Roads Not Taken

Finalizada em: 30/01/2021

Capítulo 1

podia ouvir um som agudo ao fundo, contínuo e constante. Estava ficando cada vez mais alto, como se chegasse cada vez mais próximo dele.
- Fico me perguntando como esse apito do caralho ainda não matou alguém de ataque cardíaco. – Uma voz sonolenta e rastejada soou acima de .
- Talvez já tenha e nunca saberemos. – respondeu, já sentando na cama.
Sua cabeça latejava. Enquanto Fred pulava de sua cama para chegar ao chão, olhou de relance para o relógio em sua cabeceira. Eram quatro horas e meia da manhã, pontualmente. Encarou seu redor e as coisas pareciam estar ocorrendo em câmera lenta. Os capitães, com expressões de cansaço e irritação, saiam de seus beliches e já colocavam a farda, em um movimento automático. Alguns, os que pareciam mais indispostos, coçavam os olhos e bocejavam, enquanto outros já arrumavam a cama. Tudo acontecia tão devagar que as cenas se passavam como imagens.
- Vamos, . Coloca logo a farda que eu não quero ficar sem almoço. – Fred parecia estar particularmente irritado hoje. Sua voz era firme enquanto me encarava e colocava o cinto.
Num estalo, começou a colocar a calça e tudo voltou à velocidade normal.
- Acordou longe hoje?
- Acordei como se estivesse num sonho ainda. – sorriu discretamente ao falar.
- Calma que essa parte só começa depois que alguém acaba indo parar na ala hospitalar.
- Eu ouço barulho de dinheiro? – Colocou a mão no ouvido e juntou as sobrancelhas.
- Dinheiro? – O recém capitão a sua frente encarou os lados, procurando algo que nem sabia o que era.
- Dinheiro de uma aposta caindo na minha conta, você não está ouvindo?
Fred bufou, apoiando o pé na cama de e terminando de amarrar seu coturno.
- Eu nem falei o nome dela.
- Supera, capitão. – deu duas batidas nas costas de seu amigo. – A médica só ama a adrenalina... Assim como nós.
Um sorriso discreto surgiu sobre seu rosto. Uma sensação de que hoje seria um dia bom, afinal, era um dia mais próximo, desde que foram transferidos para essa base, do dia que iriam finalmente pilotar.


Meus saltos finos estalavam a cada passo que eu dava sob o asfalto liso. Respirei aliviada ao entrar no hangar, o calor fora da sombra estava insuportável e eu não precisava mais fechar meus olhos o máximo que dava para poder enxergar.
O lugar tinha um ar imponente, havia muita luz entrando sobre o pé direito alto. Naquele instante, metade do hangar estava ocupado por grandes mesas de metais e peças cobrindo-as. Uns cinco ou seis homens estavam em frente às mesas, mexendo em coisas que não me dei ao trabalho de reparar.
- Bom dia, . Como se sente hoje?
- Bom dia, Henry. – Sorri para o homem que me esperava em frente às escadas que levavam para o segundo andar. Ele logo se ofereceu para carregar a pilha de papel que eu segurava entre meus braços. – Posso perguntar o motivo de tanta felicidade?
- Aparentemente Madeline Harvey e um tal de “” chegaram aqui há uma hora.
- Está falando sério? Elijah confirmou?
- Sim, ele acabou de sair daqui. Veio me informar pessoalmente. – Ele abriu um grande sorriso enquanto subíamos as escadas.
Abri a porta de minha sala e Henry largou a papelada em cima da mesa e se acomodou em uma das cadeiras, apoiando seus pés na mesinha de centro. Sentei, ajeitando meu vestido antes, e olhei para Henry. Ele logo entendeu e retirou os pés. Apesar de ter seu próprio escritório, fazia meses que ele trabalhava na minha sala, talvez fosse um pouco de solidão. Éramos os únicos dois engenheiros fixos, então os outros vinham e saiam como passageiros de um voo, não mantínhamos muitas amizades que não só nós e Amélia.
Encarei-o por alguns segundos enquanto ele olhava a tela de seu celular. Henry tinha feições muito bonitas e sabia disso. Um maxilar definido, era alto, tinha um corpo esculpido que podia ser apreciado pela roupa social que fazia questão de vestir todos os dias, os olhos profundos, como de quem carrega muita história, e uma voz grossa, porém aveludada. Além das feições, ele também era agraciado pelo seu jeito. A vezes podia ser desastrado, mas seu charme nunca fez com que isso o atrapalhasse. Era um excelente mentiroso, nenhum sinal físico o fazia oscilar e as falas saiam com naturalidade. Demorei muito para começar a perceber que ele mentia descaradamente para não ter se meter em confusão.
- Sabe, se quiser uma foto, é só pedir.
- Não será necessário. – Dei uma leve risada e corei enquanto me dirigia até minha bolsa. – Hoje passaremos o dia todo juntos, meu querido Henry. – Peguei o meu crachá e pude ver o homem me olhar de relance, com um certo brilho e um pouco de luxuria talvez. – Hoje o dia será dedicado à manutenção. Vamos?
Sem esperar uma resposta, pendurei o crachá no pescoço, andei até a porta e desci até estar em frente ao que parecia um carrinho de golfe. Um dos soldados fardados já nos esperava no volante. Sentei no banco de trás e aceitei o café que o homem me ofereceu, esperando Henry, cuja animação parecia ter esvaído e não se deu ao trabalho de apertar o passo, mesmo sabendo que uma base militar presava muito pela pontualidade.
Eu não conseguia entender muito bem isso sobre Henry. Ele não era nem um pouco fã da pontualidade, da disciplina e da submissão. Eu não fazia ideia de como ele acabou chegando aqui, numa gigantesca base militar em conjunto com a força aérea. Eu não fazia ideia de nada da sua vida, na verdade. Isso aparentemente era muito comum por aqui, ninguém saber nada sobre ninguém e acaba funcionando muito bem, acaba sendo muito cômodo. Algo sobre não criar laços talvez? Não tenho certeza, ainda mais porquê os pelotões, as companhias e os batalhões parecem ter uma conexão entre si que jamais deixam um homem para trás. Honra? Dever? Ordem? Solidariedade? Também não sei. Ao certo que eu encarava aquilo como muito digno. Posso não ter nascido nos Estados Unidos e desenvolvido uma adoração à pátria, mas com certeza admirava um pouquinho isso de eles quererem se dedicar a proteger todo um país cheio de pessoas que eles nem conhecem, que eles nem sabem se são boas ou não, como um “fazer o bem sem olhar a quem”.
Vamos combinar também que, em contrapartida, esse fazer o bem era exclusivo para a nação estado-unidense, mas essa é uma outra longa e cansativa discussão.
Vagando entre os meus pensamentos, nem percebi que já tínhamos chegado na Ala B. Aceitei a mão que o soldado me ofereceu e desci do carrinho. Assim que levantei a cabeça, meu olhar cruzou com o de um outro soldado que vinha correndo em minha direção.
- Senhora ? – Ele parou na minha frente em posição de descanso, com o tronco totalmente ereto e a expressão de alguém que definitivamente não entrou no exército para brincar de enviar bilhetes entre pessoas. – A doutora Amélia Bennet está recrutando a senhora.
- Ela disse exatamente para quê?
- Suturar, senhora.
Eu dei uma risada alta e olhei para o soldado ao meu lado que havia oferecido a mão. Ele parecia tão sério e indiferente que minha risada foi sumindo aos poucos.
- Oh, você está falando sério.
- Sim, senhora. Ela avisou que é no leito 701, senhora.
- Você sabe que engenheiras não suturam, não sabe?
- Ela me disse que diria isso, senhora, então pediu para que eu te mandasse para um orifício obscuro.
- Ok, não dá para ter dúvidas de que foi Amélia que te enviou. – Olhei para trás e pude ver Henry assentir com a cabeça, concordando. - Por que outros enfermeiros ou soldados não fazem isso?
- Ela diz ser um caso especial, senhora, um caso para mãos firmes e que tenham cuidado com a aparência da cicatrização.
- Tudo bem. – Bufei, agora o motivo do atraso seria eu e não Henry. Dei de ombros e segui o soldado que agora me guiava.
- Por aqui, senhora.
- Você poderia, por favor, parar de me chamar de senhora? – Perguntei com um tom levemente ríspido.
- Sim, senhora. – Ele sequer prestou atenção no que eu dizia. Revirei os olhos e pude ouvir uma risada contida de Henry, que me seguia a passos rápidos.
- Você fica uma graça quando está brava.
- Não estou brava, Henry.
- Claro... Aposto que já está pensando na bronca que vai levar do nosso honroso Coronel Elijah.
- Você é ridículo, não acredito que já te elogiei para as pessoas.
Sem trocar mais nenhuma palavra, segui até o elevador que nos deixou num corredor com as paredes de concreto, porém com um chão tão branco e limpo que eu era capaz de ver meu reflexo. Aquela ala hospitalar era de dar um arrepio na espinha. Não conseguia parar de pensar nas atrocidades que já deveriam ter passado por estes corredores. De repente, um calafrio passou da ponta do meu salto até o último fio de cabelo. Estávamos literalmente a muitos palmos debaixo da terra, num lugar de concreto que mais parecia um labirinto, onde as salas continham arquivos confidenciais sobre assuntos que talvez o ser humano não acreditasse ser capaz de acontecer.
No mínimo curioso, convenhamos.
- Esperarei a senhora do lado de fora, junto ao senhor Henry Axel. – O outro engenheiro já ia abrir a boca para reclamar, queria entrar. Na verdade, no fundo, não queria ficar naquele corredor imenso, frio e bizarro com um homem que mais parecia querer atirar em sua cabeça. Foi prontamente interrompido por um soldado sem paciência alguma. – Ordens da doutora Bennet.
Antes de fechar a porta, pude observar um olhar de Henry curioso para ver quem estava dentro da sala e seu pé batendo no chão de maneira frenética, como quem já não estava com toda sua tranquilidade usual.
Sem nem ao menos olhar quem estava sentado na cama hospitalar, peguei o prontuário pendurado na parede, ao lado da porta, e comecei a ler.
- . – Murmurei, para que somente eu pudesse ouvir, e me virei, começando a andar devagar. – Hm... Uhum. – Passei o dedo sobre o papel, procurando alguma informação relevante, como alergias a compostos de anestesias ou algo do gênero. – Não, claramente não.
- Admito que foi a rejeição mais rápida que já ouvi, doutora.
Assustei-me um pouco com a voz estar tão perto. Desviei meu olhar do papel somente para me deparar com um homem jovem sentado na cama a poucos centímetros de mim, segurando uma gaze ensanguentada em sua bochecha direita. Corei um pouco e me afastei.
- Desculpe, a intenção nunca foi chegar tão perto ou rejeitá-lo tão rapidamente.
Ele não parecia nem um pouco chateado, mas sim parecia ter o olhar de quem estava se divertindo, brincando.
- Então, - Lavei minhas mãos na pia e colocava as luvas enquanto falava. – , certo?
- Me chame de , por favor.
- ? – Ergui uma das sobrancelhas. - como em “ que acompanha Madeline Harvey”?
- O próprio. – Ele abriu um sorriso doce. – Não sabia que até os médicos estariam esperando pela minha chegada.
Algo naquilo me reconfortou um pouco, era um sorriso acolhedor, como quem genuinamente é bom. Havia algo também em sua postura rígida que me atraia. Peguei-me tão distraída em analisar seu sorriso, que acabei nem o corrigindo em relação à minha profissão.
- Então, , não há muito na sua ficha. Por que não me conta mais sobre o que você veio fazer aqui?
-Assunto confidencial.
Mal sabia ele que eu quem coordenava o projeto secreto como qual ele trabalharia.
- E que tal sobre como conseguiu esse corte?
- Assunto confidencial também. Você me parece alguém curiosa.
- Como você é direto, . Aposto que não é fã das gracinhas ou piadas.
- Não se puder evitar.
- As perguntas são um protocolo de distração.
Peguei um banquinho com rodas, o fio e a agulha cirúrgica e coloquei-os em frente ao homem. Pedi, com um gesto, que afastasse as pernas, para que eu pudesse ficar entre elas e estar o mais perto possível de seu rosto. Eu não sabia a profundidade ou extensão do corte, mas a julgar pela vermelhidão do tecido, supus que não gostaria do que estava embaixo.
- Essa é a parte que devo suturar, não? – Apontei para onde ele segurava a gaze. se contentou em somente confirmar com a cabeça. – Vou tirar a gaze, limpar, anestesiar, limpar de novo e suturar, ok?
- Não precisa da anestesia, doutora... hm...
- . . – A proximidade era tanta que pude ver seus olhos, com a íris colorida em detalhes.
Não faço ideia de onde eu estava com a cabeça esse tempo todo para não ter notado a beleza do homem a minha frente. Talvez não fosse uma beleza tão padronizada como a de Henry, mas sua pele emanava algum tipo de saúde e jovialidade que eu jamais tinha visto. Os olhos eram serenos, como de quem pudesse prever o futuro e saber que estava tudo bem. Tinha uma certa tensão na sobrancelha e uma aparente mania de morder o canto dos lábios. Era como olhar uma escultura de Michelangelo ganhar cores. Uma dessas esculturas em que o mármore se transforma num véu delicado, como se flutuasse.
- Doutora ?
- Sim?
- Não precisa da anestesia. – Ele repetiu e afastou um pouco seu tronco do meu.
- Não seja bobo. – Ri enquanto colocava uma solução de iodo sobre um algodão. – Não há ninguém nesta sala além de nós, será nosso pequeno segredo. Nós não precisamos sentir dor o tempo todo.
Ele pareceu ficar um pouco mais relaxado, os ombros não pareciam mais tão tensionados.
Retirei a gaze que ele segurava bem na altura da maçã do rosto e a coloquei numa bandeja metálica.
- Você vai sentir uma picadinha da agulha, ok?
- Por algum acaso toda médica da força aérea deve vestir algo elegante e saltos finos? Estou começando a achar que escolhi a profissão certa, doutora .
- Não, o uniforme obrigatório é o jaleco e o tênis.
- Então por que não está com o uniforme?
- Não sou médica. – Respondi com a maior naturalidade do mundo enquanto fazia a sutura e pude ver seu ombro tencionar de novo. – Não se preocupe, , também não sou uma assassina de aluguel. Sou engenheira.
- Por que uma engenheira estaria na ala médica me suturando?
- Sabe... Uma das coisas mais incríveis da vida é que ela não para de nos surpreender. Você ficará encantado com as coisas que são feitas por aqui, .
- Acredite, já estou encantado.
Ruborizei quando percebi que ele me encarava de maneira firme, bem nos olhos, e coloquei uma mexa de cabelo atrás da orelha.
- Tudo pronto, . Espero que a vacina de tétano esteja em dia. Quero que tome cuidado na hora de limpar o rosto e qualquer coisa, a ala hospitalar é 24h. Não vou te receitar antibióticos por motivos óbvios de você ser uma pessoa saudável, treinado pela força aérea e de eu não ser médica e não poder receitar nada a ninguém. – Retirei as luvas e descartei-as no lixo mais próximo, já me dirigindo à porta. – Tenha um bom dia.
- Obrigado, . – Ele agradeceu de maneira tão doce que não pude deixar de parar de abrir a porta na metade e me virar para encará-lo.
- Foi um prazer, .

- Companhia! – Fred gritou com muita força, fazendo todos os oitenta e seis homens a sua frente colocarem seus pés juntos, endireitarem coluna, encherem o peito, olharem para frente e posicionarem mãos na lateral. Formaram linhas perfeitas e paralelas, impecável.
- Senhor, sim, senhor!
Fred começou a andar de um lado para o outro, procurando qualquer coisa que o pudesse atrapalhar, como uma barba por fazer ou um corte de cabelo acima da máquina 3. Como não achou nada fora das regras, olhou para , que logo se aproximou, com um arquivo debaixo do braço e uma postura perfeita.
Por onde quer que passasse, atraia muitos olhares. O porte físico de um verdadeiro produto da força aérea americana, com um ar de elegância e imponência que raramente se encontrava em alguém. O uniforme lhe caia bem, a cor da farda realçava a imensidão matizada de seus olhos, como se o próprio céu estivesse refletido em sua íris. O olhar era frio, calculista, mas penetrante como se escondesse muita coisa. Passos firmes, sabia para onde ia, e olhos fixos, focados em um só objetivo.
Para as mulheres, um pequeno pedaço do paraíso; para os homens, um exemplo de disciplina e conquistas.
- Esse é o capitão . Ele supervisionará cada um de vocês durante essa semana. Aqueles que forem aprovados, serão encaminhados ao batalhão do major-general Elijah Fox, entendido?
- Senhor, sim, senhor!
- Então façam direito, se não pela pátria, pelo aumento do salário. – Alguns poucos risos puderam ser ouvidos no grande pátio a frente do Hangar 4.
Os tenentes estavam suando por causa da segunda corrida que já haviam feito pela manhã. O sol de verão, ascendendo de modo devagar, já queimava suas nucas. Embora ainda fossem nove horas da manhã, a maioria só conseguia pensar no almoço. O treino do último mês havia sido o mais pesado de suas carreiras até agora. Noites em claro, fome, carregar corpos por quilômetros sobre os ombros em pleno sol ardente de meio dia, sprays de pimenta diretamente nos olhos, resistência no mar gelado a meia noite, acampamentos de sobrevivência, subir cordas com as mãos já sangrando, pular de aviões cargueiros com o paraquedas principal rasgado, desarmamento de bombas. Os treinamentos cada vez exigiam uma habilidade diferente que tinham que desenvolver. Deveriam estar preparados para todas as situações possíveis.
- Hoje os treinos serão ótimos, tenentes. – A voz de trouxe os soldados à realidade novamente. – Começaremos com um pequeno circuito. Escalada, saltos, mira e desvio. Depois, vamos prosseguir para os exames médicos obrigatórios. Almoço. Prova de tempo de invasão. Combate corpo a corpo. Janta e finalmente teste de resiliência no mar. Entendidos?
- Senhor, sim, senhor!
- Ótimo. – Fred voltou a falar. – Companhia, o primeiro treino é interno. Ala norte, pátio B-5.
Então Fred começou a correr e todos os homens, naquele mesmo arranjo, o acompanharam. andou até um dos carrinhos, sentou em frente ao volante e agradeceu ao céu por não ser o capitão daquela companhia. Ainda não estava disposto a correr para lá e para cá, mas sabia também que precisaria resgatar essa disposição logo, pois não tardaria para ser promovido a major e sabia que esse cargo requereria muito mais do que correr com seu próprio batalhão.

- ! – Amélia caminhava em minha direção com seu usual jaleco branco e seu cabelo preso em um coque desajeitado. – !
A doutora Bennet possuía feições delicadas. Uma pele bem branquinha e bochechas coradas. Estava sempre com pressa por onde quer que passava. Quem a visse de longe diria que se parecia com uma flor delicada de um jardim, quem a conhecia, entretanto, sabia o quanto ela gostava de dar as ordens e odiava ser contrariada. Um tanto grossa quando queria, as vezes quando não queria também, mas ninguém nunca pareceu se incomodar com suas falas diretas e sinceras. Já disseram que ela era um doce e simpática, porém não conseguia enxergar isso. Só conseguia ver a versão da mulher moldada pelas coisas hediondas que a guerra causava.
- Doutora Bennet. – assentiu com a cabeça quando ela parou ao seu lado. Parecia um pouco mais feliz que o de costume.
- Quem é o responsável por essa companhia?
- Capitão Fred Murphy, doutora.
Esse nome não soou familiar em sua cabeça. Assim que percebeu, uma pitada de dor surgiu em seu coração. Desde que puseram o pé pela primeira vez na ala médica, por uma das mil e uma estupidezes que Fred conseguia dar conta de criar, com segurando Fred em seus ombros, pode notar a felicidade que seu parceiro de voo emanava ao encarar Amélia. Seus olhos brilhavam e falava coisas idiotas com um gaguejo incessante. O tombo, muito embora Fred não admitisse, seria grande. Amélia parecia ter um desinteresse particular em Murphy, estava sempre muito indiferente e nunca o encarava nos olhos. No fundo, esperava que fosse algum tipo de proteção que ela erguia ao seu redor quando gostava de alguém, mas não podia se envolver. Esperava mesmo.
- Onde posso encontrá-lo?
- Capitão Murphy! – acenou para um dos homens fardados que observava os soldados saltarem de cordas em cordas suspensas pelo teto. – Sua presença está sendo requisitada.
Vendo que Amélia parecia entretida em olhar alguns homens escalando uma gigantesca parede de pedras, Fred sorriu abertamente para e ergueu uma das sobrancelhas enquanto andava até eles. contentou-se em dar um sorriso fraco em resposta.
- Em que posso ajudá-la, Amélia?
- Identificação, por favor. – Sem muita formalidade, pegou o crachá da mão do capitão e começou a checar algumas coisas. – Companhia dois. Certo... Por que não está usando o uniforme da força aérea, capitão?
A médica pareceu um pouco incomodada, mas Fred prontamente se dispôs a responder.
- Eu estou. O uniforme de condicionamento físico é muito parecido com o do exército, só mudam poucas coisas.
- Ok. – A mulher já parecia entediada nesse curto diálogo, mas todo aborrecimento se foi quando continuou a falar. – Esse – Apontou para uma das portas do local, onde havia um homem em posição de descanso com um belo uniforme azul. – É o major “”.
- ? – perguntou.
-Sim. Ele é transferência de outro quartel da força aérea e vai acompanhar vocês às vezes nos próximos dias.
- Às vezes?
-Sim, , ele está envolvido num outro projeto e pediu que ficasse especialmente junto ao capitão durante os momentos que não estivesse trabalhando no projeto.
- Junto a mim? – parecia extremamente confuso. Jurava nunca o ter visto na vida. Tentou repassar todas as memórias relevantes desde que se juntou à força aérea, mas nada o remeteu a algum . – Ele não deveria estar em segundo comando do batalhão do major-tenente Fox?
- E eu não deveria ser a cirurgiã e não a mensageira?
e Fred não responderam, então Amélia entendeu aquilo como se já pudesse se retirar. pareceu entretido em ver o treino dos soldados, então os dois capitães se aproximaram o suficiente para ouvir os sussurros uns dos outros.
- Esse ... Que projeto será esse que é tão importante que não possamos usar nossos próprios majores?
- Você acha que ele está tendo um caso com Amélia?
- Não sei, Fred, ele não me parece o tipo de cara que mistura trabalho e vida amorosa.
- De onde você tirou essa conclusão? Nem deu tempo de conversar com ele, até agora só ficou parado igual um saco de batata em frente àquela porta.
e Fred mutualmente tiraram um tempo para encarar o estranho. Olharam-no de cima abaixo.
- Ok, talvez ele não misture. – Fred deu de ombros depois de falar isso e voltou a observar seus homens no treinamento.


Capítulo 2

- Então chegamos à conclusão que o ideal seria que o perfil aerodinâmico fosse simétrico e o mais fino possível para propósitos de manobra e velocidade, mas isso tem as suas consequências. O caça não consegue atingir uma razão de aspecto alta o suficiente. – Eu andava de um lado ao outro enquanto a projeção de slides passava. Pela expressão na face de Elijah, eu já podia perceber que ele não estava entendendo aonde eu gostaria de chegar. – Isso significa que o piloto precisa não somente de mais pista, como mais habilidade.
- Está dizendo que teremos que treinar melhor ainda nossos pilotos?
- Estou dizendo que há a possibilidade de os pilotos do F-22 Raptor precisarem de um treino específico para essa aeronave...
- Isso me parece razoável.
- Certo. – Satisfeita com a falta de alguma reação negativa que eu esperava, continuei. – Sobre o motor que conversamos na última reunião, que Pratt&Whitney concordou em desenvolve-lo, é um turbofan F9-PW-100, ele já está em seus testes finais e logo será encaminhado para essa base, a previsão é que chegue daqui uma ou duas semanas. A novidade, e é por isso que estou aqui, é que, pelos cálculos, considerando as médias de viagens, manobras e outras dezenas de fatores, o F-22 deve ter oito tanques de combustível internos, não mais seis. Isso daria a capacidade de mais de oito toneladas de combustível.
- E isso é um problema, porque...
- Porque precisamos de mais dinheiro. – Henry, sentado sobre uma das quatorze cadeiras daquela extensa sala de reunião, falou sem hesitar. – Conseguimos fazer um design que pudesse encaixar mais dois tanques no arranjo que já tinha sido aprovado, mas isso muda outras coisas no projeto e isso requer mais dinheiro.
- Mais dinheiro? – Elijah desencostou-se, afrouxou sua gravata e apoiou seus cotovelos sobre a mesa. – Vocês não acham que 320 milhões de dólares já não são o suficiente?
- Achamos que é muita coisa, Elijah. – Sentei-me em uma das cadeiras. Já estava de pé havia duas horas e os saltos altos estavam começando a me cansar. – Mas, se pararmos para pensar, a sua base militar está desenvolvendo um caça supersônico que vai voar duas vezes mais rápido que um B-2 Spirit, que custa mais de 2 bilhões de dólares, e é invisível aos radares. Não acha que seria um marco histórico? Principalmente para você, quando souberem que foi você quem autorizou um projeto tão importante para a nação.
Elijah nunca fora um homem de grandes feitos, chegara na posição de major-general por puro e genuíno esforço, mas sempre deixou muito claro em seus discursos que deixaria um legado, nem que fosse a última coisa que fizesse. Tudo bem que ele dizia que tal legado seria os melhores e mais bem treinados aviadores da força aérea, mas Henry e eu já tínhamos chegados à conclusão que isso não estava somente em suas mãos. Então o que era preciso para convencê-lo era colocar uma boa imagem de um homem triunfante.
- Certo. Quanto dinheiro precisariam?
- Trinta milhões.
- Talvez possamos fazer isso acontecer... Vou falar com o general e dou a resposta amanhã.
- Lembre-se de dizer, major-general Fox, - Eu arrumava uns papéis em cima da mesa, enquanto falava, com uma voz suave, de costas para o homem que andava até a grande porta de vidro fosco da sala. - Que seus engenheiros conseguiram reduzir – Com a papelada nas mãos, levantei-me e cheguei próximo a ele. - Em vinte milhões de dólares o custo a longo prazo do projeto ao desenvolver um caça tão aerodinâmico que reduziu arrasto e, consequentemente, o gasto de combustível.
Saí da sala a sua frente, com a porta aberta por um dos tenentes, e caminhei em direção ao elevador. Eu já poderia imaginar a felicidade de Henry em conseguir a quantidade dinheiro que faltava para nós finalmente colocarmos um ponto final naquele projeto. Não me entenda errado, eu tratava esse trabalho como se estivesse produzindo meus próprios bebês. Bom, super bebês. As noites cansativas e viradas, no entanto, não me deixariam nenhuma lembrança tão boa assim. Foram litros de café, muita força de vontade e ideias inovadoras para que pudéssemos resolver cada um dos obstáculos no caminho. Henry e eu assistimos o nascer do sol, dentro do meu escritório, incontáveis vezes. Talvez fosse por isso que ultimamente tenhamos estado tão próximos.
Apertei o botão e, quando as portas estavam prestes a fechar por completo, ouço alguém gritar para que segurem a porta. Num impulso, apertei o botão que abria as portas do elevador. Uma mulher, vestida com uma simples camiseta branca, calças cargo camuflada do uniforme e coturno, com um coque loiro tão impecável que não daria para ver um único fio fora do lugar entrou um pouco ofegante.
- Desculpe por isso. Estou atrasada para um checkup médico. – Ela olhou o painel e pareceu estar perdida. – E eu não faço ideia de onde seria isso.
- Não se preocupe, é para lá que estou indo, acompanhe-me.
- Coronel Harvey, prazer. – Ela estendeu sua mão para um cumprimento. Apertei-a e sorri.
- Harvey... Como em Madeline Harvey?
- Sim! - A mulher ao meu lado pareceu tão animada com a ideia de eu saber quem ela era que não pode conter um largo sorriso e se virar em minha direção, com uma certa aura de encantamento exalando de seu corpo. Algo em seu jeito delicado, nada esperado de uma coronel do exército, me fez ficar instantaneamente confortável. – Como me conhece?
- Sou a engenheira chefe no projeto do F-22.
Ela juntou as sobrancelhas e uma expressão de confusão tomou conta de seu rosto.
- , certo? Desculpe, só não é compatível com a sua imagem que criei em minha cabeça. Sorte que trouxemos para o caso. – Agora fui eu quem a olhei confusa. – Ah, ele é um homem muito centrado. Não acho que qualquer um dos outros majores estariam focados no F-22 se uma mulher tão bonita com você estivesse ao lado.
Antes que eu pudesse responder, uma voz suave indicou que chegamos no andar da ala médica. Pareceu algo do destino, mas Amélia empurrava uma maca com um homem não tão consciente que tinha a perna ensanguentada bem na hora que as portas se abriram.
- Ah, ainda bem. – Ela fez um gesto qualquer com a mão para uma das enfermeiras que a ajudava, que continuou a empurrar a maca pelo corredor. – Eu estava precisando de ajuda. – Sem ao menos se dar ao trabalho de nos cumprimentar, a cirurgiã saiu andando e pediu que a acompanhássemos. - Aparentemente um teste de desarmamento de bombas na ala D deu muito errado, mas justamente na hora que eu tenho que fazer um diagnóstico mensal num batalhão inteiro. Quer dizer, que tipo de idiota usa uma bomba real em treinamento? Os outros médicos já estão ocupados, então preciso de ajuda. – Do nada, ela virou para trás e eu e Madeline paramos num leve susto. – Você – Ela apontou para mim. – Vem comigo. Os testes são bem simples, algumas perguntas, monitoramento de corrida, teste de visão e medir pressão. Já você.... Quem é você?
- Coronel Harvey, doutora. – Madeline bateu contingência. - Vim fazer o checkup.
- Então você é comigo também.
Enquanto éramos guiadas naquela infinidade de corredores e salas, Amélia me instruía no que eu deveria fazer. Soou muito simples. Pelo que eu entendi, era só fazer perguntas já pré-estabelecidas de um questionário e medir a pressão de cada um dos pacientes, depois era só encaminhá-los para um outro lugar que era onde eles fariam esse tal monitoramento de corrida e checariam a visão.
- Sabe se virar?
- Não me conhece, amor? – Respondi, enquanto colocava um jaleco branco qualquer que uma enfermeira com pressa havia acabado de me dar. Às vezes eu esquecia como tudo e todos eram eficientes por aqui. Tinham que ser, na verdade.
Estávamos paradas em frente a uma porta dupla transparente, de onde eu podia ver dentro da sala. Havia umas dez camas, cinco de cada lado, e, em cada uma delas, um homem de farda sentado. Dava para ver que só alguns deles estavam sendo atendidos por enfermeiras, enquanto outros se contentavam em olhar algum ponto do local.
- Leito seis. É o do canto. Se tiver alguma dúvida, não me chama, eu não vou vir.
Olhei para dentro da sala e quando me virei novamente para trás, afim de perguntar para Amélia qual canto exatamente, ela e Madeline já tinham desaparecido. Chequei os dois lados do corredor e nada delas.
- Estou começando a achar que Hades criou essa mulher.
Quando abri a porta da sala e dei o meu primeiro passo, o silêncio tomou conta do local e pude sentir o peso de todos os olharem em minhas costas. Até as enfermeiras pararam de perguntar ou fazer as coisas. Corei um pouco com toda a atenção e dirigi meu olhar à direita da sala. O canto logo ao meu lado tinha um soldado já sendo atendido, então encarei o leito oposto, estava envolto por uma cortina azul clara. Engoli em seco e coloquei uma mecha de cabelo atrás da orelha. Pude ouvir cada estalar de meu salto bater contra a porcelana no chão. O barulho ecoava sobre as paredes de tão silencioso que o cômodo estava.
- Permitam-me a indiscrição, senhoritas, - Virei-me para uma das enfermeiras. – Mas acho que temos trabalho a fazer e não podemos deixar esses cavalheiros esperando, não é mesmo?
Eu sabia que nenhuma delas iria nem dar um “oi” se nos víssemos futuramente depois dessa fala, mas no momento aquilo não me preocupava nem um pouco.
Redirecionei meu corpo para ficar em frente à cortina e abri-a sem hesitar. Arregalei os olhos quando dei de cara com um rosto familiar.
- Você tem certeza que não é médica? – abriu um leve sorriso.
- Você está me seguindo, major?
- Não propositalmente, mas, se quiser categorizar, pode chamar de destino.
- Então você não é fã da piada, mas é dos clichês? Eu esperava mais, .
-Sinto muito decepcioná-la tão cedo. Espero que minhas habilidades em voo no seu projeto possam compensar suas expectativas.
- Hm, alguém andou fazendo a lição de casa. – Sentei-me no banco que estava próximo à cama e peguei uma prancheta com algumas folhas e uma caneta. – Vamos começar, então. Nome, escalão e idade?
- , major de transferência e vinte e nove anos.
- Já esteve envolvido em algum acidente que deixou qualquer tipo de sequela?
- Isso inclui sequelas psicológicas?
- Eu diria que não e também espero que não tenha esse tipo de sequelas. Vou considerar que sua resposta é não, caso você não apresente nenhuma objeção. – Encarei-o nos olhos, mas ele não pronunciou uma palavra sequer, só me olhou de volta, com uma expressão um pouco triste. – Continuando...Alguma dor física constante no último mês?
- Nenhuma.
- Alguma dificuldade em dormir?
- Nenhuma também.
- Consegue se lembrar se teve dores de cabeça, cansaço físico anormal, desmaio, dores de ouvido ou sangramento no nariz no último mês?
- Nada que me lembre.
- Ótimo. Agora vamos medir sua pressão. – Segurei sua mão para que pudesse passar o esfigmomanômetro sobre seu braço e apertei-o em volta de seu bíceps. Comecei a apertar o balãozinho até que pudesse obter uma leitura. Pude sentir que me encarava com muito foco a cada movimento que eu fazia. – Doze por oito, excelente.
- E agora?
- Agora você pode seguir para o próximo passo, que é o monitoramento de corrida. É só sair por aquela porta ali.
- Certo, muito obrigado.
Logo que se levantou, retirei sua ficha com as respostas da prancheta e coloquei-a sobre uma pilha que estava sobre um dos balcões da sala. Achei que teriam muito mais perguntas do que as que foram feitas, mas, para minha sorte, sendo só essa quantidade daria tempo de eu pegar o horário de almoço. Abri a porta e chamei pelo próximo paciente. Pelas pouquíssimas pessoas que estavam em pé na fileira do corredor, entendi que essa companhia estava por acabar e a seguinte chegaria em breve.
- Sente-se naquela ali, por favor. – Apontei para o leito e o homem seguiu naquela direção. – Espero que esteja confortável.
- Estou, obrigado. – Sua voz era tão agradável que me senti obrigada a olhar o rosto que estava a minha frente.
Era definitivamente um dos homens mais bonitos que já vi. Seu rosto possuía linhas bem desenhadas e definidas e parecia simétrico, harmônico. Seu lábio estava inclinado num leve sorriso tranquilo, mas que parecia solene. Seus olhos... Tive que parar por alguns segundos para entender aquela imensidão variegada. Eram olhos intensos, tanto de cor como de história, e pareciam estar me estudando também. Era a figura de alguém que com certeza não reclamaria em ver todos os dias. Sua coluna estava tão ereta que, embora alguns possam julgar como arrogância, eu não conseguia parar de pensar como exalava certa postura elegante.
- Hm... – Balancei a cabeça levemente e olhei para o papel que segurava. –Er... Hm...
O que estava acontecendo comigo? Por que eu só conseguia pronunciar sons bizarros? Antes mesmo de eu conseguir exprimir qualquer palavra, um homem ruivo parou de pé, do outro lado de onde eu estava da cama, e deu duas batidinhas nas costas da pessoa a minha frente.
- Isso aí, cara. Quero você saudável para voltar a voar comigo. Último checkup!
Desviei meu olhar dos papéis para me deparar com os dois homens a minha frente me encarando concomitantemente.
- Sou o capitão Murphy. Se importa se eu acompanhar essas perguntas?
- Não me importo, contanto que ele esteja confortável. – Sem receber nenhuma resposta, prossegui. – Então vamos começar. Nome, escalão e idade?
- , atualmente capitão supervisor da companhia dois e vinte e oito anos.
- Já esteve envolvido em algum acidente que deixou qualquer tipo de sequela? – Perguntei terminando de escrever o que ele havia acabado de dizer.
- Oh... – Murphy colocou a mão sobre o peito e pareceu genuinamente tocado pela pergunta. Pude ver bufar e jogar a cabeça para trás. – Essa história é incrível, eu fico emocionado toda vez. Conte, !
- Fred, eu...
- Sem problemas, eu conto. – Então ele deu a volta na cama e sentou-se ao lado de , empurrando-o um pouco para ficar o mais perto de mim possível. Achei a cena uma graça, então uma leve risada escapou. – Era uma tarde de um verão há dois anos...
- Fred, eu realmente acho que essa não seja a...
- Shhh. – Murphy colocou a mão sobre o rosto do colega ao lado e afastou-o sem o mínimo de delicadeza. revirou os olhos, claramente sem paciência para contra argumentar. – Como eu dizia, um verão que parecia lindo, desses que você vê em filme. O capitão dirigia seu carro, que eu não faço ideia de qual era, a muitos e muitos quilômetros por hora, mas não à toa, não. Tinha acabado de receber uma ligação, - Fred arregalou seus olhos e fez um bico, como quem quisesse instigar curiosidade. - Algo havia acontecido com alguém muito importante e não pensou duas vezes antes de sair correndo, com sua farda e tudo.
De repente, peguei-me muito interessada tanto em saber como essa história se desenrolaria, mas também em saber por que as frases de Murphy eram tão generalizadas. O fato de ter saído do quartel de farda, o que sabíamos que era proibido exceto para prestar serviços, me fez perguntar o que era tão urgente.
- E embora tenha tido todo treinamento possível para não colocar a emoção em primeiro lugar, ele sentia que estava prestes a perder tudo, então dirigiu tão depressa e sem cautela...
- Obrigado pela parte que me toca, Fred.
- Você sabe que é verdade, . Agora pare de me interromper. – Apoiei o cotovelo sobre minha perna cruzada e a cabeça sobre a mão e continuei a ouvir. – Enfim, acabou não vendo um dos caminhões que cruzavam a via e a batida foi certeira. Ele teve muita sorte de ter saído só com uma concussão, uma costela quebrada e alguns nervos rompidos na mão.
- Qual mão? – Perguntei enquanto anotava as informações relevantes.
- A esquerda. – respondeu rapidamente para que Fred não o atropelasse de novo com suas palavras.
- Certo, qual exatamente foi a sequela? – Voltei a anotar.
- Perda parcial do controle e da mobilidade da mão esquerda e fortes enxaquecas por semanas. – respondeu com um tom de voz sério e um olhar tão frio que senti os pelos da minha nuca arrepiarem. – Mas não se preocupe, doutora, nada que um ano intensivo de fisioterapia não tenham resolvido.
- E agora só falta uma pressão perfeita para que ele esteja sem absolutamente nenhum obstáculo no caminho. – Fred acrescentou.
- Então quer dizer que esse checkup que eu estou fazendo nesse exato instante é o que vai decidir se você está pronto para voltar a pilotar, capitão? – Olhei-o de forma divertida e levantei uma das sobrancelhas.
- Meu futuro está em suas mãos. – Sorriu de maneira gentil e pude ver de relance Murphy ir em direção a outro leito. – Sobre o resto das perguntas, não tive nenhuma dor constante no último mês, não tenho dificuldade em dormir, a última vez que tive dores de cabeça e de ouvido foi há vinte e três meses e meu nariz sangrou quando fomos fazer uma manobra que gerou 3G, o que faz mais de dois anos.
- Ok, isso foi muito rápido para eu conseguir anotar, mas acho que vou lembrar. Vamos medir sua pressão para prosseguirmos.
Fiz todo o procedimento sem trocar uma palavra com o homem sentado à minha frente. Ele parecia me olhar com certa cautela, como se eu fosse a qualquer momento fazer um movimento brusco ou como se eu já tivesse roubado seu lanche no jardim de infância e nem lembrasse.
A pressão estava excelente. Dei a notícia e ele se alegrou, logo levantando para contar a Murphy.
Assim que deixei mais uma ficha sobre o balcão, na hora que fui me virar em direção à porta, me deparei com bem a minha frente, sorrindo e estranhamente esbanjando uma luz angelical.
- Gostaria de convidá-la para almoçar.
Eu definitivamente não estava esperando por isso, assim, ergui ambas as sobrancelhas. Quer dizer, foi bem direto, mas algo dentro de mim vibrava feliz, como uma pequena chama aquecendo todo o meu corpo e fazendo minhas bochechas ruborizarem. Não era todo dia que um homem tão bonito cruzava meu caminho. Pela ética do trabalho, todavia, a resposta era muito óbvia.
- Convide-me.
NÃO, ! Essa não era a resposta óbvia que respeita as regras.
- Gostaria de almoçar comigo?
- Mulheres não gostam de perguntas, capitão .
- Almoce comigo.
- Autoritário demais.
- Vou almoçar, gostaria de se juntar a mim?
- Outra pergunta.
Ele parou para pensar por alguns segundos. Parecia ter dificuldade, mas logo uma expressão leve tomou conta de seu rosto e um sorriso discreto se formou.
- Vou almoçar. Se quiser, ficarei muito feliz se me acompanhar.
Limitei-me a sorrir e assentir com a cabeça e continuar caminhando até a porta. Tive aquela sensação peculiar de como se estivesse sendo observada pelas costas.

- Você o quê?! – Henry pareceu surpreso enquanto quase cuspia todo suco que tinha acabado de tomar. O refeitório estava cheio, então tenho quase certeza que metade dos soldados escutaram o grito.
- Ela tem um encontro fora do quartel amanhã. – Madeline respondeu com calma.
- Sim, sim. – Henry olhou-a com uma expressão de confusão. Será que ela não tinha entendido que foi uma pergunta retórica? – Só estou interessado em saber desde quando a senhorita perfeita aqui quebra as regras.
- Oh, eu também quebraria as regras por esse homem...
- Amélia, você já quebra as regras sem precisar envolver nenhum ser humano.
A doutora Bennet se restringiu a revirar os olhos e murmurar um “mimimi”. Henry pareceu nem ligar para a atitude.
- Enfim, como eu continuava antes de ser interrompida indevidamente... Quem não quebraria as regras por ?
- Quem é ? – Eu sentia que Madeline estava perdida, com seus grandes e redondos olhos pousando sobre cada um de nós, esperando explicações e fazendo perguntas sobre o contexto enquanto mastigava sua comida. – Oh... Espera, não é aquele cara que falou sobre?
- Sim! – Amélia pareceu contente com a admissão de um novo assunto, o major , mas se contentou em prosseguir com o mesmo tema quando Henry começou a falar.
- Oh, sim! Capitão ... – Ele me olhou e abriu um sorriso de lado. – Nada mal. Uma vez fiz um projeto com ele, enquanto ainda era tenente primeiro. Era sobre uma aeronave cargueira C-5 Galaxy. Me pareceu um cara muito inteligente pelas observações práticas. – Henry então olhou para sua bandeja e coçou a nuca. – Olha, depois do que eu vou falar, não dá para dizer que a masculinidade é frágil...
- Todo homem que fala isso automaticamente tem uma masculinidade frágil. – Amélia o interrompeu, com sarcasmo e ironia escorrendo de sua boca.
- Convenhamos que o ambiente do exército é um ambiente tóxico e machista. – Olhei para Henry numa tentativa de expressar ternura e Madeline logo me apoiou.
- Se você iria elogiá-lo, estou impressionada que tenha coragem de fazê-lo mesmo sabendo que os outros vão achar estranho.
- Bom... Eu sou um bom apreciador de curvas femininas...
- Mulherengo, você quis dizer. – Amélia sorriu maliciosa.
- E vocês sabem disso. – Henry ignorou a intromissão da médica e continuou a falar. – Mas, puta que pariu, , que homem do caralho. Bonito para porra, inteligente, simpático, até eu dava.
- Está aí uma coisa que eu não esperava ouvir. – Madeline arregalou os olhos e direcionou-os para baixo.
- É, ele realmente tem um jeitinho cativante. – Deixei uma leve risada escapar ao perceber que falei isso em alto e bom som e todos na mesa me olharam maliciosos. – Não sejam ridículos, é só um encontro.
Então Amélia segurou um garfo e apoiou seu cotovelo sobre a mesa e Henry, que sentava em sua frente, fez o mesmo com uma faca e começaram a tocar delicadamente os talheres enquanto faziam sons de beijos e me encaravam com as sobrancelhas erguidas.
- Uau, maturidade faz parte do pacote. – Falei e voltei a encarar minha bandeja com comida.
- Mas então, Madeline, nos conte um pouco mais sobre você... E sobre também.
- Sempre tão discreta, Amélia.
- Gosto de chamar isso de objetividade. – Ela sequer desviou o olhar de Madeline para responder Henry.
- ? – Madeline pareceu dar uma risada divertida. Algo em seu jeito de falar sugeria que todos nós estávamos prestes a descobrir algo inusitado. – Bonito, não é? A primeira vez que o vi foi como se o próprio Olimpo tivesse enviado um semideus à Terra de novo. Educado, quieto e admirável.
- Bonito para caralho. – A médica abanou-se com a mão num gesto exagerado.
- Perdi a conta de quantas vezes ele parecia ser melhor em tudo do que todos... Mas não se enganem. – Agora a face da coronel Harvey assumia um certo ceticismo sobre o que falava. – tem dois belos filhos. Uma menininha e um menino que acabou de nascer. Ele é... casado, mas... Acho que estou sendo muito grosseira em falar abertamente sobre a vida íntima de outra pessoa.
- Acho que uma hora ou outra as informações iriam chegar. – Eu não fazia ideia do por que eu havia dito aquilo. Em outras circunstâncias, odiaria que alguém ficasse falando sobre mim, porém tinha algo naquele relato todo que me fazia querer ouvir um pouco mais. – Temos vidas muito sigilosas, toda fofoca acaba sendo um alívio de tensão. Além do mais, nada vai sair dessa mesa.
- Certo, mas mantenham segredo.
Fiz um gesto como se fechasse minha boca com um zíper e Henry e Amélia se limitaram a concordar com a cabeça.
- só é casado por mais duas semanas, quando o divórcio finalmente oficializar.
- Um divórcio? – Amélia parecia chocada. Em sua mente, não conseguiria entender como um ser humano em sã consciência seria capaz de se divorciar de um homem daqueles, tão bonito e amável, de acordo com Harvey.
- Vocês podem imaginar o quão complicado é um casamento com um militar. – Amélia e Henry se encararam e voltaram seus olhares confusos para Madeline, que pareceu ter um pouco de estranhamento, não acostumada com o jeito de ambos.
- Sejam empáticos, ok? – Agora eles me olhavam com certa indignação. – É totalmente compreensível, aposto que já romantizaram todo um relacionamento nas suas imaginações.
- Ok, se você não for direto ao ponto, , nada do que você falou faz sentido. Vai ser só passar a mão na cabeça de alguém sem argumentos.
- O ponto é o seguinte: Imaginem se vocês fossem a esposa de um militar e tivessem duas crianças. Vocês passariam meses sem vê-lo, talvez anos se ele fosse convocado para a guerra ou para missões especiais. Meses sem algum apoio emocional e físico, meses criando seus filhos sozinha, tomando todas as decisões, cuidando da casa também e tendo que trabalhar, sem ao menos saber se o seu marido vai voltar vivo. Eu entendo que seja lindo ver esses vídeos de reencontros quando os maridos voltam para casa depois de muito tempo e que mandar cartas parece romântico, mas deve ser uma vida muito dura, então acho completamente compreensível, vocês não concordam? Quer dizer, na minha perspectiva isso não é o que um casamento deveria proporcionar.
- Você não cansa de deixar a gente no chinelo, não é? – Henry sorriu e voltou a se concentrar em comer.


Capítulo 3

O lugar que tinha escolhido para almoçarmos era um pouco mais chique do que pensei que seria. Deixei a chave de meu carro com um manobrista e logo que dei um passo em direção à porta, dois homens abriram-na para mim. Agradeci e entrei.
A decoração do local era uma mistura agradável de elegante e moderna, com uma música leve sendo tocada ao fundo. Reparei que havia pouca luz natural, pouca luz no geral na verdade, somente uma iluminação fraca que eu diria trazer um toque romântico ao local; e as mesas pareciam estar quase todas preenchidas. À minha esquerda, um bar com algumas pessoas, talvez eu tivesse que esperar. Procurei pelo rosto de em alguma das pessoas, mas não consegui achar, o que me fez cogitar que ainda não tinha chego.
- Olá. Como posso ajudá-la? – Uma mulher de terninho preto e um tablet na mão interrompeu meus pensamentos enquanto varria pela segunda vez com os olhos o local. – Procura alguém?
- Sim, procuro .
Ela começou a mexer na tela a procura do nome, mas disse que a reserva ainda não tinha sido retirada, então ele não havia chego. Educadamente me perguntou se gostaria de esperar na mesa e eu, de prontidão, aceitei. Fomos para uma mesa que ficava perto de uma das paredes, bem discreta. Um dos garçons puxou uma cadeira para que pudesse sentar.
- Muito obrigada.
- Gostaria de receber a entrada e a cartela de vinhos?
- Por enquanto não, só um copo d’água, por favor.
Então ele se retirou após concordar com a cabeça e eu fiquei encarando o lugar vazio a minha frente.
Acho que não tinha um encontro havia meses. Tenho que admitir que a sensação era de borboletas na barriga. Arrumar-se com suas roupas mais bonitas e se maquiar pensando em cada detalhe. Ver se a conversa flui bem e se as risadas veem com naturalidade e constância. Sentir-se um pouco constrangida e acanhada por não ainda não ter intimidade o suficiente. Os elogios sinceros, o cavalheirismo de abrir a porta do carro e oferecer a mão. O cheiro encantador do buquê de flores com um bilhete agradecendo o encontro na manhã seguinte. Todos esses detalhes que passavam por minha mente só aumentavam a ansiedade de querer que tudo desse certo. Quem não gosta de um pouquinho de romance? Quem não gosta daquela parte dos filmes em que finalmente tudo começa a dar certo e a vida começa a parecer uma eterna valsa?
Peguei-me tão distraída em milhares de outros pensamentos, que quase não percebi o garçom falando comigo.
- Senhora, não gostaria de receber a entrada e a cartela de vinho agora? Podemos trazer o cardápio também.
Mas ele não havia acabado de me perguntar isso? Olhei confusa para o relógio em meu pulso. Já havia passado vinte minutos desde que eu havia sentado.
- Talvez o vinho, mas não precisa trazer a cartela. Gostaria de um beaujolais.
Assim que vi o homem assentir e se afastar da mesa novamente, peguei meu celular e liguei para Henry.
- Henry?
- Sou eu, quem está falando? – Um barulho muito forte de soldagem dava para ser ouvido no fundo da ligação.
- Ridículo, você sabe muito bem quem é. - Pude ouvir outro barulho, mas dessa vez parecia um estalo elétrico leve e Henry fez um barulho de frustração com a boca. - O que você está fazendo?
- Me arrependendo amargamente por não ter feito engenharia elétrica.
- Do que você está falando?
- Alguém precisou mudar uma saída de tomada e eu me ofereci para trocar.
- E não tinha nenhum técnico por perto?
- Sim, eu.
- Henry, você não é técnico de elétrica.
- Eu dou meus pulos, vai dar certo, além do mais dessa vez eu lembrei de desligar disjuntor certo... Você me ligou para a gente discutir sobre isso?
- Não, bem lembrado. Liguei para perguntar se o ainda está aí.
- Não está, Amélia disse que ele saiu há quase... hm... uma hora já. Ele não chegou?
- Ainda não. Talvez ele esteja chegando, não sei.
- Está sim, ninguém daria o bolo em . Se ele não aparecer em mais vinte minutos, me liga que eu arranjo trinta caras que queiram sair com você, é só gritar seu nome numa companhia e eles já fazem fila.
- Ok, vou esperar mais um pouco. – Revirei os olhos com o exagero de Henry e encarei o lugar vazio. Tenho certeza de que ele teria uma boa explicação para o atraso. – Henry, não se esqueça de checar com a Pratt&Whitney a data certa para recebermos aquele motor. O projeto todo está dependendo disso e eu não...
- Relaxa aí e curte seu encontro, eu me viro por aqui com a lista de tarefas que você deixou impressa em cima da minha mesa para caso você não voltasse tão cedo.
- Obrigada.
Sorri discretamente e desliguei. Foi bem nessa hora que o garçom voltou com uma garrafa de vinho, mas viu que a taça ainda estava cheia. Quando foi que ele colocou aquela taça ali?
Os próximos quarenta minutos passaram mais devagar do que se eu estivesse vendo um documentário sobre plantas. Eu observei cada uma das pessoas que saiam e entravam no restaurante, como cada uma se vestia e se expressava. Observei também o garçom ir e vir, perguntando se eu não gostaria de pedir nada. Cheguei à conclusão de que eles queriam que eu fosse embora para ter a mesa livre e colocar outras pessoas que certamente pediriam comida. Cogitei que todos eles tinham algum tipo de aposta para ver quando eu ia desistir e ir embora. A falta de ter o que fazer me entediou tanto que o que mais me deixava entretida no momento era deixar o garfo paralelo à faca na mesa e os guardanapos alinhados perfeitamente também.
Eu só não estava preocupada com o horário, porque era chefe do meu próprio departamento e se eu estourasse o meu limite de horário de almoço, era só eu repor com mais horas de trabalho ao fim do dia e ninguém iria brigar comigo.
Respirei fundo e me levantei. Onde eu estava com a cabeça? Uma hora é inaceitável.
Assim que coloquei o pé na calçada, meu carro já me esperava bem à frente do restaurante. Agradeci o manobrista, que abriu a porta para mim. Definitivamente não era a pessoa que eu gostaria que estivesse fazendo isso, mas foi gentil de qualquer jeito.
- Quer saber? – Sussurrei para mim mesma enquanto já dirigia sem pressa nenhuma pelas ruas. – Já que estou aqui, vou passar na melhor sorveteria da cidade. Pelo menos isso eu mereço.
Sem muita delonga, já com o caminho decorado na cabeça, fui até uma das sorveterias mais antigas que existiam na reunião. Era uma casa antiga, mas que foi recentemente reformada. Sua fachada era branca, com janelas imensas por onde podíamos ver o interior, e a entrada tinha várias flores, um lugar que só de olhar já transmitia certa paz e doçura nos lábios.
Assim que estacionei meu carro e ia abrir a porta, olhei pela janela e meus olhos cruzaram de imediato com uma figura familiar.
. sentado bem na mesa que ficava do lado de dentro do restaurante ao lado da sorveteria, perto da janela, mas não sozinho. Acompanhado de uma bela mulher.
Por alguns minutos não soube muito bem o que fazer senão encarar a cena.
Eles pareciam conversar e trocaram algumas risadas, mas não pude ver as expressões faciais dela de onde estava. olhou de relance para o seu relógio em algum momento e pareceu que ambos tinham que ir já. Terminaram o encontro com um abraço apertado e um beijo demorado, com ela colocando as mãos sobre o seu maxilar.
Agradabilíssimo no mínimo. Eu podia sentir cada ínfima célula do meu corpo pegar fogo. Eu fiquei esperando por uma hora, sem explicação nenhuma, me convencendo de que ele tinha uma razão incrível. Esperando por um homem que estava saindo com outra mulher? Eu não conseguia colocar em palavras a minha indignação com tamanho desrespeito.
Bati ambas as mãos no volante repetidamente e quando parei, agradeci que não tinha esbarrado na buzina. Teria sido no mínimo um grande incomodo se ouvisse e percebesse que eu estava parada em meu carro, observando-o. Soltei um grande grito de frustração e alguns palavrões até conseguir controlar um pouco da raiva.
Nada mudaria o que já aconteceu, então respirei fundo e decidi voltar ao trabalho. Nada me distrairia mais do ocorrido do que longas horas de trabalho pela frente.
De repente, ouço o barulho de alguma coisa vibrando na minha bolsa. Peguei meu celular para ver que um número desconhecido me ligada. Sem delongas, olhei de imediato para o espelho do retrovisor. estava parado na calçada, com o celular em seu ouvido.
- Se for você, , está muito tarde para essa ligação, não acha?

- ! – Um Madeline sorridente e saltitante veio correndo em minha direção.
Vê-la me deu um pouco de reconforto, como se já fossemos amigas há muito tempo. Eu só achava estranho encontrar ela do nada nos lugares mais inusitados. Quer dizer, estávamos no corredor que saia da garagem, o que diabos ela estava fazendo lá?
- Madeline! Como foi seu dia até agora?
- Incrível! Fui acompanhar a companhia 2 para ver o porquê de querer tanto estar nela. – Ela segurou meu braço e entrelaçou-o junto ao seu enquanto andávamos. – Acabei conhecendo o Fred hoje, você o conhece?
- Não muito bem, nos falamos ontem na ala médica. Ele me pareceu uma pessoa muito boa e engraçada.
- Com certeza! – Madeline estava sorridente demais e sua voz saia um pouco mais aguda do que o normal, talvez fosse a felicidade. – Ele é tão atencioso, não é?
- Oh. – Ergui uma das sobrancelhas e um sorriso surgiu em meus lábios. – Entendi já. Vejo que vocês se deram bem.
- Sim, mas não acho que qualquer pessoa possa não se dar bem com ele. Seu jeito é tão simpático.
- Acredite se quiser, mas Amélia não se dá muito bem com ele, por motivos que só ela sabe..., Mas esse não é o ponto. Então, ele já te convidou para sair?
- Almoçamos juntos hoje, mas foi no refeitório mesmo.
- E como foi? – Paramos em frente ao elevador. – Deve ter sido maravilhoso para gerar esse sorriso aí.
- Ele é um doce, não poderia ter sido melhor.
- Madeline, você... – Coloquei a mão sobre o ouvido e as portas do elevador se abriram logo em seguida. – Está ouvindo isso?
Ela olhou para dentro do elevador, na procura de algo, mas logo me olhou confusa.
- Ouvindo o que?
- O barulho dos sinos de igreja. Eu acho que alguém encontrou o amor verdadeiro.
A mulher ao meu lado não soube como reagir enquanto descíamos uns andares. Ela abriu e fechou a boca diversas vezes, mas se limitou a corar. Uma voz robótica anunciou a chegada no andar que queríamos e demos de cara com Amélia e Henry.
- Por que toda vez que usamos o elevador, ele nos leva direto para algum problema?
- É bom vê-la de novo, .
- Oh... Uma ácida... Hm... – De início Amélia pareceu preocupada, mas depois sua expressão entristeceu. – Algo deu errado. O encontro... O encontro deu errado!
- Claro que não, você...
- Ela está certa, Henry. – Suspirei e comecei a caminhar pelo pátio com Madeline ainda ao meu lado.
- Como você... – O engenheiro não conseguiu terminar a frase.
- Eu sei de tudo, só você que ainda não percebeu isso. Agora nos conte, o que aconteceu? – Amélia apressou o passo para ficar ao meu lado.
- Você está confortável em falar sobre isso? – Madeline soou genuinamente preocupada e eu agradeci a ternura com um olhar.
- Ela tem que falar, caso contrário como eu vou saber o quanto eu tenho que bater nesse desgraçado desse ?
- Henry, primeiro que ele ia acabar com você em dois segundos. Segundo que ela vai contar para tirar isso de seu sistema. – Amélia encarou-o incrédula, achando aquilo tudo muito óbvio.
- Ok. – Parei de andar e resolvi desabafar ali, no meio de um pátio qualquer, com dezenas de pessoas correndo para lá e para cá. Instantaneamente eles formaram uma roda para me ouvirem melhor. Todos tinham uma certa apreensão em seus semblantes. – O que aconteceu, sem exibir muitos detalhes, foi que, enquanto eu estava esperando no restaurante, estava saindo com outra mulher e me deu um grande bolo.
- Sem avisar?
- Você acha que isso é o problema, Henry? Ele estava saindo com outra mulher! Hoje você esqueceu de acordar o cérebro também quando levantou da cama.
- Grossa, como sempre. Não vou nem me dar ao trabalho de responder.
- Não é preciso, isso não foi uma pergunta, querido. – Amélia rebateu.
- Gente, está tudo bem. – Suspirei e sorri sincera. Estava tudo bem mesmo, o mundo não para quando algo desagradável acontece. – Acontece. O que farei agora é só fingir que nada aconteceu.
- Você não acha que vai te procurar para dar alguma explicação? – Madeline parecia tão profundamente indignada com a situação que seus grandes olhos transbordavam certo desespero, como se seu romance favorito não tivesse um final hollywoodiano, mas sim trágico. – Quer dizer, ele tem que ter uma boa explicação... E se ela for só uma irmã, uma prima ou uma amiga?
- Uma amiga colorida? Que homem beija a própria irmã ou prima, Madeline? Que tipo de ser inocente do exército você é? – Amélia colocou a mão em sua cintura e encarou-a irritada. – O mundo não é um mar de rosas onde todos são correspondidos o tempo todo e tudo termina em casamentos regados à lírios e rosas na praia. Algumas vezes a pessoa entra no restaurante, te vê e resolve ir embora.
- Ok, isso doeu. – Coloquei a mão sobre o peito.
- O mundo é regado de sofrimento, irracionalidade e dor! – Amélia continuou a falar, encarando a loira a sua frente com fúria. - Você não pode esperar que a próxima pessoa que esbarra na sua frente seja o amor da sua vida e que ele vai curar todos os sentimentos ruins que você carrega! A vida não é gentil, ela só...
- Amélia, - Coloquei a mão delicadamente sobre seu ombro. A médica já estava super corada, eu podia sentir o ar saindo ferozmente de suas narinas e sua postura estava tensa. – Eu acho que é melhor pararmos por aqui.
Encarei Henry a minha frente, que logo entendeu o que eu quis dizer e segurou Amélia pelo braço. Enquanto eles caminhavam em direção a um dos longos corredores, a doutora Bennet parecia desabar de uma maneira não tão controlada as suas emoções. Henry apenas se restringia a concordar com a cabeça. Logo que eles sumiram, virei-me para Madeline, que parecia um pouco chateada com a situação.
- Não fique assim. Vamos caminhando até o hangar para discutirmos sobre o projeto no meu escritório. Até lá, vou te contar uma coisa importante. Para começar, preciso que entenda que Amélia não é militar, ela é médica. E como médica, ela procura curar o próximo. Só que desde que ela virou uma médica militar, as coisas que ela acabou vendo e sentindo moldaram-na. Você pode imaginar então, talvez nem precise se já esteve em alguma guerra, como uma ida ao Iraque no começo de sua carreira transformou-a. Ela já não entendia como um mundo tão politizado e globalizado como o nosso pudesse estar em guerra em primeiro lugar, então soava absurdo homens tão saudáveis terem que arriscar a vida em campo. A partir daí as coisas só pioraram. Ela teve que começar a cuidar de feridos sem quase ter ferramentas para isso, perdendo vidas direto na maca e aos poucos teve que aceitar que mandaria para casa soldados que passaram anos de suas vidas se dedicando a servir o país sem pernas ou braços e com sérios traumas psicológicos. Ela entende que vai pelo menos mandá-los para casa com vida, mas não aceita que seja com sequelas. É raro ela ter noites sem pesadelos e para piorar todo o cenário, não consigo nem imaginar a dor que é perder alguém num campo de batalha.
- Como assim? – Madeline arregalou os olhos e parou de andar, bem quando estávamos de frente para o hangar.
- Eu acredito que todos tenhamos nossas histórias trágicas de amor. Digo, provavelmente você tem uma e nenhum de nós sabemos. O mais incrível dessas histórias é que não importa se for um amor adolescente ou um divórcio, elas só frisam que a dor infelizmente é uma língua universal. – A mulher ao meu lado ruborizou e continuamos a andar. - Amélia foi casada com um militar, foi por isso, na verdade, que ela veio para o exército. Certamente não teria vindo de maneira voluntária se dependesse somente dela..., Mas o casamento durou o total de dois meses, porque ambos foram convocados.
- O que aconteceu?
- Bom, ninguém gosta de falar sobre isso, mas acho que é importante. O marido de Amélia era um major-general, assim como Elijah. Na época ele foi convocado para uma missão especial de seis pessoas que não sabemos aonde foi, algo bem confidencial aparentemente. No meio do caminho, as coisas começaram a desandar e ele e mais outro membro da equipe foram capturados e torturados. Demorou semanas para que os encontrassem, mas quando eles voltaram, Amélia não o reconhecia mais. É como se tivessem apagado uma pessoa. Você sabe, essas histórias são mais comuns no exército do que achamos.
Antes que Madeline pudesse responder qualquer coisa, ao terminar de subir as escadas, demos de cara com ninguém menos do que . Inicialmente, ela só o encarou e abriu um sorriso discreto, mas depois que percebeu que o clima estava um pouco tenso, arregalou os olhos e abriu sua boca para expressar a perplexidade. Ela parecia não saber se comentava sobre o que acabei de falar ou se cumprimentava o homem fardado na sua frente, então intercalava o olhar entre eu e ele.
- Capitão . – Falei friamente seu nome enquanto encarava-o em seus olhos. Eu queria entender o que passou na cabeça audaciosa dele para vir me encarar logo depois de ter me deixado esperando por uma hora feito idiota.
- , eu...
- Essa é a coronel Harvey. Madeline, esse é o capitão .
- Então você é Madeline Harvey. – pareceu animado enquanto apertava a mão de uma Madeline bem atônita. – Fred não para de falar sobre você. – Uma Madeline bem atônita, porém bem feliz também agora. – Soube que se conheceram hoje! Uma ótima pessoa ele, não acha?
Antes que eles engatassem conversa, que inclusive, era o que eu mais queria evitar no momento, que se envolvesse o babaca do , interrompi.
- Adoraria ficar para conversar, - Acho que o tom irônico da minha voz entregou um pouco da raiva que eu estava sentindo. A quem eu estava tentando enganar? Até agora estava me empenhando em parecer plena, mas no fundo eu queria que e a mulher bonita do restaurante explodissem. – Mas tenho muita coisa para fazer. Madeline, quando quiser conversar sobre o projeto, estarei em meu escritório.
- , por favor, espere. – olhou-me e pude ver um piscar de arrependimento passar pela sua íris. Por dois segundos senti meu coração amolecer. – Eu queria conversar com você.
Quebrei o contato visual e entrei em minha sala sem grande reverência e deixei a porta aberta, indo logo em direção à mesa. Se eu encarasse por mais dois segundos aquele homem, parte de mim iria esquecer o que ele fez. Não demorou muito para que Madeline e já estivessem dentro do local. A primeira parecia distraída com a decoração e o segundo me fitava de pé, com uma mão no bolso e a outra na nuca.
- Teoricamente você tem o direito de liberdade de expressão, então pode falar o que quiser. – Disse séria enquanto mexia em alguns arquivos.
- Eu queria me explicar sobre hoje. Aconteceu um imprevisto e... – pareceu incomodado como fato de Madeline já estar sentada numa das poltronas, encarando-o como se nós estivéssemos num filme e ela fosse uma espectadora qualquer no cinema. – Podemos conversar a sós?
- Não se preocupe, nada que você for me falar não pode ser dito na frente da coronel Harvey. Além de que, tenho certeza que será uma conversa breve.
Pude ver de relance uma reação de Madeline e seu sussurro “Outch”.
- Olha, eu peço desculpas por -la deixado esperando. – Olhei-o pela primeira vez desde que adentramos o cômodo. Seus ombros estavam um pouco mais relaxados do que o normal e ele aparentava estar realmente chateado. – Um imprevisto que não pode ser evitado surgiu e precisei tomar conta.
- E você não poderia ter me ligado para avisar? – Cruzei os braços na altura do peito e esperei por uma resposta. Ele teria que ter uma justificativa muito, mas muito boa mesmo se quisesse mudar minha opinião em relação ao que aconteceu. No mínimo foi humilhante.
-Sim, eu devia ter, mas acabei esquecendo, por causa da urgência.
- Alguém morreu? Algo pegou fogo? Alguém saiu gravemente ferido? Algo explodiu? Roubaram seu celular? – Madeline jogou todas essas perguntas e, apesar de ela estar se intrometendo na conversa por estar fascinada com a situação, não julguei necessário interromper, porque estava curiosa para saber que urgência era aquela que não dava tempo de uma ligação de um minuto.
- Não, nada disso, nada grave assim, só....
- , a minha única pergunta é se você tinha tempo de me ligar para avisar ou mandar uma mensagem.
- Eu tinha. – Ele suspirou de modo profundo, meio sem jeito. – Me desculpe, de verdade, me desculpe. Foi muito idiota da minha parte não ter avisado.
- Está tudo bem já, . – De certa maneira, algo dentro de mim só queria que tudo aquilo acabasse logo. Eu não queria ter que admitir que no fundo estava chateada que as coisas não tivessem dado certo, afinal, era o tipo de cara pelo qual esperei a vida toda. O tipo de cara que você vê em filmes e deseja secretamente ser a donzela em perigo, prestes a ser salva. – Bom, se não houver mais nada, preciso discutir um projeto com a Madeline.
Sem precisar pronunciar uma palavra, respirou fundo e, com um olhar triste, se despediu e saiu pela porta.
- Preciso te dizer uma coisa. – A coronel se levantou tão rápido que eu pisquei e ela já estava em minha frente, ansiosa para revelar um segredo como uma criança pronta para dizer para a própria mãe que quebrou seu vazo favorito na casa. – Eu não pude deixar de tocar sobre o assunto “Você e ” com Fred hoje de manhã. Fred disse que nunca tinha visto tão feliz havia anos! Que o jeito que ele te descrevia era tão carinhoso e delicado, que o fez pensar que o próprio estaria apaixonado só com um encontro do acaso. Não parava de falar que o jeito que você anda é tão cativante que não conseguia tirar os olhos de você, que o seu cheiro é tão doce e que seu sorriso transmite tanta tranquilidade que o faz esquecer que ele foi convocado para uma missão na Síria... Síria? Talvez eu esteja confundindo.
- Ele foi o que? – Parei imediatamente de mexer nos papéis e encarei-a pálida.
- Ele foi convocado. Achei que soubesse.
- Não sabia. – Apoiei minha mão no encosto da cadeira. De repente a ideia de que ele iria para guerra ou algo do tipo me fez pensar que talvez eu não quisesse que ele explodisse. A fraqueza momentânea de meu corpo porventura demonstrou que eu não queria que ele fosse só mais um estranho indo para a guerra. – Quando?
- Em duas semanas.

Após esse episódio, os dias se passaram com mais pressa do que nunca. Eu fiquei cada vez mais próxima de Madeline, ela tinha uma personalidade tão leve e bondosa que automaticamente me atraí. O tempo com ela era como sempre ver o lado positivo das coisas e ter boas risadas garantidas. Algo no seu jeito acanhado me fazia lembrar dos bons momentos que tinha antes de ficar devota ao trabalho recluso, acho que era assim que todos a sua volta se sentiam na verdade. Amélia, no começo, não se acomodou bem com a ideia de que Madeline ficaria por aqui, às vezes era mais irônica e seca do que o normal, porém tudo se desenrolou bem, já estava encantada com o caráter dela e com certeza não era a única.
Fred e Madeline identificavam-se muito. Dava para ver que a conversa nunca acabava entre eles e, naturalmente, Fred começou a andar mais comigo e com Henry, só que isso também significava que estava por perto com frequência. Devo admitir que me senti bem desconfortável a princípio. Não sabia como reagir quando ele se sentava ao meu lado na mesa do refeitório, ou quando ele engatava uma conversa animada com Henry sobre aeronaves e eu era introduzida nela, ou quando ele sabia que eu amava a sobremesa da janta e não comia a dele para me dar depois. Como um famoso ditado frisa, no entanto, o tempo cura. Eu não poderia concordar mais. tinha assuntos tão interessantes e falava com tanta paixão que foi inevitável eu não querer de pular de cabeça nas conversas em questão de dois ou três dias. Ele era muito atencioso às minhas opiniões em particular e Henry nunca deixava de frisar isso quando estávamos trabalhando em meu escritório até altas horas da madrugada.
- Sabe, ele é um cara legal. Já perguntou para ele o porquê de ele ter dado o bolo?
- Não, mas perguntei se ele tinha tempo de me ligar e ele disse que sim. – Abaixei-me na cadeira para tirar meus saltos. Já eram três horas da madrugada e eu podia sentir o desconforto exalando do meu corpo. – Nem tem mais o que discutir sobre isso.
- Não seja boba, eu vejo o jeito que você fica feliz quando ele guarda a gelatina da cor vermelha para você ou o jeito que sorri quando ele abre a porta para você. – Henry olhou para baixo e arrastou a voz na última parte da fala, ressaltando-a.
- Você quer que ele abra a porta para você? – Desviei o olhar do computador em meu colo e só pude ver sua cara de deboche. – Eu consigo arranjar isso se quiser.
- Você é cínica demais. E daí que ele não apareceu no dia, grande coisa!
- Isso é o sono falando. Você não sabe como isso me chateou. Quero dizer, se coloque no meu lugar. Um primeiro encontro em anos e você descobre que o cara te deixou plantada no restaurante com os garçons quase apostando que horas eu finalmente desistiria de esperar, para se deparar com ele tendo um encontro com outra mulher?
- Ok, você tem todo direito de ficar brava, mas isso não exclui o fato dele gostar de você também.
- Também? – Ergui uma das sobrancelhas. – Você definitivamente precisa de um copo de café... Talvez até uma jarra inteira.


Capítulo 4

Eu estava anotando algumas coisas enquanto andava por entre grandes caixas que havia dentro do avião cargueiro C-130J. Ele havia sido colocado no hangar há dois dias e eu fiquei encarregada da manutenção.
- Eu realmente acho incrível como você consegue fazer seu trabalho de salto.
- Amélia! – Sorri ao vê-la se apoiar em uma das caixas de plástico pretas. – O que faz aqui?
- Vim te dar um oi, cansei de ficar suturando por hoje.
- Tenho quase certeza de que seu trabalho não funciona assim. – Desviei o olhar e continuei a avaliar a estrutura interna da fuselagem. – Sinto dizer que não tenho nenhuma informação nova para te contar.
- Sério? Mas faz tipo uma semana já que quase não nos falamos!
- A gente fofoca todo dia na janta.
- Hm. Tá, ok, isso é verdade... – O silêncio tomou conta do local, mas não me dei ao trabalho de me virar e encarar Amélia, um ser humano curioso, que provavelmente estava mexendo em algo que não devia. - Eu tenho uma novidade! Desde que aquela tal de Madeline chegou, Fred tem parado de ficar no meu pé. Em fim um pouco de tranquilidade e a pausa nas cantadas e nas flores.
- Talvez não seja uma pausa. Já reparou como os dois parecem se dar super bem? Tenho quase certeza de que isso vai evoluir para algo mais íntimo. Você não acha?
- Wow! Vem ver isso.
Sem entender muito bem o que Amélia tinha acabado de falar, me virei para encará-la e encontrei-a de braços cruzados, com a cabeça quase prensada contra uma das pequenas janelas do avião. Seja lá o que estivesse vendo, realmente tinha capturado sua atenção. Chamei pelo seu nome umas cinco vezes e ela sequer pareceu ouvir. Antes de começar a andar em direção à janelinha do seu lado, revirei os olhos. Quando cheguei perto e pude ver do que ela falava, lá estava o major atravessando o hangar com o uniforme de piloto, capacete embaixo do braço e óculos de sol. Estranhamente a cena aparentava ocorrer em câmera lenta.
- Oh sim... Que homem! – Amélia olhou-o da cabeça aos pés na medida que ele chegava cada vez mais perto. – Você também consegue ouvir e ver?
- Ouvir e ver o quê?
- A música de rock no fundo e a explosão lá atrás! É como se ele tivesse acabado de sair de um filme... Ou um catálogo com modelos de cueca. Os dois servem para mim.
- Eu não sei quando criei o gosto por andar com pessoas tão modestas.
- O que estão olhando? – De repente uma voz grossa soou atrás de nossas costas e eu levei um susto ao ver parado ali.
- Estamos só vendo se o vidro está limpo. – Olhei para Amélia com uma expressão de incredulidade. Como ela conseguia mentir tão mal? Só nesses momentos que eu percebia que o fato de Henry mentir tão bem era um presente divino. – O que faz aqui, ?
- Estava terminando de fazer um treinamento. Como o nosso projeto está quase pronto, – Ele deu uma piscadinha para mim ao se referir ao caça. – Sinto que devo colocar mais prática em dia.
Um silêncio logo tomou conta do local e tive que ficar vendo Amélia analisar , enquanto ele tinha a fisionomia de uma pessoa incomodada. Passados o que pareciam minutos calados, a tensão começou a ser palpável, sobretudo quando Amélia começou a abrir e fechar a boca na tentativa de falar algo. Peguei-me segurando minha própria respiração.
- Ok, vou voltar a fazer a manutenção, ainda dá tempo de terminar a fuselagem antes do almoço.
- Você não vai para a feira de adoção? – olhou para o relógio em seu pulso. – Madeline vai passar aqui em alguns minutos para irmos juntos. Gostariam de vir com a gente?
- Feira de adoção?
- Sim! A feira de adoção de animais que o exército faz anualmente. – Amélia colocou a mão na testa. – Ano passado a gente esqueceu de fechar a portinha e os cachorros saíram correndo, lembra?
De repente uma avalanche de imagens preenchera minha cabeça. Foi uma das lembranças que eu mais suprimi durante o último ano, afinal não era nada agradável lembrar da bronca que levamos do Major Fox.
- Cara, como soldados tão bem treinados não conseguem reter alguns cachorros correndo numa pista de pouso?
- Alguns cachorros? Amélia, tinha tipo uns cem.
A médica estava pronta para rebater minha fala, quando algum pensamento importante chamou sua atenção e de imediato sua pele ficou mais pálida e seus olhos me encaravam com raiva.
- Não posso deixar alguém adotar o meu cachorrinho de novo.
- Você adotou o cachorro que ela queria? – olhou surpreso para mim.
- Não, não fui eu. Na verdade, agradeço que não fui eu, ela teria me chutado no lugar da outra pessoa.
- Você chutou alguém numa feira de adoção de animais? – olhava incrédulo para Amélia, que só revirou os olhos.
- Ela mereceu. – A médica cruzou os braços.
- Ela só tinha oito anos. – Falei calmamente.
- Ela adotou o cãozinho que eu queria! – Amélia olhou para a janela, como quem não quer nada e quando estava voltando a me olhar, voltou seus olhos para a janela de novo e pude vê-los brilhar. Eu já podia imaginar o que ela iria fazer.
Com pressa, larguei os papéis, quase jogando-os na médica, que se atrapalhou toda e soltou um palavrão qualquer. Sai correndo na intenção de sentar na cadeira em frente ao volante no único carrinho do hangar. Eu não poderia deixar que Amélia sequer chegasse perto da direção, ela seria capaz de atropelar alguém que decidiu adotar o cachorro, o gatinho, o coelho ou qualquer outro animal que ela achou fofo e queria. A gente todo ano tinha essa mesma discussão, porque ela morava no quartel e não tinha como ter um animal de estimação, mas mesmo assim ela insistia em adotar um.
Estava na metade do caminho já quando vi Amélia me ultrapassar correndo.
- Saltos de merda! – Revirei os olhos e a vi chegar cada vez mais perto do carrinho.
Para o meu alívio, segundos antes de ela subir no banco, chegou e rapidamente segurou-a, carregando-a em seu ombro.
- ME SOLTA, !
- Obrigada, . – Agradeci com um beijo em sua bochecha e ele corou. Sentei-me no banco do motorista e liguei o carrinho. – Por favor, sem agressões esse ano.
A mulher agora sendo colocada no branco de trás só disse “Mimimi” e cruzou os braços irritadas.
- Você é a pior amiga do mundo, .
Madeline chegou na hora certa com seu sorriso doce. Depois de nos cumprimentar e perceber que Amélia não estava nos melhores de seus humores, ela fingiu que estava tudo bem e começou a falar sobre como ela cresceu na casa da tia que tinha seis gatos e como todos eles eram a coisa mais linda do mundo.
- E você, , já teve gatos? – Maddie perguntou se inclinando para mais perto de nós.
- Não, sou alérgico.
- Uma pena. – A coronel pareceu genuinamente chateada. – O filho do também é e ele ficou bem chateado quando soube.
Pisei fundo no freio e, como ninguém esperava por isso, Amélia e Madeline bateram a cabeça com tudo nos bancos da frente e esticou seu braço para apoiar-se no painel num reflexo muito bom. Olhei para trás mais surpresa do que achei que estava aparentando.
- Oh, por acaso você NÃO GOSTA DA GENTE E QUER NOS MATAR? – Amélia gritava enquanto passava a mão na testa.
- tem um filho?
- Achei que soubesse, . – Madeline colocava a mão sobre a testa enquanto fazia uma cara de quem falou algo que não devia. – A gente sempre fica nessas situações, não é? Em que eu acabo te contando coisas na hora errada e você entra em choque.
- Na próxima aventura, por que você não resolve jogar o carrinho de um penhasco?
- Amélia, foi só uma batida, relaxa. – Respondi impaciente e voltei a olhar para frente.
A partir daí o caminho foi dominado pelo silêncio. Acho que ninguém estava muito disposto a quebrar a tensão e eu nem ouviria caso acontecesse, estava concentrada demais em ficar chocada. Eu sabia que não deveria estar, isso não tinha absolutamente nenhuma relação comigo.
De longe, pude ver Madeline ficar animada quando viu as diversas barraquinhas brancas e algumas cercas. Ela apontava para o local feito uma criança feliz. Cada vez que chegávamos mais perto, mais tínhamos noção do tamanho do evento. A cidade toda estava presente, mesmo com o sol escaldante quase no pico, barraquinhas de comidas e acessórios se estendiam até onde os olhos não alcançavam, definitivamente estava duas vezes maior que o ano passado. O marketing deve ter sido bom esse ano.
Assim que estacionei em um canto qualquer, Amélia e Madeline foram as primeiras a pularem do carrinho e sair correndo em direção à primeira bola peluda e pequena que viam pela frente.
- É como se tivéssemos duas filhas pequenas.
- Tenho que discordar. – passou a mão na nuca. – A minha é bem mais comportada.
Sorri e ele me acompanhou enquanto andávamos pela multidão.
Foi um pouco estranho esbarrar com algumas pessoas lá, tipo alguns vizinhos e colegas da escola, mas eu, com certeza não estava preparada para encontrar a mãe de Amélia.
- , querida!
- Amélia! Como você está?
- Você também chama Amélia? – perguntou desconcertado e eu dei um sorriso sem graça.
- Mas é claro, que outro jeito melhor do que desejar que sua própria filha seja bonita como a mãe senão dando o nome de uma musa como eu?
Dentre todas as pessoas do mundo, a mãe de Amélia certamente era a que eu mais achava difícil de conversar. Ela sempre conseguia me deixar sem palavras, mas nem todas as vezes era de uma maneira encantadora.
- Mas me diga, docinho, quem é você? – Antes que pudesse responder, ela logo abriu a boca em choque e continuou a falar. – Me digam que estão noivos!
- A gente? – Virei-me para olhar para o homem ao meu lado, que fez o mesmo. Começamos a rir e, no segundo seguinte, paramos de repente e cada um deu um passo para o lado, nos afastando. – Não, somos só amigos. Esse é o major .
- Muito prazer. – Ela estendeu a mão para cumprimentá-lo. – Se ela não está saindo com você, será que eu não deveria? – Amélia deu uma piscadinha e instantaneamente soltou sua mão, encarando-a assustado.
Dei uma leve tossida, tentando não rir, e mudei de assunto para que não precisasse responder.
- Então, a senhora já encontrou sua filha por aqui?
- Não, ainda não, mas encontrei um capitão muito bonito acompanhado de uma mulher não tão bonita assim. Se eles não estiverem juntos também, você sem dúvida deveria ir falar com ele! É um homem tão bonito e tão agradável.
- Não se preocupe, senhora Bennet, eu não estou procurando alguém no momento. Na verdade, eu...
- Ali! É dele quem estou falando. – Amélia apontava animada em direção a nossa esquerda. Assim que virei minha cabeça, pude enxergar e aquela mesma mulher do restaurante andando lado a lado e conversando. Estavam vindo em nossa direção. Só podia ser brincadeira.
Eu não conseguia parar de olhá-los, de pensar como eles até que formavam um casal agradável. Ele fazia alguma piada, ela ria e colocava uma mecha de cabelo atrás da orelha. Algo me incomodava naquilo, não queria admitir, mas no fundo desejava que ele.... Desejava que ele o que, ? Todo mundo sabe que eu queria estar no lugar daquela mulher que já xinguei tanto mentalmente sem ao menos conhecer. Vê-los tão perto de novo fazia meu sangue subir à cabeça e eu, ser perceber, rangi os dentes e tencionei ombro.
Não sei quanto tempo fiquei perdida em meus pensamentos, mas balancei a cabeça ao perceber que já havia me chamado algumas vezes, Amélia já tinha ido embora e agora eles estavam a dois passos de nós.
- Me desculpa, acabei de me distraindo. – Olhei de modo rápido para e, quando voltei para frente, lá estava o casal sorridente. – ! Oi!
- , - Ele sorriu carinhoso e minha nuca arrepiou. – . Essa é Lou.
- Muito prazer, Lou. – Ofereci minha mão e ela me cumprimentou, sorrindo simpática.
- Meu Deus, você é tão linda. – Fiquei meio desconcertada com o elogio inesperado e, antes que pudesse retribuir, ela já falava com .
- E então, onde se conheceram? – O major perguntou acolhedor.
- e eu nos conhecemos desde o colegial. – Ela encarou-o sorrindo.
Comecei a me perguntar se ela não era a mãe do filho de . Será que eles estavam juntos?
- Nossa, então vocês estão juntos há muito tempo já.
-Não, , somos só amigos. – passou a mão pela nuca, meio sem graça, e me fitou, mas eu não expressei reação alguma. O que ele não sabia é que eu tinha sentido uma pontada de felicidade tomar conta do meu corpo. – Não nos víamos há quase dez ou onze anos. – E toda a pontada de felicidade havia ido embora com essa mentira descarada.
- Então faz tempo que vocês não se encontram, hm? – Juntei as sobrancelhas e encarei . – Uau, vocês devem ter muita coisa para colocar em dia. Sabe, se hoje não for tempo o suficiente para isso, eu tenho uma ótima indicação de restaurante, a comida é excelente e o ambiente é perfeito para conversar. Fica no centro, do lado da sorveteria mais antiga da cidade.
Lou ficou animada e começou a falar que tinha ido lá recentemente, que amava todos os pequenos detalhes que poderia se lembrar do local, capturando a atenção de , já empalideceu na hora e arregalou os olhos. Sorri satisfeita, era essa reação que eu esperava.
- Foi incrível conhecê-la, Lou. – Passei a mão pelo seu braço num gesto de simpatia. – Agora, se me dão licença, preciso encontrar outra pessoa.
A verdade era que eu não precisava encontrar ninguém, mas eu não queria ficar ali para ver a conversa tomar outro rumo e fingir que nada aconteceu. Eu, com certeza ficaria irritada com a audácia de , mas não gostaria também de arranjar uma discussão sobre o fato dele ser um grande mentiroso.
Assim que me retirei da roda, comecei a andar em direção ao carrinho que havíamos estacionado. Eu não estava mais à vontade para ficar no meio de tanta gente. Não demorou muito tempo para eu ouvir a voz de me chamando, porém fingi não ouvir e continuei caminhando calmamente. De repente, senti alguém segurar meu braço com firmeza e me virei para trás, com as sobrancelhas franzidas.
- , por favor, podemos conversar?
- Depende, você vai continuar mentindo, capitão ? – Uma mulher que estava próxima a nós parecia interessada na cena e, de maneira nada discreta, observava tudo.
- Não! Eu só...
- , o que está acontecendo?
- Nada disso é o que parece. – Algo em sua voz passava uma urgência. – Lou e eu não estamos juntos, mas nos vemos às vezes.
Ergui uma das sobrancelhas e a mulher que nos encarava abriu a boca em indignação.
- Você por algum acaso queria que eu saísse com você, enquanto você mantinha algum tipo de amizade colorida com outra mulher?
- Não, não foi isso que eu quis dizer! – agora segurava meus dois braços e as palavras saíam emboladas de tão rápido que as pronunciava. – Lou e eu somos só amigos, nos encontramos para conversar só.
- Eu imagino que seja realmente uma amizade importante, afinal você não me deixaria esperando durante uma hora no restaurante para sair com ela. – Agora, além da boca aberta, a estranha também tinha os olhos arregalados. Tirei as mãos de sobre meus braços e olhei de relance para a mulher. Eu estava começando a ficar incomodada com toda aquela atenção, então resolvi continuar andando, mas dessa vez em direção a um dos grandes pátios de treinamento que estava perto dali. Iria me enfiar em qualquer corredor com salas de reunião que tivesse uma máquina com comida para descontar a raiva que estava sentindo agora.
Eu estava realmente chateada, porque parte de mim só conseguia sentir uma vontade insana de querer acordar ao lado daquele homem, mas a parte orgulhosa se recusava a aceitar qualquer deslize, seja o tamanho que for. Na metade do caminho até o elevador, parei e esperei uns segundos até olhar para trás. Será que estava sendo estúpida ou razoável? Tudo o que consegui enxergar foram estranhos andando para lá e para cá, encantados com a comida ou os animais. Nada de . Respirei fundo, sorri fraco e olhei para o chão. Quem eu queria enganar, ele havia acabado de me procurar e tudo o que eu fiz foi afastá-lo.
Assim que entrei no elevador e a porta estava a centímetros de fechar, vi uma mão atravessar com pressa o vão estreito.
- Eu não acredito na falta de dignidade que tenho. – entrou no elevador passando uma mão na outra.
Então ele apertou o grande botão vermelho que parava o elevador e me encarou. Ele parecia bravo. Num reflexo, por talvez também estar irritada ou com a cabeça quente, apertei o botão também e pude sentir o elevador começar a descer. , um pouco confuso e talvez mais enfurecido ainda, apertou-o novamente e o elevador parou. Ficamos nessa competição infantil de apertar o botão por alguns segundos até o elevador começar a fazer um barulho agudo e luzes vermelhas tomarem conta do cubículo. Olhei para de relance, que retribuiu o olhar e eu calmamente apertei o botão, que não fez o elevador voltar a andar, mas pelo menos o barulho parou. Apertei mais uma vez e nada aconteceu. Só podia ser brincadeira, revirei os olhos e bufei irritada.
- Que ótimo, é disso que eu precisava, ficar presa no elevador com a pessoa que eu menos quero ver no momento. – Ok, , isso só era parcialmente verdade.
- Se você não tivesse que agir como criança e ficar apertando o botão, nada disso teria acontecido. – Estreitei os olhos e encarei-o com o resto de paciência que eu ainda tinha. – Não seja ridícula, eu só queria conversar.
- Claro, porque na civilização atual o único meio de conversarmos é você me trancando no elevador.
- Parece que é mesmo. – Ele sussurrou.
- O que disse? – Perguntei indignada. Ele não havia tido a audácia de dizer aquilo, não era possível.
- Ah, , sejamos sinceros. – parecia cansado e sentou-se no chão. Esperou uns segundos antes de voltar a falar e apoiou sua cabeça na parede, encarando o teto. – Você é uma mulher incrível. Não é à toa que eu corro atrás. Adoro o jeito que você agradece até demais a todos e pede desculpas até mesmo quando a culpa não é sua, porque é muito complacente. Adoro o jeito que você coloca o cabelo atrás da orelha e o jeito que morde os lábios quando está concentrada. Amo quando você me olha nos olhos e sorri, amo como você fala com paixão sobre o que te interessa e amo como você fica tão sem graça com os elogios e as piadas alheias. Não consigo lidar com o fato de que não consigo desviar o olhar quando você passa...
Depois de tudo que ele falou, me restringi a ficar calada, enquanto analisava com concentração sua face. Minhas pernas estavam bambas e em instantes já não as sentia mais, escorregando apoiada sobre a parede até estar sentada no chão, ao seu lado, atônita. Eu não fazia ideia de que me observava tanto ou sequer cativava algum sentimento romântico em relação a mim.
- Mas, - desviou seu olhar do teto para meus olhos. – Apesar de tudo isso, você não tem coragem de ao menos ouvir o que tenho a dizer. Você não quer admitir que talvez tenha um bom motivo para eu -la deixado esperando, porque seu orgulho não aceita essa possibilidade, que você foi evasiva, mesmo eu pedindo desculpas e tentando me explicar.
Desviei o meu olhar para o chão, envergonhada. Eu sentia que um caminhão tinha acabado de passar sobre mim e depois dado ré. Ele estava totalmente certo. O silêncio perdurou por um tempo até que eu pudesse pronunciar qualquer palavra. Eu podia ver em seus olhos que ele estava chateado.
- Me desculpe. – Pedi em um suspiro.
- Está tudo bem, não é como se eu não tivesse feito nada de errado também. Eu devia ter te ligado.
Ficamos nos encarando por algum tempo, sem trocar qualquer palavra, e aos poucos sorrisos singelos foram surgindo. Eu podia sentir meu estômago revirar quando passou a mão levemente sobre a minha bochecha. De repente a ideia de estar trancada num elevador por período indeterminado não parecia a pior ideia do mundo, muito pelo contrário, parecia me deixar bastante confortável. Coloquei a cabeça sobre seu ombro e cortou o silêncio.
- Eu não sei se eu já te contei, mas eu tenho um filho.
- Eu sei, Madeline me contou.
revirou os olhos e sussurrou “Fred...” antes de continuar falando.
- A verdade é que Lou é a mãe biológica dele. – Arregalei os olhos, mas ele não conseguia ver. – Mas eu não sou o pai biológico. Toda vez que nos esbarramos em algum lugar, ela sempre me pede para visitá-lo, mas as pessoas que o criam não acham que seja uma boa ideia e eu concordo, embora ela insista em conversarmos para tentar me convencer. Foi por isso que eu acabei não indo no encontro, Lou me encontrou andando na rua e não me deixou ir embora, ela queria muito conversar sobre isso. – passou a mão sobre a nuca. - Lou é incrível, mas tenho certeza que na primeira oportunidade que tiver vai contar que ela é a sua mãe verdadeira e acho que ainda não é a hora, sabe?
- O que você quer dizer com “as pessoas que o criam”? Não é você quem... Oh, me desculpe, não sei se posso fazer perguntas sobre isso.
- Está tudo bem, uma hora ou outra eu teria que te contar. Eu não tenho muito tempo para cuidar dele, com todo o treinamento para pilotar, tendo até que dormir aqui, fica meio difícil, então decidimos que os pais da minha ex-esposa que cuidariam dele.
- Mas você e Lou realmente são amigos desde o colegial?
- Sim.
- Então vocês adotaram o bebê dela?
- Sim.
Comecei a brincar com um anel em meu dedo, sem conseguir encará-lo.
- ... Se você e Lou são só amigos, por que se beijaram no restaurante?
- Eu não sei te explicar, mas queria que acreditasse quando eu te dissesse que foi ela quem me beijou e eu não retribui, apesar de ter ficado um pouco desconcertado e sem saber o que fazer na hora.
Sem saber muito bem como reagir, continuei apoiando minha cabeça em seu ombro sem dizer nada. não parecia querer conversar também, então ficamos em silêncio por um tempo.
- O que vocês fariam sem nós, não é mesmo? – A voz de Henry soou pelo cubículo todo e, numa animação repentina, me levantei num pulo, sendo acompanhando por , que não sabia para onde olhar, procurando por onde saía a voz. – Não acredito que perderam a feira. Amélia quase jogou um hambúrguer num idoso.
- Isso não é verdade, idiota. – Agora a voz de Amélia que podia ser ouvida.
- Vocês podem nos tirar logo daqui? – Perguntei impaciente.
- Calma, docinho, já estamos trabalhando nisso. Madeline e Fred estão mexendo nuns negócios lá para tirarem vocês daí..., Mas me digam, como ficaram presos no elevador?
Encarei sorrateiramente e ele segurou a risada.
- Problemas técnicos, não sei, Amélia.
Segundos depois a luz vermelha voltou a ficar branca e o elevador começou a descer.
- Obrigado. – sorriu, tentando encontrar alguma câmera.
Assim que as portas se abriram, Fred e Madeline nos aguardavam de mãos dadas, sorridentes, a milímetros de nós, o que nos fez dar um passo para trás, assustados.
- Se vocês correrem ainda dá tempo de pegar sorvete. É a única barraca aberta. – Maddie falou sorridente.
Arregalei meus olhos, totalmente sem saber como reagir, e num ato instintivo apertei o botão que fechava as portas.
- Isso foi bizarro.
- Nem me fale. – disse e logo depois riu. – Eles são estranhos, mas até que combinam.
- Não posso discordar.


Capítulo 5

- Não acredito!
- Eu juro! – Ri enquanto dava a última colherada de meu sorvete. – Amélia só revirou os olhos e tirou a faca ela mesma.
- Você está me dizendo que Amélia tirou uma faca da própria barriga?
Estávamos sentados num banco de madeira perto da pista de pouso. O sol estava começando a se pôr e a luz dourada deixava o rosto sorridente de ainda mais bonito, como se aquilo fosse possível. A ponta de seu nariz estava levemente rosada e seu olhar tinham uma pitada de conforto que era difícil descrever.
- Você já pode imaginar a ótima primeira impressão que eu tive dela.
- E Henry? Como o conheceu?
- Essa história só vem depois da sua. Como você conheceu Fred?
- Acredite se quiser, num karaokê. – Coloquei a mão sobre a boca. Eu não imaginaria esse cenário em um milhão de anos. Eu estava cogitando algo como num treinamento, na fila do refeitório ou algo do gênero. – Ele estava muito bêbado e nem conseguiu completar a música inteira, além de ter aplaudido para si mesmo.
- Há quanto tempo se conhecem?
- Uns oito anos. Nos alistamos juntos três semanas depois do karaokê.
- E desde então eu me arrependo. – Fred sentou na ponta do banco em que estávamos e colocou a mão na testa teatralmente. – Não aguento mais ter que ver essa cara horrível pela manhã todos os dias.
Ri com o drama de Fred e senti alguém me dar um beijo na bochecha. Olhei para o lado e pude ver uma Madeline mais sorridente que o normal.
- Achamos que tivessem sido sequestrados. Vocês sumiram faz horas já. O major-general Elijah estava te procurando, . – Sua face imediatamente assumiu uma expressão de choque. – Mas não se preocupe, dissemos que você tinha mais um último exame para fazer e Amélia até confirmou e não ficou feliz com a bronca do coronel.
- Muito obrigado, não sei nem como retribuir. Esqueci que eu tinha uma reunião sobre a missão hoje. Mais tarde eu falo com alguém da equipe para me atualizar.
- Esqueci que você vai embora em três dias. – Uma onda de tristeza tomou conta de meu corpo e apenas sorriu.
- Vai ser uma ótima oportunidade de vocês trocarem cartas de amor. Bem tipo filme, sabe? – Madeline parecia maravilhada com a ideia. – Falando em amor... Queríamos contar uma notícia para vocês!
Encarei , que parecia surpreso também. Será que ele também estava pensando na mesma coisa que eu?
- Vamos nos casar!
Ergui as sobrancelhas e abri a boca em choque. Por algum instante, talvez minutos até, eu sequer me mexi, o que fez Madeline começar a sorrir amarelo e encarar Fred com um pouco de desespero. Não era nem um pouco o que eu esperava que eles dissessem.
Eles só se conheciam há uma semana e meia, será que tudo aquilo não era cedo demais?
Tudo bem que Fred e Madeline realmente pareciam apaixonados, estavam juntos o tempo todo, as risadas pareciam infinitas em suas conversas e concordavam em tudo... Sem contar que ele a tratava com respeito e dava bastante atenção, enquanto ela era muito carinhosa e... Ok, talvez eles fossem perfeitos um para o outro, talvez eles dessem certo... Quer saber? Se fosse amor verdadeiro, quem seria eu para ser contra?
Pelo amor de Deus, , faça algo! Madeline está te encarando como se fosse chorar se você não reagir!
Levantei-me o mais rápido que pude e sorri verdadeiramente, abraçando Madeline, que cambaleou para trás em um ato de surpresa.
- Parabéns, Maddie! Eu desejo uma vida inteira de felicidade a vocês!
- Eu estou tão feliz por você, Fred. – Agora , que também parecia ter saído de um transe assim como eu, e Fred se abraçavam animados.
- EU VOU ME CASAR, PORRA! – Fred me deu um abraço de lado meio desajeitado. Madeline riu da situação e engatamos numa conversa sobre o pedido, o que pareceu gerar muita animação por parte da noiva.
- Fred estava agindo estranho, suas mãos suavam frio! – Madeline abriu um sorriso enorme e seu noivo só discordou com um movimento discreto com a cabeça, mas ela o pegou bem no ato. – Estavam sim, querido.
- Não estavam.
- O anel quase escorregou dos seus dedos, você estava super nervoso.
- Ok, talvez só um pouquinho... Ok, esquece o que eu disse, eu quase caguei ali mesmo.
Olhei Fred um pouco assustada e começou a rir de minha cara. Não era exatamente a melhor imagem do mundo para se ter na mente.
- Ele se ajoelhou na frente de toda sua companhia e fez o pedido! Todos aplaudiram, foi muito fofo. Até Amélia ficou feliz e me abraçou e Henry talvez tenha chorado mais que eu.
- Quase esqueci! – Murphy colocou a mão sobre a testa enquanto envolvia sua mais nova noiva pelo braço. – Nós gostaríamos de pedir que vocês fossem madrinha e padrinho!
- Seria uma honra. – sorriu ternamente e depois me olhou nos olhos. – Adoraríamos.
Madeline parecia tão animada com o casamento que os próximos vinte e seis minutos foi um longo monólogo dela detalhando tudo sobre a cerimônia e a festa. Pelo que deu a entender, ela já tinha o casamento dos sonhos planejado desde seus quinze anos, desde as flores dos arranjos na mesa até a cor da gravata dos padrinhos. Fred não parecia muito absorto nos detalhes, mas era muito claro o jeito apaixonado que a olhava e concordava com as ideias mais malucas que ela tinha, como ter uma máquina de frozen yogurt na festa.
parecia fascinado também, vez ou outra ria e dava uns tapinhas nas costas de seu melhor amigo, mas eu ainda estava um pouco atônita e fiquei sorrindo a conversa toda, sem manifestar palavras.
- E a parte mais legal disso tudo é que queremos que o casamento ocorra na França!
- Na França? – Um sorriso encantador tomou conta de meus lábios. – Com certeza será algo bem romântico. Quando vocês planejam casar? Em seis meses? Um ano?
- Assim que voltar. – Madeline segurou a mão de e sorriu de maneira gentil. – Então não temos uma data ainda.
- Agradeço a gentileza, mas não quero que baseiem a data do casamento no meu calendário. – colocou a mão sobre a de Madeline e pude sentir que sua voz soou um pouco mais triste, mas pode ter sido só impressão.
- Não seja ridículo, se você não vier ao casamento, quem vai fazer o discurso de padrinho?
- Discurso? Eu vou ter que fazer um discurso?
- Qual é, eu fiz no seu.
Sorri sem graça e olhei para o chão, não me sentindo muito confortável. logo percebeu e sentou-se ao meu lado de novo, colocando a mão suavemente sobre minha coxa por cima do vestido e me olhando com ternura.
- Bom, - Fred segurou Madeline pela cintura, aproximando-a. – Convidamos algumas pessoas para um jantar de comemoração no domingo e gostaríamos que vocês fossem. Amélia e Henry já confirmaram.
- Você conseguiu fazer Amélia sair de casa no final de semana?
- Sim. – A mulher de pé em nossa frente juntou as sobrancelhas confusa. – Ela não sai de casa no final de semana?
- Amélia só sai para ir ao supermercado... Meu Deus, peçam para ela ir vestida com roupas normais, caso contrário tenho certeza que ela irá com um conjunto de moletom monocromático.
- A Amélia não iria com... – Madeline começou a frase com certo tom de indignação, mas logo passou para um sussurro espaçado. – Um... Moletom... Você tem razão, precisamos falar com ela.
riu com a cena e eu o acompanhei. Encarando-o ali, sentada num banco qualquer ao pôr do sol e na companhia de meus amigos mais próximos, eu só desejei que esse momento congelasse no tempo e eu pudesse viver nele para sempre.

Assim que estacionei o carro, me virei para o banco do passageiro ao meu lado e apoiei os pés ali. Sem pressa, coloquei meus saltos. Não que fosse impossível de dirigir com esse salto alto, mas primeiro que era ilegal e segundo que não era a coisa mais segura do mundo.
Estávamos bem no meio do verão, então as noites naquela cidade eram a mesma coisa que viver perseguida pela sua própria lareira. Por esse motivo que mais cedo tinha colocado meu vestido vermelho longo simples, com as costas abertas e bem leve, e agora me apressava para sair daquele carro sem o ar condicionado ligado, que mais parecia um forno.
Assim que parei em frente a uma casa térrea com um jardim da frente muito bem cuidado não pude deixar de ficar impressionada.
- Quem diria que Fred tinha uma casa tão fofa... – Falei para mim mesma enquanto andava sobre o caminho de pedras.
Assim que apertei a campainha, ouvi um barulho estranho, como se alguém tivesse caído, seguido de alguns murmurinhos e risadas.
- ! – Uma Madeline com bochechas extremamente coradas e um sorriso tão aberto que eu mesma senti uma dor nas minhas bochechas abriu a porta. – Você chegou!
Ela se apoiava em Fred, como se precisasse em quem se segurar. Por sua vez, ele me olhava alegre e fez um gesto com a mão para que eu entrasse.
- Pessoal, a chegou! – Madeline virou-se para trás e anunciou isso para uma sala completamente vazia. – Nossa, é verdade, eles estão lá fora. – Então o casal a minha frente começou a rir freneticamente.
- Ok, sem mais vinho para vocês. Eu ia dar isso agora, - Ergui um embrulho com um vinho tinto dentro até a altura dos olhos. – Mas acho que vamos colocar na adega.
- Vamos para o quintal, todo mundo está lá. Eu estou fazendo pizza!
- Não, você não está, querido. – Madeline, que havia acabado de parar de rir, voltou a fazê-lo.
- Você tem razão. – Fred colocou a mão sobre a testa, só que muito mais forte do que deveria, o que o deixou confuso por alguns segundos. – está fazendo pizza!
Na intenção de me guiar, Fred virou-se e começou a andar pela sala, mas em seu primeiro passo, Madeline, que segurava sua mão, escorregou e caiu com tudo no chão. Numa tentativa de se segurar em algo, ela agarrou a calça jeans de Fred durante a queda e logo depois ele já estava só de cueca. Não é difícil de imaginar que os dois começaram a gargalhar, enquanto ele tentava subir a calça.
- Como vocês já estão tão bêbados com quinze minutos de festa só?
- Quinze minutos? Você é a última chegar. Já está... – Madeline olhou de relance para o relógio da sala, em cima da lareira. – Duas horas atrasada.
Olhei para o relógio também. Eu estava uma hora atrasada na verdade, nenhuma das duas estava certa.
- Mas essas duas horas valeram a pena. – Fred levantou o dedo e apontou-o para mim, andando devagar para trás. – vai pirar.
- Oh, sim! – Madeline já estava de pé, apoiada no sofá com um copo de vinho na mão. De onde ela tinha tirado aquilo? – Você está parecendo uma deusa. Você não a pegaria, Fred? Eu pegaria.
- Oh, eu também.
- Ok, vamos encerrar essa conversa que nunca existiu por aqui. – Peguei a taça da mão de Maddie e coloquei em um móvel qualquer. Ela reclamou, mas logo esqueceu. – Nem preciso dar uma bronca por vocês beberem demais, a ressaca já vai me fazer esse favor.
Segurei na mão dos dois, como se fossem crianças, e comecei a andar pela casa procurando a porta que nos levaria ao quintal. Não foi difícil na verdade, ela estava na cozinha. Assim que dei o meu primeiro passo na grama, Henry veio correndo em minha direção. Sem cerimônia alguma, ele me segurou pela cintura e me girou no ar.
- Então todos já estão bêbados. – Ri quando ele me colocou no chão e não pareceu entender o que eu disse.
- está fazendo pizzas! PIZZAS! Você tem que provar a de pepperoni!
- Então elas estão boas? – Perguntei tirando o copo de vinho de sua mão e dando um gole.
- Estão maravilhosas. Como você!
- Obrigada, Henry. – Sorri sincera e passei a mão em seu braço.
- Ah, se eu não fosse casado...
- Você não é.
- Oh, é verdade. Um brinde à liberdade.
- Você não sabe o que está falando. – Comecei a andar em direção a uma mesa de madeira comprida, disposta bem no meio do gramado e iluminada por uma fileirinha de luzinhas suspensas. – Casamento é a eternização do amor.
- Você fala isso só porque a pessoa que você gosta vai te prover pizzas de forno para o resto da vida. Eu também me casaria assim.
- Finalmente alguém sóbria com quem eu posso ter uma conversa descente. – Amélia chegou e entrelaçou nossos braços, olhando irritada para Henry. – Faz uns vinte minutos já que eu tenho que ficar ouvindo esse idiota aqui e o conversarem sobre crianças. A única conclusão que tiramos dessa conversa é que Henry não está pronto para ser pai.
- O QUÊ? – Henry gritou indignado enquanto puxava uma cadeira para eu me sentar. – Eu daria um ótimo pai!
- Você disse que para testar a temperatura do banho do neném é só colocá-lo na banheira e ver se ele chora. – Amélia mal havia sentado ao lado do engenheiro e já se arrependia de ter deixado o lugar ao meu lado direito vago.
- Boa noite, . – parou ao meu lado e me cumprimentou com um beijo na bochecha e voltou para seu lugar, que ficava do lado aposto ao que eu estava.
- Boa noite, .
Sorri e comecei a observar o ambiente ao meu redor. A mesa estava decorada com muitas flores, garrafas de vinhos e tábuas enormes de queijos e frutas. Ao meu lado, Henry e Amélia começavam uma discussão e parecia somente rir das coisas absurdas que Henry falava e fazia, como ele representando como se carregava um bebê debaixo do braço. Um pouco mais ao fundo, Madeline corria descalça na grama com uma taça de vinho em sua mão e um dos sapatos de Fred, que corria atrás dela, na outra. Sorri com a cena e apoiei meu cotovelo sobre a mesa e a cabeça sobre minha mão, achando tudo uma graça. Quando o casal chegou perto da cerca de madeira, Fred conseguiu alcança-la e derrubou-a no chão. O vinho voou por cima de suas cabeças e eles saíram rolando risonhos.
- Aquece o coração ver pessoas tão apaixonadas, não? – A voz de soou tão perto de meu ouvido que pude sentir sua respiração sobre meu pescoço e um arrepio gostoso passou pelo meu corpo todo.
- Sim... Eu quero isso um dia. – Ruborizei na mesma hora ao perceber que tinha dito aquilo em voz alta e virei minha cabeça para encará-lo.
estava simplesmente irresistível. Seu cheiro amadeirado me deixava meio desnorteada e a blusa branca social com alguns botões abertos e as mangas arregaçadas só faziam jus à sua beleza. Acho que passei alguns segundos boquiaberta o analisando, pois quando voltei à realidade, o homem sentado ao meu lado agora olhava o casal todo bagunçado rolando na grama enquanto dava um gole em sua taça. Corei e tentei pronunciar alguma coisa, mas era como se meu cérebro tivesse apagado todo o vocabulário que já tinha aprendido alguma vez na vida e o máximo que consegui fazer foi abrir e fechar a boca algumas vezes.
- Você está linda, .
- Muito obrigada. – Num impulso, segurei seu rosto com delicadeza e beijei sua bochecha. virou-se para me olhar e sorriu. – Isso foi muito gentil.
- EU TIVE UMA IDEIA! – O grito de Henry quase me fez cair da cadeira e o homem sentado do meu outro lado logo segurou meu braço com firmeza, achando que eu realmente iria cair. – NÓS DEVERÍAMOS FAZER UMA COMPETIÇÃO DE BEBÊS!
- Henry, você não precisa gritar, estamos do seu lado. – Amélia respirou fundo e se apoiou no encosto da cadeira, já sem paciência.
- O que é uma competição de bebês?
- É bem simples. – Agora Fred e Madeline chegavam e já pareciam interessados no assunto. – Vamos formar três casais e quem conseguir cuidar melhor dos seus bebês ganha.
- Oi? – Perguntei sem entender nada.
- Calma, não precisaremos fazer bebês agora. – Henry colocou a mão sobre meu ombro e voltou a falar. – A competição pode ser dividida em perguntas e habilidades físicas.
- Para quem está bêbado, até que você tem uma boa dicção e ideias alinhadas.
- A AMÉLIA ME ELOGIOU? – Henry arregalou os olhos e colocou a mão sobre a boca. Não demorou muito para que ele soltasse um beijo de longe em direção à médica. – Nós podemos fazer um bebê agora se você quiser.
Amélia só rolou os olhos e deu o dedo para ele, que riu e continuou seu discurso.
- Inclusive a Amélia podia ser a jurada, já que ela sabe tudo sobre bebês, não é? Só precisamos de dois bonecos, fralda, papel e caneta.
- Até que não é uma má ideia. Eu realmente queria te ver perder feio, Henry.
- Isso é paixão reprimida, querida Amélia. Você não admite que me quer.
- Claro, Henry, eu não viveria sem você.
- Eu incrivelmente tenho as fraldas. Estão no carro. – já se levantava da cadeira e Madeline batia palmas freneticamente.
- Queremos jogar! – Fred levantou os braços animado. – Tenho duas bonecas da casa!
- Ok, eu posso fazer perguntas então..., Mas... – Amélia sorriu um pouco maligna, o que me assustou. – Devemos fazer isso ficar interessante. Quem ganhar a competição deveria ganhar algo.
- Você sugere algo? – perguntou interessado.
- Eu tenho uma ideia! Eu tenho uma ideia! – Madeline deu uns pulinhos alegres. – Eu pago a passagem de ida e volta para o nosso casamento do casal que ganhar!
- Sim! – Fred acompanhou sua noiva nos pulinhos.
- E vocês pagarão as passagens de vocês se vocês ganharem e não precisaremos pagar nada? Se sim, eu com certeza estou dentro.
Eu e encaramos Amélia com a sobrancelhas juntas e ela logo levantou os dois braços e bufou.
- Que tal o casal vencedor ganhar uma semana de férias em algum lugar, sem comida inclusa? Dois quartos num hotel muito bom e passagens de avião bancados pelos perdedores. Ou um quarto no caso de Madeline e Fred ganharem. – perguntou e alguns sorrisos e sussurros surgiram.
- Que tal se o lugar for na Itália? – Sugeri erguendo uma das sobrancelhas
- Eu estava pensando em algo mais agitado como Las Vegas, mas com certeza não seria ruim passar uns dias num país cheio de caras gatos e comidas divinas.
- Mas você é a jurada, você não pode ganhar. – Fred mal terminou a frase e já pudemos observar Amélia assumir uma expressão de raiva.
- Mas pelo menos você não vai precisar passar pela experiência de estar nessa competição. – fez um bico muito engraçado e inclinou um pouco a cabeça, fazendo Amélia ponderar. – Quer dizer, a competição é forte, eu e temos filhos... – Ele percebeu que a médica não parecia muito tentada a não querer participar do jogo. – Sem contar que você pode fazer perguntas tão difíceis que Henry não ganharia de jeito nenhum.
- Gosto da sua retórica, mas nada feito. – Amélia estreitou os olhos e colocou a mão no queixo. – Quero férias no paraíso italiano.
- Isso vai se encaixar perfeitamente na nossa lua de mel. – O comentário soaria provocador se qualquer outra pessoa além de Madeline tivesse dito, mas a sua ingenuidade me fez até querer que eles ganhassem.
- Amélia poderia ganhar se qualquer um de nós empatássemos no final. – Sugeri e ela pareceu concordar com a ideia.
Ficou decidido então que a competição seria dividida em duas fases, a de perguntas e respostas e a parte que deveríamos trocar a fralda de um bebê no menor tempo possível. Amélia ficou responsável por ser a jurada, contar os pontos e fazer as perguntas e eu e tiramos a decoração e a comida da mesa e organizamos as fraldas que havia trazido, junto a outras coisas, como farinha de trigo, que simularia o talco, e alguns lenços de papel. Eu fiquei muito impressionada com a criatividade de em simular uma fralda suja com alguns ingredientes da cozinha de Fred.
- Ok, vocês estão prontos? – Amélia perguntou, encarando cada um dos casais formados a sua frente.
- Não me decepcione, , eu não te escolhi à toda. – Henry encarava-o com os olhos tão arregalados que eu tive medo que eles saíssem de seu rosto. , que estava sentado ao meu lado, somente ria da cena.
- Certo, as regras são claras. O primeiro a levantar a mão é o primeiro a dar a resposta. Se a resposta estiver errada, eu tiro um ponto, mas se ela estiver certa, o casal ganha três pontos.
Sorri ansiosa para , que me retribuiu com um sorriso doce. Diferentemente de todos, ele parecia muito tranquilo, encostado em sua cadeira, com o braço apoiado na minha. Madeline e Fred nem tinham ouvido a primeira pergunta e parecia que eles já queriam dar uma resposta de tanta animação.
- Primeira pergunta. O que alivia as cólicas de um bebê? – levantou a mão e Amélia apontou para ele.
- Banho morno e compressas de toalha quente na barriga.
- Três pontos!
- CHUPEM, SEUS PEDAÇOS DE LIXO! – Henry ficou de pé em sua cadeira e fez uma dancinha animada. – Vamos acabar com vocês.
- Segunda pergunta. Em qual posição não é recomendada para um recém-nascido dormir?... !
- De bruços!
- Correto!
Um sorriso vitorioso surgiu em meu rosto, sussurrei um “Chora, Henry” para o homem que me olhava bravo e em seguida dei uma piscadinha.
As primeiras cinco perguntas foram as mais fáceis. Depois disso eu já não sabia responder, então a competição ficou acirrada entre e . Madeline e Fred as vezes eram rápidos e levantavam as mãos primeiros, mas não estavam sóbrios o suficiente para terem respostas sérias. As perguntas renderam muitas risadas, principalmente quando Henry tentava responder alguma coisa. Eu tinha dó de seu bebê imaginário, que morreria se Henry realmente oferecesse um prato congelado qualquer para ele ou um copo de Coca-cola.
- Ok, Fred e Madeline vocês foram péssimos. Estão com -5 pontos.
Fred bateu na mão de Maddie e eles comemoram.
- A gente está tão pronto para termos filhos.
só discordou discretamente com a cabeça e eu ri baixinho.
- Vocês acabaram empatando com vinte e sete pontos cada. Então acho que teremos que desempatar no desafio das fraldas ou vocês já podem me dar as passagens.
- SOMOS TÃO BONS, CARALHO!
- Henry, vocês só ficaram com vinte e sete por causa do .
- Mimimi, eu sou a Amélia e eu tenho que tirar crédito dos outros.
- Cala a boca, otário.
- Estou começando a acreditar que eles se amam. – colocou a mão sobre o queixo enquanto os analisava.
- Amélia e Henry? Não tenho dúvidas. – Respondi rindo.
- Ok, hora do desafio das fraldas! – Amélia falou animada.
- VAMOS ARRASAR NESSA PORRA! – Henry subiu em sua cadeira novamente, levantando uma garrafa de vodca em cada mão. Eu só olhei incrédula para ele e depois encarei , que logo entendeu o recado e deu uma piscadinha para mim.
- Pode deixar, vou tirar as garrafas da mão dele.
- Fred e Madeline, vocês começam! Vou cronometrar. – Amélia parecia séria.
Nos afastamos e deixamos os dois próximos à mesa. O desafio na verdade era bem simples, era só trocar a fralda suja dos bonecos no menor tempo possível. Sem esquecer de usar o talco, claro.
Assim que Amélia gritou que eles poderiam começar, Madeline e Fred pareciam mais confusos do que nunca. Eles pegaram um dos bonecos e tentaram fazer juntos, mas depois de dois minutos tentando achar o adesivo que desmontava a fralda, eles pareceram esquecer totalmente que estavam numa competição e Fred apertava a fralda, que fazia um barulho engraçado de pum, e Madeline ria muito.
- Ok, vocês já estão desclassificados. e , vocês são os próximos.
Sorri ansiosa enquanto encarava , que só retribuiu o sorriso e colocou sua mão sobre minhas costas, para me acompanhar até a mesa. Mal tínhamos chegado perto dela, quando Amélia disse que já estava cronometrando. Sem pensar muito, peguei um dos bonecos ao meu lado e joguei em cima de , mas acabou batendo em sua cabeça.
- Outch!
- Desculpa. – Abri a boca e, por mais que eu quisesse enterrar minha cara na grama agora, uma risada escapou.
Peguei o meu bebê falso e tirei a fralda mais rápido do que achei que faria. Infelizmente, aquele era o boneco que Fred ficou apertando e parecia que seja lá o que estivesse simulando a sujeira tinha se espalhado para todos os lados. Peguei uns dez papéis e comecei a limpar. Olhei de relance para o lado e já estava passando talco ou farinha de trigo, como preferir. Como ele havia limpado tão rápido? Balancei a cabeça e voltei a me concentrar no que fazia. Demorou um tempinho, mas consegui terminar.
- SIM! – Pulei de alegria e abracei , que já tinha terminado havia alguns bons segundos e retribuiu o abraço com firmeza. Sentir seus braços envoltos em meu corpo causou um sentimento de proteção que eu não sabia explicar. Só encaixava e era quentinho.
Talvez tenhamos ficados muito tempo nessa posição, porque quando nos afastamos, e Amélia tinham as sobrancelhas levantadas e Henry e Madeline tinham sorrisos maliciosos nos lábios. Instantaneamente corei e dei um passo para trás, afastando-me de .
- Quarenta e três segundos. Impressionante. – Amélia fez um bico, impressionada.
- Guarde os elogios para os profissionais. – Henry dizia cheio de si enquanto ia até a mesa e colocava de volta a fralda suja no boneco.
- A humildade mandou oi.- Amélia revirou os olhos.
- Bate esse tempo, babaca. – Sorri perversa e até Fred me olhou assustado.
- Já ganhamos a viagem. – inclinou a cabeça, com um sorriso dissimulado também e continuamos a encarar Henry e a nossa frente enquanto batíamos nossas mãos em uma comemoração adiantada.
Antes que pudesse falar alguma coisa, Amélia o interrompeu.
- Comecem, o tempo já está rodando.
me olhou com tanta garra que um calafrio passou pelo meu corpo. Eu não conseguia ver muito bem o que acontecia, porque eles estavam de costas para nós, mas quando o cronometro do celular de Amélia mostrou exatos vinte e sete segundos já havia acabado e sorria vitorioso para nós. De repente comecei a suar frio e pude ver Madeline e impressionados. Eles tinham altas chances de bater o nosso tempo com a velocidade de .
Dez segundos depois Henry se virou e eu pude ver a minha viagem à Itália escapando de minhas mãos.
- Henry, por que você está segurando seu bebê pelos pés?
bateu a mão na testa assim que Amélia terminou de falar e colocou as mãos na cintura.
- Não pode?
- Não. Sem contar que você esqueceu o talco.
Henry arregalou os olhos e voltou a mexer nas coisas com tanta rapidez que eu tinha certeza que se ele continuasse nesse ritmo, apesar de só ter sete segundos restantes, eles venceriam.
- PRONTO! – Henry virou ofegante, mas como estava na frente da mesa e do boneco em cima dela, confirmou com a cabeça para Amélia após dar uma espiada atrás do homem ao seu lado para checar se Henry não tinha feito nada errado.
- Dois segundos e eu teria ganhado essa viagem. - A médica bateu o pé do chão brava. – Quarenta e cinco segundos.
- NÃOOOO! – Henry se ajoelhou na grama enquanto gritava.
Arregalei os meus olhos de imediato e e eu nos encaramos, ainda sem acreditar que eles não tinham ganhado. Ele segurou em minha cintura e me rodopiou no ar, contente. Quando ele me colocou de volta no chão, com as mãos ainda me segurando, eu queria olhar para baixo, virar a cabeça e me jogar de um precipício de tanta timidez, mas nada fez com que eu desviasse o olhar. Tive certeza naquele momento que desaprendi a respirar. Também tive certeza que todos deviam estar nos olhando.
A noite continuou muito agradável. fez mais umas duas pizzas e todos nos sentamos para comer e conversar. Madeline, Fred e Henry já estavam um pouco mais sóbrios, então as coisas fluíam com um pouco mais de lucidez e menos ideias loucas. Quando já eram quase uma hora da manhã disse que iria embora, porque precisaria buscar os filhos cedo e Amélia aproveitou para ir junto.
Não muitos minutos depois, quando Henry começou a bocejar, liguei para um táxi. Ele definitivamente não estava em condições de dirigir. Dei um beijo correndo em Madeline e Fred para me despedir e segurei o braço de Henry para levá-lo até a calçada quando ouvimos buzinas. Coloquei-o no banco de trás e o taxista logo abriu a janela, perguntando para mim qual era o endereço.
- Rua das Bromélias, 556. É uma casa amarela.
Vi o carro virar a esquina e suspirei. Uma brisa quente e abafada passou e levantou a borda de meu vestido. Respirei fundo e desejei que o tempo congelasse. Por que as coisas não poderiam ficar assim para sempre, com todos felizes?
- Posso te oferecer uma carona para casa? – A voz suave de estava tão próxima de meu ouvido que levei um pequeno susto. Quando me virei, ele estava a poucos centímetros e eu podia sentir sua respiração em minha pele.
- Muito obrigada, mas preciso levar meu carro de volta. – Apontei para onde eu o havia estacionado.
- Tudo bem. Então posso oferecer uma carona para um outro lugar? – Ele sorriu encantadoramente e não pude deixar de fazer o mesmo.
- Claro.
Entramos num carro estacionado do outro lado da rua e começou a dirigir com tranquilidade. As janelas estavam abertas, o que fazia um vento agradável e refrescante bater sobre meu cabelo. Não senti que aquele era o momento certo para conversarmos, então um silêncio se instalou, senão por uma música baixa saindo do rádio, e por mais incrível que pareça o clima ainda continuava gostoso. Às vezes ele colocava a mão com delicadeza sobre minha perna e trocávamos alguns sorrisos.
- Se quiser me matar eu sei de um lugar bem mais próximo da cidade para desovar meu corpo. – riu com a minha observação sem desviar o olhar da estrada.
- Não vou te matar. Quero te mostrar um lugar.
- Se isso inclui uma cabana velha no meio da floresta já pode dar meia volta que eu não entro em uma nem sendo paga.
- Você quer estragar a surpresa?
- VOCÊ VAI ME LEVAR PARA UMA CABANA A ESSA HORA NO ESCURO? – Coloquei minha mão sobre o peito e voltou a rir.
- Meu Deus, nós só vamos conversar em um lugar legal. Eu trouxe queijo e vinho. – Ele apontou para o banco de trás.
- Ah, um piquenique na madrugada, gostei da ideia. – Sorri discreta e comecei a encarar a garrafa de vinho da cesta, achando-o familiar. Era o vinho que eu tinha trazido! – Você roubou isso da casa deles?
não respondeu e mordeu o lábio inferior.
- Não te julgo, faria o mesmo. – Dei de ombro e voltei a encarar a vista.
Poucos minutos depois eu estava boquiaberta. parou o carro numa colina de onde dava para ver toda a cidade iluminada. Era lindo. Dava para ver a roda gigante brilhando com cores chamativas do parque de diversão, alguns barquinhos no porto mais distante e cada poste de luz resplandecente. O céu estava tão limpo que se eu estreitasse os olhos tinha a impressão que poderia ver outras galáxias daqui.
Abri a porta do carro o mais rápido que pude e me apoiei nela enquanto ficava de pé. Estava deslumbrada. Eu queria ter descoberto esse lugar antes para só sentar aqui e ler todos os dias da minha vida ou só sentar e observar mesmo. Fechei a porta o carro e fui andando devagar até a ponta da colina. Apesar daquela cidade ser extremamente quente, estávamos num lugar relativamente alto e o vento fez eu abraçar meus próprios braços.
- Eu ofereceria um casaco, mas não tenho. – disse já sentado no chão.
Fui até lá e sentei ao seu lado, enquanto nós dois só apreciávamos a vista e eu passava a mão com delicadeza sobre a grama, querendo guardar cada pequeno detalhe do momento.
- Você está com medo, ?
- Medo do que?
- De partir. – Olhei em seus olhos e um sorriso triste tomou conta de seus lábios.
- Um pouco eu diria. Não consigo parar de pensar que se eu não voltar, meu filho vai ter perdido seu pai.
- Então você precisa voltar vivo para garantir que isso não aconteça, entendeu? – Respirei fundo e senti a visão começar a ficar turva. O que estava acontecendo? Eu já estava chorando por um homem no primeiro encontro?
- Pode deixar. – colocou uma mecha de cabelo meu atrás de minha orelha e sorriu terno.
- Você não sente medo das coisas que vai ver lá? Amélia disse que não consegue de parar de sonhar com as atrocidades. – Perguntei baixinho, encarando o chão.
- Tenho mais medo de outras coisas.
- Como o que?
- Como perder você. – Ele segurou em meu queixo e levantou-o, para que eu pudesse olhá-lo. Nossos rostos estavam tão pertos que eu podia sentir o calor exalando de sua pele. – Isso me assusta mais do que tudo no momento e a ideia de que eu vou partir em dois dias e não vou poder te abraçar, te ver sorrindo pelos corredores do quartel, te enviar flores ou ter um segundo encontro com você me mata.
Assim que parou de falar, acabou com a distância entre nós depositando um beijo suave sobre meus lábios. Coloquei a mão sobre sua nuca, puxando-o para mais perto e aprofundando o beijo. puxou meu cabelo com certa ansiedade e acabou com qualquer espaço que poderia ter sobrado entre nós. Nenhum de nós dois saberia dizer quem estava mais desesperado por aquilo, mas tínhamos certeza que parecia certo. Agradeci ao céu por estar sentada, com certeza minhas pernas já teriam cedido.
Mordi seu lábio inferior devagar, totalmente sem fôlego.
- Queria que nunca tivéssemos nos conhecido. – sussurrou deprimido e olhou para o chão. Olhei-o confusa, mas não consegui emitir qualquer palavra. O que estava acontecendo? – Você é muito difícil de esquecer.
- Eu conversei muito com o Fred sobre como te dizer isso... Eu não sei quando eu voltarei, , e não sei se voltarei o mesmo. A gente já viu o que aconteceu com o ex marido da Amélia. – Ergui a sobrancelhas surpresa que ele sabia dessa história. – Eu não quero te privar de algo bom. Vai que você encontra um cara incrível durante esse tempo, não é justo que algo incerto como eu te segure.
- , - Coloquei ambas as mãos com gentileza em suas bochechas para que ele me olhasse. – Eu vou esperar. Não quero ninguém mais no mundo.
- Nem o ?
- O ? – Perguntei confusa. – Por que perguntou isso?
- Vai me dizer que você não repara no jeito que ele te olha?
- Isso é ciúmes? - Levantei uma das sobrancelhas.
- Não. – Ele respondeu rápido. – Só estou dizendo que ele é um cara legal e gosta de você. Não quero que se sinta na obrigação de esperar e evitar algo que possa te fazer feliz, como
Ri quando ele revirou os olhos ao falar a última parte. Estava muito claro que ele não estava nada confortável com a própria ideia que sugeriu, mas não podia deixar de admitir que foi um gesto muito empático.
- Não se preocupe, . Ele só poderia me fazer realmente feliz se ele fosse você.
Ele sorriu bobo e olhou para o chão, sem saber muito bem como reagir.
- Agora me conte, para onde você está indo? É para a Síria mesmo ou Madeline só me disse isso porque não pode revelar o lugar verdadeiro? – Perguntei divertida.
- Hm, confidencial.
- Quanto tempo você vai ficar fora?
- Confidencial também.
- Tem algo que você possa me contar?
- Que eu vou embora na segunda.
- Isso eu já sabia. – Revirei os olhos e dei uma risada, deitando na grama.


Capítulo 6

Acordei com o sol batendo diretamente em minha face. Grunhi com o incômodo e me revirei entre a coberta branca. Abri um pouquinho meu olho esquerdo para reconhecer aonde estava e me arrependi de imediato. Puta que pariu que luz clara demais. Enxerguei uma poltrona bege familiar. Eu estava no meu quarto. Tateei o criado mudo, derrubando algumas coisas até encontrar meu celular. O som dos objetos caindo no chão pareciam gongos sendo batidos a um metro de mim e um zunido agudo em meus tímpanos parecia algo constante. Olhei para a tela e ela anunciava sete e quarenta da manhã de uma segunda-feira. MEU DEUS, JÁ ERAM SETE E QUARENTA DE UMA SEGUNDA!
Sentei o mais rápido que pude sobre a cama, mas logo gemi quando uma forte dor de cabeça tomou conta de mim. Coloquei a mão sobre a testa e logo milhares de imagens invadiram meu cérebro numa avalanche.
- Uhh, claro. Eu e tomamos duas garrafas de vinho inteiras hoje de madrugada. – Sorri com a lembrança, mas logo fiquei confusa novamente, olhando para os lados. – Como eu cheguei aqui? ... E por que eu só estou de calcinha e sutiã? ... E por que eu não estou me arrumando? Já estou super atrasada.
Olhei para a outra poltrona bege e vi meu vestido vermelho todo molhado ali. O que diabos tinha acontecido com ele? Tentei lembrar de alguma explicação plausível, porém nada vinha a cabeça. Depois de alguns instantes desisti, eu estava ainda mais atrasada agora.
Peguei um vestido qualquer branco e saltos da mesma cor e corri para o banho, largando tudo sobre a bancada da pia e quase cortando minha cabeça fora por causa do enjoo. Antes de qualquer coisa, abri uma das gavetas que engoli um comprimido como se minha vida dependesse daquilo. Eu tinha certeza que em alguns minutos a ressaca iria embora. Assim que acabei me arrumar, fui correndo para a cozinha, colocando o último brinco e me deparei com um enorme vaso de tulipas rosas, dois muffins e uma garrafa térmica em cima da ilha. Havia um bilhete entre as flores.
“Espero que tenha um bom dia! Obs: Só avisando que eu não tranquei a porta quando saí. -
Sorri verdadeiramente após ler o papel. não parava de me surpreender. Coloquei os dois muffins num pote e peguei a garrafa sem ao menos saber o que tinha dentro e sai correndo pelas escadas do prédio.
Era um prédio relativamente antigo, mas muito charmoso. Tinha somente três andares e a faixada era de tijolos brancos. A minha única reclamação era que os vizinhos eram idosos muito fofoqueiros e qualquer coisa que eu fazia virava notícia. Não ficaria surpresa se eles soubessem mais do que eu sobre a noite passada.
Quando finalmente cheguei na calçada, olhei para os dois lados da rua, procurando meu carro, mas não consegui encontrá-lo de jeito nenhum.
- Onde eu estacionei esse carro? – Perguntei quase desesperada. Já eram oito e dez e tudo pareceria estar dando errado se não fosse pela surpresa de . Bufei impaciente assim que lembrei. – Na rua da casa do Fred.

- Meu Deus, o que aconteceu? - Amélia perguntou preocupada, enquanto eu mal conseguia respirar. – Acho que é a primeira vez na vida que eu te vejo entrar correndo em vez de desfilar igual uma modelo no pátio.
Eram exatamente nove horas e eu havia pegado um táxi para vir ao quartel, mas não autorizaram que ele entrasse, então eu tive que vir correndo para o Hangar 4 desde a entrada para não perder a partida de .
Diga-se de passagem, o comprimido de ressaca não serviu de nada depois dessa corrida monstruosa até aqui.
- Eu... Atrasada. – Respondia ofegante enquanto Henry ria. – Acordei atrasada.
- Sério? Você nunca acorda atrasada.
- Depois eu conto a história, Amélia. – Falei finalmente recuperando o fôlego.
chegou e logo me ofereceu uma garrafa de água. Mais tarde eu soube que ele tinha me visto de longe correndo e a primeira coisa que fez foi ir buscá-la.
- Chegou bem na hora. – Madeline disse dócil, porém um pouco desanimada. – Eles vão subir agora.
Olhei para o avião cargo estacionado no meio do hangar. Havia alguns soldados colocando caixas e outras coisas lá dentro, descendo e subindo a rampa como formigas trabalhando. Mais à frente, havia cinco pessoas em uma roda. Lá estava , em posição de descanso, com um olhar sério e frio que fez os pelos de minha nuca arrepiarem, ouvindo atentamente o que Elijah dizia. Sua farda estava impecável, como sempre, e agora mais do que nunca seu sobrenome bordado em preto no bolso do uniforme parecia brilhar mais que as medalhas penduradas ao lado. Respirei fundo e abracei de lado, com os olhos um pouquinho marejados.
- Eu não consigo acreditar que ele está indo, . – Sussurrei.
- Não se preocupe. – Ele passou a mão sobre as minhas costas, num gesto de tranquilidade. – Logo ele estará de volta.
Amélia aproximou-se de nós e logo tirou sua mão de minhas costas, dando espaço para que ela me abraçasse de lado dessa vez e apoiou sua cabeça em meu ombro.
- Nunca achei que diria isso em um milhão de anos, mas ver ele partindo assim quebra meu coração. Vocês quase me fizeram acreditar no amor de novo. Quase.
- Sutil como sempre. - Sorri com o seu comentário. Com ela sendo sarcástica e grossa o tempo todo, imagino que isso realmente tenha sido sincero.
- Você vai esperar? – Ela perguntou, olhando a roda agora formar uma fila para embarcar. – É o que quer de verdade? – Eu abri a boca para responder, mas ela colocou seu dedo indicador sem delicadeza alguma sobre minha boca. – Shhh! Antes de você falar qualquer coisa, como papel de melhor amiga eu tenho que te dizer. Você não está preocupada que sua vida vire o que nós conversamos no refeitório há duas semanas atrás? Que precise ir e vir constantemente, sem tempo para a relação de vocês, ou que ele seja sequestrado e não volte a mesma pessoa? Ou que até mesmo ele nem volte? Quer dizer... Isso não me parece uma missão básica qualquer e nada mortal, sabe?
- É, eu sei. – Apoiei minha cabeça na dela. – Mas a vida não é nada senão escolhas. A gente tem que arriscar, Amélia.
Ficamos em silêncio, vendo eles entrarem em fileira no avião. era o último da fila. Quando o primeiro deles subia a rampa, saiu correndo e veio em minha direção. Amélia não hesitou por um segundo em se afastar e reprimir um sorriso. Arregalei os olhos quando percebi que ele já estava perto, ele não podia simplesmente sair assim, Elijah iria ficar no mínimo furioso.
- Vim te dar tchau. – Ele segurou meu rosto com as duas mãos e me depositou um beijo suave sobre meus lábios. Meu estômago revirou só de pensar que esse talvez pudesse ser o último.
abriu um sorriso encantador ao separar nossos lábios e tudo o que eu mais queria no momento é que ele não tivesse parado.
- Fique, por favor, fique. – Eu disse com a voz arrastada enquanto passava a mão devagar sobre o “” costurado na farda.
- Não peça isso. Você sabe que se pedir mais uma vez eu fico e eu preciso ir.
Assenti com a cabeça e ele me deu um beijo na testa, voltando correndo para o final da fila, que na verdade estava mais para todos esperando-o dentro da aeronave, observando o que fazíamos.
Assim que perdemos o avião de vista no horizonte, todos pareceram voltar à rotina normal e logo o hangar já estava quase vazio, com exceção de algumas pessoas andando apressadas para lá e para cá. Senti meu corpo ficando fraco e andei devagar até um dos carrinhos estacionados. Sentei-me no banco de passageiro, mas com as pernas ainda para fora, sentindo uma lágrima quente atravessar minha bochecha.
- Você realmente é sortuda no amor, não? – Henry chegou e tentou me animar, ficando de pé na minha frente e eu rapidamente sequei a lágrima com a mão.
- Não dá para dizer que é o tipo de homem que se encontra em qualquer esquina. – Sorri desanimada e olhei nos olhos dele. De repente um fleche passou pela minha mente e eu juntei as sobrancelhas. A imagem era Henry andando em minha direção na areia com um sorriso bem malicioso no rosto. – Por algum acaso eu e você fomos para a praia hoje de madrugada?
- Você não se lembra disso? – Henry deu uma risada longa e divertida. – Sim, fomos para a praia hoje.... Caramba, eu achei que eu fosse mais memorável.
- Como assim?
- Nós fizemos sexo. – Agora ele estava sério e seu tom parecia de alguém chateado e um pouco ofendido. Henry mantinha um olhar tão vidrado e magoado que tive que desviar o meu.- Você não lembra mesmo?
- NÓS TRANSAMOS NA... – Eu levantei com tudo do carrinho, quase caindo por causa daqueles saltos finos, e arregalei os olhos, começando a falar mais baixo quando lembrei que alguém podia escutar. – Nós transamos na praia?! Isso é impossível, eu estava com o ontem o tempo todo e eu não gosto de você desse jeito.
- Ele não estava na praia, você estava sozinha... E aparentemente ele não sabe, não é? – Agora ele falava com deboche, cruzou os braços na altura do peito, desanimado, e ergueu uma sobrancelha.
Estava em choque. Não lembrava de nada que tinha acontecido depois que e eu fomos embora da colina, as vezes algumas imagens vinham de repente, mas em nenhuma delas estava na praia comigo. Abri a boca em pura incredulidade e encarei Henry preocupada.
- nunca vai me perdoar. Eu nunca vou me perdoar! O que eu fiz? Eu nem estava tão alcoolizada assim! – Sentei de novo sobre o banco, totalmente sem chão. – Meu Deus, o que eu fiz?
- É claro que não fizemos sexo, ! – Henry agora gargalhava, achando aquilo tudo muito hilário. – Como você acreditou nisso?
- SEU CRETINO! – Comecei a bater em seu braço com toda a força que tinha, me descabelando toda. – Eu não acredito que você brincou sobre uma coisa dessas.
- Relaxa, aí! – Henry tentava se desviar de todos os tapas que eu ainda dava. – Foi só uma brincadeira.
- Argh, eu odeio que você minta bem assim, Henry. Você vai sentir o gosto do próprio veneno quando algo acontecer. – Respirei fundo e comecei a ajeitar meu vestido. – Eu realmente não lembro muito bem do que aconteceu ontem.
- Você deve ter bebido muito então... Ou talvez seja tanta felicidade nesse seu corpo que... Não foi definitivamente a bebida.
- Não é possível que meu cérebro esteja me enganando e eu não tenha te visto na praia.
- Você realmente não se lembra? – Henry perguntou confuso e eu neguei com a cabeça. – Vocês me ligaram bem na hora que eu tinha acabado de acordar para beber água. Eu ainda estava um pouco bêbado para variar.
- Não me surpreende. – Fiz um bico e ergui a sobrancelha.
- A Amélia te mordeu hoje? – Ele perguntou surpreso. – Enfim, vocês me ligaram e disseram que estavam na praia. Demorei um pouco, mas quando cheguei lá vocês estavam ensopados, olhando as estrelas, deitados na areia juntos. Vou até admitir que foi uma das cenas mais bonitas que já vi.
- O que aconteceu depois?
Henry respirou fundo e encarou o horizonte, cruzando os braços.
- Bom, foi bem difícil tirar vocês de lá. Estavam muito alcoolizados e não paravam de falar sobre ir embora, estavam mais difíceis que Fred e Madeline no jantar.... Acabei deixando vocês na sua casa, porque não sabia onde ele morava.
- Isso explica muita coisa. Obrigada, Henry. – Sorri sincera e ele se limitou a assentir a cabeça.
- Agora vamos.
- Para onde? – Perguntei me sentando novamente no banco de passageiro, enquanto Henry ligava o carrinho, já com as mãos no volante.
- Para o nosso hangar. Você não vai acreditar o que chegou hoje mais cedo.
- O nosso motor do F-22! – Sorri feito uma criança e ele me acompanhou, já acelerando. – E pensar que tudo já está quase pronto depois de meses de projeto.
- Ah, eu vou sentir falta da gente na sua sala vendo o sol nascer.
- Sério?
- Não, nada me irrita mais que passar tempo com você. – Dei um soco leve em seu braço e ele dramaticamente virou o volante com tudo. – Outch! Amélia tem razão, você quer nos matar um a um nos carrinhos.
- Amélia te falou isso? – Ergui a sobrancelha e um sorri maliciosa. – Desde quando você e Amélia m alguma conversa que não seja só insultos?
- Somos adultos, podemos ter uma conversa séria.
Encarei Henry da ponta dos pés até o último fio de cabelo e estreitei os olhos. Ele encarava a pista e não parecia tenso, pelo contrário, ele estava bem tranquilo. Coloquei a mão sobre o queixo, olhando fixamente para seu rosto e, quando uma ideia surgiu em minha mente, arregalei os olhos perplexa.
- Você e Amélia dormiram juntos!
- O quê? – Ele desviou por dois segundos o olhar da pista e me encarou incrédulo. – De onde você tirou essa imagem maluca?
- Como eu não tinha reparado antes? – Ri inquieta. – É o que as comédias românticas sempre retratam. Uma linha nue entre o ódio e o amor.
- Eu não dormi com a Amélia. – Henry revirou os olhos e estacionou na frente do hangar. – E eu não a amo, nem odeio também.
- Sério? – Perguntei com uma sobrancelha levantada, mas acreditando nas palavras de Henry, que parecia achar aquilo um absurdo real.
- Sério. – Ele começou a atravessar o lugar com passos calmos e eu o acompanhava.
- Então se eu perguntar para a Amélia, ela também vai me dizer isso?
- Com certeza.
- Ela também vai conseguir mentir tão bem quanto você? – Henry parou no meio da escada, olhando para o nada e eu quase surtei. – EU SABIA! Vocês dormiram juntos! Quando?
De repente, saindo de algum lugar, um homem que descia a escada nos escarou assustado ao ouvir o que eu havia acabado de dizer, mas ele parou bem ao nosso lado, analisando-nos.
- Podemos te ajudar? – Henry perguntou educadamente.
- Por favor. Eu procuro por e Henry Axel.
- Somos nós. – Respondi curiosa.
- Muito prazer, sou o senhor Wittman. – Ele nos cumprimentou com a mão. Era um homem até que agradável, tinha um certo ar de cortesia. – Sou o braço direito do secretário de defesa da Casa Branca.
Henry não conseguia desviar seu olhar da face do homem. Estava tão atônico que sequer moveu um único músculo.
- A que devemos o prazer? – Perguntei.
- Estamos acompanhando o projeto de vocês desde o início, como o major-general Elijah deve ter falado. – Quando ele disse isso, tentei lembrar da nossa primeira reunião, mas, apesar de não ter lembrado de nada referente ao acompanhamento do órgão de defesa, não fiquei surpresa. Estávamos desenvolvendo um caça no final das contas. – E devo dizer que estamos impressionados. Gostaria de acompanhar o projeto pessoalmente daqui para frente.

Estávamos na fila do refeitório, segurando as bandejas e Madeline parecia bastante interessada com o relato de Henry. Apesar de eu tentar prestar atenção, tudo o que conseguia fazer era encarar uma Amélia totalmente interessada em tentar enxergar qual seria a sobremesa de hoje e pensar como ela e Henry conseguiram esconder tão bem que dormiram juntos.
- Ele nos disse que o próprio presidente viria para a inauguração do caça. – Henry deu um sorriso enorme e Madeline o acompanhou. Ela não estava acreditando na sorte de ter sido designada a esse projeto, conheceria o presidente dos Estados Unidos, nem que fosse só para vê-lo andar pelo Hangar 1.
- Então o projeto secreto é um caça? – Amélia perguntou fingindo desinteresse.
- Não é como se alguém já não tivesse lhe contado, não é? – Joguei verde e a médica me encarou com uma expressão que claramente dizia “Você é estranha” e se virou para acompanhar a fila andando.
Assim que nos sentamos numa mesa, Fred chegou com sua bandeja e sentou ao meu lado, sorridente.
- Alguém parece muito feliz. Alguma razão específica? – Perguntei e logo encarei Madeline, mas ela não parecia tão feliz como Fred, então presumi que ele estivesse feliz por outro motivo sem ser o casamento.
- Soube que você teve um encontro ontem. – Amélia olhou de relance para mim depois que Fred soltou a frase. Ela parecia interessada. – Nunca vi tão feliz.
Sorri sem graça quando todos me olharam, inclusive , que havia acabado de se sentar.
- Eu perdi alguma coisa? – perguntou simpático.
- Não, chegou na hora certa. Estávamos prestes a começar um novo assunto. – Sorri aliviada.
- Sim, - Amélia sorriu maldosa. – O novo assunto é o encontro de e ontem.
- Oh, - tirou o sorriso de seu rosto e pareceu um pouco sem jeito. – E como foi?
- Nada demais. – Respirei fundo. Eu sabia que eles não iriam querer mudar de assunto nem se eu implorasse por isso, então acabei cedendo. – Fizemos um piquenique num lugar bem bonito.
- Foi na praia? – Madeline perguntou animada e eu automaticamente arregalei os olhos e fitei Henry, que segurou a risada. Fred logo percebeu, apesar de fingir que não. – Eu estou com vontade de visitar o porto desde que cheguei!
- Sério? – Fred perguntou confuso e Madeline corou.
- E onde é esse lugar bem bonito, ? – Amélia parecia estar se divertindo com o meu constrangimento de compartilhar algo íntimo. Havia uma pitada de revolta no seu tom de voz que me deixou meio desconfiada.
- Uma colina mais afastada da cidade.
- ELE TE MOSTROU A COLINA? – Fred arregalou os olhos e colocou a mãos sobre o cabelo, bagunçando-os. – Quem diria. Ele te ama.
Quase engasguei com o suco e limpei o canto da boca com um guardanapo antes de voltar a encará-lo.
- Ele o que? – Perguntei piscando algumas vezes.
- Ele te ama. Ele não vai lá há dois anos já. Era o lugar só dele e da Oli... – Madeline chutou a perna de Fred por debaixo da mesa e olhou para ele, em seguida para mim e depois para ele de novo. Era a primeira vez que eu a via séria. – Bom, mudando de assunto, quem aqui gosta de pudim?
- Eu gosto! – Henry respondeu rápido. – Mas os daqui são péssimos.
- Com certeza. – Madeline deu um sorriso simples e um silêncio estranho se instalou na mesa. Assim que percebeu que Amélia diria alguma coisa, Madeline logo voltou a falar. – Acho que não estou me sentindo bem.
Embora eu soubesse que ela estava incomodada com algo, sua aura angelical e suas bochechas rosadas fizeram todos acreditarem no que disse.
- Quer que eu te leve para a ala médica? – Fred perguntou preocupado, já se levantando.
- Não, não. – Madeline arregalou discretamente os olhos. – , Henry e Amélia podem me acompanhar.
- Mas eu ainda nem comecei a comer. – apontou para sua bandeja sem entender nada e Amélia revirou os olhos.
- Um corpo tão lindo para uma mente tão lerda. – A médica se levantou.
- Por que você precisa de tanta gen...
- Só levanta, Henry. – Amélia demandou autoritariamente e ele não hesitou.
Um pouco antes de todos eles se retirarem da mesa, Madeline falou alguma coisa para Fred sem emitir som algum e eu olhei confusa.
- O que está acontecendo, Fred? Por que eles todos saíram da mesa?
Ele respirou fundo e fez bico, demorando um tempinho antes de começar a falar.
- Madeline acha que está na hora de eu te contar.
- Contar o que?
Então ele se virou no banco, colocando uma perna de cada lado e me encarou. Jurou que o mataria se soubesse disso. Sempre que contava essa história, o que foram poucas vezes na verdade, uma onda de tristeza batia e as memórias vinham embaçadas. Sentia seu coração acelerar.
- Sobre Olívia.
- Quem é Olívia? – Perguntei confusa.
- Olívia é a ex esposa do .
- Certo... E por que ela sente que está na hora de me contar? – Perguntei juntando as sobrancelhas e ajeitei minha postura. Talvez eu não quisesse admitir, mas fiquei tensa com o assunto da conversa.
- Bom, uma hora ou outra você precisaria saber. Ela acha que isso vai esclarecer algumas coisas..., Mas eu não sei se é uma boa ideia.
Depois do que Fred falou, algo dentro de mim queria pedir para ele parar por ali. Havia uma certa tensão no ar e a conversa parecia séria demais. Peguei-me pensando que se ele estava tão preocupado assim, era porque essa tal de Olívia é uma pessoa muito importante. Será que ainda era apaixonado por ela? Comecei a cogitar milhares de ideias naqueles milésimos de segundo que Fred demorou para continuar a falar. Minha maior preocupação, e talvez meu pior medo, era ele me dizer que eu nunca seria o suficiente para substituí-la. Meu Deus, , o seu papel não é substituir ninguém, pare de pensar em besteiras.
De repente, minhas mãos suavam frio e eu encarava Fred com um olhar vidrado, quase mortal, e ele logo afastou um pouco seu torço em reflexo.
- Ah, Olívia.... – Ele agora pareceu relaxar um pouco e suspirou. - Olívia era uma pessoa especial. Dessas que você só conhece uma vez na vida. deu sorte, eles eram high school sweethearts, encaixavam muito bem, os dois eram muito bonzinhos, muito caridosos e todas essas coisas boas que a vida pode colocar num só corpo. Eles eram tão unidos que desistiu de sua bolsa da Universidade de Nova York para ficar próximo dela. – Ergui as sobrancelhas e senti uma pontada no coração. Fred mal tinha começado a falar e eu já estava me sentindo mal. E talvez, mas só talvez, com um pouco de ciúmes. Ora, quem eu queria enganar? Fred descrevia a alma gêmea de com tanta paixão e ela claramente não era eu. - O que acontece, no entanto, é que Olívia não somente era muito boa, mas muito rica também. No último ano do colegial, sua melhor amiga Lou engravidou, mas ela não tinha condições financeiras ou emocionais de ter um filho na época, então um acordo foi feito. Olívia e adotaram-no e o criaram como seu próprio filho, sendo que os pais de Olívia bancariam tudo e o menino nunca ficaria sabendo da verdade. Você pode imaginar como os pais de ficaram furiosos ao achar que ele engravidou uma menina de dezessete anos. Nunca entendi por que ele não contou a verdade, mas eles apoiaram no final.
Encarei Fred com o coração apertado. Eu não estava acreditando nas palavras que saíam de sua boca.
- Dois anos atrás Olívia morreu. Eu não sei como, ele nunca fala sobre isso, mas tenho certeza de que ele não esperava, nunca o vi tão em choque.
- O acidente de carro. – Sussurrei totalmente sem chão.
- Sim, foi por isso que pegou o carro e saiu correndo naquele dia e acabou se envolvendo em um acidente. – Fred concordou ao lembrar do episódio na ala médica há duas semanas. – Perder sua esposa e melhor amiga foi como ver virar outra pessoa do dia para noite. Olívia era uma das melhores pessoas que conheci.


Capítulo 7

- E então? – Madeline entrou em meu escritório sorridente, colocando um copo de café em minha frente. – Como estamos nos sentindo hoje?
- Muito obrigada. – Dei um gole na bebida quente e pude senti-la queimando minha garganta. – Um pouco ansiosa, eu diria.
Levantei-me da cadeira e andei em direção a minha bolsa, tirando um crachá de lá e colocando-o em meu pescoço. Com certeza Henry já estaria nos esperando no Hangar 2, junto com dezenas de outras pessoas.
Eu fiquei de responder uns e-mails, então acordei mais cedo para vir até aqui. Desde que comecei a trabalhar numa base militar, estabeleci uma regra muito clara que funcionou bem até agora: nunca levar o trabalho para casa. Essa era a razão pela qual eu ficava tantos dias presa aqui de madrugada com Henry, todavia pelo menos eu podia dizer que meu apartamento era uma espécie de santuário inundado de paz sempre.
Encarei Maddie de pé em minha frente. A tensão exalava de seu corpo e qualquer um poderia notar. Seus olhos castanhos pareciam longe, divagando talvez, e seu coque loiro estava impecável, como todos os dias. Acho que nunca tinha parado para reparar, mas Madeline ficava uma graça toda fardada. Era estranho pensar que alguém que se vestia para se camuflar no mato e que era treinada para matar, como uma verdadeira máquina, pudesse caber numa mulher tão pequena e delicada.
- O Hangar 2 não é muito longe daqui. Vamos a pé?
- Com certeza. – Ela me respondeu, balançando a cabeça para espantar seus pensamentos.
Antes que déssemos um passo sequer em direção à porta, um barulho muito alto de algo caindo no chão tomou conta de nossos ouvidos e eu a encarei com uma careta.
- Parece que temos alguém desastrado. – Olhei pela janela do cômodo e pude ver que um dos homens no andar debaixo tinha deixado a caixa de ferramenta cair enquanto mexia na asa de um dos aviões.
Respirei fundo, colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha e entrelaçando meu braço no de Madeline.
- Prontas? – Perguntei com um sorriso confiante.
- Prontas.
Saímos do escritório e, enquanto atravessávamos o hangar, desejamos um bom dia para todos os engenheiros que estavam por lá. Pude ver que algum deles ficaram boquiabertos e nos acompanharam com o olhar até nos perder de vista, mas fingi que não reparei. Assim que nos aproximávamos do outro hangar, pude ver a empenagem do imponente F-22 pintado com uma cor verde-musgo e com um adesivo da bandeira estado-unidense em seu leme. Eu não conseguia nem acreditar que depois de todos esses meses de trabalho, quase um ano, havíamos construído um dos melhores caças que a humanidade já viu. Era por esse motivo, na verdade, que esse dia era mais que especial e estávamos prestes a ver porquê.
- Senhor Wittman! – Cheguei perto do homem de terno, que conversava com alguns soldados. Ele logo sorriu carinhoso.
Nas últimas três semanas, desde que havia chegado, ele nos acompanhou em tudo, como disse que iria fazer. Não chegou a ficar até de madrugada em meu escritório, sempre voltava para seu hotel depois da janta, nunca excedia esse horário e eu não o julgava, era uma rotina no mínimo exaustiva. Ele era uma pessoa muito educada e era raro exibir qualquer tipo de opinião, sinto que não queria interferir no programa. Wittman parecia ter uma relação muito boa com e Madeline em especial. Tratava-os como filhos. Às vezes me perguntava se não tinha sido à toa que justamente os dois tinham sido escalados para esse projeto.
- . – Ele cumprimentou-me com um breve acenar de cabeça. – Maddie.
- Como você está? – Perguntei enquanto olhava o resto dos homens da roda em que ele estava. Não conhecia ninguém.
- Excelente! Vocês duas deveriam provar o coquetel de camarão. – Então ele apontou para uma mesa à nossa esquerda, que mais parecia uma mesa de banquete se formos descrever a realidade. Eu vi comidas que não fazia ideia do que eram. – Está uma delícia.
- Aposto que está. – Madeline o cumprimentava feliz com um aperto de mão enquanto eu babava na pilha de doces na ponta da extensa mesa. – E então? Onde ele está?
A mulher abriu um sorriso gigante ao fazer a pergunta para Wittman e quase não conteve um pulinho de alegria. Ele discretamente desviou o olhar para alguém atrás de nós e Madeline se virou tão rápido que eu, meio distraída, levei um susto.
Virei-me para ver o que Maddie parecia encarar com tanto gosto. Seus olhos brilhavam como os de uma criança no natal prestes a abrir seus presentes. Quando pousei o olhar sobre uma pessoa específica entendi todo seu encantamento. Lá estava ele, como uma pessoa qualquer, falando como se fosse uma figura normal, com seu terno preto reluzente que deveria custar mais que minha casa, o presidente dos Estados Unidos.
- Eu acho que agora já estou pronta para morrer. Fiz tudo o que queria na vida. – Madeline balançava a cabeça em afirmação, completamente satisfeita.
- Você ainda não se casou no sul da França. – Encarei-a com uma das sobrancelhas erguidas e voltei a olhar o presidente.
- Eu sei.
Maddie tinha um patriotismo que me assustava um pouco, mas era algo muito comum entre as pessoas nativas daqui e sobretudo entre os militares. A coisa que mais tinha naquela cidadezinha eram bandeiras penduradas nas varandas das casas.
- Fred não vai ficar muito feliz quando ouvir isso. – Henry apareceu do nosso lado, cruzando os braços e olhando para a mesma pessoa que nós.
- Fred deve ter o mesmo sentimento que ela. – Inclinei a cabeça e Henry concordou, dando de ombros.
Madeline sequer nos ouvia, estava deslumbrada.
- Teste, teste. – A voz de Elijah soou tão alta em meu ouvido que arregalei os olhos, procurando por ele no meio da multidão. Não foi muito difícil de encontrá-lo, afinal ele estava em cima de um palco, com um microfone sem fio na mão. Eles só não colocaram dois holofotes gigantescos focados em Elijah porque a claridade impedia, caso contrário, acredite, eles estariam apontados para o homem no palco. – Bom dia. Sou o major-general Fox. Gostaria de iniciar essa inauguração agradecendo a presença de todos. – Então ele tirou um cartão de seu uniforme azul e começou a lê-lo. – Todo projeto começa como uma pequena semente. Você precisa regá-la todos os dias para que cresça e se torne algo. Eu não poderia estar mais orgulhoso de dizer que hoje finalmente podemos parar de regar nossa semente. – Todos pareciam muito envolvidos no discurso e tudo o que eu conseguia fazer era estreitar os olhos, perguntando-me quem tinha escrito aquele discurso clichê. - Hoje nós lhe apresentamos o nosso mais novo caça F-22 Raptor. – Uma onda de aplausos tomou conta do local quando Elijah apontou para a aeronave e olhei para Henry com um sorriso de lado, orgulhosa. – O novo caça desenvolvido pela Força Aérea, muito à frente de seu tempo, uma verdadeira revolução para nossa nação. Agora gostaria de passar a palavra para o senhor presidente.
Então Elijah passou o microfone para o homem que tinha acabado de subir no palco e eles trocaram algumas palavras, que seriam impossíveis de ouvir por conta de nossa distância do palco, mas presumo que tenha sido algum agradecimento.
- Bom dia. Como o próprio major-general Fox constatou e eu gostaria de frisar, estou muito orgulho de nossas conquistas. Agradeço imensamente o esforço que cada um colocou nesse projeto, um projeto que, tenho certeza, será responsável por salvar muitas vidas no futuro. A minha mais sincera gratidão aos técnicos do projeto, que não somente o colocaram em um papel, como o transformaram em algo real. Gostaria de expressar agradecimentos em especial para o Major , que hoje nos fará a nobre gentileza de pilotar o mais novo F-22 Raptor.
Então, em meio aos aplausos do discurso, subiu no palco, acenando em seguida. Nem preciso dizer que o barulho dos aplausos se tornou duas vezes mais alto com essa aparição. Não à toa também. estava parecendo um verdadeiro herói com seu uniforme sob medida lotado de distintivos e medalhas e o capacete em uma das mãos.
Nas últimas três semanas estive tão mergulhada em trabalho que nem tinha parado para pensar como e eu estávamos nos aproximando bastante. Até aquele momento, em que tudo parecia ocorrer em câmera lenta e o sol das onze horas reluzia sobre os óculos escuros do piloto pendurado em seu uniforme, eu não tinha notado como era um homem tão apessoado, tirando quando nos conhecemos. Isso só me ocorreu porque, vendo-o ali sobre o palco, lembrei de como ele me esperava a noite para me acompanhar até meu carro. Balancei a cabeça para esquecer esses pensamentos e todos já olhavam para o caça agora, vendo já se sentar na cabine.
Pisquei repetidas vezes e respirei fundo. O F-22 já começava a andar para o começo da pista de decolagem e tive a impressão de ver me olhando um pouco antes do avião sair do chão.
, você está ficando louca.
executou as manobras com perfeição e o pouso não poderia ter sido melhor, suave e linear. Fiquei genuinamente impressionada, ele era um ótimo piloto. O único desconforto que sentimos foi quando ele sobrevoou bem acima de nós, atingindo uma determinada velocidade e quebrando a barreira do som. Era como ouvir algo explodindo. Algumas pessoas colocaram a mão no ouvido e Henry só sussurrou um “Novatos” e revirou os olhos. Ri do comentário e agradeci que pelo menos não havia passado com uma altura menor, teria sido algo no mínimo prejudicial aos tímpanos.
Madeline parecia muito contente quando finalmente parou o caça.
- Até que não foi ruim. – Amélia falou ao meu lado e eu levei um susto, quase caindo sobre Henry.
- O que você está fazendo aqui? – Coloquei a mão sobre o peito e ela continuou olhando descer da aeronave. – Você não tinha que estar trabalhando?
- Você acha mesmo que eu iria perder isso? – Ela apontou para , que agora apertava a mão do presidente. – ficou gostoso em um uniforme? Check me in.
- Estou começando a achar que a seleção natural não funciona. – Henry olhou pedante para Amélia.
- Não sei porque ainda trocam farpas se no fundo vocês se gostam. – Falei um pouco sem paciência.
- Como assim? – Agora Madeline parecia interessada no assunto.
- Você não acha que eles m que se gostar muito para se xingarem tanto e conviverem tão bem?
- Faz muito sentido. – Maddie sorriu um pouco maliciosa. – Algo como o amor e o ódio andarem juntos?
- Algo assim. – Encarei Henry nos olhos e ele fingiu não estar entendendo nada. – Qual é, eu sei que vocês dormiram juntos. – Sussurrei a última parte para que as pessoas ao nosso redor não ouvissem.
Amélia instantaneamente negou com a cabeça e Henry permaneceu inexpressivo. Quando Madeline viu as reações, até pensou que eu estava blefando, mas persistiu em acreditar que eu dizia a verdade e ficou boquiaberta.
- Não sei do que está falando.
- Não vem com esse discurso para cima de mim, Amélia. – Apontei o dedo em sua cara, finalmente expressando a raiva que eu tinha por ela não ter revelado antes para mim. - O Henry já me contou.
A médica arregalou os olhos e se virou para Henry, que olhava para um ponto qualquer no horizonte, desejando estar em qualquer outro lugar no momento. Madeline estava se divertindo com a situação.
- Você disse que não iríamos contar para ninguém, seu idiota!
- Ela tirou a verdade de mim, Amélia. – Henry deu um passo para trás ao ver as bochechas da médica corarem. – Você deveria estar brava com ela.
Ergui uma das sobrancelhas com a audácia de Henry. Logo em seguida, contudo, eu já estava sorrindo animada. Queria saber quando isso tinha acontecido e como eles conseguiram esconder tão bem. Uma certa pontinha de felicidade surgiu em meu coração, admito que seria um sonho realizado se Amélia e Henry ficassem juntos, mas eu também tinha certeza que eles não se dariam tão bem assim num relacionamento amoroso. Então no final das contas uma amizade colorida não soava tão mal assim.
- Quando? – Perguntei sorridente e Amélia cruzou os braços.
- Quando o quê? – chegou perto de nós e passou a mão sobre o cabelo.
- Oh, sim, mais audiência, é disso que eu preciso. – A médica falou irritada.
- Estávamos falando sobre quando Henry e Amélia dormiram juntos. – Respondi divertida.
- Vocês dormiram juntos? – abriu um lindo sorriso, sem acreditar no que acabara de ouvir. – Quando?
- Não importa.
- Faz umas duas semanas. – Henry respondeu tranquilo e Amélia deu um soco em seu braço. – Outch! Por que você fez isso, sua louca?
- Não acredito que demorou tudo isso para descobrirmos. – Olhei para rindo e ele mordeu o canto dos lábios.
- Podemos mudar de assunto? – Henry perguntou educadamente e todos assentimos, por mais que tivéssemos perguntas.
- Deveríamos almoçar. – Madeline olhou o relógio. – Aproveitar que os capitães estão almoçando agora.
- ? – Ouvi uma voz desconhecida me chamar e me virei, dando de cara com ninguém menos do que o homem mais importante do país. O presidente estendeu sua mão e um calafrio passou pelo meu corpo. Ele estava a centímetros de mim. Centímetros. – Gostaria de parabenizá-la pessoalmente, é um dos melhores projetos que já vimos.
- Muito obrigada. – Apertei sua mão.
Eu apertei a mão do presidente dos Estados Unidos. O que minha mãe diria sobre isso?
- Henry Axel? – Agora ele andou até a frente de Henry para cumprimentá-lo e tenho quase certeza que Amélia se inclinou um pouco para cheirar o cabelo dele. Encarei meio confusa e, pela expressão em sua face, estou certa de que ele também reparou na médica. Do jeito que Amélia não é nada sutil, não seria surpresa se todos em um raio de dois metros tenham notado.
Fomos direto para o refeitório depois disso e não seria novidade dizer que tudo sobre o que Madeline conseguia conversar com estava relacionado ao presidente. Henry parecia expressar sua opinião de vez em quando, não estando muito dedicado à conversa. Eu e Amélia erámos a que andávamos mais devagar então naturalmente ficamos um pouco para trás. Ela checou os dois lados antes de chegar bem perto de mim e começar a falar baixo.
- Psiu... – Olhei-a não entendendo nada. – Preciso falar com você sobre .
- Se quiser que eu arranje um encontro, já adianto que... – Comecei a tagarelar e ela me cortou.
- Meu Deus, mulher, fica quieta. – Amélia parou de andar e me segurou nos dois braços, com os olhos tão vidrados em mim que faiscavam. – Há uns dois dias o veio me procurar na ala médica, ele estava estranho. Parecia alguém que não tinha as palavras certas para se comunicar, estava gaguejando tanto que chegou a me irritar. No começo achei que tinha algo errado com ele, mas depois de um tempo as coisas sem nexo que ele falava começaram a se encaixar. Ele veio me perguntar sobre você e .
- Eu e ? – Juntei as sobrancelhas.
- Sim, começou a fazer umas perguntas esquisitas. Depois começou a falar sobre o fato de ele ter ido embora já fazem três semanas e no final eu não servi para nada, porque não respondi nenhuma de suas perguntas e ele ainda pareceu tirar as conclusões sozinho, como se eu nem estivesse ali. Eu não ia te falar nada, não achei relevante, - Ela deu de ombros e eu abri a boca para contra argumentar, contudo Amélia continuou a falar, ainda mais rápido, com medo de algum dos outros três perceberem que já não estávamos mais andando atrás deles. – Mas então o Fred esbarrou comigo hoje quando eu estava indo ver o pilotar. A desgraça me fez perder o voo todo, mas tudo bem, porque a conversa me interessou. Você conhece o Fred, se você puxa um assunto ele desenvolve até não poder mais e acabou falando sobre uma conversa entre e Madeline que ele ouviu ontem. Pelo que eu entendi, Madeline disse que nunca entrou em contato com você desde que partiu.
- Não é como se isso fosse algo fácil de fazer. – Respondi meio ofendida e Amélia revirou os olhos impaciente.
- Esse não é o ponto. O ponto é que entendeu isso como uma abertura.
- Uma abertura?
- Uma abertura para te...
Antes que ela pudesse terminar sua frase, apareceu no corredor procurando por nós e esperou alguns segundos antes de dizer alguma coisa.
- Vocês não vêm?
- Sim, já estamos indo. – Amélia sorriu discreta e começou a andar em direção ao homem. Quando ela estava a dois passos dele, parei de encarar a parede e comecei a caminhar, ainda confusa com o que tinha acabado de acontecer.
- Na verdade, gostaria de falar com você se me permite. – olhou para mim e Amélia ergueu as sobrancelhas, pronunciando “Eu te disse” sem som.
Sorri sem graça e encarei Amélia, implorando com os olhos para que ela ficasse. Ela pareceu não ver, mas se viu, com certeza não deu a mínima. Como eu parei de andar imediatamente após ele ter me olhado, andou até mim. Ele parecia bem calmo e andava em passos lentos, o que me deixou um pouco mais tranquila. Sorri simpática assim que ele parou em minha frente.
- Aconteceu alguma coisa? – Perguntei ao perceber que ele não seria o primeiro a dizer algo.
- Não. – colocou a mão sobre a nuca. – Quer dizer, sim. Eu não sei.
- Não estou entendendo. – O homem que há uma hora parecia imbatível, subindo em um caça da Força Aérea, agora realmente parecia uma das esculturas de Michelangelo. Imaleável como o próprio mármore, porém delicado com as curvas esculpidas. Sem contar que seria mentira dizer que não era um homem tão bonito quanto uma obra de arte, convenhamos.
- Eu não quero ultrapassar certas barreiras e não quero que você não se sinta confortável ao meu redor e, acima de tudo, quero te respeitar. – estava tão desconcertado que suas bochechas começaram a corar e eu não pude deixar de sorrir sincera com a cena. – Eu sei que você e estavam juntos. – Ergui uma de suas sobrancelhas. Eu queria dizer que estamos, mas a verdade é que nós sequer havíamos conversado sobre isso antes dele partir e ele havia me dado abertura para eu fazer o que eu quisesse, embora eu tenha dito que não faria. – Mas desde que cheguei aqui nunca estive tão feliz. Tê-la entrando naquela sala da ala médica no meu primeiro dia foi como algum sinal do universo, por mais que isso soe estranho... E também seja estranho de dizer. Eu não quero intervir em nada que você tenha com e foi justamente por isso que esperei até agora.
- Esperou até agora?
- Gostaria de te convidar para um encontro. – Ergui as sobrancelhas e, antes que pudesse responder, continuou. – Eu sei que é cedo, mas gostaria muito que me desse uma chance de ser a pessoa certa.
- , eu... Eu estou lisonjeada, não tenho dúvidas disso, – Sorri dócil e segurei em seu braço. – Mas não acho que consigo fazer isso agora. Acho que ainda está cedo demais.
Uma tristeza profunda tomou conta do meu corpo assim que o vi rebaixar os ombros e me encarar com um certo olhar opaco. era uma pessoa tão querida, uma pessoa que não eu pensaria duas vezes antes de confiar e, sobretudo, uma pessoa de alma genuinamente boa. Exalava uma mistura tão harmônica de disciplina, beleza e afeto que eu não duvidaria se me dissessem que as mulheres se apaixonavam só de vê-lo. Se minha mãe estivesse aqui hoje, apesar dela estar muito feliz por eu ter conhecido o presidente, com certeza jogaria sua bolsa em minha cabeça e deixaria Amélia me dar um chute por não aceitar sair com um homem que parecia ser perfeito.
- Entendo. Espero que não tenha sido inapropriado. – sorriu discreto, encarando o chão.
- Não se preocupe, não foi.
Respirei fundo e ele passou a mão sobre o cabelo, desajeitando-os. Até que ele não ficava tão mal com o cabelo assim...
- As coisas não vão ficar estranhas entre nós, não é?
- Claro que não, . Seria no mínimo uma tortura se ficasse. Eu não quero te perder. – Sorri terna.
mordeu o canto do lábio inferior e ofereceu seu braço para eu segurar. Estava claro que nenhum de nós dois estava confortável, mas ainda assim fiquei feliz que ele foi gentil. Por três segundos, atravessando aquele corredor com seu corpo tão colado ao meu e sentindo seu calor sobre minha pele, uma vontade espontânea e efêmera me fez querer voltar no tempo. Não para dez segundos atrás, entretanto, quando eu neguei seu convite, porém para cinco semanas atrás, quando eu sequer conhecia e estava entrando naquela maldita sala na ala médica para suturar um soldado qualquer. Como tudo seria tão mais fácil se eu simplesmente tivesse convidado para sair, como eu gostaria de ter feito, apesar de não admitir. Quando esses três segundos de arrependimento passaram, no entanto, eu me lembrei do jeito que eu me sentia ao lado de . Era como sentir as famosas borboletas no estômago o tempo todo, como uma tarde de primavera na praia. Ele causava a sensação de estarmos vivendo uma aventura proibida, de maneira que a vida fosse um senso de humor refinado.
- Amélia. – pronunciou o nome da médica com tanta firmeza que eu fiquei impressionada. Havíamos acabado de virar a esquina do corredor e lá estava ela, apoiada na parede.
- Como se você realmente achasse que eu não fosse ouvir. – Ela revirou os olhos.


Capítulo 8

- Por que , Fred e Madeline não se sentaram conosco hoje? – Henry perguntou enquanto comia.
- Fred e Madeline, eu não sei. – Amélia respondeu sincera, com certa inocência até, porém logo depois sorriu acintosa. – Mas ...
Dei um chute em sua perna por debaixo da mesa e ela me xingou baixinho, sem que Henry percebesse.
- Não sabemos também. – Respondi fingindo desinteresse.
- ! – Madeline gritou a duas mesas de distância, correndo em minha direção e segurando um papel amarelado no alto. Não preciso nem dizer que absolutamente todos no refeitório pararam para nos encarar. – !
- Maddie! – Levantei-me o mais rápido que pude quando ela chegou perto. Madeline estava tão animada que mal conseguia parar de sorrir e me entregou o papel. Estava um pouco amassado, mas nada que fosse absurdo. – O que é isso?
- Uma carta do ! – Ela olhou para a mesa, queria ver a reação de Henry e Amélia. O engenheiro quase teve o suco saindo pelas narinas e a médica ria, não acreditava naquilo, foi no tempo perfeito. – Fred recebeu faz uns minutos.
Olhei animada para o papel em minha mão e voltei a sentar, com Madeline me acompanhando.
- Ainda não li também, Fred me deu a carta e eu vim correndo para cá.
- Sabemos dessa última parte, Madeline. – Amélia falou e fez um gesto com a mão para que eu começasse a ler.

“Fred,

Eu já nem sei exatamente que dia é. Que bizarro escrever isso. Achei que já estaria de volta daqui umas semanas, mas aparentemente vai demorar bem mais do que prevemos. Perdemos nosso melhor atirador há dois dias e tivemos que deixar um homem para trás, ele vai perder a perna, temos quase certeza. Tentei carregá-lo até o último minuto, mas isso acabou nos atrasando e quase caímos numa enrascada. Preciso te pedir um favor. Avise aos pais de Olívia que eu voltarei mais tarde do que acham.

-


- É isso? – Madeline perguntou desanimada e, de modo delicado, pegou a carta da minha mão para olhar o verso. Não encontrou nada. – Onde está a parte que ele diz que te ama?
- Então ele enviou uma carta para o Fred e nenhuma para você? – Amélia fez um bico e começou a brincar com sua comida, espalhando-a com um garfo. – Não foi muito legal da parte dele.
- Por que ele faria isso? – Henry perguntou confuso.
- Não vamos tornar isso algo pior do que já está sendo, tudo bem? – Perguntei sorrindo fraco e todos me olharam.
Uma pitada de decepção metamorfoseou-se em uma pontada aguda no coração e apoiei um dos cotovelos sobre a mesa, passando a mão sobre toda a extensão de meu cabelo. Algo dentro de mim me fazia querer entender o que tinha acabado de acontecer. Agora eu não só tinha certeza que demoraria meses para voltar, mas não estava confiante de que ele achava que nós tínhamos futuro. É como se um lado de minha personalidade dissesse “Não seja boba, é só uma carta, não exagere” e o outro respondesse com “Mas é exatamente isso. Uma única carta. Uma única carta para Fred. Sem tempo para escrever duas linhas para você. Onde você se meteu, ?”.
- Claro. Vamos falar sobre outra coisa então. – Henry sorriu carinhoso para mim. Eu não poderia estar mais aliviada com sua empatia. – Então, Madeline, como vão os preparatórios do casamento?
- Até agora estamos dando passos pequenos. – Ela respondeu voltando a sorrir com sua aura angelical. – Mas já conseguimos reservar o pequeno castelo no sul da França!
- Então já temos datas para comprar as passagens? – Amélia perguntou interessada.
- Sim! – Madeline estava tão animada que eu sentia que a qualquer momento ela explodiria de felicidade.
- E como vocês souberam em qual data marcar? – Perguntei confusa, dando uma garfada em minha comida e olhando Madeline nos olhos.
- meio que nos contou quando voltaria e em até quanto tempo poderia adiar a volta também.
- Espera um pouco. – Henry ficou surpreso com o comentário da coronel. – Militares quebrando regras militares? – Ele e Amélia se entreolharam e começaram a bater palmas. – Eu estou impressionado.
- E você agora tem que nos contar. – Amélia sorriu perversa. – Eu amo como você está sendo obrigada a nos contar um segredo.
- Por que ela tem que nos contar?
- Eu fico me perguntando como você tem um diploma de engenheiro, Henry. – Amélia revirou os olhos. – Acabamos de falar que temos que comprar as passagens com antecedência.
- Certo. – Falei, apontando o garfo para a médica. – E para quando devemos comprar estas passagens?
- Para daqui oito meses. – Madeline respondeu e Henry quase engasgou.
vai ficar longe por oito meses?! O que era essa missão? Atravessar a Rússia a pé?
- Vocês vão se casar em oito meses? Você sabe que preparar um casamento fora do país requer um ano de antecedência no mínimo, não sabe?
- Sabemos, Henry. – Maddie respondeu com uma voz suave. – Mas era a única data que tinha para alugar o castelo por um dia pelos próximos dois anos. Demos sorte que um casal desistiu.
- Estamos tão felizes que conseguiram essa data. – Sorri sincera e Madeline me deu abraço apertado. – Inclusive, é o momento perfeito para eu falar sobre uma certa estadia na Itália.
- Urgh, eu até tentaria esconder que estou com inveja, mas eu não vou nem me dar ao trabalho. – Amélia cruzou os braços emburrada e eu ri.
- Acho que seria uma boa ideia agendar essa viagem para logo depois do casamento. – Eu disse e todos pareciam ouvir atentos. – Até porque vocês gastariam bem menos com as passagens e eu gastaria bem menos tempo de viagem enfurnada em um avião.
- Que estranho ouvir uma engenheira aeronáutica falar isso. – Madeline riu.
- Construir é a única parte legal. – Henry respondeu com um certo pesar na voz.
- Construir aviões com poltronas melhores e mais espaçosas de classe econômica seria legal. – Amélia sugeriu como quem não quer nada.
- O capitalismo não nos permite. – Respondi. – Mas concordo que seria incrível.

Olhei de relance para a janela de meu escritório e pude ver Henry atravessar o hangar com seu terno sendo segurado por um dos braços. Arregalei os olhos e peguei todas as minhas coisas em cima da mesa com pressa. Joguei tudo dentro de minha bolsa e sai correndo em direção à porta. Tinha quase certeza que enfiei uma das decorações da mesa junto. Talvez um porta-retratos. Desci as escadas com a velocidade que meus saltos permitiam e comecei a chamar Henry.
- Henry! Henry! – Ele parou de andar e se virou em minha direção, claramente confuso. – Você pode me dar uma carona?
- Claro. Só que você não veio de carro?
- Vim, mas não quero dirigir. Você pode me deixar no píer?
- No píer? – O homem a minha frente parecia não entender muito bem o que estava acontecendo. – Posso. Você não quer pegar sua bolsa antes?
Olhei para minha mão e, ao não encontrar nada, olhei para a janela de meu escritório. Eu saí da sala tão rápido que esqueci de pegá-la, embora tenha colocado tudo dentro.
- Eu pego quando voltar para buscar o carro. – Dei de ombros.
Henry ofereceu seu braço para que eu entrelaçasse o meu e, sem hesitar, o fiz. Começamos a andar até o carrinho.
- Posso perguntar o que vai fazer no píer? Tenho quase certeza de que você nunca foi lá sozinha desde que se mudou para essa cidade.
- Vou só caminhar um pouco. O dia hoje foi um pouco maçante.
- Aconteceu alguma coisa? – Ele perguntou preocupado, já começando a dirigir o carrinho, e eu olhei para frente, perdida no que pareciam poucos centímetros para o sol tocar o horizonte.
- me chamou para sair, acredita? – Coloquei a mão sobre o queixo e suspirei.
- Bom, isso explica ele almoçar com a companhia de Fred hoje. Tenho que dizer que não estou surpreso.
- Não?
- É muito notável o jeito que ele trata os outros e o jeito que ele trata . Quer dizer, talvez ele te trate melhor do que o presidente e a gente já sabe o quanto esses soldados gostam desse cara. – Ri de sua fala e Henry me acompanhou. – Mas T também respeita muito o fato de você e terem algo que ninguém consegue descrever.
- É, eu sei. – Respondi baixo, olhando para o chão.
- Isso é arrependimento?
- Não. – Voltei a encará-lo. – Eu gosto de .
- Sabemos disso. – Ele disse ao estacionar o carrinho. Deu a volta e me ofereceu sua mão para que eu pudesse descer. – Mas ninguém, , vai te impedir de ser feliz, principalmente o . Então se você está toda desanimada desse jeito porque ele não foi capaz de te escrever uma linha de carta sequer, sendo que ele já enviou três para outras pessoas, e não vai voltar nos próximos oito meses, o que na minha opinião é muita coisa, ninguém vai te julgar se você quiser sair com outro cara. Ainda mais sabendo que logo será promovido a general e não correrá um risco tão grande de ter que servir fora do país.
- Ele já enviou três cartas?
- Sim, você não sabia? – Henry perguntou, tateando os bolsos de sua calça, procurando pela chave de seu carro. – Achei que Fred tivesse lhe contado.
- Fred que recebeu essas cartas?
- Não. – Finalmente chegamos na garagem e esperei ele destrancar o carro para poder entrar, embora eu pudesse só pular para dentro dele, considerando que era um conversível. – Ele enviou outras duas para alguém na cidade.
- Talvez não seja uma má ideia eu sair com no final das contas.
- Estou com medo de perguntar se isso é um ato de vingança. – Henry ergueu a sobrancelha e sentou no banco do motorista.
- Não seja bobo. Eu nunca usaria alguém assim.
- Sei lá. Você é amiga da Amélia. Todo mundo que é amiga da Amélia tem que ter um pouco de maldade no sangue, caso contrário é impossível se relacionar com ela.
- Você é amigo de Amélia.
- Eu nunca disse que eu não era uma pessoa ruim às vezes.
O resto da viagem foi acompanhado por um som muito alto saindo do carro de Henry e ele sabendo cantar todas as músicas. Olhando-o ali, dirigindo feito um insolente sem ao menos parar nos sinais vermelhos, com a luz do pôr do sol batendo sobre seu rosto, tirei a conclusão de que Henry estava exatamente onde deveria estar, muito embora não se encaixasse de forma natural com certas coisas, como um trabalho regido por termos rígido de militares ou uma casa amarela sem piscina, algo que ele frisava bastante quando nos conhecemos.
Henry parou bem em frente ao píer, bem na hora que o sol tocou o horizonte. O céu alaranjado estava lindo. Agradeci com um beijo em sua bochecha e abri a porta do carro.
- Vê se não quebra o coração de mais ninguém nessa brincadeira. – Henry falou assim que eu saí.
- De mais ninguém? – Perguntei confusa enquanto fechava a porta.
- Sim, já quebrou o coração de pelo menos metade daquele quartel quando beijou em público.
- Você é muito ridículo.
- Todos querem , bebê. E todos que não querem, já quiseram um dia, mas agora são casados.
Antes que eu respondesse, Henry acelerou o carro e saiu. Acompanhei-o até perdê-lo de vista. Ele era uma pessoa meio aleatória, mas eu não sabia mais viver a vida sem ter sua companhia pelas manhãs ou suas respostas afiadas para os comentários rudes de Amélia. Ri sozinha e comecei a andar sobre a passarela de madeira do píer, até chegar em uma escada que dava direto na areia da praia.
Tirei os saltos para sentir a areia fofinha sobre meus pés. Ainda estava morna e aquilo me passou uma imensa sensação de alegria. Mais à frente umas crianças corriam livremente, tão próximas do mar que as vezes a água das ondas calmas respingava para todos os lados. O que não daríamos por essa felicidade genuína e a inocência de uma página em branco? Da época em que tudo era simples e possível.
Comecei a andar o mais devagar que pude, reparando em cada uma das pessoas que passavam por mim e arrastando a areia até que um caminho fosse formado por onde eu passava. Recebi sorrisos de alguns dos homens que cruzaram meu caminho, contudo sorria de volta só por educação, sempre continuando a andar.
Não era tudo o que eu tinha sonhado na vida? Ter um emprego incrível e estável, cercada de amizades enraizadas, numa cidadezinha calma da Califórnia, podendo caminhar na praia sobre o pôr do sol e ver crianças brincarem sobre as ondas? Então por que eu estava sentindo falta de algo?
Sentei-me sobre a areia, afundando meus pés sobre ela e encarando um sol já quase inexistente. Não demorou muito tempo para que eu começasse a divagar em meus pensamentos, até que uma silhueta parou bem em minha frente. Apesar do sol já não estar mais lá, a claridade me obrigou a colocar a mão diante de meus olhos para poder enxergar melhor e eu não poderia ter visto um cenário melhor que este.
andava em minha direção com uma camisa social parcialmente desabotoada e com as mangas erguidas, calças que dobrou acima do tornozelo, mas pareciam ter a borda molhada ainda assim e pés descalços, segurando sapatos tão pequenos que só caberiam em um bebê. Como Madeline uma vez disse, parecia que ele tinha vindo direto do Olimpo. Ao mesmo tempo que era estranho vê-lo sem a costumeira farda, com certeza era uma dádiva aos olhos.
- Eu juro que não estou te perseguindo. – Ele sorriu e se sentou ao meu lado. – Só vim buscar o que esqueci.
- Seus filhos estão aqui?
- Acho que a partir de agora só os tenho a cada dois finais de semana. – respondeu encarando o horizonte e pude sentir um tom de angústia em sua voz. – Tenho que aproveitar quando minha esposa... Ex esposa os traz.
- Eles gostaram da praia?
- Bastante. Acho que nunca tinham ido à praia para falar a verdade.
Olhei-o meio confusa. Como ele não tinha certeza de que seus filhos tinham ido ou não à praia? limitou-se a somente rir da minha expressão.
- Como parece que você tem tudo sobre controle o tempo todo? – Perguntei curiosa. Ele parecia estar sempre tão pleno que se Madeline não tivesse nos contado sobre o divórcio, eu nem suspeitaria que ele estivesse passando por um momento difícil.
- Não tenho, mas seria uma vida extremamente estressante se eu tentasse controlar tudo o tempo todo. – Ele riu de minha incredulidade. – Às vezes eu até me preocupo de menos. Tenho plena noção, por exemplo, que nunca fui um pai muito presente.
- Tem vontade de mudar isso?
- Todo dia. – Ele respondeu muito rápido. – Mas parece que isso vai ficando cada vez mais distante. Eu morando quase do outro lado do país fica difícil. No começo era pior, na verdade. Ainda é ruim, mas era pior. Lembro quando cheguei de madrugada em casa depois de oito horas de voo e três meses fora e entrei no quarto da minha filha. Ela estava acordada, me esperando chegar, e me perguntou por que eu não tinha ido à sua apresentação de ballet na escola. Pode soar absurdo, mas encarar a morte na cara é algo menos doloroso.
Coloquei minha cabeça sobre seu ombro e passei a mão sobre suas costas, num ato de reconforto.
- São os efeitos colaterais do trabalho, , não é como se você fizesse de propósito.
- Nem sempre estamos preparados para eles.
Ficamos em silêncio por um tempo, não sabia dizer se foram por minutos ou horas. Eu não fazia ideia do que se passava na cabeça de . Sendo franca, eu nunca sabia. Desde que nos conhecemos eu atribuía uma aura de mistério a esse homem. Ele nunca foi de se expressar e deixou bem claro desde o começo com suas frases curtas, segredos e observações extremamente atentas.
- Está ficando tarde, quer ir para o píer? Descobri que tem um restaurante bem na ponta.
- Você está me convidando para sair de novo? – Perguntei divertida e ele ruborizou.
- Depende do que você vai me responder. Se for sim, então pode interpretar como preferir, mas se disser não, então eu diria que é só para não morrermos de fome e fingirei que minha dignidade não está ferida.
Assenti com a cabeça e se levantou animado, oferecendo-me sua mão para que eu levantasse também. Ele colocou suas mãos nos bolsos da calça e começamos a caminhar.
- Sabe, queria falar sobre isso com alguém, mas acho que nunca tive a intimidade o suficiente.
- Bom, nesse ponto da nossa convivência você é uma pessoa bem próxima já, então se soltasse um pum agora eu não ligaria. – Senti as palavras saírem de minha boca como se não houvesse um filtro e arregalei os olhos. apenas riu do que eu disse, o que me deixou aliviada, achei que ele ficaria sem graça com eu tentando demonstrar familiaridade.
- Tudo bem... Eu queria muito conversar sobre a Amélia.
- Sobre a Amélia? – Admito que fiquei impressionada e ri. – Não sei se é a melhor conversa para um encontro, falar sobre outra mulher.
- Oh, não! – abria e fechava a boca sem graça, sem saber exatamente o que dizer. – Não foi isso que eu quis dizer. - Comecei a rir, ele demorou um pouquinho até entender que eu não tinha falado sério ou por irritação, todavia segundos depois já me acompanhava nas risadas. – Amélia me assusta um pouco.
- Como assim?
- Ela sempre está por perto e sabe de tudo. Sem contar que tem vezes que ela age muito estranho, como quando ela cheirou o cabelo do presidente. – Apesar de ter sido uma afirmação, o final da frase havia soado mais como uma pergunta, pois ainda não tinha certeza se acreditava naquilo
- Amélia é uma pessoa peculiar, mas gosto de dizer que, apesar de ela negar profundamente, ela tem todas as características necessárias para se encaixar perfeitamente no perfil padrão do exército.
- Madeline disse que ela foi moldada para ser uma pessoa fria.
- Sim, fui eu quem disse isso a ela. A verdade é que Amélia sempre foi uma pessoa fria e direta, mas os acontecimentos posteriores à sua entrada na medicina militar só deixaram isso mais evidente. Nem podemos imaginar o que é driblar a morte todos os dias com nossas próprias mãos.
Não tínhamos conversado quase nada sobre a médica, mas parecia satisfeito como pouco que foi dito.
- Ela lhe enviou de propósito para me suturar naquele dia?
- Creio que não. – Respondi tranquila, lembrando de todas as vezes que Amélia me disse como tinha raiva de si por não ter sido a pessoa a atender e me mandar lá para “arruinar sua vida amorosa”.
- Onde aprendeu a suturar tão bem? – Agora ele me encarava desconfiado e percebi que paramos de andar.
Havíamos acabado de chegar na porta do restaurante. Era um lugar bem acolhedor, com grandes janelas de vidro do chão ao teto, mesinhas de madeira e flores espalhadas por todo lado. Parecia bem cheio até e tinha um ar acolhedor que me lembrava esses filmes de romance. abriu a porta para que eu pudesse passar e, antes de continuarmos a conversa, ele falou com alguma atendente, que nos guiou até uma mesa que ficava fora do restaurante, ao lado da cerca que delimitava o píer. Agradeci quando ele puxou a cadeira para que eu sentasse.
- Aprendi na escola de medicina.
- Achei que você tivesse dito que não era médica... E nem uma assassina de aluguel.
- E não sou. – Sorri e coloquei uma mecha de cabelo atrás de minha orelha, desviando meu olhar do dele e encarando a mesa. - Desisti depois de dois anos. Acho que tenho alguma atração por profissões que são complicadas.
- Não posso deixar de dizer o mesmo. – abriu um sorriso encantador. – Tive que deixar o curso de literatura inglesa para me juntar ao exército e digo que não é um curso que faz jus à fama.
Ergui as sobrancelhas em completa surpresa e abri a boca, não acreditando no que ele tinha acabado de me dizer. Nem em um milhão de anos eu suporia que o homem a minha frente, a verdadeira personalização do que era o racional e o manual, cursou Literatura.


Capítulo 9

- ! – Madeline acenou para mim, correndo em minha direção.
Eram exatamente oito horas da noite e eu pisei no freio do carrinho assim que a ouvi. Maddie estava na sua corrida noturna, acompanhando o treino do batalhão de Elijah. Desde que ela foi oficialmente transferida para cá e o nosso projeto terminou, Madeline ficou responsável pelo treino dos tenentes na ausência do major-general Fox quando ele estava em reunião, ou seja, 90% do tempo.
Lembro-me vividamente do dia em que Madeline gritou tão alto com seus soldados, porque algum deles soltou um assovio para ela em meio à multidão. Minha nuca arrepiou. Soube que ela colocou no homem na cadeia por alguns dias e também me disseram que isso era um “castigo” comum.
- Urgh, eu não consigo sentir minhas pernas. – Ela soltou um gemido de frustração, sentando no banco do passageiro ao meu lado. – Boa noite, inclusive!
- Boa noite – Cumprimentei-a rindo e voltei a dirigir. – O que aconteceu para você, um próprio raio de sol, estar com essa cara?
- Fox me pediu para que eu treinasse teste de resiliência no mar ontem à noite com o batalhão.
- Acho que já tinha falado sobre isso comigo algum dia, mas não me lembro. – Tentei procurar algo em minha memória, porém nada me veio à cabeça.
- Basicamente temos que ficar dentro do mar gelado parados por horas, segurando uma tora gigante.
Arregalei os olhos e desviei meu olhar para a face da mulher ao meu lado, que agia como se tudo estivesse perfeitamente bem. Nunca agradeci tanto por ser a engenheira.
- E vocês tiveram que acordar as quatro e meia de madrugada hoje?
- Pelo menos não precisamos não dormir. – Madeline respondeu dando de ombros. – Eu não funciono direito sem algumas poucas horas de sono. Com certeza estaria parecendo um cadáver ambulante. – Então ela pareceu se perder na vista por alguns instantes e repentinamente se lembrou de algo, virando-se para mim. – Queria ser igual ao , que pode ficar três dias sem dormir e uma olheira nem dá sinal de vida.
- Sério? – Perguntei impressionada.
- Sério... Falando em , vocês já estão juntos há um mês, não?
- Nosso primeiro encontro completou um mês. – Respondo baixo.
- Admito que estou chocada, achei que estivesse decidida. Quer dizer, e você parecia algo tão certo, entende? – Ela começou a fazer gestos com a mão e tive que interrompê-la. Já havia me pego pensando nisso várias vezes e nenhuma das reflexões me fazia feliz. – Era como...
- Quando vocês m férias?
- Daqui umas semanas, não sei direito. – Madeline claramente não ficou feliz com a mudança de assunto e respondeu com desdém. Admito que não era muito agradável só cortá-la, sem ao menos demonstrar um pingo de educação, mas eu estava cansada de todos me falando essas coisas doloridas.
- Espero que seja logo. – Parei o carrinho em frente à ala dos dormitórios, vendo-a descer de modo tão devagar que pude sentir a sua dor corporal. – Quantos antes melhor, aparentemente.
- A gente se ilude achando que ter um cargo alto no exército significa só mandar os outros de escalão mais baixos fazer as coisas por nós, mas isso é só uma mentira que eles contam para gente se esforçar mais. – Ela disse revirando os olhos, porém sorrindo, e deu duas batidinhas no capô, virando-se logo em seguida para ir embora.
Continuei dirigindo até a ala da garagem. Assim que estacionei e desci do carrinho, aceitando a mão de um dos soldados que sempre estava por lá àquela hora. Agradeci e comecei a andar até um dos corredores. Cheguei em frente ao meu carro e não demorou muito para que eu já estivesse virando a esquina da minha casa, batucando a mão sobre o volante no ritmo de uma música qualquer. Tive sorte e achei uma vaga a uns metros da entrada. Estacionei o carro, desliguei-o e fiquei sentada imóvel, encarando o nada e respirei fundo.
- Vamos, , um longo banho de banheira depois de um dia difícil te aguarda. – Falei antes de me levantar, ainda demorando uns bons minutos até criar coragem, e andar até as escadas do prédio, arrastando meu salto tão vagarosamente que tenho certeza que demorei severos minutos para atravessar seis metros.
Quando finalmente cheguei em frente à entrada, levei um susto ao me deparar sentado nas escadas, com a cabeça apoiada sobre o queixo. Logo que percebeu minha presença, levantou-se sem pressa e sorriu sincero. Pude ver que ele tinha uma garrafa de vinho na mão e uma sacola branca na outra.
- Trouxe comida.
Admito que isso era um ótimo jeito de cativar minha consideração. Sorri de volta e cheguei perto para lhe dar um beijo. Subimos a escada e assim que abri a porta, já foi direto para a cozinha e eu tirei os saltos, colocando-os em qualquer lugar, e colocando minha bolsa na ilha.
- Precisa de ajuda aí? – Perguntei enquanto pegava duas taças no armário.
só negou com a cabeça e continuou concentrado em tirar as pequenas caixas de dentro da sacola. Enchi as taças e peguei-as, já dando um gole em uma delas e indo em direção ao sofá. Apoiei a de sobre a mesa de centro, peguei o controle e liguei a televisão, nem precisando ficar à procura de algo, uma vez que um filme qualquer apareceu.
- ? – me chamou e virei a cabeça para olhá-lo. Ele estava de costas para mim, abrindo e fechando as gavetas.
- Primeira gaveta à sua esquerda. – Disse pressupondo que ele procurava pelos talheres e voltei a assistir o filme. Estava mudo, então comecei a imaginar o que os atores diziam e ri sozinha com o diálogo bizarro que havia criado em minha cabeça.
- Aqui. – sentou-se ao meu lado e me ofereceu um dos pratos. –Você não vai ligar o som?
- Claro.
- O que estamos assistindo? – Ele perguntou já começando a comer.
- Não faço ideia.
No início, ficamos tão vidrados em entender o filme que sequer desviamos o olhar da tela, nem quando movíamos para pegar o vinho.
- Quando te dão uma mantinha de avião, você leva ou deixa? – perguntou curioso ao ver uma cena com um aeroporto na televisão.
- Você sabe que é proibido levar, não sabe? – Respondi incrédula e comecei a rir quando ele arregalou os olhos e quase engasgou com a bebida.
- É?
- Teoricamente o preço da passagem não inclui o cobertor.
Continuamos a assistir e as vezes algumas perguntas aleatórias eram feitas, sobretudo quando algum acontecimento do filme nos deixava em choque.
- Você abre seus olhos embaixo da água no mar? – Perguntei incrédula.
- Antes dos vinte e um eu não conseguia, mas depois de entrar para a Força Aérea... Sinto que posso abrir os olhos até mergulhado numa banheira com molho de pimenta.
- Isso é meio preocupante. Não sei como ainda não perdeu a visão. – Aproximei-me dele para tocar delicadamente em volta de seus olhos. Eu estava bem perto e pude ver cada linha de sua íris.
estava tão quieto que, se eu não sentisse sua respiração em minha pele, ia achar que tinha algo errado. Passei o dedo de modo gentil sobre seu rosto, de sua testa até a ponta de seu nariz e ele fechou os olhos. Vendo-o ali tão vulnerável e entregue ao momento fez meu coração acelerar e agradeci aos céus por estar sentada, minhas pernas tremiam. Depositei um beijo leve sobre seus lábios, mas não consegui o aprofundar, aquilo não parecia certo no momento. Afastei-me e ele pareceu confuso.
- Me fala um pouco sobre você. – Pedi e me deitei em seu colo. Apesar de desconcertado, olhou-me tão fundamente nos olhos que acho que chegou a ler minha mente, pois logo pareceu compreender os sentimentos que nem eu mesma saberia descrever e engajou-se no meu pedido, contudo não com um monólogo sobre si, mas com perguntas.
- Você vai respondê-las também? – Concordei com a cabeça. - Se pudesse parar em alguma idade, em qual pararia?
- Agora. – Respondi decidida e pude ver um sorriso maravilhoso tomar conta de sua boca.
- Eu pararia nos dez anos talvez. É uma idade em que já somos capazes de mantermos lembranças, mas ainda não temos responsabilidades.
- É uma ótima idade. – Fiz um bico, pensando que eu gostaria que essa fosse minha resposta. -Quando você sai do banho, se enxuga de baixo para cima ou de cima para baixo?
- De cima para baixo. – parecia estranhar bastante minha pergunta. – A gravidade não levaria a água para o lugar que você já secou?
- Não sei se é tão rápido assim...
- Você se enxuga de baixo para cima? – Ele ficou boquiaberto e eu ri.
- Não, mas tem gente que sim...
- Se tivesse que escolher entre nossos amigos para salvar em um incêndio, quem seria?
- Essa pergunta é cruel, eu gosto de todos iguais. – Respondi e me sentei para tomar um gole de vinho, desviando o olhar. imediatamente ergueu a sobrancelha sem credibilidade. – Ok, Amélia.
- Achei que escolheria Madeline!
- Se eu fosse considerar quem me trata melhor, com certeza a escolheria, mas Madeline escolheria Fred e eu gostaria de escolher alguém que tenho certeza que também me escolheria se fosse o contrário.
- Você tem um ponto muito bom.
- Bem, eu gosto de ser mais modesta que isso normalmente, mas... – Sorri divertida antes de continuar a falar e dei uma piscadinha, fazendo-o rir. - Eu ter razão não é novidade, .
- Eu acho que salvaria Henry.
- Achei que você escolheria Madeline, mas tenho certeza que você não se arrependeria.

- Onde você quer que eu deixe isso? – Perguntei colocando a caixa pesada no chão.
havia finalmente comprado uma casa na cidade depois que recebeu sua transferência afetiva. Ele estava esperando ser promovido à coronel para ter certeza que ficaria por aqui e comemoramos não somente a ideia de seus filhos não precisarem mais ficar em um hotel nos finais de semana, mas também o fato de não precisarmos mais ter encontros somente de sexta. Isso me deixava muito aliviada de certa maneira, porque havia dois meses desde que começamos a sair, eu repito, dois meses, e sempre parecíamos ter um primeiro encontro. Somente. Na. Sexta.
- Hm... – Ele analisou a caixa, procurando por algo escrito nela. – Pode deixar aqui mesmo. Deve ser da sala.
Passei a mão sobre minha testa suada e saí pela porta da entrada principal, indo em direção ao caminhão estacionado em frente à casa. Quando ele me disse que sua ex esposa tinha enviado suas coisas, eu não tinha imaginado que seria todos os móveis da casa e mais um pouco. Subi no container e olhei para uma das caixas, que tinha “Livros” escrito em letras garrafais. Coloquei a mão na cintura e estreitei os olhos, desejando que eu pudesse explodi-la com meu olhar. riu ao meu lado e apontou com a cabeça para outras caixas, que tinham os dizeres “Travesseiros” e “Roupas de cama”. Sorri alegre e andei em direção a elas.
- Pode deixar no quarto. – Ele disse levantando a caixa de livros como se pesasse poucos gramas, sem esforço algum.
Passamos um bom tempo levando as caixas para dentro, sem contar o trabalho pesado como a geladeira e o sofá, e horas depois, quando o sol estava se pondo, lá estava eu, com a mão na cintura e cansada de desempacotar os livros e colocá-los nas estantes do escritório. tinha tantos deles que eu sentia que a cada caixa que eu esvaziava, mais duas surgiam. Respirei fundo e coloquei as mãos nos bolsos da calça, andando para trás e encarando todos aqueles livros enfileirados. Pelo menos estava ficando esteticamente agradável. Tinha que ficar mesmo, estava dando um trabalho desgraçado.
Saí do cômodo, passei pela sala e pela cozinha e entrei num corredor que levava aos quartos. Empurrei uma das portas que estava entreaberta e pude ver agachado no chão, com uma furadeira na mão e sem camisa, montando um berço branco.
- Que corpo... – Sussurrei e encostei no batente da porta. Faltava só eu babar para a cena ficar completa.
- Oi! – Ele parou o que fazia e sorriu. – Está aí há muito tempo?
- Não, acabei de chegar na verdade. Quer tomar um café? Henry disse que uma cafeteria nova abriu perto do píer e que ela é incrível.
- Pode ser. – Ele disse ao se levantar e, infelizmente, colocar uma camiseta. – Acho que seria bom uma pausa mesmo.

Estava colocando algumas fotos de polaroide sobre a mesa de jantar. Elas estavam enfileiradas por data, bom, pelo menos eu achava que sim. Como um pequeno presente de casamento para Madeline e Fred, resolvi fazer um álbum de fotos e, desde que eles anunciaram, o noivado eu vinha trabalhando nisso. Encarei as fotos em minha mão e depois as que estavam na mesa e bufei. Estava tendo muita dificuldade em colocá-las na ordem, devia ter anotado a data em algum lugar ou ter sido mais organizada e começado a montar antes.
- Talvez eles tenham ido escalar essa montanha antes desse jantar... – Comecei a falar sozinha.
Passaram mais uns dez minutos e eu não tinha feito nenhum progresso. Coloquei a mão sobre as mporas e levantei da cadeira. Talvez eu só precisasse de um tempo para lembrar. Fui até o sofá e sentei em seu braço, ligando a televisão e passando os canais tão rápido que eu tinha certeza que não estava nada interessada. Não era isso que iria ajuda a me distrair. Então meu celular tocou em cima da ilha da cozinha. Olhei-o, com preguiça de ir até lá.
- Por que tão longe? – Fui arrastando meu pé até enxergar o nome que brilhava na tela. – Alô?
- ? – Madeline chamou-me feliz do outro lado da linha. – Você está em casa?
- Estou. Aconteceu alguma coisa? – Perguntei me apoiando sobre um dos banquinhos ali perto.
- Ótimo. Você pode descer? Vamos sair.
- Desculpe, o que disse?
- Desce logo! Eu, Fred, Henry e Amélia estamos na frente do seu prédio com o carro ligado.
Juntei as sobrancelhas e tirei o celular da orelha para ver que horas eram. Duas da tarde de um sábado e ela me vem com uma história dessas.
- O que vocês estão fazendo aqui? – Perguntei desconfiada e a ideia de olhar pela janela da sala surgiu em minha cabeça. Caminhei até ela, abrindo uma fresta na cortina, e pude enxergar o carro de Fred parado literalmente em frente às escadas de onde eu morava e os faróis acesos.
- Vamos! Não quero me atrasar. Aproveita e traz o também, para onde vamos tem comida e champanhe, tenho certeza que vai ser um jeito romântico de vocês comemorarem quatro meses juntos. – Maddie pediu manhosa.
- Eu estou com fome e você está arruinando meu final de semana, otária. – Amélia pegou o celular da mão de Madeline sem pudor algum. – Para de fazer sexo aí com o e desce logo antes que eu convença o Fred a te largar para trás.
- Estou descendo. – Revirei os olhos e coloquei meus saltos, desligando o celular.
Em cinco minutos eu já estava descendo as escadas da entrada e Fred me olhou surpreso, não contendo o comentário.
- Por algum acaso você está sempre arrumada?
- Vou encarar isso como um elogio. Muito obrigada. – Respondi abrindo a porta para me sentar ao lado de Henry. – Para onde estamos indo afinal?
- Provar comida para o casamento! – Madeline sorriu maravilhada no banco de passageiro da frente e Fred começou a dirigir. – Trouxemos o chefe francês que vai fazer a comida do nosso casamento até aqui.
- Um jeito realmente romântico de completar quatro meses saindo com alguém, provando comida de casamento com os amigos. – Henry disse irônico. Isso soou um pouco como o jeito da médica e não pude deixar de sorrir.
- Onde está o ? – Amélia perguntou inclinando-se para frente, contornando o homem sentado entre nós. – Ele não quis vir?
- está em Michigan, foi visitar os filhos nesse final de semana. – Todos soltaram um som de entendimento e eu dei uma leve risada com a sincronia. – Sem contar que ele não caberia no carro, não?
- O porta malas está vago...
- Fred! – Madeline o repreendeu, mas logo deu uma risada.
- Eles crescem tão rápido. – Amélia fingiu estar emocionada. – Numa hora Fred é um bebê e basta eu piscar para Fred ser um bebê, porém prestes a se casar.
- Ei! Eu não sou um bebê. Sou um adulto maduro, ok? – Ele disse inflando o peito, sem desviar o olhar da direção.
- Você veio o caminho inteiro fazendo piadas ruins. – Amélia revirou os olhos como costumava fazer.
- De fato você colocou um saquinho de pum na cadeira que eu ia sentar antes de sairmos de casa hoje. – Madeline acrescento com um sorriso doce, demonstrando que Amélia falava a verdade, embora o jeito de Fred não a incomodasse, muito pelo contrário.
- Você tem razão..., Mas foi engraçado. – Fred admitiu e riu sozinho, lembrando do momento.
Estacionamos na frente do que parecia ser um beco onde ficavam as latas de lixo. Não precisei estreitar muito os olhos para notar que realmente tinha latas de lixo.
- O que vocês vão servir no seu casamento? – Henry perguntou enojado assim que Amélia abriu a porta para sair do carro.
- Não sejam bobos. – Madeline dizia enquanto todos andávamos por aquele beco. Agradeci pelo sol ainda estar iluminando o dia, de outra forma não pisaria ali nem se me pagassem. – Venham, a entrada é por aqui.
- Esse chef francês que você contratou... Você tem certeza que ele é confiável? – Amélia perguntou olhando para um certo ponto e jurou ter visto algo pequeno passando correndo por ali.
Fred e Madeline não responderam essa e nem as outras perguntas que seguiram, limitaram-se a apenas ir até o final do beco e abrir uma grande porta de aço. Fizeram um gesto para que entrássemos e não hesitei, fui logo a primeira. Diga-se de passagem, fiquei extremamente surpresa quando me deparei com uma gigante cozinha industrial. Haviam cozinheiros trabalhando para lá e para cá e um aroma muito agradável de temperos no ar. Havia várias panelas e outros utensílios pendurados por todas as partes. Aquilo tudo parecia um caos organizado de certa maneira.
Fred e Madeline atravessaram a cozinha pelo corredor principal e os seguimos sem entender o que acontecia. Aonde diabos estávamos? Dois homens bem vestidos com o que pareciam ternos caros abriram uma porta dupla para que passássemos para outro cômodo e logo estávamos em um grande salão repleto de mesas redondas. O local definitivamente me lembrava a arquitetura francesa com todos os detalhes nos tetos e paredes.
- Chique. – Amélia encarava seu redor deslumbrada. – Nem acredito que vim de moletom.
- Eu tive meu pior encontro aqui. – Henry cruzou os braços e fez uma careta. – Duas horas e ela deu conta de falar tanto que não pude nem falar “Oi”.
Madeline chamou por nós e nos aproximamos de uma mesa, onde seis garçons já esperavam por nós, puxando as cadeiras para que pudéssemos sentar.
- Pelo que entendi ele vai começar com os aperitivos. – Maddie retirou um papel impresso da bolsa e começou a lê-lo baixo, para que somente Fred ouvisse.
Então, antes mesmo de eu conseguir colocar o pano sobre meu colo, alguns homens traziam lindas peças de porcelanas cheias de comidas de tamanho tão minúsculo que eu jurava precisar de uma lupa.
- Aparentemente são muitas coisas para provar. – A noiva lia a lista com os olhos enquanto falava. - Tem os aperitivos, entradas, bolos, sobremesas e assim por diante. A gente prova e vê o que gosta, mas não se enganem com o tamanho desses pratos, daqui a pouco estaremos cheios e eu preciso que vocês me deem suas opiniões até o último prato.
Agora aquelas pequenas porções pareciam gigantes. Se para cada categoria que Madeline citou receberíamos uma mesa de banquete inteira dessas, não teria estômago que aguente.
- Você deveria ter me dito antes, eu não teria almoçado. – Henry disse e eu concordei com a cabeça, com os olhos arregalados e ainda encarando a mesa em choque.
- Não seria justo, porque a fome tende a nos fazer gostar de tudo que comemos. – Maddie declarou, sorrindo dócil. Sabíamos que aquilo era verdade.
- Ela é não inteligente? – Fred perguntou com um olhar apaixonado e eu sorri sincera.

- Para onde estamos indo? – Perguntei virando minha cabeça em direção ao .
Ele estava concentrado em prestar atenção na estrada, mas ainda assim deu uma leve risada e balançou a cabeça.
- Você é muito curiosa.
- Você não me disse nada até agora, só que iríamos a algum lugar. Aparentemente um lugar distante, já que estamos numa rodovia.
- Estamos indo para Los Angeles.
- Los Angeles? – Perguntei chocada e voltei a encarar as árvores que passavam correndo ao meu lado. – O que vamos fazer em Los Angeles?
- Assistir um jogo de baseball. – Ele falou levantando dois ingressos com a mão direita. – Já viu um?
- Não. – Sorri e peguei os ingressos de sua mão, fascinada pela sensação que aquele pequeno papelzinho brilhante trazia. Admito que sequer havia visto um jogo de baseball na vida, mas algo no comportamento corporal de o fazia ficar tão feliz em pensar sobre o jogo que não pude deixar de acompanhar sua alegria. – Você gosta?
- Meu pai costumava me levar quando eu era mais novo. Quis fazer uma surpresa para ver se você vai gostar tanto quanto eu gostei na minha primeira vez.
- Se tiver cachorro quente, um balde de pipoca gigante e algo para beber, acho difícil não me agradar.
- Tenho que discordar. – Ele pareceu dizer com certo receio e tive que encará-lo.
- Como assim? – Perguntei confusa e ele desviou seu olhar da estrada para fitar minha expressão não tão agradável.
- Você não é uma pessoa que é tão fácil de agradar como pensa. – era muito direto e isso não passava despercebido. Abri a boca para responder, mas ele calmamente colocou sua mão sobre minha coxa e sorriu terno. – Você é uma pessoa bastante complacente e empática e é por isso que todos criam uma certa admiração e carinho muito rápido por você, mas isso não significa que você não tenha exigências em relação àqueles que se aproximam.
Olhei-o inexpressiva e ergui a sobrancelha uns segundos depois. Eu gostava quando as pessoas me analisavam, porque costuma ser tão mais fácil falar características dos outros do que de nós mesmos. Era como poder enxergar através de a imagem que ele tinha de mim. Algo naquela descrição me agradou muito, ainda não sei se foi o fato dele ter prestado atenção em meu jeito ou o fato de que aquilo havia soado como um elogio em tinha cabeça. Talvez os dois.
Voltei a encarar a janela ao meu lado, sem dizer nada e esperar que um silêncio tomasse conta do ambiente, e peguei-me pensando que talvez eu não estivesse vestida adequadamente para a ocasião. Havia tantos anos já que eu tinha que estar apresentável quase todos os dias da semana que de maneira natural acabei pegando gosto por isso.
ligou o rádio e alguma música começou a tocar baixo. Ele batucava os dedos no volante e eu cantava quase sussurrando, até que ele quase gritou o refrão e eu levei um susto, tornando a vê-lo. Ele ria de minha cara de espanto e não pude deixar de acompanhá-lo. Não posso dizer que ou eu tínhamos vozes incríveis, mas com certeza posso afirmar que nos divertimos nos próximos minutos cantando muito alto e de modo desafinado as músicas antigas que saíam carro.
Assim que estacionamos sobre uma das centenas de vagas em frente ao estádio, olhei para o relógio do painel. Estávamos cinco minutos atrasados já, mas considerando que viemos de outra cidade, não achei nada demais. abriu a porta do carro para que eu saísse e agradeci. O problema com o horário realmente começou quando fomos andando devagar até a entrada e tivemos que passar pelo detector de metal. O homem que passou minha bolsa pelo raio x fez questão de fazer este procedimento pelo menos umas quatro vezes. Eu estava começando a perder a paciência quando foi perguntar se algo tinha acontecido. O segurança encarou-me, depois desviou seu olhar para e pronunciou um “Não” tão vagaroso que só me restringi a revirar os olhos. Eu já podia ouvir a algazarra que se estendia pela arquibancada e só pude pensar que estávamos aqui, esperando um segurança, que parecia achar que eu estava contrabandeando algo em minha bolsa do jeito que me encarava, autorizar nossa passagem.
Prosseguimos apressados para às escadas que levariam até as cadeiras e, no caminho, assobiou para um dos caras que vendiam pipoca. Não demorou muito para que ele aparecesse com um balde e um sorriso encantador. Enquanto pedia licença para passar entre as pessoas sentadas, não pude deixar de notar que muito dos homens me encaravam e corei, logo sentindo a mão de segurar a minha. Encontramos nossas cadeiras, as únicas vazias na região inclusive, bem na hora que as quatro telas gigantescas anunciavam o famoso kiss cam.
- Achei que isso só existia em filmes.
- Eu gostaria que só existisse em filmes mesmo, sendo sincero. – riu sem desviar o olhar do campo, vidrado em prestar atenção em algo que eu nem sabia dizer o que era. – Uma vez apontaram a câmera para a namorada de um cara e para mim. Dá até para imaginar que ele não ficou muito feliz enquanto todo mundo gritava “Beija, beija, beija” uníssono. Sem contar que sempre tenho dó quando um dos dois quer o beijo e o outro não.
Admito que uma parte minha queria muito que a kiss cam focasse em nós dois, era um pensamento que fazia meu coração acelerar, infelizmente, no entanto, depois de uns cinco casais tendo passado pelas telas, a tela voltou a marcar o placar de zero a zero de início de jogo.
Coloquei o balde de pipoca sobre o colo e comecei a encarar . Quando ele estava genuinamente feliz era como se exalasse uma energia de um jeito diferente. Uma energia boa, como se sua aura tivesse cores alegres, se é que isto faz algum sentido. Não parecia mais aquele homem cheio de compromissos e responsabilidade, mas sim alguém dedicado a viver o momento. Fiquei tão distraída em analisar os detalhes tão delicados e proeminentes de seu rosto que ruborizei quando percebi que ele me encarava de volta meio desconcertado, porém sorridente.
- Então, vou te explicar mais ou menos como funcionam as coisas para que você não fique perdida.
Balancei a cabeça de acordo e ele voltou a falar, apontando para vários lugares e pessoas, dizendo tudo com tanta empolgação que não prestei atenção em nada além de seu jeito, como se a cena diante de meus olhos estivesse sem som algum. Sorria de vez em quando para ele achar que eu estava acompanhando, contudo a verdade era que eu só conseguia pensar no quanto era uma pessoa extremamente gentil e como esses últimos seis meses ao seu lado haviam se passado muito rápidos. Seis meses de muitos risos e aventuras eu diria.

- E esse? – Ergui uma das caixas de cereal coloridas que estava na última prateleira. – Você acha que sua filha vai gostar desse?
afastou-se do carrinho de compras e foi até mim, encarando a caixa.
- Não sei. – Ele olhou rapidamente para as prateleiras daquela fileira do supermercado e parou os olhos sobre algo. – Da última vez comprei aquele ali da caixa vermelha e ela não comeu. Será que eles são parecidos?
- Talvez devêssemos procurar mais, então. – Coloquei o cereal de volta no lugar que encontrei e dei uns passos para trás, na intenção de conseguir enxergar todas as opções que existiam.
Estávamos há dois meses já tentando encontrar alguma coisa que a filha de gostasse de comer no café da manhã. Três semanas atrás descobrimos que ela gostava de cereal, mas não sabíamos exatamente qual e quando perguntamos, digamos que ela não soube escrever muito bem, sem contar que os americanos parecem ter algum tipo de relação estranha com essas coisas e produzem quinhentos tipos da mesma comida, só que com cores, tamanhos e formatos diferentes, apesar dos gostos parecidos no caso de cereais.
Encarei de relance e pude ver que ele me olhava vidrado, mas tinha algo diferente. Algo como quem tem um brilho no olhar, um brilho de quem está apaixonado talvez.
- Está tudo bem? – Perguntei já pegando outra caixa e desviei o olhar para ler os ingredientes.
- Sim. – Ele balançou a cabeça e colocou a mão na nuca. – Só... Você está muito bonita.
Andei até ele com um sorriso no rosto e depositei um leve beijo sobre seus lábios.
- Muito obrigada. – Levantei o cereal na altura de meu rosto, pressionando-o em minha bochecha. – Acho que devemos levar esse. É coloridinho e tem formato de bolinhas.
- Pode ser. – pegou a caixa e colocou-a dentro do carrinho e começamos a andar. – Você sabe se tem leite lá em casa?
- Na sua ou na minha? – Perguntei enquanto varria o olhar pelos corredores em que passávamos.
- Na minha.
- Hm, não me lembro. Vai cozinhar alguma coisa que tem leite hoje?
- Talvez. – Ele respondeu dando de ombros.
- Qualquer coisa a gente volta para o mercado. – Olhei para o relógio em meu pulso e fiz uma careta. Já estávamos atrasados. – Acho que devemos pegar a carne e ir embora já.
concordou assentindo a cabeça. Ele resolveu fazer um jantar hoje e convidamos Amélia, Henry, Fred e Madeline. Tenho que admitir que fiquei um pouco chocada quando ele disse que cozinharia, porque eu não fazia ideia de que ele tinha tais habilidades. Também não fazia ideia do que ele iria cozinhar, estava apenas pegando os ingredientes que ele pedia.
Os próximos minutos passaram-se como um piscar de olhos. Quando vi, já tínhamos passado tudo pelo caixa, pagado e estávamos virando a esquina da rua de , dentro de meu carro.
- Semana passada Fred me chamou de durante o almoço, quando você ainda não tinha chego, e todos me olharam estranho. Eu achei que só você soubesse meu nome.
- Eles ficaram chocados? – Perguntei saindo do carro já estacionado na garagem.
- Muito... E foi bem estranho para mim, a última vez que me chamaram pelo menos desde que entrei para o exército foi no meu primeiro ano como tenente.
- Por que te chamam pela primeira letra do sobrenome e não ele inteiro como todo mundo? Achei até que fosse obrigatório. – Eu perguntei muito curiosa, tirando as sacolas do porta malas, e somente me respondeu com um sorriso de lado esperto e não disse nada. – Não acredito que você não vai me contar. Eu quero saber o motivo faz muitos meses já.
Mesmo eu tendo feito um bico para tentar convencê-lo a falar algo, ele pareceu nem ter ficado um pouco tocado e andou em direção à porta que levava da garagem à lavanderia. Revirei os olhos e o segui. Assim que coloquei as compras no balcão da pia, perguntei se ele precisava de ajuda e ele logo começou a soltar um milhão de instruções rapidamente.
- Ok, ok. – Passei a mão sobre seu braço e ri. – Eu sei que você está acostumado com seus soldados superdotados que são treinados, mas eu não sou capaz de reter tanta informação de uma vez. Temos que ir em passos de bebê. O que eu faço primeiro?
- Cozinha as batatas.
Depois disso as coisas começaram a fluir muito bem. Fiquei impressionada com as habilidades de na cozinha, sobretudo pelo quão rápido e eficiente ele era em cortar absolutamente tudo, em qualquer tamanho imaginável.
- Deveríamos colocar uma música, não acha? – Nem esperei ele responder e já havia ido até a sala, ligar o som que ele tinha lá. – Oh, sim.
Comecei a andar de volta até a cozinha no ritmo da música e deu uma risada, movimentando-se de maneira um pouco travada, mas que ainda assim dava para perceber que estava dançando. Não demorou muito tempo para que os dois estivessem fingindo estar numa tour enquanto cortávamos alguns legumes. Eu dançava livremente sobre o piso da cozinha, sem ao menos me importar se estivesse péssimo. Eu estava confortável o suficiente para fazê-lo e é isso que importa.
Deixei cair um dos pedaços da batata que eu havia acabado de cortar e quase caí ao pisar nele sem querer. e eu estávamos em meio a gargalhadas quando ouvimos o som da campainha tocar. Olhei para o relógio de relance e faltavam ainda vinte minutos para dar o horário que combinamos das pessoas chegarem. Entreolhamo-nos e eu fui a primeira a se manifestar.
- Deixa que eu vou. Já volto.
Coloquei o pedaço de batata esmagado no lixo e andei até a porta principal. Quando a abri, dei de cara com Amélia, que segurava uma cerâmica na mão coberta com papel alumínio, e Henry sorridente.
- Não se preocupe que já combinamos que hoje não teremos nenhuma competição sobre bebês. – Amélia olhou ácida para o engenheiro e ele deu uma risada sem graça.
- Olá, . – Henry aproximou-se e me deu um beijo na bochecha, colocando a mão em minha cintura. – Sei que chegamos mais cedo do que o esperado.
- Aconteceu alguma coisa? – Perguntei já dando passagem para eles entrarem. – Estamos na cozinha, ainda não terminamos tudo.
- Fui buscar Amélia e a mãe dela atendeu a porta. – Ele arregalou tanto os olhos que eu não pude deixar de rir. – Digamos que eu não queria ficar mais tempo conversando com ela.
- Ela nem foi tão ruim assim com você. – Amélia respondeu entediada enquanto observava Henry largar seu casaco no sofá. – Trouxemos torta e vinho.
- Vou deixar na geladeira. – Peguei a cerâmica de sua mão e fui andando até a cozinha, com eles me seguindo.
- ! – Henry cumprimentou-o feliz. – Eu diria que estou com saudades, mas nos vimos ontem.
- Henry está andando demais com você. – Falei para Amélia. – Está falando igual você já.
- Não tenho culpa sobre a minha influência nos outros. – Ela respondeu e deu um sorriso malicioso logo em seguida. – E você e ? Caralho, não dá para dizer que você não tem sorte. O cara sabe até cozinhar. Ele também faz algum projeto de caridade que eu não estou sabendo? – A médica perguntou irônica.
Eu abri a boca para responder, porém ela logo colocou o dedo sobre ela, calando-me. Eu tinha certeza de que ela achava que eu ia dar uma resposta positiva para a pergunta, embora não seja o caso.
- realmente cozinha bem. – Sorri e encarei , mas logo notei o que tinha acabado de dizer e arregalei os olhos. Acho que foi uma das primeiras vezes que vi Amélia tão chocada. Ela levantou uma de suas sobrancelhas e não conseguiu dizer nada. – . Eu quis dizer . cozinha bem.
- Meu Deus, . Isso é grave, muito grave. Vocês já estão há quase oito meses juntos, oito fucking meses! Nem preciso falar nada além disso, porque sei que você sabe.
Amélia respondeu severa, saindo da cozinha e foi para algum outro lugar. Pelo que a conheço, tenho quase certeza de que foi explorar o resto da casa.
Eu ficava me perguntando o que tinha acabado de fazer. Estava sentindo-me péssima e deveria, claro. Havia um lado meu que estava confusa, eu realmente tinha um relacionamento incrível e saudável com , por que diabos havia dito aquilo? Havia também, entretanto, um lado muito reprimido no momento que sabia exatamente o porquê de eu ter dito o nome de . Respirei fundo e balancei a cabeça frustrada, olhando Henry e conversarem assiduamente sobre algo e interrompi-os.
- Henry, poderia me ajudar a colocar a mesa antes de Maddie e Fred chegarem?


Capítulo 10

colocou a sua mala sobre o chão, finalmente tirando o peso daquela alça de seus ombros. Olhou ao seu redor para somente se deparar com milhares de pessoas apressadas para lá e para cá. O aeroporto de Los Angeles fazia jus à fama de movimentação. Havia alguma coisa nesses aeroportos comerciais que não o confortava, talvez o fato de todos parecerem tão tensos, como se algo ruim fosse acontecer. O piloto teve que procurar por quase dez minutos até se deparar com a face familiar de Fred. Assim que o encontrou, voltou a carregar a mala e foi andando com passos lentos até ele. Estava exausto, havia voltado de sua missão na noite anterior, colocado seu filho para dormir e mal tinha conseguido pregar os olhos devido à ansiedade.
- Fred! – deu dois tapinhas em suas costas, assustando o rapaz que parecia distraído, mas que não deixou de abrir um enorme sorriso ao ver seu melhor amigo.
- ! Você está horrível. – Fred disse apertando sua mão.
- É bom vê-lo novamente também. – sorriu com seu jeito tranquilo de sempre.
- Você tem três dias para seu corpo curar esses hematomas e cortes, - Afirmou apontando para todos os cantos de seu rosto. - Caso contrário Maddie não vai deixar você aparecer em nenhuma foto do álbum de casamento.
- Sinto que fiquei tanto tempo fora que soa estranho chamar ela de Maddie ao invés de coronel Harley.
- Tantas coisas mudaram desde que você se foi. – Fred falou em desdém, dando de ombros, e fixou seu olhar para um ponto específico.
acompanhou seu olhar e sentiu seus músculos tencionarem imediatamente. Madeline e estavam de costas, fazendo o check-in de seus voos. Ele não podia acreditar no que via. parecia estar ainda mais bonita sob sua visão, como se isso pode ser possível. estava tão deslumbrado que as cenas pareciam se passar em cena lenta. A mulher deu uma risada agradável e olhou Madeline ao seu lado e jurou que sentiu seu estômago embrulhar. Teve que fechar as suas mãos em punhos para se controlar e não ir até ela naquele instante. Apesar de ter passado cada dia dos últimos oito meses se agarrando com força na imagem de , sorrindo para ele na intenção de não se perder no meio da loucura e crueldade que havia sido a experiência, não pode deixar de ficar boquiaberto ao vê-la, como se fosse a primeira vez. Eram efeitos colaterais óbvios sentir o coração pular algumas batidas e a pupila dilatar tanto, nunca estivera tão angelical e tão real como naquele momento.
- Esquece, cara. – Fred falou sem coragem de encará-lo nos olhos. – Ela está com outra pessoa agora.
- O que disse? – perguntou confuso, muito embora tenha ouvido de maneira clara o que seu amigo disse.
- Ela está com .
- Com ? O major ? – parecia não acreditar no que ouvia, na verdade, não queria acreditar.
- Coronel agora. – O noivo não estava nada confortável com a conversa e isso era algo visível. Colocou a língua no céu da boca, os ombros estavam rígidos e batucava os dedos freneticamente sobre os braços cruzados.
não perguntou mais nada, limitou-se a ficar em silêncio e continuar encarando . Agora que estava observando com mais detalhes e de uma maneira um pouco mais fria, pode perceber que ela parecia estar bem, feliz. Tentou pensar que talvez fosse melhor desse jeito, mas mandou esse pensamento para a puta que pariu. Não se obrigaria a consolar-se quando sentia que a melhor pessoa que já tinha conhecido na vida havia escapado de suas mãos e já não poderia fazer mais nada para recuperá-la. Merda, era um grande idiota de ter ido para essa missão, mas que outra escolha tinha? Recusar e ser desligado do exército? Prendeu o olhar por mais dois segundos antes de desviá-lo. Sentia como se tivesse levado um belo soco da barriga. Sendo sincero, achava que o soco teria doido menos, bem menos.
- Eu achei que ela não gostasse dele desse jeito, Fred.
- E não gostava, . – O noivo inclinou a cabeça. Jurou que podia sentir a tristeza exalando do corpo de . – Até você sumir por meses sem ao menos enviar uma carta. Sem contar que a gente conversou que isso poderia acontecer, lembra?
- Sem enviar uma carta? – perguntou desorientado.

- Temos que esperar Amélia. - Madeline falou, pegando seu passaporte em cima do balcão de atendimento.
- Amélia? – Perguntei confusa.
Havíamos acabado de despachar as bagagens e fazer o check-in. Acho que nunca tinha a visto tão alegre como nesses últimos dias, embora eu notasse certas variações radicais de humor. Ela irradiava tanta felicidade no momento que era impossível não se sentir contagiada.
- Sim, Amélia. – A própria médica respondeu e levei um susto. – Vocês têm que ir até o final da fila de novo comigo.
- Você também é madrinha? – Perguntei confusa.
- Claro. – Ela respondeu já começando a andar e enfiei minha passagem e outros documentos de qualquer jeito em minha bolsa. – Por que você achou que eu estava indo provar comida com vocês daquele dia?
- Mas você não foi com a gente nas primeiras provas do vestido de noiva. – Ergui uma das sobrancelhas. – E Henry, que não é padrinho, também foi nesse dia do restaurante.
- O irmão do Fred não conseguiu ir, então pedimos para que Henry fosse no lugar dele. – Dessa vez Madeline que respondeu.
Amélia começou a falar sobre alguma coisa e começamos a andar, mas quando desviei o olhar para procurar por Fred, senti como se absolutamente nada ao meu redor fosse importante e parei de escutá-la. estava lá, ao seu lado, conversando de maneira tranquila. Tinha seus braços cruzados, o que ressaltavam bastante os músculos, e parecia um pouco inquieto. Por alguns segundos achei que não pudesse sentir minhas pernas e tive que me apoiar em um dos pilares do local. Eu queria muito poder sair correndo dali, queria conseguir desviar o olhar, mas nada me fez redirecioná-lo, como se alguém segurasse minha cabeça e eu não fosse capaz de me soltar. Uma vontade estranha de vomitar tomou conta de minha garganta e eu instantaneamente empalideci.
- Está tudo bem? – Madeline perguntou preocupada quando se virou para trás para ver porquê eu não estava andando junto a elas. – Parece que viu um fantasma.
- Está tudo ótimo. – Amélia respondeu com certo sarcasmo na voz e eu não estava preparada para o que estava por vir. – Ela só reviu o amor de sua vida e agora seu corpo está a entregando, não importa o quanto ela negue.
- Amor de sua vida? – Madeline, que antes inclinava um pouco seu corpo para tentar ver minha face, agora olhava para todos os lados possíveis, procurando por . Assim que seus olhos pousaram sobre , ela não pode evitar arregalar os olhos em choque. – O AMOR DA SUA VIDA É O ?
Agradeci aos céus por aquele lugar estar cheio de pessoas e, consequentemente, muita conversa, caso contrário até a população do Japão teria ouvido o grito de Madeline. Arregalei os olhos e fiz um gesto com a mão para que ela fosse mais discreta.
- Nós vamos falar sobre isso e vamos falar agora! – Apesar a coronel ter falado sussurrando, Amélia e eu pudemos sentir certa irritação em sua voz que nos fez arrepiar. – Amélia, vai lá agora fazer esse check-in. Eu e a vamos ter uma conversa séria.
- Mas... – Antes que a médica pudesse retrucar, Madeline cortou-a, apontando para a fila.
- Agora. Isso é uma ordem, soldado.
- Você sabe que não estamos no... – Olhei repreensiva para Amélia, que logo se calou e andou até Fred e .
- Do que ela está falando? – Engoli seco com sua pergunta e respirei fundo.
- Não é nada demais.
- Nada demais, ? Amélia acabou de me dizer que é o amor da sua vida e você está com .
- E talvez seja o amor da minha vida, mas e agora? – Perguntei irritada. Do jeito que ela estava agindo nem parecia a mulher doce que eu conhecia. – Nem sempre as coisas dão certo entre as pessoas, por mais que elas se encaixem bem. Não deveríamos focar no fato de eu estar feliz e em um relacionamento saudável com independentemente do que a Amélia pensa sobre os meus sentimentos em relação ao ?
Madeline estreitou os olhos, assentindo com a cabeça de modo bem devagar, mas ainda assim me analisando.
- Alguma coisa aconteceu. – Ela concluiu. – O que foi?
- Amélia tem essa teoria de que só porque eu troquei o nome de pelo de uma vez, eu sou apaixonada por .
- E você é? – Olhei incrédula para Madeline, que ergueu uma das sobrancelhas.
- Isso não quer dizer nada.
- Foi espontâneo? – Ela perguntou e olhei para na hora, que conversava com Amélia na fila.
- Sim. Não é justamente isso que torna o ocorrido insignificante? Eu não quis dizer isso, foi sem querer.
- Meu Deus. A não ser que seu coração tenha sido espontâneo da maneira mais pura. – Madeline encarava-me abalada. – Ela está certa. Amélia está certa.
- Desculpe, o que disse? – Desviei o olhar da mulher a minha frente e pude sentir o enjoo em meu estomago crescer.
- Não seja boba. Eu sou treinada, , sei ler linguagem corporal.
- Está tudo bem? – Fred chegou de surpresa e corrigi minha postura, dando um sorriso fraco.
- Está sim, querido. – Maddie respondeu dando um beijo em sua bochecha. – Estamos só conversando sobre as coisas que temos que fazer nesses três próximos dias antes do casamento.
- Entendi. – Fred lançou um olhar tão calculista e gélido, que um cruel calafrio tomou conta de meu corpo e passei a mão em meu braço. – Achei que ela estivesse passando mal, parecia tão pálida.
- Ela esqueceu algumas roupas em casa. – Sua noiva respondeu rápida e eu voltei a sorrir sem graça.
- Sabe como é, não? Fazer a mala e esquecer algo pode ser frustrante. – Eu disse tentando acompanhar o disfarce de Madeline.
- De fato é. – Pude ouvir a voz de bem ao meu lado e olhei para o chão em um reflexo.
- ! – Madeline foi correndo em sua direção para abraçá-lo. – Que saudades! Eu nunca te vi tão destruído.
Assim que ela pronunciou a última palavra, levantei a cabeça para fitá-lo. Ele parecia ter vários hematomas no rosto e alguns pequenos cortes. Não sei como não havia notado antes. Aquilo causou-me certa náusea e automaticamente coloquei a mão sobre a barriga. Vê-lo daquele jeito, agora que eu havia parado para reparar, gerou uma angustia que só fez meu consciente perguntar como ele tinha ganhado todos esses machucados. Seu rosto estava realmente péssimo, como Madeline disse. E seus olhos... Seus olhos não tinham mais aquele brilho intenso de antes, muito pelo contrário, pareciam até opacos, sem vida.
- Oi. – Ele cumprimentou-me sem jeito.
- Oi. – Respondi enfim encarando-o nos olhos e minha respiração ficou falha. Ele parecia... magoado? – Soube que foi promovido a major.
- Sim. – respondeu com um sorriso singelo e Madeline fitou Fred com certa preocupação ao presenciar a cena.
- Meus parabéns. – Voltei a olhar para frente, onde Amélia estava agora.
- Muito obrigado. – deu uma leve tossida e pude perceber que o resto das pessoas pareciam muito entretidas em ouvir aquela conversa monossilábica que estávamos tendo. – Soube que conheceu o presidente.
- Sim, no projeto do F-22.
- Meus parabéns, tenho certeza que foi um projeto muito bom.
- Obrigada.
- Que conversa deprimente. – Amélia revirou os olhos. – Por favor, não façam dessa viagem algo estranho. Já basta a Madeline surtando.
- Eu não estou...
- Você entrou na minha casa para fazer minhas malas e garantir que eu não ia levar moletons. – A médica interrompeu-a com uma expressão de impaciência. – Você está surtando sim.

- Eu deveria ter comprado passagens de primeira classe. – Amélia remexia-se na cadeira a cada dois segundos, sentindo-se muito desconfortável. Às vezes, numa dessas reviradas, ela esbarrava em mim.
- Acabamos de nos sentar, não acredito que você já está inquieta. – Respondi de forma calma enquanto folheava uma das revistas.
A verdade é que Amélia nunca ficava a vontade dentro do avião que fosse. Podia ser um avião cargueiro, um caça ou um comercial e ela sentiria uma sensação ruim, porém muito compreensível considerando sua história.
O voo estava lotado. Haviam pessoas colocando a bagagem no compartimento e haviam pessoas que ainda nem tinham entrado no avião. Madeline e Fred resolveram comprar assentos na primeira classe, então estavam longe de nós e Amélia e eu resolvemos comprar poltronas uma do lado da outra, sendo mais específica, estávamos nas fileiras do meio, o mais longe possível de quaisquer janelas, com eu no corredor e a médica ao meu lado e outras duas poltronas ainda não ocupadas ao lado dela. Estava começando a achar que seria difícil lidar com sua agitação durante algumas horas, no entanto lembrei que ela tomaria algum remédio e segundos depois estaria apagada, totalmente disfuncional até a aterrisagem.
- Boa noite, senhorita. – Uma aeromoça começou a conversar com Amélia e não pude deixar de prestar atenção. – Gostaria de saber se você poderia mudar de lugar. Tem uma mulher com dois filhos sentada ao seu lado, mas um deles está numa poltrona muito longe.
Amélia olhou-me sugestiva e depois dirigiu a vista à mulher uniformizada que se inclinava um pouco sobre nossas cadeiras.
- De qual poltrona estamos falando?
- Uma perto do banheiro ali na frente. – Então a aeromoça apontou para algum lugar que nem eu, nem Amélia nos demos ao trabalho de olhar.
É uma verdade universal que sentar perto do banheiro num voo mais demorado que uma hora nunca é algo bom. Só de pensar no cheiro, ela fez uma careta. Não demorou muito, todavia, para que essa careta se transformasse numa expressão perversa, porém com traços de piedade, olhando diretamente em meus olhos.
- Não. – Respondi firme e fechei a revista. – Eu não vou me sentar lá.
- Você vai fazer uma mãe ficar separada dos filhos? – A mulher sentada ao meu lado falou, jogando sujo, e a aeromoça ia interromper nossa conversa, mas me virei para a médica, respondendo-a.
- Você que deve ir, Amélia. Eu que estou no corredor.
- Não se preocupem. – Agora foi a aeromoça que falou mais rápido. – Eu posso pedir para que outra pessoa mude de lugar.
- Não precisa. – Eu disse já destravando a fivela de meu cinto e Amélia deu um sorriso vitorioso. – Eu vou.
Respirei fundo e peguei minha bolsa, que estava debaixo do banco. Logo que comecei a andar atrás da mulher que me guiava, virei para sussurrar um “Você me deve uma” para Amélia, que somente riu, mudou-se de poltrona e colocou seus fones de ouvido, claramente não se importando com nada. Virei-me para frente e a aeromoça já estava parada lá na frente, ao lado da cadeira na qual eu me sentaria.
- Obrigada. – Agradeci e sentei-me.
- Eu que agradeço. – Então ela voltou a andar e eu peguei outra revista qualquer para distrair a cabeça.
Eu estava em uma poltrona como outra qualquer no corredor, dessa vez com somente uma cadeira ao meu lado, a da janela, mas havia um pequeno detalhe. O cara que estava do outro lado do corredor era um homem mais velho que não parava de me encarar, com a visão tão vidrada em mim que me senti um pouco invadida. Arregalei os olhos e coloquei a revista aberta o mais perto que pude da minha cara. Era muito óbvio que eu não conseguiria ler nada daquela distância, mas pelo menos eu não ficaria vendo-o me observar.
- Com licença. Estou sentado do seu lado.
Abaixei meus braços para enxergar quem estava falando comigo e, quando me deparei com de pé ao meu lado, levei um susto e aparentemente ele também. Só podia ser brincadeira. Um A330 em toda sua glória estrutural, com capacidade para 335 passageiros, bimotor turbofan, com uma autonomia incrível e a companhia aérea decide fazer isso comigo.
- Quanta coincidência, não? – Ele perguntou enquanto eu me levantava para que ele sentasse ao meu lado.
É claro que a configuração tinha que ser 2-4-2. Duas poltronas nas fileiras laterais e quatro na fileira do meio, senão essa não seria a minha sorte.
- Quase inacreditável. – Respondi.
- Bom, tenho certeza que pelo menos a viagem será agradável agora. – Ele falou simpático e colocou o cinto.
- Eu espero que sim. – Olhei para o homem sentado do outro lado do corredor e cocei atrás da orelha quando percebi que ele ainda me espevitava.
- E então? O que perdi nesses últimos meses? – perguntou animado e não pude deixar de sorrir.
- Não sei nem por onde começar...
- O que você acha sobre começarmos pelo quartel? Algo mudou?
- Nada. – Olhei para meu colo, sabendo que aquilo não era verdade. – Bom, na verdade algumas coisas mudaram.
- Por favor, diga-me que a comida do refeitório melhorou. – arregalou os olhos e virou seu corpo em minha direção com tanta esperança que fiquei até chateada de ter que negar.
- Receio ter que dizer não.
- Não acredito! – Agora um sorriso doce tomou conta de seus lábios. – E as pessoas? Como elas estão?
- Creio que estão bem. – Coloquei uma mecha de cabelo atrás da orelha e corei quando ele acompanhou o movimento com um olhar atencioso. – Madeline e Fred estão super animados com o casamento. Faz uns meses já que isso virou o assunto do almoço todo dia.
- Aposto que ele fez sugestões estranhas, como querer fazer a cerimônia num estádio de futebol. – riu baixo e eu fiz o mesmo.
- Várias vezes... Amélia e... Amélia e Henry quase não aguentavam mais.
- Eles dormiram juntos! – estava boquiaberto e eu arregalei os olhos com a frase solta do nada, voltando novamente meu olhar para a revista aberta em meu colo.
- Como você sabe?
- Você ficou claramente incomodada quando falou o nome deles. Não conseguiu me olhar nos olhos.
- Ok, eles dormiram juntos.
- Não posso dizer que estou surpreso. Ficaria até feliz se desse certo.
- Isso foi o que eu pensei na hora, mas você não acha que uma amizade colorida seria melhor?
- Hm, talvez você tenha razão. – colocou a mão sobre o queixo e parou para pensar. – Eu gosto quando eles começaram a dar respostas afiadas um para o outro. Chega a ser cômico. Não sei se isso continuaria a acontecer se eles fossem um casal.
- Exato.
- E ? – Um pouco antes dele fazer esta pergunta, percebi que parecia hesitante. Havia um certo ar de tristeza em sua postura e aquilo me fez respirar fundo.
- está bem. Finalmente se tornou coronel e agora lidera o próprio batalhão.
Sorri insossa e parecia sério, olhando em meus olhos. Tenho a leve impressão de que ele estudava minhas expressões e não parecia muito satisfeito. Ele levantou sua mão devagar, parecia que iria tocar meu rosto, mas parou no meio do caminho e a postura elegante e rígida voltou a tomar conta de seu corpo, abdicando do efêmero momento de vulnerabilidade. Presa naquele instante, só desejei que ele não tivesse mudado de ideia.
- O que aconteceu com seu rosto? – Dessa vez, num segundo de coragem, fui eu quem tocou sua face. Passei o dedo delicadamente sobre uma parte roxa em seu maxilar e, de imediato, ele fechou os olhos.
- Acho que você pode imaginar o que aconteceu.
- E o que aconteceu lá? – Perguntei com receio da resposta que ele me daria.
- Bom, depois que perdemos um da equipe, as coisas começaram a desandar bastante, mas porque todos estavam com medo. – retirou de maneira gentil minha mão, que ainda estava parada sobre o hematoma, e guiou-a até sua nuca, no começo de sua espinha. Pude sentir alguma coisa estranha. – Sente isso? É o raspão da bala que matou um de nós. Por questão de centímetros não fui eu quem morreu. – Ergui as sobrancelhas e ao perceber que estávamos muito próximos um do outro, podendo até sentir a respiração de sobre minha pele, afastei-me um pouco. – Nunca pensei que levantaria da cama pensando que não gostaria de ter acordado. Essa é uma boa descrição do que aconteceu lá sem revelar as partes confidenciais. – Ele sorriu fraco e inclinou-se até encostar na cadeira de novo.
As próximas duas horas de viagem se resumiram a mim lendo livro em silêncio, muitas pessoas indo ao banheiro (criei até a teoria de que bexigas diminuíam de tamanho durante um voo) e o resto começando a pegar no sono. Estava no meio de um capítulo quando as luzes do corredor se apagaram e olhei indignada para meu relógio. Eram dez horas da noite na Califórnia e, portanto, o horário de muita gente ir dormir. Levantei-me um pouco da poltrona e virei para trás, procurando por Amélia. Ela parecia estar num sono tão profundo que, se o avião começasse a pegar fogo, tenho certeza que não acordaria.
Eu queria ligar a luz da minha cadeira, mas não queria acordar , que inclusive dormia como uma estátua de braços cruzados e as vezes sussurrava algo ininteligível. Suspirei e comecei a encarar a porta do banheiro, que era o único lugar com luz por ali. Eu estava absolutamente sem sono nenhum e o fato de não ter nada para fazer me irritava.
- Se você continuar batucando os dedos no braço da poltrona, acho que serei obrigado a procurar outro lugar para sentar. – disse ainda com os olhos fechados.
- Desculpa. – Sorri sem graça.
- Está sem sono? – Ele perguntou ao abrir os olhos e eu assenti com a cabeça. – Também estou. Faz duas horas já que estou tentando dormir, mas o meu fuso horário não me deixa muita escolha.
- Talvez devêssemos assistir um filme. – Sugeri e ele pareceu concordar.
Escolhemos literalmente o primeiro que apareceu na tela dele e ofereceu um dos lados do fone. Cheguei mais perto dele para conseguir ver melhor e senti meu corpo relaxar. Não mais que dez minutos depois eu estava pegando no sono e tive a impressão que encostei a cabeça em seu ombro.


Capítulo 11

Acordei com um barulho estranho que parecia se aproximar, parar e voltar a se aproximar, numa ação repetitiva. Abri os olhos e coloquei a mão sobre o pescoço, a área estava meio dolorida. Quando finalmente levantei a cabeça, arregalei os olhos ao perceber que estava deitada no ombro de . Ele parecia ter acordado com o meu movimento, mas bocejava meio perdido. Olhei para o meu outro lado, ainda meio sonolenta também, e lá estava o desconhecido me encarando de volta. Que agradável. Remexi-me um pouco na cadeira e fitei o relógio, só mais duas das doze horas de voo.
Olhei para cima para checar se o aviso de cinto estava aceso, porém como não estava, levantei-me e fui até o banheiro, que estava na minha diagonal, a uns três passos para ser mais exata. Assim que tranquei a porta, deparei-me com a imagem de uma nem tão ruim assim no pequeno espelho que havia naquele cubículo. As olheiras davam o ar da graça por uma noite dormida sentada... E apoiada no ombro de ao que tudo indica. Passei uma água no rosto e a cor nas bochechas já voltaram a aparecer. Por mais incrível que pareça, meu cabelo estava intacto. Do jeito que tinha entrado naquele avião, ele iria sair. Convenhamos que não havia muito espaço na poltrona para ele ficar bagunçado. Respirei fundo e lavei as mãos, dando uma última olhada em minha face antes de abrir a porta. Assim que o fiz, pude enxergar mexendo em uma bandeja de comida. Fui até lá e encontrei uma também sobre minha mesinha, o que era estranho, já que o protocolo era a aeromoça não servir nada para as cadeiras vazias.
- Pedi croissant e suco de laranja, porque não sabia se você bebia café. – disse com um sorriso encantador no rosto e retribui-o com outro.
- Muito obrigada. – Peguei o plástico que continha os talheres e algo me chamou atenção, então olhei para a bandeja de . Havia duas gelatinas vermelhas na minha e nenhuma na dele. Eu sabia que ele gostava tanto quanto eu e aquilo me lembrou dos dias no refeitório do quartel quando ele fazia isso, o que me fez alargar o sorriso em meu rosto. – Só mais duas horas para chegarmos na terra das baguetes e da moda.
- Nunca achei que estaria tão ansioso para ser sincero. Você acha que vamos conseguir visitar alguns pontos turísticos?
- Se Fred e Madeline não deixarem, podemos dar uma escapadinha. – Falei divertida e ele riu. – Eu quero muito ver todas as coisas clichês. A Torre Eiffel, a Catedral de Notre-Dame, o Arco do Triúnfo...
- O Louvre. – Ele acrescentou colocando uma colher de iogurte na boca.
- E as coisas não clichês também. – Falei me virando em sua direção, já animada com a ideia de visitar todos esses lugares. sorriu verdadeiro com meu entusiasmo. – Meu Deus, as coisas que estamos prestes a ver!
- Se a nossa viagem à Itália depois daqui também tiver essa animação toda, tenho certeza que será incrível.
- Tinha quase esquecido que íamos para a Itália depois daqui. – Coloquei uma mecha de cabelo atrás da orelha e dei uma risada ao lembrar daquela noite maluca. - Nunca fiquei tão feliz com uma ideia tão boba de um Henry bêbado.
- Tenho que admitir que foi uma noite muito boa.
- E eu tenho que concordar.
- Chegou um ponto específico da noite em que eu achei que Madeline e Fred terem ficado com cinco pontos negativos era até muita coisa.
- Não é? – Abri a boca impressionada. – Teve um outro momento da noite, na hora de trocar as fraldas, que jurei que íamos perder. – concordou com a cabeça, sorrindo logo em seguida. – Demos muita sorte que Henry não estava sóbrio.
- Eu jurava que ele não conseguiria trocar uma fralda considerando que ele não sabia nem o que um bebê comia.
- Fiquei surpresa também. – Rimos ao relembrar do momento.
Voltei a encarar a bandeja, para terminar de tomar o café da manhã, porém alguns minutos de silêncio depois algo chamou minha atenção. estava abrindo o plástico que continha o guardanapo quando sua mão começou a tremer compulsivamente. Eu encarei-a um pouco assustada e parei de imediato o que fazia, com meu copo no meio do caminho entre a mesinha e minha boca. , com sua outra mão, segurou seu pulso na tentativa de controlar o movimento caótico que só parecia piorar. Não pude deixar de gaguejar alguma coisa. A intenção era perguntar se ele precisava de ajuda, mas me encontrei tão aturdida que as palavras pareciam simplesmente não se conectarem em meu cérebro.
- Não se preocupe. É uma sequela normal. – Ele disse, ainda encarando sua mão e eu respirei fundo, sem perceber que antes segurava a respiração. – Meu corpo acostumou a produzir adrenalina.
- Posso? – Perguntei apontando para o lugar que tremia e apenas assentiu. Segurei com delicadeza sua mão, quase não conseguindo mantê-la direito entre as minhas, e comecei a pressionar dois pontos específicos da palma. – Dizem que são pontos de relaxamento. Não sei se é verdade.
Em poucos segundos o tremor diminuiu, embora não tenha ido por completo. sorriu carinhoso e me olhou com um misto de surpresa e felicidade.
- Alguma dica para amenizar pesadelos também? – Perguntou sugestivo e eu sorri.
- Como vocês são fofos. – Amélia apareceu de súbito, apoiando seu corpo em minha poltrona e fazendo-nos encará-la assustados. – A criança inescrupulosa do meu lado roubou minha gelatina.
- Que jeito estranho de descrever uma criança. – ergueu uma das sobrancelhas e a médica só revirou os olhos.
- Eu vi que você tinha duas, - Ela falou já pegando um dos meus potinhos. – Então vim roubá-la. Não esqueçam de me acordar quando formos sair do avião, porque eu vou me dopar de remédios para dormir depois dessa refeição.
- Tão saudável. – Falei sarcástica e recebi o dedo da mulher que já voltava para seu lugar.

O táxi parou bem em frente a um hotel muito bonito. A faixada estava coberta com rosas vermelhas, um tapete da mesma cor e três homens de terno pareciam nos esperar, dois para abrir a porta e um para colocar a bagagem naquele negócio dourado com rodinhas que eu nem sei o nome. Eu tinha impressão que as portas de qualquer um dos quartos custariam mais caro do que minha casa toda. Tenho quase certeza que os detalhes dourados na maçaneta eram realmente feitos de ouro.
- Agora eu entendi porque ainda tenho dois rins. – Amélia colocou as mãos sobre a cintura e parou ao meu lado, enquanto eu olhava para cima, contando quantos andares tinham aquele lugar. – Um deles eu mantenho e o outro eu vendo para pagar essa estadia.
- Você acha que da varanda dá para enxergar a Torre Eiffel? – Perguntei curiosa.
- Da varanda? – Fred falou passando por nós com nossas bagagens, entregando-as para um dos funcionários. – Dá para ver a Torre de perto se você for andando até o final da rua.
- Eu já estou super pronta para o meu banho de espuma na banheira com essa vista. – Amélia ia dar seu primeiro passo em direção à porta da entrada principal quando Madeline segurou-a.
- E a banheira vai esperar até o fim do dia. – Olhei Maddie de modo receoso e ela parecia inabalável. Suspirei ao perceber que o máximo que chegaríamos perto de algo do hotel agora seria do balcão de recepção para fazer o check-in e somente isso. O voo tinha sido tão longo, tudo o que eu mais queria no momento era uma ducha quente e um roupão macio. – Em menos de trinta minutos temos a prova final dos vestidos e eles dois têm que pegar os anéis na joalheria.
Respirei fundo e senti meu celular vibrar em minha bolsa. Logo que o peguei pude ver a letra “” na tela.
- , oi! – Atendi e olhei para Amélia, que parecia bem emburrada.
- Oi! Como estão as coisas por aí? Chegaram bem? parecia agitado do outro lado da linha.
- Está tudo bem, acabamos de chegar no hotel. Desculpa não ter ligado antes, estávamos numa correria.
- Ainda estamos. – A médica sussurrou e começou a me puxar pelo braço quando todos começaram a entrar.
- Sem problemas. Como foi o voo?
Mordi o canto do lábio inferior e olhei para de relance, que retribuiu o olhar na mesma hora e pareceu interessado na conversa que eu estava tendo.
- Posso te ligar mais tarde, amor? Preciso fazer umas coisas agora.
- Claro. Me avise quando pudermos conversar.
- Pode deixar.
- As crianças te mandaram um beijo.
- Manda um beijo para eles. – Desliguei o celular e coloquei-o de volta na bolsa.
Só me dei conta que Amélia tinha parado de me puxar pelo braço naquele instante. Desviei o olhar da bolsa para o chão de mármore aos meus pés. Ele estava tão limpo que eu conseguia ver meu próprio reflexo. Levantei a cabeça o mais rápido que consegui e não pude estar mais boquiaberta do que agora. Se qualquer dicionário definisse riqueza como algo que não fosse aquela recepção de hotel, ele estaria completamente errado. Aquilo era muito melhor do que eu poderia imaginar. Pilares de mármore tão altos que davam a impressão de serem infinitos, tapetes tecidos com o fio da melhor seda, poltronas que pareciam terem vindo direto do Palácio de Versalhes e tantos outros detalhes cativantes que poderíamos passar dias descrevendo.
- Vocês também estão com a sensação de que vamos dormir em um palácio hoje? – perguntou baixo, tão encantado com tudo que não sabia exatamente para onde olhar.
- O que será que eles servem de café da manhã aqui? Frutas banhadas a ouro? Geleia de pedras preciosas?
- Eu não duvidaria, Amélia. – Respondi perdida nos detalhes tão delicados do teto. Era como se Rodan ou Donatello tivessem esculpido os próprios ramos de folhas que ornavam a sanca.
- O que vocês três estão fazendo aí? – Madeline perguntou já apoiada sobre o balcão da recepção.
Balancei minha cabeça, segurando pela mão uma Amélia bem distraída olhando para o teto e apressei o passo para chegar mais perto dela. Antes de tudo peguei meu passaporte e coloquei em cima do mármore. O que naquele lugar não era feito dessa pedra?
- O que faremos hoje? – Perguntei sorridente e, talvez pela primeira vez no dia, Madeline sorriu animada.
- Primeiro vamos fazer a prova dos vestidos para os ajustes finais. Depois vamos almoçar. – A mulher em minha frente abriu uma pequena agenda e começou a analisá-la. Enfim Amélia pareceu se concentrar no que fazíamos, revirou os olhos e encostou sua cabeça em meu ombro, claramente sem disposição, porém também sem escolha. – As duas da tarde temos que comprar as passagens de trem para Marseille.
- Por que não pousamos direto no aeroporto de Marseille-Provence? – Perguntei confusa e eu pude sentir o olhar mortal de Madeline sobre mim. – Porque tem coisas que precisam ser feitas em Paris, certo.
Calei-me e encarei Amélia de relance, que não sabia se ria de minha cara ou se não o fazia justamente para não irritar mais Maddie. Preciso admitir que embora Madeline seja um raio de sol puro em forma humana, na última semana eu sentia que ela estava prestes a surtar e comecei a cogitar nunca querer casar na vida. Uma ida ao cartório soava mais do que suficiente ao presenciar a versão séria e assustadora da coronel.
- Mais tarde temos o encontro com o florista e a organizadora do casamento.
- Não é você que está organizando? – Amélia arregalou os olhos ao ouvir o que a noiva havia acabado de dizer. – E eu achei que esse fosse o máximo de estresse que poderia ser gerado. – Tenho quase certeza de que a íris de Madeline nunca estivera tão fina e felina, então antes que ela partisse para cima da médica, coloquei-me em sua frente, engolindo seco.
- Então quer dizer que nossa despedida de solteira será em Marseille? – Perguntei sem graça, tentando mudar de assunto e soltei todo o ar de meu pulmão quando percebi que Madeline imediatamente pareceu se acalmar e me respondeu tranquila.
- Sim. O trem sai amanhã depois do almoço.
Quando a coronel se virou em direção ao balcão novamente, repreendi Amélia com o olhar e ela pareceu entender o recado, revirando os olhos.
- Quarto duzentos e quatro, senhorita. – A recepcionista devolveu meu passaporte junto a um cartão magnético branco e sorriu, mas logo voltou a ficar séria, virando-se para Amélia. – Desculpe-me, senhorita Bennet, mas não temos nenhuma reserva em seu nome.
- O QUÊ? – Madeline tencionou os ombros e eu de imediato encarei , fazendo um gesto com a cabeça para que ele tirasse Maddie daqui. Ele estreitou os olhos, sem entender e eu arregalei os olhos, apontando discretamente para a mulher nervosa ao meu lado. Demorou um pouco, mas cutucou Fred e os dois chegaram mais perto para puxar conversa com a noiva. Pelo menos ela estaria distraída, apesar de perigosamente perto de Amélia.
- Por que diabos não tem uma reserva no seu nome? – Sussurrei para a médica, que me olhava com um pouco de desespero.
- Não sei! – Seu sussurro saiu aflito. – Eu juro que eu fiz essa caralha dessa reserva.
- Você poderia checar de novo, por favor? – Pedi simpática para a recepcionista, que voltou a procurar no sistema, mas negou com a cabeça depois de repassar todas os nomes possíveis e não encontrar nada. – Vocês têm quartos disponíveis?
- Somente a suíte presidencial, senhorita. – A mulher uniformizada respondeu prontamente.
- E quanto seria a diária? – Perguntei já preparada para a facada que seria o preço.
- Seis mil euros. – Ok, talvez não tão preparada assim para a facada.
- Eu me recuso a gastar todo esse dinheiro em uma noite de hotel. – Amélia sussurrou brava para mim. – Será que Madeline não vai deixar eu dormir em outro hotel? – Ela perguntou desviando seu olhar do meu e ergui uma das sobrancelhas, entendendo tudo agora. Amélia tinha esquecido de fazer a reserva. Pela expressão em seu rosto ela pareceu perceber que eu sabia o que ela tinha feito.
- Nós tivemos oito meses para fazer essa reserva! Até o conseguiu fazer essa reserva, Amélia! – Falei nervosa e sorri sem graça para a recepcionista, que pigarreou, esperando alguma decisão nossa.
- O que está acontecendo? – parou ao meu lado, parecia preocupado.
- Amélia esqueceu de fazer a reserva. – Suspirei, colocando uma mão sobre minhas têmporas. Madeline ia nos matar. Eu já podia sentir o arrepio na nuca só de pensar nisso. – E não tem mais quartos sem ser a suíte presidencial.
- Eu poderia ficar com você! – A médica de súbito sugeriu a ideia. – A cama é de casal.
Eu poderia matar Amélia naquele instante. A última coisa que precisava no momento era um dia estressante e corrido e uma Amélia demorando duas horas em seu banho espumado de banheira no fim do dia, quando era para eu estar no lugar dela. Respirei, procurando tirar uma compostura de algum lugar, e sorri. Não posso deixar de frisar que e ela ficaram um pouco assustados com o sorriso e não se moveram. Virei-me em direção à recepcionista, que agora já não parecia ter tanta paciência assim. Não posso a culpar, estávamos tendo uma conversa desesperada bem na sua frente, impedindo que outros clientes pudessem ser atendidos.
- Ela ficará comigo essa noite. Você poderia, por favor, adicionar seu nome ao meu quarto? – Pedi com calma.
- O que preferir, senhorita. – A mulher atrás do balcão sorriu simpática e entregou outro cartão branco para mim. Agradeci e estendi o objeto para Amélia, começando a andar em encontro à Madeline. Isso tinha sido no mínimo irresponsável, convenhamos, seria mais fácil eu jogar ela para Maddie e só assistir a discussão. Eu sei que ela era alguém muito querida por mim, mas isso não faria com que eu passasse a mão em sua cabeça e ignorasse seus atos inconsequentes.
- Está tudo resolvido. – Sorri dócil para Fred e começamos a andar até a saída.
- Ótimo. Nos encontramos no almoço, então? – Ele perguntou.
- Claro. – Madeline respondeu, dando um último beijo nele antes que entrássemos no táxi que já nos aguardava.
Eu achei que o caminho seria completamente desconfortável e cheio do silêncio, contudo me surpreendi por ter sido o oposto disso.
- Aonde estamos indo exatamente? – Amélia perguntou curiosa, observando a paisagem pela janela.
- Avenida Montaigne. – Maddie disse distraída e eu arregalei os olhos.
- E o que seria isso? – A médica parecia confusa.
- Maison Valentino. – Respondi em choque. – Seu vestido de casamento é um vestido de marca?
- O de vocês também será. – A noiva respondeu divertida no banco da frente.
- Talvez eu tenha acabado de perder o único rim que me restou. – Amélia agora também estava impressionada.
- Não se preocupem, digamos que Valentino Garavani é um amigo de família, tenho certeza que será um ótimo presente de casamento.
- Meu Deus, é assim que é se sentir famosa? – Perguntei colocando a mão sobre o peito e Madeline riu. – Como nunca nos contou isso antes?
- Vai que vocês só fizessem amizade comigo por interesse. – Ela lançou um olhar sugestivo especificamente para Amélia no banco de trás, que deu de ombros.
- Não vou mentir, eu ficaria tentada a ser sua amiga.
A partir daí o dia pareceu passar num piscar de olhos. A prova de vestidos foi no mínimo uma experiência mágica, cheia de risadas inclusive. Amélia perguntou para uma das costureiras se sua bunda ficava muito pequena no vestido, começando a fazer diversas posições estranhas em cima do pequeno pedestal. Corei imediatamente, mas a mulher se limitou a rir e falar algo em francês que eu não entendi.
No almoço quase nos atrasamos para os compromissos da tarde. começou a narrar o seu dia junto ao Fred e não pudemos não ficar presa na história, tudo que parecia ser possível de acontecer, aconteceu e eu não fazia ideia de como eles tinham conseguido pegar as alianças no final. O tempo pareceu passar tão rápido e as taças de Spritz foram preenchidas tantas vezes que tivemos que correr demais se quiséssemos chegar à floricultura antes que fechasse.
A primeira coisa que fiz foi tirar os saltos do meu pé dolorido assim que pisamos no local. Eu culpava Madeline por não ter nos deixado colocar roupas decentes e ela me culpava por ter saído da Califórnia tão arrumada e de salto ainda por cima. Acho que passamos no mínimo umas três horas no estabelecimento. Chegou um ponto em que eu e Amélia somente sentamos em algum canto, apoiada uma na outra, sem energia o suficiente para fazer qualquer coisa e esperando Madeline mudar de ideia pela milésima vez em relação às flores do arranjo de mesa. Quando ela finalmente pareceu se decidir, eu estava prestes a levantar e o florista sugeriu outra flor para o buquê, o que me fez sentar derrotada de novo e Amélia revirou os olhos, brincando com uma rosa em sua mão. Eu não fazia ideia de como Maddie estava aguentando ficar de pé nesse ponto.

- Posso só ficar aqui até o dia do casamento? – Amélia perguntou de maneira abafada, por estar com a cara enterrada no edredom macio e branco da cama, totalmente imóvel.
O dia havia sido exaustivo. Sentei no sofá, jogando meu corpo de qualquer jeito e gemendo ao tirar os sapatos. Nem eu, nem Amélia tínhamos a intenção de nos mover nos próximos minutos. Respirei fundo e coloquei a mão sobre a testa, fechando os olhos.
- Você tem alguma ideia do que fazer na festa de despedida de solteiro amanhã? – Perguntei em voz baixa e a médica restringiu-se a gruir. – Pensei no mais tradicional possível. Uma coroa com um véuzinho, um barzinho fofo e muita bebida.
- Sabe... – Ela por fim virou a cabeça e pude ouvir sua voz com clareza. – Existe uma tradição na Escócia em que uma mulher noiva comemorando sua despedida de solteiro deve entrar nos bares com um pote. Toda vez que alguém colocar uma moeda, ela deve dar um selinho na pessoa em retribuição.
- Nós não estamos na Escócia.
- Eu sei, mas não seria ruim tentar.
- Essa é a sua ideia? – Perguntei abrindo um dos olhos e vendo que ela não estava prestes a mexer um músculo sequer.
- Você tem alguma ideia melhor? – Ela rebateu ácida e eu não me dei ao trabalho de responder.
- Vou até uma farmácia já comprar os remédios para a ressaca. – Falei sentando e já colocando os saltos novamente. Não estava com vontade nenhuma de abrir a mala agora e ter que revirá-la para encontrar algum outro calçado mais confortável. – Tenho certeza que amanhã não teremos tempo.
- Vou tomar banho. – Ela disse sem se mexer. Eu não ficaria nada surpresa se eu voltasse e Amélia ainda estivesse na mesma posição.
Peguei minha bolsa e andei até a porta. Assim que a abri, dei de cara com como braço levantado. Acho que ele estava prestes a bater.
- Oi. – Sorri surpresa.
- Oi.
- Está tudo bem? Aconteceu algo? – Perguntei já fechando a porta atrás de mim.
- Está tudo bem. Ia perguntar se não queria ir a algum lugar, mas vejo que você já está de saída.
- Vou até a farmácia.
- Alguém passou mal? – Ele perguntou preocupado. – Você está passando mal?
- Não. É para amanhã. – Falei sugestiva e parecia estar confuso. – Quer me acompanhar? Não deixa de ser uma volta por Paris.
- Pode ser. – Ele sorriu e ofereceu seu braço para eu segurar. Aceitei, entrelaçando nossos braços e começamos a andar até o elevador. – Como foi seu dia?
- Uma loucura. As flores, os vestidos, os saltos, os convidados, a etiqueta, os convites, as cadeiras.... Talvez eu não queira me casar. – Pisquei os olhos algumas vezes. – Você sabia que Madeline é extremamente rica?
- Fred me disse.
- Não, muito rica. – Olhei para frente, a tempo de ver as portas do elevador abrindo e anunciando que havíamos chegado no térreo. – Não ficaria surpresa se ela entrasse no casamento em uma carruagem de ouro puxada por dois cavalos brancos criados na sua própria fazenda no norte da Espanha. O que faz alguém tão rica assim fazer parte do exército americano?
- Não faço ideia. – Embora houvesse dois homens posicionados bem ao lado da porta de entrada para abri-la, fez questão de fazê-lo.
- Obrigada. – Olhei para os dois lados da rua. Eu deveria ter perguntado para alguém onde tinha uma farmácia. Se é que eles tinham farmácias propriamente falando. Soube que estava mais para um mercado que funcionava como farmácia, padaria e sabe-se lá mais o que.
segurou minha mão, sem ao menos pronunciar uma palavra e começou me levar para algum lugar. Eu abri a boca para protestar, mas estava curiosa demais. Ele parecia saber para onde estava me levando, então deixei que me guiasse.
- Me conte sobre o seu dia. – Pedi e ele olhou para mim, sorrindo gentil.
- Depois do almoço demos conta de fugir de todas as tarefas. – Abri a boca em indignação e ele deu uma risada.
- Eu não acredito que passamos o dia inteiro cumprindo horários na risca e vocês estavam se divertindo por aí.
- Eu não disse que estávamos nos divertindo.
- Mas também não vai negar se eu perguntar. – Ergui a sobrancelhas e ele concordou, dando de ombros e voltando a olhar para frente.
- Fomos buscar o irmão do Fred no aeroporto e depois fomos só andar pela cidade.
- E o que me conta de bom? – Assim que falei, ele redirecionou o seu olhar ao meu. A felicidade transbordava de cada linha de sua íris. Bem ali, naquele exato instante, num ínfimo segundo da história, enfim pude reconhecer o de oito meses atrás, sem tremores e sem filtro, no seu estado mais confortável e puro. Abri um sorriso largo e ele me acompanhou. – Achou um lugar especial? Um café parisiense magnífico que faz jus aos filmes românticos? Alguma varanda florida diferente das demais, de onde dois amantes se despendem em um último olhar doloroso?
Ele não respondeu, apenas continuou a andar. Será que eu havia dito alguma coisa errada?
De repente parou os passos e fui obrigada a fazê-lo também. Acompanhei a direção de seu olhar e pousei a visão em nada menos do que uma Torre Eiffel toda iluminada em toda sua suntuosidade.
- Sabe, eu sempre achei que seria muito clichê a primeira vez que visse. Me perguntava o que todos viam de mais numa torre. – Concordei com a cabeça, ainda fissurada em fitar o monumento deslumbrante e ele continuou a falar. – Mas o ser humano sempre foi fã do clichê.
- Até que não é tão ruim. – Sorri, fingindo que não estava completamente impressionada.
Atravessamos a rua e diríamos que estávamos até apressados para chegar cada vez mais perto. Havia uma ponte para ser atravessada antes de chegarmos até o ponto turístico. Como num consenso mútuo, no entanto, eu e ele paramos antes de colocar o pé sobre ela. Encarei-o e sorri divertida. Ele tirou as mãos do bolso da calça e colocou-as sobre o pequeno muro que resguardava o Rio Sena, erguendo seu corpo para subir nele.
- , o que você está fazendo?! – Arregalei os olhos e perguntei quase gritando. Ele já estava de pé sobre o muro e ofereceu sua mão. – Se alguém pegar a gente em cima do muro...
- Só vão pedir para que desçamos. Vamos, me dê sua mão.
Olhei para os dois lados da rua e para a ponte. Não havia ninguém. Cravei meus olhos em , pensando que aquilo não era uma boa ideia e estiquei o braço, mas logo hesitei. Não tive a escolha de voltar atrás, entretanto, ele já havia segurado minha mão e agora eu estava sendo conduzida a subir. Quando finalmente me equilibrei sobre o salto fino, olhei para o rio que corria ao nosso lado e admito que certa vertigem tomou conta de mim. Não sabia se tinha estabilidade o suficiente para não acabar caindo.
colocou seu dedo delicadamente sobre meu queixo e empurrou de leve minha cabeça para cima.
- Nos meus olhos. – Ele disse e eu corei. Estávamos tão próximo que eu podia sentir a sua respiração calma sobre minha pele. Por milésimos de segundos esqueci que estava sobre o muro. – Não olhe para baixo.
Então ele começou a andar de costas, de frente para mim, e segurou minhas duas mãos, para que eu andasse junto a ele. Os primeiros passos foram penosos, senti que a agulha do salto escorregaria a qualquer momento, mas toda vez que eu olhava para baixo, ele pedia que eu voltasse meu olhar para ele e eu o fazia. Precisou de alguns minutos talvez, mas eu comecei a andar com mais confiança.
- Você sabe o que é sexy? – perguntou do nada e eu olhei-o intrigada.
- Como? - Ele olhou-me profundamente nos olhos e quis desviar a visão, mas não consegui.
- Senso de humor. Um brilho saudável. Abertura. Confiança. Humildade. Apetite. Intuição. – Começou a listar tudo tão rápido, ainda mantendo o olhar vidrado ao meu, que tive que parar de andar para prestar atenção, fitando-o com um ar de cobiça e curiosidade. - Repostas afiadas. Presença. Um raciocínio rápido. Piadas sujas vindo de alguém que parece tão inocente. Uma contadora de histórias. Gosto pela aventura.
- Isso é verdadeiramente profundo. Não sabia que você tinha um lado tão poético.
- Não tenho. Li isso em um livro. – ergueu uma das sobrancelhas, sorriu espontâneo e eu ri. – Mas acredite quando digo que não poderia concordar mais com o que estava escrito.
- Gosto dessa definição também.
Ele inclinou um pouco a cabeça, abriu o sorriso mais verdadeiro que já vi e continuamos a andar devagar. Mal sabia eu que ele havia acabado de me descrever de acordo com seu próprio ponto de vista.


Capítulo 12

Fechei a porta do quarto atrás de mim com o maior cuidado possível, mas ainda foi possível ouvir o barulho da trava, então xinguei baixinho. As luzes já estavam apagadas e, em meio à escuridão, pude enxergar a silhueta imóvel de Amélia debaixo da coberta. Encostei sobre a porta e suspirei, sorrindo.
- Você foi comprar os remédios na Suíça? - A voz de Amélia me fez levar um susto e coloquei a mão sobre o peito, sentindo o coração acelerar. – Ou resolveu fabricá-los?
- Puta que pariu, você quer me matar?
- É você quem está chegando de fininho no meio da madrugada. – Ela disse já se sentando na cama. – Onde você estava?
- Eu e fomos dar uma volta.
- Vocês foram comprar os remédios juntos? – Arregalei os olhos com sua pergunta. Eu havia esquecido totalmente dos remédios. Sorte que ela não podia me enxergar, com certeza perguntaria o porquê de eu estar tensa.
- Er... Sim.
- Você por acaso comprou algum para dor de cabeça ou dor corporal? – Ela falou tão tranquila que até estranhei, não parecia a pessoa sarcástica e grossa de sempre. Talvez estivesse sonolenta. – Esqueci de colocar na mala. Na verdade, não esqueci, só achei que não precisaria.
- Não comprei.
- Então quais você comprou? – Agora ela já havia levantado da cama e andava devagar em minha direção, bocejando.
- Não comprei nenhum. – Sorri sem graça e repentinamente as luzes acenderam. Pude encarar uma Amélia confusa com a mão ainda sobre o interruptor.
- Desculpe, achei que você tinha dito que não comprou nenhum. – Ela disse irônica e não pude evitar desviar o olhar. – O que diabos você ficou fazendo por cinco horas, ? Com o ainda. – A médica colocou a mão na cintura irritada, porém logo sua expressão passou de confusão para preocupação. – Oh, . Não. Você está de brincadeira comigo.
- Não? Não o que? – Perguntei desconcertada e andei até minha mala, abrindo-a para pegar meu pijama e outras coisas para o banho.
- Parece que eu vou ter que ficar te lembrando que você está com o .
- Não seja boba. – Revirei os olhos e bufei, começando a andar com passos rápidos até o banheiro e deixando tudo de qualquer jeito sobre a bancada de mármore. Algum produto caiu no chão e, quando me abaixei para pegar, Amélia entrou no cômodo e se apoiou no batente da porta. Assim que me levantei, pude ver o seu reflexo no espelho e ela tinha um sorriso malicioso no rosto. – e eu somos somente amigos, saímos para conhecer a cidade como turistas, e eu estou em um relacionamento sério com .
- Você ligou para ele hoje? – Ela perguntou sugestiva e eu fiz uma careta, justificando seu ponto. – É disso que eu estou falando, .
- Eu esqueci, porque o dia foi corrido.
- Mas teve cinco horas para conversar com ? – Amélia levantou uma das sobrancelhas e agora sua expressão era tão fria e séria que um calafrio tomou conta de meu corpo. – Lembre-se quem foi que te esqueceu por nove meses, sem dar um sinal de vida, e quem esteve ao seu lado te apoiando nesse tempo. – Então, sem paciência para qualquer resposta minha, ela saiu.
Coloquei a mão sobre a bancada gélida. Amélia estava coberta de razão. Só de pensar que passeamos por Paris sob a luz do luar, no clima mais romântico possível, meu coração disparava. O que eu estava pensando?

- É aqui. – Olhei para as longas portas de vidro a nossa frente. Para um pub francês, aquilo estava moderno até demais.
- É melhor do que eu esperava. – Amélia sorriu satisfeita, já abrindo a porta.
- Não acredito que você a convenceu a usar um salto e um vestido hoje. – Madeline parou ao meu lado, ainda na calçada, e entrelaçou seu braço no meu, dando um sorriso alegre. – Obrigada.
- Tinha que ser algo memorável. – Abri a porta com a minha mão livre, dando passagem para que ela entrasse primeiro.
O local parecia estar cheio, o que me deixou particularmente animada. Pude ver Amélia apoiada sobre o balcão do bar, falando muito próxima do ouvido do homem atrás dele. Dei um sorriso divertido e andei até uma das mesas vazias, sendo acompanhada por Maddie, que se sentou ao meu lado.
- Contei ao pedaço do céu ali – Amélia chegou e logo apontou para o lugar onde estava dois segundos atrás. – Que estávamos na sua despedida de solteira e hoje os primeiros shots são por conta da casa. – Ela deu uma piscadinha e imediatamente um garçom apareceu com uma garrafa de vodca que parecia muito cara e três pequenos copinhos.
- Você poderia trazer batatas fritas ou qualquer comida que tiver para evitar problemas? – Pedi para o homem que segurava a bandeja e ele pareceu não entender o que eu falei. É claro que não, , estávamos na França. Olhei para Madeline na tentativa de pedir ajuda, mas ela parecia muito interessada em conversar com Amélia. Pensei em fazer uma mímica, porém como eu faria um gesto para pedir batatas? Estava quase desistindo, quando, de relance, vi que a mesa do lado tinha uma cesta com algo que não consegui identificar, mas me pareceu comestível. Apontei para lá e o garçom pareceu entender de prontidão.
- Argh, essa vodca é horrível. – Maddie falou fazendo uma careta e eu ri.
- Mas é a sua preferida. – Amélia estava confusa.
- Eu sei... Será que é diferente em outros países? – Harvey pegou a garrafa e começou a ler o rótulo.
Segurei um dos copos, que estava cheio até a borda, quase transbordando, e virei com tudo. Péssima ideia. Minha garganta começou a arder, os olhos lacrimejavam e eu segurei a vontade de tossir seco.
- Qual a porcentagem disso? – Perguntei com a voz um pouco rouca, abanando-me com uma mão ao sentir as bochechas corarem e Madeline me ofereceu a garrafa rindo. – É álcool etílico? Tenho certeza que um avião voaria com isso no tanque.
- Como você é fraca. – Amélia revirou os olhos e encheu seu copo de novo. – Vai ser derrubada em três segundos.
- Se você continuar nesse fluxo, - Falei enquanto a médica virava o copo como se fosse água. – Eu serei obrigada a parar de beber por aqui. Alguém vai ter que te levar para o hotel viva hoje.
- Aproveita esse momento. – Madeline virou-se e colocou sua mão carinhosamente sobre meu braço. – Você é sempre tão responsável, . Parece até a versão masculina do , não é à toa que estão juntos. Permita-se viver um pouco hoje... Por mim! Pelo meu casamento.
- Não me surpreende o Fred não conseguir negar nada a você, olha só essa carinha de anjo e essa voz manhosa. – Disse erguendo o copo na direção de Amélia e Maddie sorriu satisfeita.
- Vou ao banheiro. – A noiva levantou da cadeira e eu virei o líquido todo sobre minha boca novamente, fazendo uma careta.
Amélia parecia acompanhar Madeline com os olhos até a entrada do banheiro e, quando ela sumiu de vista, virou-se para mim, com os olhos arregalados. Algo estava errado. Fitei a porta do banheiro, procurando por algo que nem sabia o que era, mas logo voltei meu olhar para Amélia quando ela soltou um grunhido estranho. Quase não ouvi por conta das conversas ao nosso redor. Sua pele agora estava mais esbranquiçada e a boca aberta, em choque.
- O que aconteceu? – Perguntei preocupada.
- Eu acho que Madeline está grávida. – Ela jogou na lata e eu franzi a testa.
- Desculpe, o que disse? – Acho que a bebida já estava começando a fazer efeito. Tenho quase certeza que minha voz saiu um pouco mais arrastada que de costume e pude sentir a cabeça mais leve. Sério, o que era aquilo? Parecia álcool puro.
- Madeline está grávida. – Agora Amélia apoiava os cotovelos sobre a mesa. – Você não vê? Irritação aguda...
- Você está se referindo ao seu incidente do hotel? – Interrompi-a, no entanto ela nem ligou e continuou a tagarelar.
- A mudança no paladar com a vodca, o apetite...
- Apetite? – Então a cena de nós almoçando no restaurante em Paris invadiu minha cabeça e pude lembrar de Madeline comendo um prato relativamente farto, mas achei que fosse só a ansiedade.
- Fred disse que ela comeu um monte no avião.
- Você realmente acha que Madeline está grávida?
- Ela pode estar, não pode? – Amélia perguntou sugestiva e engoli em seco. Eu estava tão atônita que o efeito da bebida sumiu de um segundo para o outro. – Você acha que é por isso que Fred e ela estão se casando?
Revirei os olhos e dei um tapinha fraco no antebraço da médica, que dramatizou o ato e gritou um “AI!”, passando a mão sobre o local.
- Não seja boba. Está mais do que claro que eles se gostam. Talvez a própria Maddie nem saiba da gravidez. Acho que ela teria nos contado.
- Vocês acreditam que eu chorei porque não tinha mais papel para secar a mão no banheiro? – A coronel chegou de súbito e levei um susto, endireitando a coluna. – Que loucura, não?
Olhei rapidamente para Amélia, que retribuiu o olhar na hora. Qualquer dúvida que ainda restava em mim com certeza já não estava mais lá.
A pior parte era que se Madeline estava grávida, ela claramente não sabia.
- O que foi? – Ela perguntou preocupada, estranhando nossas expressões de surpresa.
Talvez o melhor a ser feito fosse não falar sobre gravidez agora. Talvez pudéssemos introduzir o assunto depois do casamento, quando ela e Fred pudessem ter o tempo do mundo para conversar sobre isso na lua de mel. Balancei a cabeça em concordância e olhei para o chão. Falaria com Amélia mais tarde, caso contrário tenho certeza que ela jogaria isso na roda o quanto antes e nem tínhamos certeza de Madeline estava grávida. Havia a possibilidade de ser apenas uma paranoia da médica.
- Por que não nos contou sobre a gravidez? – Amélia confrontou Madeline e eu coloquei a mão sobre a testa. Se Amélia não fosse canonificada por ser a pessoa mais sem filtro da Terra, ninguém mais seria.
- Meu Deus. – Sussurrei para que somente eu pudesse ouvir e respirei fundo em seguida.
- Oi? – A coronel perguntou confusa.
- Amélia e eu achamos que talvez, mas só talvez, você esteja grávida. – Sorri sem graça, sem saber muito bem qual seria sua reação.
Para nossa surpresa, depois de uns segundos encarando uma Madeline completamente inexpressiva, ela começou a rir de maneira gradativa e puxou a cadeira para se sentar. Parou a gargalhada de repente, quando percebeu que nenhuma de nós duas estava entendendo as risadas, e nos encarou, achando que aquilo era algum tipo de brincadeira.
- Do que vocês estão falando?
- Maddie, você está com alguns sintomas. – Coloquei a mão sobre seu braço e olhei-a terna. – É possível que você esteja grávida?
- Não.
- Respondeu muito rápido. – Amélia cruzou os braços e se recostou na cadeira, o que fez Madeline olhá-la de soslaio com certa acidez.
- Ok, é possível. – Ela admitiu. – Mas acho difícil.
- Nós deveríamos fazer um teste! – Uma onda de felicidade tomou conta de me corpo e não pude me conter de levantar num pulo. A alegria era tanta de imaginar que Maddie poderia ter um bebê, mas infelizmente ela não durou muito. Amélia puxou meu vestido para baixo e me senti forçada a sentar de novo. Eu ia protestar quando percebi que os olhos de Madeline estavam marejados. – O que aconteceu? Está tudo bem?
- Eu vou ser uma péssima mãe, não vou? –
- Então você está grávida? – Amélia deu um sorriso discreto.
- Maddie, não diga isso. – Falei abraçando-a e fim um gesto com a mão para que Amélia se justasse a nós. Foram necessários uma revirada de olhos e alguns bons segundos para que ela finamente estivesse do nosso lado. – Tenho certeza que se estiver grávida, você será a melhor mãe do mundo.
- Mas no dia da competição de bebês eu não sabia nada. – Madeline falou com a voz entrecortada por causa do soluço. Agora as lágrimas já atravessavam suas bochechas sem cerimônia alguma e eu podia as sentir caindo sobre meu ombro.
- Essas coisas, a gente aprende. – Amélia acrescentou e eu sorri.
- Vamos estar ao seu lado o tempo todo. – Passei a mão sobre suas costas num gesto de carinho. – Aproveita que uma das suas madrinhas é médica e que o já tem um filho e, portanto, muita experiência. Além disso, você tem o também, que tem duas vezes mais experiência prática.
- É verdade. – Madeline concordou baixinho e encarei Amélia, que parecia feliz.
- Quer fazer o teste agora? – Perguntei delicadamente. – Pode ser que você nem esteja.
Maddie limitou-se a assentir com a cabeça quando nos separamos do abraço e enxugou o rosto com a mão. Eu estava bem confusa com a rapidez com que as coisas aconteceram, mas admito que um alívio tomou conta do meu corpo por Madeline não ter entrado em negação ou dito que nada disso era da nossa conta. O que no fundo não era mesmo.
- Ótimo. – Amélia retirou uma caixa de sua bolsa e sorriu vitoriosa.
- Você anda com um teste de gravidez na bolsa? – Perguntei incrédula enquanto a coronel arregalava os olhos. Parecia até que a médica gostaria de saber o veredito mais do que a própria Madeline.
- Óbvio que não, não sou idiota. – Amélia colocou a caixa sobre a mesa e estreitou os olhos ao me encarar. – Só que eu fui ser a responsável, como sempre. Comprei os remédios da ressaca e, como eu já suspeitava, acabei comprando o teste também.
- Quer que vamos com você? – Perguntei quando Maddie levantou da cadeira.
- Não. – Harvey olhou para o chão e pude sentir sua apreensão. – Eu já volto.
Passei a mão pelos cabelos e respirei fundo quando a perdi de vista. Eu não sei o que sentiria se estivesse em seu lugar. Descobrindo estar grávida dois dias antes do casamento. Aquilo não era ruim, de maneira nenhuma, estou certa de que seria uma família muito feliz, mas eu ficaria no mínimo apreensiva. Criar um filho não é para qualquer um, isso muda tudo.
- Somos as melhores organizadoras de despedida de solteira do mundo. – Falei com sarcasmo, apoiando-me sobre a mesa e Amélia deu uma breve risada.
- Só estou aliviada por ela ser a grávida entre nós três. – Ela ergueu uma das sobrancelhas e imediatamente levantei minha cabeça. – Convenhamos, se eu estivesse grávida seria de um engenheiro, urgh, que nojo. – Um arrepio passou pela sua nuca e eu ri fraco. – E se fosse você... Bom, se fosse você seria ainda pior. Você teria o filho do .
- E o que tem de errado nisso? – Abri a boca exasperada.
- O que tem de errado? Você teria um filho com a pessoa que não ama de verdade, . – Amélia abriu os braços e eu joguei a cabeça para trás, cruzando os braços. Esse assunto de novo. – Não me leve a mal, a criança seria linda, o próximo modelo da Calvin Klein se fosse um menino e alguém por quem eu cogitaria mudar minha sexualidade se fosse menina. – Arqueei a sobrancelha. tinha razão, ela tinha um jeito estranho de falar sobre crianças. – Mas você acabaria ficando com , quando você não quer.
- Não seja ridícula, eu estou com porque quero.
- Mimimi.
- Inacreditável. – Revirei os olhos e voltei a fitar a porta do banheiro.
Alguns minutos depois, absorta nos meus próprios pensamentos, sem ouvir o que Amélia falava em seu monólogo, pude ver Madeline vir correndo em nossa direção. Analisei-a dos pés à cabeça, mas nada pareceu denunciar a resposta que eu queria. Não parecia triste ou feliz, somente tensa. Ela chegou ofegante, com as bochechas extremamente coradas e uma ansiedade exalando de sua aura.
- Não tenho coragem de ver o resultado. – Maddie disse oferecendo o teste para Amélia, que segurou pelas pontas dos dedos, como se aquilo fosse explodir a qualquer momento.
- Você fez xixi nisso? – A médica perguntou com nojo e revirei os olhos, pegando o palito de sua mão.
- Está pronta? – Perguntei e Madeline assentiu com a cabeça, logo mordendo o lábio inferior. Estava curiosíssima, como todas na mesa.
Respirei fundo e senti o coração palpitando muito rápido dentro de meu peito. Olhei para baixo e lá estavam os dois riscos, claros como o dia. Abri um sorriso sincero e não pude deixar de levantar da cadeira num pulo ao sentir a adrenalina correndo por cada parte de meu corpo.
- MEU DEUS! MEU DEUS! MADDIE! DEU POSITIVO! – Ergui os braços em comemoração e Amélia estava boquiaberta.
Não dei muito tempo para que Madeline processasse a informação, pois no segundo seguinte já estava lhe dando um abraço desajeitado e dando pulinhos. Inicialmente ela pareceu não entender o que estava acontecendo e ficou parada, mas não demorou muito para que me acompanhasse na comemoração. Amélia levantou-se e foi nos abraçar também. Ela nunca diria isso em voz alta, mas estava muito feliz com a novidade. A coronel colocou a mão sobre a boca, estava em choque, e as lágrimas caiam aos montes.
- Eu vou ser mãe. – Madeline, ainda abalada, separou-se de nós, apoiou sua mão na mesa e depois escorregou seu corpo sobre a cadeira. – Eu vou ser mãe.
- Isso não é ótimo? – Perguntei animada.
- É o melhor presente que eu poderia ganhar. – Ela respondeu de maneira dócil e tive que conter a vontade de chorar junto a ela. Madeline era um anjo que havia caído na Terra. Sua bondade era vista de longe e o jeito carinhoso a faria a melhor mãe que alguém poderia ter.
Amélia ia começar a dizer algo, porém desistiu quando Madeline apenas levantou apressada de repente e começou a correr em direção a porta de entrada.
- O que... – Virei-me de costas para verificar aonde ela ia. – O que foi isso?
A iluminação da rua não era a das melhores, mas logo pude identificar a silhueta de Fred. Arqueei uma das sobrancelhas e voltei minha visão para Amélia, que parecia ter reconhecido o homem também. Levantamos abruptamente, pegando as bolsas e os casacos e andamos de modo apressado para fora do estabelecimento. Assim que pisamos na calçada, Fred segurava Madeline pela cintura, com um dos sorrisos mais lindos que já vi, girando-a no ar no meio da rua. Ela depositou dezenas de beijos rápidos em seu rosto e tive a impressão de que ambos choravam.
- Vendo assim, até dá vontade de ter um filho.
- Você tem um filho, . – Amélia respondeu como se fosse algo óbvio e começou a comer as batatas fritas da cesta que carregava em seu colo.
Arregalei os olhos e dei um passo para o lado de susto. Eu estava tão concentrada em assistir o casal apaixonado que não percebi que estava parado ali também, mas logo minha atenção se voltou para a médica.
- Você não pode roubar batatas da mesa de estranhos. – Falei para Amélia e ela apenas deu de ombros.
- Eu sei. – cruzou os braços e sorriu, deslumbrado com a cena. – Eu queria outro. Ter um filho com a pessoa que você ama é o sentimento mais incrível do mundo.
- Deve ser mesmo. – Concordei com a cabeça.
- Ter que acordar a cada três horas para limpar o bumbum de outro ser humano? Não, obrigada. – Amélia revirou os olhos e mudou de assunto. – O que vocês estavam fazendo nessa rua?
- Estávamos voltando para o hotel já. – respondeu dando de ombros.
- Que despedida de solteiro mais rápida. – A médica falou incrédula.
- O irmão do Fred não estava com vocês? – Perguntei olhando para os dois lados da rua.
- Foi justamente por isso que tivemos que voltar. Ele não estava se sentindo bem. – passou a mão sobre a nuca, incomodado. Ou talvez com dor. – Ele não quis nem esperar para ouvir o que Madeline tinha a dizer.

- Quem são essas pessoas? – Amélia perguntou irritada e eu olhei em direção ao casal que andava em nossa direção.
- Eu não sei, não conheço os parentes da Madeline. – Sussurrei e logo em seguida abri o meu sorriso mais simpático.
Estávamos paradas em frente à entrada do pequeno castelo no sul da França, cumprimentando todos os convidados do casamento que chegavam em uma afinidade de como se nos conhecêssemos há anos. Obviamente Amélia não deixava essa missão fácil. A cada cinto minutos reclamava que seu vestido estava a incomodando e que não queria ficar beijando a bochecha de estranhos.
- Eu não entendo porque só as madrinhas têm que fazer essa recepção ridícula. – Ela disse depois que o casal passou por nós, para dentro do local.
- Só aceita. – Abri um sorriso novamente ao ver uma mulher se aproximando e pude sentir minha bochecha começar a doer. Se eu tivesse que continuar fazendo isso para todos os próximos duzentos e trinta convidados eu teria câimbra.
O dia parecia ter amanhecido perfeito. Não havia sequer uma nuvem no céu e eu tive a impressão de ter sido acordada por passarinhos cantando em minha janela, como em um filme ou um conto de fadas. O universo trabalha de maneira estranha. A calmaria durou pouco, entretanto, Madeline invadiu a porta de meu quarto do hotel sem qualquer pudor, abrindo as cortinas e quase gritando. Eu mal tinha sentado na cama, totalmente tomada pelo susto e vestida em um pijama muito curto, diga-se de passagem, quando uma equipe de maquiadores e sei lá mais o que apareceram na sala. Cobri meu corpo de imediato com o cobertor. Cinco horas depois e muito trabalho pela frente, lá estava eu, de pé naqueles saltos finíssimos sobre o chão de pedras rústicas de milhares de anos, desejando que a cerimônia começasse o quanto antes para eu poder finalmente tomar uma taça de champanhe e esquecer que aquele vestido estava esmagando minhas costelas para que minha cintura parecesse a mais fina possível.
- Sentiu saudades?
apareceu em minha frente com um uniforme formal azul da Força Aérea. Eu estava totalmente boquiaberta. Como eu havia esquecido o quão bonito aquele homem era? Amélia parecia compartilhar de minha admiração, não conseguia desviar o olhar por mais que quisesse. Nós não tínhamos dúvidas de que o material havia sido importado diretamente do Olimpo.
Larguei o pequeno buquê que segurava no chão, abri um sorriso encantador, completamente tomada pelo sentimento de saudade misturado ao de alegria e abracei-o. Ele estava tão cheiroso e aquilo me reconfortou de um modo prazeroso. abraçou-me de volta com muita firmeza e apoiou sua cabeça sobre a minha. Naquele momento, senti-me protegida e uma sensação acolhedora fez com que eu pressionasse mais minha cabeça sobre seu peito. Quando finalmente nos afastamos um pouco, com seus braços ainda envoltos em meu corpo, ele depositou um beijo demorado e carinhoso sobre minha testa e fechou os olhos. Coloquei minhas mãos sobre seus braços e senti um arrepio na nuca, mas não me pareceu um calafrio bom, muito pelo contrário.
Assim que ele se distanciou para cumprimentar Amélia, virei-me para trás, na direção do caminho que levava para dentro do castelo, e pude ver parado ao lado do batente da porta. Suas mãos estavam dentro dos bolsos da calça e pude ver com clareza sua expressão de choque, quase como se estivesse sentindo dor. Ele encarava-me nos olhos de uma maneira tão profunda que não pude não corar. Antes que eu criasse a coragem de fazer qualquer coisa, mordeu o canto do lábio inferior e voltou seu olhar para o chão. Balançou a cabeça algumas vezes em incredulidade e virou-se de costas, começando a se afastar. Minhas pernas quase cederam. Segurei a respiração e senti o coração pular uma batida.
- Você está tão linda. Ninguém nunca ficou tão bonita em um vestido. – tirou-me de meu transe e eu voltei a fitá-lo. – Vou procurar Amélia e Fred, ok?
- Claro. – Respondi ainda distraída e ele roubou um beijo rápido antes de sair.
- Que homem. – Amélia falou enquanto observava adentrar o local. – Não acredito que mandei você atendê-lo naquele dia. Eu é que poderia estar apertando essa bunda agora.
Restringi-me a sorrir sem graça e voltei a cumprimentar alguns convidados que chegavam e formavam uma pequena fila. Os próximos trinta minutos foram completamente devotos a estranhos e a uma Amélia que apenas decidiu me largar lá sozinha e ir se sentar numa pedra. Quando ninguém mais parecia chegar, revirei os olhos, segurei minha saia e fui até a médica.
- Não sei como você consegue trabalhar de salto. – Ela disse ao ver que eu me aproximava. – Isso vai ser a razão da minha morte.
- Madeline é quem vai nos matar se souber que saímos da recepção. – Estendi minha mão para que ela se levantasse, mas Amélia sequer mexeu um músculo.
- Desculpe incomodá-las, senhoritas. – Um dos garçons, vestido com um belo terno preto, abordou-nos. – A cerimônia começará em torno de cinco minutos e a presença de vocês é requisitada no saguão.
- Vocês são pagos para falarem de maneira formal? – Amélia perguntou e suspirei.
- Obrigada por nos avisar, estamos indo. – Sorri gentil e o homem retirou-se. – Vamos que o seu par já deve estar esperando.
Segurei sua mão e fomos andando até dentro do castelo. Tomei cuidado para que não pisasse em nenhum buraco entre as pedras, mas não posso dizer o mesmo da médica. Ela parecia pouco de importar se estava quase sendo arrastada por mim. Assim que chegamos no hall, encarei todos os possíveis caminhos. Poderíamos ir para algum dos lados ou seguir em frente. Mordi e lábio inferior e arregalei os olhos. Para um castelo pequeno, aquilo estava parecendo um gigante labirinto. Eu não me lembrava mais para onde deveríamos ir. Coloquei a mão sobre a testa e comecei a andar para a direita. Qualquer um que estivesse parada na porta de entrada nos veria correndo para lá e para cá, completamente perdidas.
- Amélia, onde é esse saguão? – Perguntei tentando traçar o caminho de volta para a entrada. – Provavelmente estamos muito atrasadas.
- Eu sei lá, esse lugar tem uns trezentos saguões. – Ela respondeu desesperada e senti meu sangue pulsar sobre as artérias.
Corri para a varanda mais próximas. Estávamos na parte da frente da construção, o que significada que precisávamos chegar do outro lado para estar no lugar certo. Puxei a mão de Amélia com tanta pressa que ela pareceu estar tonta por uns segundos, tentando acompanhar meus passos apressados.
- Meu Deus, , eu vou cair!
Não me dei ao trabalho de falar nada. Se minhas contas estavam certas, tínhamos apenas um minuto para chegar nesse inferno desse saguão. Quando ouvi o som de um violino tocando, sorri aliviada, pelo menos estávamos chegando perto. Corríamos em um dos corredores quando parei subitamente e Amélia trombou em mim, quase nos fazendo cair no chão.
- VOCÊ ESTÁ LOUCA? – Ela quase estourou meu tímpano.
- Pare de gritar, porra. – Falei irritada e ela arqueou as sobrancelhas.
Eu havia visto o irmão de Fred passando por um outro corredor. Voltei a andar apressada, com Amélia em meu encalço, mudando o trajeto e logo pude ver pela janela os convidados já sentados nas cadeiras alinhadas do jardim. Respirei fundo, começando a andar mais devagar e a tentar recuperar o ar.
arregalou os olhos. Ele era o próximo a entrar e sua acompanhante ainda não tinha chego. Empurrei Amélia, que ainda parecia confusa e perdida, até o lado de , que segurou seu braço e começou a andar em direção ao altar. Passei a mão sobre o cabelo, abri meu melhor sorriso e aceitei o convite do irmão de Fred para entrelaçarmos nossos braços.
Começamos a andar assim que a organizadora do casamento quase nos empurrou porta afora. Todos nos olhavam e não pude deixar de ruborizar com tanta atenção. A música estava muito lenta, o que nos fez atravessar aquela passarela de modo tão devagar que suspirei ao subir no altar, parando ao lado de Amélia.
estava sentado na primeira fileira, próximo à mãe de Madeline, assim como Henry, sorrindo para mim. Retribui-o com um sorriso discreto, mas logo desviei a atenção para um ponto específico lá atrás, Madeline estava parada na porta segurando a mão de seu pai. Todos no local levantaram-se e outra música clássica começou a ser tocada ao fundo. Maddie não poderia estar mais bonita. Seu cabelo comprido caia como cascatas debaixo do céu, ornando com as flores delicadas de uma coroa de orvalhos dourados. Agora mais do que nunca sua aura angelical estava destacada. Sua felicidade poderia ser vista de longe, o sorriso não pode ser contido por um minuto sequer. Quando ela começou a andar, foi impossível não colocar a mão no peito e sentir uma alegria genuína tomar conta de mim.
Sabe quando você sente que não há pessoa no mundo capaz de merecer mais uma vida incrível do que alguém verdadeiramente bom? Era exatamente isso que todos sentíamos no momento. Ver Madeline, a pessoa que mais tratava o próximo com carinho e bondade, enfim recebendo de volta todo contentamento que já causou nas vidas que tocou era de arrepiar a espinha. Uma lágrima escorreu sobre a minha bochecha e Amélia sorriu.
- Cara, se algum dia o meu marido chorar tanto quanto o Fred agora, terei certeza que ele me ama. Ou que ele é um bom ator. – A médica sussurrou em meu ouvido e não pude evitar encarar Fred.
Assim que o pai de Madeline a deixou no altar, seu sorriso instantaneamente sumiu e ela olhou-me com os olhos arregalados em puro desespero. Virei-me para trás, para fitar Amélia, que pareceu ver a cena também e estava um pouco abalada.
- Você acha que ela mudou de ideia em relação a querer de casar? – Ouvi o sussurro da médica e engoli seco.
Eu espero que a resposta para essa pergunta seja não.
- Temos que esperar para ver. – Respondi ao mesmo tempo que sorria e pude ver tencionar o ombro. Ele sabia que algo estava errado.
- Por favor, sentem-se. – O padre pediu e todos retornaram a suas cadeiras. – Estamos reunidos aqui hoje para celebrar o amor entre Madeline Harvey e Fred Murphy.
- Psiu. – A organizadora do casamento apareceu ao meu lado e tive que me controlar muito para não pular de susto. – Madeline pediu para que você fosse vê-la imediatamente depois da cerimônia. É algo urgente.
Virei-me em direção à mulher, mas ela já estava de costas, prestes a sair. Voltei a encarar Madeline e uma sensação estranha tomou conta de meu corpo. Eu estava nervosa, a expressão que Maddie havia feito não era nada boa.


Capítulo 13

– Você estava me procurando? – Perguntei para Madeline assim que a encontrei no meio da multidão.
Ela estava claramente inquieta. Sem ao menos responder, segurou minha mão e me guiou até outro lugar. Um corredor vazio, para ser mais específica.
– Eu estou surtando! – A coronel colocou a mão sobre os cabelos e começou a andar de um lado para o outro.
– O que aconteceu?
– Um pouco antes de entrar no altar, recebi uma ligação do Steven!
– Quem é Steven? – Perguntei, confusa, começando a ficar ansiosa pelo descontrole de Madeline.
– Querida, meus parabéns! – Uma mulher idosa nos encontrou no corredor e foi logo falar com a noiva. Bom, esposa agora. – Você está maravilhosa.
– Muito obrigada. – Madeline assustou-me com a mudança repentina de comportamento e o sorriso sereno. Nem parecia que há dois segundos estava histérica. Logo que a mulher saiu do corredor, ela voltou a falar em um fio de voz aguda. – Steven é meu ex-namorado.
– E por que seu ex-namorado te ligou antes do seu casamento?
– Ele está louco, ! Disse que eu não amava o Fred e que deveríamos voltar a ficar juntos!
– O QUÊ? – Perguntei, irritada, e coloquei a mão sobre a boca quando percebi que havia gritado.
– Ele disse que estava vindo para cá!
– ELE O QUÊ?
– Não grita! – Ela olhou para os lados, vendo se alguém não havia aparecido. – Preciso que você tome conta disso.
Pisquei os olhos algumas vezes, ainda processando o que ela tinha acabado de dizer. Cocei atrás da orelha e comecei a encarar a parede, sem pronunciar qualquer palavra, o que deixou Madeline desesperada. Alguns segundos, que pareceram mais anos, passaram e abri e fechei a boca, sem saber muito bem o que dizer.
– Pelo amor de Deus, . – Ela segurou em meus braços e me chacoalhou. – Fala alguma coisa.
– O que você espera que eu faça? Jogue-o dentro de um táxi para Paris?
– Isso seria ótimo, obrigada. – Ela sorriu, aliviada.
– Eu não posso fazer isso, Madeline! Nada impede que ele simplesmente passe o táxi por cima de mim e entre aqui de qualquer maneira.
– Você precisa dar um jeito nisso, por favor! Por favor, por favor, por favor! Eu não quero que ele arruíne meu casamento.
– Tudo bem. – Disse, calma, e respirei fundo. – Vou procurar o e vamos resolver isso.
– Certo. Ele deve ter pousado agora. – Ela sorriu sem graça, e eu arqueei uma das sobrancelhas.
– Pousado? Ele veio dos Estados Unidos até aqui?
– Ele é britânico. Deve chegar em uns dez minutos. Tem cabelos loiros cacheados, olhos azuis, é alto e magro.
Algumas dezenas de perguntas invadiram minha cabeça como uma avalanche, mas balancei-a para desviar os pensamentos. Não havia tempo para curiosidade. Respirei fundo, segurei a saia de meu longo vestido e comecei a andar apressada, largando Madeline sozinha e preocupada. Se fosse para fazer o papel de madrinha, que pelo menos eu fizesse com perfeição.
O final do corredor dava para um salão com grandes mesas redondas, onde teríamos o jantar. Alguns garçons circulavam por ali, arrumando os últimos detalhes possíveis. Procurei entre eles, mas não parecia estar lá. Todo lugar que eu passava, inclusive, só conseguia esbarrar com desconhecidos. Banheiros, corredores, quartos, salões. No jardim, algumas pessoas até puxaram conversa, mas apenas sorri sem graça e continuei a busca. Onde diabos esse homem havia se metido? Subi e desci todas as escadas do local, já sentindo minhas pernas latejarem. Quando finalmente vi do outro lado de um longo corredor, conversando animado com algumas pessoas, comecei a andar apressada em sua direção.
E, então, eu olhei pela janela, como num reflexo.
– Não, não, não. – Sussurrei, brava, e parei imediatamente. Um homem com a mesma descrição de Madeline havia acabado de sair de uma vã na entrada do castelo.
Olhei para . Ainda faltava uns bons metros para que eu o alcançasse. Grunhi em frustração e resolvi voltar para o começou do corredor, onde havia uma escada que levaria ao andar debaixo. Desci tão rápido que não sei como não tropecei nos degraus.
– Com licença! – Falava enquanto quase empurrava as pessoas para que saíssem do meu caminho. Por que havia tantos seres humanos nesse evento? Eles só estavam atrapalhando! – Com licença!
Consegui chegar à entrada, e a vã ainda estava lá, com a porta do motorista escancarada, porém sem ninguém dentro. Balancei a cabeça em negação e cheguei mais próxima do veículo, torcendo para que ele estivesse na parte de trás. Quando coloquei minha cabeça em frente à janela das portas do fundo, para o meu azar, não havia nada, nem ninguém. Coloquei a mão sobre a nuca e me virei, encarando as pessoas que passavam calmamente por ali. Mais de duzentas e cinquentas pessoas no local, e eu teria que encontrá-lo antes que ele fizesse alguma besteira. Um pensamento invadiu minha mente, e não pude deixar de arregalar os olhos e colocar a mão sobre minha barriga. Estava enjoada. E se Steven já tivesse encontrado Fred? Seria briga na certa. O dia mais feliz de Madeline seria estragado porque eu resolvi procurar para me ajudar em vez de vigiar a entrada. Encostei-me sobre a lataria da vã e escorreguei um pouco, pensando por onde eu começaria a busca. Não foi preciso muito tempo para decidir isso, na verdade. Onde Amélia se sentara mais cedo, quando cansou da recepção, estava o homem com cabelo loiro cacheado. Estreitei os olhos e comecei a andar em sua direção. Era impressão minha ou ele estava tremendo?
– Steven? – Perguntei ao me aproximar.
Ele pareceu levar um susto e se virou abruptamente.
– Sim?
– Muito prazer, meu nome é . – Sorri, ainda mantendo a seriedade, e ele me olhou dos pés à cabeça. – Sou uma das madrinhas. – Ele pareceu não ligar muito para o que eu disse e bufou.
– O que você quer?
– Vim aqui pedir, com gentileza, que você se retire. – Depois de eu falar isso, a pupila do homem à minha frente pareceu virar um pequeno ponto em meio à imensidão azul. Ele claramente ficou irritado.
– Foi o idiota do Fred que te mandou aqui, não foi? – Steven perguntou com um sorriso sarcástico e segurou em meu antebraço com força.
– Por favor, solte meu braço, você está me machucando. – Pedi com delicadeza, mas isso só fez com que ele apertasse ainda mais e aumentasse seu tom de voz.
– FOI ELE, NÃO FOI?
Coloquei a mão sobre o pulso dele, tentando fazer com que ele me soltasse, mas ele era muito mais forte que eu, então aquilo não fez efeito nenhum.
– Não, não foi ele. – Falei com tanta calma que fiquei surpresa. – Madeline pediu para que você se retirasse.
– Ela não faria algo assim. Ela me ama.
– Você poderia me largar? Está machucando.
– Por que você não quer admitir que foi Fred que te mandou? – Steven ignorou meu pedido e pude sentir a circulação na área que ele apertava parar.
– Solte-a. – A voz de soava firme e irritada atrás de mim. Virei-me para somente encontrá-lo parado e de braços cruzados, com uma expressão que gelou meu corpo. Estava quase mortal.
Steven pareceu hesitar um pouco, mas cedeu e me largou. Nem por um segundo eles pararam de se encarar enquanto eu passava a mão sobre o local dolorido. Eu tinha certeza de que em poucas horas estaria roxo.
– Obrigada, . – Agradeci e comecei a falar de modo áspero ao me dirigir ao Steven. – Você precisa ir.
Então, algo inesperado aconteceu. Steven acertou um soco em cheio no rosto de , abrindo um pequeno corte na maçã do rosto. deu dois passos para trás, totalmente surpreso, e passou o dedo indicador de maneira calma sobre o fio de sangue que descia em sua bochecha. No momento em que ele levantou seu olhar para o homem em sua frente, dei um passo para trás e engoli em seco. Sua mão direita começou a tremer, e eu fechei os olhos. Não estava preparada para vivenciar o que viria a seguir. Quando os abri novamente, já tinha dado um soco na costela de Steven com tanta força que pude ouvir algo estalar. Ou algo quebrar. O ex-namorado de Madeline agora se apoiava em uma das árvores ali perto, com uma das mãos sobre a barriga. Ele tossiu seco e um pouco de sangue saiu de sua boca, o que me fez estreitar os olhos.
Vi que encarava-o com tanta crueldade e frieza que, de maneira voluntária, me coloquei em sua frente quando ele deu um passo em direção a Steven.
. – Sussurrei seu nome de maneira suave, e ele desviou seu olhar para mim. Um arrepio percorreu minha espinha. Ele olhava-me de maneira tão letal que mal pude reconhecê-lo. – Vamos com calma, por favor.
contornou-me, indo até o homem que ainda tentava recuperar o ar. Sem dizer nada, acertou seu rosto com um soco que rasgou parte da sobrancelha de Steven, e eu coloquei a mão sobre a testa, sem paciência ou estômago para ver aquilo.
Quando voltei a olhar a cena, já erguia o corpo do homem sobre seu ombro e começou a caminhar em direção à vã. Naquele momento, ele realmente parecia um verdadeiro produto da Força Aérea americana, uma verdadeira máquina para matar.
– Você dirige. – Ele falou, sem olhar para trás.
– O que disse? – Perguntei, confusa, olhando para os lados e me certificando de que ninguém tinha visto nada.
– Você não acha que vamos colocá-lo em uma das camas desse castelo e esperar que ele se recupere, não é? – perguntou, autoritário, parando de andar e se virando para mim. Pude perceber que ele estava extremamente bravo e não conseguia sequer me encarar nos olhos por mais de dois segundos.
– Bom, eu...
– Não seja ingênua. – Ele interrompeu-me com um tom de voz ácido, e eu ergui as sobrancelhas. – Vamos logo, que até agora você só me trouxe problemas.
Então, voltou a andar. O que havia acabado de acontecer? Há literalmente algumas horas, ele estava sendo um cavalheiro e, agora, estava sendo grosso. Assim que ele abriu as portas traseiras do veículo e colocou o corpo de Steven dentro sem delicadeza alguma, comecei a andar em direção ao banco do motorista, muito contrariada, devo frisar.
– Filho da puta. – O ex-namorado de Madeline falou entrecortado, por causa da dor aguda que sentia no abdômen. era treinado pelo exército. Ele sabia exatamente onde atingi-lo para causar dor, porém não o matar.
Sentei-me no banco e não esperei um instante sequer para ligar a vã quando vi as chaves na ignição. Bufei, irritada, e já começava a acelerar com tudo antes mesmo de ter entrado lá atrás, junto a Steven, e fechado as portas. A raiva por ter me tratado daquela maneira começou a se acumular sobre mim e descontei tudo no pedal do acelerador e nas marchas. Entrei na rua sem ao menos olhar para os lados e checar se algum carro estava vindo, e percebeu, levantando-se para ir até mim.
– Você sabe dirigir um carro manual? – perguntou, incrédulo.
– Você sabe pilotar um avião e não sabe dirigir um manual? – Revirei os olhos. – O que o exército treina, afinal?
Ele pareceu um pouco ofendido e colocou a mão sobre minha cadeira, com um olhar muito sério. Estava prestes a falar algo quando seu corpo foi puxado para trás subitamente. Desviei meu olhar da estrada para ver o que estava acontecendo lá atrás e me deparei com um sentado no chão, com as mãos para o alto, e um Steven apontando uma arma para ele. APONTANDO UMA ARMA!
Quando me toquei do que acontecia, minha pressão caiu e empalideci. Só voltei a olhar para frente quando ouvi o som de uma buzina chegando perto. Um caminhão vinha em nossa direção, e eu imediatamente joguei o carro para o lado, em um movimento desesperado. Meu coração quase parou de bater. Estávamos numa velocidade tão rápida que, apesar de termos desviado, pude ouvir a lateral da vã ser arranhada pelo container do caminhão. Minhas mãos tremiam sobre o volante e tentei tirar o pé do acelerador, mas meu salto agulha tinha ficado preso em algum lugar e, mesmo forçando, não o consegui tirar dali.
– Droga! – Sussurrei e voltei a olhar para trás quando ouvi o barulho de pessoas grunhindo.
e Steven agora pareciam brigar para ver quem conseguia a posse da arma. Os socos estavam vindo um atrás do outro. Eu estava tão dividida entre olhar a rua à minha frente e os dois homens brigando na parte traseira do veículo que quase não percebi quando algo em meu quadril começou a vibrar.
– O quê... – Tirei uma das mãos do volante e comecei a tatear minha saia. Havia esquecido completamente que os vestidos foram feitos com bolsos. Enfiei a mão lá para retirar o celular e, quando eu enfim consegui encarar a tela, com a letra “” aparecendo, uma bala atravessa o aparelho e passa pelo vidro do painel também, trincando-o. Arregalei os olhos e virei-me para trás, completamente chocada.
Algum dos dois havia disparado sem querer, mas sequer deram atenção para isso. empurrou Steven em uma das paredes, fazendo-o gemer de dor, mas não soltar a arma. Voltei a olhar a olhar para frente, atônita, e senti meu corpo preencher de adrenalina. Estávamos na contramão de uma avenida.

COMO DIABOS ESSAS COISAS ESTAVAM ACONTECENDO COMIGO?

Chacoalhei o pé mais uma vez, tentando tirá-lo do pedal, mas não obtive sucesso. Senti o braço começar a arder, mas não me dei ao trabalho de olhar. Havia muitos carros vindo em nossa direção, e todos buzinavam. Eu não fazia ideia de como estava conseguindo desviar e nem de como ainda não havia tido uma parada cardíaca. Meu coração batia como nunca antes. Virava o volante freneticamente e pude ouvir o som de algumas coisas voando no fundo da vã.
– Tentando salvar um casamento aqui, ok? – falou, sarcástico, um pouco sem fôlego de tanto tentar se equilibrar e desviar dos socos de Steven. Para um homem tão magro, ele era muito forte e persistente.
– Oh, me desculpe, eu mal consegui notar... COM TODOS ESSES CARROS VINDO NA MINHA DIREÇÃO!
desviou o olhar por dois segundos para me encarar. Segundos o suficiente para Steven abrir a porta lateral da vã e pular. Quando viu o que tinha acontecido, arregalou os olhos e abriu a boca, enfiando a cabeça para fora do veículo, procurando pelo homem. Agora ele estava a bons metros de distância, rolando sobre o asfalto.
– Pare a vã! – gritou, vindo em minha direção. Ele parecia surpreso. – Ele pulou para fora.
– O quê? – Perguntei, desviando o olhar da rua.
– PARE ESSA MERDA!
gritou tão próximo e tão alto de meu ouvido que me encontrei sem opções a não ser obedecê-lo, e imediatamente coloquei um pé no freio, mas sem tirar o outro emperrado no acelerador. Aquilo gerou um barulho dolorido de engrenagens, raspando umas nas outras, e não demorou muito para que o veículo morresse e parasse por completo, soltando fumaça do capô. Sem hesitar, saiu pela porta lateral e começou a correr em direção a Steven.
Respirei fundo e abaixei meu torço para mexer no salto. Demorou muito para que eu conseguisse desprendê-lo, uma vez que minhas mãos tremiam e suavam de modo excessivo. Assim que senti meu salto livre, abri a porta e comecei a correr no meio da rua.
– Corre mais rápido, porra. – falou quando cheguei mais próximo dele. Ele havia parado para me esperar e ficou claramente impaciente com isso. Assim que o alcancei, joguei o que sobrou do meu celular baleado em sua cabeça.
– Seja mais educado, porra.
Continuamos a correr, logo estava bem à minha frente já, olhando para todos os lados, mas Steven parecia ter simplesmente desaparecido. Assim que parou em frente a uma casa, analisando tudo ao seu redor, cheguei ofegante de seu lado, colocando a mão sobre a cintura. Deveria ser ilegal correr de salto.
– O perdemos? – Perguntei em meio à procura de ar.
– Não. – respondeu, seco, e pousou o olhar sobre uma casa de tijolos vermelhos, porém logo voltou seu olhar preocupado para mim. – Você está bem? Está sangrando.
– Como assim? – Perguntei, olhando para todos os cantos possíveis do meu corpo, até repousar a visão sobre meu braço, justamente onde estava ardendo. Toquei o local com a maior delicadeza que consegui, mas não pude conter um gemido de dor. A bala devia ter passado de raspão ali. Isso precisava de alguns pontos, com certeza. – Está tudo bem.
estreitou os olhos, não acreditando muito no que eu falava, e voltou a me olhar de maneira fria. Sequer disse alguma coisa antes de começar a andar até a casa de tijolos. Suspirei e voltei a segui-lo. Eu já nem sabia o que estávamos fazendo. Queria somente largar esse Steven em qualquer lugar, arranjar um carro e voltar para o casamento, um evento pouco propício para morrer.
Assim que parei ao seu lado, na entrada da casa e ao lado de alguns arbustos, começou a fazer uns gestos com a mão, e eu somente franzi a testa, não entendendo nada. Mesmo assim, ele continuou com a gesticulação.
– O que você está fazendo? – Sussurrei, confusa, e ele revirou os olhos.
– Você não conhece os códigos para a invasão? – perguntou, como se fosse óbvio, e eu revirei os olhos.
– Claro que não!
– E depois ainda reclama do que ensinam no exército. – Ele disse, sarcástico, e pulou a cerca sem esforço nenhum para entrar na casa.
Coloquei a mão sobre a têmpora, já irritada com o comportamento ridículo dele. Tudo que havia feito até agora era ter me colocado nessa situação estressante, gritado comigo e transbordado ironia em suas falas. Empurrei o portão da cerca, entrando civilizadamente no jardim da frente da casa. Eu me recusava (e nem conseguia, convenhamos) a pular a cerca, mas o destino pareceu querer brincar comigo. Na hora que fui fechar o portão, minha saia ficou presa em uma das farpas da madeira e pude ouvir o tecido da barra de meu vestido rasgar. Respirei fundo, olhei para cima e pude ouvir a risada divertida de atrás de mim.
Passei ao lado de , que ainda não conseguia parar de rir, e fui direto para a varanda, sem saber muito bem o que estava fazendo. Quando ele finalmente parou de gargalhar, andou até meu lado e começou a observar uma das janelas com muita atenção, quase imóvel.
– Como você sabe que ele está aqui? – Perguntei, encarando a rua.
– Shhh! – Ele colocou a mão sobre minha boca, e eu prontamente a retirei.
– Não precisa ser grosso.
limitou-se a revirar os olhos e me empurrou de leve para o lado, na intenção de prosseguir com a observação das janelas, mas eu tropecei sobre um dos pés de uma cadeira e acabei caindo sobre uns arbustos. Tentei levantar-me, mas tudo o que eu fazia só acarretava em uma ainda mais presa entre as folhas, então, por alguns segundos, só aceitei a situação e fiquei parada.
– O dia não tem como ficar pior a partir de agora. – Suspirei ao falar.
Logo senti os braços de alguém me segurarem nas costas e nas pernas. levantava-me como se eu fosse uma pena e comportou-se como se eu tivesse a delicadeza de uma. Colocou-me de pé com tanta gentileza que fiquei sem graça.
– Você está bem? – Ele perguntou, apreensivo. – Me desculpe.
– A culpa não foi sua. – Falei sem encará-lo e comecei a tirar as folhas que estavam em meu cabelo.
Eu deveria estar o próprio caos. Folhas e gravetos na cabeça, braço ensanguentado, vestido rasgado...
Tirei todos os grampos que prendiam meu cabelo em um coque perfeito há trinta minutos atrás e passei a mão pelas mechas, tentando tirar tudo o que estava preso ali. pareceu estudar meus movimentos com os olhos, mas logo desviou a visão quando alguém passou correndo pela lateral de fora da casa. Era Steven.
não pensou duas vezes antes de começar a correr em sua direção e pular sobre ele assim que chegou perto. Fiz uma careta quando vi ambos caindo no chão e quase enterrando a face no asfalto. Aquilo com certeza tinha doído. Andei apressada até onde os dois estavam, e sussurrava algo que eu não conseguia escutar no ouvido de Steven e segurava-o pelo colarinho com tanta força que eu mesma passei a mão sobre minha garganta. Assim que eles levantaram, ajeitou seu uniforme azul, mexeu os ombros e começou a andar até a rua.
Alternei meu olhar entre os homens, sem entender o que estava acontecendo. Steven parecia extremamente incomodado enquanto passava a mão sobre sua blusa para tirar a sujeira, e agora já erguia o braço para chamar atenção de um táxi que passava ali perto.
– Vamos, ? – Ele perguntou, calmo. – Tenho certeza de que ele já não será mais um problema.
Olhei uma última vez para Steven, que se manteve imóvel, e comecei a caminhar até onde estava. Ele gentilmente abriu a porta do carro para que eu entrasse, mas eu parei antes de colocar o pé dentro do veículo, apoiando uma das mãos no teto externo, e encarei-o. Ele estava tão próximo que eu podia ver cada linha de sua íris.
– O que você disse para ele? – Perguntei, curiosa, e abriu um sorriso discreto.
– Confidencial.

– Meu Deus, vocês poderiam ao menos terem se arrumado para o meu casamento. – Fred encarou e dos pés à cabeça, completamente chocado. Madeline ficaria furiosa.
– De nada. – O padrinho respondeu, sério, e não conteve a risada.
Fred não pareceu entender, apenas balançou a cabeça e se virou para a mulher.
– Você apareceu na hora. O discurso da madrinha é em vinte minutos.
– Fred. – Ela sorriu carinhosa para o homem que falava. – Você sabe onde eu posso arranjar um kit de primeiros socorros?
– No banheiro. – O ruivo suspirou. – Não demorem, que a organizadora do casamento vai me matar se você atrasar. Demorou um século para te achar.
– Pode deixar. – sorriu e segurou a mão de , começando a andar.
Depois de algumas idas e vindas por corredores, riu. Tinha certeza de que a engenheira não fazia ideia de onde era o banheiro e estava somente perambulando na esperança de encontrá-lo, então resolveu guiá-la. Colocou a mão com cortesia sobre suas costas, e ela virou-se na hora, encarando-o com uma expressão estranha no rosto. Andaram até o banheiro mais próximo, e pediu que se sentasse sobre a privada, já pegando uma caixa e retirando algumas coisas.
– Isso vai arder e doer. – Ela disse antes de colocar um algodão embebedado de álcool sobre o corte na maçã do rosto de , e ele não pôde deixar de afastar o torço em reflexo. – , preciso que fique parado.
Ele apenas inclinou seu corpo de volta para frente e sentiu-a colocar o algodão delicadamente sobre o seu rosto. parecia tão concentrada em limpar o sangue que mal notou encarando-a. Ela estava perigosamente atraente. Isso porque sabia muito bem o que era o perigo. Vivera isso como mais ninguém.
Alguns fios de cabelo caíam sobre sua face, fazendo-a soprá-los numa tentativa de os tirar da vista. tinha feições afáveis. Tudo o que mais queria no momento era poder tocar em seu belo rosto, vê-la fechar os olhos ao passar a mão sobre sua bochecha em um gesto de carinho e depositar um beijo delicado sobre seus lábios.
– Não tem agulha ou fio aqui. – Ela falou, voltando-se para a bancada da pia. – Podemos suturar isso depois, pode ser?
Não esperou uma resposta, estava preocupada demais em achar que não tivesse tempo suficiente para limpar seus machucados também. Encostou seu torço sobre o mármore, mordendo o canto da boca e se preparando para sentir a ardência. Antes que pudesse aproximar o algodão no raspão da bala em seu braço, levantou-se e tirou de maneira gentil o objeto de sua mão.
– Posso? – Ele perguntou, apontando para o ferimento, e ela apenas estreitou os olhos e assentiu com a cabeça.
segurou seu braço com delicadeza. Sempre a tratava com muito cuidado, como se fosse feita de cristal. Quando começou a passar o algodão no local ensanguentado, gemeu de dor e olhou para cima. Esquecera qual tinha sido a última vez que sentira aquela aflição. parou imediatamente o que fazia e encarou-a com certo desespero.
– Pode continuar. – A mulher pediu, hesitante, e, ao sentir a ardência de novo, agarrou o braço de , apertando-o com força.
– Olhe para mim. – Ele pediu com ternura. – Olhe para mim, .
Demorou alguns segundos para que ela finalmente levantasse o olhar. A íris matizada de e o sorriso suave e doce lhe passaram uma sensação de segurança instantânea, que a fizeram esquecer o que se passava ao seu redor e até diminuir a pressão com que segurava . O piloto percebeu os ombros dela menos tencionados e interpretou aquilo como uma deixa para voltar a passar o algodão sobre o machucado. parecia tão concentrada em estudar os olhos de que não percebeu que ele já havia terminado de limpar seu braço.
? – abriu a porta do banheiro e ficou um pouco constrangido ao se deparar com aquela cena. Pigarreou algo e olhou para o chão.


Capítulo 14

– Gostaria primeiramente de pedir desculpas pela minha apresentação. – Passei a mão sobre o vestido e sorri sem graça enquanto todos no salão me olhavam boquiabertos, com exceção de , que sorria divertido, sentado em uma das mesas. – Tive alguns imprevistos.
Madeline parecia em choque ao me ver no palco com uma faixa ensanguentada no braço, uma marca roxa no outro, um vestido sujo e rasgado e o cabelo solto cheio de folhas ainda. Tinha certeza de que só não tinha me tirado de onde eu estava porque já era tarde demais.
– Bom, me aconselharam que o discurso da madrinha deve ser breve e agradável, com um toque de humor. Tentarei fazer o meu melhor. – Respirei fundo e fitei a taça de champanhe em minha mão. – Eu já conheci o amor. Faz a gente se sentir meio bobo e sorrir para o nada. Enlouquece-nos só de pensar na saudade que sentimos quando aqueles que amamos não estão por perto. Faz o tempo longe virar tortura e o tempo perto, uma dádiva. – Não pude deixar de encarar nos olhos ao falar aquilo, e ele abriu um sorriso encantador. Embora ele tenha desviado o olhar e começado a encarar o prato na mesa, ainda mantendo o sorriso em seu rosto, continuei a observá-lo. – Não há presente melhor no mundo do que poder dividir a vida com as pessoas especiais. Eu posso não ser o cara que vai levar a noiva para casa hoje, mas garanto que Madeline é uma das pessoas com quem quero dividir minha vida para sempre. Uma vez, uma amiga me disse que existem muitos jeitos de nos amarmos. Cinco linguagens, para ser mais específica. Elas descrevem jeitos diferentes de demonstrarmos nosso carinho e afeto e como nós esperamos ser amados do mesmo jeito que amamos o outro, mas isso nem sempre acontece, e é aí que se decide quem fica e quem vai. Para cativarmos um amor que não tem a mesma linguagem que a sua, é necessário fazer esforço, ou seja, ceder, chorar, sorrir, tentar e nunca parar de se colocar no lugar do outro. Hoje, eu gostaria de dizer que Madeline e Fred não têm a mesma linguagem, mas entendem as linguagens um do outro, cativando-as com muito carinho, e isso os torna o melhor casal que poderíamos conhecer. Se um dia eu tiver metade da felicidade que eles têm em seu matrimônio, eu tenho certeza de que não precisarei de mais nada na vida. Um brinde ao mais novo casal, Madeline e Fred Murphy.
Ergui minha taça, e todos no salão acompanharam.
– Isso foi incrível! – Maddie veio correndo em minha direção depois que desci do palco e me deu um abraço apertado, o que me fez grunhir de dor pelos machucados. – Obrigada pelas palavras meigas. Agora, o que aconteceu com você? Está mais destruída que depois que voltou da missão dele.
– Digamos que Steven deu um pouco mais de trabalho do que o esperado.
– Mas você resolveu isso? – Ela segurou em meus braços, e sua voz soou um pouco apreensiva.
– Resolvi.
! – Amélia chegou irritada. – O que caralho foi isso?
– Meu lindo discurso. – Respondi, confusa. – Agradeço o seu elogio.
– Você quer um elogio? – A médica perguntou, ríspida. – Só quando você resolver fazer algo responsável.
– O que está acontecendo? – Madeline perguntou, perdida.
– O que acontece é que essa mulher doida fez um lindo discurso de amor encarando o tempo todo. Eu te garanto uma coisa, . estava ao meu lado, e tenha certeza de que isso não passou despercebido.
Arregalei os olhos e imediatamente direcionei minha visão para , assim como Madeline. Ele ainda estava sentado de modo desleixado em uma das mesas redondas e encarava sua taça de champanhe cheia. Passou a mão sobre a base dela e respirou fundo. Eu podia notar a tristeza de seu olhar vazio da onde estava, e isso fez com que eu me sentisse extremamente mal. Um forte enjoo subiu pela minha garganta e coloquei a mão sobre minha barriga.
– O que foi que eu fiz? – Perguntei num sussurro e voltei a fitar Amélia, que agora tinha as mãos na cintura.
– Eu entendo que você tinha levado esse relacionamento a sério por meses, . – A médica voltou a falar, e pude ver Madeline me encarar preocupada. – Vocês dois pareciam ser o casal mais incrível do planeta até voltar. Foi só ele pisar naquele bendito aeroporto de Los Angeles, e você já começou a ficar estranha e depois começou a ter passeios secretos por Paris com ele!
– Do que ela está falando? – Madeline perguntou, mas não tive tempo de responder.
– Todo mundo sabe já que você ama o , então, por favor, antes que você faça alguma besteira, termine com o . Isso não é justo com ele.
– Mas eu gosto dele, Amélia. Eu realmente gosto.
– Eu sei que gosta. – Agora foi a vez de Madeline falar. Ela segurou minhas mãos e sorriu dócil. – Não duvidamos disso por um segundo, mas às vezes gostamos ainda mais de outras pessoas. Está tudo bem. Só que se você não fizer uma escolha o quanto antes, vai acabar machucando os dois.
– Mas foi quem esteve ao meu lado esse tempo todo. sequer teve a audácia de me contatar por nove meses.
– Você secretamente já o perdoou, . – Amélia revirou os olhos. Ela fazia tanto isso que eu tinha certeza de que um dia ela acabaria enxergando seu próprio cérebro.
– Por mais que eu odeie admitir isso, Amélia está certa. – Madeline sorriu sem jeito. – E, por mais que eu quisesse que você e dessem certo, não consigo deixar de sentir que você e são feitos um para o outro. – Amélia, incrivelmente, concordou com o que Maddie dizia. – Sabe, Fred e eu nos inspirávamos muito no jeito que vocês se respeitavam e cuidavam um do outro antes mesmo de serem amigos. Quando finalmente as coisas deram certo entre vocês, Fred falou que nunca viu tão feliz na vida.
Passei a mão sobre a testa e respirei fundo. Elas estavam completamente certas. Por mais que tivesse sido a pessoa mais importante para mim nos últimos meses, agora as coisas haviam mudado. Não tinha outra pessoa no mundo que fizesse meu coração bater mais rápido que . Seria no mínimo péssimo da minha parte prendê-lo em uma vida comigo sabendo que, no fundo, não era aquilo que eu queria.
– Você deveria terminar agora. – Amélia falou, decidida.
– Agora? Mas isso vai estragar o clima do casamento. – Madeline fitou a médica em reprovação.
– Olha a amargura do homem. Faz uns quinze minutos já que ele não para de encarar o copo.
– Ok, Amélia tem razão. – Madeline girou meu corpo na direção de e me deu um empurrãozinho. – Vai lá.
– Mas...
– Vai logo, . – A médica revirou os olhos.
Sorri sem graça e comecei a andar até a mesa. Se alguma parte de mim não achasse que aquilo era o certo a ser feito, não faria. Admito, no entanto, que não estava confortável em ter que fazer isso justamente naquele momento, rodeadas de pessoas, em um casamento.
pareceu tão absorto em seus próprios pensamentos que nem percebeu quando me aproximei. Assim que sentei na cadeira ao seu lado, ele pareceu sair de um transe e deu um sorriso fraco. Olhei de relance para trás, e Amélia e Madeline nos observavam curiosas.
– Acho que precisamos conversar. – Sugeri e coloquei a mão sobre a lateral de seu cabelo, fazendo um leve carinho ali. Ele apenas concordou com a cabeça e me olhou nos olhos. – Talvez nosso relacionamento já não funcione mais por minha causa. Eu te amo, . Eu te amo muito. – Pude ver seus olhos lacrimejarem, e um aperto no coração tomou conta de mim. – Mas eu não sou a pessoa certa, nunca fui.
Antes que pudesse continuar a falar, ergueu sua mão para colocar uma mecha do meu cabelo atrás da orelha e pousou sua mão levemente sobre meu queixo, contemplando cada detalhe de meu rosto como se nunca os quisesse esquecer.
– Você sempre será uma das melhores coisas que me aconteceu, mas também sempre será uma das coisas que nunca realmente foi minha, .

– Meu Deus, pare de chorar e levanta logo dessa cama, . – Amélia revirou os olhos e puxou minha coberta sem dó, o que me fez encolher no colchão.
– Você deveria ter visto a cara que ele fez. – Respondi, secando algumas lágrimas. – nem se despediu depois do casamento.
– Você esperava que ele te desse um beijo na testa e desejasse pelo melhor? Mulher, você chutou a bunda dele. – Amélia tentou a todo custo me tirar da cama, puxando-me pela perna, mas eu apenas estiquei-a, o que fez a médica cambalear para trás, e voltei encarei o teto branco do hotel.
– Mas...
– Você ainda está com a maquiagem do casamento? – Amélia estreitou os olhos para que enxergasse melhor. – Você está péssima. Agora, levante logo para tomar um banho, que o seu voo sai em duas horas, e, se você não for, eu vou no seu lugar.
– Eu sou um monstro, não sou? Eu usei o por meses.
– Se você o usou, foi inconscientemente.
– Que consolo incrível.
– Pare com isso. Relacionamentos terminam e o mundo não para de girar. – Amélia desistiu em tentar me tirar da cama e começou a arrumar minha mala. “Arrumar”. Ela basicamente estava jogando tudo lá dentro sem piedade nenhuma, e meu coração doía só de pensar nas roupas amassadas. – Você não fez nada de errado e não é um monstro. Agora, pare de fazer drama, porque você fica insuportável assim. Trate de virar a mulher perfeita e elegante que eu conheço.
Suspirei e finalmente me sentei na borda da cama, com o pijama totalmente amassado e cara borrada. Eu estava com uma dor nas pernas absurda de tanto ter corrido sob o asfalto liso ontem, e meu braço latejava.
Havia um incômodo estranho na ponta da minha cabeça. Devia ser só o sentimento de culpa se apossando de meu cérebro. Depois que me sentei para conversar com , os momentos posteriores se resumiam a breves flashes lentos de memória. Lembrava que tinha tirado foto com muitas pessoas e que o risoto de camarão estava gostoso. Muito além disso, não parecia ser real.
– Cuidado para não abrir esses pontos. – Amélia disse, segurando em meu braço, e nem havia percebido que ela tinha se aproximado.
– Fomos ao hospital? – Perguntei, passando a mão pela ferida ao encarar uma sutura tão bem feita.
– Você não lembra?
– Não muito, para dizer a verdade.
Coloquei a mão sobre a testa, e a enxaqueca de desidratação começou a surgir.
– Ok, essa sua versão me assusta. – A médica largou meu braço e se jogou na cama, esperando que eu me levantasse. – Quero a que passa dezesseis horas seguidas em um salto e deixa todos no chinelo com suas falas.
– Será que foi um erro terminar com ? – Perguntei, aflita, e senti um travesseiro ser jogado em minha cabeça. – Outch!
– Vai logo tomar banho. – Amélia apontava para o seu relógio com irritação. Revirei os olhos e fui em direção ao banheiro, resmungando algo que nem eu mesma tinha entendido. As palavras só saíam de minha boca.
Uma ducha bem quente cairia bem agora. Tirei a roupa, entrei no chuveiro, e, quando a água começou a cair sobre meu corpo, Amélia abriu a porta do banheiro sem qualquer acanhamento.
– Por que você acha que o é conhecido como ? Tipo, por que usar só uma letra?
– MEU DEUS, AMÉLIA! – Gritei, cobrindo certas partes do meu corpo, meio sem jeito.
– Nos documentos dele, também está escrito “”. Não acha isso estranho? – Ela ponderou, já se sentando sobre a privada tampada.
– Não acho que seja o momento adequado para discutirmos isso. – Peguei o roupão que estava pendurado ao meu lado e o vesti rapidamente. O tecido começou a ficar molhado porque não desliguei o chuveiro.
– Talvez nem seja a primeira letra do sobrenome dele.
– Amélia. – Comecei a falar com delicadeza. – Você poderia, por favor, me dar um pouco de privacidade?
– A porta estava aberta. – entrou após dar duas batidinhas no batente. – Eu vim...
Ele parou de falar logo que sentiu as palavras paralisarem em sua garganta. Assim que seu olhar cruzou com o meu, corou e coçou a nuca, desviando o olhar para a pia.
– Desculpe. Não sabia que você estava tomando banho, achei que só estavam conversando no banheiro.
– Está tudo bem, . – Falei, apertando ainda mais o tecido sobre meu corpo, e Amélia quase não conteve uma risada.
– Você costuma tomar banho de roupão? – Agora seu tom de voz era divertido, mesmo que um pouco ácido, e ele já não mantinha uma feição de constrangimento. Fitou-me dos pés à cabeça, embora mantivesse o mesmo olhar frio de ontem.
– Por que vocês ainda estão aqui? – Perguntei, irritada.
– Não liga, . – Amélia levantou e colocou as duas mãos sobre as costas do homem, guiando-o para fora do cômodo. – Hoje ela acordou chata.
Respirei fundo assim que a porta fechou.

– Quantas horas? – Perguntei, desanimada.
Estávamos há tanto tempo sentados naquelas cadeiras do aeroporto que meu quadril começava a doer.
– Cinco horas e vinte e seis minutos. – disse quase em um sussurro e se remexeu levemente sobre o assento.
O nosso voo para Roma estava atrasado, sem previsão de embarque. Odiava que os aeroportos não informassem a causa dessas demoras. Estava quase indo eu mesma checar se era algo no avião e, se fosse a falta de piloto, bom, havia um sentado bem ao meu lado.
No fundo, eu sabia que não era nada disso, e, mesmo se fosse, não poderíamos resolver. Provavelmente alguma coisa impedia que o avião pousasse em Fiumicino, o aeroporto da capital. Mesmo assim, eu não deixava de ficar incomodada ao ver os aviões chegarem e partirem no pátio e nós ficarmos sentados imóveis ali.
– Eu acho que vou comprar algo para comer. – Levantei-me devagar e percebi que saiu de um transe. – Quer alguma coisa?
– Eu vou com você. – Ele levantou-se também e segurou minha bolsa. Achei que ele iria me entregá-la, porém apenas esperou que eu começasse a andar. – Eu estou há muito tempo querendo um copo de café.
– Não dormiu bem? – Perguntei, meio avoada, procurando por algum lugar que tivesse mesas para nos sentarmos.
– Alguns pesadelos... Alucinações, talvez, não sei ao certo.
Franzi e a testa e virei minha cabeça levemente para o lado para poder encará-lo.
– Está tendo alucinações, major ? – Perguntei, curiosa e um pouco divertida, e ele pareceu dar um pequeno sorriso despretensioso. – O que anda vendo?
– Ultimamente, só coisas que eu não gostaria de ver. – falou um pouco mais sério.
– Como assim?
– Acho que faz parte das sequelas. – Ele coçou a nuca e desviou o olhar. Fiquei curiosa e queria fazer mais perguntas, mas ele logo apontou para uma cafeteria.
Não havia fila, então fazer os pedidos foi bem rápido. Pagamos, e o homem no caixa pediu para que nos sentássemos, já que eles levariam até a mesa. Agradeci e decidimos nos sentar em uma mesa um pouco mais afastada, mas de onde ainda pudéssemos ver as telas anunciando os voos.
recostou-se na cadeira e parecia meio distraído. Não mantinha o contato visual e também não parecia muito à vontade para conversar.
– Tem alguma coisa te incomodando? – Perguntei, apreensiva, enquanto passava a mão sobre meu vestido.
– Não. – Ele respondeu muito rápido, e logo a imagem de Amélia revirando os olhos e falando “Você está mentindo” surgiu em minha cabeça, o que me fez abrir um leve sorriso e erguer a sobrancelha. – Ok, você não acha que vai ser estranho nós dois em Roma?
Abri a boca para responder. Contudo, a mulher da mesa ao lado virou-se para nós e começou a falar aberta e alegremente, como se já nos conhecêssemos.
– Exato! Edwin e eu estávamos conversando sobre isso agora!
e eu trocamos um olhar sem entender nada. Foi muito claro que sua atitude havia sido espontânea, pois, no segundo seguinte, ela nos encarava com as sobrancelhas erguidas e uma expressão nítida de espanto e julgamento. Tinha notado que estava com marcas roxas pelo rosto e uma sutura na maçã do rosto. Tinha certeza de que a mulher só não tinha ficado mais chocada ainda porque eu parecia intacta, com meus ferimentos cobertos pelo sobretudo.
– Desculpe-me. – A estranha agora tomava um gole de sua xícara enquanto falava. – Meu nome é Heaven e esse é Edwin, meu marido. – O homem sentado em sua frente fez um breve gesto com a mão para nos cumprimentar. – Vocês também estão em lua de mel? Eu estava falando agora para ele como eu acho que Roma não é exatamente o melhor destino para uma lua de mel, vocês não concordam? Quer dizer, poderíamos estar nas Maldivas ou algum lugar com mais praia e sol.
– Mas é na Itália, amor! – Edwin parecia calmo, apesar de falar um pouco frenético. – É o país do romance, da paixão. Sem contar que você vive falando daquele filme... Qual o nome? Cartas para Julieta?
– Mas é em Verona, não em Roma, amor.
Sorri sem graça, e segurou a risada. Estava prestes a dizer que não estávamos na nossa lua de mel e sequer éramos um casal, mas Heaven voltou a tagarelar animada.
– O que vocês marcaram de fazer de romântico? Porque, até agora, Edwin sugeriu que fôssemos provar vinhos nos campos e caminhadas ao anoitecer. Estamos com dificuldade de preencher nosso tempo.
– Eu acredito que todo tempo que possam passar juntos já é algo muito bom. – Sorri, delicada, e pude sentir o olhar de sobre mim.
– Vamos velejar. Acho que ao pôr do sol e acompanhado de um vinho deve ser incrível. – disse em um tom de voz suave e olhei-o, surpresa. – Estava pensando em ir de carro. Afinal, quem não gosta de aproveitar as lindas paisagens italianas ao som de uma boa música e ao lado daqueles que amamos?
– Edwin, nós deveríamos fazer isso também. – Heaven encarou-o, animada, e eu ergui uma das sobrancelhas, fitando boquiaberta.
– Ah, nós vamos? Não sabia disso, querido. – Perguntei, divertida, e ele deu uma piscadinha.
– Era para ser surpresa, amor. Eu sei como você ama velejar. – Talvez fosse impressão, mas senti um pingo de sarcasmo em sua fala. Não posso deixar de admitir, entretanto, que soava romântico, embora eu nunca tivesse velejado de verdade.
– E o que mais faremos? – Perguntei, curiosa, apoiando-me na mesa para chegar mais perto dele, e pude ver de relance que Heaven também parecia interessada.
– Bom, um monte de coisas na cama do hotel que eu não poderia falar em voz alta. – Arregalei os olhos ao ouvir o que havia acabado de dizer e chutei-o discretamente por debaixo da mesa. Ele estreitou os olhos e voltou a falar sussurrando. – Eu sei que você está com o , mas essa talvez seja minha única lua de mel, ok? Deixe-a parecer boa, pelo menos.

– Você consegue acreditar nisso? – Perguntei, animada, olhando pela janela do táxi.
Não fazia nem vinte minutos que havíamos pousado em Roma, e eu já estava completamente apaixonada. A arquitetura era algo que captava minha atenção em particular, e eu estava amando o jeito que todos pareciam andar tão tranquilos na rua, como em um conto de fadas, talvez, só que menos místico.
– Nada mal. – respondeu, inclinando o corpo para olhar pela mesma janela que eu.
– Chegamos. – O taxista anunciou assim que parou em frente a um hotel muito charmoso.
– Quanto ficou? – já tirava a carteira do seu bolso.
– O translado é por conta do hotel. – O motorista respondeu, e eu automaticamente ergui uma das sobrancelhas.
– Que chique. – Sussurrei para , e ele apenas assentiu com a cabeça, já abrindo a porta. – Será que nossos amigos sabem que estão pagando pela nossa viagem de táxi também?
Assim que dois homens de terno abriram a porta de entrada para mim, o choque não poderia ter sido maior. A faixada definitivamente não condizia com o conteúdo interno do hotel. Por fora, o luxo, a grandiosidade, a simetria e os pilares de uma construção de raiz etrusca e grega; por dentro, uma decoração bastante moderna.
– Todos os hotéis nos quais nos hospedaremos serão incríveis a partir de agora? – perguntou enquanto andávamos até o balcão de recepção.
Não respondi, interessada demais em observar o cenário ao meu redor.
– Boa noite, como posso ajudar? – A recepcionista disse, sorridente, olhando única e exclusivamente para , o que me fez segurar a risada e voltar à realidade.
– Boa noite. – Respondi antes que pudesse abrir a boca. – Nosso voo atrasou e perdemos a hora do check-in.
– Não tem problema. Passaportes, por favor. – A mulher mexeu por alguns minutos no computador, algumas vezes desviando seu olhar para encarar , o que gerava algumas reviradas de olhos por minha parte. Quanta descrição. Até aí não foi novidade nenhuma quando ela abriu um enorme sorriso ao saber que não dividiríamos o mesmo quarto. – Senhor , quarto trezentos e três.
Esperei que ela continuasse a falar, porém tudo que fez foi escorregar bem devagar um cartão dourado sobre o balcão púrpuro com o dedo indicador na direção de . Ele parecia completamente vidrado no gesto e ficou muito claro que havia capturado a atenção do piloto. Isso é sério? Inclinei levemente a cabeça e bufei. Quando voltei o olhar para a recepcionista, ela estava com um sorrisinho que conseguiu me irritar profundamente.
– O meu quarto é o trezentos e quatro? – Perguntei, sem paciência nenhuma.
– Sim, senhora. – Ela respondeu, me olhando dos pés à cabeça.
– Sabe – Apoiei meus braços sobre o balcão e um sorriso dissimulado surgiu em meu rosto. –, você deve achar estranho eu e meu marido não dividirmos o mesmo quarto, – arregalou os olhos, surpreso, e a recepcionista corou imediatamente. – Mas é porque ele ronca muito alto à noite e eu não suporto.
– O quê? – O homem ao meu lado estava boquiaberto agora.
– Por favor, querido, por que outro motivo você acha que eu durmo em outro quarto?
, do que você está falando? – , agora, sorriu divertido.
– Me deixa te contar. – Segurei o riso e encarei a mulher atrás do balcão, que estava totalmente sem jeito. – Às vezes, ele também solta uns puns que nem reza braba, querida.
– Você disse que gostava. – cruzou os braços e não conseguiu manter a expressão séria.
– Eu minto, querido. E não só sobre os puns. – Levantei uma das sobrancelhas e peguei o cartão dourado que estava em cima do balcão, junto com os passaportes.
Sorri em agradecimento e não esperei mais dois segundos para voltar a andar em direção ao elevador. pareceu um pouco perdido, fitando a bela mulher atrás do balcão, que já nem sabia para onde olhar, e saiu correndo quando percebeu que eu estava prestes a apertar o botão e as portas se fechariam.
– O que foi isso? – Perguntou, curioso, e eu ajeitei minha postura, encarando as portas do elevador se aproximando para, enfim, começarmos a subir.
– Desculpe, eu atrapalhei alguma coisa?
– Por que disse que somos casados? Não somos casados.
– Não sei te dizer por quê. – Continuei olhando para frente, sem vontade de encarar. A verdade era que eu sabia muito bem por que havia feito aquilo. Aquela loira falsa com um bumbum arrebitado e redondo estava me irritando. – Só falei. Por quê? Estava interessado?
– Talvez. – Ele respondeu rápido e desistiu de me fitar quando percebeu que eu não retribuiria o gesto. – Sim, eu estava... Pare de fazer essa cara de quem está julgando.
– Meu papel não é julgar, . – Após eu falar, de imediato a porta do elevador abriu, e comecei a andar corredor adentro.
– Se esse não é o seu papel, você não está seguindo o roteiro direito. – Parei de andar para encará-lo. Do que ele estava falando? – Eu disse que sim, e você ergueu a sobrancelha na hora.
– Claro que não. – Falei antes mesmo de pensar se realmente tinha o feito. Será que eu tinha erguido?
– Você acabou de fazer de novo!
Revirei os olhos e voltei a andar, parando em frente à porta com o número 304. deu uma risada debochada e parou de costas para mim, em frente à sua porta.
– Jantar daqui a meia hora?
– Não se atrase. – Respondi antes de me trancar dentro do quarto.
Respirei fundo e encostei sobre a parede, olhando para cima. Depois de quase dez horas esperando sentada no aeroporto, um bom banho quente seria perfeito. Tirei os saltos e larguei-os ali mesmo, indo até minhas bagagens, que estavam dentro do closet. Peguei as primeiras peças de roupas que vi pela frente e entrei no banheiro. Não demorou muito para que eu ligasse a torneira da banheira e esperasse-a quase inundar. Assim que a água parou de correr, bem próxima à borda, coloquei meu pé para dentro e senti um calafrio percorrer todo meu corpo.
– Eu sinto que poderia morar aqui a partir de agora. – Falei para eu mesma ao sentir cada músculo tensionado relaxar.
A intenção era ficar pelo menos uma hora imersa na água, porém meu celular começou a tocar ao lado da pia. Suspirei e levantei-me. Se eu não estivesse tão relaxada como agora, com certeza o esperaria parar de tremer e perderia a ligação.
– Alô? – Falei, tentando me secar com a toalha com apenas uma das mãos, enquanto a outra segurava o celular.
Vai viajar e esquece da existência das amigas, não é? – A voz de Amélia soava sarcástica.
– Nos vimos hoje de manhã.
Meu voo foi ótimo, obrigada por perguntar.
– Mas...
Então, nunca achei que diria isso, mas queria que o casamento durasse para sempre. O quartel está cheio de gente para atender, e eu estou com zero paciência para isso hoje.
– Você pousou hoje e já voltou a trabalhar?
Elijah está me castigando por eu ter inventado que tinha uma consulta médica no dia que ele tinha uma reunião da missão super secreta e chata para ele não levar uma bronca enquanto vocês idiotas tomavam sorvete. No dia da feira de adoção, lembra?
– Lembro. Obrigada, inclusive.
Você não está vendo que estou no telefone?
– Desculpe, o que disse? – Perguntei, confusa, tentando colocar meu vestido. Fechar o zíper traseiro com uma mão só seria impossível, tinha certeza.
Tem uma enfermeira otária pedindo para eu me concentrar na cirurgia. – Eu literalmente pude imaginar Amélia revirando os olhos.
– Você está em cirurgia? – Perguntei, chocada. – Amélia, eu vou desligar.
Desligar? Mas eu acabei de te ligar para conversarmos.
– Você tem que se concentrar!
Argh, por favor, nada que eu não possa fazer enquanto converso no celular. Por que ninguém reclama se eu estiver conversando com alguém na sala de cirurgia, mas reclamam quando eu converso no celular?
– Tchau, Amélia.
Não! Espera, não desliga ainda. Preciso te fazer uma pergunta. Você também sonha em ser atropela por um carro?
– O quê? – Meu tom de voz saiu como de alguém incrédula, e parei imediatamente de colocar meu brinco, encarando meu reflexo no espelho. – Do que você está falando?
Nada grave, sabe? Ficar duas semanas internada, de cama, assistindo televisão o dia todo, comendo gelatina, e tudo isso ainda sendo bancado pelo seguro. Você também não tem essa vontade?
– Não. – Respondi em uníssono junto a uma das enfermeiras na sala. Provavelmente a que segurava o celular de Amélia enquanto ela executava a cirurgia. – Meu Deus, você está completamente alienada.
Desliguei o celular sem ao menos me despedir. Às vezes, a médica me assustava. Saí do banheiro e me sentei sobre a colcha macia que cobria a cama. Abaixei-me para afivelar meu salto e, logo que terminei, ouvi três batidas na porta.
– Um minuto. – Falei um pouco mais alto e andei apressada até o banheiro. Chequei uma última vez se meu batom não estava borrado e sorri para minha imagem refletida no espelho.
Peguei minha bolsa, abri a porta e dei de cara com . Ele olhou-me dos pés à cabeça e tencionou os ombros. A verdade era que, enquanto seus olhos me estudavam, não pude deixar de fazer o mesmo também. estava simplesmente espetacular. Bom, ele poderia vestir um saco de batatas e continuaria bonito, não podíamos negar. Seu cheiro amadeirado logo invadiu meu quarto, e não consegui não fechar os olhos por breves segundos.
– Você está linda, . – sorriu cordial.
– E você não está nada mal. – Devolvi um sorriso divertido, e ele colocou a mão sobre o peito, fingindo estar com o ego ferido.
– Então, onde gostaria de ir? Uma das camareiras me contou que tem um pequeno restaurante na esquina que serve as melhores massas. – Comecei a andar em direção ao elevador, e ele me acompanhou.
– Nada mais justo do que provarmos uma pizza ou um macarrão à carbonara no coração da culinária, não?
– Concordo, mas admito que estou mais ansioso por um pesto.
– Essa conversa está me deixando com mais fome ainda, se isso for possível. – Sorri, e minha barriga fez um barulho na hora que terminei de falar.
deu uma risada, e a porta do elevador abriu. Ele fez um gesto para que eu entrasse primeiro e agradeci.
O restaurante era literalmente na esquina do bloco em que estávamos hospedados. Estava esperando um lugar bem menos chique e romântico, porém não estava surpresa, considerando que o hotel sete metros ao lado era quase uma mansão das Kardashians por dentro. Se tivesse uma decoração mais clássica, eu com certeza diria Palácio de Buckingham.
– Por favor, sigam-me. – Um homem de terno tirou-me da distração em meus pensamentos e comecei a segui-lo enquanto ele nos guiava até uma das mesas.
Agradeci quando ele puxou uma das cadeiras para que eu me sentasse e peguei um dos cardápios que já estava sobre a mesa. Não tive muito tempo para olhar para o menu, pois sugeriu algo interessante.
– Pesto, carbonara, brusquettas para acompanhar e um vinho? – Assenti com a cabeça, e ele pareceu satisfeito, fechando seu cardápio. – Talvez esse seja o pedido mais rápido que já fiz na vida.
Sorri e chamei o garçom com um gesto suave. Não demorou muito para que ele anotasse tudo e nos trouxesse taças com água logo em seguida.
– Então, qual era o livro que você estava lendo no avião? – perguntou, curioso, e eu ergui uma das sobrancelhas, surpresa que ele tenha sequer prestado atenção no que eu fazia.
– Jane Austen. – Respondi, sorrindo e apoiando-me sobre a mesa para chegar mais próximo dele. – Conhece?
– Conheço. Orgulho e Preconceito talvez seja sua obra mais famosa, mas tenho que dizer que a minha preferida é Persuasão.
– Então, você gosta de ler? – Perguntei, interessada. – Gosta de bons autores britânicos? Jane Austen, Shakespeare, Dickens...
– Dickens? Dickens é o que eu leio para meu filho. – falou, provocativo, com um sorriso instigante em seus lábios. – Por favor, sejamos razoáveis.
– Emily Brontë. – Falei e franzi a testa.
– Escreve bem, mas a verdade é que O Morro dos Ventos Uivantes só ficou famoso porque ela idealizou um homem que não existe. Heathcliff não existe.
– Discordo. – Olhei-o, incisiva, quase indignada, e só aumentou seu sorriso desafiador. – Oscar Wilde.
– Ele era irlandês.
– Daniel Defoe.
– Finalmente algum razoável.
– Robson Crusoé do Defoe pode ser um livro canônico, mas Emily Brontë tem uma leitura mais cativante. – Falei, afastando-me para encostar na cadeira. Se o objetivo de era me deixar interessada e um pouco competitiva, aquilo definitivamente estava dando certo. – Quais são os autores que você gosta?
– Virginia Woolf, Ernest Hemingway...
– Hemingway era americano.
– Você perguntou os autores que eu gosto. – Ele deu um sorrisinho provocador, e eu apenas o encarei com a sobrancelha erguida. – Hemingway foi o cara mais incrível do mundo. Participou de duas guerras mundiais, sobreviveu a dois acidentes de avião, deu nome a um corpo celeste que orbita o sol, teve seus livros queimados pelos nazistas e ainda ganhou o Prêmio Nobel da Literatura. Se eu fosse um terço desse homem, eu seria a melhor pessoa no planeta atualmente.
– O cara mais incrível do mundo tem que dividir o pódio com Gauss, Newton, Maxwell...
– São pódios diferentes. – apoiou um dos cotovelos sobre a mesa, completamente envolto na conversa. – Você e sua admiração inexplicável por físicos. Literatura faz você sentir coisas, sabe?
– Física também faz. Um cálculo errado, e eu quero ver você não sentir medo quando sua aeronave não responder ao seu controle do manche. – Sorri vitoriosa ao ver abrir a boca e não conseguir dizer nada.
– Quando você aprendeu tanto sobre literatura inglesa? – mudou de assunto, genuinamente surpreso.
estudou literatura inglesa por alguns anos. – Respondi, desviando o olhar. passou a mão na nuca e recostou-se na cadeira de novo. Quando estava voltando minha visão para o homem sentado à minha frente, meus olhos travaram em um ponto específico do local. A entrada. – Meu Deus, isso não é possível.
– O quê? – perguntou, confuso, e redirecionou seu olhar para onde eu observava, virando seu torso para trás. – Que coincidência.
Lá estavam Heaven e Edwin, o casal que conhecemos no aeroporto na França. Eles pareciam bem animados. Fiquei tão vidrada na cena que Heaven deve ter sentido meu olhar sobre si e notou que estávamos ali. Apontou para mim, chamando o marido, e, quando virei o rosto para o lado oposto, já era tarde demais. O garçom já os guiava para a mesa ao lado da nossa. Sorri nervosa e ajeitei minha postura na cadeira.
– Eles estão vindo para cá. – Falei rápido, e pareceu não entender o que estava acontecendo. – Aja como se fôssemos casamos.
– Do que você está... Heaven! Edwin! – estava surpreso ao ver o casal ali. Sentados na mesa ao lado. Na mesa ao lado. Levantou-se para cumprimentá-los, e eu fiz o mesmo. – Que bom revê-los!
– Uma surpresa muito agradável, não acham? – Heaven falou dócil, direcionamento o olhar para a minha ferida no braço, e logo um sorriso sem graça surgiu em seu rosto, como se estivesse incomodada.
– Realmente. – Respondi, simpática, enquanto voltávamos a nos sentar.
– Quais as chances, certo? – A mulher começou a tagarelar e não pude deixar de notar que e eu seguramos o riso. – Edwin e eu rondamos algumas dezenas de quadras até achar um lugar que gostássemos, não é, amor?
– É. – O homem parecia mais interessado no menu de vinhos do que na conversa que surgia.
– E, então, sobre o que vocês falavam? – Ela colocou sua bolsa sobre a mesa e virou-se para nós em seguida.
– Estávamos falando sobre literatura inglesa. – respondeu de maneira calma e educada antes de tomar um gole de água e prosseguir. – Minha esposa acha que Emily Brontë foi uma escritora melhor que Daniel Defoe. O que você acha, Heaven?
– Eu não sei, não gosto muito de ler. – Ela pareceu um pouco desconcertada. – Vocês também sentem que as pessoas aqui não se vestem tão bem quanto dizem?


Capítulo 15

– Esse talvez tenha sido o jantar mais demorado que já tive. – falou com as mãos nos bolsos, encarando o chão enquanto sorria.
Havíamos acabado de sair do restaurante, e Heaven e Edwin fizeram questão de nos acompanhar até o último minuto. Estávamos com tanto medo que eles soubessem onde estávamos nos hospedando e fossem nos visitar no dia seguinte que falamos que iríamos voltar a pé e seguimos na direção contrária à que devíamos.
– Quando ela começou a falar sobre o que ela carregava na bolsa, quase não contive o suspiro. – Falei, corando, e riu. – Mas eles são fofos, na medida do possível.
– Na medida do possível. – frisou e arregalou os olhos. – Quero dizer, quem pergunta sobre os parentes de pessoas que você nem conhece?
– Essa foi uma conversa estranha, mas acho que nós nos acostumamos com essa coisa militar estranha de ninguém saber muito sobre ninguém.
Adentramos uma praça larga, com uma fonte muito grande bem no centro e alguns restaurantes e lojas ao redor. Ao mesmo tempo que o lugar parecia cheio, ele também estava vazio. Não sei explicar muito bem, talvez fosse o fato de todos estarem muito concentrados e interessados no que faziam. Havia somente três pessoas perto da fonte, duas sentadas em sua borda, conversando, e a outra tirando foto dela. Em um consenso mútuo, e eu paramos para observá-la. A água cristalina caía em cascatas, que saíam das bocas de anjos. Anjos esculpidos em pedra maciça e já desgastados pela ação inevitável do tempo. O pedestal que sustentava as criaturas cândidas parecia ter sido modelado pelas mais delicadas mãos, como tudo nessa cidade, e os quatro holofotes posicionados radialmente em seu envolto, iluminando-a de forma majestosa, só frisavam isso.
– Vem. – segurou minha mão sem qualquer permissão e começou a andar de modo apressado em direção à fonte.
– O que você está fazendo? – Perguntei, confusa, enquanto tentava acompanhar seus passos.
O olhar dele que recebi em seguida tinha urgência e até certo divertimento. Paramos a um metro da borda, e me encarou animado.
– Me dê seus sapatos. – Ele pediu, calmo.
– O quê?
– Seus sapatos! Rápido!
Franzi a testa e olhei para baixo, na intenção de encarar meus pés. Por que diabos ele queria meus saltos? Voltei minha visão para o rosto de de novo, sem entender absolutamente nada, e ele estendeu sua mão para receber o par.
– Não. – Afirmei, incrédula. – O que você vai fazer com eles?
– Não se preocupe, você os terá de volta. – Ele revirou os olhos e segurou o riso sem que eu percebesse.
– Não, . – Comecei a rir só de pensar que a situação estava estranha e repeti minha pergunta. – O que você vai fazer com eles?
– São só sapatos. – O homem sorriu convincente e aproximou ainda mais sua mão erguida. – E eu já disse que você os terá de volta.
Suspirei, sabendo que ele não desistiria da ideia se estivesse tão focado nisso quanto aparentava. Apoiei minha mão em seu braço para não me desequilibrar, já levantando um dos pés para desafivelar o salto. deu um sorriso vitorioso, embora tímido, e agora segurava o par em suas mãos, enquanto eu sentia o chão frio de pedra contra meus pés descalços. Eu ia repetir a pergunta pela terceira vez, mas, ao vê-lo jogando meus saltos dentro da água, fiquei boquiaberta, completamente sem palavras e arregalei os olhos, vendo-os afundar.
– O QUE VOCÊ FEZ? – Gritei, histérica, e algumas pessoas que andavam por perto se viraram para me encarar.
não respondeu, apenas tirou seu calçado e colocou-os ao seu lado no chão. Andei apressada até a borda, apoiando-me nela para tentar enxergar melhor onde ele havia arremessado o objeto.
– Eu acho que você ficou louco. – Sussurrei com os olhos ainda arregalados.
– Agora você vai ter que entrar para pegar. – disse a centímetros de meu ouvido. Minha nuca arrepiou instantaneamente, porém eu ainda estava muito chocada para reagir. Não conseguia entender o que ele tinha acabado de fazer.
Sem esperar qualquer oposição da minha parte, entrou dentro da fonte, caminhando devagar sobre a água e sentindo o corpo finalmente relaxar com a temperatura baixa do líquido. Quando chegou perto de uma das cascatas, abriu não somente os braços, mas um sorriso genuíno de felicidade. Fechou os olhos para aproveitar o momento, e ninguém ao redor sequer parecia perceber que havia um homem dentro da fonte.
– Você deveria sentir isso. Não há nada mais libertador do que perceber que estava preso.
– Você está infringindo a lei, ! – Falei, contida, para que não chamasse a atenção, ainda assim mantendo um tom de voz irritado.
– É exatamente disso que estou falando. Liberdade é você poder fazer o que quiser, mesmo que seja... errado.
– Eu vou embora. – Bufei, incrédula, e cruzei os braços.
– Fiquei à vontade para ir a pé. – voltou a andar devagar, como se quisesse gravar cada pedacinho daquele sentimento que lhe invadira o peito, e falou com sarcasmo. – Literalmente.
Olhei para meus pés descalços e desviei o olhar para o céu. Não acredito que estava prestes a entrar naquela fonte. Eu não poderia, entretanto, só largar meus saltos debaixo da água e voltar assim. Estava sem muitas opções no momento.
Se algum guarda nos visse ali, seria, no mínimo, algo muito arriscado. Duas pessoas que serviam ao exército americano quebrando regras em outro país, não importa o quão pequena seja.
– Eu espero que você saiba que esse é o momento que menos gostei de você até agora. – Repreendi-o amargurada ao sentir um calafrio percorrer minha espinha por causa da temperatura.
A água vinha até meu joelho e estava até que difícil de me movimentar. Talvez fosse o frio, talvez fossem algumas das moedas álgidas lá depositadas tocando minha pele. Andei o mais rápido que consegui até o sapato e, quando finalmente me abaixei para pegá-los, senti respingos de água caírem sobre meu corpo. Não foram poucos. Levantei minha cabeça para dar de cara com um sorriso debochado de , que agora tinha a mão nos bolsos e a calça toda encharcada.
Fiquei parada por alguns segundos, encarando-o. Em um movimento repentino, joguei água em cima dele, que, em um reflexo, ergueu os braços de modo muito veloz para que ela não caísse em seus olhos. , no entanto, perdeu o equilíbrio e, enquanto caía, tentou se segurar em algo, mas só havia água ao seu redor. O barulho que seu corpo fez ao chocar com a água não passou despercebido, e, agora, algumas pessoas que jantavam nos fitavam de longe.
Ri sem pudor algum quando me deparei com a imagem de um completamente ensopado, sentado sobre moedas no fundo da fonte, e pressionei meus saltos contra o peito. O riso não durou muito tempo, pois ele logo abriu um sorriso maldoso. Arregalei os olhos quando me dei conta de que seu olhar era um misto de vingança e diversão e comecei a gritar e correr o mais rápido que pude em direção à borda, que estava atrás de mim.
Faltando poucos centímetros para que eu pudesse sair dali, senti uma onda gélida tomar conta das minhas costas, da parte de trás das minhas pernas e de meu cabelo. Agora era eu quem estava consumida pela água. Virei para trás, boquiaberta, e gargalhava, com a mão na barriga, já de pé. Rebati novamente jogando o líquido em sua direção, mas ele se desviou. Os próximos segundos foram nós dois correndo um do outro, tentando se desvencilhar dos jatos, rindo e gritando, e um murmurinho crescente de pessoas que se aproximavam da fonte para observar a cena que causávamos. Estávamos ensopados dos pés à cabeça.
A única coisa que me fez parar foi quando ouvi um som de apito ao fundo. e eu, assim como muitas das pessoas ali, desviamos o olhar para um dos guardas que corria até nós, tomado pelo desespero e pela raiva. Com toda razão, convenhamos. Arregalei os olhos e senti a mão de segurar a minha, puxando-me para que saíssemos o mais rápido possível.
– Meu salto! – Olhei para trás, onde agora havia somente um dos pés.
– Sem tempo. – fez uma careta engraçada, pegando os seus sapatos do chão com a mão livre. – Amanhã compramos outro.
Ele começou a correr, ainda segurando minha mão, enquanto eu olhava para trás, alterando minha atenção entre a fonte e o homem bravo uniformizado, que ainda nos perseguia com muita vontade. Melhor perder um salto do que passar uma noite na cadeia italiana, não? Virei minha cabeça para frente de novo, sentindo todo o peso da água em minha roupa me atrasar. parecia nem ligar para isso, muito pelo contrário, corria como se estivesse sem peso nenhum sobre seus ombros. Tinha treinado isso por anos, não tinha? Finalmente servira para algo.
Corremos por mais tempo do que achei que precisaríamos, até que não pudéssemos mais observar o guarda atrás de nós. parou de andar de repente, quase fazendo com que meu corpo trombasse no seu. Ele olhou de relance para a parede de um restaurante à nossa direita, para nossa frente, que continuava em uma rua mal iluminada e relativamente cheia, e para nossa esquerda, por onde os carros passavam.
– Me desculpe. – Ele pediu, me olhando desconcertado.
– O quê...
Não consegui terminar a pergunta. agarrou-me pela cintura com força, prensando-me contra a parede atrás de mim. Seus lábios foram ao encontro dos meus com uma voracidade quase desesperadora. Ele não chegou a aprofundar o beijo, mas pressionava sua boca contra a minha como se sua vida dependesse daquilo, com uma urgência que era correspondida por mim, apesar de eu estar surpresa com o ato repentino. Fechei os olhos em reflexo quando ele colocou as mãos frias sobre minhas bochechas. Agarrei sua blusa encharcada pelas costas, e ele gemeu baixo com o contato inesperado. Uma de suas mãos agora segurava meu cabelo sem muita delicadeza, e já não importava mais em nos esconder do guarda.
Afastei um pouco minha cabeça, distanciando nossos lábios também, porém, ainda assim, ficando perto o suficiente para que as pontas de nossos narizes se tocassem. Encarei-o com os olhos levemente surpresos, com o coração batendo muito rápido, e apenas respirava de maneira pesada, como se procurasse pelo ar que não chegava aos pulmões. Ficamos nessa posição por alguns segundos, eu me atreveria a dizer um minuto completo, até as batidas do meu coração voltarem ao ritmo normal.
– Acho que ele já foi. – virou a cabeça para se deparar com um guarda correndo apressado, já no final da rua.
– Pode me soltar então, . – Pigarreei e encarei o chão, corando um pouco.
– Oh, claro. – Deu um passo para trás e passou a mão na nuca, sem coragem de me olhar. – Desculpe. Não tive outra ideia.
– Está tudo bem. – Agora encarava o guarda sumir de vista. – Pelo menos não fomos pegos.
limitou-se a concordar com a cabeça, e eu comecei a respirar com um pouco mais de afogo, finalmente podendo recuperar o fôlego da corrida. Quando o efeito da adrenalina começou a passar, gemi de dor e me apoiei sobre a parede atrás de mim. Meus pés descalços somados ao chão sujo e áspero de Roma com certeza não faziam um bom par romântico.

Ouvimos a porta abrir novamente. Desviei o olhar de meu pé que havia sido limpo por uma das enfermeiras há poucos minutos e encarei o homem vestido todo de branco.
– Então, você feriu o pé correndo na rua? Correndo descalça. Na rua. – O médico perguntou em seu inglês com um sotaque bem marcado e ergueu uma das sobrancelhas, pensando que o pronto-socorro na madrugada continha casos estranhos. Sorri sem graça, e pareceu segurar o riso ao meu lado. – Você correu uma maratona?
– Não, somente alguns quarteirões. – respondeu, sério, e o médico fechou a porta atrás de si.
– Não me parece. – O homem de jaleco branco franziu a testa e olhou minha ficha. Eu não sabia dizer se ele exalava sarcasmo ou surpresa, sendo sincera.
Ele se sentou em um banquinho com rodinhas, vindo até mim com uma prancheta, e começou a analisar meus pés, enquanto eu estava sentada, com as pernas esticadas sobre o leito.
– Não é nada grave. Alguns cortes e assaduras. – O doutor levantou, colocando luvas de plásticos e indo até um balcão que havia ali. Começou a encher uma bacia com água, e e eu nos entreolhamos. Voltei a observar o que o médico fazia com certa curiosidade. Ele adicionou um pó branco ao líquido e começou a misturar. Logo uma coisa transparente e gosmenta começou a se formar, e eu fiz uma careta de desgosto. – Coloque o pé aqui pelos próximos quinze minutos. Daqui a pouco estou de volta para te liberar. – Então, começou a andar até a porta depois de colocar a bacia no chão próximo a mim, já retirando as luvas. – Basicamente minhas recomendações são não usar saltos por um dia no mínimo, tentar manter o pé sempre limpo e não voltar andando até o hotel hoje, ok? Se sentir dor, um analgésico dá conta, mas vou te passar uma receita com anti-inflamatório só por precaução.
– Se estivéssemos em um livro da Emily Brontë, o Heathcliff entraria pela porta daqui a quinze minutos com um buquê de rosas e te carregaria no colo até o hotel. Podemos esperar se quiser. – cruzou os braços ao ouvir a porta sendo fechada e sorriu discreto. – Se estivéssemos em um livro do Defoe, por outro lado, você nem sentiria dor. Seria tratado como um mero arranhãozinho.
– Não tente vir com gracinhas, . – Revirei os olhos, divertida. – A culpa é sua de eu estar aqui.
– Minha?!
– Não seja bobo. Quem começou tudo foi você, jogando meu salto na fonte.
– Se me recordo bem, quem começou tudo isso foi o Henry bêbado. – Dei um tapa leve em seu braço quando ele disse isso e mergulhei o pé naquela gosma duvidosa, que, inclusive, não tinha o cheiro mais agradável do mundo.
– Meu Deus, isso é muito bom. – Fechei os olhos ao sentir grande parte da dor ser aliviada.
– Sério? Posso testar também? – ergueu a sobrancelha, sugestivo.
– Pessoas que conseguiram colocar o sapato no meio do caminho não têm esse direito, sinto muito. – Ri da expressão de insatisfação dele, que começou a andar devagar até a bancada, para observar o que tinha ali.
ficou de costas para mim, totalmente concentrado no que fazia. Encarei-o dos pés à cabeça. Seu cabelo já estava seco e caía bagunçado sobre seu rosto corado. As costas pareciam relaxadas, muito diferente do costumeiro. Daquele jeito, ele até parecia indefeso. virou a cabeça para me encarar, e eu desviei o olhar rapidamente, fingindo que analisava alguma coisa na bandeja metálica ao meu lado. Um sorriso encantador escapou de seus lábios, e ele voltou a olhar o balcão.
– Acho que seria interessante se você não contasse ao o que aconteceu hoje. – Ele ponderou, sugestivo, ainda de costas para mim.
– Não se preocupe, será um de nossos segredos. – “E eu não precisaria contar ao de qualquer maneira, não estamos mais juntos” era a parte que eu deveria adicionar, mas resolvi omitir, olhando o chão com pesar.

Olhei ao meu redor e não pude deixar de ficar surpresa. Eu andava sobre o ar. Sobre o ar. Cada passo gerava uma distorção onde eu pisava, como um pingo caindo na água. Olhei para baixo. Somente nuvens e mais ar. Andávamos sobre o nada. Andávamos? Olhei para o lado, e encarava o sol à nossa frente. O astro não costumava estar amarelado como nos dias que mais brilhava. Estava branco, tão branco que machucava minhas retinas. Olhei confusa para os lados. O silêncio do local era mortal, e, mesmo assim, nossos passos não podiam ser ouvidos.
– Onde estamos? – Perguntei, confusa, agora encarando nossas mãos dadas.
parecia tão tranquilo, tão em paz.
– Na eternidade. – Sorriu, sem desviar o olhar.
– Por que a eternidade parece o céu?
– Porque a eternidade se parece com aquilo que mais queremos, o que eu mais quero, neste caso. Você não gostaria de passar o resto do tempo onde te agrada?
– Por que estamos aqui?
– Porque eu morri. – Disse simplesmente, e encarei-o confusa. Ele parecia bem vivo andando sobre o nada, na minha perspectiva.
– Eu morri também? – Perguntei, começando a achar um pouco de graça naquela incoerência toda.
– Não. – Um riso baixo escapou de seus lábios.
– Então, o que estou fazendo aqui? Se você morreu, eu também morri. Estamos na eternidade juntos, não estamos?
, de modo curioso, parou de andar e me encarou pela primeira vez, expressando um sorriso calmo. Não parecia nem um pouco incomodado como eu, que não sabia para onde olhar ou o que sentir além de confusão.
– Estamos aqui para nos despedirmos.
– Nos despedirmos? Nos despedirmos de quem? Por quê?
– Fechamento, creio eu. – Voltou a andar, puxando minha mão.
– Para onde vamos?
– A lugar nenhum.
– Eu não estou entendendo, . – Parei subitamente e segurei sua mão com firmeza para que ele também o fizesse.
– Não precisa. Não vai nem se lembrar. – Ele depositou um breve beijo sobre minha testa. – Tchau, . Eu vou te esperar, você sabe. Quando voltar, estarei bem aqui.
– Para onde você vai?
– Não é seu tempo ainda. – Ele sorriu como se tivesse acabado de contar um segredo a quem não deveria e virou-se de costas, retomando a caminhada sem mim.

Então, eu acordei. Meu corpo suado grudava no lençol branco, e a única coisa que iluminava o quarto era um fio de luz que conseguia escapar entre as grossas cortinas.
– O que foi isso? – Perguntei baixo enquanto respirava fundo e encarava o teto com os olhos estreitos.
Eu havia sonhado com a morte? Eu havia sonhado com ? O que estava acontecendo?
Sentei-me sobre a borda da cama com o corpo dolorido, e uma fina gota de suor atravessou meu rosto. Olhei de relance para o relógio da cabeceira. Exatamente oito horas e trinta minutos. Levantei sem pressa e abri a cortina, porém logo fechei os olhos em arrependimento. O sol estava ardente, e minhas pupilas já eram. Pisquei algumas vezes, tentando focar a vista, e pude ver algumas pessoas andando na rua.
Fui até minha mala e retirei minhas roupas de lá. Tomei um banho bem rápido e muito quente, o que me obrigou a passar a mão no espelho para que eu pudesse me enxergar. Fiquei surpresa com o reflexo. Minhas bochechas estavam mais rosadas, minha pele, um pouco mais uniforme, e as costumeiras olheiras tinham diminuído consideravelmente. Eu nem aparentava tanto cansaço como o usual.
– Será que alguma coisa estranha vai acontecer? – Perguntei, inclinando levemente a cabeça.
Balancei a cabeça para espantar alguns pensamentos e comecei a me trocar. Depois de encarar toda a rotina automática do hidrante, perfume, protetor solar e outros, abri a porta do banheiro e senti um pequeno choque térmico percorrer meu corpo por conta da temperatura mais fria que o ar condicionado mantinha no quarto.
– Meu Deus, você está de jeans e tênis? Eu achei que você nem tinha isso no guarda-roupa. – falou, segurando o controle da televisão enquanto estava deitado na cama.
– Puta que pariu, . – Coloquei a mão sobre o peito e senti o coração parar de bater por alguns segundos. – Como você entrou aqui? – Virei para trás na intenção de visualizar a porta, que estava fechada.
– A recepcionista perguntou se eu não queria uma chave do quarto da minha esposa, e eu aceitei.
– O quê... – Juntei as sobrancelhas em confusão, mas logo me lembrei que fingi sermos casados ontem. – Quando?
– Hoje de manhã, quando eu saí. – Ele respondeu, dando de ombros e mudando de canal. Ia perguntar para onde ele havia ido, mas foi mais rápido. – Você viu que estamos no noticiário?
– O quê? – Dirigi meu olhar à televisão o mais rápido que pude e cruzei os braços.
“Turistas invadem fonte em praça italiana na noite de ontem e largam apenas um par de sapato para trás” era o que estava escrito embaixo do jornalista da CNN. Arregalei os olhos ao ver o guarda sendo entrevistado e segurando meus sapatos. parecia se divertir muito com a situação, não conseguindo segurar a risada.
– Não faça essa cara. – Ele pediu, e eu ergui uma das sobrancelhas. – Eu compro outro.
– Era um Louboutin. – Encarei a tela, fazendo minha melhor expressão de saudades.
– O que é isso?
– Algumas centenas de dólares. – Respirei fundo, e me olhou em choque.
– Seus pés fazem parte de alguma elite?
Revirei os olhos e sorri divertida, já pegando minha bolsa para sair do quarto. levantou-se rapidamente da cama e me seguiu.

– É lindo, não é? – Perguntei para , olhando um dos quadros de Michelangelo, “A Criação de Adão”.
A Capela Sistina estava cheia, e admito que era muito estranho ver um aglomerado de seres humanos encarando o teto do local. O Vaticano, com certeza, era algo admirável. Eu diria ser impossível não sentir a grandiosidade das construções quando a primeira coisa com a qual se deparava eram gigantescos pilares sustentando estátuas de santos em uma praça circular na entrada. O Papa realmente tinha uma vista e tanto.
– Com certeza... Por que eles só estão tocando o dedinho?
– Eles não chegam a se tocar.
estreitou os olhos para enxergar melhor e ergueu as sobrancelhas logo depois.
– Hm, verdade. Por que não se tocam?
– Eu realmente queria saber. Com certeza tem alguma explicação muito boa.
– Tenho certeza de que se esse Adão fizesse um pouco mais de esforço, dava. – Ele concluiu, convicto.
Ri de sua expressão inconformada, e ele me acompanhou, voltando a encarar as pinturas. Parei alguns segundos para encarar parado ali. Ele mantinha as mãos juntas atrás das costas, piscando lentamente ao analisar as obras. Sua postura, como sempre, emanava um ar de imponência e elegância que não se encontrava em qualquer um e não passava despercebida. era agraciado com um jeito muito receptivo e bondoso que talvez nem conhecesse sobre si próprio. A prova disso estava bem ali. Esbarrou sem querer em uma senhora que passava e não demorou um segundo para pedir desculpas, fazendo gestos sem sentido com as mãos, oferecendo ajuda e corando quando ela falou pela terceira vez que estava tudo bem. Quando prosseguiu, veio em minha direção com um sorriso envergonhado no rosto. Algo naquilo me reconfortou, era um sorriso acolhedor.
Senti um frio na barriga aumentar à medida que ele se aproximava. Vê-lo ali, caminhando tão tranquilo até mim, fez todos os sentimentos que eu estava tomando cuidado para reprimir soltarem-se todos de uma vez, e um arrepio passou por todo meu corpo. Não pude deixar de abrir meu sorriso mais encantador, que pareceu animar muito e fazê-lo retribuir com um sorriso ainda mais lindo que qualquer outro que já tivesse expressado.
“Você o ama”, a voz de Amélia soou claramente em minha cabeça, e arregalei os olhos.
– Já são quase uma da tarde. – Falei, sem graça, ao desviar o olhar para meu celular. – Quer almoçar?
– Claro. – concordou, colocando a mão sobre minhas costas para me guiar até a saída.
Paramos no grande pátio movimentado entre os enormes pilares, olhando para umas dez direções diferentes. Admito que estava bem confusa e nada localizada. , embora fosse muito bom em identificar os lugares, parecia tão perdido quanto eu.
– Será que deveríamos só ir para qualquer lugar? – Perguntei, sugestiva.
– Esse já não era o pressuposto?
– Você deveria escolher. – Pedi, fazendo um bico, e ele riu. – Eu sou indecisa.
– Então, me dê sua mão.
Estendi sem contestar, achando que ele iria segurá-la e me guiar para algum lugar. Surpreendentemente, ele levantou-a sobre minha cabeça e começou a me girar em volta de meu próprio corpo.
, o que você está fazendo? – Meu tom saiu divertido, e eu pude ver a sua face sorridente a cada volta. – Eu vou ficar tonta.
– Estou escolhendo a direção que iremos.
– Como exatamente eu entro nisso?
– Pare. – Falou, e eu obedeci, um pouco desnorteada. Eu estava virada para a saída sudoeste do local. – É para lá que iremos. – Ele falou próximo de meu ouvido e segurou minha mão, começando a andar.


Capítulo 16

– Meu Deus, ! Olha o tamanho desses sapatos. – Segurei o par com somente uma de minhas mãos, completamente admirada pela pequenez. – Nós temos que levar isso para o Fred e para a Madeline. Eles vão amar.
veio até mim, carregando um copo cheio de cerejas que havia acabado de comprar na feira em que estávamos, e encarou o objeto que eu segurava.
– É um tênis tão pequeno, nem uma batata bolinha cabe aí. – Ofereceu a fruta, e eu agradeci, pegando uma do copo. – Acho que deveríamos levar.
– Pensou em algo que podemos dar para a Amélia? – Perguntei depois de pagar pelo presente.
– Não faço ideia. Acho que você seria a melhor pessoa para isso, vocês são amigas. – ofereceu-se para carregar a sacola, e aceitei.
– Também não sei. – Falei ao mesmo tempo que revezava o olhar entre os presentes que eu carregava e os que tinha na mão.
Passamos grande parte da tarde comprando coisas para todos e agora faltava só algo para a médica. O ponto era que não importava em quantas lojas passássemos, não achávamos que nada tinha a cara dela.
O céu assumiu cores alaranjadas, denunciando o pôr do sol. Olhei para , que já me encarava, e sugeri que voltássemos para o hotel. Ainda tínhamos cinco dias para conseguir encontrar um presente legal para ela. Ele pareceu satisfeito com a proposta, mas, antes que déssemos qualquer passo, uma música alta começou a tocar, e fomos empurrados pelo aglomerado de pessoas na praça, que agora abria uma roda bem no centro, de onde vinha a música. De repente, estávamos amontoados entre as pessoas.
Aproximei as sacolas de meu corpo, confusa com o que estava acontecendo. parecia observar divertido a situação. Quando me dei conta, dezenas de homens com blusas brancas de manga bufante e calças pretas extremamente coladas nas pernas entravam enfileirados, carregando bandeiras coloridas e estampadas.
– O que está acontecendo? – Perguntei para , mas ele não conseguiu me ouvir com o barulho das pessoas batendo palmas para acompanhar o ritmo da melodia.
Os homens posicionaram-se de modo simétrico entre si e, quando a música chegou em um certo ponto, começaram a dançar, jogando as enormes bandeiras para lá e para cá. Havia tanto movimento que ficava até difícil acompanhar. Pude ver que algumas pessoas gritavam emocionadas de suas varandas e juntei mais ainda as sobrancelhas, não entendendo absolutamente nada.
Depois de alguns minutos de apresentação, apenas dois homens ficaram no centro, e o resto se configurou em uma roda, ficando próximo do público. Inclusive, um deles ficou bem na minha frente. Não pude ver direito, mas os do centro pareciam meio que lutar entre si, usando suas bandeiras como se fossem espadas. Cada segundo daquele dia ficava mais estranho.
Quando finalmente pararam, a música foi interrompida, os dançarinos, ou seja lá o que eram, ficaram imóveis, e uma onda de aplausos invadiu o local, com direito a pétalas de flores sendo jogadas. Eu não tinha ideia do que havia acabado de presenciar, mas até que foi uma experiência boa. Todos vibravam como se estivessem no show de seus cantores favoritos, e a animação alheia era contagiante. Sorri discreta, e, quando achei que todos voltariam a fazer o que executavam antes, a música voltou a tocar a eu ri divertida.
La ragazza più bela che mi accompagna in questa danza? – O homem uniformizado, que antes tapava minha visão, ofereceu sua mão, e pude ouvir a risada de atrás de mim.
– Desculpe, eu não falo italiano. – Sorri sem graça, mas ele continuou com a mão estendida e as pessoas ao redor começaram a gritar de emoção.
tomou as sacolas que eu segurava com uma velocidade impressionante e nem precisou fazer o resto. As próprias pessoas à minha volta me empurraram para cima do dançarino.
– Eu não sei dançar! – Gritei, aflita, voltando meu olhar para , que se limitou a sorrir tranquilo e assentir com a cabeça, como em um incentivo implícito.
Direcionei meu olhar para o homem, que me guiava para mais perto do centro, como outros faziam com estranhas que retiraram da multidão. Ele sorria galanteador, e eu tencionei alguns músculos de meu corpo, sentindo os olhares de todos naquela praça caírem sobre mim.
Ero calmo. Segui i miei passi, ti guiderò.
– O quê? – Perguntei, sentindo a adrenalina tomar conta de mim. Arregalei os olhos quando ele colocou uma de suas mãos em minha cintura e juntou seu corpo ao meu. Sem ao menos conseguir protestar, ele começou a me guiar numa dança muito animada.
Eu não fazia ideia do que estava acontecendo. Só sei que às vezes ele me rodopiava e eu gritava totalmente constrangida e desesperada. Não tinha nenhum talento para isso, e pareceu perceber. Não consegui o localizar no meio de tantas pessoas, mas ele estava rindo, isso eu podia ouvir. O dançarino me jogava para lá e para cá e demorou um pouco para que eu parasse de tencionar o corpo e conseguisse me mover com um pouco mais de facilidade. Aquilo com certeza estava catastrófico de ver.
Uma última vez, ele me rodopiou e empurrou meu corpo para trás. Achei que fosse cair e ter uma concussão certeira, mas ele me segurou no meio do caminho, com seu braço sobre minhas costas, e parou imóvel, com o rosto a dois centímetros do meu, um sorriso cortejador e uma rosa entre os dentes. Em que momento aquela flor tinha surgido? Arregalei os olhos, assustada, e pude ouvir os aplausos altivos começarem.
O homem me levantou rapidamente, o que me deixou tonta, e colocou a rosa em cima de minha orelha, entre as mechas do meu cabelo.
Sei un angolo di paradiso.
– Obrigada. Eu acho. – Não fazia ideia do que ele tinha acabado de falar, mas soou muito sexy no italiano.
Sono d’accordo. Lei è un angolo di paradiso. – Agora foi um outro homem, um sem as roupas estranhas, quem falou. Apoiou-se nos ombros do dançarino e assentiram com a cabeça, encarando-me encantados.
Ele tinha traços clássicos europeus, com seus cabelos cacheados, olhos verdes, maçãs do rosto proeminentes e uma pele bronzeada de quem passou o verão na praia.
– Desculpe, o que disse? – Perguntei sem jeito, e ele sorriu.
– Americana. – Declarou, espirituoso, e não tive tempo para expressar qualquer negação. – Dissemos que você é um pedaço do paraíso.
Abri a boca em surpresa e ergui uma das sobrancelhas, corando instantaneamente. Essa foi a cantada mais direta que eu já havia recebido.
– Está sozinha? – O estranho perguntou, galanteador, e eu coloquei uma mecha de cabelo atrás da orelha, procurando com os olhos. – O que acha de jantarmos hoje à noite?
– Uma ótima ideia, se você colocar uma terceira cadeira na mesa. – respondeu, simpático, e colocou a mão sobre minha cintura, segurando literalmente todas as sacolas com uma única mão. – Minha esposa e eu amamos fazer amizades. – O piloto sorriu para mim, e eu franzi a testa, confusa, revezando o olhar entre os dois. Os três, na verdade, mas o dançarino não parecia entender nada que foi dito.
– Vocês são casados? – O italiano apontou para nós dois, e pisquei os olhos, perdida.
– Estamos em lua de mel. – respondeu orgulhoso, talvez até com uma pontada de grosseria, e me encarou, sorrindo. Um sorriso que com certeza me deixaria sem chão, se eu não estivesse tão preocupada em conseguir formular algo para falar. – Oito anos juntos merece uma lua de mel do outro lado do oceano.
– Qualquer casamento merece uma lua de mel do outro lado do oceano. – As palavras saíram da minha boca e não exatamente as que eu queria dizer no momento. Balancei a cabeça, incrédula. De todas as coisas que poderia ter dito, por que eu disse isso?
– Você é tão romântica, amor. – segurou mais forte em minha cintura, e o italiano fez uma careta, retirando-se sem pronunciar qualquer palavra e levando o dançarino junto. Pelo menos ele não foi tóxico e pediu desculpas para “meu marido” ao invés de pedir para mim.
– Amor? – Perguntei, divertida, e ele me soltou, dividindo o peso das sacolas entre ambas as mãos. – Devo me preparar para mais alguns dias sendo Sra. ?
– Não. – Ele respondeu, sério, e eu ergui uma das sobrancelhas.
– Quem deveria estar séria sou eu. O que foi isso?
– Sei lá. Não gostei desse cara. – Ele respondeu, tentando transparecer indiferença, e eu segurei a risada quando suas bochechas ruborizaram. Ele desviou o olhar.
– Você está com ciúmes, ? – A pergunta saiu com um tom um pouco mais brincalhão do que eu pretendia usar, e coloquei as mãos na cintura.
– Claro que não. – Ele bufou e pressionou ainda mais suas mãos fechadas em punhos, o que não passou despercebido por mim. – Não seja boba.
Começou a andar, pouco disposto a conversar, e um sorriso contido escapou de meus lábios.

Acordei no susto com as batidas incessantes na porta do quarto do hotel. Levantei a cabeça num pulo e meus cabelos caíram imediatamente sobre minha face, fazendo com que eu os soprasse para longe do rosto sem sucesso.
– Que pressa é essa? – Me sentei na cama, meio sonolenta, ainda ouvindo o toque sobre a madeira.
Apressei-me em achar um roupão para cobrir meu pijama curto e quase achei que estivesse alucinando quando vi cinco e vinte e sete no relógio. Isso não era hora de ser acordada quando se estava de férias.
. – Falei, surpresa, ao me deparar com o homem já vestido do outro lado da porta. – O que você está fazendo aqui a essa hora?
– Posso usar seu celular? – Ele perguntou sem muita delonga. – Eu não encontro o meu.
– Você me acordou para perguntar se pode usar meu celular? – Perguntei, irritada.
– Preciso fazer uma ligação. – Batucou apressado os dedos entre seus braços cruzados, e eu dei passagem para que ele entrasse, percorrendo a mão sobre meu cabelo bagunçado e encostando a porta com a maior delicadeza que consegui.
– Está na minha bolsa. – Apontei para uma mesa ao seu lado, e um bocejo escapou. – Posso saber o que é tão urgente?
– Preciso colocar meu filho para dormir. – respondeu, avoado, enquanto digitava os números já decorados.
Fiquei em silêncio por uns segundos, fazendo um bico como de quem está retraída, e encarei o banheiro. Talvez fosse bom eu dar um pouco de privacidade, certo? Entrei no cômodo e fechei a porta atrás de mim, estreitando os olhos quando acendi a luz. Fiquei boquiaberta quando encarei meu reflexo no espelho. Eu estava horrível. Meu cabelo todo bagunçado por ter rolado de uma ponta à outra na cama, olheiras por ter dormido umas três horas no máximo, pele pálida e inchada e um roupão mal colocado. Passei a mão devagar sobre a nuca e lavei meu rosto, vendo a água fria deixar a ponta de meu nariz avermelhada.
Virei de costas para o espelho, apoiando-me na bancada da pia. Respirei fundo e fechei os olhos, deixando que meus pensamentos fluíssem. Pensamentos esses que foram diretamente levados para . Um frio passou pela minha barriga só de projetar sua imagem sorridente em minha mente.
Eu acho que estava um pouco incomodada com o fato de eu não conseguir contar para ele que eu e não estávamos mais juntos. Talvez fosse o medo de dizer “Eu sou completamente apaixonada por você” e ouvir uma rejeição. Nada garantia que fosse recíproco, certo?
Nada? Nem a face de decepção que estava estampada no rosto de quando me viu com o na recepção do casamento de Madeline? Nem quando nos beijamos ontem à noite depois de sair da fonte?
Lembrava-me muito bem quando ele tinha sugerido que seria algo agradável aproveitar as lindas paisagens italianas ao som de uma boa música e ao lado daqueles que amamos. Daqueles que amamos. Será que me amava? Ou será que eu estava inventando coisas na minha cabeça?
“Você está linda”. O seu elogio do dia que havíamos chegado fazia meu estômago revirar e um sorriso espontâneo tomar conta de meus lábios.
era a razão pela qual eu havia terminado com , não?
Balancei a cabeça para espantar os pensamentos. Aproveitando que já estava no banheiro, tomei uma ducha rápida. Talvez nem fosse seis e meia da manhã ainda, e eu já estava enrolando a toalha pelo meu corpo para sair do banheiro tomado, pela névoa da água quente que há pouco escorria minha pele.
Assim que pisei para fora do cômodo, pude ver sentado de braços cruzados na cama, com os olhos fechados. Será que ele tinha dormido?
? – Perguntei baixo enquanto dava breves passos até ele. – , você está acordado?
Silêncio era a única coisa que obtive nos próximos segundos que se passaram. Peguei o celular, que estava numa mesinha entre duas poltronas, e pude notar uma ligação perdida de Henry às quatro horas da madrugada e outra de Amélia, às quatro horas e cinco minutos. Franzi o cenho, achando aquilo coincidência demais para não terem sido ligações importantes. Ia retornar a ligação, porém ouvi a voz suave de .
– Porque você já não é mais minha, e isso é a pior sensação do mundo. – falou tão baixo que mal pude ouvir.
? – Perguntei, chegando um pouco mais perto e se sentando na ponta da cama.
– Era para ser eu, . – Ergui uma sobrancelha quando notei que ele pronunciou meu nome e disse tudo aquilo com os olhos fechados, totalmente imóvel. – Isso está me destruindo.
– Do que você está falando? – Sussurrei, confusa.
Foi então que eu percebi que estava falando enquanto dormia. Pressionei ainda mais a toalha em volta do meu corpo quando me toquei que estava ouvindo um sonho seu. Aquilo era algo muito íntimo, e eu não estava nada confortável. Levantei-me para voltar ao banheiro, mas o movimento, apesar de cuidadoso, não passou despercebido por ele, que levantou num pulo tão rápido que não pude evitar dar um grito contido e colocar a mão no peito. Seus olhos estavam tão alertas e tão letais, assim como o resto de seu corpo tensionado. , em reflexo, apalpou seu quadril na procura de um coldre, e meu coração gelou, embora eu soubesse que ele não estava fardado e, consequentemente, sem arma.
– Que susto. – Ele falou ao se acalmar e ajeitar a postura.
– Eu que o diga. – Ainda olhava para ele com os olhos arregalados.
pareceu ficar meio sem graça e passou a mão pelos cabelos, desajeitando-os.
– Você sabe que fala enquanto dorme? – Perguntei, divertida, já relaxando.
– Jura? E o que falei?
– Não consegui entender direito. – Menti.
O sorriso que ele deu em seguida deixava claro que ele sabia que eu não havia dito a verdade. Um sorriso bem divertido e dissimulado, inclusive, que fez minhas bochechas corarem. Desviei o olhar, e ele encarou seu relógio, andando devagar até mim. Não sei se ele percebeu, mas parou muito mais perto de meu corpo do que uma pessoa normal consideraria adequado.
– Estamos atrasados. Me encontre na recepção em dez minutos.
Não tive muito tempo para questionar, ele já havia saído do quarto e fechado a porta.

O céu estava mais limpo do que nunca e o sol aquecia cada canto daquela cidade. Eu havia acertado em colocar um vestido mais curto, saltos e um óculos de sol. Quando saí do elevador, pude perceber alguns olhares sobre mim, inclusive o da recepcionista, que era a mesma do dia do check-in. Cumprimentei-a com um aceno de mão, e um sorriso malicioso escapou. Era impossível não lembrar da sua expressão envergonhada de quando eu disse que era meu marido.
– Vamos? – Perguntei, aproximando-me de um completamente boquiaberto, encarando-me da ponta da cabeça aos pés.
Ele ofereceu seu braço, e eu aceitei, entrelaçando-os enquanto já caminhávamos em direção à saída. Estacionado bem em frente ao hotel, havia um conversível azul de bancos beges. Lembrava muito o carro de Henry, mas não era. O dele tinha um pequeno adesivo da bandeira dos Estados Unidos na lateral como um diferencial. abriu a porta para que eu entrasse, e eu agradeci. Assim que ele deu a partida, tirei meus óculos e fitei seus olhos.
– Para onde estamos indo? – Perguntei, curiosa.
– Para onde eu prometi te levar. – respondeu, divertido, e eu mordi o canto do lábio inferior.
Juntei as sobrancelhas em dúvida e tentei recordar algo que ele havia me prometido. Nada me veio à cabeça na hora, porém, antes que eu pudesse perguntar o que queria, meus cabelos começaram a atrapalhar minha visão de tão rápido que dirigia. Passei a mão sobre o rosto para tentar tirar as mechas, mas elas pareciam voltar em questão de milissegundos.
, o semáforo! MEU DEUS! – Cobri os olhos com a mão ao ver não diminuir a velocidade, mesmo o semáforo estando vermelho. Ele passou, e um carro na via perpendicular teve que frear com tudo, buzinando. – A cor verde não significa nada para você?!
– Na Itália? – Ele perguntou, sorrindo e desviando o olhar da estrada por dois segundos para me encarar. – Nada.
– E o sinal amarelo? – Olhei para trás, na intenção de ver se havíamos causado algum acidente.
– Um aviso? – Ele deu de ombros, chutando a resposta.
– E o vermelho? – Arregalei os olhos.
– Só uma sugestão.
Virei meu corpo de volta para frente, agarrando-me no banco, e deu uma risada alta com minha reação. Se eu morresse hoje, a culpa seria toda de .
, para onde você está me levando?
– Positano. – Ele respondeu sem desviar os olhos da estrada, e eu virei a cabeça para a direita, encarando a paisagem de altos ciprestes italianos e eventuais plantações de oliveiras, que pareciam aparecer vez ou outra em padrões. – Vamos velejar.
– Você está falando sério? – Ergui uma das sobrancelhas e voltei a encarar o homem sorridente ao meu lado. restringiu-se a assentir com a cabeça, e um sorriso encantador surgiu em meus lábios. Eu podia sentir a ansiedade correndo pelo meu sangue. – Quanto tempo até chegarmos?
– Umas três horas.
– Três horas? – Fiz um bico, e ele segurou a risada.
– Duas, se eu acelerar. – Mordi o canto do lábio inferior, e me encarou de soslaio. – Ok, eu faço em uma e meia, se você me deixar ignorar os sinais vermelhos.
– Temos um acordo. – Coloquei os óculos de volta e estendi minha mão, que ele logo apertou, em sinal de concordância, mantendo a outra sobre o volante.
Fechei os olhos atrás das lentes e respirei fundo quando senti o vento passar sobre mim. Recostei na cadeira e pude começar a ouvir uma leve melodia. provavelmente ligou o rádio, mas não me dei ao trabalho de verificar. Estava concentrada demais em sentir os raios de sol me banharem com um calor aconchegante. Acho que nunca havia sentido tanta paz genuína em minha vida. Tudo sempre fora muito corrido e exaustivo, mergulhada em estudos, trabalho e outras coisas. Por alguns minutos, me permiti apenas presenciar o momento, inclinando um pouco a cabeça para trás e sorrindo.
– Deveríamos jogar o jogo das perguntas. – tirou-me dos devaneios, ainda encarando a estrada.
– Como?
– Eu e meu filho sempre jogamos em viagens de carro. Alguém faz uma pergunta aleatória e temos que responder.
– Tudo bem. – Apoiei o braço na porta do carro. – Você começa.
– Qual seu trabalho dos sonhos? – Ele perguntou.
– Já tenho o trabalho dos sonhos. – Respondi, certa do que falava. – Passar meus dias com Amélia, Fred, Henry e Madeline é mais do que eu poderia pedir. E o seu?
fez muitas ponderações em sua mente antes de pronunciar qualquer palavra. Ele pareceu pensativo por um momento.
– Vendedor de sorvete. – Declarou, e eu sorri instantaneamente. Estava aí algo que eu não esperava.
– Por que você gostaria de ser um vendedor de sorvete?
– Se todos os empregos pagassem a mesma coisa, esse seria o melhor de todos. É como distribuir felicidade, sabe?
– Muito nobre. – Concluí e ergui uma sobrancelha em surpresa, já pensando na pergunta que eu faria. – O que é algo importante que eu deveria saber sobre você?
– Eu não durmo sem cobertor, e toda vez que coloco o pé para fora dele me sinto desprotegido.
– O quê? – Olhei-o, incrédula, e ri. – Um cara treinado pela força aérea seria capaz de derrotar as forças maléficas que puxam pés à noite. – revirou os olhos, divertido, e me deu um empurrãozinho no braço.
– E você?
– Eu me recuso a levar trabalho para casa.
– Sábia. – Fez uma careta estranha e pareceu prestar atenção na estrada antes de voltar a focar na conversa. – Qual foi a melhor coisa que aconteceu esse ano para você?
“Você” foi a palavra que quase saiu da minha boca. Quase. Pressionei um lábio sobre o outro em uma linha e direcionei a visão de volta para a paisagem ao meu lado.
– O casamento de Madeline, acho. – Respondi enquanto colocava uma mecha de cabelo atrás da orelha.
– Serei obrigado a concordar com você. Foi um casamento e tanto, apesar dos obstáculos no caminho. – Ele riu ao lembrar de algumas cenas, e eu o acompanhei, recordando do fatídico momento em que eu parecia ter sido atropelada depois da perseguição maluca.
– Quais são seus três filmes preferidos, ?
– Top Gun. – Ergui uma das sobrancelhas com sua resposta, e ele pareceu entender o recado. – Mulheres bonitas, aviões e muita ação, uma combinação que não poderia dar errado. O Poderoso Chefão e Como Treinar o seu Dragão.
– Como Treinar o seu Dragão? – Perguntei, curiosa.
– Kay assiste quase todo dia, e eu acabei pegando o gosto. – Ele deu de ombros, olhando para frente.
– Quem é Kay?
– Kay é meu filho. – Respondeu com um sorriso orgulhoso, o que, devo frisar, foi algo meigo.
Sorri fraco, e pareceu perceber. Kay, na literatura arturiana, não foi uma figura exatamente agradável. Embora tenha sido um dos principais cavaleiros da Távola Redonda, mantinha uma fama muito ruim atrelada ao fracasso.
– Sei o que está pensando. Kay é o nome de um personagem ácido que todos odeiam. – O homem ao meu lado continuava com o sorriso brioso. – Olívia... – Pigarreou, e pude ver a seriedade tomar conta de sua face. – Minha ex-esposa gostava muito das histórias. De acordo com ela, inicialmente Kay não era uma pessoa ruim. Pelo contrário, era valente, heroico e fiel. Foi um dos principais guerreiros do Rei Artur, servindo-o como escudeiro.
– Soa como um nome bom agora. – Admiti, encarando-o sorridente, e ficou animado com minha reação.
– O que gosta de fazer quando tem dias ruins? – Perguntou, voltando ao jogo.
– Trabalhar...? – Respondi, incerta.
– Você está falando sério? – começou a rir, mas parou gradualmente quando percebeu que eu não estava brincando e me olhou preocupado. – Você trabalha quando tem dias ruins?
– Talvez uma resposta melhor seria um longo banho espumado na banheira.
– Agora sim algo razoável. – balançou a cabeça em afirmação, com uma expressão de pura incredulidade, e eu ri baixo. – Nos meus dias ruins, eu assisto desenhos infantis com meu filho.
– Aposto que é garantia de melhorar o dia.
– Eu não entendo metade das coisas que acontecem, mas nos divertimos. – Concluiu, satisfeito.
– Qual a coisa mais louca que já fez? – Perguntei, pensando no casamento de Maddie, quando perseguíamos Steven. Com direito a pessoas pulando de veículos em movimento e uma bala estourando meu celular.
– Essa história é ótima. – animou-se ao lembrar de um dia em específico de sua carreira e se remexeu na cadeira, alternando seu olhar entre mim e a estrada frequentemente. – Quando fui promovido a capitão, Fox me concedeu uma missão especial. A minha primeira. Achei que seria algo confidencial e incrível, mas ele pediu para que eu ensinasse um dos soldados a pilotar. – Ergui uma das sobrancelhas ao ouvir aquilo. Ensinar alguém a pilotar inclui muito estudo e muitas aulas práticas. – Em uma semana.
– O quê? – Ri, sem acreditar no que ele dizia.
– Soa absurdo, certo? – Assenti com a cabeça, ainda céptica. – Eu acho que devo ter ficado mais de setenta horas seguidas acordado tentando ensinar o coitado sobre como ler o painel e outras coisas. – De repente, peguei-me completamente interessada no que ele dizia e aproximei um pouco meu torço para perto de , ouvindo-o com toda a concentração possível. – Faltando dois dias para dar o prazo, pedi para que ele subisse no C-5 Galaxy, o único avião cargo que tínhamos à nossa disposição. Ele nem conseguiu taxiar, e eu já podia ver meus quatro dias na cadeia por não ter tido sucesso na missão do major-general Fox. Já eram quase três da tarde e nada, então eu tive uma ideia que você pode categorizar como suicida. Pedi para que o soldado fosse meu copiloto, sentamos na cabine, e eu que coloquei o avião no ar. Estava tudo ocorrendo com a maior tranquilidade do mundo.
– Isso não soa nem um pouco mortal. – Ergui uma das sobrancelhas, e sorriu misterioso de lado.
– Até que eu me levantei, largando todos os controles do jeito que estavam, coloquei meu paraquedas, abri a porta de descarregamento e pulei. – Arregalei os olhos e coloquei a mão sobre minha boca aberta em puro choque quando falou isso. – O deixei sozinho lá e, se ele quisesse voltar vivo, teria que aprender a pilotar.
– Você é completamente louco. – Falei, rindo, e ele me acompanhou.
– Fox ficou satisfeito e o soldado, traumatizado. Nunca mais o vi no quartel. – franziu a testa, aparentando estar confuso.
– Não me surpreende. – Eu disse, divertida.
– Se pudesse transformar qualquer atividade em um esporte olímpico, em qual você teria chance de ganhar uma medalha?
– Chegar atrasada conta? – Perguntei, sugestiva, e riu.
– Você definitivamente ganharia a medalha de ouro.
– O que você acha que estaria escrito no meu epitáfio?
– Boa pergunta. – Pareceu ponderar por alguns segundos. – Enterrada de saltos.
– O quê? É isso que você acha que estaria escrito sobre meu túmulo? – Coloquei a mão sobre o peito, fingindo incredulidade.
– Seria uma mentira?
– Não sei, muito provavelmente não sou eu quem vou me vestir para o meu próprio enterro. – Dei de ombros. – Acho que no seu estaria escrito “Um homem pode ser destruído, mas não derrotado”.
– Hemingway. – Ele sorriu fascinado e voltou seu olhar doce para mim. pareceu emanar uma alegria atípica naquele momento. Seus olhos brilhavam, e a luz do sol em sua face nunca pareceu mais dourada do que agora. – Se me permite, gostaria de usar essa frase no meu epitáfio.
No ritmo em que estávamos, tanto de conversa como de velocidade, a viagem não demorou muito. Fiquei surpresa por acabar descobrindo coisas íntimas sobre que nem imaginava. Não era todo dia que uma pessoa amargurada pela morte conseguia ter uma visão tão alegre e divertida em relação à vida como ele. Seu discurso era sempre muito cheio de bom humor e uma inclinação peculiar à bondade. Peguei-me pensando que seria impossível falar a respeito dele com uma clareza de julgamento regular. O que aos outros poderia parecer falha, excesso ou erro, aos meus olhos tornou-se apenas qualidades não reconhecidas, virtudes incompreendidas e sutilezas não assimiladas. Sentado ali, com uma mão sobre o volante e a outra passando pelo cabelo bagunçado pelo vento, parecia ser uma pessoa particularmente especial.
Tão envolvida nas linhas de expressão em seu rosto, não percebi que, no alto de uma colina, já se destacavam as típicas casas coloridas e amontoadas de Positano, em toda sua imponência e contraditória sensação familiar.

– Obrigada. – Agradeci o homem, que abriu a porta do carro e estendeu a mão para mim, aceitando-a.
Havíamos acabado de parar em frente a um pequeno restaurante. Passava um pouco das oito e trinta e cinco da manhã, e a cidade funcionava como se fosse horário de almoço. Assim que nos sentamos em uma das mesas, foquei em analisar o menu.
– Por que ele faria isso comigo? – Uma voz desconhecida, chorosa e carregada chamou minha atenção. Abaixei um pouco meu cardápio para que pudesse fitar a cena com discrição. Uma mulher, que parecia ter uns quarenta anos, enxugava suas lágrimas com um pequeno lenço de seda na mesa ao lado. Ergui o objeto em minha mão para cobrir meu rosto e tentei voltar a prestar atenção no que seria a sugestão do dia. – Tínhamos um casamento tão bom, e eu o amo.
– Mas, querida, não adianta você o amar e não ser recíproco. – Outra voz estranha, um pouco mais nasalada, soou. Talvez fosse a mulher que a acompanhava sentada no outro lado da mesa. – Além do mais, quem sai ganhando é você. Pede logo esse divórcio, foi ele quem te traiu, não o contrário.
Arregalei os olhos. Nem sei por que ainda tentava me concentrar no menu, eu estava completamente interessada na conversa delas.
– Eu não consigo.
– Você não está pensando em perdoá-lo, não é?
– Eu não perdoaria. – sussurrou tão baixo que quase não consegui ouvir. Acho que ele nem percebeu que deixou as palavras escaparem, pois o encarei com uma das sobrancelhas erguida, e ele parecia prestar atenção no que fingia ler. Bom, talvez tanta atenção quanto eu.
– Você acha que não existe nenhum caso que possa ser perdoado quando se trai? – Murmurei, curiosa, e pareceu me olhar desafiador.
– Não acho. Você acha?
– Perdoado? – Ponderei por alguns segundos. – Sim. Só não acho que eu continuaria com a pessoa, porque ela fez algo errado e tinha todo o controle necessário para evitar a situação. A questão é que todos erramos. Às vezes, casamentos falham porque não amamos a pessoa, mas sim a imagem que temos dela.
– Acho que as pessoas já começam errado quando pensam que amar é o suficiente. – sussurrou baixo, não querendo chamar atenção das mulheres sentadas ao nosso lado, e colocou a mão na nuca, já desinteressado no que pediria para tomar de café da manhã.
– Como assim?
– Relacionamentos sustentados somente pelo amor é a maior mentira que já contaram. Amor é o só o básico, o resto é muito esforço e desdobramento.
– Concordo. – Inclinei levemente a cabeça e recostei sobre a cadeira. – Relacionamentos em que ambos trabalhem para que funcione é a receita do sucesso.
– Isso eu posso garantir. – olhou-me com um sorriso fraco.
– Sei que pode. – Suspirei e voltei a fitar o cardápio.
– Como? – O homem sentado à minha frente remexeu na cadeira, intrigado com o que eu havia acabado de dizer, e eu engoli em seco.
– Fred me contou sobre a Olívia. – Encarei-o de relance, não conseguindo manter o olhar por muito tempo. – Como vocês eram um casal perfeito e tudo mais.
– Fred que disse isso? – Perguntou, incisivo, e eu fiz uma breve careta quando ouvi seu tom de voz. Ele mantinha os olhos fixos em mim, o acirramento escrito em cada linha de sua íris.
– Não nessas palavras. – Usei meu tom mais seguro e contido, ainda que estivesse um pouco sem graça por ter tocado no assunto. tinha os ombros tensionados, e aquilo não me pareceu um bom sinal. – Foi só uma conclusão minha.
– Não éramos um casal perfeito. – De um segundo para o outro, sua postura já não parecia tão rígida, e ousava dizer que havia um leve brilho de tristeza em seus olhos, o motivo pelo qual ele os desviou dos meus. – Tínhamos nossos desentendimentos.
, não precisa falar sobre isso se não quiser.
– Está tudo bem. Fred já falou mesmo. – Seu timbre de voz não dava a impressão de que estivesse tudo bem. – Eu não costumo falar sobre isso, mas não é como se não fosse algo que aconteceu e já não pode ser mudado. Fred conhecia a Olívia que todos os outros conheciam também. Deve ter dito que ela era boa, caridosa e especial. Realmente era. – Ele falava isso com um sorriso tão lindo em seu rosto que não pude deixar de sentir uma pontada em meu coração. Ficou quieto por alguns segundos, que mais pareceram minutos no meu ponto de vista, e deu uma risada fraca, lembrando-se de algo. – Também era teimosa e orgulhosa, mas seu jeito delicado mascarava muito essas características.
– Ela soa como uma pessoa incrível. – Sorri acolhedora, e ficou um pouco mais confortável ao observar o gesto. Conforto esse que não durou muito tempo, pois uma pergunta que estava há muito tempo presa em minha garganta escapou. – Se me permite, o que aconteceu com a Olívia? – Seu semblante logo fechou, e eu fiz uma careta ao perceber que tinha cruzado o limite. – Desculpe.
O silêncio que tomou conta da mesa me fez corar imediatamente. Onde eu estava com a cabeça em fazer uma pergunta dessas? enfim começou a desabafar comigo, e eu joguei a intimidade pela janela, que acabou levando minha dignidade junto. Eu não sabia onde enterrar a cabeça no momento.
– Ela se matou.
– Por quê? – Franzi o cenho, confusa, pega de surpresa por uma curiosidade cruel que nem ao menos permitiu que eu expressasse qualquer tipo de condolência. Fred tinha dito que eles encaixavam tão bem. O que teria acontecido?
– Gostaria de saber também. O terapeuta dela disse que não havia suspeitas do porquê. – respirou fundo. Seus olhos agora estavam opacos, e eu não conseguia lê-los nem se tentasse o meu melhor. Nada em sua postura denunciava o que sentia. Era como se estivesse inexpressivo dos pés à cabeça.
Um arrepio passou pela minha nuca e fechei os lábios em uma linha, sem saber o que dizer ou fazer.
– Você também parece ter um relacionamento que é a cara do sucesso. – pronunciou as palavras com rispidez, numa tentativa de mudar o assunto.
– Eu e o não estamos mais juntos. – Declarei com tanta serenidade que fiquei surpresa. Talvez eu só quisesse responder de forma casual para não deixar o clima ainda mais estranho.
encarava-me boquiaberto e completamente estático, deixando claro o que estava sentindo. Esperei que ele fosse se pronunciar em algum momento, mas sua falta de reação só fez com que eu me remexesse inquieta na cadeira e passasse a mão no cabelo.
– Por quê?
“Porque eu amo você, não ele”. Da penosa série: palavras que poderiam ser ditas, mas não tive coragem o suficiente para fazê-lo. Isso estava se tornando frequente e, consequentemente, irritante.
– Porque ele merecia alguém melhor.
– MELHOR DO QUE VOCÊ? – falou tão alto que não havia uma pessoa sequer no restaurante que não tivesse ouvido. Corei de imediato e encarei o homem, que agora tinha os olhos arregalados e as mãos sobre a mesa, indignado. – Isso é impossível.
– Por mais lisonjeada que eu esteja, , é a verdade.
– Você não tem defeitos, . Tudo que parece um defeito vira apenas um detalhezinho insignificante no final do dia. seria louco de achar que existe alguém melhor. – Senti minhas bochechas ruborizarem ainda mais com sua fala, e deu um sorriso divertido. – Mentira, talvez seu único defeito seja ser evasiva e não querer ouvir minhas desculpas.
– E o seu é a falta de comunicação. – Revidei, ríspida, com os olhos estreitos. Aparentemente, eu não sabia lidar bem com as críticas que vinham de .
– Isso significa que eu só tenho um defeito? – deu uma piscadinha, soberbo pela minha reação.
– Interprete como preferir.
– O que você quis dizer com falta de comunicação? – Agora ele voltou a ficar sério e apoiou o cotovelo sobre a mesa, falando em um tom mais duvidoso.
Juntei as sobrancelhas em confusão. Achei que ele entenderia que estava relacionado ao fato de eu não ter recebido uma carta sequer enquanto ele estava fora. Três cartas haviam sido enviadas, e nenhuma tinha sido para mim. Será que estava fazendo alguma brincadeira?
– Como assim o que eu quis dizer? Estou falando sobre as cartas.
– Eu te enviei duas! – balançava a cabeça, incrédulo, como se eu tivesse acabado de contar a mentira mais monstruosa do mundo.
– Não enviou. Pelo menos eu não recebi nada.
– Enviei duas, tenho certeza. Rua Peregrino, número oitenta e dois, apartamento cinco.
– Rua Peregrino, número oitenta e dois, apartamento quatro. – Falei rápido, com os olhos levemente arregalados, e entrou em choque quando compreendeu o que tinha feito.
Um frio estranho passou pela minha barriga quando seus olhos cativantes mantiveram por tempo demais sua atenção sobre mim. Apesar de nenhuma palavra ter sido pronunciada, trocávamos olharem cúmplices como se compartilhássemos dos mesmos pensamentos. Naquele instante, nunca me senti tão amarrada a quanto ele estava a mim. Teria sido um período bem menos conturbado se a vida ocorresse sem este pequeno desentendimento, que gerou uma grande complexidade.


Capítulo 17

, a gente não vai velejar. – Estabeleci enquanto tirava os óculos e cruzava os braços.
À nossa frente, jazia o que eu diria ser um barquinho minúsculo e raso, moldado para uma criança, talvez, com uma vela grande demais. Não era brincadeira quando eu dizia que só cabiam duas pessoas ali e sentia que já era motivo o suficiente para afundar. Sem contar que eu não fazia ideia do que controlaria um barquinho sem motor além do vento, algo que, sejamos francos, não daria para manusear.
– Definitivamente não era a ideia que eu tinha em mente. – segurou o riso, e eu tive que me conter muito para que um não escapasse também.
– Vocês têm um porto aqui, não? – Perguntei para o funcionário sorridente, que havia nos guiado até o barco a vela, desviando, pela primeira vez, meu olhar incrédulo para algo que não fosse o objeto sobre a areia.
– Temos. – O pequeno homem respondeu, educado, e apontou para além das colinas. – Fica ali. Vinte e cinco minutos de carro.
– Perfeito. – Falei, animada.
– Vinte e cinco minutos a pé também. – Acrescentou, o que deixou eu e confusos. Como um caminho a pé e de carro teriam a mesma demora?
– Como? – Agora quem perguntou foi , já se aproximando de nós.
– É só seguir o caminho das pedras no fim da praia. A estrada que leva até o porto é bem sinuosa e longa.
Juntei as sobrancelhas e me virei para trás, para onde ele apontava. repetiu o gesto de modo instintivo. A praia era realmente pequena e poderia ser atravessada em poucos minutos, considerando que estávamos mais próximos da ponta do que imaginei. Agora, quanto às pedras escuras que se amontoavam com uma suntuosidade arrebatadora, porém íngreme e agulhada, eu não poderia garantir que demoraria somente minutos.
– Ótimo. – sorriu satisfeito, analisando o mesmo ponto que eu. – Muito obrigado pelas informações, vamos ir para lá agora mesmo.
Segurou minha mão e começou a andar tranquilamente, porém não na direção das escadas que levariam às ruas, como eu queria. Gaguejei algumas vezes, sem desviar o olhar da paisagem não tão convidativa para uma passagem a pé, sobretudo agora que as ondas batiam sobre o rochedo. Nada muito brutal, no entanto nada muito acolhedor também. Redirecionei meu olhar para nossas mãos entrelaçadas e depois para o homem alegre, que puxava meu corpo relutante. É claro que ele deveria estar animado, ele escalava paredões negativos de pedras em dias normais de treinamento. Eu, por outro lado, estava inclinada a querer o carro.
Quando chegamos na entrada do caminho, um certo suspiro de alívio escapou de meus lábios. Havia uma trilha nas pedras, marcada pelo desgaste da superfície e um leve tom cinzento, o que tornava aquilo um ponto turístico aparentemente comum, considerando que, mais para frente, eu podia enxergar um casal de mãos dadas andando. Ao nosso lado, uma placa em italiano, que eu não consegui traduzir, e uma imagem de um tênis esportivo, seguida de uma outra com um grande “x” vermelho sobre um chinelo e um pé descalço.
– Acho que eu fico por aqui. – Falei com falso tom de pesar, já me preparando para dar meia volta e sair. – Te encontro lá no porto em alguns minutos.
deu um sorriso divertido e balançou a cabeça de um lado para o outro em negação.
– Você quer que eu ande com isso? – Arregalei os olhos e levantei os saltos até a altura dos ombros.
– Claro que não. Você iria torcer o pé em dois segundos e me culparia. – Revirou os olhos, anedótico, e fez uma breve pausa antes de voltar a falar, como se tivesse medo de minha reação. – Além do mais, você já fez um drama absurdo quando ralou o pé correndo, imagina se algo pior acontecesse.
– Eles ainda não estão completamente bons, e isso é mais um argumento para irmos de carro.
– Você sutura outras pessoas e dirige carros sem freios. A última coisa que você tem é frescura... que é compensada pela dramaticidade. – sussurrou a última parte enquanto passava a mão pela nuca, desviando o olhar de forma divertida.
Abri a boca em completa indignação e bati em seu braço com minha bolsa, o que não pareceu ter causado efeito algum. Eu não tinha feito nenhum exagero como ele sugeriu. Ok, talvez só um pouquinho quando me recusei a colocar os pés no chão por um segundo sequer e teve que me levar no colo desde a sala do hospital até meu quarto no hotel.
– Sobe.
Não sei se aquilo foi um pedido ou uma ordem. O tom de voz de parecia andar sobre a linha tênue entre ambos. Só sei que não estava muito a fim de contrariar um major da Força Aérea. Ora, quem eu queria enganar? Eu mesma? A verdade era que eu não recusaria nada que pedisse, fosse na entonação mais carinhosa possível, fosse em um timbre mais grosso que causaria arrepios na minha espinha. Dirigir a vã contra a minha vontade para tirar o Steven do casamento era a prova disso. Não que eu fosse obedecê-lo cegamente, mas acreditava que ele não seria capaz de me causar qualquer dor. Havia um ar de proteção pelo qual eu me sentia abraçada em sua presença.
O que eu sei era que, no segundo seguinte, ele me carregava em suas costas, já iniciando a trilha. Em algumas partes do caminho, fiquei tentada a descer de seu corpo, pois havia partes mais íngremes e apertadas, e eu não fiquei confortável em colocar em tais situações, embora não fosse nada que ele já não estivesse acostumado e não parecesse fazer esforço algum. O chão áspero e não convidativo, entretanto, não me encorajou a fazê-lo. Quando as ondas que batiam nas pedras respingavam, a superfície ficava um pouco escorregadia, o que a deixava ainda menos tentadora.
Eu já podia ver as passarelas de madeira do porto ao fundo quando uma gigantesca onda sobrevoou o rochedo e caiu sobre nós, ensopando-nos. parou imediatamente quando sentiu de surpresa a água fria e salgada tomar conta de cada centímetro de seu corpo. Agarrei-me o máximo possível nele, sentindo a temperatura quente de sua camiseta contra meu rosto molhado.
Um riso escandaloso escapou. Eu não podia acreditar que, faltando cinco metros para chegarmos, uma onda havia nos atingido. Parecia um pouco de azar. demorou uns segundos, mas me acompanhou na risada, voltando a andar sem se importar com o peso que as roupas molhadas faziam. Quando me colocou de pé novamente, passou a mão sobre a cabeça para que o excesso de água saísse de seus cabelos, e coloquei a mão na frente do rosto em reflexo.
– Tranquilo. – Ele concluiu sobre a trilha e me tocou perto do meu rosto em seguida, tirando uma pequena conchinha que havia ficado presa nas mechas. Corei quando ele estendeu sua mão para que eu a pegasse. – Agora vamos achar algo próprio para aproveitar o mar.
Concordei com a cabeça, e começamos a andar em direção à única construção que havia perto do porto. Era uma cabana com a madeira pintada de branco, já mofada pelo efeito diário da maré. Não sabia por que havia um sino que tocava quando alguém abria a porta, o ranger dela era o suficiente para denunciar a presença.
– Bom dia. – disse no seu humor inabalável que lhe era peculiar. – Vocês teriam alguma lancha disponível para agora?
O homem atrás do balcão, alto, barbudo e aparentemente carrancudo, não se deu ao trabalho de responder. Apenas bufou, irritado. Eu não fazia ideia se ele tinha entendido o que falou. Ficamos alguns segundos em silêncio, até que o estranho inclinou de leve o seu corpo e pôde me ver. Analisou-me dos pés à cabeça, e eu abri um sorriso fraco, sentindo-me um pouco invadida pela demora no estudo de seus olhos.
pigarreou, e o homem voltou a encará-lo. Passado um minuto na mais pura calada, somente agraciados pelos barulhos de algumas gaivotas e as ondas chocando-se entre si, o homem atrás do balcão apontou uma porta à nossa esquerda com a cabeça, ainda amuado. Sem querer desperdiçar nosso precioso tempo naquela cabana macabra, fui até , que juntou as sobrancelhas enquanto fitava o funcionário, e segurei em sua mão, o que chamou sua atenção de imediato. Abri a porta que nos fora indicada e, assim que coloquei o nariz para fora, um cheiro característico de areia tomou conta do ar. O caminho nos levava escadas abaixo, que dariam sobre uma plataforma de madeira e seus ramos. Assim que pisamos no último degrau, fomos pegos de surpresa por uma mulher sorridente, que parecia nos esperar.
– Turistas? – Assentimos com a cabeça para ela, que estava muito próximo de mim. – Pelas caras, acho que Matteu não foi o melhor dos atendimentos que já tiveram. – Ela estendeu a mão para nós. – O que procuram?
– Uma lancha média para até o pôr do sol. – respondeu, simpático, e a mulher, em um jeito quase materno, abriu um lindo sorriso, já começando a andar e pedindo para que a acompanhássemos.
– Recebo muitos casais querendo almoçar em lanchas e iates, mas nunca ficam até o pôr do sol, o que eu particularmente acho que é o melhor horário do dia.
– Não somos um casal. – Sorri sem graça, revezando o olhar entre ela e , que apenas riu atrapalhado.
– Uma pena. – A mulher não se expressou com um pingo de vergonha ou pudor em sua voz. Muito pelo contrário, seu sorriso parecia confiante, o que eu categorizei como uma reação estranha. – Dariam um belo casal. Bom, agora vamos falar de lanchas. Eu recomendaria essa. – Deu duas batidinhas na popa de uma das dezenas que pairavam sobre a água.
– Então essa será. – pronunciou-se decidido e me olhou, esperando minha aprovação. Assenti com a cabeça, pensando que todas pareciam iguais para mim.
Com uma habilidade que eu não esperava, a mulher subiu na lancha como se andasse sobre o chão. O barco se mexia de acordo com a dança das ondas do mar, e, ainda assim, seu equilíbrio era invejável. Ela ofereceu sua mão para que eu a segurasse e subisse. Então, eu o fiz, analisando os colchões macios que ficavam quase na ponta frontal do barco, para tomar sol, a cadeira em frente ao volante, uma tampa branca de metal no chão e alguns lugares para sentar ao meu lado e, concomitantemente, na ponta traseira. Uma onda mais forte passou sobre a proa, o que fez a lancha balançar e eu agarrar uma das barras de metais próximas. Quando voltei meu olhar para , ele estava de braços cruzados, e a mulher tinha sumido. Por que ele estava lá parado? Ia chamá-lo quando a vi andando até com uma cesta relativamente grande em seus braços. agradeceu, agora segurando o objeto. Sem muito esforço, subiu pela popa e abriu a tampa de metal no chão. Olhei curiosa para dentro do compartimento, mas era apenas um buraco com paredes brancas de plástico.
– O que é isso? – Apontei para o chão.
– É uma geladeira. – respondeu enquanto colocava a cesta lá dentro.
– E isso?
– Isso é o nosso almoço. – Falou, já fechando a tampa e indo em direção ao volante. – Sugiro que fique sentada.
Franzi o cenho e, no segundo seguinte, quando meu corpo foi jogado para o lado em direção a um dos bancos, entendi o que ele quis dizer. Aprendi que lanchas se aceleram rápido. Assim como aviões.
dirigia o barco com facilidade demais. Ergui uma das sobrancelhas ao notar isso, pareceu-me algo suspeito, mas talvez fosse coisa da minha cabeça. Aviões, afinal, tinham um painel de controle muito mais complexo, então não seria surpreendente se aparentasse ser algo relativamente simples para ele. Não tive muito tempo, todavia, para pensar sobre isso. Ao passarmos o amontoado de pedras que continha a trilha e contornava a colina, peguei-me completamente extasiada pela paisagem. Não ficaria surpreendida se ouvisse que Positano foi meticulosamente escolhida para sediar uma das mais belas paisagens italianas, talvez a mais deslumbrante da costa amalfitana. As casas coloridas na colina cresciam entre árvores de densas folhagens, de modo a parecerem apenas flores enfeitando-as. O mar azul, que se fundia ao céu na linha do horizonte, só contribuía para a graça do local. Por fim, os raios de sol estavam tão estranhamente visíveis e apontados para a praia que era como se o próprio sol tivesse um lugar preferido na Terra.
– Bem melhor do que eu poderia ter imaginado. – Andei até a proa do barco para poder encarar melhor a paisagem quando paramos no meio do mar, completamente presa ao cenário.
– Lindo, não? – parou ao meu lado, cruzando os braços e passando o olhar sobre a costa.
– Agradeço do fundo do meu coração o Henry. – Sorri o máximo que consegui. – Por esse momento incrível da minha vida.
– Deveríamos comemorar. – não esperou que eu tivesse qualquer reação – mesmo que eu soubesse que não teria, estava completamente encantada com a vista –, voltou ao fundo da lancha e abriu a geladeira, tirando uma garrafa de vinho e duas taças.
– São dez da manhã. – Falei, rindo.
– Italianos não tomam vinho até no café da manhã? – Perguntou, confuso, tentando tirar o lacre de proteção com os dentes, já que as mãos estavam ocupadas.
– Acho que não. – Tirei a garrafa de sua mão e puxei a rolha, colocando o líquido púrpuro nas taças que ele segurava.
– Sorte que não somos italianos, então. – disse, divertido, enquanto me oferecia uma delas.
Tomei um gole depois de dar uma pequena batida na taça de em comemoração. Após algum tempo ainda encarando a vista, peguei-me cobrindo os olhos com a mão para me proteger da claridade absurda, mesmo com a proteção dos óculos escuros. Cada segundo que passava parecia ser um grau a mais ali. O calor, no entanto, era quase uma súplica para que eu tomasse sol, o que era algo que eu estava precisando urgentemente. Nem a ensolarada Califórnia conseguia manter um bronzeado em minha pele.
Coloquei os pés sobre o colchonete macio e tirei o meu vestido. Eu não tinha planejado entrar na água em momento nenhum sem ser debaixo do chuveiro, então era mais do que natural que eu não tivesse trazido um biquíni. Mas biquínis e roupas íntimas não eram basicamente a mesma coisa? Só mudava o tecido, e o formato era quase o mesmo. Concluí, satisfeita com meus pensamentos, e comecei a dobrar o vestido. Quando me virei, dei de cara com um que tinha uma expressão nunca antes vista por mim. Ele encarava-me tão profundamente que quase tive a necessidade de colocar a roupa de volta. Tinha os braços cruzados e os músculos muito ressaltados, como se estivesse tenso. Sua mandíbula pressionava seus dentes com afinco para não abrir a boca em completa admiração. Os olhos, levemente arregalados, focavam cada segundo em algum lugar de meu corpo. Exalavam um desejo tão brutal que aquilo fez meu coração acelerar. Quando se deu conta que passara tempo demais me examinando, corou, fitando os pés, ainda imóvel.
– Você se incomoda? – Perguntei, levantando o vestido em minha mão. A intenção era que minha voz saísse o mais doce possível, mas, surpreendendo-me, um tom provocante pôde ser ouvido.
– Eu... Er... Eu... – passava a mão em sua nuca e não sabia se olhava para o chão ou para mim. – Não... Eu... não me incomodo.
Contive o riso que queria escapar. Ele estava uma graça todo desconcertado e gaguejando, ainda. Me deitei sobre o colchonete, já na esperança de conseguir tirar um breve cochilo. ainda ficou uns bons minutos fazendo algo na parte de trás da lancha, algo que não me dei ao trabalho de verificar o que era. Quando ele finalmente apareceu, pude ouvi-lo se sentar ao meu lado. Assim que ele o fez, levantei meu torço para alcançar a taça apoiada no chão e beber o resto de vinho. De relance, enquanto esticava minha mão, fitei . Ele estava somente de cueca, o que me fez pensar que ele também não tinha trazido roupas adequadas para um mergulho no mar. Subi o olhar até sua barriga, dali até o peito, ombro, pescoço e rosto. Eu não poderia negar que ele era um belo homem, com o material importado direto do Olimpo e pré-selecionado pela própria Afrodite. Arregalei os olhos quando percebi que ele me encarava. Sabia que eu estava o examinando, e o sorriso dissimulado o entregava.
Virou-se de lado para me encarar melhor, e não pude deixar de notar que, daquele ângulo, a paisagem só melhorava. Engoli em seco, com a mão parada no meio do caminho até a taça. Se o homem tinha sido esculpido do barro, tinha sido particularmente esculpido de um pedaço de nuvem do paraíso e sabia bem disso. Não era possível existir qualquer outro corpo que me atraísse mais que o seu, que me puxasse mais para perto do que o seu, que causasse um frio na barriga maior do que o seu, mesmo com as cicatrizes e alguns poucos hematomas que sua pele trazia da guerra, o que o deixava ainda mais atraente, na minha perspectiva. Senti-me a maior idiota do mundo por não conseguir desviar o olhar, e o brilho na íris matizada de mostrava que ele se divertia com a situação.
– Você a ama ainda? – Perguntei a primeira coisa que me veio à cabeça para quebrar a tensão, mas, no segundo seguinte, me arrependi. Eu deveria ter continuado quieta, por mais sem graça que estivesse.
aparentava confusão por um momento, mas logo suas feições assumiram traços de ressentimentos. Voltou-se a deitar de costas e não me pareceu confortável nos minutos de silêncio seguinte. Diga-se de passagem, eu também não estava. Não fazia ideia de que direção deveria olhar, mas tinha certeza de que não seria na dos olhos dele. Achei que a tensão poderia durar por algumas horas e suspirei, voltando a fitar o céu limpo e anil. Estava tudo indo tão bem, e eu tinha que ter aberto a boca, ainda mais para perguntar sobre sua falecida ex-mulher. A dúvida poderia estar no meu subconsciente, corroendo-me por dentro, mas, ainda assim, nunca seria um tópico bom para se falar sobre, justamente agora. O troféu de mais idiota do ano iria para mim, a concorrência não tinha chance nenhuma.
– Se você se refere a Olívia, a resposta é não sei. – Respondeu com mais calma do que eu imaginei. Na verdade, eu não imaginava calma nenhuma, imaginava que ele só levantaria e voltaríamos para a costa.
– Desculpe a pergunta. Não precisamos falar sobre isso.
– Está tudo bem. – falou em um quase sussurro. – Acho que seria até bom eu falar com alguém sobre isso, e você parece interessada em ouvir. – Corei com a última parte da frase. – Eu a amei por muitos anos. É quase inevitável que eu sinta algo quando vejo uma foto ou quando ela aparece nos meus sonhos, por mais conturbados que sejam. – Ele ergueu uma das sobrancelhas e torceu a boca em desagrado. – E a verdade é que eu não consigo lidar com a sua morte. Fico pensando que talvez eu seja o culpado.
– O culpado? – Franzi o cenho, encarando seu perfil em pura confusão.
– Eu desisti de uma bolsa na Universidade de Nova York achando que aquilo iria nos afastar, e talvez teria sido melhor se eu tivesse ido, mesmo tendo acabado de adotar o Kay. Vivemos quase dois anos nos dedicando integralmente a criá-lo, sem trabalhar ou estudar, e foram anos com as melhores e piores memórias. Apesar de termos sido bancados completamente pelos pais da Olívia, sabíamos que um dia teríamos que sair da casa deles e criar a criança com uma independência que não tínhamos. Então, ela entrou para uma das universidades na cidade e não demorou muito para que se tornasse professora. – riu com alguma de suas lembranças. – Odiava ser professora, nunca foi o que ela queria, mas não podíamos nos dar ao luxo de sair do estado para cursar o que realmente queríamos se quiséssemos ao menos ter nossa própria casa. – Ele suspirou de modo pesado, e pude ver seu peito oscilar um pouco, como de quem segura o choro, apesar de não dar nenhum sinal de que iria fazê-lo. – Brigávamos quase todo dia por causa disso. Ela chegava em casa irritada por não trabalhar com o que queria, e eu não conseguia arranjar um emprego que conciliasse nossos horários. Então, eu resolvi entrar para o exército. Não era a melhor carga horária do mundo, mas era o suficiente para que Olívia não precisasse trabalhar e pudesse cuidar do Kay na nossa própria casa. O único problema é que eu só conseguia visitar nos finais de semana, se não estivesse em outro país, e eu percebi que Olívia não parecia gostar nada disso, e o tempo só ajudou a corromper nossa relação. Discutíamos toda vez que eu voltava para casa. A partir daí, as coisas iam de mal a pior. Teve uma vez que ela não me deixou ver o Kay porque tinha certeza de que eu estava a traindo. Ela achava que eu podia voltar para casa durante a semana, mas que preferia dormir com outra mulher nesses dias. Não a entenda mal, Olívia não era do tipo ciumenta, apenas parecia cansada e chateada. Oito anos depois de nos formarmos, ela se tornara a melhor mãe do mundo, mas, para isso, teve que abrir mão de tudo que sempre quis. De viajar o mundo, de fazer faculdade, ir às festas com as amigas e tudo que uma pessoa de vinte anos quer. Trocou essa vida por ter que trocar fraldas oito vezes ao dia, levar Kay aos treinos de futebol e natação, ajudar com os trabalhos escolares, cozinhar todas as refeições, arrumar os brinquedos espalhados pela casa e outras milhões de coisas que não são fáceis, mas que ela, ainda assim, parecia fazer com habilidade e perfeição.
– Imagino que seja uma rotina maçante.
– Muito mais difícil do que achamos. Ela não se parecia nem um pouco com a Olívia que namorei por anos antes de nos formarmos. Uma Olívia calma, generosa e carinhosa. Não a culpo de modo nenhum, eu mudei muito também. Já não parecíamos nos encaixar tanto assim nas decisões maduras que precisávamos tomar, mas eu não podia reclamar. Tínhamos uma vida muito boa por causa do dinheiro e da influência dos pais dela. E, apesar dos momentos de conflito, Olívia ainda me fazia feliz como mais ninguém conseguia. Nos últimos dias que a vi, ela parecia tão feliz, sempre tão sorridente. Conversávamos até sobre ela deixar o Kay sobre os cuidados dos seus pais para ela fazer a faculdade que queria, mesmo que oito anos depois.
– Como você se sentiu? – Virei-me para encarar seu perfil. – Como você se sentiu quando ela se foi?
– Completamente perdido. – suspirou de modo lento para que controlasse a vontade de chorar, que fazia seus olhos arderem. – Eu jurei em nosso casamento que a amaria até a morte nos separar, que nunca a esqueceria, que sempre estaria ao seu lado. Fiquei desnorteado, quase fui desligado do exército naquele ano e perdi a licença de piloto temporariamente. Eu não sabia o que faria. Agora éramos só Kay e eu. O começo foi complicado, mas a vida não para, mesmo você fazendo de tudo para que isso aconteça e o tempo... O tempo cura, . Até uns meses atrás... – pigarreou e ruborizou quando voltou a falar. – Até te encontrar no check-up da ala médica, eu não achei que meu coração seria de outra pessoa senão de Olívia, mas eu nunca fiquei tão feliz em estar errado. – Sorriu tímido, e eu não pude evitar fazer o mesmo.
– Deve ter sido muito difícil para Kay.
– Ele tinha apenas oito anos quando aconteceu. Agradeço aos céus por não ter sido ele quem a encontrou deitada no chão da cozinha. Eu não sei muito bem se Kay entendeu o conceito de morte na época, mas ele com certeza sentiu a falta que a Olívia fazia. Ela estava com ele o tempo todo e simplesmente desapareceu da noite para o dia. No começo, ficava em silêncio e só queria dormir comigo, mas, ao longo do ano, melhorou e já parecia ser a mesma criança. Bem, não a mesma, mas, como voltou a morar com os avós depois que minhas férias acabaram, sentiu-se em um local já familiar, acho.
Assim que parou de falar, virou seu olhar em direção ao meu, e eu não fui capaz de continuar a conversa densa que estávamos tendo. Algo no brilho de sua íris afiada arrepiou todos os pelos da minha nuca. Talvez fosse o misto de carinho e sinceridade que transmitia, ou talvez fosse o conforto que sentia em conseguir conversar sobre esse assunto tão delicado comigo. Agora, nossos corpos estavam virados um de frente ao outro, em uma distância perigosa. Meu coração batia violentamente, e eu sentia que ele estava prestes a rasgar meu peito. colocou uma mecha de cabelo minha atrás da orelha, e fechei os olhos em reflexo. O toque da ponta de seu nariz gelado no meu gerou um pequeno choque, tudo o que eu conseguia fazer era apenas me permitir sentir o contato de sua mão em minha cintura. Quase como se não pudesse ser real, seus lábios quentes tocaram os meus em um gesto meticuloso. Assim que o senti depositar um leve beijo ali, não pude evitar colocar as mãos em seu cabelo, puxando-o de maneira delicada para mais perto e acabando com qualquer espaço remanescente entre nós. pediu passagem para que sua língua tocasse a minha, aprofundando o beijo, e eu, nem se quisesse, conseguiria negar. O encaixe foi ridiculamente perfeito.

– Isso é tão gostoso. – Falei, mordendo um dos morangos que estavam na caixa de plástico. Se eu morasse na Itália, as refeições seriam meus maiores prazeres, sem dúvidas.
O sol havia tocado o horizonte há poucos segundos e o céu começava a escurecer, trazendo uma brisa um pouco mais gélida. Eu estava encharcada por conta do mergulho que havíamos dado mais cedo, e a água que respingava de meu cabelo e escorria sobre minhas costas só contribuía para eu sentir mais frio.
– Eu poderia comer centenas. – falou, divertido, enquanto procurava mais alguma caixa de morangos na cesta, sem sucesso, no entanto. Havíamos acabado com quase tudo no almoço, inclusive com as duas garrafas de vinho, o que explicava as risadas fáceis e a lerdeza de raciocínio.
– Talvez devêssemos voltar. – Estreitei os olhos quando me toquei que estávamos no meio do oceano, um pouco mais afastado da praia do que eu me lembrava. – Mas você não pode dirigir assim.
– Assim como? Não sei do que você está falando, eu estou.
– Você está o quê? – Dei uma risada animada, e não parecia entender nada.
– Estou o quê?
– Eu sei o que você não está. – Ri de sua cara de confusão. – Sóbrio o suficiente para nos levar até o porto.
– Mas eu quero dirigir. – fez um bico meigo, e eu sorri maliciosa com a ideia que surgiu em minha cabeça.
– Tudo bem, mas se você quer tanto assim, vai me perdoar.
Sem hesitar e aproveitando que ele estava na borda da proa, empurrei-o pelo peito, o que o fez cair com tudo dentro do mar. Pude ouvir o baque que suas costas produziram ao se chocar contra a água gelada. Encarava-o quando seu corpo emergiu e pude concluir que sua expressão facial não era nada amigável. nadou até a popa da lancha com muita pressa e em choque. Enquanto colocava meu vestido, subiu o mais rápido que conseguiu, com o queixo tremendo de frio, e eu fui até ele com uma toalha.
– Por que diabos você fez isso? – Ele pareceu irritado, e eu não contive o riso, o que fez com que sua expressão passasse de bravo para admirado em questão de milésimos de segundo.
– Você está bem mais sóbrio, não está?
ia revidar, chegou até a abrir a boca, porém a fechou quando percebeu que realmente estava.
– Você não vai só dirigir o barco, , vai dirigir o carro de volta a Roma também, e eu preciso de você em perfeito estado. – Falei enquanto passava a mão sobre a toalha em um movimento repetitivo para esquentar seus braços.

Meu relógio de pulso anunciava uns minutos depois das oito horas quando finalmente chegamos na rua em que o carro estava estacionado. segurava minha mão de maneira firme para me guiar entre a onda de pessoas que passeavam pelas ruas de Positano à procura de um restaurante para jantarem. A iluminação dos postes e do comércio não era nada precária e não conseguia esconder bem o sorriso de felicidade que eu carregava em meu rosto. Nas últimas horas, tudo o que eu conseguia pensar era sobre o beijo no barco, como tinha sido algo que eu tanto precisava e nem ao menos sabia.
– Talvez conseguiremos chegar antes das onze horas. – abriu a porta do carro para eu entrar.
– Será que deveríamos passar em algum lugar e comer durante a volta?
– Uma boa pergunta. – Ele ficou parado na calçada enquanto pensava. – É nessas horas que eu sinto falta de hambúrgueres para viagem dos Estados Unidos.
– Poderíamos comprar frutas, tomar sorvete antes de ir ou pedir pizza para viagem.
– Você me conquistou quando disse pizza. – Ri discreta com a animação na voz dele, observando-o entrar no carro.
Paramos em um restaurante um pouco mais vazio e afastado da cidade. Não sei bem como isso aconteceu, contudo, apenas cinco minutos depois de fazer o pedido, uma mulher trazia duas pequenas caixas de pizzas individuais e duas garrafas de água. Água seria boa para prevenir uma breve ressaca na manhã seguinte. Ninguém quer dor de cabeça e enjoo durante um lindo passeio turístico pelos vinhedos ao redor de Roma, certo?
Não era difícil concluir que, menos de quinze minutos depois, já estávamos na estrada, agraciados pelo mais alto som das músicas em italiano que saíam do rádio, cujas letras não sabíamos, e, ainda assim, insistíamos em cantar junto com todo oxigênio dos pulmões.
deu duas mordidinhas no ar assim que eu abri uma das caixas de pizza, mantendo as mãos sobre o volante.
– Você quer? – Tive que falar um pouco mais alto por causa dos sons da melodia e do vento cortante. Ergui uma das sobrancelhas e levantei uma das fatias com a mão, mantendo um sorriso provocativo em meus lábios. Ele apenas se limitou a assentir com a cabeça. – Que pena que está dirigindo.
Mordi a ponta da fatia com a melhor cara de satisfação que consegui fazer, e ficou boquiaberto e estreitou os olhos, quase sem conseguir conter o riso.
– Isso é covardia. Eu estou morrendo de fome, e você ainda joga na cara. O que aconteceu com a generosa e meiga?
– Deveríamos discutir quem realmente é o dramático. – Sorri divertida, e me encarou por alguns segundos. Senti um arrepio percorrer minha nuca quando um misto de doçura e admiração brilhou em seus olhos. Talvez fosse só impressão minha ou a escassa iluminação que vinha da lua e dos faróis do carro.
Balancei a cabeça para espantar os pensamentos e ergui a pizza até próximo dele. mordeu um pedaço gigante, o que me fez rir quando percebemos que ele mal conseguiria fechar a boca, e quase não compreendi as palavras de agradecimento que vieram em seguida.
Por alguns minutos, eu apenas observei o padrão de árvores se repetir na paisagem. A falta de conversa não me deixou desconfortável como normalmente faria. Muito pelo contrário, o silêncio de era quase acalentador, como se não precisássemos de palavras para entendermos que o momento era de simples proveito. Aproveitar paisagens tão lindas, a calma, a companhia e até mesmo aqueles sentimentos confusos que traziam borboletas em meu estômago toda vez que os olhos matizados de pairavam sobre mim.
A verdade é que a vida estava fluindo bem demais naquele instante, e peguei-me tão encantada pela falta de problemas, algo que preenchia meu cotidiano nos dias de trabalho, que fiquei surpresa quando o carro gradativamente parou, acompanhado de um barulho de engasgue estranho vindo do motor. Encarei com o cenho franzido, percebendo que o painel do carro ainda continuava aceso, assim como a luz do farol. Ele pareceu confuso por alguns segundos, porém logo abriu um sorriso fraco.
– O que aconteceu? – Perguntei, preocupada, e pude vê-lo passando a mão no pescoço. Estava desconcertado.
– A gasolina acabou.
– Desculpe, o que disse? – Pisquei os olhos algumas vezes enquanto desejava não ter ouvido corretamente.
– A gasolina acabou. – Agora ele repetiu com a voz um pouco mais baixa.
– Acontece, não se preocupe. – Sorri em um gesto de carinho quando assumiu uma expressão de angústia. Ele não escondia que estava se sentindo culpado, mas o fato é que nem eu mesma tinha me preocupado com isso também. – Vamos ver se eu consigo achar um posto aqui por perto ou uma estação de trem.
Peguei a bolsa no banco de trás e procurei pelo meu celular. Não era um dos melhores, apenas um substituto para o meu antigo, que foi baleado no casamento de Madeline, enquanto não voltávamos para a Califórnia, mas acho que daria conta. O único problema foi ver que ele não tinha sinal. Considerando que estávamos numa estrada no meio do nada, eu nem tinha como culpá-lo. Havia também o fato de que nem se sinal existisse teríamos alguma solução. Eu estive à mercê do wi-fi do hotel durante toda viagem até agora.
– Ou talvez possamos esperar uma boa alma passar por aqui. – Falei em um suspiro.
– Você acha que existe um posto perto? – perguntou enquanto revezava seu olhar entre a estrada à nossa frente e a que já tínhamos percorrido.
– Não notei nenhum posto no caminho pelo qual já passamos e não tenho muitas esperanças de que terá um daqui a uns poucos metros ou quilômetros.
– Podemos ir andando até encontrar um. – ponderou, e eu ergui uma das sobrancelhas em resposta.
– Eu tenho certeza de que isso não seria nada muito fora do normal para você, um produto perfeito da força aérea americana, mas esses saltos aqui não vão andar uns quilômetros. – deu uma risada da minha cara de desespero quando terminei a frase. Ele só deu a risada, porque, no fim do dia, não seriam os pés deles que se sentiriam passados por um triturador de carne.
– Posso te levar nas costas se você quiser.
– Tentador – Fiz um bico, pensativa. – Mas acho que não seria agradável para você.
– Quer que eu vá e você me espera aqui?
Dei uma olhada rapidamente na paisagem ao meu redor. Nada muito assustador, no entanto, admito que dentro de um carro funcionando era mais aconchegante do que parada sozinha em uma estrada perdida, esperando por alguém que talvez demorasse horas para voltar. Engoli em seco só de pensar que, a cada minuto, o frio do orvalho da noite se faria mais presente, e pareceu ler meus pensamentos.
– Tudo bem, talvez possamos esperar por alguém. – Concluiu com um sorriso gentil e abriu a porta do carro para sair. – Senta no banco do motorista, vou empurrar o carro e você direciona para o acostamento, pode ser? Não podemos ficar no meio da estrada.
Assenti com a cabeça, já colocando um dos meus pés no vão entre o banco ao meu lado e o volante. Não demorou muito para que o carro começasse a se mover devagar, e logo estávamos sobre a grama ao lado da estrada. Como em um consentimento mútuo, encostamos na lateral do carro, cada um apoiado em uma das portas, esperando que algum veículo viesse nos socorrer. Vinte minutos depois, tinha os braços cruzados, e eu já estava deitada no banco de trás do conversível, passando as mãos nos braços numa tentativa de aquecê-los. Outros dez minutos depois e estava sentado no capô do carro, balançando as pernas em distração, e eu estava no banco do motorista, com uma mão sobre a têmpora e outra brincando como volante.
– Será que vai demorar muito tempo para alguém passar? – Perguntei, entediada, e me encarou.
– Eu não sei dizer.
Desanimei um pouco com sua resposta e me encolhi ainda mais no assento. O outono italiano poderia ser caloroso durante o dia, porém podia afirmar com determinação que a noite não era o melhor clima para um vestido curto e nenhum agasalho.
– Está com frio? – Ele perguntou com a sobrancelha erguida, obrigando-me a fitar seus olhos curiosos.
– Um pouco.
Sem expressar nenhuma palavra, levantou-se e andou até mim. Em um gesto beirando a delicadeza, abriu a porta e ofereceu a mão para que eu me levantasse também. Eu não entendi o que ele estava fazendo, embora tivesse aceitado a proposta de sair do carro. subiu no capô e ficou de pé ali, esperando que eu fizesse o mesmo. Franzi o cenho, e ele se limitou a apenas estender a mão novamente, com um sorriso carinhoso no rosto, ao qual eu não conseguiria negar nada. Tirei os saltos, coloquei-os no chão de qualquer jeito e subi com sua ajuda.
– O que estamos fazendo? – Perguntei, intrigada.
– Afastando o frio. – Ele falou, dando de ombros, enquanto se sentava e aconchegava suas costas no painel de vidro. Abriu as pernas e deu dois tapinhas fracos sobre o lugar entre elas. – Prometo que não mordo. – Estreitei os olhos, sem mover um músculo, e deu uma risada divertida. – A gente até se beijou hoje, não vai ser essa proximidade que vai deixar as coisas estranhas.
Respirei fundo e comecei a me aproximar. Ele tinha razão, não é como se já não tivesse uma intimidade crescente entre nós nas últimas horas. Sentei entre suas pernas, sentindo o calor de seu peito sobre minhas costas e o calor que restou do motor sobre a lataria do carro, e aquilo provocou tanto uma sensação de proteção, como um relaxamento instantâneo de meu corpo. Ele envolveu seus braços ao meu redor e apoiou seu queixo no topo da minha cabeça.
– Foi um dia e tanto, não? – deu uma risada fraca, e eu corei um pouco.
– Aconteceu muita coisa. – Falei no automático, encarando o horizonte. – Acho que estou me sentindo um pouco confusa com esse misto de emoções, mas a sensação é de que tudo está tão certo.
– Sabe – Ele suspirou pesado, e pude notar que engoliu em seco. – Todas essas noites desde que eu voltei foram um martírio.
– Como assim?
– Ver você e no casamento me quebrou aos poucos. Achei que estava atrasado, que deixei o momento escapar de minhas mãos. Era tudo o que conseguia pensar, você era tudo o que conseguia pensar durante o tempo que eu estava fora. – Um sorriso tímido escapou enquanto ele encarava o céu. – Ficava aflito em pensar que você não se sentia mais do mesmo jeito em relação a mim. Eu a via em todo rosto na rua. Se soubesse que me sentiria daquele jeito no aeroporto quando Fred me disse que você já estava com outro, nunca teria ido embora em primeiro lugar.
Aquelas palavras me aqueceram tanto que seus braços ao meu redor só contribuíram para que o sangue circulasse mais fervorosamente em minhas bochechas.
– Sendo sincera, achar que você não tinha me enviado uma carta sequer me deixou muito chateada.
– Eu sei, me desculpe.
– Não precisa pedir desculpas. Afinal, as coisas parecem estar dando certo, não? – Um sorriso confiante surgiu em meu rosto, e mordeu o canto do lábio inferior para segurar o sorriso encantador que queria expressar, mesmo que eu não pudesse ver.
Perdida no sentimento de felicidade que infestava meu coração, demorei alguns segundos para perceber que uma luz de faróis vinha da estrada. Arregalei os olhos e apoiei as mãos na perna de para erguer meu tronco.
! Um carro!
Boquiaberta, levantei com pressa e desci do capô em um pulo. Estendi meu braço de modo frenético na beira da estrada e não poderia ter ficado mais contente quando observei a velocidade do veículo diminuir, até ele parar no acostamento do lado oposto em que estávamos. O carro era bem pequeno, e eu não fazia ideia de como o motorista, na altura que tinha, cabia lá dentro.
Hai bisogno di aiuto? – O homem perguntou, sem se aproximar.
– Não falamos italiano. – Foi quem falou, parado ao meu lado.
– Precisam de ajuda? – Ele repetiu com seu inglês carregado por um sotaque forte.
– Estamos sem gasolina. – Sorri, simpática, e ele me olhou dos pés à cabeça. – Você poderia nos deixar no posto mais perto?
Ele aparentava hesitar um pouco. Não à toa, também. Dois estranhos, com um deles tendo um corpo de soldado e uma expressão de poucos amigos, no meio de uma estrada escura, pedindo carona. Eu também ficaria desconfiada, por mais que fosse na Itália.
– Se quiser checar o tanque, pode ficar à vontade. – falou com calma.
– Não precisa. – O homem respondeu, um pouco mais tranquilo. – Posso deixar vocês no posto mais próximo. Está a uns dez quilômetros daqui.
– Podíamos ter ido a pé. – sussurrou para que somente eu ouvisse.
– Claro, demoraria só umas quatro horas para ir e voltar. – Ri de sua expressão de contrariado enquanto colocava meus saltos e andava até o outro lado da estrada, com em meu encalço. – Nunca achei que estaria entrando em um carro de um estranho à noite, em uma estrada no meio do nada.
– Teremos sorte se nada ruim acontecer. – estreitou os olhos, procurando qualquer coisa no comportamento do italiano que gerasse um sinal de alerta em sua cabeça. O homem parecia realmente inofensivo, então ele relaxou um pouco, apesar de ainda manter a desconfiança em seus músculos tensionados. Estava preparado para pular em cima dele, caso precisasse.


Capítulo 18

Acordei com um zumbido agudo em meu ouvido. A escuridão parcial, quebrada por alguns poucos raios de sol que venciam as barreiras da pesada cortina, aparentava-se ainda pior com os fios de cabelo embaraçados que caíam em cascatas sobre minha face. Meu corpo estava dolorido, nem a maciez do colchão caro daquele hotel seria o suficiente para reparar o cansaço de ontem. Ainda deitada sobre a cama, procurei o relógio sobre a mesa da cabeceira. Dez horas e dezenove minutos. Eu havia dormido demais e provavelmente perdido a excursão de degustação de vinhos que programamos para hoje. O ônibus saia às nove horas.
Grunhi baixo quando me sentei na beirada da cama. Na noite de ontem, fomos deixados no posto, mas tivemos que voltar a pé, o que rendeu em uma hora e trinta minutos de caminhada para mim e outros trinta minutos nas costas de por causa da dor no pé. Diga-se de passagem, a volta ficou muito divertida com sua companhia bem-humorada e seu péssimo gosto por piadas ruins.
Estava prestes a me levantar e abrir as cortinas, quando ouvi um barulho estranho vindo de fora do quarto. Algo deveria estar acontecendo no corredor. Dei de ombros, ainda desnorteada pelo fato de ter acabado de acordar, e andei em direção ao banheiro. Antes de conseguir colocar um pé para dentro do cômodo, o barulho peculiar chamou minha atenção novamente. Parecia alguém... sufocando. Franzi a testa e andei nas pontas dos pés até a porta que dava para o corredor. Abri apenas uma fresta e não havia nada nem ninguém além do usual chão de porcelana bem polido, algumas plantas e espelhos decorativos e o carrinho da camareira. Estava prestes a voltar para dentro do quarto, porém o mesmo barulho voltou a soar e agora parecia vir do quarto do .
Arregalei os olhos, e meu coração disparou. Abri o que restava da porta e dei dois passos para fora, parando de imediato. Talvez fosse mais seguro que eu tivesse algo para me proteger. Voltei rapidamente para perto da cama, procurando algo na cabeceira que pudesse me ajudar. Peguei o primeiro objeto que vi e corri até a porta com o número “303” em dourado. Minhas mãos suavam no encontro à maçaneta, os gemidos abafados de alguém asfixiando estavam cada vez mais altos, e isso só me deixavam mais nervosa.
Assim que entrei, foi impossível não ficar paralisada e boquiaberta com a cena. estava somente com uma calça de moletom, com ambas as mãos apertando pescoço de um homem uniformizado, enquanto o pressionava contra o colchão. O olhar de estava letal e frio de uma maneira como nunca tinha visto antes, e a pele do rosto do homem entre a cama e estava roxa.
! – Gritei em completo pavor e ele me encarou de imediato. Sua pupila estava tão contraída que era difícil de identificá-la em meio à íris, transbordando agressividade. – , O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO?
Assim que ele viu meu estado de choque, com as pernas bambas e olhos horrorizados, pareceu voltar à realidade e saiu de cima do estranho, dando três passos para trás com uma expressão de choque. Fitou suas mãos, que agora tremiam como nunca, e arregalou os olhos.
– Me desculpe. – Pediu para o outro, que passava a mão sobre a garganta com dificuldade de respirar. O homem com o uniforme preto estava claramente afogado em aflição. A primeira coisa que fez foi sair da cama e se afastar o máximo possível de , chocando seu corpo contra a parede atrás de si. – Me desculpe. Eu não quis te machucar, me desculpe.
A voz entrecortada de saía com tanto pesar e desespero que meu coração apertou. Sentia que ele estava prestes a chorar. Respirei fundo, dando meu primeiro passo para frente desde que entrei ali.
, o que foi isso? – Perguntei em um fio de voz.
– Levei um susto quando ele entrou. – Respondeu, ainda encarando suas mãos trêmulas.
– Quem é você? – Dirigi-me ao homem ainda assustado, que quase atravessava a parede de tanto pressionar suas costas contra ela.
– Sou o camareiro. – Respondeu com a voz rouca, enquanto me fitava com medo. – A recepção avisou que o senhor não estava no quarto e que eu poderia limpá-lo.
ergueu uma das sobrancelhas e pude perceber que estava incomodado.
– Eu sinto muito que isso tenha acontecido. – Sorri delicadamente para o funcionário. – Podemos conversar no corredor?
Senti que o tom da minha voz foi o mais convidativo e simpático possível, mas ele hesitou por uns bons segundos antes de responder. Estava assustado e bravo, claro. Depois de revezar o olhar entre nós, o homem concordou com um breve assentir de cabeça. Acompanhei-o para fora do quarto e fechei a porta devagar, com as mãos ainda tremendo, podendo observar um atônito, que não conseguia sequer sair do lugar, não sabendo para onde olhar.
– Eu não espero que o perdoe, o que ele fez foi muito inadmissível. – Mordi o lábio inferior, e ele se limitou a juntar as sobrancelhas em obviedade. – Quero dar uma justificativa, mas você está no direito de a recusar e ir até a recepção reclamar do ocorrido. Teria toda a razão do mundo, e ele responderia por seus atos. – Ele cruzou os braços na altura do peito, agora inexpressivo. Alguns segundos foram passados no mais puro silêncio, e interpretei aquilo como uma permissão para que eu prosseguisse. – é um soldado do exército americano. Ele acabou de voltar de uma missão muito traumática e ainda está se adaptando a uma vida normal, digamos assim. Não acho que seja uma justificativa para o que ele fez, mas peço gentilmente para que você se coloque em seu lugar. Eu juro que ele não faria mal a ninguém.
– Ele realmente é do exército?
– Sim. – Respondi um pouco mais tranquila ao notar que ele parecia um pouco menos tenso.
– Eu não vou prestar queixa, mas esse homem precisa de terapia urgentemente. – Sua fala saiu meio a contragosto.
– Pode deixar que eu mesma cuido disso, eu prometo. Sei que o certo seria você denunciar, e não queremos impedir que você o faça, se é o que quer.
De repente, abriu a porta, e eu dei um passo para trás no susto. Sua face assumia uma expressão abalada, e agora seus olhos estavam opacos.
– Me desculpe, de verdade. Eu nunca tive a intenção de machucá-lo.
– Está tudo bem. – Respondeu um pouco ríspido e voltou a me fitar com certa consternação.
A conversa parou por aí, e, logo que ele sumiu de vista no fim do corredor, voltei para dentro do quarto. estava sentado na beirada da cama, encarando o chão. Andei até ficar a um passo de onde ele estava. Quis abraçá-lo ao ver seu semblante de culpa, porém apenas respirei fundo antes de começar a falar.
– O que aconteceu aqui?
– Ele entrou sem fazer nenhum barulho e sem acender a luz. A próxima coisa que sei foi que, no susto, reagi.
– Isso é muito sério, . Imagina se eu não tivesse ouvido e ele morresse asfixiado, ou se fosse outra pessoa. Imagina se fosse Kay. Não que a vida desse homem seja menos importante, não é, mas poderia ter sido com seu próprio filho.
– Eu sei. – Suspirou pesarosamente. – É só mais uma das sequelas. Os pesadelos, a tremedeira, a sensação de estar sendo seguido... Quando acordei com ele tão próximo, não pude não sentir como se estivesse em meio à guerra, como se o inimigo fosse me atacar durante o sono. Você não entenderia, não entenderia o que é não conseguir dormir de modo profundo, não conseguir fazer o corpo relaxar, esperando que uma bala atravesse sua cabeça a qualquer momento.
Sentei-me ao seu lado e coloquei a mão em seus cabelos, fazendo um leve carinho ali.
– Você está certo, eu não entendo. Só que você não está mais na guerra, . Vai demorar um tempo para assimilar isso, mas preciso que o faça antes que você machuque alguém.
Ele apenas se restringiu a assentir com a cabeça. Aparentava estar chateado e seria amedrontador se não estivesse. Depois de alguns minutos em completo silêncio, agora sua respiração estava mais rítmica e calma.
– Por que você está com um... Um livro? – Perguntou, confuso, e eu encarei o objeto em minha mão, que eu nem sabia que apertava com tanta força até ver a ponta amarelada de meus dedos.
– Não sei, vai que eu tinha que bater em alguém.
– Com um livro? – segurou a risada, e eu ergui uma das sobrancelhas.
– Foi a primeira coisa que vi no quarto. Você deveria agradecer que eu e o livro fomos ao seu resgate.
– Obrigado. – Um sorriso gentil escapou de seus lábios, e aquilo me reconfortou, mas logo seu rosto assumiu uma feição de confusão. – Está ouvindo isso?
Franzi o cenho e olhei para a porta. Inicialmente, não escutei nada, porém logo algo captou minha atenção. O barulho de um celular tocando parecia vir do outro lado do corredor. Do meu quarto, cuja porta eu deixei escancarada quando corri para cá. Levantei o mais rápido que consegui e abri a porta do quarto do , o que só fez com que o som ficasse mais alto e claro. Quando peguei o aparelho sobre a escrivaninha, pude verificar que um número desconhecido chamava. , que já estava ao meu lado, ergueu as sobrancelhas em surpresa ao reconhecer os dígitos.
– São os pais de Olívia. Posso?
– Claro. – Entreguei o celular em sua mão. Ele nem ao menos pronunciou alguma palavra na conversa, a cada segundo que passava sua expressão ficava cada vez mais preocupada. Com certeza não era uma notícia boa.
Mordi o lábio inferior em ansiedade e sentei em uma das poltronas. Foi então que eu percebi que estava com um pijama muito curto, e aquilo me fez corar. Levantei-me e fui até o banheiro para pegar um roupão, uma vez que eu não havia trazido um casaco comprido o suficiente para o propósito. Quando voltei ao quarto, abraçando o algodão macio contra meu corpo, desligava o celular.
– Eu preciso ir. – Seu tom urgente não foi nada agradável.
– Ir aonde? O que aconteceu?
– Kay está no hospital.
– O quê? – Perguntei, preocupada, mas, naquele ponto da breve conversa, ele já estava jogando tudo dentro de sua mala em seu quarto.
Sem muito tempo para qualquer raciocínio e invadida por uma onda de apreensão, peguei o primeiro vestido que vi e entrei no banheiro para me trocar. Juntei todos os produtos que estavam no banheiro e desajeitadamente larguei-os dentro da mala. Eu corria para lá e para cá tentando recolher todos os meus pertences. Quando finalmente abri a porta, com a mala em uma mão e minha bolsa na outra, deparei-me com a porta do quarto de fechada. Corri com a velocidade que o salto permitiu e apertei o botão do elevador de maneira frenética, como se aquilo o fizesse chegar mais rápido. Quando finalmente dei meu primeiro passo no andar da recepção, pude ver que já saía do hotel.
Andei apressada até o balcão e quase joguei o cartão magnético dourado na recepcionista, agradecendo aos céus que Henry, , Amélia, Fred e Madeline já haviam pagado a estadia. Caso contrário, o check-out só me atrasaria.
– A senhorita não gostaria de avaliar sua estadia? Quer que chamemos um táxi para você?
A mulher atrás do balcão foi muito gentil, quase gritando as perguntas para mim, que corria até a porta.
– A estadia foi ótima! – Falei alto antes de pisar na calçada, sem ao menos olhar para trás.
Sorri quando percebi que daria tempo, vendo o táxi que estava parado em frente ao hotel. Abri a porta e torci para que fosse quem estava lá dentro. Do contrário, seria no mínimo embaraçoso. Joguei minha mala do banco de trás e pude ouvir a xingar alguma coisa. Assim que sentei e fechei a porta, os dois, e o motorista, encaravam-me abalados.
– Aeroporto de Roma, vamos! – Falei sem educação alguma, e homem ao volante pareceu entender a urgência, pisando no acelerador.
– Você vem? – perguntou, confuso, e eu achei aquilo uma graça.
– Claro. – Falei como se aquilo fosse óbvio, e ele abriu um sorriso encantador.
O caminho até o aeroporto pareceu demorar horas, apesar do motorista desviar dos carros como se estivesse em uma verdadeira corrida contra o tempo. Logo que ele parou em frente a uma das entradas, saímos do táxi e atravessamos correndo o pátio até os balcões de check-in. Quem visse ia achar que estávamos prestes a perder o voo. Parei ofegante em frente à atendente com o uniforme verde da Alitalia, que arregalou os olhos, e agradeci mentalmente por não havia aquela fila absurda usual, o que parecia um verdadeiro milagre.
– Qual o seu próximo voo para Los Angeles? – perguntou rápido.
– Amanhã, às seis horas da tarde.
– Não tem nenhum que sai em alguns minutos? – Perguntei, chocada.
– Temos dois saindo daqui a dez minutos, mas estão lotados, e um saindo daqui a trinta minutos, que também está cheio.
– Alguma outra companhia aérea com voo para Los Angeles agora que não esteja lotado? – Franzi o cenho, na esperança de que ela confirmasse.
A mulher voltou seu olhar para o computador e, uns segundos depois, negou com a cabeça. fitou o teto, incrédulo com a falta de sorte. A decepção em sua cara era quase palpável, e retorceu os lábios em desconforto.
– Temos um dia para esperar? – Perguntei com um sorriso fraco, já esperando por uma resposta negativa.
– Kay está com quadro grave de pneumonia. Queria voltar para casa ainda hoje. – Ele falou com uma calma surpreendente.
– Tudo bem. – Respondi, firme, e franziu o cenho com minha reação. Peguei o celular em minha bolsa e disquei um número já muito bem conhecido. Três toques foram o suficiente para que uma voz rouca soasse no outro lado da linha. – Henry?
? São duas e vinte na manhã. – Ele parecia irritado com a interrupção de seu sono.
– Eu sei, preciso de um favor.
Não pode esperar até amanhã?
– Não. – Falei, ríspida, e isso fez Henry focar em acordar. – Preciso que você nos arranje um voo de volta para Los Angeles agora.
Agora? – Ele perguntou, confuso, e bufou.
– Por favor, Henry! É importante.
Vou tentar. – Suspirou, cansado. – Te ligo em alguns minutos.
Desliguei o celular e sorri, satisfeita. Sabia que Henry daria um jeito de conseguir as passagens, tínhamos feito muitos contatos importantes durante nossos anos trabalhando no exército. Agora era apenas questão de fazer a ligação para as pessoas certas e esperar que elas lembrassem da simpatia com a qual as tratamos. Eu mesma faria as ligações, mas não tinha os números naquele celular novo.
e a atendente atrás do balcão encaravam-me curiosos.
– Eu acho que o esforço de estudar aeronáutica paga. – Minha fala deixou-os ainda mais confusos, porém não acrescentei nenhuma explicação e ficamos em silêncio. Um silêncio agonizante para e um estranho para a mulher que nos encarava.
Engoli em seco quando chequei o relógio em meu pulso. Sete minutos haviam se passado e nenhuma notícia de Henry. finalmente colocou sua mala no chão e respirou fundo. Não sei como ele mantinha aquela postura elegante de sempre, eu estaria arrancando meus cabelos em preocupação. Suspirei aliviada quando senti o celular tremer em minha mão.
American Airlines, voo AAL973. Parte em dez minutos. Já colocamos o nome do na lista de passageiros, mas não tinha outro lugar para você no mesmo voo, então te colocamos em outro da Lufthansa com escala em Munique daqui a duas horas. O número é DLH8522.
– Obrigada, Henry! Fico te devendo uma.
Vou lembrar de você ter me acordado a essa hora.
Não me dei ao trabalho de responder, apenas joguei o aparelho de volta na bolsa.
– American Airlines? – Perguntei para a mulher atrás do balcão.
– Quatro companhias adiante. – Apontou para o nosso lado esquerdo, e eu não hesitei em puxar pela mão, começando a andar apressadamente. Ele, no susto, pegou sua mala do chão e quase tropeçou em seus próprios pés.
– O que estamos fazendo? – Estava confuso, embora acompanhasse meus passos rápidos.
– Seu voo sai em dez minutos, e você nem fez o check-in.
– Que voo?
– O Henry conseguiu um voo para você na American Airlines.
– Sério? – abriu um lindo sorriso, e não pude deixar de fazer o mesmo.
– Mas precisamos nos apressar se você pretende pegá-lo.
– Achei que os voos estavam lotados.
– Vantagens de trabalhar com aviação. – Dei de ombros, aliviada por ver as máquinas de check-in automático estarem cada vez mais próximas.
Assim que chegamos, paramos em frente a uma. já começou a digitar os dados necessários.
– Esse check-in é só para quem não precisa despejar bagagem. – Ele falou, nervoso pela pressão.
– Tudo bem, deixa sua bagagem comigo.
– Mas você vai pagar a mais por isso.
, seu voo sai em oito minutos, não temos tempo para discutir isso.
– Certo. – Ele passou a mão na nuca, sem jeito, e voltou a mexer na tela. Em questão de segundos, sua passagem estava sendo impressa.
– Agora corre até a área de embarque, ainda tem um monte de processos lá dentro. – Eu disse, ansiosa.
encarou-me nos olhos por alguns segundos, e eu fiquei confusa. Por que diabos ele estava ali parado? Pegou-me de surpresa quando colocou suas mãos em minhas bochechas e depositou um beijo rápido em meus lábios. Arregalei os olhos e corei imediatamente.
– Você é incrível, .
Foi a última coisa que disse antes de começar a correr.

– Um carro passou por cima de você? – Amélia perguntou em desgosto assim que me viu saindo da área de embarque.
Fred veio em minha direção para me ajudar com as malas e Madeline estava logo atrás dele, esperando para que pudesse me abraçar. Todos pareciam extremamente radiantes, e aquilo me animou. Sorri simpática, e Maddie interpretou aquilo como um convite e quase pulou em cima de mim, envolvendo seus braços de maneira carinhosa com um jeito meigo que lhe era peculiar.
– Sentimos tanto a sua falta. – Sua voz doce e angelical me reconfortou.
– Obrigada por virem me buscar. – Agradeci enquanto já andávamos para fora do aeroporto de Los Angeles, até o estacionamento. – E sinto muito pela lua de mel.
– Foi postergada por um bom motivo. – Fred sorriu, satisfeito, e Amélia segurou o sorriso quando julgou que o homem estava completamente nas nuvens com a notícia do bebê e o casamento recente.
– Mas sério, por que a cara de acabada? – A médica entrelaçou seu braço com o meu, acompanhando meus passos. – A viagem não foi boa?
– A viagem foi ótima. – Respondi, sentindo as bochechas esquentarem, e Amélia ergueu uma das sobrancelhas, junto de um sorriso dissimulado. Eu já podia imaginar o que se passava por sua cabeça. E ela não estava completamente equivocada. – O problema é que meu voo tinha uma escala na Alemanha e o portão de embarque era do outro lado do aeroporto. Eu tinha quinze minutos para chegar e fui a última a embarcar, com direito ao meu nome sendo anunciado nos autofalantes. Desde que recebeu a ligação, a única coisa que fiz foi fazer tudo na correria.
– Queremos saber de tudo na viagem de volta para casa. – Madeline falou, animada, e eu não contive um riso.
Eu não fazia ideia do quanto estava com saudades deles até aquele momento.
– Oh, sim, queremos saber tudo. Absolutamente tudo. – Amélia disse com um tom ladino.
– Fred, você poderia me deixar no hospital? – Pedi, com um sorriso fraco.
– Não quer primeiro passar em casa e descansar um pouco? – Ele sugeriu, simpático, e Madeline apenas o olhou, encantada.
– Se não for um incômodo, prefiro que me deixe no hospital mesmo.
– Sem problemas. – A própria Madeline quem me respondeu.
– Por que você quer ir até o hospital? – Amélia perguntou, mesmo sabendo a resposta.
– Porque eu quero saber se o filho do está bem. – Engoli em seco quando percebi que a médica ia falar alguma coisa, porém fui mais rápida. – Não foi justamente por isso que cortamos a viagem na metade? Enfim, o que aconteceu enquanto estive fora?
– Você só esteve fora por quatro dias basicamente, não teve muita coisa. – Amélia revirou os olhos, e Fred não segurou o riso.
– Ela está mentindo. – Ele disse, e a mulher ao meu lado lhe lançou um olhar afiado, com uma postura agressiva.
– Henry e Amélia foram pegos pelo major-general Fox enquanto faziam gracinhas em uma das salas de pós-operatório. – Madeline deu uma risada baixa, e eu fiquei boquiaberta.
– Fomos discretos! – A médica defendeu-se.
– Muito discretos. – Fred concordou ironicamente, e Amélia rangeu os dentes.
– Que bom que você chegou, sério, eu não aguentava mais ficar com esses dois idiotas no mundo das nuvens. Eles só conseguem falar sobre isso no café da manhã, no almoço e na janta!
– Eu sei que, no fundo, você nos adora, Amélinha.
– Claro, Fred. Eu amo vocês, não consigo viver sem vocês. – Ela respondeu com uma voz afetada, em seu tom mais sarcástico. – Podemos mudar de assunto? Podemos falar sobre o novo casal?
– Novo casal? – Madeline virou-se para trás, curiosa, e eu olhei nervosa de relance para a médica, que abriu um sorriso malicioso e voltou a falar.
e .
– VOCÊS ESTÃO JUNTOS? – Maddie gritou sem pudor algum, e os seguranças do estacionamento nos encararam.
Abri e fechei a boca umas quinze vezes, sem pronunciar nem uma palavra. Nem eu mesma sabia o que tínhamos. Amélia não conseguiu conter o riso estridente que saiu de sua boca, e eu quis matá-la por isso.
– Não. – Minha voz saiu um pouco entrecortada pela indecisão, e fiz uma careta.
– Não tocamos nesse assunto quando eu vim buscar o no aeroporto mais cedo, se quiser saber. – Fred falou, procurando pelas chaves do carro em seu bolso, e abriu um sorriso discreto. – Deveríamos estar prontos para um casamento próximo?
Madeline encarou-o feliz e ergueu ambas as sobrancelhas, retornando o olhar entusiasmado para mim. O casal abraçado à minha frente parecia criar tanta expectativa que não pude deixar de ficar um pouco constrangida com a situação. Tudo que eu queria no momento era que Fred destravasse o carro e que saíssemos dali o quanto antes. Seria muito bom também se mudássemos de assunto, mas, a julgar pela expressão de curiosidade na face de todos, aquela seria a última coisa a acontecer.
– Podemos entrar no carro? – Pigarreei.
– Você vai nos contar tudo no caminho? – Amélia impôs a condição, e eu mordi o lábio inferior.
– Vocês serão delicados? – Retruquei, respirando fundo.
– Eu sei que isso foi uma indireta para mim, mas não prometo nada. – A médica revirou os olhos, impaciente.
– Tudo bem, mas, por favor, vamos logo, porque eu estou com pressa.
Madeline deu um pequeno pulinho de alegria com a minha declaração, e eu já podia imaginar que ela achava que eu e éramos um casal de contos de fadas. A queda seria bruta. Sentei-me ao lado de Amélia no banco de trás enquanto Fred guardava as malas e Madeline colocava o cinto de segurança no banco de passageiro.
– E então? Como é a Itália? – A coronel perguntou com um sorriso doce.
– Sinto que quero me mudar para lá algum dia. A comida é ótima, as cidades são lindas e a língua soa tão gostosa, sabe? – Suspirei ao lembrar de todos aqueles momentos incríveis que eu e havíamos presenciado nos últimos dias. – Amélia, quase esqueci! Seu presente.
A mulher sentada ao meu lado ficou muito animada, observando-me procurar algo em minha bolsa. Agora Fred já havia entrado no carro e dava a partida. Ergui um pote de gelatina vermelha que tinham me dado na janta no voo de Munique para cá, e Amélia assumiu um semblante de raiva imediatamente.
– Esse é meu presente? Um pote de gelatina? – Perguntou, ríspida, e eu tive que conter o riso. – É uma gelatina mágica, por acaso? Tem raspas de ouro? Colágeno rejuvenescedor? Feita de água da fonte da vida eterna?
– Desculpe, a intenção era ter mais três dias para procurar um presente para você, mas não deu. – Sorri fraco, e ela bufou, irritada.
– Cadê a colher? – Ela pediu sem me olhar na cara, claramente carrancuda, e Madeline deixou um riso escapar. Amélia estava se comportando igual a uma criança, embora não tenha sido um dos melhores presentes que já dei, convenhamos.
– Que colher? – Falei, confusa, e ela me encarou com os olhos arregalados.
– Você me traz um presente horrível e sequer trouxe uma colher para eu conseguir comer?
– De nada. – Respondi, sorrindo, e inclinei o corpo para trás quando a médica deu sinal de que iria avançar, mas não o fez.
– Isso é tão a cara do . – Fred abriu um sorriso malicioso, que pude ver pelo espelho retrovisor.
. – Amélia pareceu esquecer o incidente no segundo seguinte e acompanhou o sorriso de Fred. – Vamos falar sobre . O que está acontecendo entre vocês? Seria eu a melhor pessoa do mundo por sugerir que você e terminassem?
– Você sugeriu isso? – Fred ficou boquiaberto.
– No dia do nosso casamento. – Madeline acrescentou, mas sem intenções ruins.
– Você terminou com o no nosso casamento? – Agora o homem me fitava incrédulo, e eu desviei o olhar para a paisagem da estrada. Falar sobre o não soava tão ruim agora, e foi o que eu fiz.
– Tudo começou com um casal peculiar que conhecemos em um café no aeroporto da França depois que vocês já tinham partido e esperávamos pelo nosso voo atrasado. Acabamos tendo que fingir que éramos recém-casados por causa de um desentendimento esquisito. Para piorar a situação, nesse mesmo dia, os encontramos no mesmo restaurante de Roma, enquanto tínhamos uma conversa interessante.
– Interessante como? – Amélia questionou com o sorriso dissimulado habitual.
– Escritores ingleses. – Respondi, e sua face de decepção foi clara. – Enfim, nessa noite, jogou meus saltos numa fonte e acabamos sendo perseguidos pela polícia.
– Ficamos sabendo. – Madeline falou com um sorriso discreto. – Os noticiários informaram, e Henry foi o primeiro a reconhecer seu Louboutin. Fred tinha certeza de que era obra de , nem ele e nem eu achávamos que você faria isso por pura e espontânea vontade.
– Acreditem – Respirei fundo e arregalei os olhos. – Não foi nada espontâneo da minha parte.
– Como vocês despistaram o guarda? – A médica perguntou com a testa franzida.
Fiz uma breve careta e passei a mão na nuca, que estava um pouco dolorida pelas longas horas de voo.
– Corremos o suficiente. – Apesar de aquilo não ser completamente mentira, também não era a mais cristalina verdade. – Acabou que eu machuquei os pés, não foi nada agradável. – Fred sorriu e me encarou pelo espelho.
– Vai pular a parte da recepção no hotel? – Ele perguntou, sugestivo.
– Que parte? – Engoli em seco.
fez uma rápida menção sobre isso, sobre uma certa recepcionista super gata.
– Gata? – Fale, irritada, e Fred riu. – Só faltava ela mesma ir apresentar o quarto de e se jogar na cama acidentalmente.
– Isso é ciúmes? – Madeline disse com uma careta engraçada de curiosidade.
– Não. – Respondi em um tom firme e, logo em seguida, abri um sorriso simpático. – Bom, no dia seguinte, visitamos o Vaticano.
– Você viu o papa? – Amélia perguntou enquanto abria o plástico que tampava a gelatina e lambia a superfície da sobremesa como se aquilo fosse algo normal. Estreitei os olhos e juntei as sobrancelhas ao encarar a cena.
– Não, eu não vi o papa. Nem sei como reagiria se visse.
– O que fizeram depois? – Maddie estava animada com meus relatos.
– Almoçamos em um restaurante divino que achamos ao acaso e fomos comprar os presentes em uma feira local. Tinha muito turista e esse episódio foi bizarro. Juro que do nada saíram uns homens com roupas iguais, que começaram a dançar no centro de uma praça. Parecia algum tipo de tradição, não sei.
– Foi legal? – Madeline interrompeu-me, sem conter a emoção.
– Foi estranho, mas foi ainda mais estranho ter que participar. – Todos arregalaram os olhos com o que eu havia dito, esperando por alguma explicação. – Eu achei que a dança tinha acabado, mas eles só pausaram a música para escolherem algumas mulheres para dançarem, e eu acabei sendo convidada. Digamos que não aceitei facultativamente. Ouso dizer que foi um dos momentos mais constrangedores da minha vida e que eu não tenho habilidade motora nenhuma.
– Eu teria pagado tão caro para ver isso de camarote. – Amélia falou com um sorriso malicioso.
– Depois disso... – Continuei meu relato, mas logo fui interrompida por Fred.
– Depois disso, dois italianos bonitos vieram flertar com você, certo?
– Certo. – Respondi, um pouco desconfiada.
– E, então, ficou com ciúmes e fingiu ser seu marido de novo. – Ele acrescentou, animado, e Amélia e Madeline abriram a boca em surpresa.
– Tem certeza de que você não tocou nesse assunto com enquanto dava carona para ele mais cedo, Fred? – Ergui uma das sobrancelhas e recebi um sorriso de lado como resposta. – Não foi nada de mais, eu também tinha ficado com um pouco de ciúmes da recepcionista, mas não significou nada.
– Quando é que vocês assumem que claramente se amam? – Amélia perguntou, impaciente, mas Fred foi mais rápido que eu para responder.
– Ela não tinha contado que terminou com o , então nem passava pela cabeça do tomar alguma atitude.
– Você não contou? – Madeline ficou levemente irritada, e eu fiz uma careta, voltando o olhar para a paisagem. – Não foi esse o propósito de você ter terminado com o no nosso casamento?
A estrada do aeroporto de Los Angeles até a pequena cidade da Califórnia que eu chamava de lar nunca pareceu tão longa.
– Eu não tive coragem. – Suspirei e fiquei em silêncio por alguns segundos. Tempo o suficiente para Amélia me dar um tapa no braço e erguer uma das sobrancelhas, como se pedisse implicitamente que eu continuasse com a história. – No dia seguinte, fomos para Positano.
– Positano? – Maddie perguntou, curiosa.
– Uma linda cidade na costa, com uma praia maravilhosa. Acordamos bem cedo, e foi dirigindo. Inclusive, dirige feito um louco. Passou todos os sinais vermelhos e fazia curvas como se estivesse fugindo da polícia. – Arregalei os olhos, e Fred me acompanhou, concordando com um gesto de cabeça. – Tivemos uma boa conversa durante a viagem. O resto do dia foi basicamente um passeio de barco falando sobre sentimentos profundos... e um beijo.
– Um beijo! Finalmente! – Madeline vibrou no banco da frente, e Amélia revirou os olhos, o que me fez corar.
– Sentimentos profundos? – Fred perguntou, interessado.
– Sobre Olívia. – Sorri fraco, e ele arqueou uma das sobrancelhas.
– Vocês realmente estão sérios. – Talvez fosse impressão minha, mas Murphy pareceu engolir seco quando disse aquilo, o que me deixou um pouco preocupada. – Conversaram sobre a Síria?
– Sobre a Síria? – Falei, confusa, e Madeline colocou a mão sobre o ombro de seu marido delicadamente, como se remediasse algo.
– Não é nada. – Fred pigarreou, e Amélia e eu nos entreolhamos, concordando que aquilo pareceu estranho. – O que aconteceu depois? Como foi a viagem de volta para Roma?
– O carro quebrou. – Eu disse, em uma tentativa de quebrar o curto clima de tensão que pairava no ar. – Estava frio e tivemos sorte que um homem apareceu e aceitou nos dar carona.
– E o que vocês fariam hoje? – A médica perguntou, fingindo não estar tão interessada.
– Tour de vinhedos.
, que azar, hoje seria o melhor dia, o dia de ficar bêbada! – Amélia levantou as mãos em um gesto de indignação, e novamente senti o olhar de Fred cair sobre mim, como se previsse a parte da conversa que viria a seguir. – O que aconteceu?
recebeu a ligação dos pais da Olívia. – Falei com um leve tom de obviedade.
– Mas se isso foi há treze horas, já era quase hora do almoço na Itália. Vocês receberam a ligação enquanto estavam nos vinhedos?
– Não exatamente, Amélia. – Sorri sem graça. – Perdemos o ônibus e ficamos no hotel mesmo.
– Ficaram no hotel? Por que não saíram?
– Estávamos muito cansados por causa do dia anterior, dormimos até tarde, e eu acordei com a ligação dos pais da Olívia. – Menti, tentando evitar falar sobre o acidente entre o camareiro e o , e um arrepio passou pela minha nuca. Madeline e Fred fitavam-me, desconfiados, e Amélia só revirou os olhos, irritada.
– Que desperdício de tempo. – A médica falou, sem perceber os olhares dos dois.
– Certo. – Eu concordei, distraída, e voltei a encarar a janela.
Enquanto o tempo não passava, tentei privar meus pensamentos de , mantendo-me fixa no aglomerado de árvores que enfeitavam os limites da estrada vazia. Quando um grande prédio de vidro do hospital chamou minha atenção, suspirei aliviada por conseguir me distrair em relação aos olhares evasivos do casal e possíveis pensamentos sobre que, naquele momento, não seriam úteis.
– Obrigada, Fred. – Falei assim que ele estacionou em frente à entrada. – Você pode abrir o porta-malas para mim, por favor?
– Eu pretendia deixar as malas na casa do . – Fred falou, sugestivo.
– Tudo bem. Passo lá mais tarde então. – Sorri em agradecimento.
Assim que dei o primeiro passo sobre a calçada, pude ouvir Madeline abrir a porta e correr até mim. Ela segurou com gentileza em meu braço para que eu parasse de andar e me olhou de um jeito materno, que me preocupou.
– Aconteceu alguma coisa, Maddie?
– O que aconteceu hoje de manhã, ?
– Como assim? – Perguntei, confusa.
– Eu vi a sua cara quando você estava falando com a Amélia sobre não ter ido no tour de vinhedos. – Madeline estreitou os olhos, e eu suspirei.
quase enforcou uma pessoa.
– Como assim? – Ela arregalou os olhos e colocou a mão sobre a boca. – O que a pessoa fez de errado?
– Nada, Maddie, absolutamente nada. Ele só entrou no quarto sem fazer barulho enquanto dormia.
– Oh. – Agora uma expressão de alívio tomou conta do rosto dela. – Entendi. Ele reagiu.
– Foi no mínimo chocante. – Disse enquanto um calafrio tomava conta de meu corpo.
– Sabe, Fred também faz essas coisas. Às vezes ele grita no meio da noite, como se estivesse com uma dor descomunal, o que me faz pular da cama. Normalmente, os gritos são seguidos de vômitos. Se ele leva um susto e está com uma faca na mão, eu tenho dó da pessoa que está por perto.
– E melhora? Ou piora? – Fixei meu olhar ao seu, procurando qualquer indício de esperança ali.
– A tendência é melhorar se eles acham algum meio de se prender à sanidade, se acham um meio de se sentirem seguros. Às vezes procuram isso em lugares, às vezes em pessoas. Mas a verdade é que as memórias nunca se vão por completo. – Madeline respondeu com uma voz tão calma, que tinha certeza de que saiu menos preocupante do que realmente era.
Engoli em seco e assenti com a cabeça, dando aquela conversa por terminada. Madeline apenas me deu um abraço de despedida e voltou para o carro. Um sorriso fraco preencheu meu rosto quando eles viraram a esquina.


Capítulo 19

– Boa tarde. – Cumprimentei de maneira simpática uma das atendentes que estava atrás do balcão da recepção do hospital, concentrada em preencher uma papelada.
– Boa tarde, posso ajudá-la? – Ela logo se pôs prestativa, e eu sorri com sua gentileza.
– Eu vim visitar uma pessoa.
– A senhorita é da família do paciente?
Antes que eu respondesse, parei para analisar algumas ponderações. Talvez se eu lhe dissesse que não era, ela informaria que o horário de visita acabou e eu teria que ficar sentada em alguma dessas cadeiras da recepção até sabe-se lá quando. Talvez, todavia, se eu lhe dissesse que era parente, ela me deixaria entrar. O único problema seria ela me pedir algum tipo de documento que provasse isso, mas, naquele segundo que eu tinha para decidir, resolvi arriscar.
– Sim. – Tentei meu tom mais confiante, e a mulher ficou em silêncio, na esperança de que eu prosseguisse com minha fala. – Sou esposa do pai da criança. – O erguer de sua sobrancelha me fez corar levemente. – Sou a madrasta.
– E quem seria o paciente?
– Kay .
– Qual é o seu nome? – Ela perguntou enquanto digitava algumas coisas no computador.
. – Eu disse, um pouco mais tranquila, e a mulher voltou a me encarar com a sobrancelha erguida, justamente por causa do sobrenome. – Nos casamos há quatro dias na França. – Menti com o meu melhor sorriso cortês para colocar um pouco de credibilidade na história. – Ainda não deu tempo de mudar meu sobrenome nos documentos, nem sei se vou mudar o sobrenome também. – Juntei as sobrancelhas, começando a realmente pensar sobre isso, se eu deveria mudar meu nome se casasse um dia, mas a mulher me tirou de meus devaneios.
– Certo. – Ela pareceu acreditar, e eu quase dei um pequeno pulo de comemoração. – Você tem algum documento com você agora?
– Tenho o passaporte, serve?
A atendente apenas assentiu com a cabeça e o aceitou. Depois de registrar meus dados no sistema, avisou-me que Kay estava internado na UTI, mas que o horário de visitas para parentes acabaria em cinquenta minutos. Agradeci e, sem hesitar, andei com passos firmes até o elevador. Assim que cheguei no quarto andar, as portas se abriram e uma enfermeira passou em minha frente enquanto empurrava uma maca, com um homem deitado sobre ela. Uma sensação nostálgica invadiu meu corpo e me lembrei que, em quatro dias, estaria de volta no exército, com a rotina maçante regada a café, comentários sarcásticos de Amélia, provocações de Henry, muitos problemas para serem resolvidos e . Meu Deus, . Não havíamos nos falado desde o casamento, e eu não fazia ideia de como ficaria nossa relação a partir daqui. Balancei a cabeça de um lado para o outro na intenção de espantar tais pensamentos e comecei a andar pelo corredor.
Uma grande porta dupla de vidro com os dizeres “UTI” me separava de uma das alas do hospital. Coloquei minha mão sobre ela para empurrá-la, mas uma ideia surgiu em minha mente e logo me vi andando na direção contrária do corredor. Para minha sorte, perto dos elevadores, havia uma máquina de café e uma de comida. Em questão de minutos, eu já voltava com dois copos de cappuccino, a única opção disponível no momento, e um pacote do primeiro doce que eu vi. Meu corpo exalava uma certa necessidade desesperadora por açúcar naquele instante.
Empurrei a porta de vidro com as costas e procurei por algum rosto familiar. Precisei andar pelo menos três vezes no longo corredor para reconhecer sentado de costas, o que já deveria ser algo familiar naquele ponto da minha vida, mas tudo bem. Dei duas leves batidas na porta de correr cristalina, que ajudava a deixar todo quarto à mostra, considerando que a parede ao redor dela também era de vidro.
abriu um sorriso tímido ao me reconhecer e veio em minha direção, animado, ajudando-me com as coisas que eu carregava.
– Trouxe cappuccino. – Falei baixo enquanto fitava Kay para ver se estava acordado. – E doce.
Ele estava deitado sobre a cama, completamente imóvel e inconsciente, tomando soro intravenoso e com o que parecia ser um inalador. Sua pele aparentava estar um pouco mais pálida do que costumava ser, a julgar pelos lábios esbranquiçados. Kay era uma figura completamente frágil aos meus olhos naquele momento.
– Obrigado. – falou, já dando um gole no copo. – Quer se sentar? – Apontou para a única cadeira no quarto, e eu aceitei, embora hesitasse.
O cansaço da correria e do voo começara a surgir. Não tinha me tocado do quanto os meus pés e minha coluna latejavam de maneira incômoda até agora. Com uma delicadeza até excessiva, tirei meus saltos, fechei os olhos e passei a mão demoradamente pela extensão de meu cabelo, sentindo-o pesado. Quando voltei a abri-los, encarava-me fascinado e derrubava o café no chão, como se não percebesse o que estava fazendo. Dei uma leve risada da cena e ele corou, acordando de seu breve transe.
– Er... Eu vou até um banheiro pegar alguns papéis para limpar isso. – Apontou para o líquido no chão e coçou a nuca, sem saber muito bem para onde olhar, e eu sorri com seu jeito desconcertado. – Ou procurar alguém que limpe. Acho que simples papéis não vão dar conta de limpar o chão de um hospital, não?
– Eu acredito que não.
– Certo. Preciso ir ao banheiro também. Você se importaria de ficar olhando o Kay?
– Será um prazer, .
– Obrigado.
Nem tive tempo para falar algo, ele já havia saído do quarto. Sentei o mais encolhida na cadeira que consegui e respirei fundo, enquanto fitava Kay. Nada aconteceu por uns bons minutos, o que eu pensei ser um bom sinal. A última coisa que queria era que a situação piorasse, então peguei uma das revistas ao meu lado e comecei a folheá-la. Eu não era a maior fã de carros esportivos, mas seria esse conteúdo ou encarar as paredes extremamente brancas e sem entretenimento algum. Corri os olhos sobre as letras, não entendendo muita coisa e julgando os veículos de acordo com meus gostos.
– Quem é você? – Uma voz inusitada soou pela sala, e eu não pude deixar de direcionar meus olhos para a criança deitada na cama.
Analisei-o com calma. Kay ainda mantinha os olhos quase fechados, senão por uma pequena fenda que seu esforço permitia sustentar. À parte desse detalhe, não havia movido um músculo sequer. Sua voz soou um pouco rouca, e, por alguma razão, meu coração apertou muito.
– Meu nome é . Sou amiga do seu pai. Ele foi ao banheiro, mas já volta. – Falei enquanto cogitava levantar para chegar mais perto.
? – O menino fechou a cara, e eu não interpretei aquilo como um bom sinal.
– Sim. – Sorri terna, porém isso não se mostrou útil. Ele ainda tinha a postura de alguém incomodado. – Precisa de alguma coisa? Quer que eu chame o médico?
– Não são os adultos que deveriam saber o que fazer? – Perguntou ácido, como se aquilo fosse óbvio, e eu ergui uma das sobrancelhas.
– Eu não sei o que você está sentindo. – Falei um pouco mais séria, por conta da pouca receptividade. – Mas se não estiver se sentindo melhor, temos que chamar o médico.
Um silêncio estranho tomou conta do local, e eu engoli em seco. Definitivamente não era assim que eu gostaria que as coisas começassem, mas me senti disposta a uma nova apresentação.
– Então, Kay... Posso te chamar de Kay? – Perguntei, e ele apenas me encarou de canto de olho. – Bom, Kay, quer um copo de água?
O menino, ainda hesitante, assentiu com a cabeça e me levantei, indo até uma mesa que tinha uma jarra de água e um copo. Sentei na beirada da cama, grande demais para aquele corpo tão pequeno, e lhe dei o copo de plástico. Aparentemente ele estava com muita sede, pois virou tudo em um gole só e limpou o canto da boca com o braço que tinha os fios.
– Eu sei quem você é. – Ele disse, de repente, e o encarei surpresa. – Eu ouvi o tio Fred falando de você para meus avôs.
– Espero que tenha ouvido coisas boas.
– Não posso dizer que sim. – Kay respondeu, fitando o copo, e eu engoli em seco, levantando-me da cama para voltar à cadeira.
– Entendo. Não precisamos ser gostados por todos. – Respondi com a maior paciência que consegui, mesmo sentindo uma pontada no coração.
– Sabe - Ele apertou o copo em sua mão com força, rasgando-o, e começou a falar com rapidez, quase vomitando seus pensamentos. –, você não pode substituir minha mãe!
– Desculpe, o que disse? – Fiquei um pouco chocada com a constatação repentina.
– Não ache que você pode simplesmente casar com meu pai e agir como se fosse minha mãe.
– Ok, vamos por partes. – Pedi, cruzando as pernas e recostando-me na cadeira. – Eu não vou casar com seu pai, quem lhe disse isso?
– O tio Fred disse para a Ruth que meu pai te ama, que acha que você é a mulher certa.
– Quem é Ruth? – Perguntei, mesmo que o que eu queria ter dito era “O Fred disse que seu pai me ama?”.
– Minha avó. – Ele estreitou os olhos quando respondeu isso. – Mãe da minha mãe, sabe?
– Isso era uma conversa particular? – Ignorei seu tom sarcástico, não usual para uma criança de apenas dez anos, mas compreensível, considerando que ele achava que eu estava prestes a roubar seu pai e tentar impor que ele me tratasse como sua mãe, algo que estava muito fora de cogitação, em proporções que eu nem sabia descrever.
– Talvez.
– Eu acho que deveríamos deixar esse assunto entre o Fred e a Ruth, não concorda? – Ergui uma das sobrancelhas, e Kay não respondeu. – E não se preocupe, eu tenho plena noção que nunca seria capaz de substituir sua mãe. Não sei se algo em minhas atitudes deu a entender que eu gostaria de agir como se fosse sua mãe, mas peço desculpas se isso aconteceu.
Sua postura imediatamente ficou mais leve e a expressão, menos rígida. Sem muita vontade de continuar a conversa, voltei a folhear a revista, embora sentisse um certo par de olhos curiosos sobre mim. Respirei fundo e coloquei os saltos, levantando-me bem na hora que entrou no quarto. Coloquei a revista de volta sobre a mesa, sentindo-me um pouco desconfortável, e peguei minha bolsa.
– Você já vai? – perdeu o grande sorriso que tinha quando abriu a porta.
– Sim, preciso descansar. – Sorri fraco. – Tudo bem se eu passar amanhã na sua casa para buscar minhas coisas? Fred deixou minha mala lá.
– Claro, sem problemas. Se quiser, posso levar amanhã de manhã para você. Os avôs do Kay estarão aqui e eu consigo dar uma passada em casa.
– Obrigada, , mas não se preocupe. – Respondi com a voz baixa, e ele sentiu que havia algo errado. Segurou meus braços com gentileza e me encarou nos olhos, com um semblante preocupado.
– O que aconteceu, ?
– Não aconteceu nada, é apenas o cansaço.
– Não seja boba, eu consigo ler sua linguagem corporal e te conheço há tempo o suficiente para dizer que algo está lhe incomodando.
– Está tudo bem, . – Voltei a sorrir fraco e desviei o olhar para o menino, que nos encarava curioso. – Tchau, Kay, espero que melhore. Tenho certeza de que daqui a poucos dias você estará de volta no treino de futebol da escola. – Dei uma piscadinha, lembrando de algo que havia dito sobre isso em um dos jantares na Itália.
– Você não vai dizer tchau? – perguntou, sugestivo, assim que um silêncio tomou conta da sala por alguns segundos.
– Tchau, .
Incrivelmente, a voz de Kay saiu bem mais agradável do que eu esperava. Ele parecia estar até tímido.
– Me avise quando chegar em casa. – segurou minhas bochechas, aproximando-me dele para depositar um beijo carinhoso em minha testa.
Sem responder, segui corredor afora, em direção aos elevadores. Fiz o caminho até a saída de modo tão automático, concentrada em meus pensamentos e alheia a qualquer pessoa que passasse por mim, que quase não percebi Fred e Madeline gritando meu nome assim que eu cheguei perto da porta automática que daria para fora do hospital.
! – Fred gritou uma última vez, a única que eu ouvi, e virou-se para Madeline logo em seguida. – Ela é surda assim normalmente?
Madeline apenas deu uma risada abafada e se levantou quando eu cheguei perto, para me abraçar de lado.
– O que fazem aqui? – Perguntei, distraída.
– Deixamos Amélia em casa e voltamos para visitar o Kay. – Fred respondeu com um sorriso. – Mas não nos deixaram entrar, porque só é permitido duas pessoas por vez.
– Tenho que admitir que concordo com as novas regras, na verdade. – Madeline falou, compreensiva, como de costume. – Prefiro que sejam duas pessoas por vez e um horário flexível de dez horas de visita do que quantas pessoas quisermos e apenas duas horas.
– Ainda tem mais meia hora. – Olhei o relógio de meu pulso. – Algum de vocês pode subir... A não ser que só família possa.
– Como assim só família? Todos podem, acho. – Fred franziu o cenho e me encarou. – Você subiu.
– Certo. – Dei um sorriso fraco e um frio tomou conta da minha barriga.
– De qualquer jeito, preferimos esperar. – Maddie voltou a falar. – Pelo que soubemos, Kay será transferido para um quarto normal ainda hoje, e aí nós dois poderemos visitar juntos.
– Eu adoraria fazer companhia, mas preciso de um banho e algumas horas de sono.
– Quer uma carona? – Fred ofereceu e não contive o negar com a cabeça de imediato.
– Gostaria de ir andando.
No começo, o casal estranhou um pouco, mas não demorou muito tempo para que dessem de ombro. Despedi-me e andei até a saída, sentindo um ar abafado se chocar contra meu corpo quando as portas abriram.

Coloquei o último brinco e me apoiei sobre a bancada do banheiro, encarando meu reflexo. Dormir em minha própria cama gerava um efeito quase instantâneo de melhora em mim, como se ela guardasse alguma fórmula secreta de conforto que fazia minhas olheiras sumirem. Sorri contente, satisfeita com minha aparência.
Saí do banheiro e encarei de relance o relógio ao lado da cama. Eram dez horas e alguns poucos minutos de uma bela sexta-feira e eu não voltaria a trabalhar até segunda. Três dias em que minhas únicas duas obrigações eram cancelar meu voo original da Itália para Los Angeles e relaxar.
Andei até a sala, deparando-me com as janelas e cortinas ainda fechadas. Assim que as abri, a luz forte invadiu cada pedaço do cômodo, fazendo-me estreitar um pouco os olhos e fitar as partículas de poeira cruzando o ar caoticamente. Talvez eu tivesse três obrigações, limpar a casa também estava na lista.
Fui até a cozinha na intenção de procurar algo para tomar de café da manhã, mas me deparei com uma geladeira vazia. Quatro obrigações, ir ao mercado. Sem mais delongas, peguei minha bolsa e as chaves do carro e saí do apartamento.
Nunca fiquei tão feliz de ter uma cafeteria na esquina da minha rua. A verdade é que, nos cincos anos em que morei aqui, nunca a tinha frequentado. No momento em que entrei e senti o cheiro acolhedor de café fresco, entretanto, fiquei me perguntando o porquê. Talvez a falta de tempo, por não querer acordar mais cedo em dias de trabalho.
– Bom dia, como posso ajudá-la? – A moça atrás do caixa cumprimentou-me, simpática, e não pude evitar abrir um sorriso.
– Gostaria de um café mocca para viagem, por favor.
– Algo mais?
– Não, só isso mesmo. – Falei, já estendendo o dinheiro para ela. – Pode ficar com o troco.
Seu sorriso animado me alegrou um pouco.
– Pode esperar aqui do lado, o café sairá em uns dois minutos. – Apontou para um lugar à minha esquerda.
– Obrigada.
Fui até um local indicado, observando um dos funcionários preparar o café. Foquei tanto no que ele estava fazendo que levei um susto quando senti uma mão me tocar com suavidade no ombro.
? – Um belo homem, nos seus sessenta anos, talvez, com cabelos grisalhos, uma pele muito bem cuidada e um suéter impecável, me chamou.
– Sou eu. – Respondi, confusa, e tentei associar aquele rosto a qualquer traço de familiaridade, porém ele me parecia um completo estranho. – Desculpe, eu te conheço?
– Desculpe por incomodá-la. Meu nome é Darren, ainda não nos conhecemos. Sou o pai da Olívia.
– Da Olívia? – Perguntei, boquiaberta, e ele deu um sorriso tímido.
– Sim. Sei que não é apropriado lhe abordar assim, sem ao menos alguém em comum aqui para nos apresentar, mas está sempre tão ocupado que não achei que seria um incômodo se eu mesmo o fizesse. Espero que não tenha sido inapropriado.
– Não, não foi! – Falei, em uma mistura de choque e felicidade, segurando-me para não gaguejar.
Darren tinha uma postura elegante. Lembrava um pouco a de , ao mesmo tempo que possuía um ar cortês de afinidade que me fazia querer conhecê-lo. Ele estendeu sua mão em um cumprimento, e eu a apertei, sorrindo acolhedora. Naquele momento, um dos funcionários atrás do balcão estendeu meu café em um copo para viagem e eu agradeci, pegando-o.
– Eu preciso ir, preciso passar na casa do para pegar minha mala. Acho que daqui a pouco ele já deve voltar para o hospital. – Apontei para o copo que eu segurava. – Mas foi um prazer conhecê-lo.
– Não quer uma carona? Estou indo para o hospital, mas posso te deixar na casa dele.
– Muito obrigada, mas sei que não é caminho e não quero atrapalhar. Até logo, Darren. – Sorri em agradecimento e me virei para andar até a saída, mas parei assim que ele voltou a falar.
– Gostaria de lhe fazer um convite. – Ele esperou alguns segundos, mas eu não disse nada, então continuou. – Eu e minha esposa gostaríamos que você fosse à festa de aniversário do Kay. É só daqui a duas semanas, mas tenho certeza de que adoraria que você comparecesse.
Minhas bochechas coraram um pouco e assenti com a cabeça, aceitando o convite, o que fez Darren abrir um sorriso fofo. Estava impressionada com o jeito que os pais de Olívia se importavam tanto com , como se eles fossem seus próprios pais.
– Mas gostaria que Kay aprovasse minha presença. – Pedi, obstinada, e ele deu uma risada fraca.
– Você diz isso por causa do que aconteceu no hospital? – Darren ergueu uma das sobrancelhas, e eu inclinei levemente a cabeça. – Eu e meu neto não temos segredos, nossa família preza pela sinceridade.
Por algum motivo, aquela frase, naquele tom específico em sua voz, causou um arrepio em minha nuca. Foi até como se ele insinuasse algo, o que seria loucura, porque, até onde eu sei, honestidade não era algo fora do meu estilo de vida.
– Não se preocupe. – Ele voltou a falar. – O Kay disse que te achou uma pessoa legal. Ele só tem algumas inseguranças, algo completamente normal, não acha?
– Acho. – Concordei com um sorriso fraco e mudei de assunto, para evitar que a conversa ficasse cada vez mais específica. – Você poderia me dizer qual o endereço do ?
– Rua Noruega, quinhentos e vinte.
– Obrigada. – Falei antes de me virar e sair da cafeteria.
Assim que pisei na calçada, meus olhos caíram exatamente sobre meu carro, que estava a no máximo quatro metros de mim. A saudade que eu estava de dirigir não foi suprida pelo caminho até a casa de , mas foi uma boa distração. Dirigir é algo que requer que a pessoa esteja no controle de tudo, e isso me agradava.
Peguei-me o caminho inteiro pensando em de modo inevitável. Algumas das minhas memórias invadiam minha mente em uma avalanche. Cada uma delas exalava uma felicidade inexplicável. Só de pensar no sorriso entusiasmado de , meu coração acelerava os batimentos. Embora tenhamos nos visto todos os dias desde que ele voltou, eu sentia... saudades. Sua ausência tornou-se aos poucos um martírio e eu nem percebi. Foi um sentimento de afeição construído com muito cuidado e de modo extremamente sutil, sem que eu pudesse notar que se aflorava.
Sentia saudade dos momentos de ciúmes na Itália, da conversa divertida que tivemos durante a viagem para Positano, do beijo enquanto fugíamos do policial, do carro quebrado na volta para Roma...

“Sentei entre suas pernas, sentindo o calor de seu peito sobre minhas costas e o calor que restou do motor sobre a lataria do carro, e aquilo provocou tanto uma sensação de proteção, como um relaxamento instantâneo de meu corpo. Ele envolveu seus braços ao meu redor e apoiou seu queixo no topo da minha cabeça.
– Foi um dia e tanto, não? – deu uma risada fraca, e eu corei um pouco.
– Aconteceu muita coisa. – Falei no automático, encarando o horizonte. – Acho que estou me sentindo um pouco confusa com esse misto de emoções, mas a sensação é de que tudo está tão certo.
– Sabe - Ele suspirou pesado e pude notar que engoliu em seco. –, todas essas noites desde que eu voltei foram um martírio.
– Como assim?
– Ver você e no casamento me quebrou aos poucos. Achei que estava atrasado, que deixei o momento escapar de minhas mãos. Era tudo o que conseguia pensar, você era tudo o que conseguia pensar durante o tempo que eu estava fora. – Um sorriso tímido escapou enquanto ele encarava o céu. – Ficava aflito em pensar que você não se sentia mais do mesmo jeito em relação a mim. Eu a via em todo rosto na rua. Se soubesse que me sentiria daquele jeito no aeroporto quando Fred me disse que você já estava com outro, nunca teria ido embora em primeiro lugar.”


… Do momento em que ele me ajudou a limpar o raspão da bala no banheiro do castelo do casamento, de sua face de decepção ao me ver com , de quando o ajudei com a tremedeira no avião, da nossa noite em Paris...

“– Você sabe o que é sexy? – perguntou do nada, e eu o fitei, intrigada.
– Como? - Ele encarou-me profundamente nos olhos e quis desviar a visão, mas não consegui.
– Senso de humor. Um brilho saudável. Abertura. Confiança. Humildade. Apetite. Intuição. – Começou a listar tudo tão rápido, ainda mantendo o olhar vidrado ao meu, que tive que parar de andar para prestar atenção, fitando-o com um ar de cobiça e curiosidade. - Respostas afiadas. Presença. Um raciocínio rápido. Piadas sujas vindo de alguém que parece tão inocente. Uma contadora de histórias. Gosto pela aventura.”


… Da colina, da competição de bebês e do momento no elevador.

“– Que ótimo, é disso que eu precisava, ficar presa no elevador com a pessoa que eu menos quero ver no momento. – Ok, , isso só era parcialmente verdade.
– Se você não tivesse que agir como criança e ficar apertando o botão, nada disso teria acontecido. – Estreitei os olhos e encarei-o com o resto de paciência que eu ainda tinha. – Não seja ridícula, eu só queria conversar.
– Claro, porque na civilização atual o único meio de conversarmos é você me trancando no elevador.
– Parece que é mesmo. – Ele sussurrou.
– O que disse? – Perguntei, indignada. Ele não havia tido a audácia de dizer aquilo, não era possível.
– Ah, , sejamos sinceros. – parecia cansado e sentou-se no chão. Esperou uns segundos antes de voltar a falar e apoiou sua cabeça na parede, encarando o teto. – Você é uma mulher incrível. Não é à toa que eu corro atrás. Eu adoro o jeito que você agradece até demais a todos e pede desculpas até mesmo quando a culpa não é sua, porque é muito complacente. Adoro o jeito que você coloca o cabelo atrás da orelha e o jeito que morde os lábios quando está concentrada. Amo quando você me olha nos olhos e sorri, amo como você fala com paixão sobre o que te interessa e amo como você fica tão sem graça com os elogios e as piadas alheias. Não consigo lidar com o fato de que não consigo desviar o olhar quando você passa...”

Eu poderia listar dezenas de outros momentos que sua presença tornou absolutamente tudo melhor, porém esses já eram o suficiente para um sorriso bobo tomar conta de meus lábios e meu estômago revirar. Foi ali, parada em frente a um semáforo aberto e com todos os carros atrás buzinando, que percebi que eu estava completamente apaixonada por , algo que já estava muito claro em minha mente, mas que ainda assim soava como uma grande revelação naquele momento.
Balancei a cabeça para espantar os pensamentos que tanto me distraíam e voltei a acelerar o carro. Logo que estacionei em frente à casa de , não pude deixar de ficar boquiaberta. Chamar de casa seria quase um insulto. Estava mais para uma pequena mansão. A construção possuía os típicos traços americanos, mas a falta de cerca na vasta propriedade, somada à piscina no quintal e um jardim bem cuidado, traziam um ar de modernidade, refino e sofisticação que eu não esperava encontrar. Um salário de major com certeza não era capaz de bancar aquela propriedade.
Engoli em seco e saí do carro, somente para observar melhor a escada de concreto queimado com luzes de LED embaixo e os arbustos cortados em formatos perfeitos que a rodeavam. Parei em frente à porta e pressionei o botão da campainha de modo hesitante. Demorou quase um minuto e, então, abriu a porta. Parecia que ele tinha acabado de acordar. Seu cabelo estava todo bagunçado, sua camiseta, amassada, e seu pé, descalço contra o belo chão de madeira. Eu tinha quase certeza de que a leve marca vermelha em seu rosto era por conta da fronha do travesseiro.
. – ficou surpreso de início e depois abriu um sorriso radiante.
– Bom dia. – Cumprimentei, meio sem graça.
– Entre, por favor. – Ele abriu espaço para que eu passasse, mas continuei parada, cogitando se deveria. O objetivo era só buscar a mala e ir embora. – Você já tomou café da manhã?
– Tomei um copo de café. – Estava prestes a mencionar que encontrei Darren quando voltou a falar.
– Gostaria de tomar um café da manhã decente comigo? Vou só tomar um banho antes.
Fiz uma careta de indecisão, e ele apenas riu, segurando minha mão e me puxando para dentro da casa. Fechou a porta e, sem pronunciar uma palavra, subiu as escadas, deixando-me sozinha ali, como se eu já fosse uma frequentadora daquela casa gigantesca. Fiquei parada por alguns segundos, encarando a bela decoração do que era um hall conectado à sala e à cozinha em um conceito aberto. Tudo aparentava estar em perfeito alinhamento, desde os utensílios de cozinha polidos com maestria às canetas radialmente colocadas dentro de um pequeno pote em uma das mesas. era uma pessoa organizada, ao que tudo indicava.
Andei devagar até a sala, passando a mão sobre o tecido do sofá. Algo em uma das estantes perto da televisão chamou minha atenção. Era uma prateleira com vários porta-retratos. O maior, que estava bem no centro, era uma foto de e Kay em um parque. Eles eram bem mais jovens quando a foto foi tirada. Outra fotografia tinha os pais de Olívia e , que carregava um tubo com o diploma do colegial. Seu sorriso estava tão encantador que meus lábios deixaram um sorriso tímido escapar, o que me fez corar um pouco. deveria ter em torno de dezessete anos nessa fotografia e ainda assim não parecia muito diferente do que é hoje. Os outros quatro porta-retratos estavam vazios.
Não sei quanto tempo fiquei ali, encarando as fotos, porém a chegada de me fez concluir que alguns bons minutos. Ele não pareceu notar o que eu fazia e foi direto para a cozinha.
– Temos omelete, frutas, sanduíche e pizza gelada. O que você quer? – Ele falou, com a cabeça quase enfiada dentro da geladeira.
– Pode ser qualquer um.
– Qualquer um, minha opção preferida também. – Ele disse, divertido.
Deixei de lado as fotografias e andei até onde ele estava, sentando em um dos banquinhos que ficava na ilha de mármore da cozinha, onde ele já tinha colocado algumas coisas. Talvez fosse impressão minha, mas todas as pessoas do exército pareciam usar a faca com uma maestria excepcional. cortava as frutas em cubos com uma rapidez comparável à de chefs.
– Onde você aprendeu a cozinhar? – Perguntei, curiosa, e ele abriu um leve sorriso, sem desviar o olhar.
– A mãe da Olívia me ensinou.
Assim que as palavras saíram de sua boca, sua mão começou a tremer. Não era algo tão chocante como foi da primeira vez, talvez por eu ter acostumado, talvez por ter sido em menor quantidade. deixou a faca sobre a tábua e segurou seu pulso com a mão livre.
– Você poderia fazer aquele negócio que fez no avião? – Sua voz saiu tão aveludada que seria impossível negar, mesmo se eu quisesse.
– Claro.
veio até mim, estendeu sua mão e me encarou nos olhos. Apertei os pontos específicos de sua palma e o tremor diminuiu gradativamente.
– Está acontecendo com muita frequência? – Minha voz saiu mais curiosa do que gostaria.
– A frequência não diminuiu, mas a intensidade sim.
– Isso me parece um bom sinal. – Sorri gentil, e ele me acompanhou, voltando a cortar as frutas.
– Está melhorando mais rápido do que na última vez. – arqueou as duas sobrancelhas e fez uma careta engraçada.
– Última vez?
– Sim, a sequela demorou quase seis meses para sair por completo. Eu tinha pelo menos três vezes ao dia.
– Quando foi isso? – Apoiei os cotovelos sobre o mármore e o queixo em minhas mãos.
– Quando voltei da Síria há cinco anos. – Seu semblante se fechou de imediato e cortou um pedaço da fruta com tanta força que a faca atravessou metade da tábua de madeira, enfincando ali.
Engoli em seco ao perceber que aquele era o tipo de assunto que não o deixava confortável, e a breve conversa no carro com o Fred, aquela em que Madeline interveio, enquanto íamos do aeroporto ao hospital, nunca pareceu tão cristalina em minha cabeça.
– Não sabia que você tinha ido para a Síria. – Falei um pouco mais baixo, com medo dele parar a conversa por ali e eu ter que suprimir a onda de curiosidade que tomou conta de meu corpo.
– Foi minha primeira missão, Fred também estava.
Soltei o ar que segurava em meus pulmões sem ao menos saber que o fazia. Interpretei aquelas frases como uma abertura para que pudéssemos conversar sobre isso, e não parecia indisposto a responder minhas perguntas.
– O que aconteceu?
– Descobri o que realmente significava fazer parte do exército.
Sua respiração saiu tão pesada quando disse isso que, por impulso, levantei-me da cadeira e fui até onde ele estava, abraçando-o por trás. Seu coração batia tão forte que, ao encostar minha cabeça em suas costas, pude ouvi-lo. Parecia que a qualquer segundo ele rasgaria o tórax de . Ele tirou suas mãos da ilha em que se apoiava e virou-se até estar de frente para mim. Eu ainda o abraçava, e ele fez o mesmo, colocando seus braços em volta de meu corpo e apoiando sua bochecha no topo de minha cabeça. Agora, mais do que nunca, eu conseguia ouvir em alto e bom som as batidas, com a cabeça encostada em seu peito.
– Você fica tão alienado com três anos de treinamento intenso que acaba esquecendo que todo o esforço e disciplina têm uma finalidade. – Pude sentir que, a cada palavra que saía de sua boca, seus braços me envolviam cada vez mais firme. – Lá estávamos eu e Fred, completamente tomados pelo medo e a adrenalina, sentindo que nossas vidas estavam presas por um único fio. Já era a segunda semana que estávamos em um acampamento no que eu diria ser o meio do nada. Começou a escurecer, e o brigadeiro-general Dunk veio até nossa barraca. Pediu para que montássemos dois caças que haviam acabado de chegar e ser abastecidos. É claro que o obedecemos sem pensar duas vezes.
– Qual era a missão? – Perguntei, receosa.
– Era algo bem simples. A alguns quilômetros de onde estávamos, havia uma cidade. Bem, parecia mais o que sobrou dela. Era basicamente ruínas e moradias precárias. Disseram que deveríamos eliminar qualquer pessoa que ainda estivesse por lá, pois era um ponto de abrigo para terroristas. E foi isso que fizemos, eliminamos todos. Voltamos para o acampamento e, no dia seguinte, ficamos sabendo que marcharíamos para outro lugar. Para a cidade que havíamos acabado de...
não conseguiu continuar a frase, apenas sentiu sua garganta seca e afundou seu rosto em meu pescoço, como se aquilo fosse conter as lágrimas que começavam a cair.
– Quando chegamos lá e começamos a montar o novo acampamento, corpos e mais corpos de civis foram encontrados nos escombros. Civis, . Pessoas vivendo em condições terríveis, mas que não eram ameaça para uma mosca sequer. Eu e Fred matamos dezenas de pessoas inocentes, achando que fossem o inimigo, tudo porque o exército precisava daquele local para sua estratégia de ataque.
Ergui uma das mãos até o cabelo acima da nuca de e fiz um carinho delicado ali. Não importa o que eu dissesse, esse fardo nunca deixaria de ser mais pesado do que era. Ele tinha plena noção de que não se mede o valor de uma vida.
– Eu sinto muito que isso tenha acontecido, . – Passei as mãos por suas costas em carícia.
– Eu não consigo esquecer, . Não posso esquecer. – Naquele ponto da conversa, sua voz saía em soluços por causa do choro.
– Você não precisa esquecer, mas não pode deixar que isso destrua sua vida também, certo?


Capítulo 20

Ouvir o barulho de meu salto fino estalando sobre o chão de concreto liso do Hangar 1 nunca foi tão nostálgico e acolhedor. Como o usual, parei de estreitar os olhos assim que entrei no local. O sol estava mais radiante do que nunca.
– Bom dia, . – O homem, com seu terno impecável e seu sorriso gentil, me esperava na ponta da escada. – Como você está?
– Bom dia, Henry. Está particularmente feliz hoje, o que aconteceu?
– Estou feliz que você está de volta. Tive que aguentar durante uma semana inteira o engenheiro reserva e eu não o suporto. Ele passa o dia todo falando sobre mitologia grega.
– Mitologia grega me parece um assunto bem interessante. – Ergui uma das sobrancelhas enquanto Henry me acompanhava na escada.
– Realmente é, mas não quando você ouve sobre isso durante cinco dias seguidos.
– Soube que você teve seus meios de escapar disso. – Dei uma leve risada, e Henry continuou inexpressivo.
– Como assim?
– Você e Amélia foram pegos pelo Elijah na ala médica fazendo coisas que a ética do trabalho proíbe, lembra?
Abri a porta do meu escritório somente para me deparar com as coisas exatamente no lugar que as deixei. A fina camada de poeira sobre os móveis me chamou atenção. Aparentemente, ninguém passou por aqui durante a semana passada.
– Não me recordo. – Ele respondeu, divertido, e eu apenas ri de sua reação. – Como foi a viagem?
– A viagem foi boa, mas tenho certeza de que já ouviu muito sobre ela no almoço de sexta passada. – Usei meu tom mais encantador, e Henry assentiu com a cabeça, confirmando minhas suspeitas de que Amélia, Fred e Madeline haviam falado sobre isso, o que significa que também deveria estar informado da situação. – Enfim, temos muita coisa para fazer hoje.
– O que acha de começarmos com o teste de aerodinâmica que os engenheiros da base de Portland pediram?
– Temos algum prazo?
– Semana que vem.
Respirei fundo e fui direto para minha cadeira, deixando a bolsa sobre a mesa e já começando a procurar minha agenda no computador. Aquela semana estava totalmente preenchida, das oito horas da manhã até às seis horas da tarde de todos os dias. No fundo, sabíamos que a lotação era somente um sinônimo para madrugadas de café.
– Talvez devêssemos dar preferência para a pesquisa de desenvolvimento de enflechamento negativo. O prazo é maior, porém vai dar muito mais trabalho.
– Pode ser também. – Henry deu de ombros. – Você que é a chefe.
– Você tem o mesmo cargo que eu. – Rebati, e um sorriso despretensioso tomou conta de seu rosto.
– Mas você quem dá a palavra final. Não sou louco de querer contrariar, você está sempre certa.
– Eu quero agradecer, porém não tenho certeza se foi um elogio.
– Serão sempre elogios. Você não tem defeitos, boneca. – Henry sorriu galanteador, e eu revirei os olhos, ruborizando.
– Tira o seu bumbum de academia daí e pega o seu computador. Temos muito o que fazer.
Henry apenas deu uma risada e se levantou da poltrona, saindo do meu escritório para ir até seu. Em questão de poucos minutos, ele voltou, trazendo quase tudo o que estava em sua mesa e colocando sobre o sofá, ou que eu gostava de chamar de escritório improvisado do Henry. Não sei como ele aguentava ficar naquela poltrona enquanto tinha uma cadeira ergonômica perfeita na sala ao lado.
Passamos as próximas quatro horas discutindo o projeto. Chegou em um ponto em que eu já estava exausta e ainda nem era hora do almoço. Tentei mudar minha posição na cadeira diversas vezes para verificar se ajudava, mas aparentemente nada me faria um pouco mais confortável. O que me distraiu de modo vago foram as ideias brilhantes que Henry estava tendo hoje, o que nos ajudou.
– Talvez devêssemos almoçar. – Sugeri enquanto fitava meu relógio, que constatava doze horas e vinte e um minutos. – Coloquei um dos programas para analisar muitos ângulos de ataque, então acho que isso pode demorar até uma hora.
– Espero não estar interrompendo, otários. – Amélia apoiava-se no batente da porta e estava claramente impaciente, apesar de demonstrar mais cortesia que o normal.
– Amélia, sempre tão agradável. – Henry falou em um tom concomitantemente animado e sarcástico. Não pude discernir se seu entusiasmo era verdadeiro ou não. Quis acreditar que sim, no entanto.
– Por que vocês não vieram almoçar? – Sua pergunta soou ácida. Havia algo errado.
– Estávamos indo agora.
– Estavam, Henry? Porque tudo o que eu estou vendo são vocês dois sentados.
– Amélia, o que houve? – Perguntei, preocupada.
– A Madeline não para de surtar na mesa. – A médica revirou os olhos e cruzou os braços. – Hoje ela está estressada.
– Madeline? Estressada? – Henry ergueu uma das sobrancelhas, curioso. – Essa é novidade.
– Novidade para você. – Ela afirmou, arisca. – Estressada era a única palavra que definia a Madeline nos preparativos do casamento, e os hormônios da gravidez só pioravam tudo.
– O que aconteceu para ela estar estressada? – Falei, já me levantando e pegando meu crachá na bolsa.
– Eu não sei, ela não está conseguindo juntar palavras de modo coerente e Fred está estático e pálido, como se tivesse visto um fantasma. – Amélia respondeu, um pouco menos estressada. – Um verdadeiro saco de batata, na minha opinião.
– Então vamos descobrir o que está acontecendo. – Falei, decidida, já puxando Amélia pela mão para fora do escritório, com Henry em nosso encalço.
Madeline estar estressada não era um bom sinal. Ela costumava exalar aquela aura angelical e era sempre a última pessoa no cômodo a ficar triste ou irritada, o que só me fazia cativar cada vez mais uma preocupação. Meus passos eram firmes e apressados, assim como o dos outros dois. Henry foi o primeiro a entrar no carrinho do hangar, sentando-se em frente ao volante. Amélia sentou no lugar ao seu lado e não demorou muito para que eu estivesse no banco de trás. O trajeto até o refeitório foi silencioso, mas não precisaria não ser, era um percurso muito curto. Assim que entrei no local preenchido por longas mesas e pela algazarra causada pelos soldados agitados, meus olhos procuraram por Madeline. Ela estava sentada mais ao fundo, junto a um Fred catatônico, do jeito que Amélia descreveu, a e a . Os dois últimos pareciam conversar sobre um assunto sério. Aproximei-me o mais rápido que os saltos permitiam, ignorando os olhares maliciosos de alguns homens no caminho.
– Maddie? – Coloquei a mão sobre seu ombro, e logo todos na mesa me encararam.
. – Seus olhos estavam levemente marejados. – Você não vai acreditar.
– O que aconteceu? – Perguntei, preocupada, e sentei ao seu lado.
– Eu vou ser transferida. – Ela respondeu com a voz carregada.
– Transferida? Para onde? – Balancei a cabeça de um lado para o outro. Não queria acreditar que tinha ouvido corretamente.
– Houston. – Sua pupila dilatada, que agora brilhava ainda mais por conta das lágrimas que queriam cair, fitava-me de modo tão intenso que senti o coração pular uma batida. – O Texas é tão longe daqui. Eu não queria deixar vocês. – Agora ela olhava para cada um que estava ao redor da mesa. – Eu não queria deixar a Califórnia. Perguntei se eu não poderia ser transferida para algum estado mais próximo, Oregon, talvez, mas sabemos que não funciona assim.
– Não tem algum jeito de contornar isso? – Amélia perguntou com um leve tom áspero, enquanto cortava as pontas duplas de seu cabelo com um bisturi, que eu não sabia de onde tinha surgido.
– Eu também corto meu cabelo com uma lâmina de cirurgia. – falou, calma e ironicamente, com as sobrancelhas juntas e os olhos estreitos, intrigado com a Amélia.
– Talvez tenha um meio de contornar isso. – sugeriu, e todos o olhamos interessados. – Quero dizer, vai quebrar pelo menos umas quarenta regras, e eu não sei se temos as habilidades necessárias para o plano dar certo.
– Estamos ouvindo. – Fred pronunciou-se pela primeira vez. – Qualquer coisa é válida.
– Sabemos que quem assina os documentos de transferência é o general Larson, certo? – Assentimos com a cabeça para a pergunta de . – Então, o que precisamos é que ele ache que está assinando o documento certo, quando, na verdade, não está, ou que o documento seja jogado no lixo depois de assinado, se não for falso. Outro problema é o major-coronel Fox. – Agora, encarava Madeline diretamente. - Precisamos tirar seu nome do sistema dele. Caso contrário, um novo documento será fornecido para o general Larson e você seria transferida de qualquer jeito, Harvey.
– E como faremos para que Larson assine o documento errado? – Henry perguntou, interessado.
– Eu tenho uma estratégia, mas isso inclui alguém, uma mulher, para ser mais preciso, que nunca vê o general. – Assim que disse isso, todos intercalaram os olhares entre a Amélia e eu. Arregalei os olhos assim que percebi o que estava acontecendo.
– Nem pensar. – Amélia declarou mais rápido. – O Larson literalmente comanda tudo por aqui, não tenho nem coragem de chegar a vinte metros da porta da sala dele.
Respirei fundo e juntei os lábios em uma linha. Não é como se eu tivesse muitas escolhas e senti que todos entenderam as palavras de Amélia como uma confirmação implícita de que eu faria parte do plano que tinha em mente.
– Ótimo. – sorriu satisfeito e continuou a nos contar seu planejamento. – Amélia, eu preciso que você...
– Você precisa que eu quebre a perna de alguém? – Ela interrompeu-o, com a íris brilhando de emoção.
– Não, eu...
– Precisa que eu roube algo? – A médica o cortou mais uma vez, erguendo uma das sobrancelhas.
– Amélia, você...
– Finalmente vai admitir que eu sou a pessoa mais incrível do mundo?
– Amélia, você poderia parar de me interromper? – falou, irritado. – Obrigado. Eu preciso que você e Fred...
– Eu e Fred? – Amélia questionou com aversão, e respirou fundo, desviando o olhar para o teto.
– O que tem de errado? – Fred abriu a boca em incredulidade.
– O que eu quis dizer é que não quero ser vista em público com você. – Para quem não conhecesse a médica, aquilo soaria extremamente rude, mas seu sorriso dissimulado denunciava a brincadeira.
– Sério? Não notei. – Fred cruzou os braços, e Madeline deu um sorriso fraco.
– Pensando melhor - voltou a falar de modo firme. –, preciso que o Henry...
– Distraia a secretária do Elijah. – O próprio engenheiro completou, e abriu um sorriso sorrateiro quando percebeu que Henry havia entendido aonde ele queria chegar.
– Enquanto isso, Madeline e irão entrar na sala do major-general Fox. O único problema aqui é que o sistema é ativado pelo padrão da íris do olho dele.
, isso é loucura. – Madeline colocou as mãos sobre a mesa. – Não tem como burlar algo assim.
– Podemos tentar. – olhou-a sugestivo, o que me fez concluir que ele deveria ter uma ideia em mente, e isso acalmou a coronel.
– E o que eu faço? – Fred perguntou, entusiasmado.
– O que você faz de melhor, Fred: nada. – Amélia respondeu, sarcástica.
– Vou te passar a sua parte depois do almoço. – ignorou o comentário da médica e encarou Fred de um modo tão árduo que o calafrio em minha nuca foi certeiro, porém o ruivo não encarou o olhar da mesma forma que eu. – Amélia, preciso de você comigo e com a , mas não se preocupe, você não precisará chegar perto do general Larson. Precisamos estar a postos uma hora da tarde, entendido? Os documentos de transferência geralmente saem às três horas.
Amélia e Henry assentiram com a cabeça e foram em direção à fila do refeitório para pegar seus almoços. Levantei-me e dei a volta na mesa, me sentando ao lado de , um ato que foi acompanhado de maneira cautelosa pelos olhares de Madeline e . Coloquei uma mecha do meu cabelo atrás da orelha e passei as mãos suando frio sobre o vestido, não conseguindo fitá-lo em seus olhos sabendo que todos na mesa nos observavam.
? – Perguntei do jeito mais gracioso que consegui, o que gerou um sorriso tímido em seu rosto.
– Sim?
– O que vamos fazer no escritório do general Larson?
– Vou fingir que estou passando mal na presença da secretária dele. É aí que a Amélia entra em cena. Ela vai fingir que está me procurando, porque eu fui diagnosticado com alguma doença contagiosa, e a secretária será obrigada a ir para a ala médica junto a nós para fazer um exame. Como ela não pode deixar o próprio escritório, sobretudo porque ela tem que levar os documentos até o general Larson e verificar que ele assinou, ela vai contatar os recursos humanos para pedir por alguma substituta imediata, só que é Amélia quem precisa fazer essa ligação.
– Amélia vai fingir que fez a ligação. – Concluí.
– Certo. Então, você entra como a secretária substituta, leva os documentos que ele precisa assinar e rasga o de Madeline quando sair da sala dele.
– Hm... Tudo bem. – Sorri sem graça. Existiam mil e uma maneiras de eu conseguir estragar o plano de , e esse pensamento era a única coisa que preenchia minha mente no momento.
– Lembre-se de que você deve ficar ao lado dele, colocando os documentos sobre sua mesa para que ele assine e depois os retirando, um de cada vez, falando somente o necessário. - Assenti com a cabeça em um gesto rápido, e abriu um sorriso encantador, na tentativa de transmitir calma. – Não se preocupe, você executará seu trabalho sem problemas. Já vi o que você é capaz de fazer. – deu uma piscadinha, e eu mordi o lábio. – Agora, se me der licença, preciso conversar com Fred em particular.
Seu sorriso terno reconfortou-me, e ele se levantou, pegando sua bandeja e fazendo um gesto com a cabeça para que Fred o acompanhasse. Assim que eles sumiram de vista, pude perceber que me encarava com uma expressão indecifrável e eu corei um pouco. Ele não parecia muito confortável. Somente o lugar em que havia sentado nos separava. Madeline colocou os cotovelos sobre a mesa, completamente interessada na situação, com um sorriso meigo que eu não acharia apropriado para o momento se ela não fosse a personificação de um raio de sol.
. – Sorri simpática. – Como você está?
– Bem. – Ele pigarreou, com o corpo rígido, e Maddie deixou uma risada discreta escapar. – Muito bem. E você?
– Muito bem também, obrigada.
– Fico feliz. – Seu semblante inexpressivo não parecia realmente feliz, mas fingi que não havia notado.
– Vocês sabiam que o Capitão Mills vai ser desligado? – Madeline perguntou, curiosa, e nossos olhares caíram sobre ela.
– O que aconteceu? – Abri a boca em surpresa.
– Não seria algo surpreendente, não acham? – juntou as sobrancelhas.
– Por que diz isso? – Madeline claramente não esperava essa reação do coronel. Não lhe passava pela cabeça que o pobre homem merecia aquilo.
– O capitão Mills nunca foi de obedecer às regras. – pareceu se conter ao continuar a falar. – Ele não tem o perfil para ser militar.
– Mills não foi o cara que saiu do controle no combate corpo a corpo com você? – Ergui uma das sobrancelhas, e apenas assentiu com a cabeça.
– O quê? – Madeline arregalou os olhos.
– Faz uns meses já... Talvez uns seis? – Virei-me em direção a , para que ele confirmasse. Ele não disse nada, porém aparentou concordar com o olhar. – Os soldados estavam em treinamento e foi o instrutor de combate corpo a corpo nesse dia, por ordens do Elijah. Mills, por algum motivo, começou a se comportar de maneira agressiva e deu um soco muito bem dado no rosto do . Lembro até que a Amélia disse que a sutura foi chata.
– Eu lembro dessa sutura! – Maddie vibrou sobre a cadeira e fez uma careta logo em seguida. – Pegou a bochecha e o supercílio. Meu Deus, , não acredito que isso aconteceu de graça com você, coitado.
– Coitado? – Perguntei um com sorriso divertido, e deu uma risada. – Elijah interveio, mas não para amenizar a situação. Ele permitiu abrir a luta corporal para algo sem regras, como uma punição. Ele sabe muito bem do que é capaz. O capitão não sabia o que estava por vir, ficou muito confiante de que o derrotaria. Mills ficou uma semana afastado na ala médica.
! – Madeline repreendeu-o. – Como você pôde fazer isso?
– Ele não jogou limpo. – rebateu. – Não é como se você não conhecesse como o militarismo funciona, Maddie.
– Você tem uma inclinação peculiar ao estrago. – Ela cruzou os braços e se recostou na cadeira.
– Sobre o que estamos falando? – Amélia perguntou enquanto sentava na mesa, acompanhada de Henry.
– Sobre o fato do capitão Mills estar sendo desligado do exército. – Declarei.
– Finalmente. – Amélia não pareceu nem um pouco chocada com a informação. Muito pelo contrário, soou até como se estivesse aliviada. – Uma vez tive que atendê-lo por causa de algum idiota que quase o quebrou inteiro há seis meses. – Eu e seguramos a risada, e Henry me olhou confuso. – Eu estava o examinando e o otário tocou na minha bunda.
– ELE O QUÊ? – Tinha quase certeza de que todo refeitório havia me ouvido.
– Não se preocupe, digamos que o tratamento dele não teve nenhuma morfina. – A médica sorriu sombria. – Nem delicadeza alguma da minha parte. Tenho certeza de que não fará isso novamente.
– Onde estão o Fred e o ? – Henry perguntou ao perceber que ambos não estavam mais presentes.
– Não sei, mas foram conversar. – Madeline respondeu com um sorriso doce.
– Não vai almoçar? – Agora, Henry direcionou seu olhar a mim. – Temos vinte minutos antes de dar o horário.
– Quase esqueci disso. – Inclinei a cabeça e, em um movimento automático, levantei-me para ir pegar uma bandeja.

Amélia, e eu estávamos no corredor que nos levariam à sala da secretária de Larson. Minhas mãos suavam, e meu vestido nunca esteve tão apertado quanto agora. repassava com a médica o que ela deveria fazer. Distraí-me da conversa ao encarar a porta cinza, pensando no que eu precisaria fazer. Era algo relativamente simples. Meu papel seria esperar por uns cinco minutos depois que eles entrassem no escritório, alegando ser a nova assistente. Depois, tudo deveria ser feito com cautela, levar os documentos até Larson e prosseguir exatamente do jeito que solicitou.
– Entendeu? – perguntou uma última vez, e Amélia assentiu. – Ótimo. , você espera aqui.
Dei um leve sorriso enquanto o observava ir até a porta. Ele deu dois toques leves e entrou, sumindo de nossas vistas. Amélia encostou sobre a parede com o sorriso sarcástico que lhe era peculiar, feliz por estar quebrando as regras, algo que lhe trazia prazer, na realidade. Segundos depois, ela já andava em direção ao mesmo local que . De onde eu estava, era difícil discernir a conversa de maneira clara, porém notei que a voz de Amélia soava brava.
Levei um susto quando um soldado passou bem ao meu lado no corredor e coloquei a mão sobre o peito.
– A senhora está perdida? – Ele perguntou, educado.
– Não. – Abri um sorriso fraco.
– Então o que faz aqui? Essa ala é restrita.
Fiz uma careta por causa da pergunta e encarei meu relógio. Havia se passado quatro minutos, faltava apenas um para que eu precisasse entrar na sala, porém me vi obrigada a adiantar o plano, com medo de que o soldado desconfiasse de algo.
– Estava esperando dar a hora para a minha reunião com a secretária do Larson. – Tentei soar o mais firme possível, e o homem estreitou os olhos. – E o horário é exatamente agora.
Andei apressada até a porta cinza e, quando coloquei a mão sobre a maçaneta e a girei, senti o olhar do soldado ainda sobre mim. Logo que entrei, todos me encararam de imediato, e Amélia ergueu uma das sobrancelhas.
– Você chegou rápido, o RH militar é realmente bom. – A médica pronunciou enquanto rangia os dentes, repreendendo-me de modo implícito.
– Você está no exército, doutora. As coisas precisam funcionar com muita eficiência. – Falei, fria, e quase não segurou o riso. Sorte que a secretária não o encarava.
– Você tem vacina contra rubéola, certo? – Amélia perguntou, sugestiva, e eu assenti, ainda segurando a maçaneta da porta. – Perfeito. Se apressem, eu não tenho o dia todo. – A médica apontou para e depois para a porta, onde eu estava, como se o mandasse sair.
– Preciso que você leve aquela pilha ali para Larson. – A secretária indicou os papéis em cima de sua mesa. – Não se atrase. Você sabe o que deve ser feito.
Sem responder, abri passagem para que eles andassem corredor afora, até sumirem. Fechei a porta do escritório e fui direto para sua mesa. Agradeci aos céus pelo computador estar logado. Caso contrário, o plano seria um desastre. Demorei uns dez minutos revirando os arquivos até encontrar um que dizia “Cancelamento de transferência”. Olhei rapidamente para a porta, com medo de que ela fosse aberta a qualquer segundo, depois voltei a encarar a tela, fazendo uma careta logo em seguida. Foi necessário apenas incluir alguns dados de Madeline e imprimir o documento que constataria que Larson anulou a transferência dela. Assim que o fiz, troquei-o pelo que já estava na pilha ao meu lado e coloquei o original na pequena máquina de triturar ao lado da cadeira.
Engoli em seco e peguei a papelada, apoiando-a em meu braço. Não demorou muito para que meus passos apressados me levassem até a sala do general. Dei dois leves toques sobre a madeira e um murmuro não muito convidativo pôde ser escutado.
– Você está atrasada. – Ele disse assim que eu abri a porta, sem desviar o olhar dos papéis que lia.
– Me desculpe.
Assim que me pronunciei, seu olhar caiu sobre mim. Ele estranhou a voz diferente da usual e passou alguns longos segundos me analisando dos pés à cabeça. Talvez fosse impressão minha, mas um sorriso malicioso surgiu no canto de seus lábios, e precisei fazer esforço para não mostrar o semblante de desgosto.
Larson era um homem beirando os cinquenta anos, o que o tornava alguém extremamente jovem para o cargo de general. Tinha um peitoral largo, o que o tornava intimidante no uniforme azul sob medida, e um brilho letal nos olhos, preenchido por uma ameaça que não passava despercebida.
– Quem é você?
– Sou a substituta de sua secretária. Ela precisou fazer um exame médico emergencial e eu fui indicada.
O coronel apenas juntou as sobrancelhas e não se manifestou, mantendo-se na mesma posição o tempo todo. Assim como sugeriu, fechei a porta com a maior delicadeza que consegui e andei a passos lentos, evitando qualquer barulho, até o lado direito de sua cadeira. O trajeto foi acompanhado meticulosamente por Larson. Ele apenas recostou-se na cadeira de couro preta e esperou que eu colocasse o primeiro papel em sua frente.
– Aprovação da verba para o carregamento de mísseis dos caças. – Falei baixo enquanto colocava o documento na mesa.
havia deixado claro que eu deveria dizer sobre o que era o documento. Uma vez que Larson nunca se dava ao trabalho de lê-los, sua secretária quem revisava tudo. Os próximos vinte e três minutos foram literalmente eu lhe entregando os papéis e os recolhendo também e algumas expressões faciais estranhas de sua parte. O fato dele não ter pronunciado uma palavra sequer depois do breve diálogo assim que tinha entrado na sala me deixou incomodada.
– Transferência do capitão Olson para a Carolina do Norte. – Engoli em seco assim que percebi em que documentos havíamos chegado. Larson apenas assinou o mais rápido que pôde, já se cansando da papelada. – Transferência do primeiro tenente Duncan para a Carolina do Norte.
Por dez segundos, ele não se moveu. Passou os olhos rapidamente sobre as palavras, e eu franzi o cenho, com medo de que ele achasse que havia algo errado, porém ele apenas prosseguiu e eu retirei o papel de sua frente, colocando outro logo em seguida.
– Transferência da coronel Harvey para o Texas.
O general assinou sem hesitar. Eu acho que ele já não estava mais prestando atenção no que eu falava, porém isso se tornou irrelevante, uma vez que era o último documento da papelada que eu segurava. Sem mais delongas, arrumei tudo em meus braços e comecei a andar em direção à porta, aliviada que aquilo havia acabado, contudo ainda sentindo o peso daquela sala maldita sobre meus ombros. Assim que girei a maçaneta, dei de cara com ninguém menos do que a própria secretária de Larson no corredor, que me esperava recostada sobre a parede e carregava uma expressão de impaciência.
– Pode deixar que eu assumo a partir daqui. – Ela estendeu sua mão para que eu lhe desse os papéis.
– Tem certeza? – Dei um sorriso sem graça, e ela apenas franziu o cenho, claramente incomodada.
Sem exprimir qualquer comentário, a mulher pegou a papelada de meus braços sem gentileza alguma e se pôs a andar corredor afora. Respirei fundo e olhei para ambos os lados na intenção de verificar se havia alguém passando por ali. Como o lugar estava completamente vazio, fui apressada até o banheiro mais próximo dali, tentando espantar o nervosismo que ainda tomava conta de meu corpo. O local estava frio e um pouco úmido. O cheiro forte de cloro me obrigou a colocar a mão sobre o nariz imediatamente. Andei devagar até a bancada da pia, apoiando-me nela. Encarar meu reflexo no espelho só me fez pensar que, por mais que eu quisesse que Madeline não fosse transferida, um enjoo invadia meu estômago por estar quebrando tantas regras. Aquilo não fazia parte do juramento que eu fiz ao me juntar à equipe militar.
Balancei a cabeça de um lado para o outro assim que a imagem de uma Maddie extremamente chateada na mesa do almoço invadiu minha mente. Pelo amor de Deus, eu era sua madrinha de casamento e, sobretudo, sua amiga, não tinha nem o que cogitar.

Já deveria ser uma hora da manhã, eu não tinha certeza. O barulho da televisão soava tão reconfortante enquanto eu me deitava no sofá. A semana havia sido no mínimo conturbada e cansativa, e tudo que eu precisava naquela sexta-feira era de um longo banho quente e de um filme de comédia romântica enquanto me encolhia no canto do sofá, que foi precisamente o que eu fiz. Assim que a cena de créditos tomou conta da tela, suspirei e desliguei a televisão, criando coragem para me levantar e ir direto para a cama, arrastando pé por pé de modo demorado.
Assim que me sentei sobre o colchão macio e estava prestes a deitar, o som da campainha invadiu todo o apartamento. Franzi a testa e olhei o relógio na mesa ao lado da cabeceira. A última vez que alguém veio me visitar depois da meia-noite era Amélia no dia em que seu ex-marido foi resgatado da missão secreta dele, o que fazia anos. Levantei-me curiosa e dei passos rápidos até a porta de entrada.
? Está tudo bem? – Fiquei estática, ainda segurando a maçaneta da porta, quando me deparei com , que estava de pijama.
– Desculpe pela aparição repentina. Espero não ter lhe acordado. – passou a mão na nuca desajeitado e não pude evitar sorrir como gesto. Ele estava uma graça.
– Não, eu estava indo dormir agora. Quer entrar?
limitou-se a assentir com a cabeça, e eu dei passagem para que ele entrasse, encostando na porta que eu fechei atrás de mim.
– Aconteceu alguma coisa? – Perguntei, preocupada, e ele me encarou por alguns bons segundos antes de voltar a falar.
– Não estava conseguindo dormir.
– Pesadelos? – Ergui uma das sobrancelhas.
– Não, só não estava conseguindo dormir mesmo.
Dei passos lentos até parar a cinco centímetros de onde ele estava. permaneceu parado e com braços cruzados, apenas vislumbrando com curiosidade e cautela meus movimentos. Ergui minhas mãos até que elas encostassem em suas bochechas, e ele automaticamente fechou os olhos. Contornei os detalhes de seu rosto com o dedo indicador, enquanto a outra mão ainda pairava perto do maxilar. Aos poucos, pude perceber seu corpo perder a rigidez, sobretudo os ombros, que já não estavam tensos.
Desci as mãos até as suas e segurei-as com delicadeza. Sem dizer nada, guiei-o até meu quarto e me sentei na cama. Cruzei as pernas e coloquei um travesseiro sobre elas para que ele pudesse se deitar ali, e ele o fez. Comecei a fazer um leve carinho sobre seu cabelo, e um sorriso encantador surgiu em seus lábios.
– Seria estranho se eu te dissesse que estou com saudade, embora nos tenhamos visto há algumas horas na janta?
– Seria estranho se não fosse algo que também estou sentindo. – Respondi, tranquila.
– É estranho não lhe ter por perto o tempo todo. – Ele suspirou e voltou seu olhar para o teto, mergulhando em pensamentos. – Como na Itália, sabe?
– Foram só três dias, . – Dei uma leve risada.
– Sinto que foram trinta.
– Como foi sua semana? – Mudei de assunto e senti que seu semblante ficou um pouco mais desanimado.
– Não quero falar sobre isso, mas podemos falar sobre a sua semana, se quiser. Aposto que foi mais legal que a minha.
– Acredito que não. Fiquei quase todos os dias até às três da manhã desenvolvendo alguns projetos com o Henry. Tirando isso, nada de mais aconteceu. Uma coisa me chamou atenção, na verdade. – Fiz uma careta engraçada, e imediatamente fitou meus olhos com certa preocupação e profundidade.
– O quê?
– Você não acha que Fred está estranho? Quero dizer, no começo, eu achei que fosse por causa da transferência da Madeline, mas demos um jeito nisso. Ele me pareceu incomodado a semana toda. Será que tem alguma relação com o bebê? – Arregalei os olhos.
– Acho que não. Na quarta, eles me pareciam bem felizes com o ultrassom que fizeram. Até me deram uma das fotos para colocar na geladeira, o que não é algo normal, mas tudo bem.
– O Elijah sabe que a Maddie está grávida?
– Eu não sei, porém tenho certeza de que ele não ficará feliz com a novidade se ainda não souber. Harvey exerce um papel importante na hierarquia militar, e seis meses de maternidade é tempo o suficiente para que precisemos dela no meio do caminho.
– Seis meses de licença-maternidade soa bem pouco para mim.
– Concordo com você. Dois anos inteiros com Kay não foram o suficiente, imagina um quarto disso.
– E como o Kay está? Melhorou da pneumonia? – Perguntei enquanto procurava por algum sinal de apreensão em seu rosto.
– Foi liberado ontem mesmo. Teve uma recuperação rápida, e os pais de Olívia o buscaram...
Tinha quase certeza de que continuou a falar, mas não consegui prestar atenção. Tudo em que consegui focar foi na memória de Darren me abordando na cafeteria, um episódio de muita coincidência. Ainda me perguntava como ele sabia quem eu era. Será que Fred ou teriam me descrito para ele? A súbita vontade de conversar sobre isso tomou conta de meus instintos e não pude evitar interromper .
– Eu conheci o Darren.
– Sério? – sentou-se sobre a cama em um pulo, interessado no assunto que eu havia acabado de trazer à tona. – Quando? Como?
– Nos esbarramos em uma cafeteria há uma semana. Ele é muito simpático.
– Os pais de Olívia são incríveis. Eles me tratam como se eu fosse o próprio filho deles, sempre foi assim.
– Ele também me convidou para a festa de aniversário do Kay. – Falei baixo, e abriu um enorme sorriso.
– Você vai, não vai? – Perguntou com uma animação contagiante.
– Somente se Kay quiser.
– Não se preocupe, ele com certeza vai querer. – voltou a deitar com o humor renovado. – Kay gosta de você, ele me disse que te acha educada e inteligente, e eu com certeza não discordei. – Corei assim que ele disse isso, agradecendo a falta de iluminação para que o homem deitado em meu colo não percebesse a vermelhidão em minhas bochechas. – Você deveria levar a Amélia e o Henry também. Por mais incrível que pareça, acho que meu filho tem o mesmo tipo de humor da Amélia, então seria bom que eles se conhecessem.
– Tirar Amélia de casa nos finais de semana é uma missão penosa. Pedir para ela ir em uma festa de criança é querer um milagre.
– Diga a ela que terá bolo e salgadinhos de graça.
– Você é realmente persuasivo. – Ergui uma das sobrancelhas, e ele deu uma piscadinha. Abri um leve sorriso, e um assunto tomou conta de minha mente. – , como e Madeline conseguiram tirar o nome dela do sistema se precisavam da identificação da íris do Elijah?
– Não estou a par do que aconteceu exatamente, mas deve ter sido algo engraçado, pois toda vez que tocamos nesse assunto, eles dois começam a rir, embora não nos contem nada.
Não sei por quanto tempo havíamos ficado conversando, porém me lembrava do céu ficando claro por trás das cortinas do meu quarto, anunciando o nascer do sol. Foi mais ou menos nesse horário que nos deitamos e dormimos. Quando acordei, no entanto, o espaço ao meu lado na cama estava vazio, embora o lençol estivesse amassado. Olhei de relance para o meu relógio, somente para constatar que já era hora do almoço. Levantei-me rapidamente e comecei a passar a mão pelos meus cabelos bagunçados enquanto andava pelo apartamento à procura de . Ele não estava em lugar nenhum.
Um cheiro agradável, vindo da cozinha, chamou minha atenção. Embora tivesse dado uma breve olhada no cômodo antes, à procura de , só agora tinha notado que havia um belo vaso de cerâmica sobre a ilha, que guardava várias flores. Cravos brancos, para ser mais específica. Logo ao seu lado, uma sacola com o logo da cafeteria que ficava no final da minha rua. Aproximei-me da bancada e encontrei um bilhete com a caligrafia corrida de .

“Bom dia! Obrigado por me acolher em plena madrugada. Espero que não tenha nada para fazer à noite, te busco às sete. -


Capítulo 21

– Então você e o saíram o final de semana passado? – Amélia perguntou com um sorriso malicioso, ainda jogada no meu sofá da sala, vestida com um conjunto de moletom e passando os canais da televisão sem ao menos ter interesse real no que fazia. – Como foi?
– Muito bom. Caminhamos na praia ao anoitecer e jantamos pizza sentados na grama do jardim da casa dele depois. – Falei enquanto colocava meu salto sentada em uma das poltronas.
– Urgh, seu sorriso está tão radiante, parece até que você vai explodir. Pare ou eu serei obrigada a vomitar.
– Sabe, ainda dá tempo de você aceitar minha oferta de pegar um vestido emprestado. – Sugeri com um sorriso provocador, e Amélia revirou os olhos, desligando a televisão em seguida. – Henry só chega daqui uns minutos.
– Eu vou de moletom.
– Você sabe que é uma festa, não sabe?
– É uma festa de criança, . Ninguém vai estar vestida igual a você.
– Eu estou vestida apropriadamente.
– O seu apropriadamente é muito elegante para o meu gosto modesto.
Antes que eu pudesse contra-argumentar, ouvimos as buzinas do conversível de Henry vindas da rua. Levantei-me e peguei o presente do Kay em cima da mesa de jantar, com Amélia em meu encalço. Em dois minutos, já estávamos na frente do carro, e eu sentei ao lado de Henry, no banco de passageiro, enquanto Amélia já se preparava para tirar uma breve soneca no banco de trás.
– Boa tarde, Henry! – Dei um beijo em sua bochecha e pude sentir que a minha animação o alegrou um pouco.
– Você acha que essa blusa de gola alta é adequada? – Perguntou ao passar a mão sobre o pescoço. – Não acha que ela é muito séria? Esconde demais?
– Ainda consigo ver essa sua cara de idiota, então ela não cobre o bastante. – Amélia falou, e eu dei uma leve risada.
– Você a conhece. – Eu disse assim que Henry encarou a médica pelo espelho retrovisor. – Ela não gosta de eventos sociais nos finais de semana. Você está lindo, Henry. Tenho certeza de que causará uma ótima primeira impressão, se essa for a sua preocupação.
– Você também está linda, mas isso nunca foi novidade.
– Vocês dois querem parar de flertar? – Amélia perguntou, irritada. – Eu estou com fome. Com. Fome.
– Não estamos flertando. – Henry rebateu e começou a acelerar o carro. – Sei que você não está familiarizada com o conceito, mas isso se chama ser legal com os outros.
– Hoje vocês estão realmente arredios um com o outro, não? – Intercalei meu olhar sobre ambos. – Por favor, não discutam na festa do Kay, pode ser? É o dia mais importante do ano para ele.
– É só o otário aí se comportar. – Amélia revirou os olhos.
– Você sabe que eu sei me comportar. – Henry sorriu dissimulado, e o tom malicioso em sua voz não passou despercebido, o que gerou uma careta por minha parte.
Tentei ao máximo não focar no diálogo que se seguiu, com medo de que eu pudesse ficar traumatizada. As pequenas casas da cidade foram um bom meio de distração, peguei-me interessada em analisar os detalhes das varandas. Um grande portão preto, rodeado por muros imponentes revestidos de plantas, me chamou atenção em particular, e pude perceber que Henry parava o carro aos poucos. Havíamos chegado à casa dos pais de Olívia.
O homem ao meu lado abriu a sua janela e anunciou para o guarda de terno que havíamos vindo para a festa de aniversário. O segurança pediu nossos nomes, verificou a placa do carro e trocou algumas poucas palavras com alguém no walkie-talkie. Não demorou muito para que os portões automáticos abrissem, revelando uma trilha de pedras polidas dentro do que parecia ser uma floresta bem cuidada. À medida que o carro andava, mais encantados ficávamos. Ao fundo, uma mansão gigantesca podia ser vista, com arcos de balões na entrada, alguns castelos infláveis enormes no quintal, uma piscina que eu diria ser olímpica, uma quadra de futebol, outra de tênis e mais outras dezenas formas de entretenimento para crianças decoravam o redor da casa, no extenso gramado cortado milimetricamente.
Inevitavelmente abrimos a boca em completo choque. Aquilo era, no mínimo, o cúmulo da riqueza.
– Eu não acredito que você me deixou vir de moletom para essa mansão. – Amélia esbravejou no banco de trás, enfiando a cara entre nossos assentos. Senti que ela queria me dar um soco, só não o fez porque estava catatônica demais. – Eu te odeio, .
Assim que Henry estacionou o carro, três homens de roupas sociais abriram as portas para que saíssemos. Segurei a mão do que me a ofereceu e agradeci a gentileza. Foi somente necessário que Amélia desse a volta no veículo para que um dos garçons que perambulavam por aí nos oferecesse uma taça de champanhe.
– Isso é chique demais até para mim. – Henry parou ao meu lado.
– Que tipo de festa oferece champanhe na entrada? – Amélia perguntou, incrédula.
– O tipo de festa que os pais de Olívia organizam. – A voz suave de soou bem próxima do meu ouvido.
Assim que me virei, para ficar de frente a ele, segurou minha cintura com firmeza e depositou um leve beijo sobre meus lábios, algo que pareceu de muito interesse para Henry e Amélia, que nos fitavam encantados com a cena.
– Você está de tirar o fôlego.
– Obrigada, . – Corei, e ele me puxou mais para perto para que pudéssemos nos abraçar.
Algo naquilo me reconfortou. Era um abraço envolvente, como quem genuinamente dá proteção. Havia também algo em seu cheiro que me trazia tranquilidade. Peguei-me tão absorta em apenas sentir os braços de ao redor de meu corpo que somente quando Henry pigarreou que me toquei: os pais de Olívia e o Kay estavam parados ao nosso lado.
- Darren quem iniciou a conversa. –, essa é minha esposa, Ruth.
– Muito prazer. – Aceitei a mão que ela estendeu para nos cumprimentarmos. – Muito obrigada por nos receberem, a casa de vocês é incrível.
– Nós que agradecemos a presença. – quem se pronunciou dessa vez, dirigindo o olhar para o Kay, como se o incentivasse a falar.
– Oi. – Foi tudo que o pequeno disse.
– Olá, Kay. – Sorri gentil. – Seu presente está no carro, não quer dar uma olhada?
Um sorriso tímido surgiu em seu rosto e ele juntou as mãos à frente do corpo, esperando que alguém lhe desse permissão. Darren assentiu com a cabeça, e o menino saiu correndo em direção ao conversível de Henry. Ele e a médica, que encaravam Kay, começaram a sussurrar entre si.
– Eu acho que você deveria me deixar dirigir seu carro. – Amélia sugeriu, como quem não quer nada.
– Sonhe, bebê. – Henry deu um sorriso malicioso, e ela só revirou os olhos em resposta.
– Se nos dá licença - Ruth voltou seu olhar a mim. –, precisamos cumprimentar outros convidados. Foi um prazer conhecê-la, .
– O prazer foi todo meu. – Falei antes que eles começassem a andar em direção a outro casal e seus filhos, que haviam acabado de estacionar.
– Fred, Madeline e estão no jardim, eu acho. – apontou em direção à porta da mansão para que entrássemos.
Henry e Amélia não hesitaram um segundo antes de se jogarem para dentro do local, que, devo acrescentar, não deixava a desejar. Eu quase me senti dentro de uma revista de decoração. Móveis sob medida por todos os cantos, acabamentos estruturais finos, ornamentos delicados e rústicos, tudo parecia ornar perfeitamente. Atravessamos duas salas e uma biblioteca hercúlea para finalmente chegarmos ao jardim, onde dezenas de crianças corriam de modo caótico e os pais conversavam entre si. Não foi difícil achar , ele estava cercado pelo que pareciam oito mulheres muito interessadas no que dizia. Henry deu uma risada baixa ao reparar nisso, e Amélia varreu o local com os olhos, à procura de comida.
– Vejo vocês perdedores depois. – Sorriu perversa assim que encarou uma mesa com uma fonte de chocolate e outros doces.
– Não acabe com os donuts. – A voz de Kay soou entediada enquanto ele encarava a médica. Eu não fazia ideia de quando ele havia aparecido. – Caso contrário, sem convite para você ano que vem.
Amélia apenas estreitou os olhos, encarando o garoto com uma das sobrancelhas levantadas. Por dois segundos, realmente considerei a possibilidade de ela chutar Kay.
– Gosto de você, criatura pequena. – Um sorriso desafiador tomou conta dos lábios de Amélia, e eu arregalei os olhos, assim como e Henry. – Agora não me irrite, eu vou comer o que quiser.
– Vou cumprimentar o . – O engenheiro apontou com a cabeça para o coronel, como se me convidasse para acompanhá-lo.
apenas tirou a mão de minha cintura e sorriu simpático, incentivando-me. Logo em seguida, sem esforço algum, ele segurou Kay e colocou-o sobre o ombro, já indo em direção à quadra de futebol. O menino ria e tentava sair de lá se remexendo, sem sucesso algum. Mordi o lábio inferior ao encará-los tão felizes, e, quando me virei para fitar Henry, ele já andava até o . Apressei os passos, algo que foi difícil fazer devido aos saltos finíssimos pisando contra a grama. Assim que nos aproximamos, abriu um lindo sorriso.
! – Cumprimentou-me feliz com um beijo na testa. – Você está linda.
– Obrigada. – Sorri em agradecimento e coloquei uma mecha atrás da orelha, um pouco envergonhada com a atenção que recebia das outras mulheres que antes conversavam com o coronel, que não pareciam nada felizes com a minha aparição.
– Henry! – Estendeu sua mão para o homem ao meu lado. – Que bom que vieram. Finalmente rostos conhecidos.
– Madeline e Fred não estão aqui? – Henry perguntou, confuso.
disse que sim, mas ainda não os vi. – fez uma careta engraçada, e não pude segurar um leve riso.
– Seus filhos estão aqui? – Questionei, curiosa.
– Estão sim. – passou a mão na nuca e analisou seu arredor. – Mas não faço ideia de onde eles estão exatamente. Esse lugar é enorme. Quando os encontrar, vou avisar que você veio. Eles estão morrendo de saudades.
A partir de então, as coisas começaram a fluir de modo suave. fez questão de passar a maioria do tempo ao meu lado, apresentando-me para algumas pessoas e roubando um beijo toda vez que passava por mim ao acaso. Muitos dos convidados ficaram extremamente fascinados em conversar sobre meu trabalho e o diálogo era sempre muito divertido. Os pais, no geral, eram muito abertos e me faziam rir bastante ao contar histórias sobre casamento e filhos.
Quando enfim tive um momento para sentar, resolvi ir até uma das várias mesas dispostas sobre a grama, mas os planos mudaram no meio do caminho.
? – Ruth abordou-me com um sorriso materno.
– Sim?
– Vamos tirar algumas fotos com o bolo antes de prepararmos a mesa para cantar parabéns. – A mulher colocou a mão sobre meu queixo, e aquilo me causou uma sensação nostálgica. O gesto lembrou-me de carícias de mãe que há muito tempo não recebia. – Gostaríamos que você aparecesse também.
– Eu? – Ergui as sobrancelhas em surpresa, e Ruth entrelaçou seu braço ao meu, já começando a me guiar até a casa.
– Você é praticamente da família já, querida. não consegue tirar os olhos de você, e isso só me faz ter mais certeza de que ele ficaria muito feliz se você saísse nas fotos de comemoração.
Sorri, desconcertada com a sua constatação, e não consegui negar o pedido assim que ela abriu um sorriso meigo. Eu e meu coração mole teríamos uma conversa séria na volta para casa hoje. Onde eu estava me metendo? Eu havia acabado de conhecer os pais de Olívia praticamente e agora eu já estava saindo das fotos que preencheriam porta-retratos na sala de estar?
Logo que entramos na cozinha, pude ver e Darren conversando, enquanto Kay sentava em um dos bancos em volta da ilha de mármore, encarando o bolo com certa devoção alienada de quem iria enfiar o dedo no glacê a qualquer segundo.
Ruth pediu com gentileza para que o chef, que trabalhava freneticamente, deixasse a cozinha por alguns instantes. Assim que os garçons também pararam de transitar pelo local, um fotógrafo apareceu, e gesticulou suas mãos, chamando-me para ficar ao seu lado. Andei até onde ele estava e logo sua mão pairou sobre minha cintura, puxando-me mais para perto. Estávamos todos atrás da bancada, com Kay no meio, bem na frente do bolo e com um lindo sorriso sincero.
Tivemos problemas com algumas fotos. As primeiras porque não parava de me olhar e eu não conseguia esconder as bochechas coradas em excesso. As últimas porque Kay não conteve sua vontade e passou o dedo sobre a cobertura do bolo, o que fez a série de fotografias serem preenchidas por Ruth e Darren boquiabertos e repreendendo-o, eu arregalando os olhos cada vez mais e rindo escandalosamente.
– Terminei. – O fotógrafo falou enquanto abaixava a câmera.
Mal tinha dado meu primeiro passo e Kay já havia saído correndo da cozinha, indo para o jardim. Os pais de Olívia não demoraram muito para sair também. Assim que o fizeram, no entanto, me segurou pela cintura e colou seus lábios aos meus, roubando um beijo e sorrindo logo em seguida.
– Acho que nunca estive tão feliz. – Ele falou com tanta animação que não consegui conter um riso.
Coloquei ambas as mãos em seu maxilar e trouxe seu rosto para perto do meu, encostando a ponta de nossos narizes e nossas testas. imediatamente fechou os olhos e respirou fundo. Embora as crianças gritassem lá fora e os adultos conversassem, a cozinha foi tomada pelo mais puro silêncio. Eu podia ouvir as batidas aceleradas do coração de , assim como ele podia ouvir as minhas. Sorri com ternura assim que abrimos nossos olhos, e passou a mão devagar sobre meus cabelos, querendo gravar a sensação que os fios lhe causavam entre seus dedos.
Por um instante, um brilho triste invadiu seus olhos, e eu franzi o cenho. Foi algo tão efêmero, entretanto, que em um piscar havia sumido. Ele estudava os detalhes do meu rosto com uma atenção implícita.
– Você já falou com a Madeline e o Fred? – Perguntou, terno, e só então me toquei que já estava há umas três horas aqui e ainda não os tinha encontrado. – Eles estavam ansiosos para te ver.
– Não. – Ergui uma das sobrancelhas. – O que é muito estranho.
– Já procurou dentro da casa?
– Ainda não. – Naquele momento, o chef e alguns garçons entraram no cômodo, e eu me afastei um pouco de , uma vez que não havia qualquer espaço nos separando enquanto ele envolvia seus braços ao meu redor. – Acho que vou fazer isso agora. Se precisar de algo, me chame, pode ser?
restringiu-se a assentir com a cabeça e abriu um sorriso encantador. Apoiou-se sobre a ilha de mármore e me acompanhou com o olhar até eu sair da cozinha. Procurei no andar térreo da casa, mas havia poucas pessoas circulando pelo local, apenas alguns casais desconhecidos. Encarei a escada suntuosa ao final do corredor e me peguei pensando se seria algum tipo de invasão se eu subisse. A curiosidade de querer encontrar Maddie e Fred falou mais alto, e, no segundo seguinte, eu já pisava nos degraus. Quando cheguei ao segundo andar, um hall com um belo piano de cauda era a primeira coisa com a qual me deparei. Além disso, havia dois extensos corredores, um em cada lado. Tudo estava tão quieto que cogitei descer novamente, porém uma voz familiar e estridente me chamou atenção. Parecia a voz de... Amélia.
– MAS QUE PORRA É ESSA? GRITEM! FAÇAM ALGUMA COISA DECENTE, PELO AMOR DE DEUS, ISSO É UMA BRIGA, FAÇAM ISSO DIREITO!
Engoli em seco assim que percebi o quanto ela estava irritada. Apoiei-me no corrimão da escada e tirei meus saltos, na intenção de andar até o quarto em que eles estavam sem fazer barulho. Agradeci aos céus quando encontrei a porta entreaberta por uma pequena fresta, de onde eu podia encarar uma Madeline sentada na cama, com os olhos levemente vermelhos, Fred, de pé em sua frente, e Amélia andando de um lado para o outro, com as bochechas mais ruborizadas do que nunca. Seu semblante era de alguém que estava consumida pela cólera, e os ombros tensionados denunciavam isso.
– Você pode falar mais baixo, por favor? – Fred pediu, nervoso. – Alguém pode nos ouvir.
– E você acha que isso importa agora, Murphy? – A médica falou com seu sarcasmo habitual. – Ela vai descobrir de qualquer jeito. O que eu estou pedindo é que você, Madeline, pare de fingir estar em um conto de fadas. Eu não acredito que você não conseguiu discordar da escolha absurda do Fred! Grita com ele, joga alguma coisa nele, briguem de verdade! O que ele fez não tem cabimento!
– Você sabe muito bem que a escolha não era nem minha, nem do Fred. – Madeline, ainda que com a voz carregada por causa do choro, tentou se defender, e Amélia parou de andar imediatamente, lançando um olhar frio para a coronel.
– Vocês sabem muito bem como ela é. Vai fingir que está tudo bem, quando, na verdade, a notícia vai quebrá-la aos poucos. Não é o quem deveria contar, são vocês. Vocês que causaram tudo isso.
– Chega, Amélia! – Fred elevou o tom de voz, e Madeline suspirou. – Não era para você estar aqui. O seu estresse só gera mais estresse em Maddie, e isso não faz bem para o bebê.
– Olá. – O sussurro de Henry soou próximo de meu ouvido ,e eu tive que me segurar muito para não gritar.
– Eu não estou espiando! – Minha voz saiu em um fio e coloquei a mão sobre o peito, desviando meu olhar de dentro do quarto para ele e torcendo para que ninguém tenha nos escutado. – Que susto, Henry.
– Quem estamos espiando?
– Maddie, Amélia e Fred, mas acho que precisamos sair daqui o mais rápido possível.
– Por quê? – O engenheiro fez um bico de indignação. – Acabei de chegar, quero saber o que está acontecendo.
– Eu explico no caminho. – Com a mão que não segurava os saltos, puxei Henry pelo braço, guiando-nos escada abaixo. – Aparentemente eles estavam discutindo sobre algo sério, mas só peguei uma pequena parte da conversa e não entendi muita coisa.
– Sobre o que acham que discutia?
– Não sei, alguma coisa muito ruim deve ter acontecido, porque Amélia está a própria encarnação da ira e Madeline está chorando.
– O BEBÊ ESTÁ BEM?
– Henry! – Arregalei os olhos, e ele colocou a mão sobre a boca. – Mais baixo, por favor. – Assim que chegamos em uma das salas do térreo, puxei-o para um canto. – Amélia ficou brava porque não concordou com alguma decisão de Fred, mas Maddie sim. Ela mencionou que a escolha não era deles, o que só deixou Amélia ainda mais brava e falou sobre machucar uma quarta pessoa. Uma pessoa com quem vai conversar.
– Isso não fez muito sentido.
– Eu sei. – Eu disse, manhosa, querendo encaixar as peças em minha cabeça para saber o que tanto os afligia.
– Você acha que essa quarta pessoa é você?
– Você acha? – Arregalei os olhos.
– Não sei, mas o conversa com você, então pode ser que sim.
– Mas o conversa com muita gente, Henry.
– Você tem razão nesse ponto.
– Eu quero acreditar que isso deve ser um problema entre eles, sabe? Não me intrometer. – Fechei a boca em uma linha antes de voltar a falar e fitei a densa floresta pela janela ao meu lado. – Mas eles pareciam tão preocupados.

A semana que seguiu após o aniversário de Kay foi atípica. Amélia manteve a irritação a níveis estratosféricos, Fred e Madeline não podiam aparecer em seu campo de visão que ela perdia a paciência em questão de milissegundos, o que tornou todas as refeições motivos de discussões regadas ao sarcasmo. e Henry não pareciam confortáveis também, mas, comparados ao resto, agiam com normalidade. Em nenhum momento ousei perguntar o que estava acontecendo. A tensão era palpável, e eu não tinha coragem de quebrá-la.
Quanto a , ele parecia ser o único tranquilo em meio ao caos. Reservou todas as suas gelatinas na semana para mim, fez questão de me buscar para almoçarmos juntos todos os dias. Dias abençoados, inclusive, porque o almoço era depois de sua segunda corrida matinal, e ele sempre aparecia com uma camiseta branca colada a seu tórax e uma calça camuflada, um verdadeiro colírio para os olhos. Acompanhava-me até meu carro à noite, algumas vezes roubava beijos rápidos e discretos quando nos esbarrávamos nos corredores, abria sorrisos cativantes e inclinava levemente a cabeça quando percebia que eu estava andando em sua direção.
Ontem, enquanto andávamos na garagem, parei para notar o quanto os machucados de estavam melhores. Vê-los em um processo gradativo de cura me acomodou tanto, que só então reparei a falta de alguns hematomas roxos no maxilar e as ralas cicatrizes em seu pescoço, as únicas partes que a farda não cobria. realmente era muito bonito, e aquilo estranhamente parecia se ressaltar cada dia mais.
Embora sua personalidade apaixonante fosse o suficiente para me distrair do que acontecia ao meu redor, todos esses comportamentos dos outros me fizeram temer a semana seguinte. Será que o clima continuaria estranho? O que Fred fizera de tão ruim para Amélia ter ficado irritada em proporções descomunais? Isso me levava a exatamente agora, uma sexta-feira abafada, enquanto eu terminava de arrumar a papelada que se havia acumulado na mesa do meu escritório sem ao menos prestar atenção na ordem em que eu a colocava na gaveta. Minha cabeça estava longe.
Encarei meu relógio no pulso. Marcava onze horas da noite, e ainda não havia aparecido, o que era inusitado, uma vez que ele se apoiava no batente da porta em seu uniforme azul marinho pontualmente às nove horas.
– Pronta para ir? – Henry apareceu na porta, e, por dois segundos, meu coração bateu mais rápido na esperança de que fosse outra pessoa vindo me buscar.
– Sim. – Respondi com um leve sorriso e peguei minha bolsa, já caminhando em sua direção.
– Acho que esse fim de dia merece uma ida ao bar na orla da praia, não acha?
– Você não me engana mais, Henry. – Dei uma leve risada, e ele assumiu uma expressão confusa. – Sei que sexta é dia de você e Amélia fazerem coisas que eu nem quero imaginar.
– Você é livre para se juntar a nós se quiser.
Fiz uma careta imediatamente, e Henry riu. A última coisa que eu gostaria que tomasse conta de minha mente naquele momento era uma cena sexual deles.
– Talvez esse encontro de vocês alivie a tensão. – Ergui uma das sobrancelhas enquanto descíamos as escadas. – Pelo menos eu gostaria que sim.
– Não é um encontro, é apenas...
– Amizade com mais benefícios. – Completei sua frase assim que pisei no chão do hangar.
– De qualquer maneira, não sei se vai aliviar o suficiente. – Henry falou um pouco mais baixo, e não pude evitar encará-lo.
– Por que diz isso?
– Você conhece a Amélia, . Ela não é uma pessoa naturalmente equilibrada no quesito emocional. Sempre está irritada ou entediada.
– Não posso discordar. – Sentei-me no banco passageiro do carrinho, e ele deu a volta para ficar ao meu lado, em frente ao volante. – Imagine se a Amélia tivesse uma irmã gêmea, tipo a Maddie. Seriam completamente opostas.
– Se Amélia tivesse uma irmã gêmea, tenho quase certeza de que a devoraria no próprio útero da mãe dela.
– Isso é perturbador, mas ao mesmo tempo não posso discordar. – Falei, encarando a pista de pouso que passava ao nosso lado.
Quando o silêncio tomou conta da conversa, só pude pensar que a médica foi bem grossa a semana toda e não parecia ter remorso algum quando claramente causava desconforto em Maddie ou Fred. Assim que Henry parou o carrinho, deu a volta e me ofereceu a mão para que eu saísse do banco. Agradeci e aceitei-a.
– Eu sei que a minha resposta seria negativa - Comecei a falar assim que atravessamos o corredor que dava para a garagem. –, mas você acha Amélia uma pessoa má?
– Você chuta umas crianças às vezes e as pessoas te consideram má. – A médica, recostada sobre o conversível de Henry, falou com uma voz sarcástica e revirou os olhos, o que me fez levar um susto.
– Amélinha. – O homem ao meu lado deu um sorriso fofo, e ela fechou o semblante, o que me fez rir.
– Boa noite, Amélia. – Cumprimentei, simpática. – O que faz aqui?
– Henry prometeu que me deixaria dirigir o carro hoje. – Ela respondeu com um sorriso perverso.
– Eu não prometi nada. – Henry rebateu e bufou.
– Pare de ser emburrado. – Amélia estendeu a mão, pedindo pela chave do carro, e, com muita relutância, ele cedeu, o que a fez pular no banco de motorista sem nem precisar abrir a porta, já dando a partida. - Tchau, . Te vejo na segunda.
– A gente vai passar na sua casa, quer carona? Sei que está com o carro, mas nunca se sabe, não é? – Henry ofereceu no melhor dos humores.
– A parte do “passar na sua casa” foi estritamente informativa. – Amélia revirou os olhos, e eu ri de sua impaciência. – Foi ótimo revê-la, até.
– Aproveitem. – Acenei com um sorriso terno, e Henry bateu a porta do carro com uma expressão mal-humorada, o que fez Amélia pisar no acelerador duas vezes e arrancar um barulho do veículo, que ainda continuava parado.
– Já me arrependi.
Foi a última coisa que consegui ouvir antes que eles saíssem da garagem. Respirei fundo e voltei a andar em direção ao meu carro dessa vez. Ficava só a duas vagas de distância de Henry, então não demorou muito para que eu já estivesse saindo dali.
Assim que estacionei o carro exatamente em frente ao meu prédio, na única vaga disponível na rua, senti-me sortuda de tê-la encontrado. Peguei a bolsa e abri a porta. Eu podia estar acostumada aos saltos agulhas, mas, no final da semana, tudo o que meus pés pediam era um pouco de descanso. Subi as escadas para o segundo andar com a menor velocidade possível, respeitando a exaustão de meu corpo. Antes de pisar no último degrau, no entanto, algo me chamou atenção. Uma única rosa branca e outra vermelha sobre o pé da porta de meu apartamento, junto a uma carta. Parei imediatamente e olhei para os lados. Não havia uma alma viva vagando pelo corredor. Andei devagar até lá e logo notei a caligrafia de no meu nome escrito na parte de trás do envelope.
Sem ao menos me dar o trabalho de entrar em meu apartamento, coloquei a bolsa no chão e comecei a ler com pressa.

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Eu sinto que lhe devo algumas explicações, mas, antes, devo falar o porquê. Hoje à noite, eu estou partindo para Houston. Sei que nunca te contei isso e tive cinco dias para fazê-lo, mas não queria que se preocupasse comigo. A verdade é que não existia o plano de cancelar a transferência de Harvey. Nunca existiu, era apenas um plano para eu ir em seu lugar, porque é assim que as coisas funcionam no exército. Um pelo outro. Não pude deixar que uma transferência dessas arruinasse o que é o começo de uma família para o Fred. Nunca me sentiria bem sabendo que eles teriam que criar um bebê estando tão longe um do outro.
Ponderei bastante sobre isso, mas é o certo a fazer. Kay já está acostumado comigo voltando somente em alguns finais de semana e ele está em ótimas mãos com Ruth e Darren. Eu não poderia ficar mais feliz que eles tenham me apoiado tanto.
Peço que me perdoe. Perdoar por não ter conversado com você, mas era algo que precisava ser feito. Quero que saiba que agradeço cada pequeno momento que tive ao seu lado. Eu sempre assumi que amar alguém seria um processo lento, mas você provou o contrário. Foi necessário somente uma batida de coração e eu já estava perdidamente apaixonado. Apaixonado pelo seu sorriso, pela complacência, pelo senso de humor, por absolutamente tudo em você. Eu me encantei pelo jeito que parece tão indefesa quando dorme e arranjei nisso um conforto eterno. Lhe confiei todos os meus segredos e fiz de você meu porto seguro. Eu nunca achei que me sentiria tão protegido ao lado de alguém. Eu te amo, .
Espero que entenda e muito obrigado pelos momentos inesquecíveis. Você sempre terá um lugar no meu coração.



Assim que terminei de ler a carta, o papel caiu de minhas mãos, e eu simplesmente não conseguia me mover. Eu não fazia ideia de como ainda estava de pé, era como se não sentisse mais as pernas. Coloquei a mão sobre a garganta. Algum bloqueio impedia o ar de passar, e meus olhos começavam a arder levemente.
havia partido.
Arregalei os olhos e, em um movimento muito rápido, peguei meu celular na bolsa, já digitando um número conhecido.
– Amélia? – Perguntei, engolindo em seco.
? Mas que porra... – Ela já começou com a voz irritada, mas, de repente, parou, voltando a usar um tom forçadamente calmo. – Você está em crise, não está?
– Eu...
– Só uma pessoa em crise me ligaria sabendo que eu estou ocupada com o Henry. Se não for uma crise, é algo muito egoísta da sua parte e...
– Amélia! – Cortei-a, irritada. – Por que tem uma carta na porta do meu apartamento falando que o vai para Houston? – Pude perceber que ela respirou fundo, mas não conseguiu pronunciar nenhuma palavra. – Amélia!
– O que aconteceu? – Dessa vez, Henry quem perguntou, pegando o celular da mão da médica.
– POR QUE ESTÁ INDO PARA HOUSTON, HENRY? – Gritei em plenos pulmões. Tinha certeza de que aquilo chamaria atenção dos vizinhos, porém essa era minha última preocupação no momento.
– Como você ficou sabendo?
– Você já sabia?
– Todo mundo sabia, . – Henry falou um pouco mais baixo, passando a mão na nuca.
– E ninguém teve a decência de me contar?
pediu ao Fred para que não contasse, Fred pediu para Madeline e Amélia não te contarem e Amélia pediu para eu e não te contarmos também.
– Tem uma carta aqui na porta da minha casa. – Falei, apoiando as costas na parede. Eu sentia que a qualquer momento cairia aos prantos. – foi embora, e eu não consegui nem me despedir. Embora, Henry. Ele foi embora de novo.
– Ninguém concordou com isso, , mas você sabe muito bem que ele daria um jeito de manter a Madeline aqui pelo Fred de qualquer maneira.
– Foi por isso que Amélia estava gritando com eles na festa do Kay, não foi?
Henry somente respirou fundo, e aquilo me irritou. Eu não sabia se estava mais chateada por sentir saindo de minha vida novamente ou mais brava por ninguém ter me contado nada. Escorreguei sobre a parede até que estivesse sentada no chão frio do corredor.
– Vocês deveriam ter me contado, Henry. – Uma lágrima escapou de modo inevitável e minha voz entrecortou. – Não deveria ser assim tão de repente.
– Mas não podíamos, .
– EU NUNCA TE DIRIA ISSO SE FOSSE O AMOR DA SUA VIDA INDO EMBORA, DIRIA? – Berrei novamente, e Henry se calou do outro lado da linha. – MAS QUE PORRA! Eu podia ao menos ter me despedido no aeroporto, mesmo não concordando com essa ideia inescrupulosa.
– Bom, você ainda pode. O voo dele ainda não saiu.
– E VOCÊ SÓ ME DIZ ISSO AGORA? – Perguntei enquanto rangia os dentes.
Sem ao menos esperar que ele falasse alguma coisa, desliguei o celular e me levantei o mais rápido que pude. Quase caí enquanto descia as escadas, à procura da chave do meu carro. Atravessar a calçada e abrir a porta do carro nunca fora algo tão demorado como agora, assim como o caminho interminável até o aeroporto local. Tinha quase certeza de que não tinha respeitado nenhum limite de velocidade.
No meio de um campo aberto, destacava-se a construção de concreto do aeroporto. Estacionei o carro ilegalmente na área de táxis, sem ao menos trancá-lo, e fui correndo até a companhia aérea mais próxima e sem filas. Para minha sorte, a cidade era pequena, o que significava que a quantidade de pessoas lá era mínima.
– Moça, a passagem mais barata para qualquer destino. – Pedi sem ar e levantei um cartão entre meus dedos. – Crédito, por favor.
– A senhora teria algum documento de identificação? – A atendente atrás do balcão perguntou com um sorriso meio preocupado ao notar que eu estava sem fôlego, descabelada e com os olhos vermelhos por causa do choro.
Estendi minha carteira de motorista, e ela começou a digitar algumas coisas no sistema. O único problema é que ela fazia com uma tranquilidade tão lenta que aquilo me irritou, e eu estreitei os olhos.
– Eu sei que não é apropriado pedir isso, mas você poderia ir um pouco mais rápido? Eu realmente estou com pressa.
Não sei por que eu tive a brilhante ideia de abrir minha boca. No segundo seguinte, ela parecia digitar tecla por tecla em uma lentidão mortal enquanto me encarava irritada. Revirei os olhos, querendo dar um soco naquela maldita mulher. O que pareciam três horas depois, ela deslizou o documento e a passagem aérea sobre o balcão e eu sequer agradeci, pegando tudo rapidamente e voltando a correr até a área de embarque.
! – A voz de Amélia atravessou o pátio, porém eu não me dei ao trabalho de olhar para trás, já passando o bilhete no sensor das catracas automáticas.
Ao observar as máquinas de raio X ao fundo, tirei desajeitadamente meus saltos ao mesmo tempo que tentava correr, para ser o mais eficiente possível ao passar pelo detector de metal. Joguei minha bolsa, meus brincos, meu colar e meus saltos em um dos recipientes de plásticos da esteira e passei correndo pelo detector de metal. Ele não apitou, mas a bolsa e os outros itens ficaram retidos.
– A senhora não pode viajar com essa quantidade de líquido.
– Quer saber, libere só o salto, eu não preciso da bolsa agora. – Pedi com um sorriso ansioso, e o funcionário ergueu uma das sobrancelhas. – Se não se importa, estou atrasada.
– Tudo bem. – Ele balançou levemente a cabeça de um lado ao outro, como se estivesse pensando que eu era louca.
Coloquei os saltos de maneira ágil e corri até o portão 3 em que uma tela anunciava “Houston AAL2709”. Só havia quatro portões de embarque, então foi muito fácil encontrá-lo. Meu coração disparou ao perceber que, quanto mais perto eu chegava, mais definido um sentado em um dos bancos ficava. Assim que diminuí a velocidade até parar a alguns metros de distância, pude ver a expressão de choque em seu rosto, que deveria ser a mesma do meu.
? – perguntou com os olhos arregalados. – O que faz aqui?
– Como você pôde fazer isso comigo? – Falei, irritada, enquanto andava a passos largos, sem conseguir conter as lágrimas ao vê-lo se levantar devagar. – Você não pode simplesmente ir embora sem conversar comigo antes, não depois de tudo que passamos.
– Eu sabia que você não iria concordar. OUTCH! – gritou assim que eu joguei um dos meus saltos em seu braço.
– Você é idiota? É claro que eu não iria concordar, mas acharíamos outro jeito!
– Não tinha outro jeito, ! – Agora ele parecia nervoso, e eu parei em sua frente, batendo em seu peito até que ele segurasse meus pulsos. –Você sabe muito bem disso, conhece as regras militares.
– Você não pode ir, , não pode ir de novo. – Apoiei a cabeça nele, na altura de seu coração, que batia rápido.
– Eu tenho que ir. – Suspirou, derrotado. – Olhe para mim, . Olhe nos meus olhos.
Sua voz foi tão carinhosa que não consegui não obedecer. Ele abriu um belo sorriso terno e passou a mão sobre meus cabelos, fazendo uma leve carícia.
– Você sabe que eu te amo, sabe que eu faria tudo por você, não sabe? – perguntou com a voz suave ao mesmo tempo que uma quase imperceptível lágrima escorria sua bochecha. – E, se você me pedir mais uma vez que eu fique, não vou conseguir dizer não, mas também não vou conseguir viver bem sabendo que a Harvey será transferida porque eu não tive a coragem de ir no lugar dela. – Eu não consegui pronunciar nenhuma palavra, lágrimas eram tudo que eu dava à situação. Então, me puxou para um abraço apertado e depositou um beijo no topo de minha cabeça, apoiando seu queixo ali logo em seguida. – Eu não espero que concorde, , mas espero que me perdoe. São só regras chatas.
Logo que pronunciou aquela última frase, arregalei os olhos assim que uma ideia invadiu minha mente.
– Regras chatas! – Eu falei, boquiaberta, inclinando o torso para trás na intenção de encará-lo. – , você tem toda razão! Regras chatas!
– Certo. – sorriu meio sem graça. – Não entendo aonde quer chegar com isso.
– De acordo com as regras chatas, Madeline pode ser transferida porque ela é militar e é casada com alguém que é militar também. Ela é obrigada a aceitar a transferência.
– Sim. – Ele juntou as sobrancelhas, ainda confuso.
– Mas, se você estiver casado com uma civil - Inclinei a cabeça levemente para que ele acompanhasse minha lógica, o que deu certo, pois um sorriso encantador tomou conta de seus lábios. –, podemos pedir para que você não seja transferido.
– Mas isso só funcionaria se eu fosse casado com uma civil e tivesse pelo menos um filho com essa pessoa.
– Bom, você tem o Kay e os pais de Olívia, que são sua família, certo? – Perguntei, sugestiva, e ele assentiu com a cabeça. – E a pessoa com quem você se casasse seria parte dessa família, não seria?
– Claro. – Falou com obviedade.
– Então - Pigarreei antes de voltar a me pronunciar. –, , você gostaria de se casar comigo?
Ele arregalou tanto os olhos que eu até levei um susto. Sorri acanhada, pensando que ele iria negar por causa dos longos segundos de silêncio em que ele me encarava estático.
– Só se você conseguir me aguentar todos os dias pelo resto da sua vida. – Ele respondeu, consumido pela mais pura e genuína felicidade.
segurou firme em minha cintura, me puxou para um abraço apertado, levantando-me um pouco do chão, e abriu o sorriso mais lindo que já vi.
– Chegamos a tempo! – Madeline falou assim que nos encontrou, dando alguns pulinhos de alegria. – Esse é o mais feliz que eu já estive depois do nosso casamento e do bebê. – Sussurrou para Fred, que apenas sorriu e a abraçou de lado. – E eu conheci o presidente.
– Moça, você não pode levar essa garrafa. – O mesmo funcionário que reteve minha bolsa no raio X abordou Amélia.
– Você é idiota? – A médica perguntou, irritada, e eu achei que o pequeno homem choraria ali mesmo. – Está arruinando um momento perfeito, otário. Eu vou ter que jogar outra garrafa de água na sua cabeça para o seu cérebro começar a funcionar?
– Mas, senhora... – Ele tentou contra-argumentar, e Amélia arregalou os olhos, ameaçadora. – Me desculpe.
– Bom, isso foi divertido - Henry concluiu com um sorriso fofo. –, mas agora queremos um beijo e, se possível, o pedido de casamento de novo. Chegamos um pouco atrasados.
– A culpa foi do imbecil do raio X. – Amélia cruzou os braços, e o homem, que ainda não havia saído dali, segurou o soluço de choro.
– Estou tão feliz por vocês. – Uma Madeline emocionada andou em nossa direção para nos abraçar, e eu fitei , que também me olhava com um sorriso encantador no rosto. – MAS PORRA, , VOCÊ PODERIA TER ARRANJADO ESSA SOLUÇÃO DE CASAR ANTES! – Abri a boca em perplexidade ao ver Maddie gritando estressada a centímetros e nossos ouvidos. – Me perdoem, são os hormônios.
– Ele não pode obrigar alguém a casar com ele, meu amor. – Fred disse enquanto ria, dando duas batidinhas nas costas de em seguida. – Fico feliz que esteja ficando, cara. Não sei o que seria dessa cidade sem você.
– Eu vou ser a madrinha. – Amélia aproximou-se, animada. – Já estou determinando meu posto.
– Posso ser a outra madrinha? – Madeline perguntou com os olhos brilhando, e riu.
– Vamos com calma. – Henry interveio. – Que tal sairmos para comemorar agora?
Naquele instante, envolta pelos braços de , que sorria alegria para mim, e ao redor das pessoas que mais me faziam sentir afortunada no mundo, eu não poderia pedir algo melhor, porque não existiria.

Um ano e dois meses depois

! – Sorri animada assim que abri a porta da minha casa e de e me deparei com o coronel e seus dois pequenos filhos. – Que bom que veio.
– Feliz Natal! – Ele ergueu sacolas com presentes até a altura do ombro, e as crianças já espiavam por trás de mim, querendo entrar e brincar.
– Feliz Natal! – Falei, abrindo passagem para que eles entrassem. – Pode deixar os presentes debaixo da árvore.
– Sua barriga está linda. – Ele abriu um sorriso simpático. – Desculpe a cabeça esquecida, mas de quantas semanas você está?
– Sério? – Amélia apareceu ao meu lado, com sua quinta taça de champanhe. – Você faz essa pergunta todo dia, .
– Obrigada. – Agradeci, dando um sorriso carinhoso. – Estou com trinta semanas.
– Você sabia que esse bebê foi acidental? – A médica sussurrou com uma careta, e eu ri.
– Isso não é verdade. – Coloquei as mãos na cintura.
! – Madeline veio correndo em sua direção enquanto eu fechava a porta. – Feliz Natal!
– Como está a Olívia? – Ele perguntou, gentil, acompanhando Madeline, eu e Amélia até a sala, onde o resto das pessoas conversavam.
– Nunca achei que minha filha seria tão travessa. – Maddie falou, dramática.
– É isso que dá casar com Fred, a genética tem suas consequências. – Amélia apontou a taça agora vazia em direção ao capitão. – E eu ainda mantenho minha opinião em relação a chamar sua filha de Amélia.
– Mas queríamos homenagear o . Foi ele quem escolheu. – Maddie declarou, satisfeita. – Os pais da Olívia aprovaram muito felizes.
– Claro que aprovaram. – Amélia revirou os olhos.
– Mãe? – Kay cutucou meu braço para chamar minha atenção.
– Sim, querido. – Passei a mão em seu cabelo, em um gesto de carinho, e ele sorriu tímido.
– Ele pediu ajuda na cozinha.
– Certo. Vou ajudar lá, então. Você poderia pedir para Ruth e Darren chamarem todos para se sentar na mesa? Acho que a ceia já deve estar pronta. – Pedi, e ele assentiu com a cabeça. – Muito obrigada, pequeno.
Quando entrei na cozinha, deparei-me com usando duas luvas para segurar uma travessa que acabara de sair do forno. Ele abriu um sorriso encantador, apoiou a cerâmica na ilha e veio até mim, roubar um beijo.
– Sabe, se toda vez que eu te ver essa noite você continuar ficando cada vez mais bonita, acho que meu coração não vai aguentar.
Coloquei uma mecha de cabelo atrás da orelha e não pude deixar de corar assim que ele falou isso.
– Me ajuda a levar essas coisas? – pediu, gentil, já indo em direção à sala de jantar.
– Claro.
Peguei uma das dezenas de vasilhas de porcelana sobre a bancada e o segui. Enquanto colocava a comida sobre a mesa, observei devagar Ruth e Darren conversando com Kay e os filhos de , Henry e Amélia rindo na ponta da mesa e segurando a pequena Olívia no colo, enquanto Fred e Madeline o observavam. parou ao meu lado, colocando uma mão sobre minha cintura, outra sobre minha barriga e depositando um leve beijo em minha testa.
– Isso é literalmente o que eu sempre sonhei em ter. – Ele sussurrou em meu ouvido.
– Eu também. – Mordi o lábio inferior, segurando o sorriso que queria escapar.




Fim



Nota da autora: Sem nota.



Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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