me xingam. Queria muito ser uma mosquinha agora pra poder ver a cara de vocês que leram até aqui. Como eu não sou, gostaria que vocês me contassem suas reações a esses últimos momentos.
Honestamente eu espero que esse não tenha sido um final TÃO surpreendente assim porque ele tava escrito, tipo, no prólogo da história. Ainda assim, espero que vocês tenham sido um pouquinho Lake e acreditado num retorno épico até quase o final. Eu mesma demorei muito pra poder aceitar esse final, e confesso que não fico muito feliz com ele, porque a Heather é minha bebezinha e eu quero que ela exista pra sempre, mas era assim que a história tinha que terminar e outro final não faria sentido.
Eu quero MUITO conversar com vocês e descobrir o que vocês acharam tanto desse capítulo como da história como um todo, que me contem o que acharam que ficou faltando, o que eu deveria mudar ou poderia melhorar, porque RM é tipo minha Monalisa e eu ainda vou voltar nessa história umas trocentas vezes pra editar ela e tentar deixar cada vez melhor. Mas enfim, se quiserem, podem comentar aqui embaixo ou lá no grupo do facebook as suas opiniões, podem me chamar pra conversar, podem me pedir minhas 1001 teorias do futuro das crianças na ilha... Estou ansiosa pra ouvir vocês. Um beijo e até a próxima!

Nota de Beta:Eu sinto tanto com esse final. Amei tudo, do início ao fim, das emoções do Lake e do Kyle, de como o discurso do Guz foi emocionante e de como, ainda assim, eu ainda espero que a Heather volte...
Foi um imenso prazer acompanhar Red Moon, mesmo antes de ser a beta da fic, e ainda mais de ter feito parte da postagem dessa reta final.
Sou extremamente grata a ti, Aguilera, por ter compartilhado essa história hiper maravilhosa.

Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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