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Última atualização: 23/06/2020

Prólogo

viu o professor de Educação Física, na beira do campo, indicar o relógio de pulso e levou o apito aos lábios para encerrar o jogo.
— Valeu pessoal! A gente se vê na semana que vem — Jaime disse para os alunos, enquanto recolhia os coletes vermelhos e verdes que identificavam os dois times.
, a única que vestia apenas o uniforme do colégio, também se aproximou dele, mas para lhe entregar o apito e os cartões amarelo e vermelho.
— Você é boa nisso, . Estou até pensando em te convocar para ser minha assistente no interescolar.
Ela esboçou um sorriso e estava prestes a soltar um risinho quando percebeu que não era somente uma brincadeira.
— Um aluno pode participar da arbitragem do torneio? — perguntou, interessada.
— Desde que não seja nos jogos da nossa escola, não vejo problema nenhum. Vou dar essa sugestão para o comitê organizador. Aposto que mais alunos se interessariam.
— Seria muito legal, professor. — sorriu, sentindo-se empolgada apenas por pensar na possibilidade.
— Levanto esse assunto na próxima reunião. Pode ir se preparando — Jaime a animou. — Acho que meu livro das Regras do Jogo está no meu armário. Posso te emprestar, caso queira estudar um pouco.
— Quero, sim, se não for fazer falta.
— Não vai. Tenho uma edição mais recente em casa — ele esclareceu. — Vamos até a sala dos professores que pego ele para você. Só me ajuda a juntar essas bolas antes, por favor.
o auxiliou a recolher as bolas que haviam sido deixadas na grama, colocando-as no saco, e o acompanhou pelos corredores da escola.
— Divirta-se — Jaime disse com um sorriso divertido ao lhe entregar o livro que estava no meio da bagunça de seu armário, na sala dos professores.
— Obrigada. — Ela sorriu, segurando-o contra o peito. — Professor, quais são os passos para se tornar árbitro de futebol?
— Existe um curso do Comitê Técnico de Árbitros com aulas teóricas e práticas.
— Qualquer um pode fazer esse curso?
— Sim, desde que tenha, no mínimo, 16 anos, não pertença a nenhum clube e supere os testes físicos — ele explicou. — Se a intenção for chegar ao futebol de elite, é necessário passar por cada uma das categorias até chegar à profissional.
— Deve ser difícil — falou, pensativa, encarando o livro que tinha em mãos. Pela grossura dele, podia imaginar o quanto um árbitro precisava estudar até saber todas as regras com propriedade.
— Um pouquinho, mas, com bastante dedicação, é possível. — Jaime tirou, do meio de suas coisas, o apito que havia emprestado para ela durante a aula de Educação Física daquele final de tarde. — Guarda com você, de recordação. Daqui a alguns anos, quando for árbitra, o dia de hoje vai ser importante.
— Não sei se quero ser árbitra. — Ela riu, mas aceitou o presente e enrolou o cordão na mão. — Perguntei mais por curiosidade mesmo.
— O interesse é o primeiro passo.
— De qualquer maneira, obrigada por ter me deixado apitar o jogo de hoje. Foi uma experiência divertida.
Depois que se despediu do professor, saiu em disparada, em direção ao vestiário, para tomar uma ducha rápida antes de ir embora.
— Onde você estava? — Carla perguntou quando as duas se cruzaram no corredor.
— Pegando esse livro com o Jaime.
— Que livro é esse?
— Sobre as regras do futebol, mas depois a gente conversa sobre isso. Meus pais já devem estar chegando.
Pelos dias que se seguiram, levou as Regras do Jogo consigo para toda parte. Leu cada uma das dezessete regras, dando uma atenção especial à cinco, que definia o árbitro como a maior autoridade para fazer todas as outras regras serem cumpridas dentro do campo. O livro estava um pouco surrado, o que a levava a crer que Jaime o tinha utilizado em seus estudos para se tornar árbitro. Ela aproveitou as marcações que ele tinha feito para fazer algumas anotações em um caderno. Já que tinha um professor de Educação Física que apitava na terceira divisão do futebol espanhol, aproveitaria para tirar todas as dúvidas que surgissem.
O fim de semana chegou e, com ele, o dia de ir com toda a família ao Estádio de Los Ángeles. Era uma tradição dos Flores há três gerações, desde quando Salvador, seu avô materno, se tornara torcedor do Club Deportivo Villaverde, o primeiro clube de futebol de Villaverde, fundado após a Guerra Civil Espanhola. Depois de anos tão conturbados, o esporte recuperava sua importância no dia a dia do povo espanhol, fazendo com que a torcida verdiblanca crescesse rapidamente, sempre muito calorosa e apaixonada.
Aquela partida, no entanto, seria ainda mais especial para a família de . Tão especial que até Mario, seu irmão mais velho, deixara os livros de Medicina de lado por um dia. Kiko, o primo que os dois consideravam um irmão, havia sido convocado para um jogo do time principal pela primeira vez. Ele estaria no banco de início e não era certo que entraria em campo em alguma das substituições, mas todos estavam muito esperançosos de que isso acontecesse.
No momento em que a bola rolou, se pegou com os olhos presos em cada movimento do árbitro, observando os gestos padronizados que ele fazia para sinalizar suas decisões. Nem mesmo os lances em que o zagueiro italiano Marco Moretti interrompia os ataques do Granada foram capazes de atrair sua atenção, como costumava acontecer normalmente.
Influenciada por Mario e Kiko, que jogaram nos times infantis do C.D. Villaverde desde meninos, ela quisera, por muito tempo, ser jogadora de futebol. Visto que meninas não eram aceitas nas categorias de base, fizera parte dos times da escola em que estudava até ter idade suficiente para participar de um teste para o time feminino de seu clube do coração. Junto à sua melhor amiga, havia se inscrito para a peneira do último verão, mas, diferentemente de Carla, fora recusada.
Tentar novamente era uma possibilidade e, se não o fizesse, não seria por falta de incentivo, mas ela já não tinha mais tanta certeza se era o que realmente queria. Não depois de descobrir qual era a sensação de apitar uma partida de futebol e ter dois times à mercê de suas ordens. Pela primeira vez, ela se vira considerando a arbitragem como um caminho a seguir.
— O Kiko vai entrar! — Mario exclamou, da fileira de trás, trazendo-a de volta para a realidade.
Kiko Flores tinha sido chamado pelo treinador e recebia algumas orientações. A entrada dele em campo, feita com o pé direito, acontecera sob a ovação da torcida. A saída também, depois de contribuir com a primeira das tantas assistências para gols que ele daria em toda a longa trajetória que percorreria no C.D. Villaverde, a partir daquele dia.
Algum tempo depois, comentou com os pais sobre a vontade de fazer o curso de arbitragem no ano seguinte, quando completasse 16 anos, mas Carlota e Pepe não aprovaram a ideia em um primeiro momento. O futebol feminino possuía uma visibilidade quase nula naquele tempo, no final dos anos noventa, e os dois achavam que ela precisaria ter uma segunda carreira que garantisse seu sustento. Para eles, a arbitragem exigiria mais dedicação do que se ela fosse jogadora, e isso complicaria as coisas.
Nenhum dos dois esperava que viria a apitar no futebol masculino, algo inimaginável até então. Anos mais tarde, ela mostraria para o mundo inteiro que mulheres eram capazes de ocupar qualquer posição dentro das quatro linhas, inclusive a de maior autoridade.



Capítulo 1

Em um beach club de Ibiza, contemplava a imensidão do mar sob o céu aberto, onde o sol forte de verão reluzia. A brisa completava o cenário, bagunçando seus fios de cabelo recém-platinados que batiam na altura do queixo. Aquela sensação, a de se sentir livre e viva, era incrível.
— Continua nessa posição, .
Antes que pudesse olhar para trás, ouviu um clique que explicou o que estava acontecendo por si só.
— Essa foto ficou incrível. — Carla se acomodou entre as almofadas, ao seu lado, olhando para a tela da câmera fotográfica. — Posso postar no meu Instagram profissional?
— Vou começar a cobrar pelos meus direitos de imagem.
— Sou sua fotógrafa particular e não cobro nada por isso. Você devia me agradecer.
— Também não precisa jogar na minha cara, né? — rebateu, fazendo-a rir.
Suas atenções foram desviadas para as duas mulheres que se aproximavam, cada uma com dois drinques de cores vibrantes em mãos.
— Arranjamos uma festa para ir mais tarde — Valeria disse, entregando o copo de conteúdo alaranjado para . — Um carinha que estava ali no bar pediu para tirar uma selfie comigo e já aproveitou para nos convidar.
— O combinado não era curtir as férias sem carinhas?
— Como se você não tivesse sido a primeira a quebrar a regra!
— E eu já expliquei que foi impossível resistir àquele sotaque. — bebericou o drinque, escondendo um sorriso que despontou em seu rosto ao se lembrar do dominicano que conhecera em uma boate, na primeira noite da viagem.
O assunto não demorou a mudar completamente, assim como sempre acontecia quando as quatro se juntavam. A calmaria e a beleza do lugar apenas favoreciam ainda mais o desenrolar descontraído da conversa.
Depois de um ano tão intenso, alguns dias tranquilos como aquele eram tudo o que estava precisando. Se sentia tão bem, distante do mundo real, que quase começava a pensar que não seria nenhum sacrifício abandonar suas jaquetas para vestir nada além de biquínis, e passar o resto de seus dias vagando pelas praias de Ibiza.
, acho que é o seu celular que está tocando — Valeria falou, indicando os aparelhos que estavam sobre uma mesinha, entre protetores solares, hidratantes e outros pertences delas.
pegou o celular que vibrava insistentemente, mostrando um número desconhecido na tela. Pensou em recusar a ligação, mas não resistiu à curiosidade. No último segundo, a direção em que seu dedo ia se alterou.
— Alô — falou ao levar o aparelho ao ouvido.
? — disse uma voz masculina do outro lado da linha.
— Sim, sou eu.
Aqui quem fala é Jorge Garrido, vice-presidente do Comitê Técnico de Árbitros.
Imersas em um novo assunto que fora colocado para jogo, Valeria, Carla e Lara não perceberam quando os olhos de se arregalaram em surpresa.
— Só um minuto, por favor. — Ela se pôs de pé e se afastou para ter aquela conversa, que soava como importante, longe do falatório. — Pronto. Em que posso ajudá-lo, Sr. Garrido?
Jorge Garrido começou falando sobre as listas de árbitros e assistentes de cada divisão, que seriam publicadas no site do Comitê na tarde do dia seguinte. Apesar de estar em dia com os testes físicos e todas as suas outras obrigações como árbitra da segunda divisão, a primeira coisa que passou pela cabeça de foi que ele estava ligando para comunicar que ela seria rebaixada para a terceira. Foi por muito pouco que não se arrependeu de ter sido rigorosa ao ponto de acabar a temporada como a árbitra espanhola que mais mostrara cartões vermelhos.
Desde que iniciara seus estudos para se tornar árbitra, a trajetória de não havia sido fácil. Além de conciliar a arbitragem com a escola e, posteriormente, com a faculdade de Educação Física, ainda tinha que lidar com todo o preconceito que sofria por ser mulher. Constantemente, precisava se esforçar em dobro para não dar motivos para que colocassem defeitos em seu trabalho. Sem contar o grande desgaste que era conquistar o respeito dos jogadores dentro de campo.
Por mais que trabalhasse dia após dia exatamente com esse propósito, ela não acreditava, de fato, que chegaria à primeira divisão. Na Espanha, nenhuma outra mulher havia conseguido ir tão longe no futebol masculino. Por conta disso que, ao escutar Jorge Garrido dizer que ela fora a única, dentre todos os árbitros da segunda divisão, a subir para a categoria mais alta naquela temporada, precisou de alguns segundos para absorver a informação e se lembrar de que precisava respondê-lo.
— Vocês não vão acreditar! — ela exclamou assim que encerrou a ligação, correndo na direção das amigas.
Os três pares de olhos, curiosos, a observaram atentamente. Elas não apenas acreditaram na notícia que era perfeitamente crível, como também fizeram uma grande festa, com direito a abraço grupal e tudo.
Naquela noite, a regra que tinham estabelecido, a de não ficarem com ninguém ao longo da viagem que tinha o intuito de celebrar a amizade que as mantinha unidas, ficou esquecida. Não que , Valeria ou Carla, as solteiras do quarteto, tenham se interessado por alguém. Elas só estavam ocupadas demais, comemorando a ascensão que representava uma enorme conquista para as árbitras espanholas, para reparar nos olhares cobiçosos que recebiam enquanto se esbaldavam na pista de dança, entre um drinque e outro.

• • •

quase não conseguia prestar atenção nas palavras de Gonzalo Carrasco que saíam pelo alto-falante do celular. Ao seu lado, o delegado da Seleção Espanhola dizia, a cada cinco segundos, que eles precisavam ir. A gritaria que adentrava o saguão do hotel, toda vez que a porta se abria, não ajudava muito também.
— Preciso desligar, Gonzalo — ele disse assim que encontrou uma brecha por entre o discurso que seu agente fazia do outro lado da linha. — Nem preciso dizer que você tem carta branca para fazer o que for necessário, né? A gente vai se falando ao longo da semana.
encerrou a ligação em meio a um longo suspiro e segurou a alça da mochila ao acompanhar o delegado. No exterior do hotel, o tumulto se acentuou quando os torcedores o reconheceram. Ele acenou, respondendo às saudações eufóricas, e não se demorou a subir no ônibus.
Do lado de dentro, o ambiente não estava muito diferente, tomado por incontáveis conversas paralelas, brincadeiras e risadas. A algazarra era tanta que nem parecia que o grupo estava a vinte e quatro horas de disputar a final da Eurocopa.
— Acabei de falar com meu agente — falou ao ocupar, como de costume, o assento vago ao lado de Tomás Alonso.
— Alguma novidade sobre a transferência?
— Cifuentes não quer pagar a quantia que o Milano está pedindo.
— Ele não tinha garantido que queria você no Villaverde para a próxima temporada?
— Sim, mas está aproveitando que tenho apenas um ano de contrato para baratear a transferência — explicou. — Minha única preocupação é que o Milano me prenda por mais uma temporada.
— Duvido que vão querer que você vá embora de graça ano que vem. — Tomás soltou um risinho descrente.
— Eu não duvido de nada.
— Todo mundo sabe que sua vontade é voltar para o Villa, inclusive o pessoal do Milano. Assim que a temporada acabar oficialmente, com o fim da Eurocopa, essa transferência sai.
— Sinceramente, é o que espero.
Quando Tomás voltou a atenção para o celular, provavelmente para trocar mensagens com Mónica, a esposa dele, cobriu os ouvidos com o headphone que levava consigo, pendurado no pescoço. Escolheu a playlist formada por suas músicas favoritas de flamenco urbano para se manter entretido enquanto o ônibus percorria as ruas de Londres.
Cantarolando El Arte de Vivir¹, se perdeu em pensamentos.
Não podia negar que se sentia um pouco frustrado depois da ligação de Gonzalo. Naquela altura, ele esperava que as negociações entre o Milano Football Club e o C.D. Villaverde estivessem mais avançadas. Para isso, um ano antes, havia comunicado os dois clubes sobre seu desejo de retornar à Espanha. Roberto Cifuentes, apesar de ter se tornado presidente após sua saída, se mostrou disposto a recebê-lo de volta no clube verdiblanco. De onde, para ser honesto, ele nunca quisera ter ido embora.
Não era como se não tivesse se adaptado ao futebol italiano. Muito pelo contrário. No Milano, havia crescido bastante como zagueiro, estando inserido no sistema tático mais defensivo dos italianos por quatro temporadas. Também não tinha sido um grande desafio se acostumar a viver na encantadora cidade de Milão e aprender um idioma parecido com o espanhol, mas sua casa sempre estaria em Madrid, no coração do distrito de Villaverde.
despertara o interesse do C.D. Villaverde aos 18 anos. Apesar de ter sido obrigado a deixar Jerez de la Frontera, sua cidade natal, e o Jerez C.F., seu clube de infância, cheio de incertezas, fora na capital espanhola que vivera os melhores anos de sua vida. Quase uma década depois, quando pensava que seria daqueles jogadores que têm sua própria história se confundindo com a do clube em que jogaram ao longo de toda a carreira, se viu sendo vendido em meio à pior crise financeira da história verdiblanca.
Se tivesse poder de escolha na época, sua trajetória teria sido diferente, mas não via o fato de ter jogado na Itália como algo negativo. Tinham sido bons anos. Não era ingratidão, como os torcedores vinham apontando desde os primeiros boatos. Ele apenas acreditava que aquele ciclo tinha sido encerrado e queria poder ajudar o clube que tantas alegrias lhe dera a recuperar a grandiosidade de outrora, antes que estivesse velho demais para isso.
— E você? Quando pretende voltar para casa? — perguntou a Tomás ao tirar o headphone dos ouvidos. O ônibus acabava de chegar ao Estádio de Wembley.
— Espero que em breve, mas acho que ainda não é o momento. Não quero sair do Manchester de uma hora para outra, depois de ter passado tantos anos lá.
— Imagina nós dois jogando no mesmo time de novo.
Um sorriso nostálgico surgiu nos lábios de , acompanhado pelas memórias do tempo em que os dois quase não se desgrudavam, mesmo quando não estavam nos treinos do C.D. Villaverde ou concentrados com a equipe. Se ele tinha se adaptado tão rápido à vida em Madrid, tinha que agradecer a Tomás por isso.
— Pena que não temos mais 20 anos, .
Hombre, fale por você! Vou disputar uma final de Euro amanhã e me sinto melhor do que nunca.
— Me refiro às festinhas que a gente dava naquela época, tío — Tomás esclareceu, rindo. — Sou um pai de família agora.
— Pois é, mas eu não. Estou em forma até para as festinhas. — esboçou um sorriso divertido.
O Estádio de Wembley estava movimentado, pronto para receber os treinos de reconhecimento de campo das Seleções da França e da Espanha. As expectativas para a final do dia seguinte eram enormes. Uma era a atual campeã do mundo, a outra estava invicta desde as eliminatórias para o torneio.
adentrou o vestiário assobiando despreocupadamente. Conectou o celular a uma caixa de som que sempre levava consigo e deixou uma playlist tocando ao fundo, enquanto o time se preparava para o treino.
Normalmente, este era seu jeito de lidar com partidas importantes. Graças aos títulos da Copa do Mundo e da Eurocopa conquistados com a Seleção em seu início de carreira, como jogador reserva, sabia o que esperar. Agora, como um dos veteranos, se sentia na obrigação não apenas de motivar, mas também de manter o equilíbrio da equipe.
— Vamos, carajo! — Ele bateu a palma da mão na porta do vestiário repetidas vezes, fazendo o som ecoar pelo local. — Amanhã, a única coisa que vale é vencer, então vamos trabalhar!

• • •

O baque do punho de Carla contra a mesa fez os copos tremerem.
— É impressionante! — Ela bufou. — O Alonso não acerta uma!
— Não fala assim! Ele só não está num bom dia. — Lara jogou uma bolinha de guardanapo nela.
riu, observando a pequena discussão que se desenrolou entre as duas. Desde o início do torneio, Carla achava que a titularidade deveria ser de Nacho Peña, que vinha de uma temporada melhor que a de Tomás Alonso. Lara, no entanto, não media esforços para defender o jogador que, como atacante do time feminino do C.D. Villaverde, ela costumava ter como inspiração.
O segundo tempo da final europeia transcorria com o placar ainda zerado, e a tensão aumentava a cada minuto que passava. Especialmente nos contra-ataques da Seleção Francesa, que pareciam ainda mais perigosos por conta do entusiasmo das poucas mesas ocupadas por franceses. Por serem a minoria entre os presentes no bar à beira da praia, as exclamações deles se sobressaíam em meio ao silêncio da maioria.
— Parece que ele vai voltar para o Villa, né? — Valeria mencionou quando cometeu uma falta ao tentar desarmar um atacante adversário.
— É o que estão dizendo. — deslizou, distraidamente, o dedo pela boca do copo de cerveja, que estava pela metade. — Só não decidi ainda se isso é algo que deve ser comemorado.
— Você não acha que o é um bom zagueiro? — Lara perguntou, a encarando curiosamente.
— Achar, eu acho, mas ele é nervosinho demais para o meu gosto. Se viesse me afrontar desse jeito aí — ela apontou para o telão, que mostrava questionando a decisão do árbitro —, levaria, no mínimo, uma bela de uma chamada.
A Seleção Francesa cobrou o tiro livre, um chute forte e certeiro que seguiu na direção do gol, mas o goleiro espanhol Álvaro Llaneza espalmou a bola para a linha de fundo. Antes de o escanteio ser cobrado, o árbitro autorizou a primeira substituição da Seleção Espanhola.
— Até que enfim! — Carla ergueu os braços dramaticamente quando, no lugar do meio-campista Gerard Soriano, entrou Nacho Peña para acompanhar Tomás Alonso no ataque.
A bola foi recolocada em jogo pelos franceses, mas a afastou da pequena área, chutando-a em direção ao centro do campo.
revezou o olhar entre o copo, agora vazio, e a partida que parecia se encaminhar para a prorrogação, e decidiu ir pegar mais cerveja. A atenção do barman estava tão presa no jogo, que a bebida transbordou quando ele encheu o copo mais do que o necessário. Ela riu disfarçadamente, observando-o se apressar a secar o balcão com um pano, e se recostou para beber sua cerveja por ali mesmo.
O bar estava tomado por torcedores espanhóis, e era uma deles. Ela vestia sua camisa favorita da Seleção Espanhola, a que compunha o uniforme utilizado no primeiro título que vira seu país conquistar no futebol de elite. A Eurocopa que dera início a uma fase gloriosa do futebol espanhol.
Estampado em suas costas, levava, orgulhosamente, o número 10 acompanhado pelo sobrenome que compartilhava com Kiko Flores. Não que o usasse com frequência. Ela preferia se apresentar com o sobrenome herdado de seu pai, , que não fazia alusão ao ex-meio-campista da Seleção e do C.D. Villaverde. Não escondia de ninguém que era prima dele, mas também não fazia questão de que as pessoas se lembrassem do parentesco entre eles o tempo todo.
Por mais que tentasse manter os olhos no telão, , de tempos em tempos, se pegava observando as reações das pessoas aos lances do jogo. Os palavrões proferidos, as mãos levadas à cabeça e os suspiros frustrados. Ela já nem se lembrava de quando havia sido a última vez que sentira todas aquelas emoções que, um dia, foram tão comuns para ela.
Ainda gostava de assistir a uma boa partida de futebol, tomando uma boa cerveja, mas não possuía mais o olhar apaixonado de torcedora. Ao se tornar árbitra de futebol, fora obrigada a substituí-lo por um olhar mais frio e minucioso. A maior reação que esboçou ao longo da nova final disputada pela Seleção Espanhola foi um sorriso, quando Nacho Peña marcou o gol da vitória e o bar explodiu em comemoração.
— Que golaço, hein? — disse ao retornar à mesa, e caiu na risada quando Carla, já um pouco alterada pelo álcool, a puxou para um abraço.
— Eu não falei que o Nacho tinha que entrar no jogo?
— Pois é, mas a assistência foi de quem? — Lara rebateu em um tom presunçoso, abrindo os braços.
— Pronto… Vai começar. — Valeria riu. — Vou pedir umas tapas² para a gente — acrescentou, chamando um garçom.

• • •

Um mar vermelho de espanhóis cobria a antiga Esplanada Puente del Rey, renomeada para Esplanada da Seleção Espanhola de Futebol depois da conquista da Copa do Mundo. As autoridades haviam confirmado a presença de cerca de meio milhão de pessoas nas ruas de Madrid, escoltando o ônibus dos campeões europeus por todo o caminho da Praça de Espanha até ali.
Mi gente, o show não pode parar! — A cantora espanhola do momento, Merche, era a responsável por manter o público entretido até a chegada dos jogadores. — Para essa próxima música, vou chamar um amigo que é estadunidense, mas espanhol de coração. Façam barulho para o Johnny!
A multidão explodiu em gritos e aplausos. Não apenas por causa da entrada do cantor de ascendência porto-riquenha famoso mundialmente, mas também em resposta à batida inconfundível que introduzia Diamante³.
Fazia alguns anos que a bolha da música latina vinha se expandindo, permitindo que canções cantadas em espanhol fossem melhor aceitas ao redor de todo o mundo. Merche era uma dentre os tantos artistas que estavam contribuindo para esse fenômeno, tendo, inclusive, acabado de voltar de uma turnê nos Estados Unidos, algo que jamais imaginaria em seu início de carreira.
Diamante era uma música ousada. Misturava raízes flamencas, a principal influência de Merche, com um som mais atual, urbano, que havia sido a contribuição de Johnny na parceria. A fórmula se mostrou perfeita para a canção se tornar o grande sucesso do verão.
O encerramento da apresentação de Merche coincidiu com a chegada da Seleção Espanhola. Antes de se despedir, ela recebeu os jogadores no palco.
tomou a dianteira do grupo e abriu os braços para convidá-la para um abraço apertado em que a tirou do chão. Nem parecia que os dois tinham se visto pela última vez de madrugada, no aeroporto, depois de estarem no mesmo voo, retornando de Londres. Após rodopiá-la no ar, ele permitiu que sua irmã caçula cumprimentasse o restante da equipe. Ou ao menos os jogadores que a conheciam por seu intermédio. Como Tomás, por exemplo, que também a cumprimentou afetuosamente.
— Obrigada! Tenham uma ótima noite! — Merche disse ao microfone, se voltando para o público. — ¡Y que viva España!
Ela beijou o escudo da camisa da Seleção Espanhola que vestia, com “” estampado na costas, e se retirou do palco sob uma salva de palmas.
Quem reassumiu o microfone em seguida foi Juanma, um famoso apresentador de TV convidado para conduzir a festa. Ele anunciou que apresentaria cada uma das estrelas da noite, mesmo que elas dispensassem apresentações. Começou pelo dono da camisa número um, Álvaro Llaneza, e seguiu a ordem numérica, chamando cada um dos jogadores para ir até a frente do palco saudar a torcida.
— Com a camisa três, ele ajuda a defender o nosso gol como um leão... !
deu alguns passos à frente, acenando para o público cordialmente, e foi surpreendido por quatro mãos tentando enfiar uma camisa por sua cabeça à força. Bastou identificar as listras verdes e brancas em meio à confusão para se dar conta de que se tratava de Sebastián Rendón e Nacho Peña.
Enquanto a reação do público era metade favorável e metade contrária a vê-lo vestir a camisa do C.D. Villaverde novamente, todos sobre o palco riam. Inclusive , mesmo que em meio a xingamentos aos dois jogadores do clube verdiblanco. Apesar da veracidade dos boatos de transferência, eles não precisavam confirmá-los daquela maneira.
Depois de Juanma apresentar os vinte e três jogadores de uma maneira bastante descontraída, Tomás Alonso, o capitão, foi buscar a taça para levantá-la mais uma vez.
A noite foi encerrada com os grandes sucessos da banda que fora líder do cenário pop punk do país nos anos dois mil e continuava sendo uma das mais relevantes, a aclamada Polvo Cósmico.


¹ El Arte de Vivir
Música do cantor granadino Maka. Clique aqui para escutá-la.

² Tapas
Na Espanha, são aperitivos servidos em bares e restaurantes.

³ Diamante
Música fictícia, assim como os cantores Merche e Johnny.


Capítulo 2

Com uma mochila nas costas e o capacete debaixo do braço, desceu a escadaria do prédio assobiando despreocupadamente.
— Bom dia — disse, com um sorriso simpático, ao cruzar com um vizinho que acabava de chegar de um passeio com seu yorkshire.
Ao sair na calçada, ela colocou o capacete sem se importar em desarrumar o cabelo. Subiu em sua motocicleta, uma das que estavam enfileiradas em frente ao prédio, e partiu.
O trânsito não fluía tão bem para um domingo, mas não demorou a pegar a avenida que conduz a uma das rodovias que saem da cidade. Dentre os caminhos que costumava fazer com frequência, aquele era um dos que mais gostava. Não apenas porque era uma linha reta em que podia acelerar e pilotar sua moto mais livremente, mas também porque a levava de volta para casa.
Embora fizesse alguns anos que residia no bairro de Salamanca, era ao percorrer as ruas de Villaverde que uma enxurrada de memórias e sentimentos variados vinham com tudo. O local que costumava ser um município independente, antes de se tornar, na década de mil novecentos e cinquenta, um dos vinte e um distritos que compõem Madrid, era conhecido por ela como a palma de sua mão. Havia crescido ali, vagando por aquelas ruas com os amigos, até se tornar adulta e optar por ficar mais próxima ao centro da cidade.
Em vinte minutos, estava em seu destino.
Seus pais já não moravam mais no apartamento apertado em que nunca pudera ter um quarto apenas seu. Depois que ela e Mario saíram de casa para viverem suas próprias vidas, eles haviam se mudado para um condomínio que ficava em uma área mais afastada, onde podiam viver com mais tranquilidade.
Após deixar a moto em uma das vagas para visitantes, ela subiu para o andar mais alto do prédio e tocou a campainha ao lado da última porta do corredor.
— Eu ainda não acredito que você fez mesmo isso — Carlota disse em tom de reprovação ao abrir a porta.
— Vai dizer que não ficou legal? — riu, passando a mão que não segurava o capacete pelos fios de cabelo.
A opinião da mãe a respeito de seu novo visual não era novidade. Depois de ver as fotos da viagem para Ibiza postadas nas redes sociais, Carlota havia mandado algumas mensagens, dizendo que a cor natural de seu cabelo, um castanho que ficava meio avermelhado no sol, era bonita demais para que o estragasse daquela maneira.
— Estou pensando em aproveitar que já está descolorido mesmo para pintar de azul ou verde. O que acha?
— Ah, faça-me o favor, menina! Você não tem doze anos.
adentrou o apartamento aos risos e a abraçou com um só braço.
— Você não era assim, mãe. Ficou careta demais depois que passou dos sessenta.
— Não sou careta! Você que anda rebelde demais para o meu gosto. — Carlota estreitou os olhos, observando-a por um momento, e deixou escapar um riso.
— O que foi?
— Estou imaginando você, de cabelo azul, apitando os jogos da primeira divisão.
— Depois não vem reclamar quando eu aparecer de cabelo colorido. Fica aí dando ideia — brincou. — Dá para acreditar que consegui chegar tão longe?
— Não é nada mais do que você merece, .
Diante do olhar orgulhoso de Carlota, ela se viu impossibilitada de não se sentir um pouco emocionada.
— Você não vai me fazer chorar — falou, fazendo a mãe rir. — Me deixa dar um oi para o pessoal.
deixou o capacete sobre um banco que ficava próximo à porta de entrada e, sem dar tempo para que Carlota começasse com o costumeiro sermão sobre ela ainda não ter trocado a moto por um carro, se afastou em direção à sala de estar.
— Olá, meninos! — ela exclamou, sorridente, ao encontrar Kiko, Mario e Aitor jogando Mario Kart em um videogame antigo que havia sido resgatado do quartinho da bagunça recentemente.
Beijou cada um deles na testa, sem se importar com as reclamações por estar atrapalhando o jogo, feitas, principalmente, pelos dois primeiros. Não se surpreendeu por vê-los muito mais empenhados na disputa do que seu sobrinho de 6 anos de idade.
ficou do lado, torcendo por Aitor, mesmo que ele estivesse conduzindo o Yoshi para o sentido errado da pista. Quem venceu a corrida foi Kiko, que se pôs de pé e jogou beijos para uma torcida imaginária.
— Deve fazer uns vinte anos que não jogo Mario Kart, mas, pelo visto, não perdi o jeito — ele falou e abriu os braços. — Vem cá, . Deixa eu te dar os parabéns.
— Obrigada, Kiko. — sorriu, se entregando a um de seus abraços favoritos em todo o mundo. — Confesso que ainda não consigo acreditar que me promoveram mesmo.
— Eu não acredito que demorou tanto, isso sim. Você dá de dez a zero em um monte de árbitros da Primeira.
— Você é suspeito para falar! — Ela riu, o empurrando de leve.
— Ele tem razão, . Alguns juízes mal sabem o que estão fazendo — disse Mario, levantando-se do sofá para abraçá-la também. — Você merece.
sorriu contra o ombro do irmão mais velho, envolvendo a cintura dele com seus braços.
Era muito importante, para ela, ter o apoio dos dois. Mesmo Mario, que desistira da carreira de jogador antes de subir para o time principal do C.D. Villaverde, havia sido uma grande inspiração para que ela desejasse aprender cada vez mais sobre futebol.
— Também tenho uma novidade — Kiko falou, e ela o encarou em expectativa. — Você está olhando para o mais novo técnico do Villa.
— Sério? — questionou, admirada.
— Seríssimo. Cifuentes me convidou para treinar o Cadete B.
Ela soltou um gritinho animado e o abraçou mais uma vez. Um abraço ainda mais apertado do que o primeiro.
— Espero que a gente se cruze daqui a alguns anos, na primeira divisão.
— Vamos com calma. Estou só começando.
— Mas é claro que você vai chegar lá!
Depois de Kiko contar mais detalhes a respeito do convite feito pelo presidente do C.D. Villaverde, assim que soube que ele havia terminado o curso de formação de treinadores da Federação Espanhola de Futebol, ela seguiu o falatório que vinha da cozinha.
— É impressão minha ou abriram as portas do inferno? — Esbaforida, Irene se abanava com um leque quando ela passou pela porta. — Oi, !
— Esse verão está impossível mesmo. Já estou morrendo de saudade de Ibiza.
— Olha esse bronzeado! Essa viagem te fez muito bem. — Sua cunhada a cumprimentou com dois beijos no rosto.
— Você nem imagina o quanto. — sorriu, colocando a mão sobre a barriga de seis meses de gestação dela. — Como a Marina está?
— Agitada. Tem chutado bastante nesses últimos dias.
— Vejam só, mais uma fanática por futebol nessa família! — Nerea brincou enquanto descascava algumas batatas.
— Eu trouxe os pimientos del piquillo¹ que você pediu. — tirou um pote de vidro da mochila e o entregou à prima ao mesmo tempo que a cumprimentava com dois beijos no rosto.
Em seguida, ela cumprimentou também Daniela, a filha única de Nerea. Como todo adolescente dos tempos modernos, a garota estava sentada ao balcão, entretida com o celular, e mal havia notado sua presença até aquele momento. Por último, abraçou Pilar, a esposa de seu tio e mãe de Kiko e Nerea.
— Onde meu pai e o tio Emilio estão? — questionou, já que, se os dois estivessem em casa, provavelmente estariam vendo e comentando sobre alguma partida histórica do C.D. Villaverde.
— Deram uma saidinha, mas daqui a pouco estão de volta — Carlota respondeu enquanto cobria o fundo de uma travessa com rodelas de batatas. Ao lado, estava o peixe já temperado, pronto para ir ao forno.
— Prefiro nosso macarrão com molho de pimientos del piquillo falou em um tom divertido e se aproximou de Nerea, que levava os ingredientes para o molho ao fogo. — Está precisando de ajuda aí?
— Não, já está tudo encaminhado. Fiz esse macarrão lá em casa outro dia. É uma delícia mesmo.
— Eu não disse? É uma das minhas receitas favoritas. — Ela se sentou ao balcão. — Como está indo a tentativa de se tornar vegetariana, Dani?
— Completei um mês sem comer nenhum tipo de carne — a garota respondeu.
— Tem sentido falta?
— Sinceramente, nem um pouco.
— Que maravilha! Para mim não foi tão fácil assim. Tive que ir cortando aos poucos, e levei um bom tempo até, finalmente, conseguir parar de comer peixe.
Apaixonada pelos animais, se tornara vegetariana ainda na adolescência. Conforme se habituava à nova alimentação e se informava cada vez mais, o processo para se tornar vegana e deixar de compactuar com qualquer tipo de exploração e crueldade feitas com animais aconteceu de forma natural, alguns anos mais tarde.
Ela não era a favor de impor seus princípios a ninguém, mas gostava de falar sobre eles quando percebia certa receptividade por parte de alguém. Fora o que acontecera com Daniela depois de assistir a um documentário na escola.
As duas tiveram uma longa conversa a respeito do veganismo e dos diferentes tipos de vegetarianismo e, algum tempo depois, a garota lhe dissera que havia decidido deixar de consumir carne. Sua intenção era, um dia, se tornar vegana também. Nerea apoiou a filha desde o princípio e, apesar de não ter estabelecido a mesma meta para si, era quem cozinhava para as duas e também já não comia carne com a mesma frequência de antes.
— Chegamos, e com champanhe para comemorar a história que os e os Flores estão fazendo no futebol espanhol! — Pepe exclamou, adentrando a cozinha acompanhado por Emilio.
soltou uma de suas risadas mais sinceras. Esperou o pai deixar as duas garrafas sobre o balcão e se aconchegou nos braços dele.
Mi niña — ele disse carinhosamente —, estou tão orgulhoso de você.
Ela não disse nada em resposta. Não tinha necessidade. A família inteira sabia quão agradecida ela era por tê-los em sua vida.
Guapas, vocês vão me deixar fazer a sobremesa ou não? — Kiko parou na porta da cozinha com as mãos na cintura.
— Pode ficar à vontade, a cozinha é toda sua — disse Carlota, tirando o avental que usava para entregá-lo a ele. — Enquanto o peixe não fica pronto, é a nossa vez de jogar aquela velharia que vocês chamam de videogame.
— E beber cerveja — Pilar acrescentou.
— Ei, tia, respeita a minha infância! — Kiko exclamou, falsamente ofendido.
— Ótima ideia, cuñada! — Carlota falou, o ignorando. Foi até a geladeira e, de fato, pegou duas cervejas, o que arrancou algumas risadas.
Passar uma tarde em família foi o suficiente para se encher de energia para a semana que estava por vir. Além dos testes físicos do Comitê Técnico de Árbitros, também apitaria a primeira de algumas partidas da pré-temporada dos clubes espanhóis. Quando a temporada começasse para valer, ela estaria mais do que preparada para dar mais aquele passo na carreira.

• • •

As capas de todos os jornais esportivos espanhóis daquele dia — e de alguns que não eram esportivos também — estampavam fotos da apresentação de , realizada em um Estádio de Los Ángeles repleto de torcedores verdiblancos. Depois de uma longa e intensa negociação entre o Milano e o C.D. Villaverde, ele estava de volta à Espanha, conforme tanto desejava.
Enquanto tomava café da manhã, ainda se habituando à antiga rotina, olhava algumas delas, enviadas pelo assessor de imprensa do clube.
— Sai, sua bolinha de pelo. — Ele sacudiu a mão para espantar a gata de pelagem alaranjada que havia subido na mesa.
— Não chama a Candela assim! — Mercedes o repreendeu, chegando à cozinha. — Vem, filha. Deixa o seu tio mal-humorado comer.
— Desculpa se eu não acho muito agradável ter um animal em cima da minha comida.
bebericou a caneca de café com leite, observando-a colocar Candela no chão e, em seguida, se sentar do outro lado da mesa. Enquanto a assistia se servir de um desjejum saudável, composto por frutas e iogurte, ele começava a se dar conta do quanto sentira falta de Mercedes durante o tempo em que estivera morando na Itália. Vestida com um pijama do Mickey adquirido na última viagem em família para a Disney Paris, ela tinha pouco a ver com a Merche que costumava subir nos palcos cheia de atitude para entreter milhares de pessoas. Era apenas sua irmãzinha.
Fazia três anos que defendia a camisa do C.D. Villaverde quando Merche, ao assinar um contrato com uma gravadora, aos 18 anos, se mudara para a capital espanhola para dar início à carreira de cantora. Desde então, os dois dividiam uma mansão em uma das zonas residenciais de luxo da região metropolitana de Madrid. também possuía laços bastante estreitos com Ramón e Lucía, seus irmãos mais velhos, mas tê-la por perto fez de Mercedes sua melhor amiga. Mesmo que distantes do restante da família, eles se sentiam mais confortáveis sabendo que tinham um ao outro.
— Não está se esquecendo de me contar nada, Merche? — questionou, fazendo-a levantar os olhos para encará-lo.
— Não que eu me lembre.
— Todo mundo está falando na internet que você está saindo com o Johnny.
A primeira reação de Mercedes ao comentário foi rir.
— Não achei que tinha necessidade de contar, assim como você não achou que precisava me falar sobre a Yolanda Gómez — ela alfinetou, referindo-se ao breve romance que ele tivera com a atriz espanhola durante as férias, em Ibiza.
— O que aconteceu entre mim e Yolanda não foi nada demais.
— Com o Johnny também. A gente só ficou algumas vezes.
— Pelo visto, a parceria deu certo — brincou, fazendo-a rir.
— Mas não vai passar disso. Seria muito difícil conciliar nossas agendas.
— Sei bem como é. Meus últimos meses com a Graziela foram estressantes por esse mesmo motivo. — Ele suspirou ao se lembrar da ex-namorada, uma apresentadora italiana com quem estivera por um ano e meio.
— E a Yolanda? Existe alguma chance de evoluir para algo mais sério? — Mercedes questionou.
— Foi só um casinho de verão mesmo — respondeu, dando de ombros. — Vai ser bom estar solteiro nessa temporada. Cifuentes deixou claro que o objetivo é voltar a ter uma vaga na Copa da Europa, então vamos ter que trabalhar duro. Quanto menos distrações, melhor.
No instante seguinte, Teresa adentrou a cozinha, cantarolando. Interrompeu a conversa, mas, como sempre acontecia, trouxe consigo uma leveza ao ambiente.
— Quer mais um omelete, ? — ela questionou, prestativa.
— Obrigado, Tere, mas não precisa. Já estou de saída. — se pôs de pé e pegou a mochila que tinha deixado na cadeira ao lado. — Sabia que ser mimado por você é a melhor parte de estar de volta?
— É sempre um prazer cuidar de vocês — ela disse com um sorriso doce nos lábios.
Na ausência de Concha, a mãe de e Mercedes, Teresa, mais do que uma funcionária da casa, era como uma segunda mãe para os dois.
— Almoçamos juntos, Merche? — perguntou à irmã.
— Não vai dar, hoje o dia vai ser corrido — ela lamentou. — Vou sair para uma entrevista daqui a pouco e, mais tarde, tenho uma reunião com meu produtor. Vamos começar a conversar sobre o novo álbum.
— Então vou pedir uns tacos daquele restaurante mexicano que você gosta para jantarmos enquanto assistimos à nova série da Netflix. Não aceito um não como resposta!
— Combinado. — Ela riu.
beijou Merche e Teresa no topo da cabeça antes de se retirar para o primeiro dia de treino de sua segunda etapa no C.D. Villaverde.
Após cruzar a cidade, ele chegou ao centro de treinamento que ficava no bairro de Los Ángeles. Poucas mudanças haviam sido feitas desde a última vez em que estivera ali, mas as instalações pareciam novas depois de algumas reformas. O clima, definitivamente, não era o mesmo das temporadas em que o clube estivera assolado por uma crise econômica, depois de seu tradicional patrocinador máster ir à falência.
A Oro Claro, uma antiga fábrica de cofres da região, patrocinava o C.D. Villaverde desde a década de mil novecentos e sessenta. O investimento havia proporcionado que o clube verdiblanco tivesse um rápido crescimento a nível nacional, chegando à primeira divisão nos anos setenta e, nos noventa, à Copa da Europa. O auge veio no início do século XXI, quando, após conquistar alguns títulos nacionais, o C.D. Villaverde venceu o maior campeonato de clubes a nível europeu.
Com o encerramento das atividades da Oro Claro, a decadência havia sido inevitável. Dívidas começaram a ser contraídas, os salários atrasados se acumularam cada vez mais, e o desempenho do time dentro de campo também fora afetado pela situação financeira.
Quando fechava os olhos, recordando a temporada em que seu antigo time fora rebaixado, ainda podia sentir a tensão que consumia o vestiário. Ele queria tê-los ajudado a retornar à divisão mais alta da Liga Espanhola, mas o clube decidiu vendê-lo como tentativa de equilibrar as finanças, já que seu salário era o mais alto na época.
Roberto Cifuentes, empresário e dono da rede de hotéis de luxo Cifuentes, fora o responsável por reerguer o C.D. Villaverde. Após comprar o clube e se tornar presidente, os investimentos feitos por ele não demoraram a trazer resultados positivos. Os verdiblancos estavam de volta à primeira divisão desde a temporada anterior. Agora, o objetivo era voltar a conquistar uma vaga para disputar a Copa da Europa, e estava disposto a deixar a alma em campo para que isso acontecesse. Em seu coração, sentia que devia isso à torcida que o acolhera de braços abertos.
Com exceção de Sebastián Rendón e Nacho Peña, seus companheiros também de Seleção, se deparou com uma porção de rostos que ainda não conhecia pessoalmente, mas que o receberam muito bem quando ele chegou ao vestiário do time principal. não era a única contratação do C.D. Villaverde para a temporada, mas era o único dos novos jogadores que não havia participado da pré-temporada, então sua presença foi a grande novidade do dia.

• • •

— Você tem algum conselho para nos dar, Aguilera? — perguntou ao árbitro assistente e se recostou na cadeira, cruzando braços e pernas.
— Quem sou eu para dar conselhos a alguém? Estou na primeira divisão há apenas duas temporadas. — Marc riu enquanto punha duas colheres de açúcar em sua xícara de chá. — Acho que o mais importante é vocês se manterem em forma, porque o ritmo é mais intenso.
— Eu só espero conseguir dormir hoje — Yago comentou, rindo levemente.
— Quanto à ansiedade, estamos todos no mesmo barco. Não é minha estreia, mas é como se fosse. Todo mundo vai parar para ver esse jogo por sua causa, .
— Me desculpem por ter metido vocês nessa enrascada. — fez uma careta de arrependimento e riu.
— Pode ficar tranquilo, Aguilera. Depois de trabalhar com a , você não vai querer ser assistente de nenhum outro árbitro. Digo por experiência própria. — Yago piscou um olho.
— Assim vou ficar me achando! — Ela brincou, sorrindo. — Gosto de trabalhar com você também, Godoy. Ainda bem que subimos juntos para a primeira divisão.
verificou, no relógio de pulso, que vinte era a quantidade de horas que a separavam de sua grande estreia na Liga Espanhola. Não podia negar que sentia um leve frio na barriga ao se imaginar entrando em campo no dia seguinte. Por mais segura de si que fosse, com seus vinte anos de experiência na arbitragem, sempre se via um pouco apreensiva ao subir de categoria. Sua função exigia que ela lidasse com diversas pessoas de posições e temperamentos diferentes, para garantir que a partida transcorresse de forma justa e de acordo com as regras, e, por conta disso, nunca sabia que tipo de recebimento esperar. No entanto, depois de se reunir no restaurante do hotel de concentração com os dois árbitros assistentes que a acompanhariam, se sentia um pouco mais tranquila.
Além de Marc Aguilera, havia conhecido também, naquele mesmo dia, o quarto árbitro, o árbitro de vídeo e o árbitro assistente de vídeo escalados para a partida. Assim como na primeira rodada, em que ela fora designada a atuar como árbitra de vídeo, todos se mostraram à vontade em ter uma mulher na equipe. O rosto conhecido de Yago Godoy, com quem compartilhava a comissão de arbitragem com frequência desde a terceira divisão, era um incentivo a mais para que ela se sentisse bastante cômoda.
— O papo está ótimo, rapazes, mas já vou me recolher — anunciou, se pondo de pé.
— Só vou tomar um chazinho e já vou também — disse Yago.
— Eu te faço companhia. Ainda estou tomando o meu. — Marc mostrou a xícara ainda pela metade. — Bom descanso, .
— Obrigada, para vocês também. — Ela sorriu.
No quarto, conferiu se as baterias do equipamento que utilizava para se comunicar com os outros árbitros durante o jogo estavam carregadas e as tirou do carregador. Pegou o pijama na mala e foi para o banheiro, tomar um banho rápido antes de ir se deitar.
Apesar de saber que levar o celular para a cama é um péssimo hábito, não foi capaz de ignorar as mensagens de boa sorte que vinham chegando ao longo de todo o dia. Respondeu as que ainda não tinham recebido uma resposta e trocou algumas mensagens com os amigos, em um grupo que estava especialmente movimentado naquela noite, cheio de fotos da nova mesa de bilhar de Kiko sendo inaugurada.
mandou um áudio, mostrando seu descontentamento por ele não ter esperado para estreá-la em um dia em que ela estivesse presente.
Você queria o quê? Que eu esperasse até o ano que vem para usar minha mesa? — ele respondeu, ironicamente, em outro áudio, fazendo-a soltar uma risada que ecoou pelo silêncio do quarto.
Ela não teve nenhum argumento para se defender, pois fazia mesmo algum tempo que não aparecia nas reuniões semanais do grupo. Se continuasse sendo escalada para os jogos de sexta-feira com frequência, isso acabaria se tornando um costume. Desde que eram todos jovens e inconsequentes, as noites de quinta-feira na casa de Kiko eram sagradas, mas não tinha nada que ela pudesse fazer para mudar a situação.
Ao contrário do que pensava que aconteceria, dormiu rapidamente, depois de deixar o celular de lado. Um sono pesado e revigorante.

• • •

encarava o chão bagunçado do vestiário, com os braços cruzados, enquanto escutava as últimas orientações do treinador para a partida, mas a verdade é que mal prestava atenção no que ele dizia. Não estava em seu melhor humor desde quando descobrira, algumas horas mais cedo, que não seria titular mesmo depois de garantir que já se sentia preparado para jogar.
— Vamos ver, , vamos ver… — Paco Domínguez lhe dissera, dando tapinhas em seu ombro, no final do treino do dia anterior.
Se tinha uma coisa que odiava, era assistir ao desenrolar do jogo sentado no banco, sem poder fazer nada. Na primeira rodada da Liga Espanhola, aceitara a condição de reserva sem pestanejar porque, naquela ocasião, seu ritmo de jogo não era o mesmo que o de seus companheiros, mas sua expectativa era de poder jogar na segunda rodada. A partida seria em casa, diante de sua torcida, o que proporcionaria a reestreia vestindo a camisa do C.D. Villaverde perfeita para ele.
Uno, dos y tres... — o time inteiro se juntou no centro do vestiário e exclamou em uma só voz. Inclusive , mesmo estando um pouco fora do clima por ter seus planos frustrados. — ¡Vamos, Villa!
Todos se dispersaram em seguida, rumando para fora do recinto.
— Desfaz essa cara de quem comeu e não gostou, . Se tudo correr bem, vou te dar alguns minutos no segundo tempo.
se surpreendeu com as palavras de Paco, ao passar por ele na porta do vestiário. Não disse nada em resposta, mas, assim como os outros jogadores, o abraçou rapidamente antes de seguir, a contragosto, para o banco de reservas.
— Acho que esse banco já tem até meu nome — Juancho disse ao ocupar o assento ao seu lado. — Mas podia ser pior, né? Pelo menos não fomos chutados que nem eles — acrescentou, apontando para trás, onde estavam os jogadores descartados por decisão técnica.
o encarou, rindo, e desviou os olhos para a entrada dos dois times em campo.
— Você ainda é novo, vai ter muitas oportunidades de jogar.
— E você é o melhor zagueiro do time, mijo²! — ele rebateu. — Depois que entrar no onze inicial, não vai sair mais, então deixa o pessoal ser feliz enquanto pode.
A partir do apito inicial, apesar de o C.D. Villaverde manter maior posse de bola em relação ao San Sebastián, o jogo se manteve igualado por longos minutos, sem muitas oportunidades claras de gol para nenhum dos dois times. Mesmo assim, assistir ao primeiro tempo ao lado de Juancho Pérez fez o ânimo de melhorar consideravelmente.
O zagueiro colombiano de apenas 22 anos tinha um ótimo senso de humor e, constantemente, fazia comentários espirituosos a respeito dos lances. Quando o meio-campista brasileiro Gustavo Mendes complementava as brincadeiras, era garantia de que o banco inteiro cairia na gargalhada.
No início do segundo tempo, estava até mais motivado ao colocar o colete e sair para o aquecimento. Saudou a torcida verdiblanca, agradecendo a comoção diante da possibilidade de vê-lo em campo, e se concentrou em fazer os exercícios indicados pelo preparador físico.
¡Ay, papá! — Juancho exclamou algum tempo depois, fazendo-o olhar para o campo a tempo de ver Pedro Molina cruzar a bola para a área.
O estádio explodiu em comemoração quando Nacho Peña, com a perna direita, abriu o placar. , assim como os outros jogadores reservas que se aqueciam na lateral, correu em direção à bandeira de escanteio para comemorar o gol com o artilheiro do time.
Quando voltou ao aquecimento, sua concentração já não era mais a mesma. Estava eufórico. Sempre que o C.D. Villaverde pressionava os bascos no ataque, ele pedia para a torcida fazer mais barulho.
A primeira substituição foi a de Daniel González por Gustavo, mas Vicente Quintana, um dos auxiliares técnicos, não demorou a chamar . Enquanto ele trocava a camiseta de aquecimento pela camisa número três, gentilmente cedida por Lucas Salinas com sua chegada ao time, escutou atentamente algumas instruções que deveria passar aos outros jogadores.
— Boa sorte, — disse Paco Domínguez, piscando um olho, e ele sorriu em agradecimento.
esperou o árbitro autorizar a substituição e entrou em campo quando o zagueiro Julio Muñoz saiu pela lateral contrária. Assim como doze anos antes, se arrepiou ao escutar o Estádio de Los Ángeles, em peso, gritar seu nome. Era como se tivesse 18 anos novamente, com a mesma impaciência para jogar e a mesma vontade de vencer.
Não parecia que tinha passado nem um dia sequer desde a final da Eurocopa. disputou cada bola como se fosse a decisiva. Até o apito final, a vantagem que o C.D. Villaverde tinha aberto no placar não cresceu, mas o gol de Sebastián Rendón se manteve fora de perigo.
Na saída do campo, foi interceptado para representar o time na entrevista pós-jogo.
— Parabéns pela vitória, ! — disse, cordialmente, a repórter. — Qual é a sensação de vestir essa camisa novamente?
— Eu não sou capaz de descrever em palavras — ele falou com um sorriso aberto, secando as gotas de suor que escorriam pela testa. — Estou muito feliz de estar de volta e de ser acolhido, mais uma vez, por essa torcida maravilhosa.
— Nesse momento, o Villa está na liderança da Liga. Você acha que a conquista do pentacampeonato é um sonho possível para essa temporada?
— Por que não? Vamos tentar ficar na melhor colocação possível, com certeza. Por enquanto, nos contentamos em ir dormir em primeiro lugar — ele respondeu espirituosamente.
— Obrigada, e seja bem-vindo de volta!
esboçou um sorriso em agradecimento e seguiu para o vestiário. Chocou sua a mão com a de todos os colegas com que cruzou até chegar ao seu armário. Se sentou e soltou um suspirou exausto.
— Parabéns pelo jogo, crack. — Sebastián, a um armário de distância, estendeu a mão fechada, e os dois trocaram um soquinho.
Enquanto livrava seus pés das chuteiras, notou que metade do time estava com a atenção voltada para a televisão. A segunda partida da rodada estava prestes a começar.
— Qual é o jogo de agora? — ele perguntou a Sebastián.
— Logroño e Zaragoza.
A resposta o fez franzir o cenho. Os dois times haviam sido derrotados na primeira rodada, de forma que o resultado daquele confronto não importava para eles.
— Por que o pessoal está tão interessado?
— É o primeiro jogo da árbitra nova.
apenas riu, balançando a cabeça de um lado para o outro, antes de jogar a toalha sobre o ombro e ir tomar uma ducha.

• • •

As arquibancadas do Estádio Municipal de Logroño ainda estavam vazias quando , Yago e Marc chegaram para a inspeção do campo. Os três o percorreram, vestidos com ternos azul-marinho, conferindo as condições em que o gramado se encontrava e se as redes dos gols estavam firmes o suficiente para que as bolas não escapassem quando caíssem nelas.
— Está tudo em ordem? — o delegado do Comitê Técnico de Árbitros perguntou quando eles retornaram ao vestiário da comissão de arbitragem.
— Sim, o campo está perfeito — respondeu prontamente.
— Os times já chegaram. Vou pedir para os responsáveis virem até aqui fazer a conferência dos uniformes.
— Certo.
— Boa sorte, . Espero que permaneça por muitos anos com a gente.
— Obrigada. — Ela retribuiu o sorriso acolhedor que, apesar da formalidade, o delegado esboçou.
Em seguida, um representante de cada time compareceu ao vestiário para que aprovasse as cores dos uniformes e dos coletes dos suplentes, que não poderiam causar nenhuma confusão entre si e com os coletes utilizados pela imprensa e pelos gandulas.
Assim que eles se retiraram, ela pegou o uniforme de aquecimento dentro da mala e entrou em uma cabine para trocar de roupa. Realizou tal tarefa com bastante cuidado, evitando bagunçar o rabo de cavalo que levara longos minutos para fazer, antes de deixar o hotel. Devido ao curto comprimento de seu cabelo, além de prendê-lo com um elástico, ela usava alguns grampos para segurar os fios que não eram longos o bastante e abusava do spray fixador para manter tudo no lugar.
— Vamos ver se os aparelhos estão funcionando corretamente, pessoal? — falou ao terminar de calçar as chuteiras.
Após a conferência do equipamento para comunicação, ela saiu ao campo, acompanhada pelos árbitros assistentes.
O ambiente era outro, comparado com o de mais cedo. A torcida começava a chegar, dando vida às arquibancadas, e evitou desviar o olhar para elas. Não ouviu nenhuma vaia ou palavra ofensiva, como não era raro acontecer, mas precisava se manter concentrada nos exercícios antes de retornar ao vestiário para os últimos preparativos.
Quando o relógio marcava dez minutos para o início da partida, se certificou de que tinha o apito em mãos, os cartões amarelo e vermelho em um bolso, um bloco de notas para registrar as ocorrências do jogo em outro, e o spray pendurado na cintura.
— Está na hora, rapazes — ela anunciou, cumprimentando cada um dos assistentes com um abraço rápido. — Vamos dar o nosso melhor e curtir o momento. Qualquer imprevisto que acontecer, não hesitem em me comunicar.
Os corredores do estádio estavam bastante tumultuados, com os times também saindo de seus vestiários e algumas câmeras espalhadas que mostravam o momento pré-jogo na televisão espanhola. Marc e Yago verificaram se os jogadores titulares estavam vestidos conforme as regras, com o uniforme completo e sem pulseiras, anéis ou qualquer outro acessório. Quando os dois times estavam devidamente enfileirados, fez sinal para os capitães a seguirem pelo túnel.
As regras eram tantas que ela as tinha internalizadas e seguia todo o protocolo como se fosse um robô programado pela FIFA. Não fazia parte do regulamento, mas, junto com seu uniforme oficial de arbitragem, sempre vestia também uma máscara que a transformava em outra mulher.
Cara fechada, voz firme e apenas as palavras necessárias dirigidas aos jogadores. Essa havia sido a maneira que ela encontrara para ser respeitada, visto que as Regras do Jogo não previam mulheres apitando partidas de futebol masculino. O lado ruim, entretanto, era ter conquistado a fama de rabugenta nas divisões inferiores, mas preferia que todos tivessem essa ideia sobre ela do que ter sua competência julgada ao exercer o trabalho ao qual tanto se dedicara para que pudesse ser apta a desempenhar. Era até prazeroso, para ela, ser a autoridade máxima dentro de campo e fazer os jogadores a obedecerem, mesmo que isso ferisse o orgulho alimentado pelo machismo de muitos deles.
Com os vinte e dois jogadores posicionados, esperou o relógio em seu pulso marcar 19 horas em ponto e levou o apito à boca para decretar não apenas o início da partida, mas, também, de uma nova era do futebol espanhol.


¹ Pimientos del piquillo
Um tipo de pimentão muito popular na cozinha de Navarra, na Espanha.

² Mijo
Mi hijo. Expressão colombiana que, literalmente, significa “meu filho”, mas utilizada também com o sentido de “meu amigo” e “cara”.


Capítulo 3

Caño¹! — soltou uma gargalhada, satisfeito por, finalmente, conseguir passar a bola por entre as pernas de Benito Cruz depois de algumas tentativas.
Uma confusão foi criada no campo de treinamento do C.D. Villaverde quando o lateral esquerdo mexicano foi cercado por alguns colegas, em meio a gozações, para receber petelecos que deixaram sua orelha avermelhada.
— Desculpa, Cruz, mas regras são regras — disse antes de dar o último peteleco, dando fim à punição.
— Vai ter volta! — Benito o ameaçou, fazendo-o rir.
Quando o apito de Paco Domínguez soou, os jogadores abandonaram os dois grupos em que haviam sido divididos para um exercício de toque de bola. Depois de um sprint de uma lateral à outra, os auxiliares técnicos Vicente e José María distribuíram coletes amarelos para metade deles, de forma a separá-los em dois times.
não recebeu nenhum colete. Desde seu retorno ao clube verdiblanco, aquela foi a primeira vez que disputou o jogo-treino entre os titulares. Como companheiro de zaga, teve Julio Muñoz, que possuía uma larga experiência, com diferentes clubes espanhóis de tradição no currículo. Os dois não demoraram a criar uma sintonia que deixou Sebastián Rendón bastante cômodo sob o travessão e contribuiu para que o time deles terminasse o treino daquela manhã de segunda-feira como a equipe vitoriosa.
— Me empresta? — pediu, apontando para o desodorante, e o pegou no ar quando Sebastián o jogou em sua direção. Havia acabado de tomar banho e usava apenas uma calça jeans. — Vai almoçar aqui no CT?
— Pelo visto, sim. A Lidia acabou de desmarcar comigo para ir almoçar com o pessoal do mestrado.
— Já chegou ao nível de a própria namorada te trocar? — ele debochou, vestindo uma camiseta preta lisa.
— Noiva — Sebastián o corrigiu, enquanto terminava de guardar suas coisas dentro da mochila.
— Ah, é, já ia me esquecendo! — riu, se lembrando da foto clichê que o amigo havia postado durante as férias, na qual estava ajoelhado na frente de Lidia em uma praia, pedindo-a em casamento. — Então vou te fazer companhia, Sebas. A Merche viajou para participar do VMA e é um saco ficar sozinho em casa.
— Será que ela vai ganhar algum prêmio?
— Acho mais provável que ganhe o de melhor vídeo latino. Artista revelação e hit do verão é mais complicado, porque está concorrendo com um monte de artistas americanos — ele respondeu, citando as categorias da premiação de música americana às quais Mercedes havia sido indicada pela primeira vez.
— Ela vai se apresentar? — Juancho se enfiou no meio da conversa mesmo estando a alguns armários de distância.
— Vai, mas não se anima muito não que a premiação vai ser de madrugada e a gente tem treino amanhã cedo.
— Pelo amor da minha vida, vale a pena fazer um esforço.
— Só nos seus sonhos, quillo²! — soltou uma risada alta. — Minha irmã não é babá para ficar cuidando de criança.
— Você tem como garantir que ela não gosta de caras mais novos?
— Não, mas ela nunca teve um namorado mais novo. Acho que isso quer dizer alguma coisa.
— Quer dizer que não me conheceu ainda.
Cabrón murmurou, rindo, e jogou a toalha embolada em Juancho. Desde o primeiro dia, o colombiano não havia feito a mínima questão de esconder que nutria uma paixão platônica por Merche . Ele não era um irmão ciumento, então levava na esportiva. — Até amanhã, time!
Conversando descontraidamente com Sebastián, fez o caminho do vestiário até o refeitório do centro de treinamento. Logo que os dois adentraram o recinto, ele se deparou com um rosto conhecido que não via há algum tempo.
— Grande ! — Kiko Flores se aproximou, sorrindo abertamente.
— Eu só queria entender como o Villa conseguiu sobreviver a dois retornos dessa grandeza — ele disse em um tom divertido, fazendo-o rir.
Eles chocaram as mãos e trocaram o abraço típico de dois camaradas que, um dia, haviam compartilhado vestiário e estavam contentes por se encontrarem de novo, com direito a tapinhas nas costas e tudo. Durante a primeira passagem de pelo C.D. Villaverde, Kiko era um dos veteranos do time.
— Que bom que você voltou, tío! Nossa zaga estava mesmo precisando de um reforço. O Juancho e o Salinas são bons zagueiros, mas precisam de mais experiência.
— Vamos ver o que posso fazer por você. — piscou um olho e pôs uma das mãos no ombro dele. — Eu sempre soube que você ia virar treinador, sabia?
— Jura? Até me aposentar, isso nunca tinha passado pela minha cabeça.
— Claro que sim! Era você que botava ordem no time quando os treinadores perdiam o controle. Nunca vou me esquecer daquele seis a zero que levamos do Madrid, em casa. Não teríamos mantido a calma se não fosse por você.
— O Aguilar nunca mais olhou na minha cara depois disso. Ele pensa até hoje que incitei o time a fazer um boicote contra ele. — Kiko soltou um risinho debochado ao citar o treinador da época do rebaixamento.
— Até parece que você perderia o seu tempo com isso. Ele colocou a corda no pescoço sozinho. — deu de ombros e cruzou os braços, encarando o ex-jogador que, apesar de jogar em uma posição diferente da sua, costumava ser um de seus exemplos de garra e liderança dentro de campo. — Por que resolveu virar técnico, então?
— Ah, minha vida é o futebol, tío... Não me vejo fazendo outra coisa. Cheguei a receber algumas propostas para ser comentarista, mas não era o que eu queria. Sinto falta de viajar com o time e ficar com aquele frio na barriga antes de um jogo importante, sabe?
— E como! — sorriu. — Também vou sentir falta disso depois que me aposentar.
— Mas não precisa pensar nisso agora, você ainda tem alguns anos pela frente para aproveitar bastante essa sensação. — Kiko deu dois tapinhas em seu ombro e checou o relógio. — , foi bom te encontrar, mas tenho treino agora.
— E eu estou morrendo de fome. Vamos marcar de trocar uma ideia qualquer dia desses?
— Você é meu vizinho de novo?
— Acho que sim, se você ainda estiver morando no mesmo lugar.
— Então aparece lá em casa! Eu costumo me reunir com uns amigos toda quinta à noite. Se quiser, é só aparecer. Não precisa nem avisar.
— Alguém que eu conheça?
— Santi García.
— Caramba, faz eras que não vejo o Santi. — se surpreendeu ao escutar o nome do antigo companheiro de time deles, que costumava ser grande amigo de Kiko e, pelo visto, ainda era. — Não acabem com a cerveja antes de eu chegar!
Vale — Kiko disse, esboçando um sorriso. — Boa sorte nessa temporada.
— Para você também!
Depois de se despedir do ex-companheiro de time com outro abraço, foi se juntar à Sebastián, que, se recusando a esperar por ele, já estava em uma das mesas, comendo, e recebeu um tapa na nuca por isso.

• • •

Uma música do Guns N' Roses saía, em um volume alto, de uma caixa de som que estava sobre o balcão da cozinha, se propagando pelo apartamento e mantendo o silêncio que tanto detestava bem distante.
Era um pouco contraditório, porque, apesar de preferir morar sozinha e ter suas próprias regras, ela não gostava muito de não ter companhia. Isso, somado ao fato de que não era muito caseira, a fazia arranjar motivos para sair mesmo quando não tinha nenhum compromisso. Nas raras vezes em que a vontade de ficar em casa prevalecia, ela aproveitava para se dedicar a dois de seus passatempos favoritos: ouvir música e cozinhar as receitas veganas que via na internet.
Abafado pelo solo de guitarra do Slash, pôde ouvir o interfone tocar e abaixou o volume da música pelo aplicativo do celular para atendê-lo.
— Pronto.
Oi, . É a Lara.
— Pode subir. Deixei a porta encostada.
Depois de apertar o botão para destravar a porta do prédio, ela deu uma corridinha de volta para a frente do fogão e mexeu o conteúdo da panela até a comida estar no ponto certo.
— Que cheiro bom! — disse Lara, anunciando sua chegada.
desligou o fogo e se virou para cumprimentá-la com dois beijos no rosto.
— Quer comer? Fiz tofu com legumes e arroz.
— Um pouquinho, só para não ficar com vontade — ela respondeu e, sem fazer cerimônia, pegou dois pratos no armário. — Está a fim de ir comigo lá no Leo?
— Não acredito que você vai querer segurar minha mão enquanto é tatuada — debochou.
— Não é para tanto, mas um apoio moral nunca é demais. O Esteban até ficou de me encontrar lá depois da reunião da banda, mas não sabe que horas vai acabar.
— Então quer dizer que sou a segunda opção? Tudo bem, posso lidar com isso.
— Você sabe que eu te amo, . — Lara bateu de leve o quadril no dela, rindo, e se aproximou do fogão para se servir. — Me conta como estão as coisas!
Com Axl Rose cantando ao fundo, as duas comeram e aproveitaram a oportunidade para botar o papo em dia. Um assunto foi puxando o outro mesmo quando saíram para a rua e caminharam os quarteirões que separavam o prédio em que morava do estúdio de tatuagem.
— E aí, Ruy? — Lara cumprimentou o homem atrás do balcão. — Eu marquei uma tattoo com o Leo. Ele já está livre?
— Está, sim, e acabou de vir perguntar se você já tinha chegado — ele respondeu e foi até a impressora pegar algumas folhas de papel que havia acabado de imprimir. — Só assina aqui para mim, por favor, e pode ir lá atrás.
Enquanto esperava Lara assinar o termo de responsabilidade, se apoiou no balcão e ficou observando as ilustrações que decoravam o local, todas feitas pelos tatuadores do estúdio que era um dos mais conceituados de Madrid. Toda vez que ia até ali, tinha que lidar com a vontade de fazer uma tatuagem nova.
— Vamos, ? — Lara perguntou, chamando sua atenção, e ela assentiu.
As duas seguiram pelo corredor que ficava ao lado do balcão. Leo, o dono do estúdio, estava conversando com uma de suas tatuadoras, mas finalizou o assunto assim que as viu para recebê-las com a cordialidade de sempre.
— Será que vai ser hoje que vou rabiscar essa pele de novo? — ele brincou ao cumprimentar .
— Hoje não, Leo, mas quem sabe em breve?
— Há quanto tempo eu escuto esse papo?
— Pele para você tatuar é o que não está faltando. — apontou para Lara, que estava prestes a fazer a sexta tatuagem com ele, fazendo-o rir.
— Fiquem à vontade, garotas — Leo disse, convidando-as a entrarem em sua sala, e pegou um tablet sobre a mesa. — Lara, dá uma olhada e vê o que você acha.
se aproximou da amiga para também ver o desenho do troféu da Copa da Rainha que ele havia feito.
— Ficou perfeita, Leo. — Lara sorriu, satisfeita, devolvendo o tablet a ele.
— Eu já tatuei um monte de títulos de jogadores do Villa, mas essa vai ser a minha primeira tatuagem de um título do time feminino — ele comentou, enquanto acionava a impressora para imprimir o desenho.
— Então vai se acostumando. Minha intenção é voltar aqui toda temporada — ela falou, se acomodando na maca, de bruços, enquanto Leo colocava máscara e luvas descartáveis.
se sentou em uma cadeira e o observou preparar a pele da panturrilha de Lara antes de fixar o desenho impresso com um gel e começar a gravar, para sempre, o primeiro título conquistado por ela no futebol profissional.
Como Leo havia mencionado, tatuagens de títulos eram bastante comuns no futebol masculino, mas tinham tudo para se tornarem habituais entre as mulheres também.
A final daquela Copa da Rainha entrara para a história ao superar o recorde de público presente em uma partida de futebol feminino. Mais de sessenta mil pessoas haviam assistido, pessoalmente, ao C.D. Villaverde conquistar seu primeiro título nacional feminino. Sem contar a audiência da transmissão televisiva, que fora a maior já registrada também.
Para , que vira de perto Carla se desdobrar entre o futebol e a fotografia até se aposentar como jogadora, era fantástico ter a oportunidade de ver outra de suas amigas viver inteiramente do futebol e triunfar. Ela própria, que se tornara árbitra FIFA há nove anos e, desde então, também apitava algumas partidas de campeonatos internacionais femininos, vivenciava o progresso em relação ao início da década. Cada vez mais, os estádios se enchiam e as jogadoras tinham seus nomes entoados nas arquibancadas.
Lara havia tido Tomás Alonso como ídolo em seu início de carreira, mas as jogadoras da próxima geração poderiam se inspirar nela, que, assim como elas, era uma mulher. sabia muito bem quão importante era a representatividade feminina dentro do futebol, pois ela mesma não tivera uma árbitra que pudesse servir de inspiração e, principalmente, fazê-la acreditar que seria capaz de chegar tão longe. A árbitra que assumiria esse papel para outras meninas e mulheres, agora, era ela.
— Boa noite — disse uma voz que vinha da porta recém-aberta, se sobressaindo em meio à música que tocava de fundo.
— Entra aí, Esteban. A nova tattoo da sua namorada está quase pronta. — Leo sorriu por trás da máscara.
se virou, esperando encontrar apenas Esteban, mas se surpreendeu ao também se deparar com outro rosto que lhe era tão familiar.
— Você também veio, Javi? Meu estúdio está bem frequentado hoje — Leo brincou ao notar a presença do outro homem pelo canto do olho.
— Aproveitei a carona do Esteban para vir tentar marcar um horário com você.
— Ainda tem espaço nesse corpo para mais tatuagem? — perguntou com uma admiração exagerada, fazendo o par de olhos azuis se voltarem para ela.
— Sempre tem um espacinho para uma nova tatuagem, — Javi falou, sorrindo. — Mas, na verdade, o desenho já está pronto, só falta colorir. No dia que eu tinha combinado com o Leo, surgiu uma viagem de última hora e não deu tempo de ele terminar.
Os olhos de , automaticamente, passearam pelos braços tatuados dele, buscando por uma tatuagem que ela ainda não conhecesse, mas o esforço se fez desnecessário quando Javi levantou a mão direita e mostrou a caveira mexicana.
— Acabei — Leo anunciou, fazendo desviar sua atenção para a panturrilha de Lara.
Mi amor, a sua tatuagem ficou ótima! — Esteban falou, admirando o resultado.
Lara se pôs de pé e se virou de costas para o espelho para contemplar a mais nova tatuagem. Em seu rosto, estava estampado o orgulho não apenas de ter em sua pele mais um belíssimo trabalho de Leo, mas a realização de um sonho.
— Javi, se quiser ir vendo com o Ruy um dia e horário que fique bom para você, fique à vontade — Leo falou, pegando um rolo de plástico-filme no armário. — Só vou finalizar aqui com a Lara e já falo com você.
Vale — Javi respondeu, piscando um olho, e se retirou.
Depois que Leo protegeu a tatuagem recém-feita com o plástico-filme e repetiu as instruções que Lara já sabia, mas que nunca é demais relembrar, eles foram caminhando em direção à recepção. foi a primeira a chegar, visto que os outros três, entretidos em uma conversa, andavam a passos mais vagarosos, e encontrou Javi sozinho. Notou, pelos vidros, que o dia já havia escurecido.
— Cadê o Ruy? — perguntou a ele.
— Foi ao banheiro — ele respondeu, levantando os olhos do celular para encará-la —, mas já consegui marcar um horário para semana que vem.
olhou para a mão direita dele, que estava apoiada sobre o balcão, e observou os detalhes da caveira mexicana tatuada na parte superior de mais perto.
— Vai ficar bem legal depois que o Leo colorir — disse e não pôde deixar de reparar na marca presente no dedo anelar dele, que denunciava que, um dia, uma aliança havia estado ali. — Essa marca de sol ainda não sumiu?
— Acho que esse dedo não quer aceitar o fato de não ter mais uma aliança nele. — Javi sorriu, fitando o próprio dedo.
— Vai ver isso é um sinal para você se casar de novo.
— É melhor não mexer em time que está ganhando. — Ele riu. — Mudando de assunto... Assisti ao jogo que você apitou semana passada. Quase me atrasei para o show, inclusive, mas isso é só um detalhe.
— Que os fãs da Polvo Cósmico não descubram isso, por favor! — disse dramaticamente. — Não preciso ser odiada nessa altura do campeonato.
— Eles entenderiam que o atraso seria por uma boa causa. — Javi esboçou um sorriso sincero. — Eu reparei que você estava um pouco nervosa, mas foi muito bem. Só fiquei preocupado quando o Tejada foi para cima de você.
— Esse tipo de coisa nem me abala mais. — Ela abanou a mão no ar, fazendo pouco caso.
— Qual foi a merda que ele te falou?
— Ele não chegou a ser desrespeitoso, mas pediu cartão para os jogadores do Zaragoza quatro vezes. Eu fingi que não tinha escutado nas duas primeiras e, na terceira, avisei que seria ele quem receberia o cartão se tivesse uma próxima vez.
— Fora isso, não teve nenhum problema, né?
— Graças a Deus, não. Alguns jogadores já me conheciam da segunda divisão, então já estavam cientes de como eu conduzo a partida.
— Com o tempo, a galera se acostuma.
— Por bem ou por mal — acrescentou, rindo. — E você, Javi? Quais são as novidades que tem para me contar?
— Que vamos lançar um álbum novo ano que vem conta?
— Claro que sim! O pessoal vai pirar! — ela falou sem esconder o entusiasmo. — Vocês vão encerrar a turnê em breve, né?
— O último show vai ser agora, no sábado. Se quiser ir, é só falar com o Kiko. Deixei alguns ingressos com ele.
— Obrigada pelo convite. Vou pensar com carinho.
Os dois sorriram um para o outro e o assunto foi encerrado quando Ruy retornou e Lara se aproximou do balcão para acertar o valor que estava devendo a Leo.
aproveitou a deixa para ir embora. Se despediu de cada um com um abraço e, sem perceber, deixou Javi por último.
Mesmo depois de um ano desde o divórcio, ainda era um pouco estranho encontrar seu ex-marido e agir como se eles não tivessem tido uma longa história juntos.

• • •

— Olhem quem veio participar da nossa tertúlia!
A conversa animada que entretia o grupo cessou quando a voz de Kiko ecoou pela sala de estar e todas as atenções se voltaram para o portal. Os quatro pares de olhos encararam o recém-chegado, que vinha logo atrás do dono da casa.
— Me desculpem pela invasão. Qualquer coisa, vocês reclamem com o Kiko depois — falou, simpático, para quebrar qualquer gelo que pudesse vir a surgir.
— Sempre tem espaço para mais um nessa casa. — Kiko riu, se distanciando em direção à cozinha. — Fique à vontade, tío. Vou pegar uma cerveja para você.
! Quanto tempo! — Santiago se levantou do sofá, sorrindo abertamente.
— Bota tempo nisso, Santi. — o cumprimentou com um abraço. — Não lembro de ter te visto muitas vezes depois que você foi jogar na Alemanha e saiu da Seleção.
— É mesmo, a gente acabou se desencontrando. Quando voltei para Madrid depois de me aposentar, você já estava na Itália.
— Sempre pensei que você fosse se aposentar no Villa.
— Eu bem que tentei, mas o Cifuentes não conseguiu entrar em um acordo com o Berlin. Acabei jogando um ano na Turquia e decidi encerrar minha carreira por lá mesmo. 36 anos… Já estava na hora de parar — Santiago explicou e se voltou para os outros três. — Vocês já conhecem o ?
Esteban, guitarrista da banda Polvo Cósmico, era o único com quem cruzara algumas vezes previamente, em alguns eventos, então Santiago o apresentou para as duas mulheres presentes.
— A Carla foi jogadora do Villa na mesma época que eu. A Lara, ainda é — ele comentou e, fazendo as vezes de anfitrião, o convidou a se sentar.
as encarou sem esconder a surpresa.
— Acho que eu deveria saber isso — disse, esboçando um sorriso sem graça.
— Fica tranquilo, você não é o único do time masculino que ignora a nossa existência — Lara rebateu, enquanto comia alguns amendoins despreocupadamente. — Já estou acostumada a ser mais conhecida como a namorada do Esteban Prado do que pelo meu trabalho.
— Eu não ignoro o futebol feminino, só não acompanho muito — ele se defendeu. — Na verdade, não acompanho nem o masculino. Futebol é a última coisa que quero lembrar que existe no meu tempo livre — complementou, soltando um risinho.
— Juro que não estou te julgando, . A culpa é do Cifuentes, que não faz a mínima questão de promover uma integração entre os dois times.
— E a Larita é matadora, hein? — Kiko disse ao retornar com uma garrafa de cerveja. — Essa daí é uma atacante que te daria trabalho se vocês se enfrentassem. Quando a bola cai no pé dela, é gol.
pegou o copo servido pelo ex-companheiro de time, sentindo-se um pouco constrangido por não conhecer as habilidades futebolísticas de alguém que treinava no campo ao lado. Apesar de tão próximo, o futebol feminino, para ele, era como uma terra desconhecida.
— Agora fiquei curioso. Vou tentar ir a algum jogo de vocês assim que possível — ele garantiu. — E você, Carla? Jogava em qual posição?
— Eu era meio-campista. Dei muitas assistências para a Lara nos poucos anos em que jogamos juntas.
As duas trocaram um soquinho, sorrindo uma para a outra.
— A Carla não chegava a ser craque como eu, mas era boa jogadora — Kiko falou, implicante.
— Vai sonhando, Flores! — Ela riu ironicamente. — Eu te dava um banho desde os tempos da escola.
— Vocês estudaram juntos? — revezou o olhar entre os dois, curioso.
— Ela era da turma da minha prima — Kiko esclareceu. — Como são amigas ainda, sou obrigado a aturá-la até hoje.
— É muito amor, né? — Carla rolou os olhos, rindo levemente. — Falando nela, a vem hoje?
— Não, ela vai ser VAR em um dos jogos de amanhã — Lara respondeu.
— Na sexta-feira, de novo?
— Acho que é porque ela é árbitra nova na categoria, então estão preferindo colocá-la em partidas menores.
— Vocês estão falando da árbitra do Logroño–Zaragoza, da última rodada? — questionou , se lembrando da comoção do vestiário após o jogo da semana anterior.
— Ela mesma, . É a minha prima que é amiga da Carla — Kiko disse, para sua surpresa. — O Mario, irmão dela, também está desfalcando nosso grupo hoje. A esposa dele está grávida, então eles não têm vindo com muita frequência.
— Acho que o Mario vai participar de uma cirurgia amanhã também. Ele tinha comentado algo assim, na semana passada — Santiago falou. — Ele é cardiologista — acrescentou para .
— Então é o único que tem uma profissão séria — ele comentou, arrancando algumas risadas.
— Vou ser obrigado a discordar — disse Esteban. — A música e o futebol são duas coisas que despertam paixão nas pessoas, então podemos dizer que salvamos vidas de uma outra maneira.
— Certo. É um bom argumento.
não demorou a estar tão à vontade que se sentiu em meio a amigos de longa data. Kiko Flores e Santiago García eram quase isso, tendo em vista que os conhecia há mais de uma década e histórias para recordar eram o que não faltava.
Na realidade, ele não se lembrara do convite que recebera no início da semana até se ver de frente para a televisão, depois de um trabalho intenso nos aparelhos de musculação que tinha em casa. Mercedes ainda não havia voltado dos Estados Unidos e, sem a companhia dela para ver mais um capítulo da série que os dois estavam assistindo juntos, não pensou duas vezes antes de trocar de roupa e descer a rua do condomínio em que morava.
O que ele não esperava, era que uma noite aleatória de sinuca e conversa jogada fora fosse, em breve, se tornar parte de sua rotina.

• • •

Aquele era o primeiro show da Polvo Cósmico que ia desde o dia em que ela observou, com a visão borrada pelas lágrimas, Javier sair pela porta do apartamento com apenas uma mochila nas costas. Eles haviam acabado de ter uma longa conversa em que ambos colocaram todas as cartas em cima da mesa e concluíram que o divórcio era a melhor opção.
A arena estava lotada. Entradas esgotadas para o último show da turnê que havia percorrido a Espanha inteira, passado pela América Latina e se encerraria na cidade em que a Polvo Cósmico havia nascido, mais de duas décadas antes, em uma escola de ensino médio. As pessoas dançavam, pulavam e cantavam junto com Javi. Na área VIP da arquibancada, era uma delas.
Ela estaria mentindo se dissesse que não sentia uma estranheza ao ouvir algumas músicas que falavam de algo que não existia mais. No entanto, qualquer desconforto tinha desaparecido completamente no momento em que ela e Lara decidiram que seria divertido disputar qual das duas tinha inspirado mais composições.
Até aquele momento, já havia contado três. Se postas uma do lado da outra, elas praticamente formavam uma linha do tempo. A primeira, Javi escrevera alguns meses depois de conhecê-la, quando ela era apenas a prima de Kiko Flores que o intrigava. A segunda tinha sido escrita por ocasião do primeiro aniversário de namoro deles. A terceira, em decorrência de uma briga que quase os separou antes mesmo de Javi pedi-la em casamento.
Era impossível conter a avalanche de memórias que aqueles versos traziam, mas os cantava enquanto dançava com Lara, como se eles contassem a história de um casal que não tinha nada a ver com eles.
Tanto ela quanto Javi, de fato, não eram mais os mesmos.
Quando Esteban pegou um violão e se sentou em um banco para dar início à sequência de músicas acústicas, se apoiou no ombro de Kiko para descansar um pouco.
— Ainda não te contei a novidade, né? — falou, fazendo-o desviar a atenção do palco para encará-la. — Descobri hoje que vou apitar o jogo do Villa, na semana que vem.
— Mentira. — Ele arregalou os olhos, surpreso. — Vai ser contra quem mesmo?
— Contra o Pamplona, no domingo.
— Ainda bem que meu time joga no sábado, porque eu não perco esse jogo por nada.
esboçou um sorriso e fechou os olhos. Se concentrou na voz de Javi e deixou que seus pensamentos se esvaíssem. Estava feliz e um pouco ansiosa, mas não queria pensar em como seria apitar uma partida de seu time de infância naquele instante. Ainda teria alguns dias para absorver a informação.
— Isso não é justo! — Lara exclamou quando o show foi encerrado com um antigo sucesso da Polvo Cósmico e, depois de vinte músicas, o placar da disputa terminou em cinco a três para . — Você e Javi ficaram juntos por mais tempo do que eu e Esteban temos de namoro.
— Relaxa, guapa — ela rebateu, rindo. — Quando eles lançarem o álbum novo, você vai passar de mim.
— Eu não acredito muito nisso. Desilusões amorosas rendem mais músicas do que relacionamentos felizes e duradouros.
— Será que vai ter alguma sobre como eu sou uma cretina?
— Seria merecido. — Lara a olhou de cima a baixo, fingindo desdém, e deu as costas a ela.
riu sozinha e seguiu o fluxo de pessoas que se retiravam da arquibancada.


¹ Caño
É o espanhol para “caneta”, drible em que um jogador passa a bola por entre as pernas do oponente.

² Quillo
Expressão que vem de “chiquillo”, diminutivo de “chico”. É bastante usada em Cádiz, a província de origem de , como uma maneira genérica de chamar alguém.


Capítulo 4

Assim que saiu do elevador, pôde escutar a algazarra que vinha do quarto de Nacho Peña e Blas Romero. Em vez de ir direto para o que dividia com Sebastián Rendón, caminhou em direção ao falatório e precisou bater na porta algumas vezes até que Juancho a abrisse.
— Por que vocês não me chamaram? — falou ao entrar no quarto e descobrir que alguns de seus colegas de time estavam disputando um torneio de FIFA no PlayStation 4. — Vou entrar na próxima partida.
— Quer um cafezinho também, mijo? — o colombiano rebateu, debochado. — Agora vai ter que esperar o campeonato acabar.
— Faltam quantos jogos?
— Essa ainda é a primeira semifinal — disse, indicando o confronto que estava em andamento, entre Blas e Sebastián. — Melhor se sentar.
Diante da ausência de lugares vagos no sofá e nas poltronas da pequena sala de estar, se acomodou no parapeito da janela que preenchia toda a parede. Dali do alto do Hotel Cifuentes, onde o C.D. Villaverde se concentrava para as partidas desde que Roberto se tornara dono e presidente do clube, era possível ver a avenida Paseo de la Castellana toda iluminada.
Enquanto esperava sua vez de jogar, se distraiu com o celular. Curtiu algumas fotos do treino de mais cedo no Instagram, nas quais havia sido marcado por outros jogadores do time, e publicou uma em seu feed também, pedindo o apoio dos torcedores verdiblancos para a partida que disputariam no dia seguinte. A vitória era importante, pois os manteria na zona classificatória para a Copa da Europa.
Brincando distraidamente com a corrente de ouro em seu pescoço, ele conferiu as publicações das pessoas a quem seguia, deixando algumas curtidas. Um sorriso despontou em seus lábios quando viu uma foto de Sara, sua sobrinha de 7 anos, brincando na piscina.
Além da filha única de Ramón, ele tinha outros dois sobrinhos, filhos de Lucía. Seu carinho por Alejandro e Hugo — de, respectivamente, 5 e 3 anos — também era enorme, mas Sara era a grande paixão de sua vida. Talvez fosse porque ela fora a primeira da geração mais nova da família a nascer, fazendo-o descobrir que ser tio era quase como ter um filho, amá-lo e vê-lo crescer, mas sem todas as responsabilidades da paternidade.
Princesita!”, acrescentou nos comentários da foto publicada por Marta, sua cunhada, seguido por um emoji que mandava um beijo com um coração.
— Que golaço! — Blas exclamou, fazendo-o levantar os olhos do celular. — Já estou me aquecendo para o hat-trick que vou marcar amanhã.
— Boa sorte — ele disse, rindo. — Depois de duas derrotas seguidas, o Pamplona provavelmente vai vir para cima da gente com sangue nos olhos.
— Isso sem contar La princesa enfadada¹ — emendou Víctor Torres, esparramado em uma poltrona.
— Quem? — franziu o cenho.
— A árbitra que vai apitar o jogo de amanhã.
— Por que La princesa enfadada?
— É o apelido que o pessoal deu para ela na Segunda Divisão — Víctor explicou, rindo. — Quando eu jogava no Jaén, a gente odiava que ela fosse escalada para os nossos jogos. Você não pode falar um “ai” que ela já sai mostrando o cartão amarelo.
riu, balançando a cabeça de um lado para o outro.
— Ela é prima do Kiko Flores — comentou.
— Sério? — o atacante o encarou, surpreso. — Eu só sabia que ela é namorada do Javi Prado. Já vi os dois juntos em um evento.
— Isso eu não sabia, mas faz sentido. O Flores é amigo do pessoal da Polvo Cósmico.
— Esse daí é guerreiro.
A risada de Víctor foi sobreposta pelo grito de vitória de Blas. Sebastián, enraivecido, largou o controle sobre o sofá ao se levantar.
— Cinco a dois? Que vergonha! — debochou ao ver o placar final estampado na televisão.
A resposta veio em seguida, por meio de uma almofada arremessada em sua direção. Aos risos, ele se protegeu com os braços.
— Depois da final, eu vou jogar contra o — Sebastián avisou, apontando de si para . — Vamos ver quem vai passar vergonha.

• • •

Depois de vestir o blazer, encarou a si mesma no espelho e sentiu falta de alguma coisa, mas nada tinha a ver com o traje social da arbitragem ou seu cabelo, que estava devidamente preso em um rabo de cavalo firme, com grampos e spray fixador, como de costume. Percorreu seu corpo inteiro com os olhos, desde os sapatos confortáveis que possuíam um salto largo até chegar ao rosto.
— Quem sabe um batonzinho? — indagou ao seu reflexo, pensativa.
A necessaire que estava em cima da cama foi revirada, até que ela encontrou o batom marrom acinzentado de longa duração que procurava e pintou os lábios com ele.
Apesar de não se importar de aparecer em público toda suada e, ainda por cima, de cara lavada, , às vezes, gostava de passar um batom ou delinear os olhos antes de apitar partidas. Principalmente quando sentia que necessitava de uma dose extra de confiança. Ela não encarava a maquiagem como uma maneira de esconder suas imperfeições ou de se aproximar de um padrão de beleza imposto às mulheres, mas, sim, como uma forma de se expressar e mostrar sua personalidade. Era um recurso interessante para se impor.
Quando voltou a se olhar no espelho, deixou que um sorriso satisfeito despontasse em seu rosto.
— Agora sim! — disse antes de se voltar na direção da mala aberta sobre a cama para terminar de guardar suas coisas dentro dela.
Alguns minutos depois, saiu do quarto, puxando a mala de rodinhas com uma das mãos e, com a outra, segurando a bolsa com o equipamento de comunicação da equipe de arbitragem.
— Vamos, pessoal? — ela falou ao encontrar os homens que a esperavam no saguão do hotel.
Os seis se dividiram em dois carros, ambos escoltados pela polícia. foi no primeiro, com seus assistentes Yago e Marc, enquanto o quarto árbitro, o árbitro de vídeo e seu assistente foram no outro. Acomodada no banco traseiro, ela olhou através do vidro da janela, admirando as ruas do centro de Madrid.
Quando percebeu que os mesmos pensamentos que havia se esforçado para manter distantes durante as horas de reclusão em seu quarto estavam começando a se fazer presentes novamente, ela voltou os olhos para dentro do carro. Seu olhar cruzou com o de Yago, que estava sentado ao seu lado, e os dois trocaram um sorriso.
— Nervosa?
— Você sabe que não costumo ficar nervosa, nem mesmo em clássicos e decisões, mas estou um pouquinho hoje — ela admitiu, fazendo uma careta. — Dependendo do desenrolar da partida, estou com medo de me acusarem de favorecer o Villa e o Comitê me punir por isso.
— Por que fariam isso? — Marc perguntou do banco do passageiro.
— A família inteira dela é sócia dos Ángeles² desde os primórdios do clube — Yago explicou.
— Mentira que você é sócia do Villa!
— Não mais. — riu levemente. — Deixei de ser quando me tornei árbitra, mas algumas pessoas sabem que sou prima do Kiko Flores e, agora que estou em maior evidência, uma hora ou outra isso vai acabar vindo à tona. A sorte é que iniciei minha carreira antes das redes sociais… Mesmo assim, não duvido que encontrem alguma foto minha com a camisa do Villa por aí. O pessoal da internet sempre acha o que quer.
— Entendo a sua preocupação, , mas o Comitê inteiro sabe quão séria e profissional você é — Yago disse. — Qualquer polêmica que possa vir a surgir na internet, não vai passar disso.
— Eu também acho, mas, como esse é o primeiro jogo do Villa que vou apitar, estou um pouco preocupada.
— Qualquer coisa, a gente depõe ao seu favor — Marc falou em um tom divertido, fazendo-a esboçar um sorriso. — Assim como jogadores e jornalistas, todo árbitro tem um clube do coração. Não tem como você gostar de futebol sem torcer por algum.
— Qual é o seu time, Aguilera? — Yago questionou, curioso.
— Tentem adivinhar.
— Imagino que seja algum catalão.
— Barcelona — arriscou a opção mais óbvia.
— Na mosca. — Marc riu. — Mas, na verdade, o Barcelona nem é o time mais popular na região da Catalunha de onde eu sou. Qual é o seu, Godoy?
— Getafe. Sou rival da .
— Péssimo gosto para o futebol, diga-se de passagem — ela brincou.
Chegando ao Estádio de Los Ángeles, foi impossível que não revivesse as tantas recordações de sua infância e adolescência que envolviam aquele lugar. Sentiu um nó se formar na garganta quando pisou no campo com Yago e Marc para inspecioná-lo. Se lembrou de Salvador, seu avô, e toda a euforia que ele extravasava, quase todo fim de semana, naquelas arquibancadas até vir a falecer alguns anos antes. Mesmo com a saúde debilitada, ele nunca deixara de apoiar o C.D. Villaverde.
riu sozinha, se lembrando de como ele costumava chamar o árbitro de nomes não muito lisonjeiros, como todo torcedor apaixonado, e sempre levava broncas de Rosario, sua avó, por proferir xingamentos na presença dos netos. Apenas quando ela se tornou árbitra foi que ele admitiu que precisava perder aquele hábito.
! — Marc a chamou a alguns metros de distância. — Tem uma falha na linha daquela grande área.
— Ok, vou resolver isso! — ela exclamou de volta.
Antes de dar meia volta para pedir que o delegado do Comitê Técnico de Árbitros orientasse os jardineiros do estádio a reforçarem a tinta que delimita as grandes áreas, olhou uma última vez para as arquibancadas.
Onde quer que Salvador estivesse, ela sabia que, naquele dia, ele estaria torcendo pela arbitragem. E Rosario, ao seu lado, nem precisaria brigar com ele para que isso acontecesse.

• • •

O silêncio não era total no vestiário do C.D. Villaverde, mas, com a proximidade do horário de início da partida, cada um dos jogadores estava focado em seu próprio ritual pré-jogo, especialmente os que haviam sido relacionados para o onze inicial. era um deles. Sentado no banco, com a testa apoiada nas mãos unidas, ele rezava baixinho. Como toda vez que estava prestes a entrar em campo, pedia que Deus lhe permitisse ter clareza para tomar as melhores decisões em cada lance.
— Amém — disse baixinho, finalizando a oração, e fez o sinal da cruz.
Em seguida, ajeitou os meiões e se pôs de pé para ouvir as últimas palavras de Paco Domínguez antes que todos saíssem pela porta do vestiário.
foi um dos primeiros a chegar ao túnel e abriu um sorriso largo quando escutou seu nome ser exclamado pelas crianças enfileiradas. Depois de bater em algumas das mãozinhas estendidas, ele assumiu o segundo lugar da fila, ao lado de uma menina que tinha o cabelo dividido em duas tranças e vestia a camisa listrada verde e branca do C.D. Villaverde.
Conforme seus companheiros de time iam ocupando suas posições na fila, batia as palmas das mãos uma na outra, proferindo palavras de incentivo para eles.
Hombre, não vamos deixar nenhuma bola passar! — ele falou para Sebastián Rendón, que estendeu a mão fechada ao tomar a dianteira da fila, e os dois trocaram um soquinho.
Dali do túnel, era possível escutar a torcida entoando uma das tradicionais canções verdiblancas. , que sabia todas de cor, a cantarolou junto e piscou um olho para a câmera quando notou que um cinegrafista o filmava de perto.
— Podemos ir, capitães?
A voz mais aguda se sobressaiu de tal maneira em meio às vozes graves dos jogadores que atraiu sua atenção. Seu olhar caiu na mulher que acabava de chegar por entre as fileiras que os dois times formavam, se colocando adiante de todos eles.
Era ninguém mais, ninguém menos do que .
O nome que vinha escutando constantemente ao longo de toda a semana veio à sua cabeça junto com a imagem que havia sido formada a partir dos comentários que ele escutara a respeito da árbitra. Todavia, o que seus olhos viam não condizia em nada com suas expectativas.
voltou a si ao receber um empurrão pelas costas e, só então, notou que Sebastián se distanciava, puxando a fila. Rapidamente segurou a mão da menina que estava ao seu lado e deu alguns passos largos, fazendo-a dar uma corridinha para ser capaz de acompanhá-lo.
Os dois times se postaram lado a lado e, perante a torcida anfitriã, todos se cumprimentaram. não podia negar que achou um pouco estranho, quando apertou as mãos da equipe de arbitragem, estar diante de uma mulher em um campo de futebol. Depois de posar para a foto do time, correu para ocupar sua posição, mas ficou observando, de longe, Sebastián decidir o lado do campo no “cara ou coroa” com a árbitra e o capitão do Pamplona.
— Ela não parece tão nervosinha quanto falaram, né? — Benito Cruz disse ao seu lado, pondo a mão sobre a boca para evitar a leitura labial que habitualmente era feita por alguns programas de televisão.
— Não parece mesmo — concordou, sentindo como se seus pensamentos houvessem sido lidos.
— Mas quem vê cara não vê coração — o lateral esquerdo retrucou e se afastou em seguida, rindo.
O apito soou pelo Estádio de Los Ángeles, dando início à última partida válida pela quarta rodada da Liga Espanhola. Nos primeiros minutos, a posse da bola ficou com os jogadores que vestiam camisa vermelha e calção azul, mas a marcação adiantada do C.D. Villaverde os fez recuar. Em consequência da postura agressiva dos verdiblancos, o Pamplona se apegou às oportunidades de contra-atacar.
Em um desses contra-ataques, disputou uma bola com o ponta-direita do time iruindar³. Ciente de que ele era um ótimo driblador, o encurralou para deixá-lo sem opções. Uma tentativa de cruzamento fez a bola rebater em um, depois no outro, e acabar saindo pela linha de fundo.
Certo de que o adversário havia sido o último a tocá-la, pegou a bola e, prestes a jogá-la na direção de Sebastián Rendón, viu indicando a bandeira de escanteio.
— Ah, não! — Ele largou a bola com força, fazendo-a quicar na grama, e caminhou a passos largos e firmes até a árbitra. — É tiro de meta, . Foi o Herrera que tirou a bola.
encarou a expressão impassível no rosto de e viu os olhos dela subirem por seu corpo, o examinando, até alcançarem seu rosto. Por um momento, se sentiu um pouco intimidado.
— Vai tirar esse colar — foi tudo o que ela disse, indicando o banco de reservas, antes de se afastar.
Sua mão, automaticamente, foi para o pescoço e ele murmurou um palavrão ao constatar que havia se esquecido de tirar a corrente que usava habitualmente, ao trocar de roupa no vestiário. Cruzou o campo correndo e precisou da ajuda de um staff do time para tirá-la, pois o fecho escapava de suas unhas curtas. Quando estava prestes a retornar, foi barrado pelo quarto árbitro.
, o pode entrar de volta? — ele questionou por meio do aparelho de comunicação da equipe de arbitragem.
, que mantinha o jogo parado enquanto tentava fazer com que os jogadores parassem de se empurrar, levantou o polegar, dando autorização. correu para marcar o centroavante adversário e, logo que a bola foi colocada na grande área, a cabeceou na direção do meio de campo. Um meio-campista do Pamplona encontrou uma brecha e arriscou, de longe, mas a bola passou distante do gol, saindo pela linha de fundo.
Ainda inconformado com o escanteio mal marcado, fitou quando ela passou por ele, indo para o outro lado do campo. O olhar dela cruzou com o seu, mas, com a mesma indiferença que beirava a arrogância, ela o desviou.
À primeira vista, ele achara impossível que uma árbitra que fugia totalmente dos padrões, com o cabelo descolorido e rosas tatuadas no braço, saindo da manga da camisa, fosse a mesma de que ouvira falar. Conforme os minutos se passavam, entretanto, começava a se convencer de que o estilo de arbitragem de era mesmo bastante autoritário e bem menos divertido do que o estilo de aparência dela. Além de, constantemente, ignorar as objeções dos jogadores e mostrar cartões amarelos por protesto sem uma tentativa de comunicação, ela não era de marcar muitas faltas. A preferência por deixar o jogo correr não era completamente ruim, mas os critérios usados no momento de tomar a decisão eram questionáveis.
— Não foi nada, isso é futebol! — ele a escutara dizer para Sergio Huerta, que, caído na grama, reclamou de uma falta não marcada.
Alguns minutos depois, entretanto, e um atacante do Pamplona protagonizaram um lance bastante parecido que, para sua surpresa, terminou em um tiro livre para o time visitante.
— Ah, agora o apito voltou a funcionar — ele falou ironicamente quando se aproximou para demarcar a posição da bola com o spray.
Os olhos dela, duros, o afrontaram.
— Está vendo esse bolso daqui, escrito “FIFA”? — ela indagou, atraindo seu olhar para o patch de árbitro da maior entidade do futebol mundial, aplicado no bolso esquerdo da camisa amarela. — Caso você não saiba, tenho dois cartões aqui.
deu as costas para ele em seguida, mas continuou a observando e não pôde evitar soltar um risinho desacreditado em reação ao tom ameaçador usado por ela.
O placar foi aberto pelo time visitante depois de uma enorme confusão. Em um primeiro momento, anulou o gol ao ver a bandeira de um dos assistentes levantada, mas se afastou do grupo de jogadores de ambos os times que a encurralou, e levou a mão ao ouvido, indicando que estava escutando o parecer do árbitro de vídeo.
, que também havia tido a impressão de que o meio-campista do Pamplona estava adiantado, ficou inconformado ao vê-la validar o gol sem nem ao menos checar o lance com os próprios olhos no monitor. Não que ele fosse do tipo de jogador que costumava se dar bem com árbitros normalmente, mas, em menos de quarenta e cinco minutos, começava a fazê-lo desejar não ter que disputar outra partida apitada por ela tão cedo.
Conforme os minutos de jogo passavam, sentia a irritação crescer cada vez mais e a descontava em algumas entradas mais duras, então não se surpreendeu quando viu sacar o cartão amarelo do bolso para estendê-lo em sua direção.
— Sinto muito, Latorre. Acabei perdendo o tempo da bola — ele disse, oferecendo a mão para o adversário, que aceitou as desculpas e o apoio para se pôr de pé.
Ao voltar para sua posição, passou por , que anotava a infração, e os olhares dos dois se cruzaram.
— Pelo visto, os cartões são só para um lado, né? — ele ironizou.
, se preocupa em defender e jogar limpo, vale? — ela rebateu, guardando o bloco de notas no bolso traseiro do calção. — Da arbitragem, cuido eu. Não vou falar isso duas vezes.
Com o término do primeiro tempo, não fez a mínima questão de olhar para trás ao pisar firme até o vestiário. Secou o suor do rosto e do pescoço com uma toalha e soltou um suspiro frustrado ao jogá-la com força no banco, extravasando a revolta que sentia.
Ele odiava que seu time sofresse gols, mas, naquele momento, odiava ainda mais a arbitragem de La princesa enfadada.

• • •

— Desculpa pela confusão no lance do gol — Yago falou assim que a porta do vestiário da equipe de arbitragem foi fechada, assegurando que suas palavras não chegariam a ouvidos de pessoas a quem elas não interessavam.
— Sem problemas. Também achei que ele estivesse impedido. — levou uma garrafa d’água à boca e bebeu um longo gole do líquido gelado antes de continuar. — Pelo que o Montero me falou, foi questão de centímetros. Não teria como a gente ter certeza sem a ajuda da repetição.
— Que bom. Fico um pouco mais calmo.
— Estamos indo muito bem — ela disse para tranquilizá-lo. Com seus cerca de 25 anos, era compreensível que Yago ficasse um pouco inseguro em determinadas situações, mesmo que fosse um excelente árbitro assistente apesar da pouca idade. — Se seguirmos nesse ritmo, com certeza vamos fazer um ótimo segundo tempo também.
pegou uma pastilha para garganta e se sentou no banco, com a nuca apoiada na parede. Fechou os olhos e respirou fundo, ouvindo apenas a movimentação de seus colegas pelo vestiário. O intervalo era o momento de conter as emoções que ferviam em seu interior.
Bastava a bola rolar para o clima começar a esquentar dentro do campo. A vitória era tudo o que importava e todos os jogadores estavam dispostos a fazer o que fosse necessário para conquistá-la. se via tendo que lidar com os ânimos exaltados dos jogadores, a pressão da torcida, e era quase impossível manter o melhor de seus humores, ainda que desse bastante atenção para seu preparo psicológico.
Alguns minutos depois, sentindo-se mais relaxada, ela foi até o banheiro, jogou um pouco de água no rosto para se refrescar e retornou ao vestiário para uma última conversa com Yago e Marc antes de os três se dirigirem ao campo novamente.
Ao dar início ao segundo tempo, sentiu como se o primeiro não houvesse terminado ainda. Ambos os times começaram os quarenta e cinco minutos finais com uma alta intensidade de jogo e os goleiros foram os mais reivindicados. Em meio a essa agitação, aconteceu uma jogada polêmica que seria bastante debatida nos programas esportivos que encerravam a noite de domingo, iniciada por um cruzamento de Ander Latorre para Óscar Merino.
— Correto! — pelo ponto, pôde ouvir Marc dizer em relação ao posicionamento do centroavante para receber a bola.
Em seguida, o zagueiro verdiblanco Julio Muñoz deu uma entrada nele por trás, fazendo-o ir ao chão.
— Bola! — ela comunicou aos outros membros da equipe de arbitragem. — Para mim, ele tocou na bola.
Apesar das queixas feitas pelos jogadores de camisa vermelha, fez sinal para que eles continuassem a jogada. Latorre tentou mais um cruzamento, dessa vez para Iker Jiménez.
— Impedimento! — Marc levantou a bandeira na lateral, e ela interrompeu o jogo imediatamente.
! — a voz do árbitro de vídeo exclamou, mas não pôde dar a devida atenção porque, naquele momento, foi cercada por jogadores de ambos os times.
deu alguns passos para trás, confusa por estarem falando todos ao mesmo tempo.
— Assim não dá! — ela esbravejou. — Vocês querem jogar e apitar ao mesmo tempo. O que estou fazendo aqui, então?
, me escuta um segundo — o árbitro de vídeo voltou a dizer pelo ponto, atraindo sua atenção novamente.
— Pode falar, Montero. — Ela levou a mão ao ouvido, indicando a todos que estava se comunicando com o árbitro de vídeo, e se afastou dos jogadores.
— Você achou que o Muñoz tocou na bola, né? Mas recomendo que veja a repetição.
— Certo. Separa a jogada para mim.
As reclamações se acentuaram quando desenhou um retângulo no ar antes de cruzar o campo e ir até o monitor. Viu o lance novamente, desde o momento em que a bola foi colocada na grande área por Ander Latorre. Como Marc havia indicado, Óscar Merino não estava em posição de impedimento, o que validava a jogada.
— Está vendo que ele não toca a bola? — Montero indagou quando a tela exibiu a entrada de Julio Muñoz em câmera lenta e três ângulos diferentes.
O árbitro de vídeo tinha razão. A imagem mostrava o pé direito do zagueiro verdiblanco tocando a lateral da perna de Merino e, consequentemente, ocasionando seu desequilíbrio.
— Você tem razão, é pênalti — decretou. — Para mim, não tem necessidade de cartão.
— De acordo!
Ao retornar ao campo, mais uma vez, ela desenhou um retângulo no ar e apontou para a marca do pênalti.
— Isso só pode ser brincadeira! — se aproximou, acompanhado por outros jogadores do C.D. Villaverde que estavam tão indignados quanto ele. — Você mesma falou que o Muñoz foi na bola, .
— As decisões são o que tem que ser, não o que você quer — ela disse, contundente.
Sem tirar os olhos dos de , deu um passo à frente e pegou a bola da mão dele em um só movimento. Fingiu não notar que ele bufou, irritado, e se afastou em direção à grande área do time anfitrião. Não era a primeira vez que era confrontada pelo zagueiro, mas, apesar de aquele tipo de atitude a tirar do sério, não achava que era necessário adverti-lo novamente. Já havia dado seu recado ao lhe mostrar o cartão amarelo no final do primeiro tempo e acreditava que ele era esperto o suficiente para saber até onde poderia ir.
Óscar Merino se posicionou para cobrar o pênalti e, assim que autorizou, chutou a bola no canto esquerdo do gol de Sebastián Rendón, que não foi capaz de evitar que ela caísse na rede. As vaias não foram o suficiente para amargar a comemoração dos jogadores do Pamplona, visto que aquele segundo gol poderia ser a garantia que eles precisavam para voltarem para Navarra com os três pontos de que tanto precisavam.
O C.D. Villaverde, no entanto, não estava disposto a deixar que isso acontecesse tão facilmente e, assim que a bola voltou a rolar, aumentou a pressão sobre o time visitante. O incentivo da torcida, que cantava em uma só voz, também contribuía para que o jogo se tornasse mais intenso, exigindo que e seus assistentes se esforçassem em dobro para acompanhar as jogadas.
Em um ataque do C.D. Villaverde, Pedro Molina perdeu a bola para Ander Latorre e o jogo mais aberto possibilitou um contra-ataque do Pamplona, mas a defesa verdiblanca se recompôs a tempo de deixá-lo sem opções. Latorre, pressionado por Julio Muñoz, lançou a bola para Alberto Ibañez ao vê-lo livre, mas correu na direção dele e o empurrou com o braço para ganhar a disputa.
, que estava próxima à jogada, levou o apito aos lábios e o assoprou para interromper a partida.
parou na frente dela, com as mãos na cintura —, você viu que foi um contato normal de jogo.
— Eu te falei para jogar limpo, — ela disse, tirando os cartões do bolso esquerdo da camisa, e separou o amarelo.
Quando fez menção de mostrá-lo, a impediu.
— Não seja má, .
Ela sentiu os dedos dele envolverem seu pulso e, como se tivesse levado um choque, puxou o braço.
— Não me toca! — exclamou, dando um passo para trás.
Em meio aos protestos da torcida, mostrou o cartão amarelo para ele e, em seguida, o vermelho. Viu empinar o nariz e a encarar da cabeça aos pés com certa soberba. Ela estava acostumada a receber olhares daquele tipo, que tinham a intenção de fazê-la se sentir inferior.
Antes que pudesse dizer qualquer coisa, listras verdes e brancas invadiram seu campo de visão, fazendo-a perder o contato visual com o zagueiro.
— Por que você não vê a repetição do lance, ? — Nacho Peña questionou com a serenidade de quem tentava persuadi-la. — Realmente tinha necessidade de expulsá-lo? Estamos perdendo de dois a zero.
— Quer assistir ao final do jogo lá no vestiário também? — ela perguntou, indicando o túnel com o polegar.
Sem dar abertura para que o camisa nove continuasse a tentar fazê-la voltar atrás na decisão, pegou o spray que estava preso em sua cintura e demarcou o posicionamento da bola para a cobrança do tiro livre.
O sorriso irônico que tinha nos lábios ao se retirar do campo não a comoveu. As vaias que ela recebeu da torcida, quando o jogo foi encerrado, também não. Ela não exigia nada além de respeito e não achava que estava errada por isso.

• • •

Se tinha algo que odiava mais do que perder, era ser impedido de jogar. As duas coisas haviam acontecido naquela noite, então seu humor estava péssimo. Sua vontade era passar direto pela zona mista e ir encontrar sua família no estacionamento, pois não via a hora de dar um abraço nos pais, que haviam chegado na tarde do dia anterior e passariam a semana em Madrid. A orientação que recebera do assessor de imprensa, no entanto, fora a de utilizar os jornalistas para se redimir um pouco pela expulsão.
, o que você achou da arbitragem da ?
— Sinceramente, achei um pouco confusa — ele respondeu, com diversos microfones e celulares estendidos em sua direção. — Ela pareceu um pouco perdida, especialmente nos lances que resultaram os dois gols do Pamplona, e isso pode ter prejudicado um pouco a gente. Algumas decisões também não ficaram muito claras, porque ela não fez questão nenhuma de manter um diálogo com a gente.
— A sua expulsão seria uma dessas decisões?
— Eu não discordo dessa nem de nenhuma outra decisão dela, mas faltou um pouco mais de transparência. Acredito que ela se sinta intimidada no meio de um monte de caras que não estão muito preocupados em ser… Como posso dizer? Educados — explicou e soltou um risinho. — Sei lá, talvez só não seja o ambiente ideal para uma mulher.
— Como você explica a derrota de hoje?
respondeu essa e mais algumas perguntas antes de seguir para o estacionamento. Foi recebido, com abraços calorosos, por Manuel e Concha, que o esperavam próximos ao seu Range Rover.
— Cadê a Merche? — ele perguntou ao notar a ausência da irmã.
— O Johnny veio assistir ao jogo com a gente, e os dois resolveram sair para jantar. — Sua mãe entortou os lábios, parecendo não muito contente. — Mas ela disse que vai nos encontrar em casa mais tarde.
— Então eles já assumiram o namoro?
— Que nada! E, pelo visto, nem vão — ela respondeu, deixando um suspiro conformado escapar. — Não gosto que a Merche fique tendo casinhos com Deus e o mundo, mas ela já é uma mulher adulta e tem a própria vida. Não posso fazer nada.
— Vamos mudar de assunto, por favor? — Manuel falou, fazendo uma careta.
— Ah, deixem a menina se divertir! — riu e convidou os pais a entrarem no carro antes de se acomodar atrás do volante. — Como foi o show ontem? — perguntou, dando partida.
— Foi tão lindo! Nunca pensei que veria a Merche cantando com o Johnny em uma arena lotada — Concha, sentada no banco do passageiro, disse com os olhos brilhando de orgulho. — Todo mundo sabia cantar Diamante. Você tinha que ter visto, !
— Vou ter outras oportunidades. — Ele mostrou um sorriso fechado.
Ao longo do caminho até em casa, os três se entreteram com diversos assuntos, mas nenhum deles foi futebol. Concha e Manuel sabiam que odiava falar sobre o jogo depois de uma derrota, então respeitaram seu espaço. O que ele nem imaginava era que uma dor de cabeça ainda maior estava por vir, graças a uma de suas declarações pós-jogo que, naquela altura, já estava rodando a internet.


¹ La princesa enfadada
Tradução: a princesa zangada.

² Ángeles
Outra das alcunhas do C.D. Villaverde, além de Villa e Verdiblancos.

³ Iruindar
“Pamplonês” em Euskera, língua falada na região do País Basco. Quem ou o que é originário de Pamplona.


Capítulo 5

Outro dos passatempos favoritos de era a corrida. Todos os dias, ao acordar, ela saía para correr no Parque de El Retiro. Ela gostava de começar o dia daquele jeito, respirando o ar da manhã e, de quebra, tendo a oportunidade de observar as pessoas como mera espectadora, enquanto um bom e velho rock saía de seus fones de ouvido. Era uma maneira de manter não apenas o corpo em forma, mas, também, a mente.
Naquela segunda-feira de folga, depois de correr pelo parque sob um sol que se tornava mais forte a cada minuto que passava, não pegou o caminho que a levaria de volta para casa. Em vez disso, andou pelas calçadas movimentadas do centro de Madrid e entrou em uma cafeteria. Devido ao horário, o estabelecimento estava lotado de pessoas, mas ela não teve qualquer dificuldade de avistar Carla sentada em uma das mesas, falando no celular.
— Eu preciso desligar agora, mas então fica combinado assim — ao se aproximar, pôde escutá-la dizer para a pessoa do outro lado da linha. — Não esquece de me mandar o endereço pelo WhatsApp, vale? A gente se vê mais tarde!
— Reunião de trabalho? — questionou quando ela finalizou a chamada e deixou o celular sobre a mesa.
Carla concordou, se pondo de pé para cumprimentá-la e chamou a garçonete para que elas pudessem fazer seus pedidos. Enquanto aguardavam a chegada da primeira refeição que fariam no dia, ela contou sobre o festival de bandas independentes que fora chamada para fotografar na semana seguinte. A reunião que teria à tarde seria para acertar os últimos detalhes com o organizador.
A garçonete não demorou a retornar com duas tigelas. Para Carla, uma salada de frutas com iogurte grego e, para , granola orgânica com iogurte de soja.
— Mudando de assunto — Carla disse assim que as duas começaram a comer —, e aquela declaração que o deu depois do jogo, hein?
— Babaca — murmurou e soltou um risinho sarcástico. — Ele foi um pouco arrogante durante o jogo, mas não pensei que chegaria a esse ponto.
— Dizer que o futebol não é o ambiente ideal para mulheres foi pesado.
— Sabe o que me deixa mais revoltada? Esses caras realmente pensam que a falta de educação e o mau-caratismo deles não têm cura, e que é a gente que tem que se adaptar a isso.
— Não sei se você ficou sabendo, mas ele esteve na casa do Kiko em uma dessas quintas em que você não pôde ir.
Surpresa, encarou a amiga.
— Sério? Ainda bem que perdi isso.
— Teve um momento em que ele admitiu que não sabe nada sobre o futebol feminino — Carla comentou, enquanto remexia a salada de frutas. — Os meninos mencionaram que eu jogava no Villa e que a Lara ainda joga. Ele não teve como negar que nunca tinha escutado falar da gente, mas não fez nenhum comentário escroto como esse. Na verdade, até se mostrou aberto a ver um jogo do time feminino, então essa declaração me deixou um pouco chocada.
— Deve ser daquele tipo de cara que pensa que tudo bem mulheres se envolverem com o futebol, desde que não cruzem o caminho dele.
— Você acha que ele vai ser punido ou, para variar, vai ficar por isso mesmo?
— Se depender de mim, sim. Mandei um e-mail para o presidente do Comitê assim que soube dessa declaração infeliz, mas ele ainda não me respondeu. Nunca aguentei esse tipo de coisa calada. Agora, na primeira divisão, muito menos.
— E você está certa, . Se não lutarmos pelo nosso espaço, com certeza não são eles que vão fazer isso por nós.
soltou um longo suspiro cansado, pois era assim que ela se sentia. Exausta.
No dia anterior, ainda no Estádio de Los Ángeles, enquanto ela redigia a ata da partida, Yago entrou na sala de supetão.
— Desculpa te interromper, , mas você precisa ver isso — ele disse, estendendo o celular em sua direção.
Mais antenado do que ela às redes sociais, o que queria lhe mostrar era a entrevista pós-jogo que havia acabado de conceder na zona mista. Quando o vídeo chegou ao fim e, automaticamente, voltou a ser executado desde o início, bloqueou o celular e o devolveu a Yago. Se escutasse a voz de novamente, provavelmente não conseguiria conter a raiva que sentia, então respirou fundo e apenas riu, desacreditada.
Apesar de Yago compartilhar com ela a indignação que sentia, se manteve calada.
— Você não ficou nem um pouquinho nervosa com isso? — ele perguntou.
— Nesse exato momento, eu poderia xingá-lo de palavrões que você nem conhece, mas isso só serviria para me chamarem de histérica — foi o que ela respondeu.
Assim que finalizou a ata, escreveu um longo e-mail para o presidente do Comitê Técnico de Árbitros, exigindo que ele se posicionasse em relação às declarações de , e deixou para descarregar tudo o que estava entalado em sua garganta quando chegou em casa e recebeu uma ligação da mãe. Mal escutou a parabenização de Carlota antes de começar a falar desenfreadamente, enquanto caminhava de um lado para o outro dentro do apartamento.
— O que significa esse sorrisinho? — perguntou ao notar os lábios de Carla levemente curvados para cima, enquanto ela olhava alguma coisa no celular. Foi o suficiente para que o sorriso dela se evidenciasse ainda mais.
— Eu conheci uma garota — ela disse, deixando o aparelho sobre a mesa.
— De onde ela é? Me conta tudo! — endireitou a postura na cadeira e a encarou em expectativa.
— Lembra daquele meu amigo, Gonzalo? Ele tem essa colega de trabalho, a Virginia. Fomos num barzinho outro dia e ele a chamou também. Ainda não rolou nada, mas tenho trocado mensagens com ela quase todo dia.
— Posso saber o que você está esperando para chamá-la para sair?
— Tempo. — Carla encolheu os ombros, rindo. — Essa época do ano é sempre muito agitada, mas, assim que eu tiver um fim de semana mais calmo, vou convidá-la para tomar uma cerveja.
— Tomara que ela seja legal. — esboçou um sorriso sincero. — Alguma de nós duas tem que se dar bem no amor, né? — acrescentou, bem humorada, antes de chamar a garçonete, fazendo Carla rir.

• • •

O sono de foi interrompido pela porta do quarto se abrindo em um rompante. Ele arregalou os olhos, atônito, e se deparou com Mercedes em meio ao breu propiciado pelas cortinas, que impediam a claridade de entrar através das janelas apesar do dia ensolarado que fazia do lado de fora.
— Você ficou maluco, ? — ela vociferou, se aproximando da cama a passos largos. — Como é que você tem coragem de falar em rede nacional que futebol não é para mulher?
— Eu não disse isso! — Ele se pôs sentado, voltando a sentir a mesma indignação da noite anterior, quando descobriu a acusação que estava circulando nas redes sociais. — Só falei que o ambiente do futebol masculino talvez não seja o ideal para uma mulher.
— Não é você quem decide isso, é ela! — Mercedes falou categoricamente. — Você está cansado de me ver passando por situações de machismo na música, caramba! Deveria ter vergonha de ser o responsável por fazer uma mulher passar por isso na profissão dela.
— Merche… — tentou falar, mas foi interrompido.
— Fiquei muito decepcionada com você — ela disse. Ainda que o volume de sua voz estivesse mais baixo, se mostrou irredutível. — Muito mesmo.
Sem permitir que ele se explicasse, Mercedes deu meia volta e bateu a porta com força ao se retirar do quarto.
respirou fundo e soltou o ar em um longo suspiro. Se jogou para trás, deixando a cabeça cair no travesseiro e ficou alguns segundos encarando o teto branco do cômodo. Estendeu o braço para pegar o celular, que estava sobre a mesa de cabeceira, e se assustou ao encontrar um número alto de notificações.
¡Joder! — ele exclamou consigo mesmo. — Eu devo ter jogado pedra na cruz.
Largou o celular sobre o colchão, bufando, e foi tomar um banho para tentar reverter o péssimo início de dia. Minutos depois, desceu para a cozinha menos relaxado do que gostaria, pois se manteve pensando sobre as palavras de Mercedes durante todo o tempo em que esteve debaixo do chuveiro.
— Bom dia — disse aos pais, que estavam sentados à mesa.
— Que filho cheiroso que eu tenho! — Concha comentou com um sorriso quando ele ocupou a cadeira ao lado. — O que vai comer, ? — perguntou, prestativa, se levantando para levar até a pia a louça que havia sujado.
— Um sanduíche tostado. Vou sair da dieta hoje.
— Com jamón e queijo, né? Espera dois minutinhos que vou preparar para você.
colocou um pouco de café em uma caneca e completou com leite. Enquanto adicionava duas colheres de açúcar, viu Mercedes entrar pela porta da cozinha. Os cachos tingidos de loiro, normalmente volumosos, estavam molhados e sem forma, o que denunciava que ela acabara de sair do banho também.
— Bom dia — ela disse para ninguém em particular, sentando-se à mesa.
Quando Concha colocou o sanduíche tostado em seu prato, sorriu em agradecimento e começou a comer.
Embora estivesse sentada na cadeira em frente, Mercedes evitava olhar em sua direção enquanto preparava uma tigela de rodelas de banana com aveia, fazendo com que um silêncio incomum perdurasse por algum tempo. O único som que preenchia o ambiente era o produzido por Concha ao colocar a louça suja na máquina.
— Não acha que está exagerando, Merche? — perguntou, fazendo-a encará-lo. — Você nem conhece a . Não faz o mínimo sentido tomar as dores dela e ficar contra mim, que sou seu irmão. Você, mais do que ninguém, deveria saber que não sou machista merda nenhuma.
— Machista? Que história é essa? — Manuel questionou, revezando o olhar entre eles, mas nenhum dos dois lhe deu atenção.
— Você não está nem um pouquinho arrependido do que falou? — Mercedes questionou.
— É claro que estou! Se soubesse que todo mundo ia ficar me enchendo o saco, eu tinha dito que a arbitragem dela foi perfeita, a melhor da minha vida — respondeu com ironia.
— Eu acho melhor você rever seus conceitos. — Ela suspirou e pôs a última colherada de seu café da manhã na boca antes de se levantar e levar a tigela para Concha. — Tenho que ir para o estúdio.
— Vai almoçar com a gente?
— Prometo que vou tentar, mãe, mas é difícil interromper o processo criativo no meio.
Mercedes se despediu dos três e proferiu apenas um “tchau” seco, observando-a sumir pela porta da cozinha.
— Por que vocês dois estão nesse clima pesado? — Concha perguntou, começando a tirar a mesa.
— Interpretaram mal uma coisa que falei ontem, sobre a árbitra, e estão me chamando de machista — ele respondeu, rolando os olhos.
— O que você disse? — questionou Manuel.
— Ah, só falei que aquele ambiente talvez não seja adequado para uma mulher. — deu de ombros. — Os árbitros homens estão acostumados com palavrões e grosserias, então nem se abalam. Já ela, senti que não lida muito bem com a pressão dos jogadores. Não acho que seja uma árbitra ruim, mas não tem como negar que isso prejudica a arbitragem.
— Não falou nenhuma mentira. — Manuel riu. — Não esquenta a cabeça, hijo. Isso é só para te desestabilizar.
— Preciso ligar para o assessor, para ver o que devo fazer agora, ou não vou ter paz tão cedo.
— Grava um vídeo pedindo desculpas — Concha sugeriu. — Daqui a pouco todo mundo já vai ter se esquecido disso.
— Acredito que a orientação do Ignacio vai ser essa — concordou e se pôs de pé. — Vou malhar um pouco. Depois ligo para ele.
— Você vai almoçar em casa antes de ir para a concentração da Seleção?
— Sim, só tenho que ir para Las Rozas mais tarde.
— Que bom, porque vou fazer tocino de cielo¹.
sorriu com a menção à sobremesa que era sua predileta. Beijou o topo da cabeça da mãe, em agradecimento ao cuidado que ela sempre tinha com ele, e seguiu para a academia que tinha em casa.

• • •

Quando o sábado chegou, colocou uma muda de roupa na mochila, subiu na moto e cruzou Madrid, seguindo em direção ao distrito de Villaverde, para passar o primeiro fim de semana de folga da temporada na casa dos pais. Ela não abria mão de sua privacidade por nada, mas sentia necessidade de estar próxima à família às vezes.
No domingo, Mario também apareceu com a família para uma visita. Depois do almoço, se dividiu entre ajudar Aitor a montar um avião de LEGO que havia pertencido ao irmão mais velho nos anos oitenta, e ouvir as novidades que Irene, sua cunhada, tinha para contar sobre a gestação que estava entrando na reta final. O assunto perdurou por um longo tempo, já que todos se encontravam muito ansiosos pelo nascimento de Marina, previsto para o início de novembro. Em pouco mais de um mês, Aitor não ocuparia mais o posto de caçula da família.
— O jogo vai começar — Mario anunciou ao entrar na cozinha, indo até a geladeira.
Vale, já estamos indo — concordou. — Vamos continuar montando o avião lá na sala, Aitor? — acrescentou para o sobrinho, que concordou e começou a juntar as peças que estavam espalhadas no balcão para transportá-las para o outro cômodo.
— Vou fazer umas palomitas — Carlota falou, abrindo o armário que servia de despensa.
, leva quatro copos, por favor — Mario pediu antes de se retirar da cozinha carregando o mesmo número de garrafas de cerveja.
pegou os copos no armário e foi para a sala de estar também. Na televisão, as Seleções Espanhola e Ucraniana acabavam de entrar em campo, se enfileirando para a execução dos hinos nacionais.
— O onze inicial mudou bastante em relação ao que jogou contra a Alemanha na quinta, né? — ela comentou, deixando os copos sobre a mesa de centro.
— Só a zaga é a mesma — Pepe respondeu. — Teoricamente, o jogo de hoje vai ser um pouco mais fácil. Vamos ver na prática.
Depois de servir um copo de cerveja para si, se sentou no tapete com Aitor e o ajudou a separar as peças do LEGO novamente, enquanto olhava de relance para a televisão.
— No que deu aquela história do , afinal? — Mario perguntou quando o zagueiro apareceu na tela, com a braçadeira de capitão, trocando a flâmula vermelha e amarela com a do capitão do time adversário.
— Vão obrigá-lo a pagar uma multa, provavelmente, e vai ficar por isso mesmo. Nada novo sob o sol — respondeu, dando de ombros.
— O pediu desculpas diretamente a você, ? — Irene questionou. — Só fiquei sabendo que ele postou um vídeo no Instagram se retratando.
— Não seja ingênua, cuñada — ela disse, rindo como se tivesse acabado de escutar uma piada. — Ele só gravou esse vídeo para limpar a própria imagem. Essa é a única preocupação dos jogadores.
— Eu fiquei indignada quando o Mario me contou sobre o que ele disse na entrevista. Em que século esse tío vive?
— Pior que não é o único. O ambiente do futebol masculino ainda tem muito o que evoluir para deixar de ser tóxico — constatou. — O que mais me tirou do sério, na verdade, foi quando ele segurou meu pulso para me impedir de mostrar o segundo amarelo. Duvido que teria a cara de pau de fazer isso se a arbitragem fosse de um homem.
— Odeio te ver passando por esse tipo de coisa, hija — Carlota falou ao chegar com duas bacias grandes de pipoca, as quais deixou sobre a mesa de centro para que todos tivessem acesso.
— Eu também — Pepe concordou em meio a um suspiro. — Por isso que eu preferia que você tivesse seguido para o futebol feminino. Ou, melhor, fosse professora de Ed. Física.
— Vocês não precisam se preocupar. Eu sabia que teria que passar por situações assim quando fiz minha escolha. — esboçou um sorriso resignado. — O que me conforta é saber que estou abrindo caminho para outras mulheres terem uma trajetória mais fácil.
— Você e essa vontade de mudar o mundo ainda vão me fazer ter um ataque cardíaco. — Carlota se acomodou no sofá, ao lado do marido, e olhou de uma maneira maternal para ela. — Mas confesso que isso me enche de orgulho.
— Só da que você tem orgulho? — Mario indagou em um tom divertido, enchendo as mãos de pipoca.
— É claro que também tenho muito orgulho do meu filho que salva vidas. Não precisa ficar com ciúmes, cariño. — Ela riu. — Até que nós fizemos um bom trabalho, mi amor — acrescentou, olhando para Pepe.
— Eu também acho — ele concordou, beijando-a na bochecha.
sorriu discretamente, como sempre acontecia ao ver a cumplicidade que seus pais tinham mesmo depois de tantos anos de casados. Após ter passado pela experiência do casamento com menos sucesso do que eles, ela dava ainda mais valor. Sabia como era difícil dividir a vida com alguém, conciliando todas as diferenças.
A bola rolou na televisão, dando início à partida da segunda rodada da Liga das Nações, mas ela preferiu se ocupar com Aitor e o avião de LEGO a ter o desprazer de ver o rosto de estampado na tela.

• • •

Embora estivesse em seu dia de folga, após uma semana dedicada à Seleção Espanhola, precisou encaminhar-se até o centro de treinamento para ter uma reunião com Roberto Cifuentes. Assim que chegou ao prédio principal das instalações do C.D. Villaverde, ele foi conduzido por uma recepcionista até o andar da presidência.
— Bom dia, Sr. — disse a secretária do Presidente, com um sorriso gentil estampado no rosto, ao vê-lo sair do elevador. — Já avisei o Sr. Cifuentes sobre sua chegada. Pode entrar.
sorriu em agradecimento quando ela abriu a porta para que ele adentrasse a sala espaçosa e bem iluminada pelo sol da manhã. A parede de vidro também propiciava uma vista ampla do campo de treinamento do time principal, o que, às vezes, fazia os jogadores se sentirem vigiados.
— Com licença, Presidente.
Cifuentes, que, sentado à mesa, trabalhava em seu notebook, imediatamente largou o que quer que estivesse fazendo e se pôs de pé.
— Entre, . Vamos nos sentar ali no sofá. Essa conversa não precisa ser tão formal assim — ele disse cordialmente.
— Como você preferir.
Os dois cruzaram a sala para se acomodarem no sofá confortável que ficava rodeado por quadros que retratavam momentos importantes da história do clube verdiblanco, desde a sua fundação, em 1940, até a conquista da Segunda Divisão, dois anos antes.
— Você deve saber por que te chamei até aqui.
— Imagino que seja por causa da polêmica que criei depois do último jogo — disse, coçando a nuca. — Alguma novidade?
— Fomos comunicados pelo comitê disciplinar que você foi suspenso por um jogo, além do que já perderia por causa do cartão vermelho. Você também terá que pagar uma multa no valor de quinze mil euros.
— Um jogo extra de suspensão? — Ele levantou as sobrancelhas, incrédulo. — Não tem como a gente recorrer?
— Nós bem que tentamos, mas não tivemos muitos argumentos. A própria declarou ter se sentido ofendida.
não se preocupou em esconder quão contrariado estava. Não se importava de pagar a multa para dar um ponto final a toda aquela confusão, mas ser submetido a se ausentar dos campos por dois fins de semana era frustrante. Especialmente naquele momento, em que ele estava se firmando no time titular.
— Se não tem outro jeito, fazer o quê?
— E tem mais uma coisa — Cifuentes continuou. — Não sei se você já ouviu falar da Catalina Santamaría, a diretora de futebol do nosso time feminino. Ela me procurou semana passada para demonstrar a insatisfação em relação às suas palavras e sugeriu que você participe de um treino das garotas.
— Isso é realmente necessário? — olhou torto para o Presidente. — Não acho que mulheres não entendem de futebol, como todo mundo está pensando.
— Acredito em você, , mas não posso deixar de escutar alguém importante para o clube como a Catalina. É só um treino, não custa nada. Além do mais, vai render uma exposição positiva para a gente na imprensa — ele acrescentou com um ar divertido.
dirigiu até em casa tentando se convencer de que realmente não custava nada treinar com o time feminino por um dia, algo que nem era propriamente um castigo. Poderia até acabar sendo uma experiência divertida. O que o incomodava mesmo era admitir que estava errado. Afinal, ele não tinha dito nada demais.
Certo?

• • •

Diante do muro de três metros de altura, mostrou um hang loose para a câmera de segurança. Assim que o portão se abriu, adentrou a propriedade de Kiko Flores e estacionou a moto atrás do carro que sabia pertencer a Santi García.
— Adivinha quem veio hoje — Carla falou, sentada nos degraus da fachada da casa.
se aproximou dela, tirando o capacete, e a observou dar um trago no cigarro que ela equilibrava entre os dedos.
— Javi? — arriscou, mesmo que não fizesse muito sentido. A fase de evitar a presença do ex-marido já havia sido superada há algum tempo.
Em resposta, a outra soltou a fumaça e deixou que um sorriso divertido se formasse nos lábios.
— Vou deixar que você veja com seus próprios olhos. Só controle a vontade de socar a cara dele.
franziu o cenho e olhou para a porta de entrada, que estava entreaberta.
— Não vai me dizer que…
Antes mesmo de o questionamento ser inteiramente proferido, a risada de Carla se sobressaiu em meio à calmaria do condomínio habitado por alguns dos ricaços de Madrid.
Sem dizer mais nada, subiu os degraus. Deixou o capacete em um canto ao adentrar a casa e seguiu o falatório que vinha dos fundos, mais precisamente do salão de jogos.
— Boa noite, pessoal — falou, percorrendo os olhos pelo ambiente.
Sentiu o sangue gelar ao confirmar suas suspeitas. Jogando sinuca com seus amigos, como se sempre tivesse pertencido ao grupo, estava . O que a deixou um pouco mais tranquila foi notar que ele também ficou surpreso ao vê-la.
— Bem que dizem que quem é vivo sempre aparece — Esteban brincou.
— Tem sido difícil estar livre às quintas — se justificou, mas sua fala acabou soando mais como um desabafo.
— Na semana passada você estava de folga — Kiko acusou, implicante, se inclinando sobre a mesa para uma tacada. — Qual é a desculpa, então?
— Eu trabalho mesmo quando não tem rodada do campeonato, sabia? Apitar um jogo não é tão fácil quanto muita gente por aí pensa — ela rebateu, arrancando alguns risinhos.
Seus olhos se voltaram na direção de involuntariamente e se depararam com os dele a encarando. Ele sorria de canto, demonstrando ter recebido a alfinetada com espírito esportivo.
— Fazia tempo que eu não te via, Santi — ela disse, desviando o olhar para Santiago García. — Só você não foi ao show de encerramento da turnê da Polvo Cósmico.
— Não deu para ir. A gente estava em Vigo, visitando os pais da Ana.
— Como ela e a Miriam estão?
— Estão bem — ele respondeu. — Você tem uma nova fã, sabia? Levei a Mimi ao jogo do Villa e ela achou incrível te ver apitando. Ficou a semana inteira falando disso.
— Que fofa! — sorriu. — Será que temos uma futura árbitra?
— Não sei. Até pouco tempo atrás, o papo que eu escutava era de que ela seria bailarina quando crescesse — Santi ponderou, rindo levemente. — Mas ela tem jogado futebol cada vez melhor. Estou até pensando em levá-la para fazer um teste no Villa ano que vem, depois que ela completar 6 anos.
— Acho que a Mimi vai dar uma atacante e tanto — Lara comentou enquanto pegava uma garrafa de cerveja no bar. — Lembra daquele dia que a gente ficou jogando com ela lá no jardim, Carla?
— É verdade. Ela dava cada drible! — a outra, que acabava de retornar ao salão de jogos, concordou. — Para a idade, a técnica dela é muito boa.
— Puxou ao pai, né? — Santi rebateu com um sorriso convencido.
— E eu pensando que teria uma discípula — falou, fingindo estar decepcionada. — Mas tudo bem, o importante é que a Mimi saiba que existem várias opções para ela dentro de um campo de futebol.
— Mesmo sendo uma menina — Carla complementou.
— Mesmo que sempre tenha um cara com o ego ferido para dizer o contrário — ela adicionou em um tom sereno.
As duas trocaram um olhar cúmplice e risadas masculinas tomaram conta do ambiente.
— Podia ter ido dormir sem essa, — Santi debochou.
— Acho que não preciso apresentar vocês dois, né? — Kiko falou, olhando de para com um ar divertido.
— Já tivemos a oportunidade de nos conhecer. Infelizmente — retrucou.
Ao escutar a voz dele pela primeira vez naquela noite, o encarou. Percebendo seu olhar, ele levantou a garrafa de cerveja que segurava como em um cumprimento e a levou à boca.
— Espero que seu ego já esteja recuperado, . Ser expulso por uma mulher não deve ter sido fácil, coitado — ela falou com falso pesar.
— Não se dê tanta importância, disse tranquilamente e piscou um olho.
— Não fui eu que dei entrevista reclamando da arbitragem, todo ofendidinho. Mas, enfim... — encolheu os ombros.
Naquele exato momento, o celular de Kiko apitou, quebrando o clima que começava a se tornar pesado.
— A comida chegou — ele anunciou. — Me ajuda, ?
Ela concordou e o seguiu para fora do salão de jogos.
— Desde quando você é amiguinho do ?
— Está afiada hoje, hein? — Kiko riu, caminhando em direção ao hall de entrada. — Se você não lembra, conheço o há mais de dez anos.
— Mas ele não frequentava a sua casa nem quando vocês jogavam juntos. Por que isso agora?
— Eu não sabia que precisava te pedir autorização para receber visitas na minha casa — Kiko rebateu, olhando para ela sobre o ombro, enquanto puxava a porta pela maçaneta.
— Tem razão. Você pode chamar quantos machistas babacas quiser. Eu não tenho nada a ver com isso.
Ele não respondeu, pois o entregador já subia os degraus em frente à casa. o ajudou a pegar os pacotes e logo reconheceu o nome do restaurante de comida japonesa.
— Espero que tenha pedido sushi vegano para mim — disse assim que o rapaz se afastou.
— Eles não vendem, mas lembrei que outro dia jantei com a Dani nesse restaurante e ela comeu tofu com molho de missô. Foi o que pedi para você. — Kiko fechou a porta com um chute e se encaminhou para a sala. — Vocês duas, com essa história de só comer planta, atrapalham minha vida.
— Por que não está seguindo o exemplo?
— Se um dia eu virar vegetariano, pode me internar.
— Nunca diga nunca. — riu, começando a colocar o conteúdo das sacolas de papel sobre a mesa.
— Escuta, — Kiko começou, fazendo-a levantar o olhar para encará-lo. — Abrir as portas da minha casa para o não quer dizer que eu apoie a postura dele. Você, mais do que ninguém, sabe qual é minha opinião em relação às mulheres terem espaço no futebol, mas…
— Você não vai se envolver — ela completou, o interrompendo.
— Não é questão de me envolver ou não. Provavelmente vou falar com ele sobre isso em algum momento, a gente tem um bom diálogo. Só estou querendo dizer que o não vai se tornar meu inimigo — ele explicou francamente. — E também acho que você não tem que entrar nessa vibe, tía. É mais fácil que ele comece a rever os conceitos se tiver uma convivência amigável com você e as meninas.
— Pode ser, mas não tenho intenção nenhuma de ser coleguinha dele — declarou, puxando uma cadeira para se sentar. — E não é só por causa do que ele disse. Ter amizade com um jogador em atividade não vai pegar bem.
— Bom, sobre isso não posso opinar. Você que sabe. — Ele deu de ombros. — Mas pode ficar tranquila que o já está tendo a resposta que merece ouvir. Fiquei sabendo que ele vai ter que participar de um treino do time feminino.
olhou para Kiko com um misto de espanto e diversão, mas não pôde descobrir mais sobre aquela história. O som da aproximação de passos fez o assunto ser encerrado. Em seguida, a voz de invadiu a ampla sala de estar conjugada com a de jantar.
— Você anda de moto, Kiko? Eu não sabia.
— Não ando. Esse capacete aí no chão é da .
— Além de jogarem futebol, mulheres também pilotam moto. Impressionante, né? — ela debochou.
Não se deu o trabalho de ver a expressão que tinha no rosto com seus próprios olhos, mas o silêncio dele a fez esboçar um sorriso triunfante.
— Larita, tenho uma missão para você — falou quando viu a amiga ocupar uma cadeira do outro lado da mesa. — Mas falamos sobre isso mais tarde.
Vale — Lara respondeu, fitando-a com curiosidade.

• • •

A atmosfera da casa de Kiko mudara completamente com a chegada de . Mesmo que a maioria das conversas fossem em grupo, ela, de alguma forma, sempre era o centro das atenções.
ficou um pouco intrigado ao perceber isso. Ali, ela já não era a única mulher em meio a vinte e dois homens, mas continuava a se destacar como se tivesse algo diferente dos demais. Ele precisava reconhecer que possuía uma presença marcante. Por que, exatamente, não saberia explicar, mas marcante o bastante para fazê-lo se sentir, inclusive, um pouco intimidado.
Não que fosse sua intenção, mas , volta e meia, se pegava observando-a. Por conta disso, não demorou a perceber que evitava olhar em sua direção. Ela também não lhe dirigia a palavra, a não ser que fosse para soltar alguma indireta. Aquela maneira de agir dela estava o incomodando mais do que ele gostaria de admitir.
— Sua vez, .
A voz de Esteban fez se sobressaltar. Ele desviou os olhos do bar, onde as três mulheres conversavam em meio a cochichos e risinhos, e fingiu se ocupar com o celular.
— Finalmente! — exclamou.
A aproximação dela atraiu a atenção de mais uma vez. Ele a viu descer o zíper da jaqueta preta, revelando uma camiseta cinza do Bob Dylan, antes de tirá-la do corpo e deixá-la sobre a mesa de ping-pong.
dobrou as mangas da camiseta, que já eram curtas, e pegou o taco com Esteban.
— Vou aproveitar a deixa para ir embora — Santi falou, rodando a chave do carro no dedo.
— Justamente agora que vou mostrar para vocês como é que se joga? — brincou.
— Fica mais um pouco, tío — disse Kiko, enquanto posicionava as bolas para o início de uma nova disputa. — Ainda está cedo.
— Realmente preciso ir. A Mimi só tem dormido depois que leio um capítulo de Harry Potter para ela.
não pôde evitar uma risada ao imaginar a cena. Não que achasse engraçada a ação de ler para uma criança, mas era um pouco inusitado imaginar, naquele contexto, o Santi García que chegava atrasado aos treinos após noitadas.
— Nunca pensei que te veria sendo o primeiro a ir embora de uma social. Por causa de filho, ainda por cima — ele admitiu, fazendo Santi rir.
— Esse dia chega para todos, .
— Não para mim! — Kiko discordou. — Ser tio já me deu e ainda me dá trabalho suficiente.
— Se você já é babão desse jeito com a Dani, quero nem imaginar como seria se fosse pai. — riu e deixou o taco sobre a mesa. — Eu te acompanho, Santi. Vou tirar minha moto para você poder sair.
Depois que se despediu de todo mundo, Santiago se retirou com . ficou olhando para o corredor, por onde eles sumiram, por algum tempo, alheio à conversa que surgiu entre os outros quatro.
— Vou ao banheiro — anunciou, mas não recebeu muita atenção.
Ele atravessou o corredor e caminhou calmamente pela sala de estar, na direção que sabia ficar o banheiro, mas parou quando viu surgir pelo hall de entrada.
— Que susto! — ela exclamou, pondo a mão no peito.
— Desculpa — disse, rindo levemente. — Posso falar com você? Juro que vim em paz.
— Sinto muito, , mas não tenho nada para falar com você — foi o que respondeu, voltando a assumir o tom duro das poucas vezes em que havia se dirigido a ele até aquele momento.
— Pensei que fosse mais madura do que isso.
— Você nem me conhece. Não tem que pensar nada sobre mim.
— E você está fazendo o quê? — Ele riu, cruzando os braços. — Pois é, me julgando sem me conhecer também.
— E não faço a mínima questão de conhecer, se quer saber — retrucou com um sorriso irônico.
Tentou passar por ele para retornar ao salão de jogos, mas a segurou pelo braço. Refletido nas íris azuis dela, ele viu um breve momento de vulnerabilidade e desejou que elas fossem sempre assim. Ele se sentiria menos intrigado em relação àquela mulher.
Como que recobrando a consciência, desceu o olhar até a mão que segurava a dobra de seu braço.
— Desculpa se te ofendi — disse, soltando-a. — É claro que eu estava muito puto por ter sido expulso, mas não era minha intenção.
— Esse é o pedido de desculpas mais hipócrita que existe, sabia? “Desculpa se te ofendi” — ela debochou, repetindo suas palavras com uma voz grossa forçada. — Como se a errada da história fosse a pessoa que se ofendeu. Se você não for assumir que falou merda, não precisa se dar o trabalho.
Sem reação, a assistiu sumir pelo corredor.
De todas as respostas que imaginava receber, ele não esperava que ela dissesse que seu pedido de desculpas estava errado. Até mesmo um “vai se foder” seria melhor do que aquilo. Pelo menos não o obrigaria a inventar que Merche estava passando mal para ir embora e passar o resto da noite refletindo sobre o assunto.
E, pior, chegar à conclusão de que fazia algum sentido.
“Desculpa se te ofendi” não expressava mesmo um verdadeiro arrependimento.


¹ Tocino de cielo
É uma sobremesa feita de gema de ovo caramelizada e açúcar, de cor amarela intensa, originária de Jerez de la Frontera.


Capítulo 6

— Eu quero a repetição desse lance.
A mando de , o operador de imagem imediatamente se pôs a gerar o melhor ângulo da disputa de bola entre o meio-campista do Barcelona e o lateral esquerdo do Zaragoza.
Com o consentimento do árbitro, o jogo continuou. revezava o olhar entre os dois monitores que estavam em sua frente atentamente. O de cima mostrava o Barcelona partindo para o ataque, se beneficiando de que a defesa do time visitante estava completamente aberta. Sem outra alternativa, o goleiro do Zaragoza tentou desarmar o adversário, mas acabou por derrubá-lo na grande área.
— Rojas, me escuta — falou ao apertar o botão que abria sua comunicação com o árbitro principal da partida. — Espera um pouco que estou verificando uma possível falta do Roca em cima do Benito.
Quando a repetição da jogada anterior apareceu no monitor de baixo, ela se concentrou em rever o contato entre os dois jogadores algumas vezes.
— Esquece. Ele já expulsou o goleiro — Marc Aguilera, que ocupava a cadeira de assistente de árbitro de vídeo à sua esquerda, avisou.
¡Joder! xingou e voltou a pressionar o botão verde. — Rojas, sugiro que você reveja o lance anterior antes de autorizar a cobrança do pênalti.
— Não foi falta, — Alberto Rojas respondeu, fazendo-a respirar fundo.
— Estou te avisando. É melhor rever o lance.
Ela cruzou os braços e se recostou na cadeira, enquanto assistia ao desenrolar da confusão pelo monitor superior.
Alberto se afastou dos jogadores e desenhou, no ar, o retângulo com que os árbitros anunciavam a revisão do lance no monitor localizado na beira do campo. Depois de uma análise rápida, sem se comunicar novamente com a sala da arbitragem de vídeo, ele assoprou o apito, apontando na direção em que Roca, ao disputar a bola com Benito, havia cometido a falta identificada por .
— Isso vai dar uma polêmica e tanto. — Marc riu levemente quando os jogadores do Barcelona, indignados com a revogação do pênalti favorável a eles e da expulsão do goleiro do Zaragoza, cercaram Alberto Rojas.
— Estou apenas fazendo meu trabalho — foi tudo o que disse antes de voltar sua atenção completamente para o reinício da partida.
Em poucos minutos, o confronto foi encerrado com um empate por um a um que colocava o Barcelona dois pontos atrás do Madrid, fazendo o time perder a liderança que vinha sendo compartilhada com o clube da capital espanhola desde a primeira rodada do campeonato.
Ao sair no corredor do Estádio de Les Corts, pôde ouvir a torcida se manifestando contra a arbitragem. Sentiu o olhar de Marc sobre si, mas não o retribuiu até os dois estarem a sós no vestiário.
— O Rojas ficou puto com a sua interferência, né? — Marc comentou aos sussurros, olhando na direção da porta. — Nem falou mais com a gente até o final do jogo.
— Eu já não tinha gostado da maneira como fui tratada na primeira vez que fui VAR dele. Se esperava que eu abaixasse a cabeça, sinto muito.
— Tenho que te parabenizar. Você é a primeira pessoa que vejo enfrentá-lo.
— Só por que é o árbitro mais antigo da primeira divisão? Eu respeito muito a experiência do Rojas, mas também tenho condição de tomar decisões importantes. Sou, inclusive, uma dos poucos árbitros FIFA desse país.
Marc abriu a boca para respondê-la, mas a fechou no mesmo instante em que a maçaneta da porta foi forçada.
— Você quer me foder, ? — Alberto Rojas ralhou ao adentrar o vestiário seguido pelos árbitros assistentes. — Era melhor ignorar aquela falta do que anular uma expulsão. Agora, vou ter que aturar todo mundo metendo o pau em mim.
o observou desprender o aparelho de comunicação da cintura e deixá-lo sobre o banco com a maior naturalidade do mundo, como se tivesse acabado de fazer um comentário qualquer sobre a aproximação de uma frente fria.
— Você preferia ter tomado uma decisão errada? — ela questionou, sem disfarçar a perplexidade. — Pensei que o VAR tivesse sido criado justamente para auxiliar a arbitragem em situações como essa.
Alberto a encarou em silêncio por alguns segundos, e soltou um risinho.
— O que você quer é virar notícia, né?
— É melhor falar direito comigo. Não te desrespeitei em momento nenhum.
— Vai me denunciar por machismo? Vá em frente! — ele rebateu com um sorriso debochado.
— Era só o que me faltava. — riu, incrédula. — Escuta uma coisa, Rojas… — começou, se aproximando dele, mas Marc tocou seu braço.
— Deixa para lá, . Não vale a pena.
— Pode ficar tranquilo que não vou brigar com ninguém — ela falou, se esquivando dele para se aproximar de Alberto. — A única coisa que fiz foi exercer minha função, Rojas. Nada além disso. Se você não gostou, é só fazer uma reclamação para o Comitê e pedir para não voltarem a nos escalar para a mesma partida. Eu também não faço a mínima questão de ser sua VAR novamente.
Dito isso, pegou sua mochila e bateu a porta com força ao se trancar em uma das cabines para trocar de roupa.

• • •

Por força do hábito, a primeira coisa que fez quando chegou ao vestiário foi sacar o celular do bolso e colocar uma playlist para tocar no modo aleatório. Logo identificou as primeiras notas da música que fazia parte do primeiro álbum de Merche e sorriu consigo mesmo. Te daré mis sueños¹ sempre seria uma de suas favoritas, apesar de não ter tido grande apelo nacional e mundial se comparada aos trabalhos mais recentes dela.
Enquanto ele trocava a roupa casual pelo uniforme de treino, sua voz ecoou pelo ambiente vazio, acompanhando os versos compostos por uma jovem e apaixonada Merche que vivia seu primeiro grande amor na época. Por um momento, até sentiu falta do comentário engraçadinho que Juancho certamente faria sobre casar com ela futuramente se estivesse presente.
O restante do time estava de folga, descansando da vitória do dia anterior, mas não tivera a mesma sorte. Conforme Catalina Santamaría havia solicitado a Roberto Cifuentes, ele participaria do treino do time feminino.
Depois de calçar os tênis de corrida, ele encerrou a música e deixou o celular dentro do armário. Saiu no corredor, levando as chuteiras consigo, e seguiu no sentido contrário ao que estava acostumado a ir diariamente. A cada passo que dava, uma confusão de vozes femininas se tornava cada vez mais próxima. Antes mesmo de alcançar a porta do vestiário, ele viu algumas jogadoras saindo de lá de dentro e reconheceu Lara entre elas.
Ao vê-lo, ela parou no meio do corredor, ficando para trás em relação ao resto do grupo.
— Animado? — Lara perguntou quando ele a alcançou, começando a caminhar ao seu lado pelo corredor.
— Muito — respondeu com um sorriso de canto. — Não vejo a hora de ver se você é mesmo essa atacante toda que o Kiko falou.
Ela soltou uma risada debochada.
— Você não perde por esperar, tío.
No campo em que o time feminino costumava treinar, Lara largou as chuteiras perto do banco de reservas. Cumprimentou, com um beijo no rosto, uma mulher que vestia o uniforme da comissão técnica e foi se juntar às companheiras de time.
— Bom dia, . Sou Irene Navarro, a preparadora física. — A mulher caminhou na direção de e apertou sua mão. — O Serrano está finalizando uma reunião com os outros membros da comissão e me pediu para te recepcionar. Vamos começar o aquecimento com uma corrida em torno do campo, vale?
— Perfeito.
Ele deixou as chuteiras ao lado das de Lara, que eram do mesmo modelo das suas, mas de cores diferentes, e acompanhou Irene até o centro do campo.
— Garotas — ela levantou a voz, impondo silêncio ao alvoroço que envolvia o time —, como o míster² avisou de antemão, vamos ter a presença do no nosso treino de hoje.
— Tem certeza de que isso vai dar certo? — disse uma das jogadoras.
— Por que não daria certo, Úrsula? — Como se fosse uma professora sendo confrontada por um aluno, Irene cruzou os braços.
olhou para a que, posteriormente, descobriria ser meio-campista não apenas do C.D. Villaverde, mas, também, da Seleção Espanhola.
— Não sei se esse é um ambiente muito recomendado para homens — ela respondeu, debochada, encarando-o de volta.
As palavras de Úrsula provocaram risadas entre as jogadoras. soltou um risinho nasalado ao ver Lara encolher os ombros, se eximindo de tomar partido a seu favor.
— Tudo bem. — Ele coçou o queixo, sentindo a barba por fazer. — Tenho que admitir que essa foi merecida.
— Tenho certeza de que vai mudar de ideia depois de hoje, . — Irene deu alguns passos para trás, fazendo sinal para que eles a acompanhassem. — Vamos ao trabalho, garotas! E garoto — acrescentou com um ar divertido.
À medida que o grupo contornava o campo em um trote leve, olhava em volta, reparando melhor no espaço de treinamento do time feminino. Se lembrava de ter treinado ali umas duas ou três vezes, em sua primeira passagem pelo C.D. Villaverde. Se sua memória estava boa, aquele era o campo em que os jogadores odiavam treinar. Ele era idêntico ao que era reservado para o time masculino, mas seu posicionamento fazia com que a incidência do vento tornasse o simples ato de chutar a bola em uma direção determinada algo bastante trabalhoso. Depois de uma volta completa, Irene os guiou até o centro do campo, onde cones e outros obstáculos estavam enfileirados na grama, e pediu que se dividissem em quatro grupos para a realização de exercícios de aquecimento.
O técnico Alfonso Serrano chegou algum tempo depois e, após cumprimentar , apresentou-lhe Blanca Méndez, sua auxiliar, e Manuel Torres, o preparador de goleiras. Explicou também que o trabalho daquela manhã não seria muito intenso, visto que parte das jogadoras retornava dos compromissos com suas seleções nacionais e, o restante, de alguns dias de folga.
— Você também é patrocinada pela Nike? — perguntou a Lara, sentando-se ao lado dela no banco para calçar as chuteiras.
— Desde o ano passado. Depois da Copa, mais precisamente.
— Quem era o seu patrocinador antes?
— Eu mesma — ela respondeu, rindo. — Na verdade, faz alguns anos que uso as chuteiras da Nike, porém tirava o dinheiro do meu próprio bolso.
a encarou, mas Lara não percebeu seu espanto porque retornou ao campo em seguida. Ele terminou de amarrar os cadarços ainda pasmo. Lara era a camisa nove do time, a artilheira. Como era possível que, há pouco mais de um ano, ainda não tivesse um patrocinador?
Na segunda parte do treino, Alfonso pediu que eles formassem dois grandes círculos. Ao se aproximar do grupo de Lara, foi empurrado para o centro e não ofereceu resistência em começar o exercício com a função de roubar a bola, enquanto as jogadoras a tocavam entre si. Foi uma missão difícil, já que todas elas estavam empenhadas em vê-lo correr de um lado para o outro sem conseguir tocar na bola, mas o clima se tornou tão descontraído que até ele acabou entrando na brincadeira.
A algazarra foi interrompida quando o som do apito de Alfonso Serrano ecoou pelo campo. Ele anunciou que um jogo-treino seria disputado em metade do campo e Blanca começou a distribuir os coletes.
— Você fica no time sem colete, — ela informou.
— Ah, não! — Lara exclamou, descontente. — Quero ficar no time contrário ao dele.
— Quer trocar com a Gallardo, então? — Alfonso propôs, referindo-se a outra das centroavantes do time. — Não vou perder a oportunidade de ver como seria uma dupla de zaga com a Eline e o .
Lara não pensou duas vezes antes de pedir o colete amarelo de Carolina Gallardo e vesti-lo. Quando ela exibiu um sorriso desafiador, apenas riu, meneando a cabeça de um lado para o outro.
Durante os primeiros minutos do jogo-treino, se manteve cauteloso, estudando o estilo de jogo das mulheres que o rodeavam. Além de não saber o que, exatamente, era esperado dele naquele treino, tinha medo de não saber dosar a força de uma entrada, por exemplo, e acabar machucando alguém. Lara, contudo, parecia disposta a tirá-lo de sua zona de conforto.
Diante da pressão que recebia dela em tentativas constantes de canetas e chapéus, se viu obrigado a jogar com mais intensidade para ajudar a proteger o gol de Malena Montero. Por sorte, ele e Eline Bakker — zagueira holandesa que sabia ter um enorme destaque mundial, pois escutara falar dela anteriormente — logo criaram uma conexão capaz de bloquear a maioria das aproximações de Lara. Toda vez que ela conseguia chutar a gol, no entanto, a bola caía na rede.
— Ótimo trabalho, pessoal! — Alfonso falou ao encerrar o treino. — Venham! Vamos nos juntar para uma foto.
Só então notou a presença de um fotógrafo do clube. Posou entre as jogadoras no centro do campo e fez questão de cumprimentar cada uma delas depois.
Antes de ir embora, ficou conversando por algum tempo com Alfonso Serrano, que lhe contou que aquela era a terceira temporada em que estava no comando do time feminino do C.D. Villaverde. Assim como a equipe masculina, o maior objetivo para o ano seguinte era conquistar uma das vagas reservadas aos clubes espanhóis na Copa da Europa. Se eles conseguissem terminar a temporada ao menos na terceira posição da Liga Espanhola, seria a primeira participação do time em uma competição internacional.
Depois de se despedir dele, caminhou até o banco de suplentes. Lara estava sentada, tomando água e conversando com Úrsula Vargas e Malena Montero, e sua aproximação atraiu a atenção das três.
— E aí, ? — Úrsula falou. — Ainda pensa que futebol não é coisa de mulher?
Ele riu, se abaixando para pegar os tênis na grama.
— Essa nunca foi a minha opinião. Vocês mandam bem para caramba. Se bobear, jogam futebol melhor do que eu — acrescentou espirituosamente.
— Para garotas, até que jogamos bem, né? — Lara brincou.
— Você que está dizendo — retorquiu. — Aliás, não acha que faltou um pouquinho de fair play da sua parte? — questionou, indicando o campo atrás de si.
— Da sua também, quando falou daquele jeito sobre a minha amiga — ela retrucou, se pondo de pé.
Malena e Úrsula riram e saíram andando, deixando-os para trás.
— Então quer dizer que isso foi uma vingança? — ele perguntou, cruzando os braços.
— Eu diria que foi uma resposta.
Os dois foram caminhando lado a lado pela lateral do campo, retornando para o prédio.
— Pensei que a fosse a única de vocês que me odiasse, mas, pelo visto, você também.
— Eu não te odeio, — Lara respondeu, soando sincera. — Não te conheço muito, mas acho que é uma boa pessoa. Só precisa se informar mais antes de sair falando besteira.
— Mas a odeia, né? — riu levemente, se lembrando do olhar rude de .
— Você tem que concordar que pediu por isso.
— Na primeira vez que tentei falar com ela, durante o jogo, ela já não foi muito simpática comigo.
— Quanto a isso, acredito que não é nada pessoal. A é obrigada a ser um pouco dura para ser respeitada. Até eu tenho que ser assim às vezes, e olha que não trabalho diretamente com tantos homens quanto ela.
— Você está no Villa há quanto tempo? — questionou, curioso por conhecer um pouco da trajetória de Lara no futebol.
— Praticamente a minha vida toda. No time principal, estou há catorze anos, mas também joguei nas categorias de base no início dos anos 2000.
— Catorze? — ele rebateu, espantado, já que possuía treze anos de futebol profissional e Lara parecia ser alguns anos mais nova. — Quantos anos você tinha?
— Quinze — ela respondeu, rindo, quando os dois pararam em frente à porta do vestiário. — A oferta de jogadoras não é tão grande como no futebol masculino, ainda mais naquela época. As que têm uma boa formação costumam subir para o time principal bem novas.
— Para ser sincero, eu nem sabia que a gente tinha categorias de base femininas.
— O Villa foi um dos primeiros clubes a ter, mas, depois que a Oro Claro faliu e entramos na crise financeira que você também pegou, a primeira coisa que a diretoria da época cortou foram os times de base femininos — Lara explicou. — Você consegue imaginar um clube do tamanho do Villa sem um futebol de base masculino?
— De maneira alguma.
— O futebol masculino não é descartável como o feminino. É muito mais lucrativo — ela constatou, erguendo os ombros de maneira resignada. — Mas foi com isso que tivemos que lidar por dez anos, até o Cifuentes assumir a presidência e ser convencido pela Catalina Santamaría a investir no futebol feminino. Foram dez anos sem formar jogadoras para reforçar nosso time e, também, sem grandes contratações. E o time principal só se manteve firme e forte porque fomos muito perseverantes, viu? Por anos, a gente foi conciliando o futebol com outras profissões para não morrer de fome.
— Então você tem outra profissão?
— Sou formada em Psicologia. Não descarto a possibilidade de me dedicar à área no futuro, mas, atualmente, estou conseguindo viver do futebol. Tenho até patrocínio agora. — Lara indicou as chuteiras em seus pés com um sorriso divertido nos lábios.
, no entanto, não viu muita graça no comentário dela. Ele não conseguia sequer se imaginar jogando futebol sem ser muito bem pago por isso. Para ele e a grande maioria dos jogadores que conhecia, ter o salário atrasado por um mês já poderia ser o suficiente para que eles não dessem o melhor de si ao entrarem em campo. Conciliar a carreira de futebolista com um curso universitário, então, era algo que jamais havia passado por sua cabeça.
— Como vocês aguentam isso? — ele proferiu as palavras que pairavam em sua mente.
— Sabe, , quando escutamos que futebol não é coisa de mulher, não é exatamente com isso que ficamos revoltadas. Isso é uma bobagem! — Lara abanou o ar, mostrando a pouca importância que dava para aquela afirmação. — O problema é que já estamos exaustas de implorar pelas condições básicas para podermos entrar em campo e jogar bola com a cabeça tranquila, então é impossível ter tolerância. Você consegue me entender?
— É claro que entendo — disse com pesar. — Mas a situação do futebol feminino vem melhorando, né? Quer dizer, ano passado se falou bastante da Copa do Mundo.
— A Copa do ano passado causou bastante comoção mesmo. Pena que a gente caiu nas oitavas. — Ela fez uma careta descontente. — Mas foi a segunda Copa que conseguimos nos classificar. Na primeira, fomos embora sem nenhuma vitória. Então conseguir passar da fase de grupos não foi tão ruim assim.
— Pelo que me lembro, vocês foram eliminadas pelos Estados Unidos, né? Eles estão mais avançados no futebol feminino, então é compreensível.
— E ainda consegui fazer um gol de voleio nelas — Lara disse com orgulho. — Procura na internet depois. Você vai ficar de queixo caído.
— Vou procurar mesmo. — esboçou um sorriso. — Até que hoje foi divertido. A gente bem que podia fazer um jogo-treino entre os dois times qualquer dia desses.
— Quem perder, limpa as chuteiras do outro por uma semana — Lara propôs, se encaminhando para o vestiário.
— Fechado — ele respondeu, rindo.
— Até quinta, !
fitou a porta por onde ela sumiu e soltou um longo suspiro. Por fim, seguiu seu caminho rumo ao vestiário masculino.

• • •

, quer beber alguma coisa enquanto esperamos o descolorante agir?
olhou, através do espelho, para a mulher que tinha uma metade dos fios de cabelo tingida de preto e, a outra, de azul, e negou com a cabeça.
— Não precisa se preocupar, Olga. Eu mesma pego daqui a pouco.
— Fique à vontade, então. — A cabeleireira sorriu cordialmente, jogando as luvas descartáveis na lixeira. — Vou atender outra cliente enquanto isso.
Ao se ver sozinha, apontou a câmera traseira do celular para o espelho e registrou a situação em que se encontrava naquele instante, envolta por uma toalha e com as raízes do cabelo enrijecidas pelo produto. Abriu o grupo de WhatsApp que tinha com as amigas para enviar a foto, mas um áudio de Lara que possuía quase dez minutos de duração chamou a sua atenção.
Sem conter a curiosidade, pegou os fones de ouvido sem fio que estavam em um dos bolsos da mochila aos seus pés e se levantou da cadeira. Iniciou o áudio enquanto cruzava o salão de beleza, que dispunha de uma decoração retrô e estava praticamente vazio, se comparado ao movimento dos fins de semana.
O áudio de Lara se tratava de um relato da participação de no treino de mais cedo do time feminino do C.D. Villaverde. Subindo a escada que levava ao bar que ficava no segundo andar, nem notou que rolou os olhos ao ouvi-la mencionar o zagueiro.
— Me vê uma xícara de café, por favor. Sem açúcar — ela pediu ao funcionário atrás do balcão, sentando-se em um banco.
O rapaz não demorou a trazer seu pedido. esboçou um sorriso em agradecimento, enquanto escutava Lara descrever como parecia desconfortável no começo do treino, já que nenhuma das jogadoras agiu como se o time estivesse recebendo a visita de um ídolo — e ele, de fato, era algo desse nível para algumas delas, que eram verdiblancas desde o berço.
Lara contou também sobre ter deixado a humildade de lado durante o jogo-treino, como havia combinado com . Normalmente, ela não insistiria em tantos dribles, canetas e chapéus, já que não era um estilo de jogo muito respeitoso com o adversário, mas as duas pensaram que seria divertido. lamentou não ter presenciado o zagueiro que não aceitara de bom grado ser expulso por uma mulher sofrendo para marcar outra.
Foi basicamente isso que aconteceu — Lara dizia no final do áudio. — , se o tentar se desculpar novamente, acho que você deveria escutá-lo. A gente conversou depois do treino e ele pareceu comovido em descobrir um pouco sobre a realidade do futebol feminino. Claro que você não é obrigada, mas acho que não custa nada.
segurou o pires, equilibrando a xícara, e foi se sentar em uma mesa afastada do balcão para que pudesse enviar um áudio em resposta com mais privacidade.
— Você bota muita fé nas pessoas, Larita — ela começou, aproximando o celular dos lábios. — Não que isso seja uma coisa ruim. Eu gostaria de ser assim também. Às vezes, é um pouco exaustivo ser tão desconfiada em relação a todo mundo — disse com bastante honestidade. — Mas se comover depois de ser colocado contra a parede é muito conveniente, né? Sinceramente, estou sem paciência para lidar com o . Ainda mais depois do showzinho que Alberto Rojas deu ontem. Nem consegui dormir direito de tão furiosa que essa história me deixou. — Bufou, sentindo-se irritada apenas com a lembrança. — Até marquei um horário com a Olga e vim retocar a raiz. Saindo daqui do salão, vou fazer umas comprinhas. Estou precisando cuidar de mim e espairecer um pouco.
aproveitou a deixa para enviar a foto que havia tirado, mesmo que a intenção, inicialmente, fosse anunciar o que estava fazendo em seu dia de folga. Terminou de tomar o café e deixou a xícara vazia sobre o balcão antes de retornar para o andar térreo do estabelecimento. Se sentou novamente na cadeira giratória ao mesmo tempo em que ouviu o celular apitar.
“Amiga, acho que você está precisando de mais uma coisa. Cadê aquele barbeiro bonitão que trabalha aí?”, dizia Carla em uma mensagem de texto.
deixou um risinho escapar diante da insinuação dela e respondeu em seguida, dizendo que não o havia visto até aquele momento.
“Mas você tem o número dele, não tem? Então manda bala!”, Carla respondeu em seguida.
Ela ficou encarando a tela do celular por um instante, pensativa, mas voltou à realidade com a aproximação de Olga.
— Vamos lavar o seu cabelo, ?
Acompanhando a cabeleireira até o lavatório de cabelo, examinou o ambiente à sua volta.
— Por onde o Ibai anda? — ela se viu perguntando quando não encontrou quem seus olhos buscavam. Antes de se acomodar no assento, viu os lábios de Olga se curvarem em um sorriso malicioso.
— Acho que foi almoçar. Logo, logo ele aparece aí — ela respondeu, começando a enxaguar seu cabelo. — Está querendo repetir a dose?
— Quem sabe? — rebateu, optando por não entrar em detalhes.
Fazia alguns anos que Olga era sua cabeleireira, então tinha intimidade suficiente com ela para falar de sua vida amorosa. No entanto, Olga era também uma dos sócios-fundadores do empreendimento que mesclava salão de beleza, barbearia e bar. Como Ibai Moraza era um dos barbeiros, não sabia qual era o nível de amizade dos dois, mas preferia manter a discrição.
Meia hora depois, ela estava com o cabelo e a autoestima revigorados. Como se o destino estivesse movendo seus pauzinhos, encontrou Ibai na saída do salão, conversando com outro barbeiro. Os cumprimentou com um aceno de cabeça, mas passou direto por eles e saiu para a rua. Antes de colocar o capacete e subir na moto, ela viu Ibai a observando do outro lado do vidro. Achava impressionante que ele ficasse bonito até mesmo vestindo a camisa e a calça social com suspensório que compunham o uniforme do salão.
Sem pensar muito, adentrou o estabelecimento novamente.
— Você, por acaso, vai estar livre mais tarde? — perguntou, fitando os olhos castanhos que a encaravam com fascínio.

• • •

estranhou quando escutou a porta de casa abrir e fechar mais cedo do que esperava. Olhou por cima do encosto do sofá e viu Mercedes surgir na sala de estar. Ela vestia um conjunto de moletom cinza e seu cabelo estava preso em um coque bem no alto da cabeça. O cansaço decorrente de um dia de trabalho intenso estampava seu rosto.
— Chegou cedo hoje — ele comentou, voltando a deitar a cabeça na almofada.
— Finalmente conseguimos fechar a coreografia. — Mercedes deixou a bolsa esportiva no chão, ao lado da poltrona em que Candela estava esparramada, e parou para acariciar os pelos da gata. — Por favor, me diga que a Teresa deixou alguma coisa pronta para o jantar. Meu estômago está até roncando de tanta fome.
— Tem frango com legumes na geladeira.
— Acho que vou tomar uma ducha antes. — Ela se jogou preguiçosamente no sofá.
— Então vai logo! — a cutucou na cintura. — Não sou obrigado a aguentar seu desodorante vencido.
— Confere aqui para mim se está vencido mesmo.
Mercedes se aproximou, levantando o braço, e ele a empurrou em meio a risos.
— Pode me dar licença? Estou tentando assistir à série.
— Nem era para você estar assistindo sem mim — ela reclamou, jogando uma almofada nele, e se levantou.
— Você vai pirar com o que acontece com o Charles.
— Nem se atreva a me dar spoiler!
ouviu os passos de Mercedes se distanciarem, subindo a escada, ao mesmo tempo em que sentiu qualquer dúvida que ainda tivesse sobre seu relacionamento com a irmã estar estremecido desaparecer como em um passe de mágica. Desde o dia em que ela saíra em defesa de , eles quase não vinham tendo oportunidade de conversar, já que o ocorrido havia coincidindo com o início dos ensaios para a apresentação que Merche faria no Latin American Music Awards.
Quando os créditos do episódio surgiram na tela, foi até a cozinha beber um copo de água. Estava apoiado na pia, pensativo, quando Mercedes passou pela porta de banho tomado e vestindo um pijama de inverno. Com o início do outono, as noites começavam a se tornar cada vez mais frias.
— Vi uma notícia de que você treinou com o time feminino do Villa hoje — ela comentou, abrindo a geladeira. — Que história é essa?
— Foi meio que um castigo. — soltou um risinho nasalado. — Quer dizer, a ideia foi da diretora de futebol do time feminino. Acredito que a intenção dela foi me dar uma lição. Já para o Cifuentes, foi mais uma jogada de marketing.
Mercedes franziu o cenho, o encarando, antes de colocar o pote que continha sua janta no micro-ondas.
— Com que intenção?
— Sei lá. Talvez mostrar que o Villa é um clube que não passa a mão na cabeça de jogadores machistas.
— Errada, essa postura não está, né?
respirou fundo e soltou o ar lentamente, encarando o piso da cozinha. O microondas apitou e o som de Mercedes colocando a comida em um prato e indo se sentar à mesa foi o único que preencheu o cômodo por um instante.
— Você acha mesmo que sou machista? — Ele deixou o copo vazio na pia e puxou uma cadeira para se sentar também.
— O que você disse sobre a árbitra foi machista — Mercedes pontuou.
— Ela tem até um apelido entre alguns jogadores, Merche. La princesa enfadada. Estou errado de pensar que esse não é um ambiente para mulheres?
— Você não chama ela assim, né? — Ela arregalou os olhos, horrorizada.
— Claro que não — respondeu imediatamente. — Mas imagina o que mais devem falar dela! Os caras podem ser bem escrotos às vezes. Se fosse você ou a Lucía, eu não ia gostar de saber que uma irmã minha está exposta a isso.
— Entendi o que você está querendo dizer, mas presta bastante atenção. — Mercedes deixou o prato de comida de lado e se voltou para ele. — Mulheres não são bonequinhas de porcelana que precisam de cuidados. Se ela é árbitra, deve estar acostumada com o ambiente do futebol. Ou, no mínimo, está disposta a encarar isso. Você ajudaria muito mais repreendendo seus coleguinhas escrotos do que dizendo que ela está no lugar errado.
a fitou silenciosamente, refletindo sobre aquelas palavras e tudo que havia escutado de Lara mais cedo.
— Acredita em mim. Sei por experiência própria como é difícil trabalhar em um meio que é dominado pelos homens — diante de sua falta de palavras, ela continuou. — Mulheres têm mais espaço na indústria musical do que no futebol, mas eu também sofri muito na mão de produtores. Vi muitos artistas que são homens tendo uma trajetória muito mais descomplicada do que a minha. Então posso imaginar que, para essa árbitra, as coisas não devem ser fáceis. Tudo o que ela não precisa é de alguém que diga o que ela tem que fazer ou deixar de fazer. Você só tem que respeitar o trabalho dela, assim como respeitaria se fosse um homem apitando o jogo. Nada além disso.
— Certo. Eu acho que entendi — disse, coçando a nuca. — No fundo, eu só fiquei irritado com a derrota e por ter sido expulso. Acabei descontando nela a minha frustração, falando essa merda.
— Agora, você consegue enxergar que foi um babaca?
— É, eu fui um babaca — ele admitiu.
— Sei que não é tão simples de entender, porque a gente teve uma criação muito machista. O importante é você estar aberto a melhorar.
— Prometo que vou tentar. — esboçou um sorriso cansado.
Mercedes terminou de comer e se pôs de pé.
— Te amo, feo. — Ela o beijou no testa antes de ir lavar a louça suja.
— Quer assistir à nossa série? — ele questionou, olhando para ela sobre o ombro. — Eu vejo de novo os episódios que você ainda não viu.
— Só um episódio. Tenho que estar no aeroporto bem cedo amanhã.
— Já está tudo certo para a apresentação no Latin AMA?
— Graças a Deus! — Mercedes exclamou, secando as mãos com o pano de prato. — Só estou um pouco nervosa de lançar o novo single assim, numa apresentação ao vivo.
se levantou e a acompanhou para fora da cozinha.
— Nervosa por quê? Aposto que a música é incrível.
— Ainda não ouviu?
— Não. Você não me mostrou — ele acusou, fazendo-a tapar a boca com uma das mãos, com uma expressão culpada.
— Vou pegar meu celular — Mercedes avisou antes de subir a escada a passos apressados.

• • •

não sabia muito sobre a vida pessoal de Ibai Moraza, apenas que ele havia deixado Pamplona aos dezoito anos para buscar emprego em Madrid e tinha dois filhos — um rapaz de vinte e poucos anos e uma adolescente. Ibai também era recém-divorciado quando o conheceu, então não era como se estivesse interessado em se abrir para um novo alguém. Para , que ainda se recuperava da sensação de sufocamento do final de seu relacionamento de mais de sete anos com Javi, estava perfeito.
Apesar da noite incrível que passaram juntos cinco ou seis meses antes — não lembrava ao certo —, ela não o havia procurado novamente. Quando Ibai se aproximou e a beijou pela primeira vez naquele segundo encontro, enquanto os dois conversavam no balcão do bar, quase se arrependeu por não ter feito isso antes.
— Quer ir lá para casa? — ele perguntou ao pé de seu ouvido, após alguns beijos trocados sob a luz baixa do local.
sentiu os pelos da nuca se arrepiarem quando o hálito fresco bateu contra a pele de seu pescoço.
— Pode ser na minha dessa vez.
Ela sorriu, pendurando a bolsa no ombro ao mesmo tempo em que se levantava do banco.
Os dois saíram do bar e caminharam pela calçada sem nenhuma pressa, já que Ibai falou uma besteira qualquer e eles logo engataram um papo animado. Conversar com ele era muito fácil. Só naquela noite, eles haviam discutido sobre cervejas artesanais, cinema e vida extraterrestre. também costumava se divertir muito com os amigos, mas acabou se dando conta de como estava precisando sair com alguém que a fizesse fugir um pouco da realidade.
Depois de percorrerem os três quarteirões que separavam o bar do prédio de , eles adentraram a portaria aos risos. Ela até tapou a própria boca para abafar a risada que se sobressaiu no silêncio, enquanto os dois subiam a escada.
Assim que entraram no apartamento, Ibai a puxou para um beijo mais urgente do que os que haviam trocado em público. correspondeu de imediato, enfiando as mãos dentro da jaqueta dele para incentivá-lo a libertar os braços tatuados.
Conforme os dois se despiam de maneira desajeitada, em meio a risadas abafadas pelos beijos que trocavam, as peças de roupa foram formando uma trilha que levava até o quarto de . Ela se deixou cair na cama e fechou os olhos, se deleitando com as sensações que os lábios de Ibai, ao descerem por seu corpo, despertaram.


¹ Te daré mis sueños
Música fictícia.

² Míster
Do inglês “mister”, que, literalmente, significa “senhor”. No espanhol, termo bastante usado para se referir a treinadores, especialmente de futebol.




Continua...



Nota da autora: Oi oi, gente! Imagino que vocês estejam sedentas por mais interação entre os nossos PPs (eu também estou hehe), mas espero que tenham curtido o capítulo!
AMEI desenvolver um pouquinho mais sobre o time feminino do Villa, acho que foi minha parte favorita. O foco da PP não é arbitrar no futebol feminino, mas acho que esse segmento acaba sendo importante pra entender o cenário das mulheres no futebol, então vai ser um dos desdobramentos da história. E será que o Pablo conseguiu entender de verdade que o que ele disse não foi bacana? Veremoooos!

Pra quem tá chegando agora, essa fic é baseada em 02. Wrapped Up (do ficstape do Never Been Better, do Olly Murs), mas possui um universo original. Se tiver curiosidade de conhecer um pouquinho mais sobre esse universo, é só clicar em “Regra Cinco Wiki” ali embaixo. É um wiki sobre a fic que vou atualizar aos poucos, até ela ser finalizada.

Pra ficar por dentro de todas as novidades sobre a fic em primeira mão, é só clicar no ícone do Facebook e entrar no grupo. Até o próximo capítulo! 💛💖



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