Capítulo 30
Fui atrás dela disposto a contar o que houve, porém o nó que se formava em minha garganta impediu minha voz de sair. Queria chamá-la para conversar, mas não sabia se meu orgulho me deixaria dar o braço a torcer ao ter que lhe dar razão por todas as vezes em que estava certa sobre meus pais.
Mas nada do que ela tinha me dito jamais entrou na minha cabeça. Eu era cego, enxergava meu pai como um super-herói. Somente ouvir tudo aquilo vindo da boca dele foi capaz de me tirar daquele transe, o qual eu não entraria nunca mais.
Os olhinhos molhados de em seu ombro me fizeram recuar e desistir, mesmo que ela fosse pequena demais para entender o que eu iria contar, ou até mesmo a situação em si. Eu não sabia se conseguiria repetir tudo o que ouvi naquela sala em sua frente.
's point of view.
A bebê em meus braços ainda chorava baixinho quando dei passos firmes pelo piso liso, saindo do hall de entrada e deixando plantado em frente à porta recém-fechada. Se não estivesse ali, eu teria batido com força. Ainda fui educada dando-lhe boa noite. Ele não merecia nada vindo de nós – devia saber daquilo, mas parecia que, quando o assunto era o pai, uma venda lhe tapava os olhos. Não gostei dele ter dado nosso endereço a Joseph. Eu queria distância daquele homem, e, de preferência, que ele ficasse bem longe da minha filha. Não o queria na minha casa.
Me inclinei sobre a mesa de centro e apanhei a chupeta cor-de-rosa, colocando-a na boca da bebê, que ainda chorava baixinho. Eu tentava acalmá-la, balançando-a devagar e afagando suas costas. Vi pelo canto de olho passar disparado para o escritório com o envelope abarrotado de papéis em mãos.
Estranhei sua atitude omissa quando fechei a porta na cara de seu adorado pai. Achei que brigaria comigo e o defenderia como sempre fez. Admito que deveria ter ouvido o que ele me disse quando me pediu pra subir com a bebê. Queria voltar no tempo só para impedi-lo de sequer colocar os olhos verdes como os do nela.
Ele e a mulher dele praticamente a deram como morta junto de Grace! Por mim, nem Joseph, nem Margot saberiam nada sobre a vida da menina, sequer veriam seu rostinho. era maravilhosa, um presente deixado por Grace. Se eles não a reconheciam como tal, não mereciam sua presença e amor.
Após conseguir acalmá-la e colocá-la para dormir novamente, levei-a comigo no carrinho para a cozinha, onde comecei a preparar uma sopa para o jantar. Estava frio como na noite passada, então era um prato que combinava bem com o clima. Jantei, dei a mamadeira de e lavei a louça. Nada de deixar o escritório que se trancafiou desde a hora que chegou do trabalho.
Suspeitava que tinha a ver com a visita inesperada do pai, ou talvez não tão inesperada. Vai ver já sabia da vinda do pai a Londres. Ele não me contaria caso soubesse, da mesma forma que não me contou o que havia o deixado tão mal-humorado desde que fora me buscar no trabalho com as meninas. De manhã, quase não parou de me beijar; quando chegamos em casa, agiu como se eu nem estivesse ali. Fora que, no carro, já tinha sido extremamente grosso comigo.
Se ele achava que nossa trégua só valia do meu lado, estava mundo enganado. não podia e nem iria me usar de saco de pancadas toda vez que tivesse um dia ruim no trabalho.
Será que ele não iria jantar? Dei passos incertos pelo corredor e cheguei até bem próximo da porta, porém recuei, com medo de ser maltratada de novo por conta do humor dele. Retrocedi, indo trancar a porta e apagar as luzes do andar de baixo, mesmo sentindo-me culpada por não ter ido atrás. Afinal de contas, já tinha cuidado de mim algumas vezes, porém, ele não estava me dando abertura para retribuir aquele favor.
Coloquei a bebê em seu berço após niná-la. Ela estava com muito sono, pois, segundo Elisabeta, não tinha dado um de seus cochilos durante a tarde. Deixei o pequeno abajur aceso no canto do quarto quentinho e deixei a porta com uma pequena fresta para vazar barulhos caso ela chorasse e a babá eletrônica não desse conta de nos acordar. Após tomar um banho rápido, vesti um pijama de calças e mangas compridas e me deitei sozinha em meio ao escuro do quarto.
Mesmo tendo me cobrido com dois cobertores grossos e estando bem vestida, ainda não conseguia me esquentar cem por cento. Não consegui pregar os olhos, remexendo-me na cama, que parecia diferente sem o outro corpo ao lado. Quem diria que eu, espaçosa como era, iria me desacostumar a dormir desacompanhada. Por fim, virei-me de barriga pra cima, encarando o teto enquanto pensava na vida à espera do tão esperado sono. Era até engraçado. Eu estava me sentindo sonolenta o dia todo e me sentia cansada ao voltar pro trabalho, porém, naquele momento, todo o cansaço tinha desaparecido.
Me dei conta que, com a correria de volta de viagem e retorno ao trabalho, eu nem ao menos tinha tentado planejar meu ano. Confesso que aquela vida de perrengues chiques ainda me causava muito estranhamento, porém, admitia que estava adorando sair um pouco da minha zona de conforto, mesmo que eu só tivesse nove meses para aproveitá-la. Ainda assim, após o divórcio, eu sentia que iria sair daquele plano melhor do que entrei.
Eu tinha uma casa! Sabia que os custos de mantê-la me trariam dores de cabeça, mas ainda assim não teria que pagar aluguel. Meus planejamentos de todos os começos de ano eram bem simplórios. O máximo que já cheguei a me permitir sonhar alto era comprar uma moto, mas nunca se passou na minha cabeça que eu conseguiria ter uma casa própria.
Pensei naqueles nove meses restantes com dividindo o teto e as contas comigo – seria uma boa saída para o meu curso trancado na faculdade. Faltava apenas um semestre para que eu me formasse, e ter um diploma talvez me ajudasse na hora de arranjar um emprego que pagasse melhor quando eu ficasse sozinha com . Afinal de contas, eu não teria mais que preocupar com o aluguel, mas ela com certeza me traria gastos.
Suspirei, desistindo da ideia promissora, mas que me deixaria distante da bebê. Eu já trabalhava o dia todo praticamente; se voltasse a estudar, ficaria ainda mais horas fora de casa. Meu único tempo livre com minha filha era a parte da noite, e eu já sentia a falta dela o dia todo… Quando eu teria tempo para ela?
Um barulho vindo da porta me dispersou de meus devaneios. Reconheci a silhueta de quando a luz do corredor adentrou o quarto junto dele. Me sentei na cama e vi sua sombra caminhar devagar, em silêncio e em direção à cama. Estranhei quando percebi que vinha até mim. Será que ele não estava me enxergando e iria tentar se deitar naquele lado?
— ?
Ouvi sua respiração se intensificar Franzi a testa, esticando-me para acender o abajur na cômoda ao lado da cama. Encarei-o parado diante de mim, os ombros caídos, gravata frouxa em volta do pescoço e a camisa com as mangas dobradas até os cotovelos. Sua expressão era de uma tristeza profunda, e os olhos estavam cristalinos, vermelhos e cheios de lágrimas.
— O que houve? — perguntei, ainda confusa, vendo-o apenas negar com a cabeça. Seu queixo tremeu, e a primeira de muitas lágrimas transbordaram em seu olhar perdido.
Seu corpo veio de encontro ao meu numa rapidez impressionante. Quando vi, já o tinha agarrado a mim, com a cabeça enterrada na curva do meu pescoço enquanto suas mãos trêmulas envolviam meu tronco num abraço forte, que me puxava em direção a ele. Passei os braços pelo seu tronco curvado, dando-lhe um afago nas costas, enquanto sentia seu abdômen subir e descer descontrolado devido aos seus soluços.
— Acabou, , acabou — não compreendi muito o que sua voz abafada e irregular disse, próxima ao meu ouvido.
— Por favor, se acalma — me preocupei com sua respiração alterada. Eu tinha medo daquilo desencadear uma crise asmática, e meio que não saberia o que fazer caso algo do tipo acontecesse. — Respira direitinho, calma — com muito esforço, o empurrei gentilmente pelos ombros, lhe dando espaço pra respirar e para olhá-lo nos olhos.
foi se acalmando aos poucos, à medida em que parava de soluçar. Esperei algum tempo, lhe acariciando os cabelos devagar, o orientando a respirar profundamente ou algo do tipo que tinha visto na internet.
— Agora me conta o que acontece — minha voz mal saía. Toda aquela situação tinha me deixado tensa junto a ele, e meu coração se apertava dentro do peito ao vê-lo naquele estado.
Só tinha visto chorar daquele jeito quando perdemos Grace e, conhecendo-o como conhecia, sabia que, para ele ter chegado até mim e se permitido desabar daquela maneira ao recorrer aos meus braços, devia estar no auge do que quer que estivesse sentindo dentro de si.
— Você sempre esteve certa sobre meus pais.
Suspirei, encarando-o sem expressão. Seus olhos tempestuosos sequer checaram minha reação, como costumávamos fazer quando algum de nós dois dava o braço a torcer daquela maneira.
Eu queria muito não estar certa daquela vez, juro. Por mais que não suportasse sequer pensar naqueles dois por tudo o que fizeram com minha melhor amiga, eu sabia o quanto doía ter uma decepção daquelas com alguém que costumávamos amar e admirar tanto. Me destruía ver quem quer que fosse a pessoa se desiludir daquela forma, porque eu me via ali e me sentia na necessidade de ampará-lo, já que eu, por escolher não compartilhar o segredo que rondava minha casa, enfrentei tudo sozinha. E tinha sido tão difícil entender e aprender a lidar com tudo aquilo, sendo tão nova.
Meu pai me ensinou muita coisa além de andar de bicicleta. Nossa relação nem sempre foi de agressão e xingamentos – na verdade, eu nem tinha como dizer quando as coisas começaram a ficar daquele jeito. Assim como , não fui um bebê planejado e, assim como ela, fui o motivo de meus pais terem se casado, após uma tentativa de interromper a gestação. Minha mãe e ele decidiram seguir tudo como mandava o figurino. Meus pais aprenderam a ser pais comigo, e eles até fizeram um bom trabalho no início.
Nos vídeos antigos, havia lembranças que minha cabeça já não conseguia relacionar a ele, apenas por serem boas. Como a gravação que mamãe guardava com todo o cuidado do mundo que me mostra bem pequena, dando meus primeiros passos em direção a ele.
Com o passar dos anos – e o vício recém-adquirido em álcool –, meu pai passou a ser outro homem. Ele me ensinou a deixar de amá-lo e a começar a temer quando ele chegava em casa – e não importava o horário, estava embriagado e sempre violento. Me ensinou que as pessoas mudam, e que eu não podia levar meus sentimentos em consideração na hora de me afastar.
Era por aquele motivo que eu achava que ainda não conseguia confiar cem por cento em . Por mais que sentisse algo novo por ele, que já não era mais ódio ou algo que me fizesse afastá-lo, eu não conseguia confiar nas minhas impressões ou sentimentos. Sempre me via presa ao passado não tão distante que tínhamos.
Ficava confusa entre o que meus olhos viam e ouviam vindo dele – que demonstrava uma mudança positiva – com o que já ouvi e presenciei antes, do que eu tinha plena certeza que nunca mudaria.
— Eu não sei nem se posso repetir tudo o que ele me disse hoje, . Estou tão enojado, tão revoltado… Me pergunto como eu pude ser cego por todos esses anos e amá-lo, ter desejado ser igual a ele — suas mãos grandes foram até os cabelos, puxando-os e bagunçando os fios castanhos. Tirei-as dali, temendo que se machucasse. — Fiquei a porra da tarde inteira me peguntando se não sou como ele. Eu nem sei mais quem eu sou!
Me preocupava com quanto à questão de ela ter pais que tiveram o mesmo começo que o meu: uma união baseada numa mera formalidade. Tinha pavor de cometer os mesmos erros. Eu olhava para o rostinho dela e não conseguia imaginá-la sofrendo o que sofri ou o que estava sofrendo naquele momento.
O que me consolava era ver que tinha acordado – do modo mais doloroso possível, mas tinha –, e que ele passaria a se preocupar ainda mais com o que iríamos ensinar a e o modo que iríamos criá-la. Porque meus pais e muitos por aí jamais tinham pensado nos danos futuros que suas atitudes nos trariam no futuro.
Ver confuso consigo mesmo daquele jeito era muito triste. Reprimi o choro, olhando-o consternada. Não sabia o que poderia ser pior: descobrir que o pai é um monstro quando se é criança, quando mais precisamos deles e recebemos um desamparo desolador, ou depois de mais velho, após anos construindo a imagem de um super-herói e, de repente, enxergá-los como realmente são.
— Você não é como ele — falei, e negou com a cabeça, ainda em soluços. — Olha pra mim, — pedi e ele o fez, com o rosto molhado e rubro, repleto de vergonha. sabia que, pela criação que teve, já reproduziu pensamentos e falas dos pais, por isso quase não conseguia me olhar. Nós dois sabíamos que eu tinha sido alvo da maioria deles. — Nunca teria se casado comigo se fosse. Jamais iria aceitar ou teria apoiado sua irmã como fez!
— Ele me mandou me livrar de , .
Franzi o cenho. Eu achava que nenhum dos dois tinha sequer se lembrado da menina na noite em que Grace nos deixou. Pelo menos foi o que pareceu durante o velório, onde tudo o que se falava era sobre a filha perfeita que os tinham acabado de perder. Sem sequer uma citação sobre a vida que ela levou nos últimos nove meses em que esteve grávida e foi socorrida pelo irmão.
— Assim que saí do hospital, eu liguei pra ele — disse. Balancei a cabeça, suspirando. Eu não faria aquilo se fosse ele. Apesar de ser minha primeira vez ouvindo aquela história, eu conhecia Joseph bem o bastante para já saber o final dela. — Liguei como sempre fazia quando as coisas saíam do meu controle. Meu pai sempre me disse que estaria lá por mim.
Eu sabia que sim. Lembrava-me da madrugada que bateu o carro num muro por dirigir alcoolizado, pouco tempo depois de completar seus dezessete e tirar sua carteira de motorista. Bastou uma ligação para que a polícia desconsiderasse o bafômetro feito e a reconstrução do muro fosse iniciada, com direito a uma quantia para que o proprietário ficasse calado.
Tudo que fosse preciso para construir a imagem de como um bom sucessor nos negócios diante a sociedade, Joseph faria. Mas ao que parecia, Grace não tinha a mesma proteção. Tanto que demorou para acordar, porque tinha vivido por anos se beneficiando daquilo, mesmo amando a irmã e usando o que tinha para protegê-la no lugar dos pais.
Talvez tenha sido melhor assim. Se se opusesse antes, Grace não teria para onde correr quando as coisas começaram a ficar difíceis.
— O que ele disse? — mesmo temendo e já imaginando o que seria, perguntei, já me preparando para que aquilo fosse um gás a mais na hora de deixá-los bem longe de , caso algum dia eles quisessem conhecê-la.Porque eu sabia que aquele dia chegaria.
Outra lição dada por meu pai era aquela: quem “batia”, esquecia facilmente dos próprios atos quando precisava de ajuda, mas quem apanhava, jamais. Minha mãe vivia querendo me incluir de volta na vida de meu pai e vice e versa, dando a entender que era uma vontade dele também ter a filha de volta. Mas eu jamais voltaria para o que tinha me machucado tanto. Não seria justo com a criança, que sofreu boa parte do tempo calada.
— Me mandou deixá-la ir. Se você não estivesse ali, insistindo na adoção dela, eu nem sei o que poderia acontecer.
Levei a mão à boca, infelizmente não duvidando do poder de persuasão que Joseph tinha sobre . O fato de ele não ter cedido ao pai me deixava segura sobre quem ele era, e eu esperava que o próprio também conseguisse enxergar aquilo em si. era um pai maravilhoso, e tenho certeza que o agradeceria depois.
— Tem noção do monstro que ele é? Eu tenho ignorado isso há muito tempo, mas, depois de hoje, me dei conta que eu não devia esperar que ele me perdoasse por fazer o que era certo. Como eu poderia dar minha sobrinha pra adoção e continuar minha vida como se nada tivesse acontecido? — a indignação estava explícita em seu rosto e tom de voz. — Como ele consegue conviver com a culpa de esconder a existência da própria neta como se ela estivesse morta?
— Eu também não sei, . Mas, vindo deles, não consigo ficar tão surpresa — murmurei, esticando minhas mãos, tentando secar suas lágrimas sem sucesso, já que seu choro ainda não tinha cessado. — A única coisa que eu sei e o que realmente importa é que nós dois vamos cuidar dela. não precisa deles. Ela será a criança mais amada do mundo por nós dois e todo mundo que rodeá-la — me aproximei, segurando seu rosto com ambas as mãos.
Eu tinha certeza daquilo. Desde Tiffany e Anne, Chace, Jack, Su e Caroline e seus outros colegas de trabalho, e mesmo que não gostasse da ideia, até mesmo Tom e nossos outros vizinhos – todo mundo amava como se fosse da família. Eu sabia que algum dia ela iria perguntar sobre os avós. Sabia que seria decepcionante para ela saber da verdade, porém tinha certeza que ela entenderia depois de ver o quanto era querida.
— Obrigado por ter brigado comigo naquele dia, . Eu nunca me perdoaria caso tivesse feito aquilo com , sequer consigo imaginar minha vida sem ela.
Concordei de imediato, tendo a mesma certeza. Sorri quando pegou uma de minhas mãos do próprio rosto e beijou a palma dela, segurando-a diante de si e reparando na aliança no dedo anelar.
— Meu pai me chamou de burro por ter me casado com você. Insinuou que você era uma interesseira.
Ri sem humor, mais uma vez nem um pouco surpresa. Tinha vontade de perguntar a Joseph o que ele achava que eu tinha visto na empresa quase falida dele, só para ver sua resposta. Porém, não o faria. Depois de ouvir tudo aquilo, não queria vê-lo nem pintado de ouro.
E também porque aquilo machucava . E, contrariando tudo o que seria normal entre nós, eu não usaria aquele argumento e correria o risco de atingi-lo de alguma forma.
— Disse que minha mãe acha que eu a troquei por duas desconhecidas. Ele até chegou a chamar de bastarda.
Inspirei, controlando a raiva crescente dentro de mim. Quando as ofensas eram destinadas a mim, eu não me importava muito, já era esperado até. Afinal, eu sentia sua apatia a mim desde criança. Mas mexer com era demais. Como se não bastasse tudo de ruim que eles fizeram, sem ao menos chegar perto da neta, ainda tinham coragem de ofendê-la?
— Reclamou sobre eu ter dado o sobrenome a você. Disse que não queria que eu o desse a , disse que vocês duas não são da família, que ele e minha mãe são a minha família.
Revirei os olhos. Mania de se achar especial ao ponto de achar que todo mundo quer ser um deles! Se eu que já entendia tudo estava cagando e andando para o sobrenome , imagine que nem falar sabia?
Me perguntei o que ele iria fazer caso Grace tivesse sobrevivido ao parto. Iria arrancar a filha dela dos braços? Impedi-la de ser a mãe dela e ser registrada como tal?
— Me deixe adivinhar. Ele disse que está te aconselhando para o seu bem e que, apesar de tudo de ruim que você está fazendo, ele não vai te punir, porque você é o único filho deles e o futuro da empresa — tentei mascarar meu tom irônico e me impedi de sorrir sarcasticamente enquanto falava aquelas coisas.
Não era hora para deboches, porém, era inevitável não achar engraçado o desespero de Joseph quando ele viu que estava perdendo outro filho pro meu lado. Ele com certeza viu a vontade de de fazer aquilo dar certo, o modo como o filho se empenhou para formar aquela família, e provavelmente já sabe que será difícil fazê-lo mudar de ideia. Por isso estava usando aqueles joguinhos psicológicos pra cima de , como se ele ainda tivesse dezoito anos e fizesse suas vontades.
Se nem eu reconhecia o antigo no atual, imaginei o susto que Joseph não deve ter levado ao constatar que não só ignorou suas ordens de se livrar da sobrinha, como também aproveitou e se casou com a filha da empregada. Eu pagaria pra ver a cara dele ao ver que o filho tinha se libertado das amarras de marionete que ele tinha colocado nele durante anos.
Estava usando algo que sabia que era importante para como uma recompensa caso ele desistisse da família que construiu: a empresa. Provavelmente, prometeu lhe dar controle total, tirando o invejoso do Edward de seu caminho.
Ele não via que o filho era um homem de vinte e quatro anos? O que ele achava que era bom para ? Largar a “esposa” e a filha que o fizeram ter responsabilidades, maturidade e até mesmo sensibilidade, mesmo com apenas três meses de convivência?
A antiga vida de devia mesmo ser mais vantajosa para ele, já que vivia com várias mulheres como distração, bebia e dirigia como se não houvesse amanhã e, quando não estava fazendo merda, estava trabalhando full time. Estava sempre à disposição e sempre precisando dele.
— Quase lá — ele sorriu sem humor, deixando-me curiosa. — Ele vendeu a parte do tio Edward para um desconhecido como represália pelo que eu fiz — passou as mãos no rosto com força, e eu franzi a testa. Joseph não queria o filho de volta debaixo de sua saia? Tirar nem que seja metade do poder de na empresa só iria afastá-lo. — Mas me disse que ainda tinha tempo de voltar para eles, que Grace não teve a mesma sorte.
Covarde de merda.
Abracei , vendo-o ceder o corpo em minha direção e me laçar a cintura firmemente. Sua cabeça estava encostada em meu ombro. Eu sabia que ele podia sentir meu coração bater forte contra a caixa torácica. Minha respiração irregular denunciava meu estado emocional naquele instante. Era puro ódio.
Usando Grace para atingi-lo… Que sorte era aquela, afinal? A sociedade superestimava os pais. Colocava-os num pedestal sagrado, quando, na verdade, a maioria deles nem sempre mereceu toda aquela importância.
Quando fui embora de casa depois daquela discussão terrível, ouvi de meu pai, antes de ir embora com minhas malas, que eu deveria ficar com minha mãe e que não sobreviveria um dia longe dela. Mas eu sabia bem que qualquer coisa era melhor do que vê-la apanhar. Se eu tivesse lhe dado ouvidos, talvez ainda estaria trancafiada em meu quarto, ouvindo gritos, sendo medrosa o bastante para não intervir novamente. A última vez me custou um braço quebrado.
Eu estava melhor sem eles. E poderia estar doendo em naquele momento, mas ele logo perceberia que também estava. Se é que já não tinha se dado conta.
— Eu sinto muito, muito mesmo — afaguei seus cabelos castanhos, beijando o topo de sua cabeça.
Perder Grace já tinha sido horrível. Imaginei como ele devia estar se sentindo com a “perda” dos pais também. O que era para ter os aproximado, fez o contrário e separou. Não era possível que Joseph e Margot não sentiam falta da filha e não aprenderiam com os próprios erros a ponto de repeti-los.
— Sei que está magoado, mas eu te digo com toda a certeza do mundo que você vai ficar bem — afaguei suas costas, encarando o quarto meio escuro.
Nós iríamos ficar bem.
Ou pelo menos, iríamos tentar. Tem sido daquele jeito comigo desde que deixei meus pais para trás na nossa cidade natal. Era uma linha tênue entre seguir em frente e conviver com as lembranças de momentos que seus próprios pais deveriam te privar de viver, mas fizeram o contrário.
Eu andava naquela corda bamba ora pendendo para um lado, ora para outro. Percebi que as lembranças me deixaram um pouco em paz naquela nova fase da minha vida. Eu suspeitava que tinha algo a ver com aquilo – ela melhorava meus dias a ponto de me fazer esquecer da vida que levei antes. Até mesmo aquela casa e a oportunidade de viver em família do jeito certo estava me ajudando a não me recordar da minha antiga vida.
Meu pai só voltava a me assombrar quando era citado ou quando se fazia presente, como na noite de Natal. Aí vinha em forma de pesadelos perturbar meu sono. Mas eu estava seguindo em frente, e esperava um dia não tê-lo perto de mim nem em sonho.
— Agora vai lá no banheiro, tire essa roupa e tome um banho — o afastei de mim após ver no relógio a hora que já era. — Tenho certeza que você vai dar a volta por cima, vai tirar tudo isso de letra e fazer muito mais do que só bater a porta na cara dele — ele terminava de desabotoar os botões de sua camisa clara, tendo seus olhos ainda molhados vidrados em mim. — Porque só eu sei o quanto você consegue ser insuportável quando quer.
soltou um risinho, deixando as covinhas nas bochechas à mostra.
— Obrigado, .
Sorri sem graça e balancei a cabeça, desdenhando do que fiz. Eu só tinha escutado ele e lhe dado um ombro para chorar. Perdi as contas de quantas vezes precisei daquilo.
me abraçou pela milésima vez naquela noite. Daquela vez, deitou minha cabeça em seu ombro e envolveu-me em seus braços. Parecia que quem estava sendo consolada era eu, exatamente como tinha acabado de pensar que queria ter sido. Suspirei, sentindo o choro me subir a garganta. Porém, engoli em seco o nó recém-formado, piscando rapidamente a fim de dissipar as lágrimas que se formaram em meus olhos.
Eu não iria chorar, não depois de tanto tempo.
— Eu realmente espero que algum dia você confie em mim pra contar o que tanto te machucou no passado — ele disse, e eu apertei meus dedos em sua pele por baixo da camisa aberta, abraçando-o mais forte.
— Vá tomar seu banho, está tarde já — desconversei, controlando minhas emoções e forçando um sorriso fechado, quando tive seus olhos verdes me encarando assim que nos separamos.
deixou um beijo em minha testa e deixou a cama, entrando no banheiro em seguida. Assim que a porta foi fechada, pude soltar o que estava segurando. Me aconcheguei na cama e deixei que o choro viesse, molhando o travesseiro ao abafar meus soluços baixos. Virei o travesseiro e me deixei cair no sono antes mesmo de sair do banho. O último lapso de consciência que tive foi de sentir meus pés sendo calçados por meias e o corpo dele envolvendo o meu por baixo dos cobertores.
(...)
Despertei no dia seguinte com o choro de vindo do corredor. Abri um dos olhos e a vi, pela babá eletrônica, mexer os bracinhos e perninhas enquanto esperava que alguém fosse pegá-la. Tirei o braço de cima da minha cintura e me levantei, indo socorrê-la.
— Bom dia, meu amor. O que houve? — era uma pergunta retórica. Primeiro porque ela não me responderia, segundo porque as opções eram poucas: ou estava com fome, ou com com a fralda suja.
Ainda conversando com ela, levei-a até o trocador, vendo sua fraldinha molhada e imaginando que ela devia estar com fome também. Ainda estava bêbada de sono. geralmente era quem cuidava dela naquele horário, quando levantava para correr. Seu celular tinha despertado, porém ele havia o desligado e voltado a dormir. Provavelmente não dormiu muito bem depois de tudo o que aconteceu.
— A mamãe já vai fazer sua mamadeira — desci com ela no colo ainda papeando. Apesar de não ter uma voz bonita como a de , parecia gostar de me ouvir. — Ma-mãe — falei mais firme, encarando seus olhos verdes. — Mamãe. Quando você quiser falar, fale mamãe, não papai. Mamãe.
Quem sabe com a repetição ela não se recorda?
Ri de sua carinha confusa. Logo me imitou, sorrindo junto. Beijei sua bochecha grande, achando-a extremamente adorável. Sabia que era cedo demais para esperar que ela aprendesse. Confesso que queria muito que fosse “mamãe” a sua primeira palavra, afinal, eu bem sabia que infelizmente tinha uma preferência por que nem ao menos sabia disfarçar.
Pelo visto, seu poder sobre as mulheres era real.
Encarei o tempo feio lá fora pela janela enquanto segurava a mamadeira e esperava a bebê encher a barriguinha. Na cozinha, vi Salém se aproximar, se enroscando em minha canela em busca de carinho. Estranhei. Ele nunca tinha sido carente daquele jeito. Passei um dos pés por seu corpinho, sentindo-o se esfregar na minha meia fofinha enquanto ronronava. Parecia que Tom tinha me trazido outro gato no lugar dele.
Após colocar para arrotar e deixá-la no carrinho, fui até a tigela de ração e deixei sua comida no canto, deixando mais um pouco de carinho em sua cabeça e barriguinha. Lavei as mãos e comecei a colocar a cafeteira para trabalhar, enquanto esperava a sanduicheira terminar meu misto-quente.
Ouvi passos se aproximando e me deparei com na soleira da porta, vendo Salém apoiar-se nas patas traseiras enquanto cheirava os pezinhos de cobertos por seu macacão marrom de ursinhos. Peguei meu celular, sinalizando para que continuasse em silêncio, e liguei a câmera, me aproximando devagar. Até porque eu sabia que Salém era tão do contra que, tudo o que ele fazia de interessante, parava no momento em que percebia que estava sendo filmado.
— Bom dia — nem percebi sua aproximação. Dei um pulo ao me virar e dar de cara com ele tão próximo.
— Bom dia — levei a mão ao peito, vendo-o rir da minha cara de susto. — Você está melhor? — suas mãos me envolveram a cintura, e aproximou nossos corpos enquanto assentia, sinalizando o que seu semblante parecia negar. — Tem certeza?
— Sim, eu estou bem — ele chocou seu nariz contra o meu, fazendo-me sentir sua respiração bater contra meu rosto. Encarei sua boca e fechei os olhos, esperando-o tomar meus lábios. Porém, a campainha tocou bem na hora, nos afastando. — Eu atendo.
Era cedo demais para que recebêssemos visitas. Estranhei, porém fui dispersa pela cafeteira, sinalizando que o café estava pronto.
— Fudeu, fudeu… — arregalei os olhos ao ver voltar correndo, pálido como se tivesse visto um fantasma. — A assistente social está aqui.
Eu sabia que iríamos ter que recebê-la em casa e que ela não avisaria quando viria, porém, mesmo assim, eu estava… surpresa? Era muito cedo para raciocinar direito. Oh, céus, nós nem estávamos prontos para aquilo!
Mas nada do que ela tinha me dito jamais entrou na minha cabeça. Eu era cego, enxergava meu pai como um super-herói. Somente ouvir tudo aquilo vindo da boca dele foi capaz de me tirar daquele transe, o qual eu não entraria nunca mais.
Os olhinhos molhados de em seu ombro me fizeram recuar e desistir, mesmo que ela fosse pequena demais para entender o que eu iria contar, ou até mesmo a situação em si. Eu não sabia se conseguiria repetir tudo o que ouvi naquela sala em sua frente.
's point of view.
A bebê em meus braços ainda chorava baixinho quando dei passos firmes pelo piso liso, saindo do hall de entrada e deixando plantado em frente à porta recém-fechada. Se não estivesse ali, eu teria batido com força. Ainda fui educada dando-lhe boa noite. Ele não merecia nada vindo de nós – devia saber daquilo, mas parecia que, quando o assunto era o pai, uma venda lhe tapava os olhos. Não gostei dele ter dado nosso endereço a Joseph. Eu queria distância daquele homem, e, de preferência, que ele ficasse bem longe da minha filha. Não o queria na minha casa.
Me inclinei sobre a mesa de centro e apanhei a chupeta cor-de-rosa, colocando-a na boca da bebê, que ainda chorava baixinho. Eu tentava acalmá-la, balançando-a devagar e afagando suas costas. Vi pelo canto de olho passar disparado para o escritório com o envelope abarrotado de papéis em mãos.
Estranhei sua atitude omissa quando fechei a porta na cara de seu adorado pai. Achei que brigaria comigo e o defenderia como sempre fez. Admito que deveria ter ouvido o que ele me disse quando me pediu pra subir com a bebê. Queria voltar no tempo só para impedi-lo de sequer colocar os olhos verdes como os do nela.
Ele e a mulher dele praticamente a deram como morta junto de Grace! Por mim, nem Joseph, nem Margot saberiam nada sobre a vida da menina, sequer veriam seu rostinho. era maravilhosa, um presente deixado por Grace. Se eles não a reconheciam como tal, não mereciam sua presença e amor.
Após conseguir acalmá-la e colocá-la para dormir novamente, levei-a comigo no carrinho para a cozinha, onde comecei a preparar uma sopa para o jantar. Estava frio como na noite passada, então era um prato que combinava bem com o clima. Jantei, dei a mamadeira de e lavei a louça. Nada de deixar o escritório que se trancafiou desde a hora que chegou do trabalho.
Suspeitava que tinha a ver com a visita inesperada do pai, ou talvez não tão inesperada. Vai ver já sabia da vinda do pai a Londres. Ele não me contaria caso soubesse, da mesma forma que não me contou o que havia o deixado tão mal-humorado desde que fora me buscar no trabalho com as meninas. De manhã, quase não parou de me beijar; quando chegamos em casa, agiu como se eu nem estivesse ali. Fora que, no carro, já tinha sido extremamente grosso comigo.
Se ele achava que nossa trégua só valia do meu lado, estava mundo enganado. não podia e nem iria me usar de saco de pancadas toda vez que tivesse um dia ruim no trabalho.
Será que ele não iria jantar? Dei passos incertos pelo corredor e cheguei até bem próximo da porta, porém recuei, com medo de ser maltratada de novo por conta do humor dele. Retrocedi, indo trancar a porta e apagar as luzes do andar de baixo, mesmo sentindo-me culpada por não ter ido atrás. Afinal de contas, já tinha cuidado de mim algumas vezes, porém, ele não estava me dando abertura para retribuir aquele favor.
Coloquei a bebê em seu berço após niná-la. Ela estava com muito sono, pois, segundo Elisabeta, não tinha dado um de seus cochilos durante a tarde. Deixei o pequeno abajur aceso no canto do quarto quentinho e deixei a porta com uma pequena fresta para vazar barulhos caso ela chorasse e a babá eletrônica não desse conta de nos acordar. Após tomar um banho rápido, vesti um pijama de calças e mangas compridas e me deitei sozinha em meio ao escuro do quarto.
Mesmo tendo me cobrido com dois cobertores grossos e estando bem vestida, ainda não conseguia me esquentar cem por cento. Não consegui pregar os olhos, remexendo-me na cama, que parecia diferente sem o outro corpo ao lado. Quem diria que eu, espaçosa como era, iria me desacostumar a dormir desacompanhada. Por fim, virei-me de barriga pra cima, encarando o teto enquanto pensava na vida à espera do tão esperado sono. Era até engraçado. Eu estava me sentindo sonolenta o dia todo e me sentia cansada ao voltar pro trabalho, porém, naquele momento, todo o cansaço tinha desaparecido.
Me dei conta que, com a correria de volta de viagem e retorno ao trabalho, eu nem ao menos tinha tentado planejar meu ano. Confesso que aquela vida de perrengues chiques ainda me causava muito estranhamento, porém, admitia que estava adorando sair um pouco da minha zona de conforto, mesmo que eu só tivesse nove meses para aproveitá-la. Ainda assim, após o divórcio, eu sentia que iria sair daquele plano melhor do que entrei.
Eu tinha uma casa! Sabia que os custos de mantê-la me trariam dores de cabeça, mas ainda assim não teria que pagar aluguel. Meus planejamentos de todos os começos de ano eram bem simplórios. O máximo que já cheguei a me permitir sonhar alto era comprar uma moto, mas nunca se passou na minha cabeça que eu conseguiria ter uma casa própria.
Pensei naqueles nove meses restantes com dividindo o teto e as contas comigo – seria uma boa saída para o meu curso trancado na faculdade. Faltava apenas um semestre para que eu me formasse, e ter um diploma talvez me ajudasse na hora de arranjar um emprego que pagasse melhor quando eu ficasse sozinha com . Afinal de contas, eu não teria mais que preocupar com o aluguel, mas ela com certeza me traria gastos.
Suspirei, desistindo da ideia promissora, mas que me deixaria distante da bebê. Eu já trabalhava o dia todo praticamente; se voltasse a estudar, ficaria ainda mais horas fora de casa. Meu único tempo livre com minha filha era a parte da noite, e eu já sentia a falta dela o dia todo… Quando eu teria tempo para ela?
Um barulho vindo da porta me dispersou de meus devaneios. Reconheci a silhueta de quando a luz do corredor adentrou o quarto junto dele. Me sentei na cama e vi sua sombra caminhar devagar, em silêncio e em direção à cama. Estranhei quando percebi que vinha até mim. Será que ele não estava me enxergando e iria tentar se deitar naquele lado?
— ?
Ouvi sua respiração se intensificar Franzi a testa, esticando-me para acender o abajur na cômoda ao lado da cama. Encarei-o parado diante de mim, os ombros caídos, gravata frouxa em volta do pescoço e a camisa com as mangas dobradas até os cotovelos. Sua expressão era de uma tristeza profunda, e os olhos estavam cristalinos, vermelhos e cheios de lágrimas.
— O que houve? — perguntei, ainda confusa, vendo-o apenas negar com a cabeça. Seu queixo tremeu, e a primeira de muitas lágrimas transbordaram em seu olhar perdido.
Seu corpo veio de encontro ao meu numa rapidez impressionante. Quando vi, já o tinha agarrado a mim, com a cabeça enterrada na curva do meu pescoço enquanto suas mãos trêmulas envolviam meu tronco num abraço forte, que me puxava em direção a ele. Passei os braços pelo seu tronco curvado, dando-lhe um afago nas costas, enquanto sentia seu abdômen subir e descer descontrolado devido aos seus soluços.
— Acabou, , acabou — não compreendi muito o que sua voz abafada e irregular disse, próxima ao meu ouvido.
— Por favor, se acalma — me preocupei com sua respiração alterada. Eu tinha medo daquilo desencadear uma crise asmática, e meio que não saberia o que fazer caso algo do tipo acontecesse. — Respira direitinho, calma — com muito esforço, o empurrei gentilmente pelos ombros, lhe dando espaço pra respirar e para olhá-lo nos olhos.
foi se acalmando aos poucos, à medida em que parava de soluçar. Esperei algum tempo, lhe acariciando os cabelos devagar, o orientando a respirar profundamente ou algo do tipo que tinha visto na internet.
— Agora me conta o que acontece — minha voz mal saía. Toda aquela situação tinha me deixado tensa junto a ele, e meu coração se apertava dentro do peito ao vê-lo naquele estado.
Só tinha visto chorar daquele jeito quando perdemos Grace e, conhecendo-o como conhecia, sabia que, para ele ter chegado até mim e se permitido desabar daquela maneira ao recorrer aos meus braços, devia estar no auge do que quer que estivesse sentindo dentro de si.
— Você sempre esteve certa sobre meus pais.
Suspirei, encarando-o sem expressão. Seus olhos tempestuosos sequer checaram minha reação, como costumávamos fazer quando algum de nós dois dava o braço a torcer daquela maneira.
Eu queria muito não estar certa daquela vez, juro. Por mais que não suportasse sequer pensar naqueles dois por tudo o que fizeram com minha melhor amiga, eu sabia o quanto doía ter uma decepção daquelas com alguém que costumávamos amar e admirar tanto. Me destruía ver quem quer que fosse a pessoa se desiludir daquela forma, porque eu me via ali e me sentia na necessidade de ampará-lo, já que eu, por escolher não compartilhar o segredo que rondava minha casa, enfrentei tudo sozinha. E tinha sido tão difícil entender e aprender a lidar com tudo aquilo, sendo tão nova.
Meu pai me ensinou muita coisa além de andar de bicicleta. Nossa relação nem sempre foi de agressão e xingamentos – na verdade, eu nem tinha como dizer quando as coisas começaram a ficar daquele jeito. Assim como , não fui um bebê planejado e, assim como ela, fui o motivo de meus pais terem se casado, após uma tentativa de interromper a gestação. Minha mãe e ele decidiram seguir tudo como mandava o figurino. Meus pais aprenderam a ser pais comigo, e eles até fizeram um bom trabalho no início.
Nos vídeos antigos, havia lembranças que minha cabeça já não conseguia relacionar a ele, apenas por serem boas. Como a gravação que mamãe guardava com todo o cuidado do mundo que me mostra bem pequena, dando meus primeiros passos em direção a ele.
Com o passar dos anos – e o vício recém-adquirido em álcool –, meu pai passou a ser outro homem. Ele me ensinou a deixar de amá-lo e a começar a temer quando ele chegava em casa – e não importava o horário, estava embriagado e sempre violento. Me ensinou que as pessoas mudam, e que eu não podia levar meus sentimentos em consideração na hora de me afastar.
Era por aquele motivo que eu achava que ainda não conseguia confiar cem por cento em . Por mais que sentisse algo novo por ele, que já não era mais ódio ou algo que me fizesse afastá-lo, eu não conseguia confiar nas minhas impressões ou sentimentos. Sempre me via presa ao passado não tão distante que tínhamos.
Ficava confusa entre o que meus olhos viam e ouviam vindo dele – que demonstrava uma mudança positiva – com o que já ouvi e presenciei antes, do que eu tinha plena certeza que nunca mudaria.
— Eu não sei nem se posso repetir tudo o que ele me disse hoje, . Estou tão enojado, tão revoltado… Me pergunto como eu pude ser cego por todos esses anos e amá-lo, ter desejado ser igual a ele — suas mãos grandes foram até os cabelos, puxando-os e bagunçando os fios castanhos. Tirei-as dali, temendo que se machucasse. — Fiquei a porra da tarde inteira me peguntando se não sou como ele. Eu nem sei mais quem eu sou!
Me preocupava com quanto à questão de ela ter pais que tiveram o mesmo começo que o meu: uma união baseada numa mera formalidade. Tinha pavor de cometer os mesmos erros. Eu olhava para o rostinho dela e não conseguia imaginá-la sofrendo o que sofri ou o que estava sofrendo naquele momento.
O que me consolava era ver que tinha acordado – do modo mais doloroso possível, mas tinha –, e que ele passaria a se preocupar ainda mais com o que iríamos ensinar a e o modo que iríamos criá-la. Porque meus pais e muitos por aí jamais tinham pensado nos danos futuros que suas atitudes nos trariam no futuro.
Ver confuso consigo mesmo daquele jeito era muito triste. Reprimi o choro, olhando-o consternada. Não sabia o que poderia ser pior: descobrir que o pai é um monstro quando se é criança, quando mais precisamos deles e recebemos um desamparo desolador, ou depois de mais velho, após anos construindo a imagem de um super-herói e, de repente, enxergá-los como realmente são.
— Você não é como ele — falei, e negou com a cabeça, ainda em soluços. — Olha pra mim, — pedi e ele o fez, com o rosto molhado e rubro, repleto de vergonha. sabia que, pela criação que teve, já reproduziu pensamentos e falas dos pais, por isso quase não conseguia me olhar. Nós dois sabíamos que eu tinha sido alvo da maioria deles. — Nunca teria se casado comigo se fosse. Jamais iria aceitar ou teria apoiado sua irmã como fez!
— Ele me mandou me livrar de , .
Franzi o cenho. Eu achava que nenhum dos dois tinha sequer se lembrado da menina na noite em que Grace nos deixou. Pelo menos foi o que pareceu durante o velório, onde tudo o que se falava era sobre a filha perfeita que os tinham acabado de perder. Sem sequer uma citação sobre a vida que ela levou nos últimos nove meses em que esteve grávida e foi socorrida pelo irmão.
— Assim que saí do hospital, eu liguei pra ele — disse. Balancei a cabeça, suspirando. Eu não faria aquilo se fosse ele. Apesar de ser minha primeira vez ouvindo aquela história, eu conhecia Joseph bem o bastante para já saber o final dela. — Liguei como sempre fazia quando as coisas saíam do meu controle. Meu pai sempre me disse que estaria lá por mim.
Eu sabia que sim. Lembrava-me da madrugada que bateu o carro num muro por dirigir alcoolizado, pouco tempo depois de completar seus dezessete e tirar sua carteira de motorista. Bastou uma ligação para que a polícia desconsiderasse o bafômetro feito e a reconstrução do muro fosse iniciada, com direito a uma quantia para que o proprietário ficasse calado.
Tudo que fosse preciso para construir a imagem de como um bom sucessor nos negócios diante a sociedade, Joseph faria. Mas ao que parecia, Grace não tinha a mesma proteção. Tanto que demorou para acordar, porque tinha vivido por anos se beneficiando daquilo, mesmo amando a irmã e usando o que tinha para protegê-la no lugar dos pais.
Talvez tenha sido melhor assim. Se se opusesse antes, Grace não teria para onde correr quando as coisas começaram a ficar difíceis.
— O que ele disse? — mesmo temendo e já imaginando o que seria, perguntei, já me preparando para que aquilo fosse um gás a mais na hora de deixá-los bem longe de , caso algum dia eles quisessem conhecê-la.Porque eu sabia que aquele dia chegaria.
Outra lição dada por meu pai era aquela: quem “batia”, esquecia facilmente dos próprios atos quando precisava de ajuda, mas quem apanhava, jamais. Minha mãe vivia querendo me incluir de volta na vida de meu pai e vice e versa, dando a entender que era uma vontade dele também ter a filha de volta. Mas eu jamais voltaria para o que tinha me machucado tanto. Não seria justo com a criança, que sofreu boa parte do tempo calada.
— Me mandou deixá-la ir. Se você não estivesse ali, insistindo na adoção dela, eu nem sei o que poderia acontecer.
Levei a mão à boca, infelizmente não duvidando do poder de persuasão que Joseph tinha sobre . O fato de ele não ter cedido ao pai me deixava segura sobre quem ele era, e eu esperava que o próprio também conseguisse enxergar aquilo em si. era um pai maravilhoso, e tenho certeza que o agradeceria depois.
— Tem noção do monstro que ele é? Eu tenho ignorado isso há muito tempo, mas, depois de hoje, me dei conta que eu não devia esperar que ele me perdoasse por fazer o que era certo. Como eu poderia dar minha sobrinha pra adoção e continuar minha vida como se nada tivesse acontecido? — a indignação estava explícita em seu rosto e tom de voz. — Como ele consegue conviver com a culpa de esconder a existência da própria neta como se ela estivesse morta?
— Eu também não sei, . Mas, vindo deles, não consigo ficar tão surpresa — murmurei, esticando minhas mãos, tentando secar suas lágrimas sem sucesso, já que seu choro ainda não tinha cessado. — A única coisa que eu sei e o que realmente importa é que nós dois vamos cuidar dela. não precisa deles. Ela será a criança mais amada do mundo por nós dois e todo mundo que rodeá-la — me aproximei, segurando seu rosto com ambas as mãos.
Eu tinha certeza daquilo. Desde Tiffany e Anne, Chace, Jack, Su e Caroline e seus outros colegas de trabalho, e mesmo que não gostasse da ideia, até mesmo Tom e nossos outros vizinhos – todo mundo amava como se fosse da família. Eu sabia que algum dia ela iria perguntar sobre os avós. Sabia que seria decepcionante para ela saber da verdade, porém tinha certeza que ela entenderia depois de ver o quanto era querida.
— Obrigado por ter brigado comigo naquele dia, . Eu nunca me perdoaria caso tivesse feito aquilo com , sequer consigo imaginar minha vida sem ela.
Concordei de imediato, tendo a mesma certeza. Sorri quando pegou uma de minhas mãos do próprio rosto e beijou a palma dela, segurando-a diante de si e reparando na aliança no dedo anelar.
— Meu pai me chamou de burro por ter me casado com você. Insinuou que você era uma interesseira.
Ri sem humor, mais uma vez nem um pouco surpresa. Tinha vontade de perguntar a Joseph o que ele achava que eu tinha visto na empresa quase falida dele, só para ver sua resposta. Porém, não o faria. Depois de ouvir tudo aquilo, não queria vê-lo nem pintado de ouro.
E também porque aquilo machucava . E, contrariando tudo o que seria normal entre nós, eu não usaria aquele argumento e correria o risco de atingi-lo de alguma forma.
— Disse que minha mãe acha que eu a troquei por duas desconhecidas. Ele até chegou a chamar de bastarda.
Inspirei, controlando a raiva crescente dentro de mim. Quando as ofensas eram destinadas a mim, eu não me importava muito, já era esperado até. Afinal, eu sentia sua apatia a mim desde criança. Mas mexer com era demais. Como se não bastasse tudo de ruim que eles fizeram, sem ao menos chegar perto da neta, ainda tinham coragem de ofendê-la?
— Reclamou sobre eu ter dado o sobrenome a você. Disse que não queria que eu o desse a , disse que vocês duas não são da família, que ele e minha mãe são a minha família.
Revirei os olhos. Mania de se achar especial ao ponto de achar que todo mundo quer ser um deles! Se eu que já entendia tudo estava cagando e andando para o sobrenome , imagine que nem falar sabia?
Me perguntei o que ele iria fazer caso Grace tivesse sobrevivido ao parto. Iria arrancar a filha dela dos braços? Impedi-la de ser a mãe dela e ser registrada como tal?
— Me deixe adivinhar. Ele disse que está te aconselhando para o seu bem e que, apesar de tudo de ruim que você está fazendo, ele não vai te punir, porque você é o único filho deles e o futuro da empresa — tentei mascarar meu tom irônico e me impedi de sorrir sarcasticamente enquanto falava aquelas coisas.
Não era hora para deboches, porém, era inevitável não achar engraçado o desespero de Joseph quando ele viu que estava perdendo outro filho pro meu lado. Ele com certeza viu a vontade de de fazer aquilo dar certo, o modo como o filho se empenhou para formar aquela família, e provavelmente já sabe que será difícil fazê-lo mudar de ideia. Por isso estava usando aqueles joguinhos psicológicos pra cima de , como se ele ainda tivesse dezoito anos e fizesse suas vontades.
Se nem eu reconhecia o antigo no atual, imaginei o susto que Joseph não deve ter levado ao constatar que não só ignorou suas ordens de se livrar da sobrinha, como também aproveitou e se casou com a filha da empregada. Eu pagaria pra ver a cara dele ao ver que o filho tinha se libertado das amarras de marionete que ele tinha colocado nele durante anos.
Estava usando algo que sabia que era importante para como uma recompensa caso ele desistisse da família que construiu: a empresa. Provavelmente, prometeu lhe dar controle total, tirando o invejoso do Edward de seu caminho.
Ele não via que o filho era um homem de vinte e quatro anos? O que ele achava que era bom para ? Largar a “esposa” e a filha que o fizeram ter responsabilidades, maturidade e até mesmo sensibilidade, mesmo com apenas três meses de convivência?
A antiga vida de devia mesmo ser mais vantajosa para ele, já que vivia com várias mulheres como distração, bebia e dirigia como se não houvesse amanhã e, quando não estava fazendo merda, estava trabalhando full time. Estava sempre à disposição e sempre precisando dele.
— Quase lá — ele sorriu sem humor, deixando-me curiosa. — Ele vendeu a parte do tio Edward para um desconhecido como represália pelo que eu fiz — passou as mãos no rosto com força, e eu franzi a testa. Joseph não queria o filho de volta debaixo de sua saia? Tirar nem que seja metade do poder de na empresa só iria afastá-lo. — Mas me disse que ainda tinha tempo de voltar para eles, que Grace não teve a mesma sorte.
Covarde de merda.
Abracei , vendo-o ceder o corpo em minha direção e me laçar a cintura firmemente. Sua cabeça estava encostada em meu ombro. Eu sabia que ele podia sentir meu coração bater forte contra a caixa torácica. Minha respiração irregular denunciava meu estado emocional naquele instante. Era puro ódio.
Usando Grace para atingi-lo… Que sorte era aquela, afinal? A sociedade superestimava os pais. Colocava-os num pedestal sagrado, quando, na verdade, a maioria deles nem sempre mereceu toda aquela importância.
Quando fui embora de casa depois daquela discussão terrível, ouvi de meu pai, antes de ir embora com minhas malas, que eu deveria ficar com minha mãe e que não sobreviveria um dia longe dela. Mas eu sabia bem que qualquer coisa era melhor do que vê-la apanhar. Se eu tivesse lhe dado ouvidos, talvez ainda estaria trancafiada em meu quarto, ouvindo gritos, sendo medrosa o bastante para não intervir novamente. A última vez me custou um braço quebrado.
Eu estava melhor sem eles. E poderia estar doendo em naquele momento, mas ele logo perceberia que também estava. Se é que já não tinha se dado conta.
— Eu sinto muito, muito mesmo — afaguei seus cabelos castanhos, beijando o topo de sua cabeça.
Perder Grace já tinha sido horrível. Imaginei como ele devia estar se sentindo com a “perda” dos pais também. O que era para ter os aproximado, fez o contrário e separou. Não era possível que Joseph e Margot não sentiam falta da filha e não aprenderiam com os próprios erros a ponto de repeti-los.
— Sei que está magoado, mas eu te digo com toda a certeza do mundo que você vai ficar bem — afaguei suas costas, encarando o quarto meio escuro.
Nós iríamos ficar bem.
Ou pelo menos, iríamos tentar. Tem sido daquele jeito comigo desde que deixei meus pais para trás na nossa cidade natal. Era uma linha tênue entre seguir em frente e conviver com as lembranças de momentos que seus próprios pais deveriam te privar de viver, mas fizeram o contrário.
Eu andava naquela corda bamba ora pendendo para um lado, ora para outro. Percebi que as lembranças me deixaram um pouco em paz naquela nova fase da minha vida. Eu suspeitava que tinha algo a ver com aquilo – ela melhorava meus dias a ponto de me fazer esquecer da vida que levei antes. Até mesmo aquela casa e a oportunidade de viver em família do jeito certo estava me ajudando a não me recordar da minha antiga vida.
Meu pai só voltava a me assombrar quando era citado ou quando se fazia presente, como na noite de Natal. Aí vinha em forma de pesadelos perturbar meu sono. Mas eu estava seguindo em frente, e esperava um dia não tê-lo perto de mim nem em sonho.
— Agora vai lá no banheiro, tire essa roupa e tome um banho — o afastei de mim após ver no relógio a hora que já era. — Tenho certeza que você vai dar a volta por cima, vai tirar tudo isso de letra e fazer muito mais do que só bater a porta na cara dele — ele terminava de desabotoar os botões de sua camisa clara, tendo seus olhos ainda molhados vidrados em mim. — Porque só eu sei o quanto você consegue ser insuportável quando quer.
soltou um risinho, deixando as covinhas nas bochechas à mostra.
— Obrigado, .
Sorri sem graça e balancei a cabeça, desdenhando do que fiz. Eu só tinha escutado ele e lhe dado um ombro para chorar. Perdi as contas de quantas vezes precisei daquilo.
me abraçou pela milésima vez naquela noite. Daquela vez, deitou minha cabeça em seu ombro e envolveu-me em seus braços. Parecia que quem estava sendo consolada era eu, exatamente como tinha acabado de pensar que queria ter sido. Suspirei, sentindo o choro me subir a garganta. Porém, engoli em seco o nó recém-formado, piscando rapidamente a fim de dissipar as lágrimas que se formaram em meus olhos.
Eu não iria chorar, não depois de tanto tempo.
— Eu realmente espero que algum dia você confie em mim pra contar o que tanto te machucou no passado — ele disse, e eu apertei meus dedos em sua pele por baixo da camisa aberta, abraçando-o mais forte.
— Vá tomar seu banho, está tarde já — desconversei, controlando minhas emoções e forçando um sorriso fechado, quando tive seus olhos verdes me encarando assim que nos separamos.
deixou um beijo em minha testa e deixou a cama, entrando no banheiro em seguida. Assim que a porta foi fechada, pude soltar o que estava segurando. Me aconcheguei na cama e deixei que o choro viesse, molhando o travesseiro ao abafar meus soluços baixos. Virei o travesseiro e me deixei cair no sono antes mesmo de sair do banho. O último lapso de consciência que tive foi de sentir meus pés sendo calçados por meias e o corpo dele envolvendo o meu por baixo dos cobertores.
Despertei no dia seguinte com o choro de vindo do corredor. Abri um dos olhos e a vi, pela babá eletrônica, mexer os bracinhos e perninhas enquanto esperava que alguém fosse pegá-la. Tirei o braço de cima da minha cintura e me levantei, indo socorrê-la.
— Bom dia, meu amor. O que houve? — era uma pergunta retórica. Primeiro porque ela não me responderia, segundo porque as opções eram poucas: ou estava com fome, ou com com a fralda suja.
Ainda conversando com ela, levei-a até o trocador, vendo sua fraldinha molhada e imaginando que ela devia estar com fome também. Ainda estava bêbada de sono. geralmente era quem cuidava dela naquele horário, quando levantava para correr. Seu celular tinha despertado, porém ele havia o desligado e voltado a dormir. Provavelmente não dormiu muito bem depois de tudo o que aconteceu.
— A mamãe já vai fazer sua mamadeira — desci com ela no colo ainda papeando. Apesar de não ter uma voz bonita como a de , parecia gostar de me ouvir. — Ma-mãe — falei mais firme, encarando seus olhos verdes. — Mamãe. Quando você quiser falar, fale mamãe, não papai. Mamãe.
Quem sabe com a repetição ela não se recorda?
Ri de sua carinha confusa. Logo me imitou, sorrindo junto. Beijei sua bochecha grande, achando-a extremamente adorável. Sabia que era cedo demais para esperar que ela aprendesse. Confesso que queria muito que fosse “mamãe” a sua primeira palavra, afinal, eu bem sabia que infelizmente tinha uma preferência por que nem ao menos sabia disfarçar.
Pelo visto, seu poder sobre as mulheres era real.
Encarei o tempo feio lá fora pela janela enquanto segurava a mamadeira e esperava a bebê encher a barriguinha. Na cozinha, vi Salém se aproximar, se enroscando em minha canela em busca de carinho. Estranhei. Ele nunca tinha sido carente daquele jeito. Passei um dos pés por seu corpinho, sentindo-o se esfregar na minha meia fofinha enquanto ronronava. Parecia que Tom tinha me trazido outro gato no lugar dele.
Após colocar para arrotar e deixá-la no carrinho, fui até a tigela de ração e deixei sua comida no canto, deixando mais um pouco de carinho em sua cabeça e barriguinha. Lavei as mãos e comecei a colocar a cafeteira para trabalhar, enquanto esperava a sanduicheira terminar meu misto-quente.
Ouvi passos se aproximando e me deparei com na soleira da porta, vendo Salém apoiar-se nas patas traseiras enquanto cheirava os pezinhos de cobertos por seu macacão marrom de ursinhos. Peguei meu celular, sinalizando para que continuasse em silêncio, e liguei a câmera, me aproximando devagar. Até porque eu sabia que Salém era tão do contra que, tudo o que ele fazia de interessante, parava no momento em que percebia que estava sendo filmado.
— Bom dia — nem percebi sua aproximação. Dei um pulo ao me virar e dar de cara com ele tão próximo.
— Bom dia — levei a mão ao peito, vendo-o rir da minha cara de susto. — Você está melhor? — suas mãos me envolveram a cintura, e aproximou nossos corpos enquanto assentia, sinalizando o que seu semblante parecia negar. — Tem certeza?
— Sim, eu estou bem — ele chocou seu nariz contra o meu, fazendo-me sentir sua respiração bater contra meu rosto. Encarei sua boca e fechei os olhos, esperando-o tomar meus lábios. Porém, a campainha tocou bem na hora, nos afastando. — Eu atendo.
Era cedo demais para que recebêssemos visitas. Estranhei, porém fui dispersa pela cafeteira, sinalizando que o café estava pronto.
— Fudeu, fudeu… — arregalei os olhos ao ver voltar correndo, pálido como se tivesse visto um fantasma. — A assistente social está aqui.
Eu sabia que iríamos ter que recebê-la em casa e que ela não avisaria quando viria, porém, mesmo assim, eu estava… surpresa? Era muito cedo para raciocinar direito. Oh, céus, nós nem estávamos prontos para aquilo!
Capítulo 31
— Olá, bom dia.
Mal tive tempo de abrir a boca para respondê-lo, a mulher esbelta de cabelos castanhos curtos e num corte moderno surgiu na porta da cozinha. Se antes eu já estava sem fala, quando a vi, esqueci onde deixei minhas cordas vocais.
— Sou Angelina Davis, a assistente social encarregada do seu caso, lembra-se de mim?
Lembrava sim. Principalmente de sua fama de exigente que Amélia fez questão de evidenciar quando marcamos aquele almoço, lá no início de tudo.
Olhei em volta, para checar se tinha algo fora do lugar na cozinha, e me acalmei quando vi que tinha lavado a louça e organizado tudo na noite passada. Sei que talvez Angelina não desse tanta importância para aquele detalhe. O que provavelmente teria sua atenção naquela visita e me preocupava mais era sua avaliação de nós dois. também parecia pensar a mesma coisa, já que se tornou um robô, praticamente paralisado diante da assistente social.
— S-Sim, sou , m-mas acho que você já deve saber disso — estendi-lhe a mão, sentindo-me estúpida.
Salém realmente estava no auge de sua carência naquele dia. Arregalei os olhos quando o vi já nos pés da mulher, que ainda não tinha percebido sua presença tão próximo dela.
— Essa deve ser …
O gato preto se esfregou nela, cheirando-a e a fazendo se remexer desconfortável. Será que ela era alérgica? Ou não gostava de gatos? Que tipo de ser humano desprezível não gostava de gatinhos?
— Salém! — sussurrei, abanando as mãos próximo de seu corpo esbelto em seu conjunto de blazer e saia lápis escuro. Estava tentando espantá-lo, porém não surtiu efeito nenhum sobre o felino.
— Eu me referia à criança — seus olhos de jabuticaba focaram-se em .
— Ah, sim, essa é — sorri amarelo.
Por fim, peguei o gato e o levei para a sala, enquanto escutava finalmente abrir a boca ao pegar a bebê do carrinho.
— Aceita um café? — voltei à cozinha após tirar o par de meias ridículas que tinha me colocado para dormir e escondê-las debaixo das almofadas do sofá.
Servi Angelina e juntei-me a eles na mesa, onde nos sentamos para que pudéssemos começar a pequena entrevista que fazia parte dos trâmites para anteceder a primeira audiência. A opinião da assistente social era muito importante, portanto tinha que ser positiva a nosso favor. Afinal, ela estava em nossa casa para saber tudo o que fazíamos ou deixávamos de fazer por e o local onde escolhemos criá-la.
Ela era uma espécie de espiã se infiltrando ali. A mulher estava sendo mais simpática do que no dia do restaurante, que, ao contrário do que deveria ser, apenas me deixou ainda mais tensa.
Eu tinha uma trava grande com examinadores. Para mim, quanto mais soltos e relaxados ficamos diante deles, mais estamos propensos a errar. Inclusive, eu estava desconfiada de seu comportamento – podia ser uma armadilha. Decidi então correr o risco de sair como paranoica do que me descuidar e cometer alguma falha que poderia tirar de nós.
Já para aquilo não era um problema, afinal, ao contrário de mim, para ele não estava sendo fácil relaxar de qualquer maneira naquele dia.
— E então, já se passaram três meses desde a última vez que conversamos. O que acham que mudou pra vocês?
Tínhamos acabado de respondê-la perguntas simples, coisas relacionadas à saúde da bebê, a questão da amamentação e adaptação, coisas que e eu sabíamos responder sem pestanejar. Mas quando Angelina mudou o roteiro, troquei olhares tensos com .
— Mudou tudo, não é? — soltei um riso sem graça, mexendo os ombros.
Era uma pergunta tão óbvia! Mas que também poderia esconder algo nas entrelinhas. Devia ter uma resposta certa, caso contrário, não estaria sendo usada numa avaliação.
— Quando nos vimos três meses atrás, nem casados éramos. Estávamos receosos com tudo o que viria, não entendíamos muito sobre bebês. Hoje, como pode ver, aprendemos bastante coisa e sabemos nos virar muito bem com ela — indiquei a bebê de olhos bem atentos chupando a chupeta no colo do pai. — Quando temos alguma dúvida, acionamos as vizinhas que já são mães, e elas nos ajudam.
Aquele era um jeito sutil de dizer que nós sobrevivemos. Angelina não precisava saber da vontade que e eu tínhamos de nos matar no começo de tudo, muito menos que nós dois não fazíamos ideia nem de como pegar um recém-nascido no colo, quem dirá conseguir mantê-lo vivo por tanto tempo.
— Os dois trabalham, certo? — ela perguntou, e assentimos juntos. — é diretor de uma empresa, e você, atendente de uma lanchonete.
Assentimos novamente, e eu me remexi desconfortável na cadeira. Era esquisito quando falavam em voz alta as nossas profissões. Algo parecia não encaixar.
E realmente não encaixava. Eu duvidava muito que Angelina ou qualquer outra pessoa tivesse conhecido um casal como nós. Não faria sentido nenhum , um homem muito bem de vida, permitir que eu, sua esposa, se matasse trabalhando numa lanchonete! Ser atendente era um trabalho bem puxado, no qual eu havia tirado meu sustento desde que cheguei a Londres. Porém, não era nem de longe o meu trabalho dos sonhos.
— Como fazem com ? Como funciona a rotina de vocês no dia a dia?
— Nós contratamos uma babá, a Elizabeta. Ela é ex-enfermeira e cuida de como se fosse uma neta. Não temos do que reclamar dela — troquei olhares com , que concordou imediatamente. Elisabeta, mesmo estando há tão pouco tempo conosco, já havia se mostrado tão maravilhosa que já a considerávamos da família. — e eu saímos cedo para trabalhar e deixamos a bebê com ela. Voltamos ao anoitecer, dispensamos a babá e cuidamos de durante a noite.
Era estranho que, mesmo confiando em Elisabeta de olhos fechados e sabendo que era bem cuidada por ela, eu ainda me sentia em falta por passar o dia fora e voltar só à noite para passar algumas horas com minha filha. Isso quando ela estava acordada. Eu me perguntava se ela tinha aquela percepção de nós dois. Não sabia bem se bebês percebiam o mundo daquela maneira aos três meses de vida, mas, se sim, poderia nos encarar como estranhos?
— Entendo — Angelina alternou os olhos entre mim e . Ficamos calados à espera da próxima pergunta, enquanto eu tentava parar com as paranoias que surgiram em minha cabeça.
O que me tranquilizava era saber que, no fim do dia, quando chegávamos em casa e a pegávamos no colo, demonstrava que nos amava do jeitinho dela. O modo como ela se aconchegava confortável sempre que estava nos braços de , como se soubesse que nada a faria mal ali; ou quando ela parava de chorar quando ouvia o som da minha voz, como se eu a acalmasse e ela tivesse certeza que eu sempre estaria lá por ela. Passávamos pouco tempo com a bebê, porém, tentávamos fazer parecer uma eternidade quando apenas estávamos ali, em silêncio, cheirando seu cabelinho ou ninando-a para dormir.
— E quanto ao casamento? Foi muito recente, não? Pegaram quando tinham dias de casados. Acham que, de alguma forma, ela atrapalhou o começo da vida a dois? — Angelina nitidamente se direcionou a .
Primeiro achei que fosse porque ele quase não tinha aberto a boca. Mas, depois, pensando bem, aquela pergunta realmente deveria ser direcionada a um homem. Eram eles que, na maioria das vezes, tinham queixas a fazer sobre o fato de os bebês tirarem a esposa de perto e roubarem as atenções para si, principalmente nos primeiros meses de vida.
Fiquei tranquila quanto à sua resposta, afinal, não havia passado por aquilo nem uma vez desde que se tornara pai. Não houve falta de sexo, e ele não se sentiu deixado de lado por mim, visto que era tudo uma mentira. Desde o início, sempre foi o centro de tudo – e continuava sendo, mesmo após nos envolvermos de um jeito mais… íntimo.
— e eu namoramos por algum tempo antes de vir ao mundo, e, independente disso, nós sempre falávamos sobre ter filhos algum dia. Então não foi uma surpresa tão grande nos tornarmos pais, mesmo que tão rápido — ele respondeu e eu concordei, ajudando na manutenção da mentira. Angelina chegou a me olhar para verificar a veracidade do que ele dizia. — Nós já vivíamos juntos no meu apartamento, então não poderíamos dizer que nos atrapalhou. Já vivenciamos a vida de casados antes de ir ao altar. Pelo contrário, ela nos aproximou muito.
Encarei , sentindo um frio esquisito se instalar em minha barriga. Ajeitei o cabelo, a fim de dissipar a pequena onda de ansiedade que me tomou.
Ele estava certo, eu só não saberia dizer a que ponto estava mentindo ou falando a verdade. Nos aproximamos desde a chegada de . Verdade. Mas nos aproximamos em que sentido? Se estava respondendo à pergunta na perspectiva de alguém casado, a aproximação era amorosa. Aí já era mentira. Nos aproximamos de outras formas, intimamente falando, mas eu não saberia dizer se era a culpada por aquilo.
Quero dizer, o que nos fez sentir atração um pelo outro foi a convivência sob o mesmo teto. era um caso à parte, e aquelas divisões sobre nós dois e tudo o que estava acontecendo desde que passamos a dividir a cama e o teto me deixavam tão confusa que desisti de tentar entender.
Minha esperança era acabar aquele trato com tudo voltando a fazer sentido para mim.
— Como disse anteriormente, aprendemos a cuidar de e até mesmo um do outro. Nossa cumplicidade só aumentou, principalmente na hora de dividir tarefas e responsabilidades.
— é muito tranquila, jamais iria atrapalhar. Até já viajamos com ela, com a permissão do juiz, é claro, e não tivemos problema algum — completei a fala de , atraindo sua atenção. — Foi muito divertido.
Não sabia se estávamos deixando tudo menos crível ao não citar nenhuma reclamação. Talvez romantizar a vida de pais fosse o errado a se fazer; talvez Angelina não nos achasse sinceros por só expor o lado bom. Mas a verdade era que e eu estávamos com tanto medo de ficar sem que as coisas que nos estressavam no dia a dia ou as noites mal-dormidas ficavam tão banais ao lado da possibilidade de perdê-la.
— Tudo bem, acho que já está bom de perguntas. Queria saber se podem me mostrar o quartinho dela, onde ela fica na maior parte do tempo em casa…
e eu assentimos, levantando-nos e guiando a mulher pela sala até as escadas. Seus olhos foram atentos a qualquer detalhe que surgia diante deles pelo caminho.
Passamos por nosso quarto e adentramos a próxima porta branca no corredor. Angelina fez tudo o que minha mãe sempre desaprovou quando me levava para visitar a casa de alguém: abriu o armário, as gavetas, e até no colchão do berço ela fez uma inspeção rápida.
Troquei olhares com , pelo menos sabendo que tudo ali era de ótima qualidade, e tinha tudo o que precisava. Esperava que ela e o juiz soubessem daquilo com a mesma certeza que eu e tínhamos. Aquela casa era o lugar dela. Ali, conosco, tinha tudo o que uma criança deveria ter.
— Posso fazer uma pergunta? — , que ainda segurava a bebê nos braços, indagou para a mulher curiosa, que, daquela vez, checava nosso estoque de fraldas. Ela murmurou algo, sem tirar a atenção do que fazia. — Fizeram todo esse procedimento com o Miguel também?
Percebi em sua voz a força que ele colocou para não se referir a ele como um filho da puta, como sempre o chamou. Fiquei tensa naquele exato momento. Estávamos indo tão bem, por que tinha que se lembrar daquele ser desprezível?
Sabia que aquela dúvida de se dava pelo fato de Miguel ser mais… humilde, se comparado às nossas condições financeiras. Saber daquilo dava uma sensação de segurança, mesmo que fosse preconceituoso pra caralho.
Mesmo incomodada por saber que no fundo eu também era pobre, não pude deixar de me sentir incomodada por concordar com aquele pensamento. Não só pelo fato de aquela casa ser perfeita, num condomínio seguro e perfeito para criar uma criança – o que eu particularmente achava bem diferente da minha antiga realidade, que era a mesma de Miguel. Mas também contávamos com a vantagem do casamento, e naquela eu não poderia dizer que me sentia culpada. Afinal, estive no altar ao lado de e disse sim, assumindo todos os riscos de infarto por estresse.
Porém, mesmo sendo bem complicados de vez em quando e brigarmos bastante desde que nos juntamos, ninguém poderia dizer que não éramos uma boa dupla quando o assunto era criar e amar . Eu sabia que tudo o que passamos iria valer a pena, e esperava que colhêssemos os frutos daquele sacrifício em nossa primeira audiência.
— Não posso expor detalhes do processo, Sr. — Angelina proferiu e concordou, respirando fundo.
Peguei em seu braço, temendo que ele respondesse algo a ela. Não era hora de fazer exigências. Éramos uma família feliz, gentil e educada, pelo menos enquanto ainda estivesse na nossa casa.
— Bom, já vou indo. Acho que já deu pra ter uma ideia de como é a vida de aqui com vocês.
Esperei um elogio, ou ao menos algo que denunciasse o que estava se passando por sua mente criteriosa. Porém, não obtive nada. Nenhum spoilerzinho sequer do que constaria em seu relatório para o juíz.
— Vamos te acompanhar até a porta — descemos as escadas com ainda calado vindo logo atrás de nós. Quando chegamos na porta de entrada, cruzamos com a babá chegando. — Esta é Elisabeta. Como falei, ela cuida de enquanto estamos fora.
— Prazer, sou Angelina Davis, a assistente social — os olhos de Elisabeta quase pularam para fora enquanto elas davam um rápido aperto de mão. — É uma pena não poder ficar mais para conversar com a senhora, porém os falaram muito bem do seu trabalho — concordamos, recebendo um sorriso aberto vindo dela. — Obrigada pelo café e pela hospitalidade. Nos vemos na audiência.
Entramos em casa ainda segurando o ar que nem percebemos que estávamos prendendo há tanto tempo. Assim que a porta se fechou, me permiti encostar nela e finalmente respirei aliviada.
— Ela perguntou muita coisa? — Elisabeta indagou, já preocupada.
— Coisas demais para o meu cérebro acompanhar — suspirou. Acho que estava se sentindo culpado por não ter participado tanto da conversa. — Mas o que eu queria saber ela não me disse — ele sorriu, irônico.
— Mas o que importa é que nos saímos bem. Ela viu que vive bem aqui, e é a coisa mais importante que temos contra Miguel — eu estava confiante, ou pelo menos estava fingindo muito bem. Era melhor do que pensar no pior, e eu nem sabia o que faria se o pior acontecesse.
— Eu tenho certeza disso, Sra. — Elisabeta murmurou e pegou a bebê do colo do pai, que lhe deu de bom grado.
— Vou tomar um banho. Tenho que me arrumar mais cedo, ainda preciso revisar algumas coisas — ele passou a mão no cabelo e suspirou, cabisbaixo.
Encarei-o, receosa. Não gostava do clima que estava desde que chegara em casa ontem. Aquele não era ele. Não se parecia nada com o que se gabava de tudo e tinha o nariz empinado que eu conhecia e odiava.
— Não vai tomar café da manhã? — perguntei. Ele já não tinha jantado, ainda iria sair sem comer? queria desmaiar por aí?
— Não posso, tenho que…
— Vá tomar seu banho, eu te levo algo no escritório — Elisabeta nos interrompeu, atraindo nossa atenção.
— Não precisa! Eu como algo na empresa.
— Vai sair de casa de barriga vazia? Não! Não tem problema, Sr. , pode deixar que eu faço.
Soltei um risinho desacreditado.
— Vai mesmo mimar um marmanjo desse tamanho? — cruzei os braços, negando com a cabeça. Ela mimava e depois eu que lutaria para tirar o costume de .
— Ciumenta — ele me deu a língua, saindo da sala com as risadas de Elisabeta, que sempre via nossas implicâncias como se fosse algo fofo. Mal sabia ela…
Fui para a cozinha com a babá, aproveitando para jogar conversa fora enquanto tomava meu café da manhã. Ao contrário de , eu não tinha a mordomia de ter uma pausa pro café quando chegava.
Acabei me atrasando um pouco e fui tomar banho sob os murmúrios insuportáveis de , que já reclamava do horário. Eu não tinha culpa se Angelina resolveu aparecer do nada! Eu estava no meu horário, ela quem bagunçou tudo.
— Não acredito que vai se maquiar ainda — ele resmungou, vestindo o blazer por cima da camisa clara. Respirei fundo e o ignorei, enquanto passava a primeira camada de rímel em meus cílios. — Vamos logo!
Borrei, carimbando minha pálpebra móvel com o líquido preto.
— Olhe o que você me fez fazer — apontei o erro, vendo-o respirar fundo atrás de mim no espelho. — Agora vou ter que esperar secar pra tirar — reclamei, passando para o outro olho. — Vou escovar os dentes enquanto seca.
— O quê?! Ainda vai escovar os dentes? — ele exclamou, indignado.
— , não me estresse hoje. Eu juro que não respondo pelos meus atos.
Como se o dia já não tivesse começado daquele jeito, ainda queria ajudar a aumentar os efeitos da TPM que eu estava sentindo chegar. O lado bom de tudo aquilo? Eu não estava grávida. Obrigada, ciência, pelos métodos contraceptivos! Até mesmo a pílula, que era o método do método.
— E eu juro que te deixo aí se demorar mais — ele disse, me fazendo arquear as sobrancelhas e me virar para encará-lo. não era nem louco. — Você sabe que eu deixo.
Abri a boca para respondê-lo à altura, porém fui empurrada pela cintura até o banheiro.
— Seu…
A porta foi fechada na minha cara. Só me deu tempo de ouvi-lo me dar cinco minutos, que era o tempo em que ele tinha jurado que esperaria no andar de baixo. Pisquei algumas vezes, ainda de cara com a madeira branca, tentando entender a sensação ruim que senti com suas mãos me empurrando – mesmo que do jeito mais cuidadoso possível – e o modo como o baque da porta me pegou desprevenida, me dando um frio da espinha.
Engoli o choro, já apanhando a escova de dentes e fazendo o que fui fazer ali. Desci rápido, encontrando-o sentado no sofá. Eu tinha demorado mais que cinco minutos. Estava me recompondo, mas, mesmo assim, me esperou. Eu tentava ao máximo bloquear minhas lembranças e me convencer de que não era a mesma coisa. Ele não tinha feito de propósito, eu sabia daquilo. não tinha como ter ciência do que havia acontecido comigo no passado.
Após encher de beijos, saímos pela garagem e pegamos o carro. estava calado. Ele apertava o votante entre as mãos grandes, evidenciando as veias da região. Outro motivo para eu relevar sua implicância: estava nervoso com toda a questão do pai e não me machucou. Só foi um grosso, como sempre foi.
Aproveitei que ele parou no sinal vermelho e peguei meu blush e o pincel fofinho na bolsa, passando-o no rosto a fim de não parecer tão pálida. Ouvi seu riso baixo e o encarei de volta de testa franzida.
— O que foi agora? Quer um pouco em você? — estiquei o pincel, vendo-o aproximar o rosto enquanto sorria.
Não aguentei ao imaginar de bochechas rosadas de blush e gargalhei, recolhendo minha mão, guardando o pincel e minha nécessaire de volta na bolsa.
— Não entendo o porquê se arrumar tanto pra ir trabalhar. Está me traindo, por acaso? — disse ele, me fazendo revirar os olhos. — É sério, os clientes nem devem reparar em quem os servem.
Provavelmente, o bonitão devia ser aquele tipo de cliente que só deixava a gorjeta e nem sabia quem era o garçom que o atendeu.
— Infelizmente, você está muito enganado — lamentei, sorrindo fraco. — Os clientes homens são bem incisivos, você não imagina o quanto.
Quanto mais informal era o local, mais os homens achavam que podiam falar o que queriam para as atendentes. Eu duvidava muito que as garçonetes de restaurantes chiques sofressem assédio na mesma proporção que nós, que servíamos numa lanchonete simples. Às vezes, parecíamos parte do pacote. Os caras achavam que o pedido deles tinha que vir acompanhado do nosso número de telefone como um brinquedinho de lanche feliz.
— Mesmo com aliança?
— Eles nem reparam na aliança.
Retirei meu cinto de segurança quando parou o carro do outro lado da rua da lanchonete. Já tinha uma fileira de veículos tomando o meio-fio. Naquele horário era bem difícil achar vagas por ali.
Virei-me em sua direção, encarnado-o por um tempinho. Seus olhos verdes me olharam de volta, e ele suspirou, tentando manter um sorriso nos lábios. Me aproximei e beijei sua bochecha enquanto segurava a lateral de seu rosto.
— Boa sorte lá. Se for preciso, grite com ele. Você dá um medinho quando está bravo — rimos brevemente, porém, eu estava falando sério.
Depois de fechar a porta na cara de Joseph, eu sentia que não sabia mais o que faria caso ficasse cara a cara com ele novamente. Mas, na hora da raiva, eu tinha certeza que teria várias ideias.
— Obrigado — pegou-me pela nuca, beijando minha boca devagar. Senti a pálpebra pesar quando sua língua entrou em contato com a minha. Finalizei o beijo após ouvir buzinas atrás de nós, já que ele não poderia estar parado ali.
— Vai dar tudo certo — pisquei, apanhando minha bolsa e deixando o carro, sentindo o vento gélido bagunçar meus cabelos.
Assim que fechei a porta do carro e tirei as mechas loiras do meu campo de visão, olhei para dentro da lanchonete e, pelo vidro da porta da frente, vi Anne me olhar de um jeito estranho.
Puta que me pariu.
Atravessei a rua, esbarrando com o Sr. Williams encostado na fachada da loja ao lado, conversando com a dona. Nem tinha percebido ele ali. Levei um pequeno susto quando o ouvi me dar bom dia. Adentrei a lanchonete, passando reto pela loira plantada onde estava desde que me viu chegar. Tinha esperanças vindas do fundo do coração de que poderia ficar invisível diante dela, só para me livrar do que escutaria.
— !
Não funcionou! Continuei andando, indo para a área de funcionários e sendo seguida por ela, que deixou a mesa que atendia só para ir atrás de mim. Tiffany, que abastecia os potes de ketchup e mostarda lá atrás, nos olhou curiosa ao ver ambas entrarem como foguetes.
— Você estava beijando ele? — ela perguntou. Coloquei a bolsa sobre o banco, respirando fundo e tentando pensar em algo para lhe dizer. Dizer tudo, menos a verdade. — Responda, .
— O quê? — a morena se aproximou de nós. — estava beijando quem? — seu espírito de fofoqueira se aflorou. Vi quando Fanny esboçou um sorriso malicioso.
— ! estava beijando — ainda indignada, Anne me acusava com direito a dedo hasteado, como se eu tivesse cometido um crime.
— O marido dela? — não foi uma pergunta, foi mais um toque de que Anne estava sendo sem noção.
Suspirei, alternando o olhar entre as duas. Lá iam elas começar a brigar.
— Sim, eu beijei o no carro, mas foi porque… porque o Sr. Williams estava lá fora e nos viu lá dentro. Eu e ele fingimos ser um casal normal que sempre se despede com um beijo, só isso!
Meu coração batia rápido. Parecia mesmo que eu estava me defendendo de um crime. Naquele dia, eu estava recebendo um teste cardíaco. Todo mundo resolveu implicar comigo de uma vez só!
— Ah, que susto — ela levou a mão ao peito, rindo.
Não era engraçado!
Minha vontade foi de gritar na cara dela que SIM, eu tinha beijado o MEU MARIDO e dado para ele a VIAGEM INTEIRA, e nada daquilo era da conta dela.
Respirei fundo, guardando minha bolsa em meu armário ao invés de realizar as fantasias da minha cabeça.
— E qual o problema se fosse real? Eles são casados! Até me surpreende o fato de não ter pegado ainda, vivendo sob o mesmo teto e… — censurei-a pelo olhar, pedindo aos céus para que ela não abrisse a boca sobre o episódio do banho. Anne morreria se soubesse que já me deu banho. — ... E tudo mais que casais fazem.
— Não é real, pronto, fim de conversa — encerrei o assunto, exasperada.
— Por que veio atrás dela tão brava, Anne? — eu amava o senso de justiça de Fanny, mas, daquela vez, eu preferia que ela deixasse aquilo pra lá. Eu já tinha conseguido reverter a situação. — Não tinha deixado de gostar do ?
Estávamos parecendo um bando de colegiais brigando sobre gostar ou não dos meninos que estudavam conosco. No fundo, eu já suspeitava que Anne não tinha esquecido o que sentia por . Ela ficou naquele crush esquisito por meses; não iria deixá-lo para trás tão rapidamente, ainda mais depois do envolvimento falido com Miguel.
— Não, eu não deixei de gostar dele, mesmo depois do que ele me fez.
Não disse?
— Respeito o trato que ele tem com e o fato de estar em jogo, mas também não posso dizer que não sinto ciúmes!
Olhei para ela, evitando o sentimento que me tomou. Porém, não consegui me segurar e não sentir pena.
— Eu já disse que não precisa disso, Anne. Eu e não gostamos um do outro e nunca vamos gostar! — falei, e a loira me encarou em dúvida. Me esforcei para ser sincera, quer dizer, parecer. — Ele é só o pai da minha filha, nada mais que isso. Porém, ainda temos que fingir ser um casal.
Não iria permitir que nenhum outro homem ficasse entre nossa amizade, não de novo. E se eu precisasse mentir para manter tudo nos eixos, era aquilo que eu faria. Admitia que a culpa de estar mentindo para elas estava me matando, porém, depois daquele mini show que minha amiga estava fazendo só por um simples beijo, vi que era melhor fazer o que combinei com e não envolver ninguém no que estávamos fazendo. Já não bastava Tom explodindo de ciúmes sem motivo algum.
No fim das contas, se Anne soubesse a verdade, teria motivos para ficar brava, visto que eu mesma tinha anunciado a elas sobre meu casamento com como a pior das notícias. Sempre deixei bem claro que não ficaríamos juntos de forma alguma, inclusive falando de modo figurado que eu era alérgica a ele.
Ao que parecia, tínhamos arranjado um remédio para aquela alergia chamada tensão sexual, mas se Anne descobrisse, teria um pouco de razão ao se sentir traída. E aquilo nada tinha a ver com , e sim com nossa amizade.
— Meu Deus, Anne, supere esse cara de uma vez por todas!
Eu ia matar Tiffany. Abracei a loira, lançando-lhe um olhar significativo e fazendo-a parar de destilar sinceridade pra cima de Anne.
— Vamos trabalhar. O Sr. Williams já deve estar de volta no balcão, e se ele não ver ninguém atendendo… — nem precisei terminar a frase. Anne voltou para a mesa que atendia anteriormente.
Juntei-me a Fanny na hora de levar os potes vermelhos e amarelos já abastecidos para as mesas. Comecei a preparar um dos pedidos na chapa enquanto a morena fazia suco com as laranjas, próximo da pia. Seus olhos castanhos me alcançaram, e a vi negar com a cabeça enquanto ria fraco.
— Pare com isso — a alertei. — Sabe como ela é sentimental.
— Por isso mesmo que alguém tem que pará-la, ! — Fanny teimou, fazendo-me rir e reprovar seus métodos. — Annelise tem que parar de achar que vai viver um conto de fadas e que é o príncipe de carrão escuro dela! — meu Deus, as adaptações modernas dela eram péssimas. — É você quem ele vem buscar e leva pra casa todos os dias, e você deve saber mais que ninguém que não é nenhum príncipe.
Ela saiu balcão afora, levando o grande copo até a mesa à frente. Suspirei, dando um sorrisinho ao interpretar sua fala. Era engraçado que, apesar de todos os pesares, era sim um príncipe – quando queria, é claro. E nas vezes que ele quis, me tratou com uma rainha.
's point of view.
Não tinha pregado o olho direito naquela madrugada. Mesmo estando confortável e quentinho na cama com , parecia que algo me incomodava. E era totalmente emocional. Cochilei pouquíssimas vezes, me levantei para trocar e amamentar quando ela chorou.
A visita da assistente social não chegou a me preocupar muito. Cheguei a me sentir culpado por não dar a importância que deveria, mas, no momento, eu não conseguia tirar a venda da empresa da cabeça.
O dia foi bem longe do que seria considerado tranquilo. Conheci Phillip Thorpe e o assisti dar um aperto de mãos com meu pai após fecharem o negócio e assinar as papeladas, apenas tornando tudo oficial. Foi doloroso ter que ficar o dia ao lado do meu pai após tudo o que eu tinha ouvido no dia anterior; sorrir e fingir que estava tudo bem em entregar nem que seja uma parte de algo tão importante nas mãos de um estranho.
Fizemos um tour pelo prédio, enquanto era combinado que haveria um evento formal para apresentá-lo aos funcionários e investidores como mandava o figurino. A venda ainda era considerada um rumor, porém, a maioria das pessoas que trabalhavam no prédio já circulava a notícia de mudança na chefia.
Eu ainda não sabia como ficariam as coisas após a posse, na qual Phillip poderia fazer mudanças, e se ele teria poder e autonomia o suficiente para fazê-las. Por enquanto, a única coisa que soube foi que ele não residia em Londres e que, pelo menos inicialmente, iria deixar a filha mais velha no cargo, já que ela era a pessoa de maior confiança dele. Assim como meu pai tinha feito comigo.
Esperava que Thorpe não fosse tão filho da puta quanto o meu e não a apunhalasse pelas costas. Porque, se ele a sabotasse, estaria ferrando a empresa da minha família junto.
Saí da empresa no meu horário normal, sem me despedir de meu pai, que só me dirigiu a palavra quando necessário. Devo dizer que me surpreendeu o fato de que ele não reclamou da portada na cara que levou noite passada ou comentou o fato de ter visto a única neta pela primeira vez. Me assombrava ver que meu pai ainda conseguia desdenhar da existência de , que, além de ser só um bebê, ainda se parecia muito com Grace quando ela tinha o mesmo tamanho.
Falando na bebê, peguei-a assim que cheguei, dispensando Elisabeta e assistindo um pouco de televisão até que desse a hora de buscar – já que ela tinha voltado ao seu horário normal e trabalhava uma hora a mais que eu.
Sinceramente, não sei como ela aguentava aquela vida de atendente. Após saber que até assédio ela era obrigada a aguentar no trabalho, comecei a me perguntar o que eu faria em seu lugar. Acho que não aguentaria uma hora trabalhando em seu lugar.
Desci do carro, tirei a bebê da cadeirinha e me encostei ali, vendo-a mais uma vez ajudar as outras meninas a trancar a lanchonete. Nenhum dos quatro percebeu minha presença ali. Até que o velho de bigode me viu e acenou em minha direção.
— Olhe quem veio te buscar hoje, .
A loira se virou junto das amigas, e seu rosto se iluminou quando reparou na filha em meu colo.
— Oi, meu amor! — ela veio até nós, pegando-a de meus braços e beijando sua bochecha sem parar. As amigas a rodearam junto do chefe, brincando com a bebê para chamar sua atenção.
O Sr. Williams a pegou no colo, fazendo-nos pensar que ela estranharia o mais velho, porém não aconteceu. apenas ficou encarando-o atentamente com seus grandes olhos verdes.
— Gostou do vovô? — ri de sua fala, enquanto o Sr. Williams ainda conversava com ela. Pelo visto, ele seria o avô dela mesmo, já que o de sangue não a suportava. E o pai de , bom, nem a própria filha parecia gostar dele. — Ela é boazinha, vai com todo mundo — ele disse, admirado. Todo velho falava aquilo de bebês simpáticos.
— Tem que ter mais malandragem, — Tiffany pegou sua mãozinha, fazendo-nos rir. Ela tinha razão, e eu lhe ensinaria aquilo.
— Não vai falar com o maridão? — Sr. Williams me indicou com o queixo para , que balançou a cabeça, rindo sem graça antes de vir até mim.
— Oi — seu sorriso me contagiou, e eu lhe retribuí, trazendo-a para perto pela cintura.
— Oi — murmurei, antes de beijar sua boca.
não aprofundou muito o beijo, fazendo uma pequena pressão em meu ombro para me afastar. Provavelmente pela presença das amigas ali – de uma em específico, aliás. Mesmo não querendo me beijar, eu a prendi ali para olhá-la de pertinho.
— Como foi hoje lá? — ela perguntou, e eu respirei fundo, sentindo sua mão descer e se pousar em meu peito, afagando a região. Aquele gesto me confortou.
— Melhor que ontem — sorri amarelo, e assentiu em silêncio.
— Em casa conversamos — ela me olhou nos olhos, fazendo-me lembrar da noite passada quando me deu colo, fazendo o que Grace costumava fazer e eu achei que nunca mais teria após sua partida.
Demonstrar tamanha fraqueza para uma inimiga seria algo inadmissível para mim um tempo atrás. Quando e eu vivíamos brigando, nem lágrimas eu queria que ela soubesse que eu tinha, tamanho era meu medo de ter algo sendo usado contra mim ou lhe dar alguma vantagem.
Saber que eu poderia contar com ela e que nossos anos de brigas realmente tinham ficado para trás me deixava feliz. A noite passada apenas confirmava que estávamos construindo uma amizade maravilhosa.
— Agora me solte, está começando a ficar estranho…
Soltei-a, imaginando do que falava.
Como se soubesse que estávamos indiretamente falando dela, Anne nos encarou, ainda parada ao lado do chefe.
Uma motocicleta que passava pela rua passou em alta velocidade, fazendo o característico barulho de escapamento e assustando a bebê, que abriu o berreiro. Ela não costumava sair de casa à noite; Elisabeta a levava vez ou outra para passear no parquinho dentro do condomínio. Imaginei que fosse a primeira vez que tinha ouvido um barulho tão alto.
— Vamos embora, vem — seu choro diminuiu quando ouviu a voz da mãe se aproximar. — Tchau, gente, até amanhã! — a pegou de volta e eu me despedi deles, embarcando no veículo junto delas.
foi direto pro banho quando chegamos em casa, e eu fiquei com a bebê enquanto esperava minha vez. Comecei a brincar de me esconder, cobrindo-a com seu paninho e tirando-o de seu rostinho, vendo-a reagir sorridente e enérgica, movendo os bracinhos e perninhas.
A cada minuto que passava ao lado dela, eu percebia que tinha aprendido algo novo. Era fascinante olhar para seu rostinho e ver o quanto tinha mudado desde o dia em que a vi pela primeira vez na maternidade do hospital. Ela estava cada vez mais linda e grande, pesada também, para o alívio de , que se sentia insuficiente ao vê-la abaixo do peso antes de trocarmos a fórmula do leite.
Já tinham se passado três meses. Quem diria que chegaríamos até ali inteiros! tinha um grande mérito naquela conquista. Ela era tudo o que um pai ou uma mãe pediriam aos céus: chorava vez ou outra, mas, no geral, era tranquila e muito, mas muito esperta. Bom, eu e achávamos, né. Talvez fôssemos apenas dois babões mesmo.
Fui pro banho, trocando de turno com minha esposa, que a levou para a cozinha para preparar o jantar. Assim que vesti meu pijama, desci e fui até elas, encontrando cantarolando alguma música infantil para a bebê, que, dentro do carrinho, a procurava com o olhar atento.
— Você nem me contou, o que rolou por lá? Conheceu o cara? — murmurou assim que percebeu minha presença no cômodo. Ela cortava legumes, concentrada, fazendo-me ir até a pia e me encostar nela para conversarmos melhor.
— Conheci. Phillip Thorpe — no auge da imaturidade, pronunciei seu nome com nojo.
— Que nome chique.
Encarei-a de canto de olho, incomodado.
— O cara nem ao menos vai ligar pra empresa, ele tem a própria com sede em Nova Iorque. Pelo visto, comprou pra filha dele, já que é ela quem vai entrar no lugar de Edward inicialmente — cruzei os braços, suspirando.
— Nepotismo nas empresas, , que novidade — ela disse, me fazendo arquear as sobrancelhas. Então, se deu conta que tinha acabado de fazer uma piada com minha atual insegurança. Como nos velhos tempos. — Desculpa.
— Mas, no caso dela, deve ser nepotismo mesmo — resmunguei, ressentido.
— Quer dizer que só porque ela é mulher não pode ter trabalhado como você para ter um bom cargo na empresa do pai? — estava mesmo defendendo-a na cara dura?
Me dei conta de que tinha soado um pouco machista da minha parte, mas eu estava com raiva. Se fosse em qualquer outra situação, não pensaria daquela forma. No fim das contas, o gênero da pessoa que me encheria o saco não faria diferença nenhuma.
— Não é isso — me remexi, desconfortável. — Thorpe deu a entender que a filha não tem experiência com lideranças. Era seu braço direito na filial de Nova Iorque, porém nem ele tem certeza se ela saberá lidar com uma empresa como a nossa, ainda mais na situação crítica que ela está.
E ele resolveu colocá-la à prova justo na empresa do meu pai. Que maravilha!
— Bom, isso só o tempo dirá — jogou tudo na panela, encarando-me antes de prosseguir, receosa. — E seu pai? Não falou nada sobre ontem?
— Não, ele quase não olhou na minha cara hoje — respondi, e minha esposa começou a picar tomates. Observei sua habilidade enquanto tentava ignorar meus sentimentos em relação aos meus últimos encontros com meu pai. — Disse que teremos um evento para dar as boas-vindas a Thorpe e seu monstrinho de estimação.
me olhou, surpresa, comprimindo os lábios para não rir da minha fala maldosa.
— Ao menos já viu ela, ou está falando isso por implicância? — perguntou. Não me interessava vê-la, eu já não ia com a cara só de saber da existência.
— Não foi preciso. Eu sei — dei de ombros. negou com a cabeça, rindo baixinho. — Queria muito não ter que ir nessa droga de evento, mas sei que, se deixar de ir, meu pai vai tomar as rédeas da situação, e preciso estar por perto para não deixá-lo tomar mais decisões para me punir por conta de — olhei a bebê no carrinho. Eu faria aquilo por ela, somente por ela. — E você será meu par.
fez uma careta instantânea. Eu sabia o quanto ela odiava ir para lugares cheios de ricaços e empresários. só suportava os eventos sociais que minha mãe dava em casa por conta de Grace, que odiava ficar no tédio sozinha, e também por conta da mãe, que lhe pedia ajuda para limpar depois que todos iam embora.
— Não dá pra chamar a Dafne, não? Sei lá, até Megan iria querer ser seu par — ri de seus resmungos, abraçando-a por trás. — Não ri não, eu estou falando sério. A amante sempre fica com a melhor parte — beijei sua nuca exposta por seus cabelos loiros, presos num coque no alto da cabeça. — Eu não tenho nem roupa pra eventos assim.
— Vou te comprar um vestido.
— Pare de arranjar soluções para as minhas desculpas pra não ir — ela tentou sair do meu abraço, sem sucesso. Apertei sua cintura, colando-a ainda mais em mim, esquecendo-me de manter uma distância segura ao vê-la com uma faca em mãos.
— Deixe que eu termine isso — falei, e se virou, espantada, saindo da frente e largando o utensílio sobre a tábua. — Eu sei temperar uma salada, .
Ao menos eu achava que sabia.
— Hum, adivinhe só — ela colocou uma das mãos na cintura, encarando-me com os olhos brilhando. Olhei-a de volta, sabendo que vinha uma fofoca edificante a seguir. — Anne ainda gosta de você.
— Eu sou mesmo difícil de ser superado, querida — zombei, vendo-a revirar os olhos. — Por isso você ficou com medo de me ter por perto na frente delas?
— Não é medo — era sim —, é que eu já disse a Anne milhões de vezes o quanto eu te odeio, e ela acredita em mim. Se ela descobrir que eu fui a culpada por você tê-la dispensado ou sonhar que estamos transando, vai se sentir traída.
Traída por quem, exatamente?
Franzi o cenho, me perguntando o motivo de se esforçar tanto para mantê-la como sua amiga, sendo que Anne já tinha provado por A + B que era problemática. Ela sentir ciúmes de nós dois, sendo que éramos casados, já era uma prova daquilo.
— Ela nos viu hoje no carro. Você precisava ver o jeito como falou comigo.
Arfei, indignado. Annelise conseguia até mesmo fazer se sentir culpada por não fazer absolutamente nada de errado!
— A culpa não é sua. Eu a dispensei porque quis. Não iria ser nada além de sexo casual, — dei de ombros, vendo-a suspirar, derrotada. — Anne não faz o meu tipo, mesmo que nossa noite juntos tenha sido muito boa...
Annelise se encaixava e muito no meu tipo de mulher. Não daria para negar que ela era sim muito bonita, tanto que até transei com ela. Mas eu não sabia o que era. Não sabia se era por conta do envolvimento com Miguel ou o fato de ela estar sempre olhando para e eu de um jeito esquisito. Eu não conseguia me conectar com ela de jeito algum.
— Não continue, por favor. Só de ouvir, meu estômago embrulha — engoliu em seco, deixando-me nervoso no mesmo instante.
Encarei-a assustado, olhando-a de cima a baixo antes de virar-me completamente para ela, já sentindo uma leve tontura me atingir.
— Você não está…
— Ah, não, estou me referindo ao fato de minha melhor amiga já ter transado com você — ela desdenhou, exasperada, rindo da situação em que me deixou. — Eu não estou grávida, , pode ficar tranquilo quanto a isso. Inclusive, minha menstruação veio hoje mesmo.
— Não existem casos de mulheres que continuaram menstruando mesmo grávidas?
— Agora quem está me assustando é você, . Pare já com isso — hasteou a colcha que tinha em mãos em minha direção. — Imagina, com que cara eu iria contar para as meninas que estou grávida, sendo que nego até a morte que sequer gosto de você?
— Gosta de mim, ? — sorri malicioso, indo até ela e enlaçando seu corpo com meus braços.
— Você entendeu o que eu quis dizer — ela desconversou, sem graça.
Sim, eu entendi, mas era engraçado vê-la vermelhinha daquele jeito.
— Esqueça Anne — primeiro era Tom, agora Anne, e a lista só ia aumentando. E isso era porque estávamos ficando no sigilo. — Eu sequer lembro direito daquela noite.
— Não acabou de dizer que tinha sido muito boa? — ri ao perceber que gravou exatamente as palavras que saíram da minha boca. — Como sabe se nem se lembra?
— Eu sou muito bom no que faço, , você sabe disso — beijei o canto de sua boca. ficou sem fala em meus braços. Sabia que não podia negar. — Tão bom que já se passaram meses e ela continua querendo mais.
se afastou, simulando uma ânsia que me arrancou gargalhadas.
's point of view.
Deitei o corpinho quentinho de no berço aconchegante e a cobri com medo de fazer frio durante a madrugada. Acendi o abajur de nuvem sorridente na tomada e, por fim, deixei a porta entreaberta como sempre.
Fui direto para o quarto, já encontrando na cama. Ele tinha ficado na cozinha quando subi com a bebê sonolenta pro andar de cima. arrumou tudo antes de ir para a cama, e lá nos encontramos.
Nem cheguei direito e ele já me chamava a atenção, me jogando um par de meias coloridas que disse ter visto em uma loja e se lembrado de mim. Calcei-as, emburrada. Porém, minha carranca se desmanchou quando, já no escuro do quarto, me trouxe para perto de seu corpo quente debaixo das cobertas escuras.
Sua boca se chocou contra a minha enquanto eu tentava controlar o fogo que me subia devido a minha recém-chegada TPM. não ajudava, encaixando-se entre minhas pernas, que já se abriam involuntariamente para ele sem que fizesse esforço algum. Gemi em seu ouvido quando o senti duro contra minha intimidade. A sensação triplicou pelo fato de os tecidos de nossos pijamas serem finos. Parecíamos não usar nada além de nossas roupas íntimas.
— … — segurei um gemido quando vi que suas mãos já invadiam minha camiseta.
— Entendi — ele suspirou e saiu de cima de mim, já sabendo que não rolaria nada enquanto eu estivesse no período.
Encarei o teto e tentei normalizar minha respiração, quando senti seu braço me envolver e puxar-me para si, fazendo-me deitar a cabeça em seu peito, que ainda abrigava um coração frenético que foi se acalmando à medida que pegamos no sono.
Despertei horas depois com o choro de . Como já tinha ficado responsável por ela noite passada e eu já tinha acordado, levantei-me e saí corredor afora até a porta ao lado da minha. Uma corrente de vento veio por detrás de mim e bateu na porta entreaberta do quarto do bebê, batendo-a e me assustando com o barulho inesperado.
Levei a mão ao peito, rindo de mim mesma e abandonando a sensação de medo que me tomou. Era só a janela aberta.
Adentrei o quarto e a peguei após checar sua fraldinha, que aparentemente estava seca. Ainda sonolenta, saí com ela em meus braços e fui em direção ao vitrô redondo que tinha no fim do corredor. Então, fechei o vidro, cessando o frio que vinha de fora.
Quando cheguei no andar de baixo, a primeira coisa que fiz foi procurar por Salém. Sabia que existia a possibilidade do gato fujão ter escapado por ali, já que ele não perdia uma oportunidade. Suspirei derrotada quando não o encontrei, e decidi deixar para procurá-lo quando amanhecesse. Afinal de contas, ele sempre voltava pela comida, e eu tinha um bebê faminto nos braços no momento.
Enquanto esquentava o leite, encarei a janela da cozinha, que estava fechada apenas pelo vidro. Elisabeta deve ter tirado a cortina para lavar. Encarei meu reflexo ali, vendo a situação caótica que estava meu cabelo, enquanto me balançava devagar para distrair da fome. A janela dava para o jardim de trás, onde tinha a piscina e, mais ao lado, o balanço colorido. A noite estava linda, o céu bem estrelado e com direito a uma lua cheia e brilhante. Me distraí ao contemplar a imensidão escura, quando, de repente, vi uma silhueta parada diante do muro mediano.
Estreitei os olhos, pensando estar vendo coisas devido ao sono. Quando tive a certeza de que tinha realmente alguém no meu jardim, já era tarde demais para gritar. Outra coisa tinha feito barulho o suficiente para acordar não só , mas o quarteirão inteiro junto. O vidro à minha frente estourou assim que a bala que partiu do revólver do invasor o acertou.
Com o coração saindo pela boca, meu único instinto foi protegê-la. Me agachei no balcão, esbarrando nos diversos cacos de vidro espalhados por toda a cozinha.
— ! ! — minha garganta ardia por conta do sobrecargo em realizar duas funções aos extremos. Ao mesmo tempo que eu gritava a plenos pulmões o nome dele, o choro vinha trazendo consigo um turbilhão de sensações.
Eu estava tremendo, com muito medo e torcendo para que acordasse na cama e tudo aquilo fosse fruto de um sonho terrível.
Outro tiro foi disparado. Me encolhi ainda mais com chorando assustada em meus braços. Meu maior medo era que aquele homem se aproximasse de nós, já que não havia mais nada nos separando após a janela ter literalmente se espatifado de uma só vez.
Um barulho alto de uma motocicleta foi a última coisa que me lembrava de ter ouvido enquanto ainda estava assustada demais para saber distinguir os sons à minha volta.
Vi se aproximar correndo, ao mesmo tempo que me preocupei com o risco de ele ser alvejado por quem quer que fosse a autor dos disparos. Logo a porta da frente tremia pelas batidas insistentes que me fizeram chorar ainda mais por puro pavor.
— Vocês estão bem? — ele recuou ao ver a quantidade de vidro pelo chão. Assenti, sem conseguir falar mais nada. Da minha boca só escapavam soluços. — Vou abrir a porta, fique aí, sim?
Assenti, ainda aterrorizada, reconhecendo a voz de Megan e Javier, que provavelmente chegaram antes por morarem praticamente em frente à nossa casa.
— O que houve? Ouvimos tiros! — a morena veio rapidamente junto de , enquanto o marido rodeava a casa para ver se encontrava algo ou alguém.
— Ele fugiu, pulou o muro — avisou Javier que era inútil procurá-lo. — Dê para Megan, eu te pego.
Megan estendeu os braços, dando passos cuidadosos com os pés devidamente calçados; ao contrário de mim, que estava apenas de meias. Entreguei-lhe a bebê chorosa, e logo me pegou no colo, segurando-me com as mãos trêmulas e tão assustado quanto eu. Encostei a cabeça em seu ombro, molhando seu pijama com minhas lágrimas.
Será que aquele pesadelo nunca teria fim?
Mal tive tempo de abrir a boca para respondê-lo, a mulher esbelta de cabelos castanhos curtos e num corte moderno surgiu na porta da cozinha. Se antes eu já estava sem fala, quando a vi, esqueci onde deixei minhas cordas vocais.
— Sou Angelina Davis, a assistente social encarregada do seu caso, lembra-se de mim?
Lembrava sim. Principalmente de sua fama de exigente que Amélia fez questão de evidenciar quando marcamos aquele almoço, lá no início de tudo.
Olhei em volta, para checar se tinha algo fora do lugar na cozinha, e me acalmei quando vi que tinha lavado a louça e organizado tudo na noite passada. Sei que talvez Angelina não desse tanta importância para aquele detalhe. O que provavelmente teria sua atenção naquela visita e me preocupava mais era sua avaliação de nós dois. também parecia pensar a mesma coisa, já que se tornou um robô, praticamente paralisado diante da assistente social.
— S-Sim, sou , m-mas acho que você já deve saber disso — estendi-lhe a mão, sentindo-me estúpida.
Salém realmente estava no auge de sua carência naquele dia. Arregalei os olhos quando o vi já nos pés da mulher, que ainda não tinha percebido sua presença tão próximo dela.
— Essa deve ser …
O gato preto se esfregou nela, cheirando-a e a fazendo se remexer desconfortável. Será que ela era alérgica? Ou não gostava de gatos? Que tipo de ser humano desprezível não gostava de gatinhos?
— Salém! — sussurrei, abanando as mãos próximo de seu corpo esbelto em seu conjunto de blazer e saia lápis escuro. Estava tentando espantá-lo, porém não surtiu efeito nenhum sobre o felino.
— Eu me referia à criança — seus olhos de jabuticaba focaram-se em .
— Ah, sim, essa é — sorri amarelo.
Por fim, peguei o gato e o levei para a sala, enquanto escutava finalmente abrir a boca ao pegar a bebê do carrinho.
— Aceita um café? — voltei à cozinha após tirar o par de meias ridículas que tinha me colocado para dormir e escondê-las debaixo das almofadas do sofá.
Servi Angelina e juntei-me a eles na mesa, onde nos sentamos para que pudéssemos começar a pequena entrevista que fazia parte dos trâmites para anteceder a primeira audiência. A opinião da assistente social era muito importante, portanto tinha que ser positiva a nosso favor. Afinal, ela estava em nossa casa para saber tudo o que fazíamos ou deixávamos de fazer por e o local onde escolhemos criá-la.
Ela era uma espécie de espiã se infiltrando ali. A mulher estava sendo mais simpática do que no dia do restaurante, que, ao contrário do que deveria ser, apenas me deixou ainda mais tensa.
Eu tinha uma trava grande com examinadores. Para mim, quanto mais soltos e relaxados ficamos diante deles, mais estamos propensos a errar. Inclusive, eu estava desconfiada de seu comportamento – podia ser uma armadilha. Decidi então correr o risco de sair como paranoica do que me descuidar e cometer alguma falha que poderia tirar de nós.
Já para aquilo não era um problema, afinal, ao contrário de mim, para ele não estava sendo fácil relaxar de qualquer maneira naquele dia.
— E então, já se passaram três meses desde a última vez que conversamos. O que acham que mudou pra vocês?
Tínhamos acabado de respondê-la perguntas simples, coisas relacionadas à saúde da bebê, a questão da amamentação e adaptação, coisas que e eu sabíamos responder sem pestanejar. Mas quando Angelina mudou o roteiro, troquei olhares tensos com .
— Mudou tudo, não é? — soltei um riso sem graça, mexendo os ombros.
Era uma pergunta tão óbvia! Mas que também poderia esconder algo nas entrelinhas. Devia ter uma resposta certa, caso contrário, não estaria sendo usada numa avaliação.
— Quando nos vimos três meses atrás, nem casados éramos. Estávamos receosos com tudo o que viria, não entendíamos muito sobre bebês. Hoje, como pode ver, aprendemos bastante coisa e sabemos nos virar muito bem com ela — indiquei a bebê de olhos bem atentos chupando a chupeta no colo do pai. — Quando temos alguma dúvida, acionamos as vizinhas que já são mães, e elas nos ajudam.
Aquele era um jeito sutil de dizer que nós sobrevivemos. Angelina não precisava saber da vontade que e eu tínhamos de nos matar no começo de tudo, muito menos que nós dois não fazíamos ideia nem de como pegar um recém-nascido no colo, quem dirá conseguir mantê-lo vivo por tanto tempo.
— Os dois trabalham, certo? — ela perguntou, e assentimos juntos. — é diretor de uma empresa, e você, atendente de uma lanchonete.
Assentimos novamente, e eu me remexi desconfortável na cadeira. Era esquisito quando falavam em voz alta as nossas profissões. Algo parecia não encaixar.
E realmente não encaixava. Eu duvidava muito que Angelina ou qualquer outra pessoa tivesse conhecido um casal como nós. Não faria sentido nenhum , um homem muito bem de vida, permitir que eu, sua esposa, se matasse trabalhando numa lanchonete! Ser atendente era um trabalho bem puxado, no qual eu havia tirado meu sustento desde que cheguei a Londres. Porém, não era nem de longe o meu trabalho dos sonhos.
— Como fazem com ? Como funciona a rotina de vocês no dia a dia?
— Nós contratamos uma babá, a Elizabeta. Ela é ex-enfermeira e cuida de como se fosse uma neta. Não temos do que reclamar dela — troquei olhares com , que concordou imediatamente. Elisabeta, mesmo estando há tão pouco tempo conosco, já havia se mostrado tão maravilhosa que já a considerávamos da família. — e eu saímos cedo para trabalhar e deixamos a bebê com ela. Voltamos ao anoitecer, dispensamos a babá e cuidamos de durante a noite.
Era estranho que, mesmo confiando em Elisabeta de olhos fechados e sabendo que era bem cuidada por ela, eu ainda me sentia em falta por passar o dia fora e voltar só à noite para passar algumas horas com minha filha. Isso quando ela estava acordada. Eu me perguntava se ela tinha aquela percepção de nós dois. Não sabia bem se bebês percebiam o mundo daquela maneira aos três meses de vida, mas, se sim, poderia nos encarar como estranhos?
— Entendo — Angelina alternou os olhos entre mim e . Ficamos calados à espera da próxima pergunta, enquanto eu tentava parar com as paranoias que surgiram em minha cabeça.
O que me tranquilizava era saber que, no fim do dia, quando chegávamos em casa e a pegávamos no colo, demonstrava que nos amava do jeitinho dela. O modo como ela se aconchegava confortável sempre que estava nos braços de , como se soubesse que nada a faria mal ali; ou quando ela parava de chorar quando ouvia o som da minha voz, como se eu a acalmasse e ela tivesse certeza que eu sempre estaria lá por ela. Passávamos pouco tempo com a bebê, porém, tentávamos fazer parecer uma eternidade quando apenas estávamos ali, em silêncio, cheirando seu cabelinho ou ninando-a para dormir.
— E quanto ao casamento? Foi muito recente, não? Pegaram quando tinham dias de casados. Acham que, de alguma forma, ela atrapalhou o começo da vida a dois? — Angelina nitidamente se direcionou a .
Primeiro achei que fosse porque ele quase não tinha aberto a boca. Mas, depois, pensando bem, aquela pergunta realmente deveria ser direcionada a um homem. Eram eles que, na maioria das vezes, tinham queixas a fazer sobre o fato de os bebês tirarem a esposa de perto e roubarem as atenções para si, principalmente nos primeiros meses de vida.
Fiquei tranquila quanto à sua resposta, afinal, não havia passado por aquilo nem uma vez desde que se tornara pai. Não houve falta de sexo, e ele não se sentiu deixado de lado por mim, visto que era tudo uma mentira. Desde o início, sempre foi o centro de tudo – e continuava sendo, mesmo após nos envolvermos de um jeito mais… íntimo.
— e eu namoramos por algum tempo antes de vir ao mundo, e, independente disso, nós sempre falávamos sobre ter filhos algum dia. Então não foi uma surpresa tão grande nos tornarmos pais, mesmo que tão rápido — ele respondeu e eu concordei, ajudando na manutenção da mentira. Angelina chegou a me olhar para verificar a veracidade do que ele dizia. — Nós já vivíamos juntos no meu apartamento, então não poderíamos dizer que nos atrapalhou. Já vivenciamos a vida de casados antes de ir ao altar. Pelo contrário, ela nos aproximou muito.
Encarei , sentindo um frio esquisito se instalar em minha barriga. Ajeitei o cabelo, a fim de dissipar a pequena onda de ansiedade que me tomou.
Ele estava certo, eu só não saberia dizer a que ponto estava mentindo ou falando a verdade. Nos aproximamos desde a chegada de . Verdade. Mas nos aproximamos em que sentido? Se estava respondendo à pergunta na perspectiva de alguém casado, a aproximação era amorosa. Aí já era mentira. Nos aproximamos de outras formas, intimamente falando, mas eu não saberia dizer se era a culpada por aquilo.
Quero dizer, o que nos fez sentir atração um pelo outro foi a convivência sob o mesmo teto. era um caso à parte, e aquelas divisões sobre nós dois e tudo o que estava acontecendo desde que passamos a dividir a cama e o teto me deixavam tão confusa que desisti de tentar entender.
Minha esperança era acabar aquele trato com tudo voltando a fazer sentido para mim.
— Como disse anteriormente, aprendemos a cuidar de e até mesmo um do outro. Nossa cumplicidade só aumentou, principalmente na hora de dividir tarefas e responsabilidades.
— é muito tranquila, jamais iria atrapalhar. Até já viajamos com ela, com a permissão do juiz, é claro, e não tivemos problema algum — completei a fala de , atraindo sua atenção. — Foi muito divertido.
Não sabia se estávamos deixando tudo menos crível ao não citar nenhuma reclamação. Talvez romantizar a vida de pais fosse o errado a se fazer; talvez Angelina não nos achasse sinceros por só expor o lado bom. Mas a verdade era que e eu estávamos com tanto medo de ficar sem que as coisas que nos estressavam no dia a dia ou as noites mal-dormidas ficavam tão banais ao lado da possibilidade de perdê-la.
— Tudo bem, acho que já está bom de perguntas. Queria saber se podem me mostrar o quartinho dela, onde ela fica na maior parte do tempo em casa…
e eu assentimos, levantando-nos e guiando a mulher pela sala até as escadas. Seus olhos foram atentos a qualquer detalhe que surgia diante deles pelo caminho.
Passamos por nosso quarto e adentramos a próxima porta branca no corredor. Angelina fez tudo o que minha mãe sempre desaprovou quando me levava para visitar a casa de alguém: abriu o armário, as gavetas, e até no colchão do berço ela fez uma inspeção rápida.
Troquei olhares com , pelo menos sabendo que tudo ali era de ótima qualidade, e tinha tudo o que precisava. Esperava que ela e o juiz soubessem daquilo com a mesma certeza que eu e tínhamos. Aquela casa era o lugar dela. Ali, conosco, tinha tudo o que uma criança deveria ter.
— Posso fazer uma pergunta? — , que ainda segurava a bebê nos braços, indagou para a mulher curiosa, que, daquela vez, checava nosso estoque de fraldas. Ela murmurou algo, sem tirar a atenção do que fazia. — Fizeram todo esse procedimento com o Miguel também?
Percebi em sua voz a força que ele colocou para não se referir a ele como um filho da puta, como sempre o chamou. Fiquei tensa naquele exato momento. Estávamos indo tão bem, por que tinha que se lembrar daquele ser desprezível?
Sabia que aquela dúvida de se dava pelo fato de Miguel ser mais… humilde, se comparado às nossas condições financeiras. Saber daquilo dava uma sensação de segurança, mesmo que fosse preconceituoso pra caralho.
Mesmo incomodada por saber que no fundo eu também era pobre, não pude deixar de me sentir incomodada por concordar com aquele pensamento. Não só pelo fato de aquela casa ser perfeita, num condomínio seguro e perfeito para criar uma criança – o que eu particularmente achava bem diferente da minha antiga realidade, que era a mesma de Miguel. Mas também contávamos com a vantagem do casamento, e naquela eu não poderia dizer que me sentia culpada. Afinal, estive no altar ao lado de e disse sim, assumindo todos os riscos de infarto por estresse.
Porém, mesmo sendo bem complicados de vez em quando e brigarmos bastante desde que nos juntamos, ninguém poderia dizer que não éramos uma boa dupla quando o assunto era criar e amar . Eu sabia que tudo o que passamos iria valer a pena, e esperava que colhêssemos os frutos daquele sacrifício em nossa primeira audiência.
— Não posso expor detalhes do processo, Sr. — Angelina proferiu e concordou, respirando fundo.
Peguei em seu braço, temendo que ele respondesse algo a ela. Não era hora de fazer exigências. Éramos uma família feliz, gentil e educada, pelo menos enquanto ainda estivesse na nossa casa.
— Bom, já vou indo. Acho que já deu pra ter uma ideia de como é a vida de aqui com vocês.
Esperei um elogio, ou ao menos algo que denunciasse o que estava se passando por sua mente criteriosa. Porém, não obtive nada. Nenhum spoilerzinho sequer do que constaria em seu relatório para o juíz.
— Vamos te acompanhar até a porta — descemos as escadas com ainda calado vindo logo atrás de nós. Quando chegamos na porta de entrada, cruzamos com a babá chegando. — Esta é Elisabeta. Como falei, ela cuida de enquanto estamos fora.
— Prazer, sou Angelina Davis, a assistente social — os olhos de Elisabeta quase pularam para fora enquanto elas davam um rápido aperto de mão. — É uma pena não poder ficar mais para conversar com a senhora, porém os falaram muito bem do seu trabalho — concordamos, recebendo um sorriso aberto vindo dela. — Obrigada pelo café e pela hospitalidade. Nos vemos na audiência.
Entramos em casa ainda segurando o ar que nem percebemos que estávamos prendendo há tanto tempo. Assim que a porta se fechou, me permiti encostar nela e finalmente respirei aliviada.
— Ela perguntou muita coisa? — Elisabeta indagou, já preocupada.
— Coisas demais para o meu cérebro acompanhar — suspirou. Acho que estava se sentindo culpado por não ter participado tanto da conversa. — Mas o que eu queria saber ela não me disse — ele sorriu, irônico.
— Mas o que importa é que nos saímos bem. Ela viu que vive bem aqui, e é a coisa mais importante que temos contra Miguel — eu estava confiante, ou pelo menos estava fingindo muito bem. Era melhor do que pensar no pior, e eu nem sabia o que faria se o pior acontecesse.
— Eu tenho certeza disso, Sra. — Elisabeta murmurou e pegou a bebê do colo do pai, que lhe deu de bom grado.
— Vou tomar um banho. Tenho que me arrumar mais cedo, ainda preciso revisar algumas coisas — ele passou a mão no cabelo e suspirou, cabisbaixo.
Encarei-o, receosa. Não gostava do clima que estava desde que chegara em casa ontem. Aquele não era ele. Não se parecia nada com o que se gabava de tudo e tinha o nariz empinado que eu conhecia e odiava.
— Não vai tomar café da manhã? — perguntei. Ele já não tinha jantado, ainda iria sair sem comer? queria desmaiar por aí?
— Não posso, tenho que…
— Vá tomar seu banho, eu te levo algo no escritório — Elisabeta nos interrompeu, atraindo nossa atenção.
— Não precisa! Eu como algo na empresa.
— Vai sair de casa de barriga vazia? Não! Não tem problema, Sr. , pode deixar que eu faço.
Soltei um risinho desacreditado.
— Vai mesmo mimar um marmanjo desse tamanho? — cruzei os braços, negando com a cabeça. Ela mimava e depois eu que lutaria para tirar o costume de .
— Ciumenta — ele me deu a língua, saindo da sala com as risadas de Elisabeta, que sempre via nossas implicâncias como se fosse algo fofo. Mal sabia ela…
Fui para a cozinha com a babá, aproveitando para jogar conversa fora enquanto tomava meu café da manhã. Ao contrário de , eu não tinha a mordomia de ter uma pausa pro café quando chegava.
Acabei me atrasando um pouco e fui tomar banho sob os murmúrios insuportáveis de , que já reclamava do horário. Eu não tinha culpa se Angelina resolveu aparecer do nada! Eu estava no meu horário, ela quem bagunçou tudo.
— Não acredito que vai se maquiar ainda — ele resmungou, vestindo o blazer por cima da camisa clara. Respirei fundo e o ignorei, enquanto passava a primeira camada de rímel em meus cílios. — Vamos logo!
Borrei, carimbando minha pálpebra móvel com o líquido preto.
— Olhe o que você me fez fazer — apontei o erro, vendo-o respirar fundo atrás de mim no espelho. — Agora vou ter que esperar secar pra tirar — reclamei, passando para o outro olho. — Vou escovar os dentes enquanto seca.
— O quê?! Ainda vai escovar os dentes? — ele exclamou, indignado.
— , não me estresse hoje. Eu juro que não respondo pelos meus atos.
Como se o dia já não tivesse começado daquele jeito, ainda queria ajudar a aumentar os efeitos da TPM que eu estava sentindo chegar. O lado bom de tudo aquilo? Eu não estava grávida. Obrigada, ciência, pelos métodos contraceptivos! Até mesmo a pílula, que era o método do método.
— E eu juro que te deixo aí se demorar mais — ele disse, me fazendo arquear as sobrancelhas e me virar para encará-lo. não era nem louco. — Você sabe que eu deixo.
Abri a boca para respondê-lo à altura, porém fui empurrada pela cintura até o banheiro.
— Seu…
A porta foi fechada na minha cara. Só me deu tempo de ouvi-lo me dar cinco minutos, que era o tempo em que ele tinha jurado que esperaria no andar de baixo. Pisquei algumas vezes, ainda de cara com a madeira branca, tentando entender a sensação ruim que senti com suas mãos me empurrando – mesmo que do jeito mais cuidadoso possível – e o modo como o baque da porta me pegou desprevenida, me dando um frio da espinha.
Engoli o choro, já apanhando a escova de dentes e fazendo o que fui fazer ali. Desci rápido, encontrando-o sentado no sofá. Eu tinha demorado mais que cinco minutos. Estava me recompondo, mas, mesmo assim, me esperou. Eu tentava ao máximo bloquear minhas lembranças e me convencer de que não era a mesma coisa. Ele não tinha feito de propósito, eu sabia daquilo. não tinha como ter ciência do que havia acontecido comigo no passado.
Após encher de beijos, saímos pela garagem e pegamos o carro. estava calado. Ele apertava o votante entre as mãos grandes, evidenciando as veias da região. Outro motivo para eu relevar sua implicância: estava nervoso com toda a questão do pai e não me machucou. Só foi um grosso, como sempre foi.
Aproveitei que ele parou no sinal vermelho e peguei meu blush e o pincel fofinho na bolsa, passando-o no rosto a fim de não parecer tão pálida. Ouvi seu riso baixo e o encarei de volta de testa franzida.
— O que foi agora? Quer um pouco em você? — estiquei o pincel, vendo-o aproximar o rosto enquanto sorria.
Não aguentei ao imaginar de bochechas rosadas de blush e gargalhei, recolhendo minha mão, guardando o pincel e minha nécessaire de volta na bolsa.
— Não entendo o porquê se arrumar tanto pra ir trabalhar. Está me traindo, por acaso? — disse ele, me fazendo revirar os olhos. — É sério, os clientes nem devem reparar em quem os servem.
Provavelmente, o bonitão devia ser aquele tipo de cliente que só deixava a gorjeta e nem sabia quem era o garçom que o atendeu.
— Infelizmente, você está muito enganado — lamentei, sorrindo fraco. — Os clientes homens são bem incisivos, você não imagina o quanto.
Quanto mais informal era o local, mais os homens achavam que podiam falar o que queriam para as atendentes. Eu duvidava muito que as garçonetes de restaurantes chiques sofressem assédio na mesma proporção que nós, que servíamos numa lanchonete simples. Às vezes, parecíamos parte do pacote. Os caras achavam que o pedido deles tinha que vir acompanhado do nosso número de telefone como um brinquedinho de lanche feliz.
— Mesmo com aliança?
— Eles nem reparam na aliança.
Retirei meu cinto de segurança quando parou o carro do outro lado da rua da lanchonete. Já tinha uma fileira de veículos tomando o meio-fio. Naquele horário era bem difícil achar vagas por ali.
Virei-me em sua direção, encarnado-o por um tempinho. Seus olhos verdes me olharam de volta, e ele suspirou, tentando manter um sorriso nos lábios. Me aproximei e beijei sua bochecha enquanto segurava a lateral de seu rosto.
— Boa sorte lá. Se for preciso, grite com ele. Você dá um medinho quando está bravo — rimos brevemente, porém, eu estava falando sério.
Depois de fechar a porta na cara de Joseph, eu sentia que não sabia mais o que faria caso ficasse cara a cara com ele novamente. Mas, na hora da raiva, eu tinha certeza que teria várias ideias.
— Obrigado — pegou-me pela nuca, beijando minha boca devagar. Senti a pálpebra pesar quando sua língua entrou em contato com a minha. Finalizei o beijo após ouvir buzinas atrás de nós, já que ele não poderia estar parado ali.
— Vai dar tudo certo — pisquei, apanhando minha bolsa e deixando o carro, sentindo o vento gélido bagunçar meus cabelos.
Assim que fechei a porta do carro e tirei as mechas loiras do meu campo de visão, olhei para dentro da lanchonete e, pelo vidro da porta da frente, vi Anne me olhar de um jeito estranho.
Puta que me pariu.
Atravessei a rua, esbarrando com o Sr. Williams encostado na fachada da loja ao lado, conversando com a dona. Nem tinha percebido ele ali. Levei um pequeno susto quando o ouvi me dar bom dia. Adentrei a lanchonete, passando reto pela loira plantada onde estava desde que me viu chegar. Tinha esperanças vindas do fundo do coração de que poderia ficar invisível diante dela, só para me livrar do que escutaria.
— !
Não funcionou! Continuei andando, indo para a área de funcionários e sendo seguida por ela, que deixou a mesa que atendia só para ir atrás de mim. Tiffany, que abastecia os potes de ketchup e mostarda lá atrás, nos olhou curiosa ao ver ambas entrarem como foguetes.
— Você estava beijando ele? — ela perguntou. Coloquei a bolsa sobre o banco, respirando fundo e tentando pensar em algo para lhe dizer. Dizer tudo, menos a verdade. — Responda, .
— O quê? — a morena se aproximou de nós. — estava beijando quem? — seu espírito de fofoqueira se aflorou. Vi quando Fanny esboçou um sorriso malicioso.
— ! estava beijando — ainda indignada, Anne me acusava com direito a dedo hasteado, como se eu tivesse cometido um crime.
— O marido dela? — não foi uma pergunta, foi mais um toque de que Anne estava sendo sem noção.
Suspirei, alternando o olhar entre as duas. Lá iam elas começar a brigar.
— Sim, eu beijei o no carro, mas foi porque… porque o Sr. Williams estava lá fora e nos viu lá dentro. Eu e ele fingimos ser um casal normal que sempre se despede com um beijo, só isso!
Meu coração batia rápido. Parecia mesmo que eu estava me defendendo de um crime. Naquele dia, eu estava recebendo um teste cardíaco. Todo mundo resolveu implicar comigo de uma vez só!
— Ah, que susto — ela levou a mão ao peito, rindo.
Não era engraçado!
Minha vontade foi de gritar na cara dela que SIM, eu tinha beijado o MEU MARIDO e dado para ele a VIAGEM INTEIRA, e nada daquilo era da conta dela.
Respirei fundo, guardando minha bolsa em meu armário ao invés de realizar as fantasias da minha cabeça.
— E qual o problema se fosse real? Eles são casados! Até me surpreende o fato de não ter pegado ainda, vivendo sob o mesmo teto e… — censurei-a pelo olhar, pedindo aos céus para que ela não abrisse a boca sobre o episódio do banho. Anne morreria se soubesse que já me deu banho. — ... E tudo mais que casais fazem.
— Não é real, pronto, fim de conversa — encerrei o assunto, exasperada.
— Por que veio atrás dela tão brava, Anne? — eu amava o senso de justiça de Fanny, mas, daquela vez, eu preferia que ela deixasse aquilo pra lá. Eu já tinha conseguido reverter a situação. — Não tinha deixado de gostar do ?
Estávamos parecendo um bando de colegiais brigando sobre gostar ou não dos meninos que estudavam conosco. No fundo, eu já suspeitava que Anne não tinha esquecido o que sentia por . Ela ficou naquele crush esquisito por meses; não iria deixá-lo para trás tão rapidamente, ainda mais depois do envolvimento falido com Miguel.
— Não, eu não deixei de gostar dele, mesmo depois do que ele me fez.
Não disse?
— Respeito o trato que ele tem com e o fato de estar em jogo, mas também não posso dizer que não sinto ciúmes!
Olhei para ela, evitando o sentimento que me tomou. Porém, não consegui me segurar e não sentir pena.
— Eu já disse que não precisa disso, Anne. Eu e não gostamos um do outro e nunca vamos gostar! — falei, e a loira me encarou em dúvida. Me esforcei para ser sincera, quer dizer, parecer. — Ele é só o pai da minha filha, nada mais que isso. Porém, ainda temos que fingir ser um casal.
Não iria permitir que nenhum outro homem ficasse entre nossa amizade, não de novo. E se eu precisasse mentir para manter tudo nos eixos, era aquilo que eu faria. Admitia que a culpa de estar mentindo para elas estava me matando, porém, depois daquele mini show que minha amiga estava fazendo só por um simples beijo, vi que era melhor fazer o que combinei com e não envolver ninguém no que estávamos fazendo. Já não bastava Tom explodindo de ciúmes sem motivo algum.
No fim das contas, se Anne soubesse a verdade, teria motivos para ficar brava, visto que eu mesma tinha anunciado a elas sobre meu casamento com como a pior das notícias. Sempre deixei bem claro que não ficaríamos juntos de forma alguma, inclusive falando de modo figurado que eu era alérgica a ele.
Ao que parecia, tínhamos arranjado um remédio para aquela alergia chamada tensão sexual, mas se Anne descobrisse, teria um pouco de razão ao se sentir traída. E aquilo nada tinha a ver com , e sim com nossa amizade.
— Meu Deus, Anne, supere esse cara de uma vez por todas!
Eu ia matar Tiffany. Abracei a loira, lançando-lhe um olhar significativo e fazendo-a parar de destilar sinceridade pra cima de Anne.
— Vamos trabalhar. O Sr. Williams já deve estar de volta no balcão, e se ele não ver ninguém atendendo… — nem precisei terminar a frase. Anne voltou para a mesa que atendia anteriormente.
Juntei-me a Fanny na hora de levar os potes vermelhos e amarelos já abastecidos para as mesas. Comecei a preparar um dos pedidos na chapa enquanto a morena fazia suco com as laranjas, próximo da pia. Seus olhos castanhos me alcançaram, e a vi negar com a cabeça enquanto ria fraco.
— Pare com isso — a alertei. — Sabe como ela é sentimental.
— Por isso mesmo que alguém tem que pará-la, ! — Fanny teimou, fazendo-me rir e reprovar seus métodos. — Annelise tem que parar de achar que vai viver um conto de fadas e que é o príncipe de carrão escuro dela! — meu Deus, as adaptações modernas dela eram péssimas. — É você quem ele vem buscar e leva pra casa todos os dias, e você deve saber mais que ninguém que não é nenhum príncipe.
Ela saiu balcão afora, levando o grande copo até a mesa à frente. Suspirei, dando um sorrisinho ao interpretar sua fala. Era engraçado que, apesar de todos os pesares, era sim um príncipe – quando queria, é claro. E nas vezes que ele quis, me tratou com uma rainha.
's point of view.
Não tinha pregado o olho direito naquela madrugada. Mesmo estando confortável e quentinho na cama com , parecia que algo me incomodava. E era totalmente emocional. Cochilei pouquíssimas vezes, me levantei para trocar e amamentar quando ela chorou.
A visita da assistente social não chegou a me preocupar muito. Cheguei a me sentir culpado por não dar a importância que deveria, mas, no momento, eu não conseguia tirar a venda da empresa da cabeça.
O dia foi bem longe do que seria considerado tranquilo. Conheci Phillip Thorpe e o assisti dar um aperto de mãos com meu pai após fecharem o negócio e assinar as papeladas, apenas tornando tudo oficial. Foi doloroso ter que ficar o dia ao lado do meu pai após tudo o que eu tinha ouvido no dia anterior; sorrir e fingir que estava tudo bem em entregar nem que seja uma parte de algo tão importante nas mãos de um estranho.
Fizemos um tour pelo prédio, enquanto era combinado que haveria um evento formal para apresentá-lo aos funcionários e investidores como mandava o figurino. A venda ainda era considerada um rumor, porém, a maioria das pessoas que trabalhavam no prédio já circulava a notícia de mudança na chefia.
Eu ainda não sabia como ficariam as coisas após a posse, na qual Phillip poderia fazer mudanças, e se ele teria poder e autonomia o suficiente para fazê-las. Por enquanto, a única coisa que soube foi que ele não residia em Londres e que, pelo menos inicialmente, iria deixar a filha mais velha no cargo, já que ela era a pessoa de maior confiança dele. Assim como meu pai tinha feito comigo.
Esperava que Thorpe não fosse tão filho da puta quanto o meu e não a apunhalasse pelas costas. Porque, se ele a sabotasse, estaria ferrando a empresa da minha família junto.
Saí da empresa no meu horário normal, sem me despedir de meu pai, que só me dirigiu a palavra quando necessário. Devo dizer que me surpreendeu o fato de que ele não reclamou da portada na cara que levou noite passada ou comentou o fato de ter visto a única neta pela primeira vez. Me assombrava ver que meu pai ainda conseguia desdenhar da existência de , que, além de ser só um bebê, ainda se parecia muito com Grace quando ela tinha o mesmo tamanho.
Falando na bebê, peguei-a assim que cheguei, dispensando Elisabeta e assistindo um pouco de televisão até que desse a hora de buscar – já que ela tinha voltado ao seu horário normal e trabalhava uma hora a mais que eu.
Sinceramente, não sei como ela aguentava aquela vida de atendente. Após saber que até assédio ela era obrigada a aguentar no trabalho, comecei a me perguntar o que eu faria em seu lugar. Acho que não aguentaria uma hora trabalhando em seu lugar.
Desci do carro, tirei a bebê da cadeirinha e me encostei ali, vendo-a mais uma vez ajudar as outras meninas a trancar a lanchonete. Nenhum dos quatro percebeu minha presença ali. Até que o velho de bigode me viu e acenou em minha direção.
— Olhe quem veio te buscar hoje, .
A loira se virou junto das amigas, e seu rosto se iluminou quando reparou na filha em meu colo.
— Oi, meu amor! — ela veio até nós, pegando-a de meus braços e beijando sua bochecha sem parar. As amigas a rodearam junto do chefe, brincando com a bebê para chamar sua atenção.
O Sr. Williams a pegou no colo, fazendo-nos pensar que ela estranharia o mais velho, porém não aconteceu. apenas ficou encarando-o atentamente com seus grandes olhos verdes.
— Gostou do vovô? — ri de sua fala, enquanto o Sr. Williams ainda conversava com ela. Pelo visto, ele seria o avô dela mesmo, já que o de sangue não a suportava. E o pai de , bom, nem a própria filha parecia gostar dele. — Ela é boazinha, vai com todo mundo — ele disse, admirado. Todo velho falava aquilo de bebês simpáticos.
— Tem que ter mais malandragem, — Tiffany pegou sua mãozinha, fazendo-nos rir. Ela tinha razão, e eu lhe ensinaria aquilo.
— Não vai falar com o maridão? — Sr. Williams me indicou com o queixo para , que balançou a cabeça, rindo sem graça antes de vir até mim.
— Oi — seu sorriso me contagiou, e eu lhe retribuí, trazendo-a para perto pela cintura.
— Oi — murmurei, antes de beijar sua boca.
não aprofundou muito o beijo, fazendo uma pequena pressão em meu ombro para me afastar. Provavelmente pela presença das amigas ali – de uma em específico, aliás. Mesmo não querendo me beijar, eu a prendi ali para olhá-la de pertinho.
— Como foi hoje lá? — ela perguntou, e eu respirei fundo, sentindo sua mão descer e se pousar em meu peito, afagando a região. Aquele gesto me confortou.
— Melhor que ontem — sorri amarelo, e assentiu em silêncio.
— Em casa conversamos — ela me olhou nos olhos, fazendo-me lembrar da noite passada quando me deu colo, fazendo o que Grace costumava fazer e eu achei que nunca mais teria após sua partida.
Demonstrar tamanha fraqueza para uma inimiga seria algo inadmissível para mim um tempo atrás. Quando e eu vivíamos brigando, nem lágrimas eu queria que ela soubesse que eu tinha, tamanho era meu medo de ter algo sendo usado contra mim ou lhe dar alguma vantagem.
Saber que eu poderia contar com ela e que nossos anos de brigas realmente tinham ficado para trás me deixava feliz. A noite passada apenas confirmava que estávamos construindo uma amizade maravilhosa.
— Agora me solte, está começando a ficar estranho…
Soltei-a, imaginando do que falava.
Como se soubesse que estávamos indiretamente falando dela, Anne nos encarou, ainda parada ao lado do chefe.
Uma motocicleta que passava pela rua passou em alta velocidade, fazendo o característico barulho de escapamento e assustando a bebê, que abriu o berreiro. Ela não costumava sair de casa à noite; Elisabeta a levava vez ou outra para passear no parquinho dentro do condomínio. Imaginei que fosse a primeira vez que tinha ouvido um barulho tão alto.
— Vamos embora, vem — seu choro diminuiu quando ouviu a voz da mãe se aproximar. — Tchau, gente, até amanhã! — a pegou de volta e eu me despedi deles, embarcando no veículo junto delas.
foi direto pro banho quando chegamos em casa, e eu fiquei com a bebê enquanto esperava minha vez. Comecei a brincar de me esconder, cobrindo-a com seu paninho e tirando-o de seu rostinho, vendo-a reagir sorridente e enérgica, movendo os bracinhos e perninhas.
A cada minuto que passava ao lado dela, eu percebia que tinha aprendido algo novo. Era fascinante olhar para seu rostinho e ver o quanto tinha mudado desde o dia em que a vi pela primeira vez na maternidade do hospital. Ela estava cada vez mais linda e grande, pesada também, para o alívio de , que se sentia insuficiente ao vê-la abaixo do peso antes de trocarmos a fórmula do leite.
Já tinham se passado três meses. Quem diria que chegaríamos até ali inteiros! tinha um grande mérito naquela conquista. Ela era tudo o que um pai ou uma mãe pediriam aos céus: chorava vez ou outra, mas, no geral, era tranquila e muito, mas muito esperta. Bom, eu e achávamos, né. Talvez fôssemos apenas dois babões mesmo.
Fui pro banho, trocando de turno com minha esposa, que a levou para a cozinha para preparar o jantar. Assim que vesti meu pijama, desci e fui até elas, encontrando cantarolando alguma música infantil para a bebê, que, dentro do carrinho, a procurava com o olhar atento.
— Você nem me contou, o que rolou por lá? Conheceu o cara? — murmurou assim que percebeu minha presença no cômodo. Ela cortava legumes, concentrada, fazendo-me ir até a pia e me encostar nela para conversarmos melhor.
— Conheci. Phillip Thorpe — no auge da imaturidade, pronunciei seu nome com nojo.
— Que nome chique.
Encarei-a de canto de olho, incomodado.
— O cara nem ao menos vai ligar pra empresa, ele tem a própria com sede em Nova Iorque. Pelo visto, comprou pra filha dele, já que é ela quem vai entrar no lugar de Edward inicialmente — cruzei os braços, suspirando.
— Nepotismo nas empresas, , que novidade — ela disse, me fazendo arquear as sobrancelhas. Então, se deu conta que tinha acabado de fazer uma piada com minha atual insegurança. Como nos velhos tempos. — Desculpa.
— Mas, no caso dela, deve ser nepotismo mesmo — resmunguei, ressentido.
— Quer dizer que só porque ela é mulher não pode ter trabalhado como você para ter um bom cargo na empresa do pai? — estava mesmo defendendo-a na cara dura?
Me dei conta de que tinha soado um pouco machista da minha parte, mas eu estava com raiva. Se fosse em qualquer outra situação, não pensaria daquela forma. No fim das contas, o gênero da pessoa que me encheria o saco não faria diferença nenhuma.
— Não é isso — me remexi, desconfortável. — Thorpe deu a entender que a filha não tem experiência com lideranças. Era seu braço direito na filial de Nova Iorque, porém nem ele tem certeza se ela saberá lidar com uma empresa como a nossa, ainda mais na situação crítica que ela está.
E ele resolveu colocá-la à prova justo na empresa do meu pai. Que maravilha!
— Bom, isso só o tempo dirá — jogou tudo na panela, encarando-me antes de prosseguir, receosa. — E seu pai? Não falou nada sobre ontem?
— Não, ele quase não olhou na minha cara hoje — respondi, e minha esposa começou a picar tomates. Observei sua habilidade enquanto tentava ignorar meus sentimentos em relação aos meus últimos encontros com meu pai. — Disse que teremos um evento para dar as boas-vindas a Thorpe e seu monstrinho de estimação.
me olhou, surpresa, comprimindo os lábios para não rir da minha fala maldosa.
— Ao menos já viu ela, ou está falando isso por implicância? — perguntou. Não me interessava vê-la, eu já não ia com a cara só de saber da existência.
— Não foi preciso. Eu sei — dei de ombros. negou com a cabeça, rindo baixinho. — Queria muito não ter que ir nessa droga de evento, mas sei que, se deixar de ir, meu pai vai tomar as rédeas da situação, e preciso estar por perto para não deixá-lo tomar mais decisões para me punir por conta de — olhei a bebê no carrinho. Eu faria aquilo por ela, somente por ela. — E você será meu par.
fez uma careta instantânea. Eu sabia o quanto ela odiava ir para lugares cheios de ricaços e empresários. só suportava os eventos sociais que minha mãe dava em casa por conta de Grace, que odiava ficar no tédio sozinha, e também por conta da mãe, que lhe pedia ajuda para limpar depois que todos iam embora.
— Não dá pra chamar a Dafne, não? Sei lá, até Megan iria querer ser seu par — ri de seus resmungos, abraçando-a por trás. — Não ri não, eu estou falando sério. A amante sempre fica com a melhor parte — beijei sua nuca exposta por seus cabelos loiros, presos num coque no alto da cabeça. — Eu não tenho nem roupa pra eventos assim.
— Vou te comprar um vestido.
— Pare de arranjar soluções para as minhas desculpas pra não ir — ela tentou sair do meu abraço, sem sucesso. Apertei sua cintura, colando-a ainda mais em mim, esquecendo-me de manter uma distância segura ao vê-la com uma faca em mãos.
— Deixe que eu termine isso — falei, e se virou, espantada, saindo da frente e largando o utensílio sobre a tábua. — Eu sei temperar uma salada, .
Ao menos eu achava que sabia.
— Hum, adivinhe só — ela colocou uma das mãos na cintura, encarando-me com os olhos brilhando. Olhei-a de volta, sabendo que vinha uma fofoca edificante a seguir. — Anne ainda gosta de você.
— Eu sou mesmo difícil de ser superado, querida — zombei, vendo-a revirar os olhos. — Por isso você ficou com medo de me ter por perto na frente delas?
— Não é medo — era sim —, é que eu já disse a Anne milhões de vezes o quanto eu te odeio, e ela acredita em mim. Se ela descobrir que eu fui a culpada por você tê-la dispensado ou sonhar que estamos transando, vai se sentir traída.
Traída por quem, exatamente?
Franzi o cenho, me perguntando o motivo de se esforçar tanto para mantê-la como sua amiga, sendo que Anne já tinha provado por A + B que era problemática. Ela sentir ciúmes de nós dois, sendo que éramos casados, já era uma prova daquilo.
— Ela nos viu hoje no carro. Você precisava ver o jeito como falou comigo.
Arfei, indignado. Annelise conseguia até mesmo fazer se sentir culpada por não fazer absolutamente nada de errado!
— A culpa não é sua. Eu a dispensei porque quis. Não iria ser nada além de sexo casual, — dei de ombros, vendo-a suspirar, derrotada. — Anne não faz o meu tipo, mesmo que nossa noite juntos tenha sido muito boa...
Annelise se encaixava e muito no meu tipo de mulher. Não daria para negar que ela era sim muito bonita, tanto que até transei com ela. Mas eu não sabia o que era. Não sabia se era por conta do envolvimento com Miguel ou o fato de ela estar sempre olhando para e eu de um jeito esquisito. Eu não conseguia me conectar com ela de jeito algum.
— Não continue, por favor. Só de ouvir, meu estômago embrulha — engoliu em seco, deixando-me nervoso no mesmo instante.
Encarei-a assustado, olhando-a de cima a baixo antes de virar-me completamente para ela, já sentindo uma leve tontura me atingir.
— Você não está…
— Ah, não, estou me referindo ao fato de minha melhor amiga já ter transado com você — ela desdenhou, exasperada, rindo da situação em que me deixou. — Eu não estou grávida, , pode ficar tranquilo quanto a isso. Inclusive, minha menstruação veio hoje mesmo.
— Não existem casos de mulheres que continuaram menstruando mesmo grávidas?
— Agora quem está me assustando é você, . Pare já com isso — hasteou a colcha que tinha em mãos em minha direção. — Imagina, com que cara eu iria contar para as meninas que estou grávida, sendo que nego até a morte que sequer gosto de você?
— Gosta de mim, ? — sorri malicioso, indo até ela e enlaçando seu corpo com meus braços.
— Você entendeu o que eu quis dizer — ela desconversou, sem graça.
Sim, eu entendi, mas era engraçado vê-la vermelhinha daquele jeito.
— Esqueça Anne — primeiro era Tom, agora Anne, e a lista só ia aumentando. E isso era porque estávamos ficando no sigilo. — Eu sequer lembro direito daquela noite.
— Não acabou de dizer que tinha sido muito boa? — ri ao perceber que gravou exatamente as palavras que saíram da minha boca. — Como sabe se nem se lembra?
— Eu sou muito bom no que faço, , você sabe disso — beijei o canto de sua boca. ficou sem fala em meus braços. Sabia que não podia negar. — Tão bom que já se passaram meses e ela continua querendo mais.
se afastou, simulando uma ânsia que me arrancou gargalhadas.
's point of view.
Deitei o corpinho quentinho de no berço aconchegante e a cobri com medo de fazer frio durante a madrugada. Acendi o abajur de nuvem sorridente na tomada e, por fim, deixei a porta entreaberta como sempre.
Fui direto para o quarto, já encontrando na cama. Ele tinha ficado na cozinha quando subi com a bebê sonolenta pro andar de cima. arrumou tudo antes de ir para a cama, e lá nos encontramos.
Nem cheguei direito e ele já me chamava a atenção, me jogando um par de meias coloridas que disse ter visto em uma loja e se lembrado de mim. Calcei-as, emburrada. Porém, minha carranca se desmanchou quando, já no escuro do quarto, me trouxe para perto de seu corpo quente debaixo das cobertas escuras.
Sua boca se chocou contra a minha enquanto eu tentava controlar o fogo que me subia devido a minha recém-chegada TPM. não ajudava, encaixando-se entre minhas pernas, que já se abriam involuntariamente para ele sem que fizesse esforço algum. Gemi em seu ouvido quando o senti duro contra minha intimidade. A sensação triplicou pelo fato de os tecidos de nossos pijamas serem finos. Parecíamos não usar nada além de nossas roupas íntimas.
— … — segurei um gemido quando vi que suas mãos já invadiam minha camiseta.
— Entendi — ele suspirou e saiu de cima de mim, já sabendo que não rolaria nada enquanto eu estivesse no período.
Encarei o teto e tentei normalizar minha respiração, quando senti seu braço me envolver e puxar-me para si, fazendo-me deitar a cabeça em seu peito, que ainda abrigava um coração frenético que foi se acalmando à medida que pegamos no sono.
Despertei horas depois com o choro de . Como já tinha ficado responsável por ela noite passada e eu já tinha acordado, levantei-me e saí corredor afora até a porta ao lado da minha. Uma corrente de vento veio por detrás de mim e bateu na porta entreaberta do quarto do bebê, batendo-a e me assustando com o barulho inesperado.
Levei a mão ao peito, rindo de mim mesma e abandonando a sensação de medo que me tomou. Era só a janela aberta.
Adentrei o quarto e a peguei após checar sua fraldinha, que aparentemente estava seca. Ainda sonolenta, saí com ela em meus braços e fui em direção ao vitrô redondo que tinha no fim do corredor. Então, fechei o vidro, cessando o frio que vinha de fora.
Quando cheguei no andar de baixo, a primeira coisa que fiz foi procurar por Salém. Sabia que existia a possibilidade do gato fujão ter escapado por ali, já que ele não perdia uma oportunidade. Suspirei derrotada quando não o encontrei, e decidi deixar para procurá-lo quando amanhecesse. Afinal de contas, ele sempre voltava pela comida, e eu tinha um bebê faminto nos braços no momento.
Enquanto esquentava o leite, encarei a janela da cozinha, que estava fechada apenas pelo vidro. Elisabeta deve ter tirado a cortina para lavar. Encarei meu reflexo ali, vendo a situação caótica que estava meu cabelo, enquanto me balançava devagar para distrair da fome. A janela dava para o jardim de trás, onde tinha a piscina e, mais ao lado, o balanço colorido. A noite estava linda, o céu bem estrelado e com direito a uma lua cheia e brilhante. Me distraí ao contemplar a imensidão escura, quando, de repente, vi uma silhueta parada diante do muro mediano.
Estreitei os olhos, pensando estar vendo coisas devido ao sono. Quando tive a certeza de que tinha realmente alguém no meu jardim, já era tarde demais para gritar. Outra coisa tinha feito barulho o suficiente para acordar não só , mas o quarteirão inteiro junto. O vidro à minha frente estourou assim que a bala que partiu do revólver do invasor o acertou.
Com o coração saindo pela boca, meu único instinto foi protegê-la. Me agachei no balcão, esbarrando nos diversos cacos de vidro espalhados por toda a cozinha.
— ! ! — minha garganta ardia por conta do sobrecargo em realizar duas funções aos extremos. Ao mesmo tempo que eu gritava a plenos pulmões o nome dele, o choro vinha trazendo consigo um turbilhão de sensações.
Eu estava tremendo, com muito medo e torcendo para que acordasse na cama e tudo aquilo fosse fruto de um sonho terrível.
Outro tiro foi disparado. Me encolhi ainda mais com chorando assustada em meus braços. Meu maior medo era que aquele homem se aproximasse de nós, já que não havia mais nada nos separando após a janela ter literalmente se espatifado de uma só vez.
Um barulho alto de uma motocicleta foi a última coisa que me lembrava de ter ouvido enquanto ainda estava assustada demais para saber distinguir os sons à minha volta.
Vi se aproximar correndo, ao mesmo tempo que me preocupei com o risco de ele ser alvejado por quem quer que fosse a autor dos disparos. Logo a porta da frente tremia pelas batidas insistentes que me fizeram chorar ainda mais por puro pavor.
— Vocês estão bem? — ele recuou ao ver a quantidade de vidro pelo chão. Assenti, sem conseguir falar mais nada. Da minha boca só escapavam soluços. — Vou abrir a porta, fique aí, sim?
Assenti, ainda aterrorizada, reconhecendo a voz de Megan e Javier, que provavelmente chegaram antes por morarem praticamente em frente à nossa casa.
— O que houve? Ouvimos tiros! — a morena veio rapidamente junto de , enquanto o marido rodeava a casa para ver se encontrava algo ou alguém.
— Ele fugiu, pulou o muro — avisou Javier que era inútil procurá-lo. — Dê para Megan, eu te pego.
Megan estendeu os braços, dando passos cuidadosos com os pés devidamente calçados; ao contrário de mim, que estava apenas de meias. Entreguei-lhe a bebê chorosa, e logo me pegou no colo, segurando-me com as mãos trêmulas e tão assustado quanto eu. Encostei a cabeça em seu ombro, molhando seu pijama com minhas lágrimas.
Será que aquele pesadelo nunca teria fim?
Capítulo 32
's point of view.
Ainda completamente pasmo, andei com amedrontada em meus braços até o sofá, onde me sentei com seu corpo trêmulo ainda em cima de mim. Eu estava literalmente sem palavras. Só não estava imóvel e recluso num canto tentando digerir o que acabou de acontecer ali porque sabia que tinha que tomar as rédeas da situação. Elas precisavam de mim, estavam mil vezes mais assustadas do que eu, estavam frágeis. Ainda agarrada a mim, não parava de soluçar, enquanto o choro estridente de no colo de Megan me doía o coração.
Apesar do meu estado emocional, eu não poderia dizer que estava surpreso. Afinal de contas, sempre alertei do que Miguel era capaz, e sabia que logo ele tentaria contra a vida dela. Aquela não era a primeira vez que o fazia, e algo me dizia que não seria a última. Apertei contra meu peito com os olhos meio arregalados, pasmo, pensando quais poderiam ser os próximos passos daquele desgraçado. Ele já tinha lhe dado um golpe na cabeça, jogou-a longe com um carro, e agora aquele filho da puta tinha tentado atirar nela com minha filha nos braços!
O que ele queria afinal? Era só dinheiro? Ele não entendia que lhe dar dinheiro significaria reduzir a uma simples mercadoria? Nós não iríamos pagar para tê-la conosco; aquele era o lugar dela, junto com os pais. Conseguiríamos sua guarda por meios legais, e não derramando sangue ou por meio de chantagem como Miguel estava tentando fazer.
Eu disse para me ligar quando o encontrasse em algum lugar, suspeitasse que estava sendo seguida ou qualquer outra anormalidade que encontrasse por aí enquanto estávamos longe um do outro. Mas, após sermos surpreendidos na nossa própria casa, vi, já morto de preocupação, que tudo aquilo era inútil. Miguel só pararia se fosse preso ou morto, e apesar de querer – sem o mínimo resquício de remorso –, que ele fosse para o inferno e morresse logo, a cadeia parecia ser nossa única opção.
Ver que ele de alguma forma conseguiu furar o esquema de segurança do condomínio e pisar no nosso gramado tranquilamente me deixou puto da vida. Miguel agia como se estivesse acima da lei, e pelo visto estava, já que nunca o pegavam e nem chegavam perto de fazê-lo! voltaria a se amedrontar, igual estava antes da nossa viagem para Tulum, e eu ficaria ainda mais paranóico, a ponto de não deixá-la pisar os pés para fora de casa sozinha, ou até mesmo proibir Elisabeta de ir ao parque com a bebê.
Não merecíamos aquela vida, não devíamos nada a ninguém; quem devia estar com medo de colocar a cara na rua era aquele criminoso desgraçado. Se eu colocasse minhas mãos nele… Acho que não responderia por mim. Só não seria covarde como ele era. Eu o enfrentaria pela frente e não precisaria da ajuda de ninguém para fazê-lo, muito menos de armas ou de um carro.
soluçava, ainda com a cabeça enterrada em meu pescoço. Ainda se tremia toda, tossia, engasgando-se no próprio choro por conta do nível de seu desespero. E pensar que se ele tivesse conseguido o que queria, poderíamos estar indo rumo a um hospital uma hora daquelas...
— Está machucada? — sei que já tinha perguntado aquilo; aliás, foi minha primeira pergunta quando tudo aconteceu.
Só Deus sabe o tanto de merda que se passou pela minha cabeça quando ouvi aquele barulho todo, olhei pro lado e me vi sozinho na cama. O choro de e seus os gritos dela, chamando o meu nome em desespero.
negou com a cabeça, porém, mesmo assim a inspecionei, vendo apenas um arranhão em seu braço, provavelmente por conta dos cacos da janela. Passei a mão no local, tentando aquecê-la, já que estava frio e tinha os pelos eriçados por estar com um pijama sem mangas.
— F-Foi ele, eu sei que f-o-i ele — sua voz entrecortada e chorosa repetiu aquela mesma frase várias vezes.
O ódio me consumia aos poucos ao ver o estado caótico em que se encontrava. Vi o casal se entreolhar numa comunicação silenciosa e tratei de tentar silenciá-la. Quanto menos pessoas soubessem de Miguel, melhor seria.
— Eu sei — murmurei em seu ouvido, ainda afagando-lhe o braço. Seu coração batia desenfreado. Levei uma de minhas mãos a seu peito, que subia e descia frenético por conta dos soluços, e pude senti-lo quase saindo pela boca. — Você precisa se acalmar, . Por favor, se acalme. Ele já foi, não se preocupe com isso. Vamos resolver isso, eu prometo que vou proteger vocês — segurei seu rosto, tentando fazê-la me olhar nos olhos para tentar lhe passar alguma credibilidade.
Queria que ela acreditasse em mim, porém, naquele momento, nem eu mesmo conseguia fazer aquilo. Eu não podia falhar daquela vez. Já tinha perdido Grace para aquele inferno, não aceitaria perder ou !
— Achei que tivesse sido um assalto. Vocês conhecem o invasor? — Megan indagou, ainda balançando a bebê nos braços. estava mais calma assim como a mãe, que, apesar de transtornada, passou a respirar mais devagar e tentar conter o choro.
— Não foi um assalto, eu chequei tudo lá fora. O carro de vocês está intacto. Se ele quisesse roubar, teria ao menos tentado levá-lo.
— Não o conhecemos — menti, sentindo se agarrar a mim. — se referia ao gênero da pessoa. Eu também o vi e concordo, acho que era um homem. Não entendo como conseguiu passar pela portaria, dias atrás meu pai também entrou sem ser anunciado. Vou procurar os responsáveis por isso.
— Verdade! Eu não tinha pensado nisso — Megan arregalou os olhos, impressionada. — Temos que tomar cuidado, querido, vai que invadem a nossa casa também?
Quase tentei tranquilizá-la falando que ela não era o alvo de ninguém. Porém, para manter a identidade de Miguel em segredo, não poderia fazê-lo. Megan ficaria tão paranóica quanto nós a partir daquela noite.
— , o que houve? Está tudo bem? — Tom passou pela porta, pálido, praticamente correndo até nós no sofá. — Ouvi os tiros, liguei para a polícia e me informaram que já ligaram e eles estão a caminho.
Eu até tinha me esquecido daquele detalhe. Mas pra quê, não é mesmo? A última vez que recorremos à polícia, Miguel saiu ileso não só de ter atacado , mas também de ter roubado um carro.
Ouvimos as sirenes se aproximarem, e logo as luzes vermelhas invadiram a casa por conta da porta da frente estar aberta.
— Acho melhor você falar com eles. tem que ficar aqui dentro, ainda está assustada — pela primeira vez na vida concordei com Tom, preparando-me para levantar e deixar no sofá.
— Está tudo bem por aqui? — Victoria entrou às pressas, assim como Dormian tinha feito anteriormente. — Os policiais querem falar com os proprietários da casa — ela apontou para fora, ainda nos analisando.
— É, eu sei, vou lá falar com eles — me desvencilhei da loira no sofá e fiz menção em levantar.
— N-Não, onde você vai? Fica aqui comigo! — suas mãos pregaram em minha camiseta, puxando-me para si.
— , está tudo bem, nós vamos ficar aqui com você — Javier se aproximou do sofá, sorrindo amável para ela. pareceu não se importar com aquilo, porém me soltou quando me virei ao seu encontro.
— Eu já venho, prometo que fico com você — peguei seu rosto molhado e tentei secá-lo, antes de desistir ao ver que ainda escorriam lágrimas de seus olhos tempestuosos. Beijei sua boca rapidamente e, antes de ir, depositei outro em sua testa. — Victoria, vá lá em cima e pegue uma manta para cobri-la, por favor?
Ela fez o que lhe pedi de imediato, subindo as escadas enquanto eu me separava de , ainda sob os olhares do restante na sala. Era engraçado que precisávamos fingir cada vez menos na frente deles. Era nossa primeira “reunião” depois das nossas férias, que foi um verdadeiro divisor de águas em nossa relação. Voltamos de Tulum mais próximos, embora o cuidado mútuo já tivesse sido estabelecido antes mesmo de pensarmos em viajar.
— Cuide dela, por favor. Tente fazê-la tomar uma água e se aquecer — o loiro me ouviu atentamente, concordando com a cabeça quando foi ao lado dela tomar meu lugar no sofá.
Apesar de ser algo completamente contra minha vontade, eu sabia que teria que cooperar com Tom naquele momento, principalmente para não arranjar mais confusão naquela noite. Ignorei o jeito como ele a abraçou, deitando sua cabeça no próprio ombro e beijando o topo de sua cabeça. Cheguei a me preocupar com o que os outros iriam pensar ao vê-lo tão próximo de ; porém, continuei meus passos em direção à porta. Afinal, não tinha tempo para perder com aquilo, e imaginava que ninguém seria tão maldoso a ponto de especular nada numa situação como aquela.
— O senhor é o dono da casa? — assenti à pergunta do policial, levando as mãos à cintura. — Recebemos diversos chamados. Seus vizinhos relataram ter ouvido dois disparos seguidos de gritos, pode me dizer o que aconteceu?
Encarei o homem fardado à minha frente e soltei um suspiro, olhando em volta. Havia duas viaturas e alguns curiosos de pijamas parados do outro lado da rua. Estava ganhando tempo; tempo para raciocinar o que tinha acabado de acontecer, porque, para falar a verdade, nem em palavras eu estava sabendo explicar. Ainda parecia-se com um pesadelo. O sentimento que predominava em mim era puro ódio.
— Eu acordei com minha esposa gritando após atirarem contra ela do lado de fora da casa — apontei para a parte de trás do jardim, ainda desorientado. — tinha se levantado para fazer a mamadeira da nossa filha, e aquele filho da puta simplesmente a atacou! Não foi a primeira vez, e se depender da incompetência de vocês, não será a última.
O policial ofegou, ultrajado, encarando-me com as sobrancelhas arqueadas.
Eu sabia que poderia me foder por desacato, mas, naquele momento, eu estava puto da vida, cansado de toda aquela palhaçada. Apanhar cansava, e era aquilo que vinha acontecendo nos três meses em que decidimos adotar : apanhamos de Miguel e, em todas as vezes, saímos perdendo enquanto ele continuou impune.
— O senhor sabe quem foi o autor dos disparos?
— Sei. Miguel Rodriguez é o nome do desgraçado. Ele já invadiu a antiga casa de , lhe deu uma pancada na cabeça e já até quase a matou uma vez, jogando o carro em cima dela aqui perto. Eu quero uma medida protetiva para minha mulher hoje mesmo, porque não quero esperar até que ela apareça morta para fazer alguma coisa, o senhor me entendeu?
Queria a medida protetora para porque eu sabia que era Miguel quem precisaria de uma contra mim, caso algum dia nos cruzássemos por aí.
— é sua esposa?
Respirei fundo, vendo que, de tudo o que lhe relatei, ele não tinha retido nenhuma informação além do nome dela.
— Sim, é minha esposa — murmurei, impaciente.
— Temos que falar com ela, já que, pelo visto, foi a única que viu o suspeito.
— Eu também o vi. Quando desci, consegui vê-lo pular o muro e fugir.
Esperava que só minha descrição valesse de algo, pelo menos por hora. Talvez conseguisse um tempo a mais para falar o que viu depois, quando estivesse mais calma.
— Onde o senhor disse que o viu? Pode me mostrar e descrevê-lo para mim?
Assenti em silêncio, caminhando pela grama verde até os fundos da casa. Alguns policias já estavam no local, parados e agrupados num canto. Aquilo chamou a atenção do homem que falava comigo, e rumamos até eles para ver o que acharam de esquisito por lá.
Assim que se dispersaram para nos dar licença, levei a mão ao rosto, engolindo a seco e desviando meu olhar daquela cena.
— Puta que pariu — praguejei contra minha própria mão, voltando a olhar para o que estava no chão.
— Era de vocês?
— Era da minha esposa — assenti, comprimindo os lábios e contorcendo-me numa agonia desesperadora. Salém estava ali, com um tiro na cabeça próximo a orelha, claramente morto. — Merda — agachei próximo a ele, sentindo os olhos marejarem. Eu obviamente nem ligava muito pro gato; já cruzei com ele em casa algumas vezes, lhe fiz carinho e coloquei comida. Ele não curtia muito interações com humanos, nem mesmo com a própria . Vivia sumido por aí. Lembrava-me que ele até tinha passado um tempo desaparecido, abrigado na casa de Tom.
Lembrei-me do que Dormiam tinha falado há pouco sobre não poder sair para falar com os policiais – provavelmente já tinha visto o gato caído lá fora. Comecei a pensar em como contaríamos aquilo para ela.
— E então… — vi que ele falava comigo e me levantei, secando o canto dos olhos ao me virar em direção à casa.
— Ele estava mais ou menos aqui quando cheguei. Ficou parado por um tempo, olhando para dentro depois de estourar a janela. Só correu quando me viu. Olhe, tem marcas de sapato na parede que ele escalou para fugir — apontei para as poucas manchas impressas no muro claro de casa. — Ele é alto, usa barba, cabelo raspado, tem olhos escuros e sobrancelhas cheias. Deve morar em Enfield ou nas proximidades, naquela região. Estava de capuz no rosto e vestia roupas pretas.
— Acha que ele estava te esperando?
— Tenho certeza disso — disse, sem sequer pestanejar. Aquele era Miguel, um covarde de merda. — Nós estamos numa briga pela guarda da minha filha. Ele é o pai biológico, perseguiu minha irmã até fazê-la desenvolver estresse, o que prejudicou sua gravidez. Grace morreu no parto, e agora ele está nos infernizando atrás de dinheiro para desistir da guarda de .
— Vou colocar meu pessoal atrás dele — o policial conferiu a descrição que anotou. — Olha, eu realmente preciso falar com sua esposa. Sei que ela está assustada, porém, preciso do depoimento dela.
— Não podemos deixar isso para depois? El…
— É ela vindo ali?
Me virei e a encontrei caminhando rapidamente em nossa direção, com a manta sobre os ombros e aparentemente mais calma. Fugia de Tom em sua mais acentuada teimosia, já que, provavelmente, percebeu o medo dele de que ela saísse para fora e visse o que nós mais temíamos que encontrasse: Salém morto.
Fui imediatamente até ela, tentando frear sua ida até o local. Segurei-a firmemente, mandando-a voltar para dentro.
— Eu estou bem, , me deixe falar com o policial. O que diabos tem aqui fora que ninguém quer me deixar sair? — ela tentou espiar por cima de meus ombros, enquanto eu tentava contê-la e levá-la para o lado contrário. — , me solta, eu quero… — parei o que estava fazendo ao reparar em seu olhar fixo no chão próximo de nós.
Suspirei, ainda segurando-a pelos braços. demorou algum tempo para assimilar o que viu, logo soltando mais um de seus soluços naquela noite terrível e interminável.
— É ele, não é? — sua voz saiu embargada.
— Eu sinto muito, — encarei seus olhos azuis e os assisti transbordarem. Só tive tempo de abraçá-la com força antes de senti-la esbravejar contra meu peito, cerrando ambas as mãos em pura revolta. Continuei a segurá-la, com medo de que ela fosse ao chão e se machucasse; porém, estava quase incontrolável.
— Mas que porra! O que mais esse filho da puta quer de nós? Já não está bom tudo o que ele nos fez até agora? Ele já não está satisfeito com a morte de Grace? Se aquele desgraçado está achando que vai levar minha filha, está muito enganado. Eu mato ele primeiro! Eu juro que mato ele!
Tom tentou segurá-la – talvez levá-la, nem que fosse arrastada para dentro –, porém, batia em quem quer que fosse tentar contê-la. Até eu levei alguns tapas por estar tentando mantê-la segura. Os vizinhos assistiam àquilo assustados, porém, ao mesmo tempo, se entretiam com o sofrimento alheio. O que mais os levaria a ficar naquele frio, de pijamas, em frente à minha casa se não fosse por diversão?
Victoria correu até o portão e apertou o dispositivo para fechá-lo, já que, provavelmente, Tom o abriu para que uma das viaturas que estava estacionada ali entrasse.
— Eu estou cansada disso! Cansada dele querendo nos impor medo! Cansada dessa farsa de que está tudo bem, não está! — troquei olhares com Dormian, percebendo que teríamos que contê-la imediatamente antes que ela jogasse alguma merda no ventilador. — Ele vem querendo me atingir há três meses! E ninguém faz porra nenhuma para impedi-lo! — agarrei-a por trás, tirando-a do chão enquanto ela esperneava. — Me solta!
— Leve-a para o quarto e, se for preciso, tranque-a lá dentro. Não a deixe sair por nada! — pedi, e Tom assentiu antes de praticamente arrastá-la com a ajuda de Javier.
parecia estar fora de si, uma louca gritando daquela maneira, vermelha em puro ódio e tendo que ser escoltada para longe. Porém, ela estava mais lúcida do que nunca, vinha guardando aquele surto dentro de si há muito tempo; arrisco a dizer que desde que fomos na delegacia fazer o boletim de ocorrência e ficou por isso mesmo.
Denunciar parecia não adiantar. Será que ter a casa invadida num condomínio caro como aquele e ter escapado de dois tiros bastava para irem atrás dele e prendê-lo? O cara tinha roubado um carro para jogá-la pra fora da pista e não tinha respondido por nenhum dos dois crimes.
— Vamos fechar só com seu depoimento então, senhor…
— . — apertei sua mão estendida.
Fiquei mais um tempo com ele ali, lhe fornecendo mais algumas informações antes de finalmente poder dispensá-lo e entrar em casa. Megan e o marido foram os primeiros a ir embora junto de Victoria. Agradeci-os pela ajuda, sabendo que talvez sozinho não conseguiria lidar com tudo aquilo. Por fim, só restou Tom na casa.
Respirei fundo e subi as escadas. O corredor estava silencioso, fazendo-me estranhar a calmaria. Nenhuma voz sequer era ouvida. Adentrei o quarto devagar, presenciando uma cena que me deixou… incomodado. Eu não sabia bem o motivo, só sentia que precisava interrompê-la e acabar com ela no momento em que coloquei meus olhos neles.
Tom estava quase deitado ao lado de na nossa cama. Minha esposa dormia encolhida num canto do colchão, coberta até os ombros, enquanto ele acariciava seus cabelos claros devagar, concentrado em seu rosto e perto demais dele. ressonava ao lado, no berço portátil. provavelmente preferiu montá-lo para deixá-la perto de nós.
Cocei a garganta, atraindo a atenção do médico, que se dispersou ao me ver parado diante da cama.
— Ah, você está aí. — Pois é, no meu quarto e dentro da minha casa. Quem diria, não? — Deu tudo certo com a polícia?
Esperei que ele saísse do meu lugar; porém. ele apenas se aprumou sobre o colchão, apoiando-se pelo cotovelo.
“Meu lugar”, escolha engraçada de palavras. De repente, descobri o motivo de estar tão incomodado. A ideia de ter outro cara fazendo meu papel naquele teatro me irritou profundamente. Seus olhos azuis foram até dormindo no berço, como se ele estivesse checando se não a acordou ao falar alto. Como se ele fosse a porra do pai dela.
Eu não gostava de ter ninguém querendo ocupar aquele lugar. Era meu. Eu era o pai de , era aquilo que tinha me deixado tão bravo. Queria arrancá-lo dali pelo colarinho e acabar com sua fantasia de contos de fadas, na qual com certeza envolvia ter como sua esposa e como fruto do amor dos dois.
Nossa, meu estômago chegou a revirar com aquele pensamento.
— Sim. Deu tudo certo — levei a mão à cintura, encarando-o sugestivamente. Não queria ter que ser rude. Eu sabia que Dormian me chamaria de mal-agradecido depois de toda a ajuda que ele tinha acabado de me dar. — Então, dormiu faz tempo?
— Faz um tempinho, já — ele a encarou carinhosamente, fazendo-me segurar um revirar de olhos. — Eu lhe dei um calmante, peguei um de Megan bem fraquinho. Preferi ficar aqui com ela para ver se não lhe faria mal.
Cocei o nariz, incomodado. Aham, claro, será que Tom deitava-se ao lado de todas as pacientes quando tinha medo dos efeitos adversos dos medicamentos? Comecei a me preocupar com o tipo de profissional que ele devia ser. Não era a primeira vez que o via usando sua profissão para ficar perto ou até mesmo dar em cima de . Aquilo me deixava puto, e não era por ciúme ou nada do tipo – era por saber que ele se aproveitava de situações em que estava preocupada com outras coisas; distraída o bastante para não notar ou levar a sério suas investidas.
— Bom, então acho que já pode ir. Qualquer coisa eu estarei aqui para ajudá-la — sorri forçadamente em sua direção. Tom se levantou, concordando em silêncio. — Muito obrigado, de qualquer forma.
Apesar da minha irritação, tinha que reconhecer seus feitos naquela noite. Ele realmente demonstrou se importar com . Porém, se eu tivesse a liberdade de escolher quem seria o homem com quem ela se casaria depois que nosso divórcio se concretizasse, ele com certeza não seria escolhido. Sequer seria uma opção, independente de realmente gostar ou não de – o que eu ainda tinha minhas dúvidas.
Ainda não tinha conhecido alguém que me deixasse tranquilo e quisesse tomar meu lugar naquela casa. Ninguém parecia ser bom o suficiente. Mas era inútil pensar naquilo; não me consultaria para tomar aquela decisão de qualquer forma.
— Eu tranco a porta e jogo a chave pela janela?
— Não precisa. Vou trancar a porta do quarto, não vai fazer diferença com a janela da cozinha estourada — falei e o loiro assentiu, saindo, mas não antes de dar uma última olhada em . Ele era estranho. Aquela coisa toda de ficar olhando outra pessoa dormir era esquisita pra mim. — Obrigado! — falei novamente, só para depois ele não vir com o papo de que eu não tinha o agradecido. Como sempre, Tom tinha uma carta na manga para me fazer parecer um monstro para .
Após trancar nós três ali, apaguei a luz e voltei a me deitar na cama, lembrando de pedir que Elizabeta trocasse os lençóis no dia seguinte. Entrei debaixo das cobertas e envolvi o corpo de , que se remexeu sobre o colchão e se aninhou ao meu, como se me reconhecesse pelo toque ou cheiro. Beijei sua testa e senti seu nariz gelado se encostar em meu pescoço. soltou um soluço remanescente, fazendo-me apertá-la em meus braços antes de fechar os olhos e finalmente poder cair no sono, após me certificar de que estávamos seguros outra vez.
Pelo menos por enquanto.
Apesar dos pesares, tive esperanças de que daquela vez poderíamos ter algo que fosse capaz de colocar Miguel de vez atrás das grades.
's point of view.
Despertei com o celular berrando sobre a cômoda. Era a segunda vez que o colocava no modo soneca para tentar ficar mais cinco minutos na cama. Não queria sair dali, descer aquelas escadas e chegar até aquela cozinha e comprovar, ao ver a janela quebrada, que tudo o que aconteceu foi real.
Sentei-me na cama sabendo que não poderia adiar mais, até porque, se ficasse cinco ou dez minutos a mais ali, chegaria atrasada no serviço. Me obriguei a me levantar e senti meu corpo todo dolorido. Chequei o berço portátil e vi ainda adormecida ali, provavelmente porque não dormiu direito noite passada. Se eu que era adulta já fiquei aterrorizada, imaginei como ela não estaria, pobrezinha.
Me arrumei rapidamente, colocando roupas básicas e calçando meus tênis de sempre. Desci e encontrei na porta da frente, dispensando duas senhoras que carregavam consigo alguns sacos escuros.
— Ah, você acordou, bom dia — ele forçou um sorriso, levando ambas as mãos aos bolsos da calça que vestia. Também já estava arrumado para sair. — Megan nos emprestou suas duas diaristas para poder limpar a bagunça de ontem — comentou, tentando amenizar as coisas; como se falasse de uma bagunça qualquer, como a de uma festa, por exemplo. — Tentei fazer um café da manhã de novo. Venha, deve estar com fome.
Caminhei calada até ele. Sabia que não seria um bom dia, por isso não queria lhe falar de volta – seria completamente da boca pra fora. Seu braço me envolveu num abraço ladino enquanto andávamos em direção à cozinha. me soltou e eu olhei curiosa para fora, onde só tinha restado o muro recém-lavado e nenhum rastro do que tinha acontecido.
— Os policiais o levaram — como se lesse meus pensamentos e soubesse o que eu procurava lá fora, explicou enquanto ia atrás de uma caneca no armário. — Vão fotografar para usar como prova, mas prometeram devolvê-lo logo.
— Eu quero enterrá-lo aqui, perto de mim — pisquei, sentindo meus olhos molhados prestes a transbordarem.
Não esperava que fosse perdê-lo daquela maneira. Tudo bem, com a mudança de casa e com a chegada de eu tinha me tornado uma tutora ruim, até o tinha perdido de vista recentemente. Mas preferia que Salém tivesse arranjado outra família enquanto fugia do que o fim que teve.
Era tudo culpa minha. Se eu não tivesse deixado aquela janela do corredor aberta, ele não teria fugido. Estava cuidando para mantê-lo seguro dentro de casa depois de Tom tê-lo encontrado, estava melhorando com os cuidados com ele. Salém estava até mais carinhoso, pedindo carinho, se aproximando de .
Até parecia saber que logo iria embora e queria se despedir.
— Onde você quiser — senti seu abraço me apertar e apenas deitei minha cabeça para trás, tendo seu peito como apoio. Suspirei, ainda inconformada. — Venha comer. Já coloquei seu café com leite, sei que você não gosta dele puro.
Ri fraco, secando meu rosto e virando-me para pegar a caneca que me foi estendida.
— Não estou com fome.
Por isso tinha dormido mais um pouco. Sabia que meu estômago não aceitaria muita coisa. Dei alguns goles e logo deixei a caneca de lado, encostando-me na pia sob o olhar dele. Como se me lembrasse que tudo podia piorar, a cólica me atingiu o abdômen, fazendo-me inclinar um pouco o corpo para esperar a dor aguda se dissipar.
— O que foi?
— Nada, é só um pouco de cólica, já vai passar — respirei fundo, fechando os olhos e mordendo o lábio para aguentar. Eu dificilmente tinha cólicas, mas acho que aquela tinha vindo por conta do estresse que tinha passado nos últimos dias, principalmente nas últimas horas.
— Onde está seu remédio? — indagou, já enchendo um copo de água.
— Segunda gaveta — apontei para o balcão.
Enquanto aguardava, pensei em algo que me lembrei ao ouvi-lo falar de remédio: meu anticoncepcional. Eu tinha parado de tomar logo que terminei meu último namoro de merda. Tinha tanto pavor de engravidar daquele ser que eu usava todos os métodos contraceptivos possíveis quando estava presa naquele relacionamento. Apesar de ter aproveitado bastante a vida de solteira ao lado de Tiffany, Anne e até mesmo Grace antes da descoberta da gravidez, optei por parar de tomar aquela bomba de hormônios, visto que não transava mais com a mesma frequência de antes.
E eu continuaria daquele jeito, se não tivesse me casado com a tentação em forma de gente. Digo, não precisaria me preocupar em engravidar se tivesse seguido o plano inicial: manter o máximo de distância do homem que eu mais odiava no mundo. Porém, as coisas mudaram, e mudaram muito, e agora eu precisava da segurança do anticoncepcional combinado ao preservativo para que a cegonha não viesse nos visitar.
Aquele susto em Tulum também tinha sido um estalo em minha cabeça para pensar sobre aquilo. Sabia que não conseguiria parar de transar com , e que os nove meses que tínhamos pela frente ainda estavam longe de acabar. O jeito era começar a tomar de novo.
— Obrigada — murmurei após me medicar, deixando o copo sobre a pia e suspirando audivelmente. Era só esperar fazer efeito.
— Onde dói? — ele franziu a testa ao me ver inclinar o corpo novamente.
Apontei para a região abaixo do umbigo, logo tendo suas mãos grandes sobre minha barriga, massageando devagar por baixo da blusa que eu usava. O calor de seu toque combinado aos movimentos suaves me deram um certo alívio nos primeiros minutos. Deitei minha cabeça em seu ombro, ainda recebendo aquele cuidado.
Lembrei-me de quando Salém era filhote e costumava empurrar minha barriga com suas patinhas, como se estivesse amassando uma massa de pão. Derramei algumas lágrimas ali, recebendo beijos castos em meu pescoço.
— Eu sabia que essa viagem iria acabar em gravidez! — se afastou ao ouvirmos a voz de Elisabeta. Assim que viu meu semblante triste, seu sorriso se desmanchou e ela veio até mim. — Ah, não é isso? Perdoem minha indiscrição.
— Tudo bem, não tem problema — sorri fraco. Realmente pareceria algo do tipo, com o jeito que estávamos quando ela chegou.
— O que houve, sra. ?
— Bom, ontem à noite alguém invadiu nossa casa, fez um estrago na janela e acabou… matando o nosso gato — expliquei sem graça, me esforçando para não chorar mais.
— Meu Deus, mas pegaram ele? Alguém se machucou?
— A polícia já está investigando — a tranquilizou, abraçando-a de lado. — Já liguei e eles vêm colocar outro vidro na janela hoje à tarde. Qualquer coisa, ligue, ouviu bem? — Elisabeta assentiu, olhando-nos ainda preocupada. — Está na hora de ir, . Pegue sua bolsa, sim?
Subi e, antes de ir, deixei um beijinho na bochecha de , rumando para a garagem junto de após dar algumas recomendações à babá. Apesar de duvidar muito que Miguel apareceria em casa enquanto não estivéssemos, ele queria nós dois.
O trajeto foi silencioso. Cada um de nós pensava nos problemas que nos tiraram a paz naqueles primeiros dias do ano. Tudo aquilo eram consequências do que já esperávamos enfrentar depois da decisão que tomamos.
Ter nos custou muito mais do que sacrifícios. Estava nos custando a paz que teríamos caso estivéssemos levando a vida que tínhamos antes de ela chegar ao mundo. estaria na empresa ainda sendo paparicado pelo pai, enquanto eu… Bom, eu estaria segura em meu kitnet em Enfield. Apesar de estar parecendo uma merda naqueles últimos dias, eu sabia que tudo valeria a pena quando tivéssemos a guarda definitiva de .
Só de poder tê-la todos os dias nos olhando com aqueles olhos verdes e brilhantes já estava valendo.
entrou em uma rua antes de prosseguir pelo restante da avenida onde a lanchonete era localizada. Franzi o cenho ao vê-lo diminuir a velocidade em frente a um jardim de um prédio qualquer. O que diabos fazíamos ali?
— Parei aqui para poder me despedir de você em paz — ele revirou os olhos, conseguindo arrancar um sorrisinho meu. Anne. Era melhor mesmo não arriscar ser pegos em flagrante por ela novamente. — Parece até que somos amantes — ele virou-se em minha direção enquanto eu brigava com o botão do cinto de segurança.
— Não seja dramático.
bufou como uma criança entediada.
— Não estou sendo dramático, . Olhe só! Agora eu não posso mais beijar minha esposa — ele riu, sarcástico. Não o acompanhei, apesar de compartilhar do mesmo pensamento. Aquele ciúmes de Anne era ridículo e sem sentido. — Da próxima vez que ela te falar algo, mande-a falar comigo — revirei os olhos com a implicância. Era óbvio que eu não faria aquilo. — Venha cá.
Me aproximei, selando seus lábios. aprofundou o beijo e me envolveu com seus braços, apesar de o cinto de segurança puxá-lo para trás sempre que ele avançava. Suspirei, finalizando o beijo com alguns selinhos enquanto ainda me mantinha próxima de seu rosto.
— Qualquer coisa estranha que acontecer, você me liga! — ele tirou meus cabelos do rosto, colocando-os atrás da orelha, e eu assenti, engolindo a seco. Depois de ontem, não ligava mais se fizesse uma besteira ou não caso colocasse as mãos em Miguel. Talvez eu mesma tentasse algo se o visse na minha frente. — Estou falando sério, , me prometa.
— Eu prometo — murmurei, após soltar um suspiro. Queria não ter que me despedir de ninguém com uma promessa daquelas, e sim com apenas um até logo.
voltou a dar partida, fazendo o retorno e voltando a entrar na avenida. Ele me deixou em frente à lanchonete, daquela vez com apenas um tchau de longe mesmo. Coincidentemente ou não, Anne estava atenta no vidro da porta quando desembarquei do veículo. Ela me acenou sorridente ao me ver caminhando em sua direção, provavelmente aliviada por não ter visto nada entre eu e . Será que ela não acreditou em mim da última vez?
Foi até bom Anne ter nos flagrado no dia anterior. Se ela inventasse de começar aquele drama de ontem, eu nem sabia o que minha boca falaria para ela. Provavelmente a verdade, já que meu cérebro estaria ocupado demais com tantos pensamentos sobre o que houve.
— E essa cara de quem não dormiu, hein?
Encarei Fanny pelo canto do olho, também não tendo paciência para suas piadinhas para irritar Anne.
— deu trabalho durante a noite?
Claro, Anne, porque esse seria o único motivo para eu não ter dormido bem à noite, não é mesmo?
— Quem me deu trabalho foi o seu ex — respondi e elas se entreolharam, provavelmente pelo meu tom de voz. Eu assumia que estava sendo rude, e que aquele não era o meu estado normal. Mas, naquele momento, preferia estar em qualquer lugar sozinha, menos ali. Queria minha casa e minha filha nos meus braços, ficar isolada do resto do mundo.
— Miguel? — ela franziu a testa. — O-O que ele fez? — seu rosto ficou pálido, e me senti mal por tê-la destratado daquela maneira. A culpa nem era dela, Anne só foi usada naquela história toda.
— Me desculpa, estou falando besteiras — levei as mãos ao rosto, controlando minha respiração e tentando normalizar meu coração, que batia forte em ódio só de falar daquele ser. — Miguel invadiu minha casa ontem a noite… e atirou em mim.
— O quê?
— Puta que pariu, !
Sequei as lágrimas que caíram, enquanto Anne checava se alguém tinha entrado no estabelecimento recém-aberto. Só estávamos no balcão tendo aquela conversa porque o Sr. Williams ainda não tinha chegado; caso contrário, só teria como contar para elas na hora de ir embora, já que nosso horário de almoço era individual por só ter nós três de funcionárias.
— Alguém se machucou?
— Nós estamos bem, mas ele acertou o Salém — balancei a cabeça nem querendo imaginar o que poderia ter acontecido se ele tivesse acertado mais alguém. Não tinha parado para pensar naquela possibilidade para tentar ficar mais tranquila. Se é que dava, depois da perda do meu gatinho. — Acertou a janela, estourou o vidro. No fim, eu apenas me arranhei um pouco no braço. Mas foi um susto muito grande, eu estava com no colo.
— Meu Deus, amiga, sinto muito pelo gatinho. Mas que bom que vocês duas estão bem. — Tiffany me abraçou, fazendo Anne se esticar e pegar minha mão do outro lado do balcão. Ela ainda estava calada, completamente sem graça com o que lhe falei antes, o que só me fez sentir mais culpada ainda.
— A polícia vai pegar ele e logo vamos poder viver em paz — falei, por fim. Dizem que temos que usar a lei da atração, não? Eu não sabia bem se acreditava nela, porém estava sem mais opções no momento. — E você, mocinha, tome cuidado. Se ele voltar a te procurar, se afaste.
— Não precisa se preocupar comigo, — a loira sorriu fraco, pegando minha mão e depositando um beijo no dorso dela. — Cuide-se e cuide de .
— não parece ser o alvo dele, não é?
— Eu não sei, não, Fanny — suspirei, vendo dois clientes adentrarem o estabelecimento. — Não consigo confiar nisso e ficar despreocupada, sabe? Miguel odeia tanto quanto eu.
— E você odeia os dois — Anne riu fraco, fazendo-nos acompanhá-la na risada.
Sequei o resquício de lágrimas em meus olhos, privando-me de ter que concordar com ela. Mas, no fim, nem precisei confirmar sua fala. Aparentemente, nenhuma das duas duvidava daquilo.
— Quanto ódio, meu pai — Fanny negou com a cabeça, conseguindo me fazer soltar outro risinho enquanto ia atender a mesa que havia acabado de ser ocupada.
Respirei fundo antes de me preparar para começar o trabalho naquele dia, que parecia que seria longo, assim como todos os que eu iniciava já querendo que acabasse. O movimento até que colaborou com meu estado: estava relativamente baixo, até mesmo nos horários em que normalmente enchia.
Saí para almoçar e quase não toquei na minha comida. Minha fome estava praticamente inexistente. Enquanto enrolava no celular, brincando com o que havia sobrado no prato, recebi uma mensagem que me deixou intrigada.
Tom:
“Está ocupada?”
Franzi o cenho e respondi que não, que estava no almoço, e esperei que ele me respondesse. Eu queria saber o porquê daquela pergunta, e Tom não estava me ajudando com minha curiosidade ao demorar tanto para me digitar o que queria comigo.
— , tem um cara aí atrás de você — o Sr. Williams me pegou de surpresa, fazendo-me dar um pulo de susto.
Tom:
“Desculpe pela visita inesperada, queria te ver.”
Arregalei os olhos e bloqueei o celular, ainda sob o olhar do velho de bigode.
— Ah, é o nosso vizinho lá do condomínio. Combinei com ele para conversarmos uma coisa… — levantei-me desajeitada, quase caindo da cadeira, nervosa por estar precisando inventar uma mentira de repente. — … S-Sobre a recepção do lugar. Vou lá falar com ele, obrigada.
Passei por Sr. Williams sentindo meu rosto queimar. Ele com certeza não tinha comprado aquela história. Em seguida, passei pela lanchonete procurando Tom pelas mesas, e fiquei aliviada quando me toquei que ele não tinha entrado. Levei as mãos aos cabelos amarrados num rabo, checando se estava tudo no lugar antes de sair sob os olhares curiosos das minhas amigas.
Quando avistei o loiro parado diante da fachada, suspirei ao imaginar o tanto de besteiras que meu chefe estaria pensando. Tom me abriu um de seus sorrisos matadores enquanto segurava uma caixinha branca com um lacinho. Pela tampa transparente, dava para ver um cupcake enorme e muito bem decorado.
— Espero que goste de chocolate, porque tem muito aqui dentro — ele me estendeu o presente, deixando-me ainda sem palavras.
— Ah, obrigada, eu estava mesmo precisando de algo doce.
Minha TPM agradecia.
Daquela vez, eu estava sendo estranhamente paparicada por homens: primeiro o remédio e a massagem de ; agora tinha Tom me alimentando com o que eu mais queria comer naqueles dias.
Ele sorriu satisfeito, ainda segurando minha mão, enquanto eu, sem graça, o esperava soltá-la. Quando vi que não soltaria, afastei-me com o presente em mãos, percebendo seu sorriso desmanchar aos poucos.
— Me desculpa, Tom. É que, você sabe, o teatro do casamento continua mesmo longe do — espiei por cima do meu ombro, vendo as duas idiotas no vidro encarando-nos descaradamente.
Tom não sabia que elas sabiam, porém ele não precisava saber daquilo. Que confusão! O mais importante de tudo era que o Sr. Williams não o visse se engraçar pro meu lado para não alimentar qualquer suspeita de traição.
Meu afastamento não era apenas pela mentira do casamento, mas também por conta do fato de eu já ter deixado claro para Tom que eu não me envolveria com ele enquanto ainda estivéssemos naquela disputa pela guarda de e ainda estivesse naquele acordo com . Aliás, agora que estávamos transando, não queria a dor de cabeça de ter Tom me cobrando algo. Ele e já implicavam um com o outro sem eu ter nada com Dormian, imagine se eu tivesse? A bagunça que não seria?
Mesmo que ele não ligasse para o fato de eu estar com – mesmo que casualmente –, o que eu mais precisava naquele momento era de um amigo, e não sabia se Tom se contentaria com tão pouco.
— Sou eu quem peço desculpas por ter vindo assim, sem avisar antes. É que eu precisava te ver, saber se você está bem — ele disse e eu assenti, quase lhe dizendo que ele já tinha me dito aquilo por mensagem. — Sei que poderia esperar para te visitar em casa, mas não gosta muito de me ver por lá, enfim… Não quero levar mais problemas pra você. Estava vindo numa clínica aqui perto e me lembrei que trabalha aqui, pelo uniforme.
— Muito obrigada pela preocupação, Tom — falei genuinamente. Apesar das brigas com , nem mesmo ele poderia negar que Dormian já tinha me ajudado mais vezes do que poderíamos contar. — Estou bem na medida do possível. Vou sentir saudades de Salém.
— Espero que tenha a mesma certeza que eu de que você foi melhor dona que ele poderia ter tido em uma das vidas felinas dele.
Ri fraco, com os olhos cheios de lágrimas. Ah, o mito das sete vidas… Se eu pudesse, seria a dona dele pelas outras seis vidas que lhe restaram, só para poder fazer tudo diferente e ter sido melhor pra ele.
Tive minhas falhas como tutora. Não devia tê-lo acostumado a sair de casa. O mundo lá fora era tão perigoso para animaizinhos como ele… Eu queria poder ter sido mais cuidadosa. Era o que Salém merecia. Apesar de ser desapegado e mal-humorado, aquele era apenas o seu jeitinho. No fundo, ele me amava tanto quanto eu o amava.
— Obrigada — comprimi os lábios, segurando a emoção. — Por ontem também. Aliás, se não tivesse me dado aquele remédio, acho que nem conseguiria voltar a dormir.
— Não foi nada. Cuidar de quem eu gosto não é um trabalho pra mim — falou, e eu assenti sem graça. Estava evitando olhar em seu rosto, que tinha um sorriso intacto, e seu olhar intenso sobre mim, sem sequer piscar. — Seu marido que não gostou muito, praticamente me expulsou do seu quarto — ele pronunciou a palavra “marido” com sarcasmo.
— é implicante assim mesmo, não entre na pilha dele.
Não que Tom não fosse também, não é?
— Não é uma implicância boba, . O nome disso é ciúme.
Gargalhei em sua cara, tentando conter minha risada por ver que tive uma reação exagerada. É que era muito engraçado ouvir uma coisa daquelas, de onde Tom tinha tirado aquilo?
— Ciúme do quê? — indaguei, ainda risonha.
— De você, oras — Tom respondeu, e eu neguei com a cabeça, discordando. — , ele não me deixa chegar perto de você. Só deixou ontem porque precisou da minha ajuda — ele estava jogando na cara? Fiquei calada, encarando-o. — Não acredita, não é? — neguei novamente, convicta. — Pois façamos um teste, saia pra jantar comigo e veja a reação dele.
— Se quer me chamar pra jantar, é só pedir. Não precisa usar como justificativa para fazê-lo — cruzei os braços, confusa.
— Então você topa jantar comigo? — seus olhos brilharam, esperançosos.
— Só jantar, como amigos — afirmei, e Tom revirou os olhos, fazendo-me rir ao ver um homem daquela idade fazer uma birra daquelas. Às vezes até me esquecia de que ele já tinha quarenta. — Não me leve a mal, Tom, mas não estou com cabeça pra pensar nessas coisas agora. Aliás, já conversamos sobre isso. Meu foco é , e será apenas ela até conseguirmos a guarda.
— Tudo bem, como amigos — ele se deu por vencido.
— Tenho que ir agora — falei, me apressando. Meu horário logo acabaria. — Podemos marcar outro dia, sim?
— Está bom, — ele se aproximou e ficou perigosamente perto do meu rosto, inclinando-se para me dar um beijo na bochecha. — Qualquer coisa, sabe que pode me ligar. Até mais.
Voltei para dentro e fui bombardeada pelos olhares das duas curiosas que serviam as mesas ocupadas na lanchonete. Não tive tempo nem de morder o cupcake – assim que o tirei da embalagem e me preparei para abocanhá-lo, lá vinham as duas quase correndo em minha direção.
— Quem é aquele monumento? — Tiffany fez uma cara de poucos amigos, e eu a encarei. Mesmo assim, ela não desfez o sorrisinho cheio de malícia dos lábios. — O deus grego deixou o Olimpo pra te ver e você nem nos apresenta pra ele?
Meu Deus.
— Aquele é Tom, meu vizinho — o tédio em minha voz foi proposital para espantá-las. Porém, elas não pareciam satisfeitas. — Não, eu não estou ficando com ele. Sim, ele quer ficar comigo. Não, eu não pretendo ficar com ele agora. Pelo menos não até que o processo com acabe.
— Como você consegue ser rodeada por dois gostosos e simplesmente resistir aos dois como se fosse nada?
Censurei Fanny com o olhar. Ela tinha que incluir naquele assunto? Fanny nem sabia da tentação contínua que era dividir o teto com aquele ser; se soubesse, teria dó de mim e não falaria como se fosse a oitava maravilha do mundo.
O mais engraçado de tudo era que eu não conseguia resistir a . Já tinha tentado e quebrado a cara depois de tanto negá-lo, porém, ao ter sua boca na minha e suas mãos em meu corpo, colando-me junto de si, ele vencia qualquer resistência minha. Já Tom… Bom, eu o resistia bravamente. Apesar de ter aproveitado o beijo que demos naquele dia, ele oferecia muitos riscos para o plano, além de estar se mostrando bem grudento e possessivo ultimamente.
— Sortuda do caralho — vendo as duas se mordendo diante de mim, comecei a rir. — Tem a opção de escolher qual dos dois beijar — Anne murmurou com o olhar longe, praticamente suspirando.
— Mesmo que com seja só de vez em quando e de mentira…
— Eu já beijei Tom — me sobressaí na fala de Tiffany, mudando o assunto que ia para de novo. Fanny e Anne soltaram gritinhos afetados, fazendo-me negar com a cabeça, reprovando o escândalo. — Mas apesar de ele ser maravilhoso, eu tenho que continuar resistindo.
— Maravilhoso e rico. Você viu o carrão dele? — Anne comentou, trocando olhares com a morena ao seu lado.
— Ele é médico, me socorreu quando sofri aquele acidente.
“Acidente”.
— Imagina ele só de jaleco e mais nada por baixo vindo te dar um atendimento especial.
Gargalhei ao ver o modo como Tiffany se alterou ao imaginar, provavelmente, a cena por conta própria. Que fogo era aquele, meu pai!
— Cheguei a me arrepiar aqui — ela mostrou o braço com os pelos eriçados.
— Vão trabalhar vocês duas. Cadê o Sr. Williams que não está vendo as bonitas aqui fazendo hora?
— Foi resolver algo com um fornecedor — Anne desdenhou.
— Vamos, amiga, deixa essa sortuda aproveitando o presentinho do pretendente dela. Espero que esteja tão gostoso quanto ele…
Revirei os olhos, ainda rindo.
— Quer um pedaço? — ofereci a Fanny, ainda gargalhando das baixarias que ela falava com um tom sexual.
— De Tom? Um pedaço só não, eu quero ele inteiro!
— Vamos logo, invejosa — Anne ria, puxando a morena para fora.
— Olha quem fala!
Não ouvi a discussão que começaram em tom de deboche, ambas já tinham saído do meu alcance. Neguei com a cabeça enquanto finalmente saboreava o cupcake. Elas riam porque não imaginavam o trabalho que aqueles dois me davam toda vez que ficavam juntos no mesmo ambiente, um sempre querendo avançar no outro. Lembrei-me do que Tom me disse, e aquilo só me atiçou a rir mais.
? Com ciúme de mim? Imaginei o que mais Dormian iria inventar do meu marido de mentira para tentar queimá-lo para mim.
's point of view.
Deixei o elevador e encontrei Jordyn já em seu posto, concentrada em sua digitação. Quase não me viu chegar. Quando o fez, desviou as atenções da tela para mim, sorrindo amarelo.
— Bom dia, Sr. — ela me cumprimentou e eu retribuí, sem ânimo para sorrir de volta. — Seu pai te aguarda em sua sala.
Assenti, entendendo seu comportamento receoso quando me viu.
— Obrigada, Jordyn — suspirei derrotado, querendo muito poder me dar ao luxo de dar meia-volta e ir embora pra minha casa. — Me deseje sorte — ri fraco, indo até minha porta e preparando-me para o que viria. Porque alguma coisa ele queria de mim para me esperar logo cedo na minha sala.
Desde que chegou, meu pai só trocou mais que algumas palavras comigo para brigar. Adentrei a sala e sentei-me calado na cadeira diante da mesa, que era ocupada por ele. Seus olhos claros me encararam, e eu apenas fiquei esperando o que sairia de sua boca daquela vez.
— O gato comeu sua língua, foi? Bom dia, .
Levei as mãos ao rosto, respirando fundo ao perceber a coincidência em sua fala. Ele parecia saber que tudo andava uma merda e estava se divertindo com aquilo, tirando uma com a minha cara. Aliás, saber não, ele devia ter certeza ao julgar pelo meu estado físico de quem não tinha uma boa noite de sono há dias.
— Problemas no paraíso, filho?
Minha vontade era de gritar com ele, perguntar o que ele queria de mim, afinal. Era a minha vida e eu escolhia o que deveria fazer com ela. Se ele aprovava ou não era um problema exclusivamente dele. Eu não tinha lhe pedido opiniões, e já tinha vinte e quatro anos nas costas.
— Achou que se casar seria moleza? — debochou, rindo, fazendo meu sangue ferver.
— E o que o senhor sabe disso, hein, pai? — disparei, levantando o rosto e encarando sua cara fechada.
A única coisa que eu queria naquele dia era ter meu pai ali, como sempre esteve, para me ajudar a resolver meus problemas. Queria poder lhe contar o inferno que passei em casa, lhe pedir conselhos sobre o que fazer, desabafar sobre como eu me senti um fraco ao ter e ameaçadas dentro da minha própria casa e não ter conseguido fazer nada para impedir que tentassem machucá-las.
Era engraçado perceber que ele tinha sido uma mera ilusão em minha vida. Naquele momento, eu pude ver. Ele não estava me ajudando com meus problemas no passado, pelo contrário. Eu sempre recorri a ele porque sabia que meu pai sempre faria de tudo para encobrir meus erros. Aquilo não era ajuda. Ele não me ensinava o certo a se fazer. Meu pai não se preocupava genuinamente, ele apenas vivia de aparências e levava o resto da família a também viver daquele jeito.
Eu estava há três meses num casamento de mentira que me fazia sentir mais livre e verdadeiro do que jamais pude ser enquanto vivia sob o teto dos meus pais.
— Você nunca ligou pra minha mãe ou para seus filhos de verdade. Nós sempre fomos um segundo plano na sua vida, éramos meros enfeites para que o senhor exibisse nos jantares de negócios para passar a imagem de um homem de família.
E pensar que eu estava prestes a ser obrigado a fazer o mesmo ao ir naquele evento de merda, levando para exibi-la em meio àqueles empresários nojentos.
— Você não nos criou, e seus presentes e jóias para mamãe com certeza não devem ter suprido sua ausência para ela.
— Só porque está brincando de casinha com aquela garota, está se achando maduro. Você não passa de um moleque, não sabe nada da vida para vir me julgar!
— Não estou brincando de casinha com ninguém. Elas são a minha prioridade. Ao contrário de você, eu sou um bom pai e um bom marido.
— Um bom pai — riu em escárnio. Eu parecia um humorista, o fazendo rir com algumas palavras que ele encarava como piadas. — Aquela criança não é sua filha.
— Sobrinha, filha, não importa! tem o meu sangue correndo pelas veias. O nosso, aliás — falei e ele se enfezou, levantando-se da cadeira num piscar de olhos. — Não olhou para o rostinho dela? Vai me dizer que ela não te lembrou sua filha.
Ele não seria louco de negar, nem que fosse com despeito. Teria que assumir que eu estava certo.
— Não me lembro do rosto dela, sequer olhei pra ela direito — andou incomodado em direção à porta.
— Eu tenho fotos aqui, se quiser relembrar — provoquei, pegando o celular do bolso.
Era óbvio que era mentira. Ele olhou sim para a neta, por tempo demais até!
— Não quero nada com essa criança, achei que estivesse claro — sua frieza me fez revirar o estômago, ao vê-lo desdenhar de novamente.
Mas também a culpa era minha. Insistir naquilo era um caso perdido. Ele quem tinha começado as provocações e eu caí na pilha, enfurecendo-me por algo que eu mesmo já sabia que não valia a pena discutir.
tinha razão. Criaríamos tão bem, rodeada de tanto amor, que ela não precisaria mendigar o dele nem o de minha mãe. Nós ficaríamos muito bem sem eles.
— O que veio fazer aqui, afinal? — questionei, e ele me olhou como se eu fosse um idiota. A empresa era dele, não era uma anormalidade vê-lo por ali. Eu esperava que ele fosse embora logo, inclusive.
— Vim revisar alguns relatórios. Estou organizando tudo para entregar a Beatrice tudo o que ela precisar saber da empresa e das finanças.
— Quem?
— Beatrice Thorpe. Estou arrumando a bagunça desse lugar para tentar não causar uma má impressão.
Revirei os olhos. Quem se importaria com o que aquela lá achava ou não? Nem experiência direito ela tinha! Como teria critérios para reprovar minha administração?
Respirei aliviado ao observá-lo sair e me deixar finalmente sozinho. Joguei-me na cadeira e reparei o porta-retrato caído em cima da mesa. Levantei-o de volta, percebendo que não tinha sido por um acidente – meu pai mal suportava olhar o rosto da própria neta.
(...)
Manobrei o carro e saí do estacionamento do prédio, pronto para ir para casa e deitar um pouco antes de ir buscar . Acenei para o funcionário da portaria, entrando atrás de um dos carros que formava o pequeno fluxo do trânsito usual naquele horário. Olhei distraído pelo para-brisa, cruzando meu olhar com a figura conhecida na calçada. Ela sorriu instantaneamente, feliz ao me ver. Fiz sinal para que ela viesse até mim e Dafne o fez, equilibrando-se em cima de seu salto alto.
— Olhe só quem apareceu! — ela se aproximou, e ri fraco ao encarar seu rosto na janela. Peguei sua mão estendida para mim enquanto ela se apoiava na porta, ainda do lado de fora. — Como estão as coisas?
Fazia tempo que não nos falávamos – desde Tulum, se não me engano. Tinha acontecido tanta coisa desde que chegamos em casa que não tive tempo de contatá-la, e ela também deveria estar ocupada com o fim da faculdade e o trabalho.
As coisas estavam péssimas. Eu sentia falta de conversar com ela. Cheguei a desabafar um pouco com , mas com existiam algumas coisas que eu não sabia se conseguiria falar abertamente. Era tão mais fácil falar sobre tudo com uma “desconhecida”, alguém que não fazia parte integralmente da minha vida.
Meu relacionamento com tinha melhorado a ponto de nos considerarmos amigos; porém, o nosso envolvimento além daquilo me deixava travado sobre o que sentir ou pensar, e eu não dividiria minhas dúvidas e o que eu sentia justo com a própria causadora das minhas confusões, né?
De qualquer forma, não era preciso falar com sobre nada daquilo. Eram coisas passageiras e sem importância.
— Está livre agora? Eu realmente preciso conversar com alguém — perguntei, e Dafne sorriu docemente. Ela assentiu, já levando a mão até a porta, que destravei para permitir sua entrada no veículo.
Seguimos para um café, um parque, sei lá, algum lugar tranquilo para que eu pudesse começar a lhe contar o monólogo sobre minha vida e a bagunça dos acontecimentos caóticos que sucederam nosso encontro inesperado.
Ainda completamente pasmo, andei com amedrontada em meus braços até o sofá, onde me sentei com seu corpo trêmulo ainda em cima de mim. Eu estava literalmente sem palavras. Só não estava imóvel e recluso num canto tentando digerir o que acabou de acontecer ali porque sabia que tinha que tomar as rédeas da situação. Elas precisavam de mim, estavam mil vezes mais assustadas do que eu, estavam frágeis. Ainda agarrada a mim, não parava de soluçar, enquanto o choro estridente de no colo de Megan me doía o coração.
Apesar do meu estado emocional, eu não poderia dizer que estava surpreso. Afinal de contas, sempre alertei do que Miguel era capaz, e sabia que logo ele tentaria contra a vida dela. Aquela não era a primeira vez que o fazia, e algo me dizia que não seria a última. Apertei contra meu peito com os olhos meio arregalados, pasmo, pensando quais poderiam ser os próximos passos daquele desgraçado. Ele já tinha lhe dado um golpe na cabeça, jogou-a longe com um carro, e agora aquele filho da puta tinha tentado atirar nela com minha filha nos braços!
O que ele queria afinal? Era só dinheiro? Ele não entendia que lhe dar dinheiro significaria reduzir a uma simples mercadoria? Nós não iríamos pagar para tê-la conosco; aquele era o lugar dela, junto com os pais. Conseguiríamos sua guarda por meios legais, e não derramando sangue ou por meio de chantagem como Miguel estava tentando fazer.
Eu disse para me ligar quando o encontrasse em algum lugar, suspeitasse que estava sendo seguida ou qualquer outra anormalidade que encontrasse por aí enquanto estávamos longe um do outro. Mas, após sermos surpreendidos na nossa própria casa, vi, já morto de preocupação, que tudo aquilo era inútil. Miguel só pararia se fosse preso ou morto, e apesar de querer – sem o mínimo resquício de remorso –, que ele fosse para o inferno e morresse logo, a cadeia parecia ser nossa única opção.
Ver que ele de alguma forma conseguiu furar o esquema de segurança do condomínio e pisar no nosso gramado tranquilamente me deixou puto da vida. Miguel agia como se estivesse acima da lei, e pelo visto estava, já que nunca o pegavam e nem chegavam perto de fazê-lo! voltaria a se amedrontar, igual estava antes da nossa viagem para Tulum, e eu ficaria ainda mais paranóico, a ponto de não deixá-la pisar os pés para fora de casa sozinha, ou até mesmo proibir Elisabeta de ir ao parque com a bebê.
Não merecíamos aquela vida, não devíamos nada a ninguém; quem devia estar com medo de colocar a cara na rua era aquele criminoso desgraçado. Se eu colocasse minhas mãos nele… Acho que não responderia por mim. Só não seria covarde como ele era. Eu o enfrentaria pela frente e não precisaria da ajuda de ninguém para fazê-lo, muito menos de armas ou de um carro.
soluçava, ainda com a cabeça enterrada em meu pescoço. Ainda se tremia toda, tossia, engasgando-se no próprio choro por conta do nível de seu desespero. E pensar que se ele tivesse conseguido o que queria, poderíamos estar indo rumo a um hospital uma hora daquelas...
— Está machucada? — sei que já tinha perguntado aquilo; aliás, foi minha primeira pergunta quando tudo aconteceu.
Só Deus sabe o tanto de merda que se passou pela minha cabeça quando ouvi aquele barulho todo, olhei pro lado e me vi sozinho na cama. O choro de e seus os gritos dela, chamando o meu nome em desespero.
negou com a cabeça, porém, mesmo assim a inspecionei, vendo apenas um arranhão em seu braço, provavelmente por conta dos cacos da janela. Passei a mão no local, tentando aquecê-la, já que estava frio e tinha os pelos eriçados por estar com um pijama sem mangas.
— F-Foi ele, eu sei que f-o-i ele — sua voz entrecortada e chorosa repetiu aquela mesma frase várias vezes.
O ódio me consumia aos poucos ao ver o estado caótico em que se encontrava. Vi o casal se entreolhar numa comunicação silenciosa e tratei de tentar silenciá-la. Quanto menos pessoas soubessem de Miguel, melhor seria.
— Eu sei — murmurei em seu ouvido, ainda afagando-lhe o braço. Seu coração batia desenfreado. Levei uma de minhas mãos a seu peito, que subia e descia frenético por conta dos soluços, e pude senti-lo quase saindo pela boca. — Você precisa se acalmar, . Por favor, se acalme. Ele já foi, não se preocupe com isso. Vamos resolver isso, eu prometo que vou proteger vocês — segurei seu rosto, tentando fazê-la me olhar nos olhos para tentar lhe passar alguma credibilidade.
Queria que ela acreditasse em mim, porém, naquele momento, nem eu mesmo conseguia fazer aquilo. Eu não podia falhar daquela vez. Já tinha perdido Grace para aquele inferno, não aceitaria perder ou !
— Achei que tivesse sido um assalto. Vocês conhecem o invasor? — Megan indagou, ainda balançando a bebê nos braços. estava mais calma assim como a mãe, que, apesar de transtornada, passou a respirar mais devagar e tentar conter o choro.
— Não foi um assalto, eu chequei tudo lá fora. O carro de vocês está intacto. Se ele quisesse roubar, teria ao menos tentado levá-lo.
— Não o conhecemos — menti, sentindo se agarrar a mim. — se referia ao gênero da pessoa. Eu também o vi e concordo, acho que era um homem. Não entendo como conseguiu passar pela portaria, dias atrás meu pai também entrou sem ser anunciado. Vou procurar os responsáveis por isso.
— Verdade! Eu não tinha pensado nisso — Megan arregalou os olhos, impressionada. — Temos que tomar cuidado, querido, vai que invadem a nossa casa também?
Quase tentei tranquilizá-la falando que ela não era o alvo de ninguém. Porém, para manter a identidade de Miguel em segredo, não poderia fazê-lo. Megan ficaria tão paranóica quanto nós a partir daquela noite.
— , o que houve? Está tudo bem? — Tom passou pela porta, pálido, praticamente correndo até nós no sofá. — Ouvi os tiros, liguei para a polícia e me informaram que já ligaram e eles estão a caminho.
Eu até tinha me esquecido daquele detalhe. Mas pra quê, não é mesmo? A última vez que recorremos à polícia, Miguel saiu ileso não só de ter atacado , mas também de ter roubado um carro.
Ouvimos as sirenes se aproximarem, e logo as luzes vermelhas invadiram a casa por conta da porta da frente estar aberta.
— Acho melhor você falar com eles. tem que ficar aqui dentro, ainda está assustada — pela primeira vez na vida concordei com Tom, preparando-me para levantar e deixar no sofá.
— Está tudo bem por aqui? — Victoria entrou às pressas, assim como Dormian tinha feito anteriormente. — Os policiais querem falar com os proprietários da casa — ela apontou para fora, ainda nos analisando.
— É, eu sei, vou lá falar com eles — me desvencilhei da loira no sofá e fiz menção em levantar.
— N-Não, onde você vai? Fica aqui comigo! — suas mãos pregaram em minha camiseta, puxando-me para si.
— , está tudo bem, nós vamos ficar aqui com você — Javier se aproximou do sofá, sorrindo amável para ela. pareceu não se importar com aquilo, porém me soltou quando me virei ao seu encontro.
— Eu já venho, prometo que fico com você — peguei seu rosto molhado e tentei secá-lo, antes de desistir ao ver que ainda escorriam lágrimas de seus olhos tempestuosos. Beijei sua boca rapidamente e, antes de ir, depositei outro em sua testa. — Victoria, vá lá em cima e pegue uma manta para cobri-la, por favor?
Ela fez o que lhe pedi de imediato, subindo as escadas enquanto eu me separava de , ainda sob os olhares do restante na sala. Era engraçado que precisávamos fingir cada vez menos na frente deles. Era nossa primeira “reunião” depois das nossas férias, que foi um verdadeiro divisor de águas em nossa relação. Voltamos de Tulum mais próximos, embora o cuidado mútuo já tivesse sido estabelecido antes mesmo de pensarmos em viajar.
— Cuide dela, por favor. Tente fazê-la tomar uma água e se aquecer — o loiro me ouviu atentamente, concordando com a cabeça quando foi ao lado dela tomar meu lugar no sofá.
Apesar de ser algo completamente contra minha vontade, eu sabia que teria que cooperar com Tom naquele momento, principalmente para não arranjar mais confusão naquela noite. Ignorei o jeito como ele a abraçou, deitando sua cabeça no próprio ombro e beijando o topo de sua cabeça. Cheguei a me preocupar com o que os outros iriam pensar ao vê-lo tão próximo de ; porém, continuei meus passos em direção à porta. Afinal, não tinha tempo para perder com aquilo, e imaginava que ninguém seria tão maldoso a ponto de especular nada numa situação como aquela.
— O senhor é o dono da casa? — assenti à pergunta do policial, levando as mãos à cintura. — Recebemos diversos chamados. Seus vizinhos relataram ter ouvido dois disparos seguidos de gritos, pode me dizer o que aconteceu?
Encarei o homem fardado à minha frente e soltei um suspiro, olhando em volta. Havia duas viaturas e alguns curiosos de pijamas parados do outro lado da rua. Estava ganhando tempo; tempo para raciocinar o que tinha acabado de acontecer, porque, para falar a verdade, nem em palavras eu estava sabendo explicar. Ainda parecia-se com um pesadelo. O sentimento que predominava em mim era puro ódio.
— Eu acordei com minha esposa gritando após atirarem contra ela do lado de fora da casa — apontei para a parte de trás do jardim, ainda desorientado. — tinha se levantado para fazer a mamadeira da nossa filha, e aquele filho da puta simplesmente a atacou! Não foi a primeira vez, e se depender da incompetência de vocês, não será a última.
O policial ofegou, ultrajado, encarando-me com as sobrancelhas arqueadas.
Eu sabia que poderia me foder por desacato, mas, naquele momento, eu estava puto da vida, cansado de toda aquela palhaçada. Apanhar cansava, e era aquilo que vinha acontecendo nos três meses em que decidimos adotar : apanhamos de Miguel e, em todas as vezes, saímos perdendo enquanto ele continuou impune.
— O senhor sabe quem foi o autor dos disparos?
— Sei. Miguel Rodriguez é o nome do desgraçado. Ele já invadiu a antiga casa de , lhe deu uma pancada na cabeça e já até quase a matou uma vez, jogando o carro em cima dela aqui perto. Eu quero uma medida protetiva para minha mulher hoje mesmo, porque não quero esperar até que ela apareça morta para fazer alguma coisa, o senhor me entendeu?
Queria a medida protetora para porque eu sabia que era Miguel quem precisaria de uma contra mim, caso algum dia nos cruzássemos por aí.
— é sua esposa?
Respirei fundo, vendo que, de tudo o que lhe relatei, ele não tinha retido nenhuma informação além do nome dela.
— Sim, é minha esposa — murmurei, impaciente.
— Temos que falar com ela, já que, pelo visto, foi a única que viu o suspeito.
— Eu também o vi. Quando desci, consegui vê-lo pular o muro e fugir.
Esperava que só minha descrição valesse de algo, pelo menos por hora. Talvez conseguisse um tempo a mais para falar o que viu depois, quando estivesse mais calma.
— Onde o senhor disse que o viu? Pode me mostrar e descrevê-lo para mim?
Assenti em silêncio, caminhando pela grama verde até os fundos da casa. Alguns policias já estavam no local, parados e agrupados num canto. Aquilo chamou a atenção do homem que falava comigo, e rumamos até eles para ver o que acharam de esquisito por lá.
Assim que se dispersaram para nos dar licença, levei a mão ao rosto, engolindo a seco e desviando meu olhar daquela cena.
— Puta que pariu — praguejei contra minha própria mão, voltando a olhar para o que estava no chão.
— Era de vocês?
— Era da minha esposa — assenti, comprimindo os lábios e contorcendo-me numa agonia desesperadora. Salém estava ali, com um tiro na cabeça próximo a orelha, claramente morto. — Merda — agachei próximo a ele, sentindo os olhos marejarem. Eu obviamente nem ligava muito pro gato; já cruzei com ele em casa algumas vezes, lhe fiz carinho e coloquei comida. Ele não curtia muito interações com humanos, nem mesmo com a própria . Vivia sumido por aí. Lembrava-me que ele até tinha passado um tempo desaparecido, abrigado na casa de Tom.
Lembrei-me do que Dormiam tinha falado há pouco sobre não poder sair para falar com os policiais – provavelmente já tinha visto o gato caído lá fora. Comecei a pensar em como contaríamos aquilo para ela.
— E então… — vi que ele falava comigo e me levantei, secando o canto dos olhos ao me virar em direção à casa.
— Ele estava mais ou menos aqui quando cheguei. Ficou parado por um tempo, olhando para dentro depois de estourar a janela. Só correu quando me viu. Olhe, tem marcas de sapato na parede que ele escalou para fugir — apontei para as poucas manchas impressas no muro claro de casa. — Ele é alto, usa barba, cabelo raspado, tem olhos escuros e sobrancelhas cheias. Deve morar em Enfield ou nas proximidades, naquela região. Estava de capuz no rosto e vestia roupas pretas.
— Acha que ele estava te esperando?
— Tenho certeza disso — disse, sem sequer pestanejar. Aquele era Miguel, um covarde de merda. — Nós estamos numa briga pela guarda da minha filha. Ele é o pai biológico, perseguiu minha irmã até fazê-la desenvolver estresse, o que prejudicou sua gravidez. Grace morreu no parto, e agora ele está nos infernizando atrás de dinheiro para desistir da guarda de .
— Vou colocar meu pessoal atrás dele — o policial conferiu a descrição que anotou. — Olha, eu realmente preciso falar com sua esposa. Sei que ela está assustada, porém, preciso do depoimento dela.
— Não podemos deixar isso para depois? El…
— É ela vindo ali?
Me virei e a encontrei caminhando rapidamente em nossa direção, com a manta sobre os ombros e aparentemente mais calma. Fugia de Tom em sua mais acentuada teimosia, já que, provavelmente, percebeu o medo dele de que ela saísse para fora e visse o que nós mais temíamos que encontrasse: Salém morto.
Fui imediatamente até ela, tentando frear sua ida até o local. Segurei-a firmemente, mandando-a voltar para dentro.
— Eu estou bem, , me deixe falar com o policial. O que diabos tem aqui fora que ninguém quer me deixar sair? — ela tentou espiar por cima de meus ombros, enquanto eu tentava contê-la e levá-la para o lado contrário. — , me solta, eu quero… — parei o que estava fazendo ao reparar em seu olhar fixo no chão próximo de nós.
Suspirei, ainda segurando-a pelos braços. demorou algum tempo para assimilar o que viu, logo soltando mais um de seus soluços naquela noite terrível e interminável.
— É ele, não é? — sua voz saiu embargada.
— Eu sinto muito, — encarei seus olhos azuis e os assisti transbordarem. Só tive tempo de abraçá-la com força antes de senti-la esbravejar contra meu peito, cerrando ambas as mãos em pura revolta. Continuei a segurá-la, com medo de que ela fosse ao chão e se machucasse; porém, estava quase incontrolável.
— Mas que porra! O que mais esse filho da puta quer de nós? Já não está bom tudo o que ele nos fez até agora? Ele já não está satisfeito com a morte de Grace? Se aquele desgraçado está achando que vai levar minha filha, está muito enganado. Eu mato ele primeiro! Eu juro que mato ele!
Tom tentou segurá-la – talvez levá-la, nem que fosse arrastada para dentro –, porém, batia em quem quer que fosse tentar contê-la. Até eu levei alguns tapas por estar tentando mantê-la segura. Os vizinhos assistiam àquilo assustados, porém, ao mesmo tempo, se entretiam com o sofrimento alheio. O que mais os levaria a ficar naquele frio, de pijamas, em frente à minha casa se não fosse por diversão?
Victoria correu até o portão e apertou o dispositivo para fechá-lo, já que, provavelmente, Tom o abriu para que uma das viaturas que estava estacionada ali entrasse.
— Eu estou cansada disso! Cansada dele querendo nos impor medo! Cansada dessa farsa de que está tudo bem, não está! — troquei olhares com Dormian, percebendo que teríamos que contê-la imediatamente antes que ela jogasse alguma merda no ventilador. — Ele vem querendo me atingir há três meses! E ninguém faz porra nenhuma para impedi-lo! — agarrei-a por trás, tirando-a do chão enquanto ela esperneava. — Me solta!
— Leve-a para o quarto e, se for preciso, tranque-a lá dentro. Não a deixe sair por nada! — pedi, e Tom assentiu antes de praticamente arrastá-la com a ajuda de Javier.
parecia estar fora de si, uma louca gritando daquela maneira, vermelha em puro ódio e tendo que ser escoltada para longe. Porém, ela estava mais lúcida do que nunca, vinha guardando aquele surto dentro de si há muito tempo; arrisco a dizer que desde que fomos na delegacia fazer o boletim de ocorrência e ficou por isso mesmo.
Denunciar parecia não adiantar. Será que ter a casa invadida num condomínio caro como aquele e ter escapado de dois tiros bastava para irem atrás dele e prendê-lo? O cara tinha roubado um carro para jogá-la pra fora da pista e não tinha respondido por nenhum dos dois crimes.
— Vamos fechar só com seu depoimento então, senhor…
— . — apertei sua mão estendida.
Fiquei mais um tempo com ele ali, lhe fornecendo mais algumas informações antes de finalmente poder dispensá-lo e entrar em casa. Megan e o marido foram os primeiros a ir embora junto de Victoria. Agradeci-os pela ajuda, sabendo que talvez sozinho não conseguiria lidar com tudo aquilo. Por fim, só restou Tom na casa.
Respirei fundo e subi as escadas. O corredor estava silencioso, fazendo-me estranhar a calmaria. Nenhuma voz sequer era ouvida. Adentrei o quarto devagar, presenciando uma cena que me deixou… incomodado. Eu não sabia bem o motivo, só sentia que precisava interrompê-la e acabar com ela no momento em que coloquei meus olhos neles.
Tom estava quase deitado ao lado de na nossa cama. Minha esposa dormia encolhida num canto do colchão, coberta até os ombros, enquanto ele acariciava seus cabelos claros devagar, concentrado em seu rosto e perto demais dele. ressonava ao lado, no berço portátil. provavelmente preferiu montá-lo para deixá-la perto de nós.
Cocei a garganta, atraindo a atenção do médico, que se dispersou ao me ver parado diante da cama.
— Ah, você está aí. — Pois é, no meu quarto e dentro da minha casa. Quem diria, não? — Deu tudo certo com a polícia?
Esperei que ele saísse do meu lugar; porém. ele apenas se aprumou sobre o colchão, apoiando-se pelo cotovelo.
“Meu lugar”, escolha engraçada de palavras. De repente, descobri o motivo de estar tão incomodado. A ideia de ter outro cara fazendo meu papel naquele teatro me irritou profundamente. Seus olhos azuis foram até dormindo no berço, como se ele estivesse checando se não a acordou ao falar alto. Como se ele fosse a porra do pai dela.
Eu não gostava de ter ninguém querendo ocupar aquele lugar. Era meu. Eu era o pai de , era aquilo que tinha me deixado tão bravo. Queria arrancá-lo dali pelo colarinho e acabar com sua fantasia de contos de fadas, na qual com certeza envolvia ter como sua esposa e como fruto do amor dos dois.
Nossa, meu estômago chegou a revirar com aquele pensamento.
— Sim. Deu tudo certo — levei a mão à cintura, encarando-o sugestivamente. Não queria ter que ser rude. Eu sabia que Dormian me chamaria de mal-agradecido depois de toda a ajuda que ele tinha acabado de me dar. — Então, dormiu faz tempo?
— Faz um tempinho, já — ele a encarou carinhosamente, fazendo-me segurar um revirar de olhos. — Eu lhe dei um calmante, peguei um de Megan bem fraquinho. Preferi ficar aqui com ela para ver se não lhe faria mal.
Cocei o nariz, incomodado. Aham, claro, será que Tom deitava-se ao lado de todas as pacientes quando tinha medo dos efeitos adversos dos medicamentos? Comecei a me preocupar com o tipo de profissional que ele devia ser. Não era a primeira vez que o via usando sua profissão para ficar perto ou até mesmo dar em cima de . Aquilo me deixava puto, e não era por ciúme ou nada do tipo – era por saber que ele se aproveitava de situações em que estava preocupada com outras coisas; distraída o bastante para não notar ou levar a sério suas investidas.
— Bom, então acho que já pode ir. Qualquer coisa eu estarei aqui para ajudá-la — sorri forçadamente em sua direção. Tom se levantou, concordando em silêncio. — Muito obrigado, de qualquer forma.
Apesar da minha irritação, tinha que reconhecer seus feitos naquela noite. Ele realmente demonstrou se importar com . Porém, se eu tivesse a liberdade de escolher quem seria o homem com quem ela se casaria depois que nosso divórcio se concretizasse, ele com certeza não seria escolhido. Sequer seria uma opção, independente de realmente gostar ou não de – o que eu ainda tinha minhas dúvidas.
Ainda não tinha conhecido alguém que me deixasse tranquilo e quisesse tomar meu lugar naquela casa. Ninguém parecia ser bom o suficiente. Mas era inútil pensar naquilo; não me consultaria para tomar aquela decisão de qualquer forma.
— Eu tranco a porta e jogo a chave pela janela?
— Não precisa. Vou trancar a porta do quarto, não vai fazer diferença com a janela da cozinha estourada — falei e o loiro assentiu, saindo, mas não antes de dar uma última olhada em . Ele era estranho. Aquela coisa toda de ficar olhando outra pessoa dormir era esquisita pra mim. — Obrigado! — falei novamente, só para depois ele não vir com o papo de que eu não tinha o agradecido. Como sempre, Tom tinha uma carta na manga para me fazer parecer um monstro para .
Após trancar nós três ali, apaguei a luz e voltei a me deitar na cama, lembrando de pedir que Elizabeta trocasse os lençóis no dia seguinte. Entrei debaixo das cobertas e envolvi o corpo de , que se remexeu sobre o colchão e se aninhou ao meu, como se me reconhecesse pelo toque ou cheiro. Beijei sua testa e senti seu nariz gelado se encostar em meu pescoço. soltou um soluço remanescente, fazendo-me apertá-la em meus braços antes de fechar os olhos e finalmente poder cair no sono, após me certificar de que estávamos seguros outra vez.
Pelo menos por enquanto.
Apesar dos pesares, tive esperanças de que daquela vez poderíamos ter algo que fosse capaz de colocar Miguel de vez atrás das grades.
's point of view.
Despertei com o celular berrando sobre a cômoda. Era a segunda vez que o colocava no modo soneca para tentar ficar mais cinco minutos na cama. Não queria sair dali, descer aquelas escadas e chegar até aquela cozinha e comprovar, ao ver a janela quebrada, que tudo o que aconteceu foi real.
Sentei-me na cama sabendo que não poderia adiar mais, até porque, se ficasse cinco ou dez minutos a mais ali, chegaria atrasada no serviço. Me obriguei a me levantar e senti meu corpo todo dolorido. Chequei o berço portátil e vi ainda adormecida ali, provavelmente porque não dormiu direito noite passada. Se eu que era adulta já fiquei aterrorizada, imaginei como ela não estaria, pobrezinha.
Me arrumei rapidamente, colocando roupas básicas e calçando meus tênis de sempre. Desci e encontrei na porta da frente, dispensando duas senhoras que carregavam consigo alguns sacos escuros.
— Ah, você acordou, bom dia — ele forçou um sorriso, levando ambas as mãos aos bolsos da calça que vestia. Também já estava arrumado para sair. — Megan nos emprestou suas duas diaristas para poder limpar a bagunça de ontem — comentou, tentando amenizar as coisas; como se falasse de uma bagunça qualquer, como a de uma festa, por exemplo. — Tentei fazer um café da manhã de novo. Venha, deve estar com fome.
Caminhei calada até ele. Sabia que não seria um bom dia, por isso não queria lhe falar de volta – seria completamente da boca pra fora. Seu braço me envolveu num abraço ladino enquanto andávamos em direção à cozinha. me soltou e eu olhei curiosa para fora, onde só tinha restado o muro recém-lavado e nenhum rastro do que tinha acontecido.
— Os policiais o levaram — como se lesse meus pensamentos e soubesse o que eu procurava lá fora, explicou enquanto ia atrás de uma caneca no armário. — Vão fotografar para usar como prova, mas prometeram devolvê-lo logo.
— Eu quero enterrá-lo aqui, perto de mim — pisquei, sentindo meus olhos molhados prestes a transbordarem.
Não esperava que fosse perdê-lo daquela maneira. Tudo bem, com a mudança de casa e com a chegada de eu tinha me tornado uma tutora ruim, até o tinha perdido de vista recentemente. Mas preferia que Salém tivesse arranjado outra família enquanto fugia do que o fim que teve.
Era tudo culpa minha. Se eu não tivesse deixado aquela janela do corredor aberta, ele não teria fugido. Estava cuidando para mantê-lo seguro dentro de casa depois de Tom tê-lo encontrado, estava melhorando com os cuidados com ele. Salém estava até mais carinhoso, pedindo carinho, se aproximando de .
Até parecia saber que logo iria embora e queria se despedir.
— Onde você quiser — senti seu abraço me apertar e apenas deitei minha cabeça para trás, tendo seu peito como apoio. Suspirei, ainda inconformada. — Venha comer. Já coloquei seu café com leite, sei que você não gosta dele puro.
Ri fraco, secando meu rosto e virando-me para pegar a caneca que me foi estendida.
— Não estou com fome.
Por isso tinha dormido mais um pouco. Sabia que meu estômago não aceitaria muita coisa. Dei alguns goles e logo deixei a caneca de lado, encostando-me na pia sob o olhar dele. Como se me lembrasse que tudo podia piorar, a cólica me atingiu o abdômen, fazendo-me inclinar um pouco o corpo para esperar a dor aguda se dissipar.
— O que foi?
— Nada, é só um pouco de cólica, já vai passar — respirei fundo, fechando os olhos e mordendo o lábio para aguentar. Eu dificilmente tinha cólicas, mas acho que aquela tinha vindo por conta do estresse que tinha passado nos últimos dias, principalmente nas últimas horas.
— Onde está seu remédio? — indagou, já enchendo um copo de água.
— Segunda gaveta — apontei para o balcão.
Enquanto aguardava, pensei em algo que me lembrei ao ouvi-lo falar de remédio: meu anticoncepcional. Eu tinha parado de tomar logo que terminei meu último namoro de merda. Tinha tanto pavor de engravidar daquele ser que eu usava todos os métodos contraceptivos possíveis quando estava presa naquele relacionamento. Apesar de ter aproveitado bastante a vida de solteira ao lado de Tiffany, Anne e até mesmo Grace antes da descoberta da gravidez, optei por parar de tomar aquela bomba de hormônios, visto que não transava mais com a mesma frequência de antes.
E eu continuaria daquele jeito, se não tivesse me casado com a tentação em forma de gente. Digo, não precisaria me preocupar em engravidar se tivesse seguido o plano inicial: manter o máximo de distância do homem que eu mais odiava no mundo. Porém, as coisas mudaram, e mudaram muito, e agora eu precisava da segurança do anticoncepcional combinado ao preservativo para que a cegonha não viesse nos visitar.
Aquele susto em Tulum também tinha sido um estalo em minha cabeça para pensar sobre aquilo. Sabia que não conseguiria parar de transar com , e que os nove meses que tínhamos pela frente ainda estavam longe de acabar. O jeito era começar a tomar de novo.
— Obrigada — murmurei após me medicar, deixando o copo sobre a pia e suspirando audivelmente. Era só esperar fazer efeito.
— Onde dói? — ele franziu a testa ao me ver inclinar o corpo novamente.
Apontei para a região abaixo do umbigo, logo tendo suas mãos grandes sobre minha barriga, massageando devagar por baixo da blusa que eu usava. O calor de seu toque combinado aos movimentos suaves me deram um certo alívio nos primeiros minutos. Deitei minha cabeça em seu ombro, ainda recebendo aquele cuidado.
Lembrei-me de quando Salém era filhote e costumava empurrar minha barriga com suas patinhas, como se estivesse amassando uma massa de pão. Derramei algumas lágrimas ali, recebendo beijos castos em meu pescoço.
— Eu sabia que essa viagem iria acabar em gravidez! — se afastou ao ouvirmos a voz de Elisabeta. Assim que viu meu semblante triste, seu sorriso se desmanchou e ela veio até mim. — Ah, não é isso? Perdoem minha indiscrição.
— Tudo bem, não tem problema — sorri fraco. Realmente pareceria algo do tipo, com o jeito que estávamos quando ela chegou.
— O que houve, sra. ?
— Bom, ontem à noite alguém invadiu nossa casa, fez um estrago na janela e acabou… matando o nosso gato — expliquei sem graça, me esforçando para não chorar mais.
— Meu Deus, mas pegaram ele? Alguém se machucou?
— A polícia já está investigando — a tranquilizou, abraçando-a de lado. — Já liguei e eles vêm colocar outro vidro na janela hoje à tarde. Qualquer coisa, ligue, ouviu bem? — Elisabeta assentiu, olhando-nos ainda preocupada. — Está na hora de ir, . Pegue sua bolsa, sim?
Subi e, antes de ir, deixei um beijinho na bochecha de , rumando para a garagem junto de após dar algumas recomendações à babá. Apesar de duvidar muito que Miguel apareceria em casa enquanto não estivéssemos, ele queria nós dois.
O trajeto foi silencioso. Cada um de nós pensava nos problemas que nos tiraram a paz naqueles primeiros dias do ano. Tudo aquilo eram consequências do que já esperávamos enfrentar depois da decisão que tomamos.
Ter nos custou muito mais do que sacrifícios. Estava nos custando a paz que teríamos caso estivéssemos levando a vida que tínhamos antes de ela chegar ao mundo. estaria na empresa ainda sendo paparicado pelo pai, enquanto eu… Bom, eu estaria segura em meu kitnet em Enfield. Apesar de estar parecendo uma merda naqueles últimos dias, eu sabia que tudo valeria a pena quando tivéssemos a guarda definitiva de .
Só de poder tê-la todos os dias nos olhando com aqueles olhos verdes e brilhantes já estava valendo.
entrou em uma rua antes de prosseguir pelo restante da avenida onde a lanchonete era localizada. Franzi o cenho ao vê-lo diminuir a velocidade em frente a um jardim de um prédio qualquer. O que diabos fazíamos ali?
— Parei aqui para poder me despedir de você em paz — ele revirou os olhos, conseguindo arrancar um sorrisinho meu. Anne. Era melhor mesmo não arriscar ser pegos em flagrante por ela novamente. — Parece até que somos amantes — ele virou-se em minha direção enquanto eu brigava com o botão do cinto de segurança.
— Não seja dramático.
bufou como uma criança entediada.
— Não estou sendo dramático, . Olhe só! Agora eu não posso mais beijar minha esposa — ele riu, sarcástico. Não o acompanhei, apesar de compartilhar do mesmo pensamento. Aquele ciúmes de Anne era ridículo e sem sentido. — Da próxima vez que ela te falar algo, mande-a falar comigo — revirei os olhos com a implicância. Era óbvio que eu não faria aquilo. — Venha cá.
Me aproximei, selando seus lábios. aprofundou o beijo e me envolveu com seus braços, apesar de o cinto de segurança puxá-lo para trás sempre que ele avançava. Suspirei, finalizando o beijo com alguns selinhos enquanto ainda me mantinha próxima de seu rosto.
— Qualquer coisa estranha que acontecer, você me liga! — ele tirou meus cabelos do rosto, colocando-os atrás da orelha, e eu assenti, engolindo a seco. Depois de ontem, não ligava mais se fizesse uma besteira ou não caso colocasse as mãos em Miguel. Talvez eu mesma tentasse algo se o visse na minha frente. — Estou falando sério, , me prometa.
— Eu prometo — murmurei, após soltar um suspiro. Queria não ter que me despedir de ninguém com uma promessa daquelas, e sim com apenas um até logo.
voltou a dar partida, fazendo o retorno e voltando a entrar na avenida. Ele me deixou em frente à lanchonete, daquela vez com apenas um tchau de longe mesmo. Coincidentemente ou não, Anne estava atenta no vidro da porta quando desembarquei do veículo. Ela me acenou sorridente ao me ver caminhando em sua direção, provavelmente aliviada por não ter visto nada entre eu e . Será que ela não acreditou em mim da última vez?
Foi até bom Anne ter nos flagrado no dia anterior. Se ela inventasse de começar aquele drama de ontem, eu nem sabia o que minha boca falaria para ela. Provavelmente a verdade, já que meu cérebro estaria ocupado demais com tantos pensamentos sobre o que houve.
— E essa cara de quem não dormiu, hein?
Encarei Fanny pelo canto do olho, também não tendo paciência para suas piadinhas para irritar Anne.
— deu trabalho durante a noite?
Claro, Anne, porque esse seria o único motivo para eu não ter dormido bem à noite, não é mesmo?
— Quem me deu trabalho foi o seu ex — respondi e elas se entreolharam, provavelmente pelo meu tom de voz. Eu assumia que estava sendo rude, e que aquele não era o meu estado normal. Mas, naquele momento, preferia estar em qualquer lugar sozinha, menos ali. Queria minha casa e minha filha nos meus braços, ficar isolada do resto do mundo.
— Miguel? — ela franziu a testa. — O-O que ele fez? — seu rosto ficou pálido, e me senti mal por tê-la destratado daquela maneira. A culpa nem era dela, Anne só foi usada naquela história toda.
— Me desculpa, estou falando besteiras — levei as mãos ao rosto, controlando minha respiração e tentando normalizar meu coração, que batia forte em ódio só de falar daquele ser. — Miguel invadiu minha casa ontem a noite… e atirou em mim.
— O quê?
— Puta que pariu, !
Sequei as lágrimas que caíram, enquanto Anne checava se alguém tinha entrado no estabelecimento recém-aberto. Só estávamos no balcão tendo aquela conversa porque o Sr. Williams ainda não tinha chegado; caso contrário, só teria como contar para elas na hora de ir embora, já que nosso horário de almoço era individual por só ter nós três de funcionárias.
— Alguém se machucou?
— Nós estamos bem, mas ele acertou o Salém — balancei a cabeça nem querendo imaginar o que poderia ter acontecido se ele tivesse acertado mais alguém. Não tinha parado para pensar naquela possibilidade para tentar ficar mais tranquila. Se é que dava, depois da perda do meu gatinho. — Acertou a janela, estourou o vidro. No fim, eu apenas me arranhei um pouco no braço. Mas foi um susto muito grande, eu estava com no colo.
— Meu Deus, amiga, sinto muito pelo gatinho. Mas que bom que vocês duas estão bem. — Tiffany me abraçou, fazendo Anne se esticar e pegar minha mão do outro lado do balcão. Ela ainda estava calada, completamente sem graça com o que lhe falei antes, o que só me fez sentir mais culpada ainda.
— A polícia vai pegar ele e logo vamos poder viver em paz — falei, por fim. Dizem que temos que usar a lei da atração, não? Eu não sabia bem se acreditava nela, porém estava sem mais opções no momento. — E você, mocinha, tome cuidado. Se ele voltar a te procurar, se afaste.
— Não precisa se preocupar comigo, — a loira sorriu fraco, pegando minha mão e depositando um beijo no dorso dela. — Cuide-se e cuide de .
— não parece ser o alvo dele, não é?
— Eu não sei, não, Fanny — suspirei, vendo dois clientes adentrarem o estabelecimento. — Não consigo confiar nisso e ficar despreocupada, sabe? Miguel odeia tanto quanto eu.
— E você odeia os dois — Anne riu fraco, fazendo-nos acompanhá-la na risada.
Sequei o resquício de lágrimas em meus olhos, privando-me de ter que concordar com ela. Mas, no fim, nem precisei confirmar sua fala. Aparentemente, nenhuma das duas duvidava daquilo.
— Quanto ódio, meu pai — Fanny negou com a cabeça, conseguindo me fazer soltar outro risinho enquanto ia atender a mesa que havia acabado de ser ocupada.
Respirei fundo antes de me preparar para começar o trabalho naquele dia, que parecia que seria longo, assim como todos os que eu iniciava já querendo que acabasse. O movimento até que colaborou com meu estado: estava relativamente baixo, até mesmo nos horários em que normalmente enchia.
Saí para almoçar e quase não toquei na minha comida. Minha fome estava praticamente inexistente. Enquanto enrolava no celular, brincando com o que havia sobrado no prato, recebi uma mensagem que me deixou intrigada.
Tom:
“Está ocupada?”
Franzi o cenho e respondi que não, que estava no almoço, e esperei que ele me respondesse. Eu queria saber o porquê daquela pergunta, e Tom não estava me ajudando com minha curiosidade ao demorar tanto para me digitar o que queria comigo.
— , tem um cara aí atrás de você — o Sr. Williams me pegou de surpresa, fazendo-me dar um pulo de susto.
Tom:
“Desculpe pela visita inesperada, queria te ver.”
Arregalei os olhos e bloqueei o celular, ainda sob o olhar do velho de bigode.
— Ah, é o nosso vizinho lá do condomínio. Combinei com ele para conversarmos uma coisa… — levantei-me desajeitada, quase caindo da cadeira, nervosa por estar precisando inventar uma mentira de repente. — … S-Sobre a recepção do lugar. Vou lá falar com ele, obrigada.
Passei por Sr. Williams sentindo meu rosto queimar. Ele com certeza não tinha comprado aquela história. Em seguida, passei pela lanchonete procurando Tom pelas mesas, e fiquei aliviada quando me toquei que ele não tinha entrado. Levei as mãos aos cabelos amarrados num rabo, checando se estava tudo no lugar antes de sair sob os olhares curiosos das minhas amigas.
Quando avistei o loiro parado diante da fachada, suspirei ao imaginar o tanto de besteiras que meu chefe estaria pensando. Tom me abriu um de seus sorrisos matadores enquanto segurava uma caixinha branca com um lacinho. Pela tampa transparente, dava para ver um cupcake enorme e muito bem decorado.
— Espero que goste de chocolate, porque tem muito aqui dentro — ele me estendeu o presente, deixando-me ainda sem palavras.
— Ah, obrigada, eu estava mesmo precisando de algo doce.
Minha TPM agradecia.
Daquela vez, eu estava sendo estranhamente paparicada por homens: primeiro o remédio e a massagem de ; agora tinha Tom me alimentando com o que eu mais queria comer naqueles dias.
Ele sorriu satisfeito, ainda segurando minha mão, enquanto eu, sem graça, o esperava soltá-la. Quando vi que não soltaria, afastei-me com o presente em mãos, percebendo seu sorriso desmanchar aos poucos.
— Me desculpa, Tom. É que, você sabe, o teatro do casamento continua mesmo longe do — espiei por cima do meu ombro, vendo as duas idiotas no vidro encarando-nos descaradamente.
Tom não sabia que elas sabiam, porém ele não precisava saber daquilo. Que confusão! O mais importante de tudo era que o Sr. Williams não o visse se engraçar pro meu lado para não alimentar qualquer suspeita de traição.
Meu afastamento não era apenas pela mentira do casamento, mas também por conta do fato de eu já ter deixado claro para Tom que eu não me envolveria com ele enquanto ainda estivéssemos naquela disputa pela guarda de e ainda estivesse naquele acordo com . Aliás, agora que estávamos transando, não queria a dor de cabeça de ter Tom me cobrando algo. Ele e já implicavam um com o outro sem eu ter nada com Dormian, imagine se eu tivesse? A bagunça que não seria?
Mesmo que ele não ligasse para o fato de eu estar com – mesmo que casualmente –, o que eu mais precisava naquele momento era de um amigo, e não sabia se Tom se contentaria com tão pouco.
— Sou eu quem peço desculpas por ter vindo assim, sem avisar antes. É que eu precisava te ver, saber se você está bem — ele disse e eu assenti, quase lhe dizendo que ele já tinha me dito aquilo por mensagem. — Sei que poderia esperar para te visitar em casa, mas não gosta muito de me ver por lá, enfim… Não quero levar mais problemas pra você. Estava vindo numa clínica aqui perto e me lembrei que trabalha aqui, pelo uniforme.
— Muito obrigada pela preocupação, Tom — falei genuinamente. Apesar das brigas com , nem mesmo ele poderia negar que Dormian já tinha me ajudado mais vezes do que poderíamos contar. — Estou bem na medida do possível. Vou sentir saudades de Salém.
— Espero que tenha a mesma certeza que eu de que você foi melhor dona que ele poderia ter tido em uma das vidas felinas dele.
Ri fraco, com os olhos cheios de lágrimas. Ah, o mito das sete vidas… Se eu pudesse, seria a dona dele pelas outras seis vidas que lhe restaram, só para poder fazer tudo diferente e ter sido melhor pra ele.
Tive minhas falhas como tutora. Não devia tê-lo acostumado a sair de casa. O mundo lá fora era tão perigoso para animaizinhos como ele… Eu queria poder ter sido mais cuidadosa. Era o que Salém merecia. Apesar de ser desapegado e mal-humorado, aquele era apenas o seu jeitinho. No fundo, ele me amava tanto quanto eu o amava.
— Obrigada — comprimi os lábios, segurando a emoção. — Por ontem também. Aliás, se não tivesse me dado aquele remédio, acho que nem conseguiria voltar a dormir.
— Não foi nada. Cuidar de quem eu gosto não é um trabalho pra mim — falou, e eu assenti sem graça. Estava evitando olhar em seu rosto, que tinha um sorriso intacto, e seu olhar intenso sobre mim, sem sequer piscar. — Seu marido que não gostou muito, praticamente me expulsou do seu quarto — ele pronunciou a palavra “marido” com sarcasmo.
— é implicante assim mesmo, não entre na pilha dele.
Não que Tom não fosse também, não é?
— Não é uma implicância boba, . O nome disso é ciúme.
Gargalhei em sua cara, tentando conter minha risada por ver que tive uma reação exagerada. É que era muito engraçado ouvir uma coisa daquelas, de onde Tom tinha tirado aquilo?
— Ciúme do quê? — indaguei, ainda risonha.
— De você, oras — Tom respondeu, e eu neguei com a cabeça, discordando. — , ele não me deixa chegar perto de você. Só deixou ontem porque precisou da minha ajuda — ele estava jogando na cara? Fiquei calada, encarando-o. — Não acredita, não é? — neguei novamente, convicta. — Pois façamos um teste, saia pra jantar comigo e veja a reação dele.
— Se quer me chamar pra jantar, é só pedir. Não precisa usar como justificativa para fazê-lo — cruzei os braços, confusa.
— Então você topa jantar comigo? — seus olhos brilharam, esperançosos.
— Só jantar, como amigos — afirmei, e Tom revirou os olhos, fazendo-me rir ao ver um homem daquela idade fazer uma birra daquelas. Às vezes até me esquecia de que ele já tinha quarenta. — Não me leve a mal, Tom, mas não estou com cabeça pra pensar nessas coisas agora. Aliás, já conversamos sobre isso. Meu foco é , e será apenas ela até conseguirmos a guarda.
— Tudo bem, como amigos — ele se deu por vencido.
— Tenho que ir agora — falei, me apressando. Meu horário logo acabaria. — Podemos marcar outro dia, sim?
— Está bom, — ele se aproximou e ficou perigosamente perto do meu rosto, inclinando-se para me dar um beijo na bochecha. — Qualquer coisa, sabe que pode me ligar. Até mais.
Voltei para dentro e fui bombardeada pelos olhares das duas curiosas que serviam as mesas ocupadas na lanchonete. Não tive tempo nem de morder o cupcake – assim que o tirei da embalagem e me preparei para abocanhá-lo, lá vinham as duas quase correndo em minha direção.
— Quem é aquele monumento? — Tiffany fez uma cara de poucos amigos, e eu a encarei. Mesmo assim, ela não desfez o sorrisinho cheio de malícia dos lábios. — O deus grego deixou o Olimpo pra te ver e você nem nos apresenta pra ele?
Meu Deus.
— Aquele é Tom, meu vizinho — o tédio em minha voz foi proposital para espantá-las. Porém, elas não pareciam satisfeitas. — Não, eu não estou ficando com ele. Sim, ele quer ficar comigo. Não, eu não pretendo ficar com ele agora. Pelo menos não até que o processo com acabe.
— Como você consegue ser rodeada por dois gostosos e simplesmente resistir aos dois como se fosse nada?
Censurei Fanny com o olhar. Ela tinha que incluir naquele assunto? Fanny nem sabia da tentação contínua que era dividir o teto com aquele ser; se soubesse, teria dó de mim e não falaria como se fosse a oitava maravilha do mundo.
O mais engraçado de tudo era que eu não conseguia resistir a . Já tinha tentado e quebrado a cara depois de tanto negá-lo, porém, ao ter sua boca na minha e suas mãos em meu corpo, colando-me junto de si, ele vencia qualquer resistência minha. Já Tom… Bom, eu o resistia bravamente. Apesar de ter aproveitado o beijo que demos naquele dia, ele oferecia muitos riscos para o plano, além de estar se mostrando bem grudento e possessivo ultimamente.
— Sortuda do caralho — vendo as duas se mordendo diante de mim, comecei a rir. — Tem a opção de escolher qual dos dois beijar — Anne murmurou com o olhar longe, praticamente suspirando.
— Mesmo que com seja só de vez em quando e de mentira…
— Eu já beijei Tom — me sobressaí na fala de Tiffany, mudando o assunto que ia para de novo. Fanny e Anne soltaram gritinhos afetados, fazendo-me negar com a cabeça, reprovando o escândalo. — Mas apesar de ele ser maravilhoso, eu tenho que continuar resistindo.
— Maravilhoso e rico. Você viu o carrão dele? — Anne comentou, trocando olhares com a morena ao seu lado.
— Ele é médico, me socorreu quando sofri aquele acidente.
“Acidente”.
— Imagina ele só de jaleco e mais nada por baixo vindo te dar um atendimento especial.
Gargalhei ao ver o modo como Tiffany se alterou ao imaginar, provavelmente, a cena por conta própria. Que fogo era aquele, meu pai!
— Cheguei a me arrepiar aqui — ela mostrou o braço com os pelos eriçados.
— Vão trabalhar vocês duas. Cadê o Sr. Williams que não está vendo as bonitas aqui fazendo hora?
— Foi resolver algo com um fornecedor — Anne desdenhou.
— Vamos, amiga, deixa essa sortuda aproveitando o presentinho do pretendente dela. Espero que esteja tão gostoso quanto ele…
Revirei os olhos, ainda rindo.
— Quer um pedaço? — ofereci a Fanny, ainda gargalhando das baixarias que ela falava com um tom sexual.
— De Tom? Um pedaço só não, eu quero ele inteiro!
— Vamos logo, invejosa — Anne ria, puxando a morena para fora.
— Olha quem fala!
Não ouvi a discussão que começaram em tom de deboche, ambas já tinham saído do meu alcance. Neguei com a cabeça enquanto finalmente saboreava o cupcake. Elas riam porque não imaginavam o trabalho que aqueles dois me davam toda vez que ficavam juntos no mesmo ambiente, um sempre querendo avançar no outro. Lembrei-me do que Tom me disse, e aquilo só me atiçou a rir mais.
? Com ciúme de mim? Imaginei o que mais Dormian iria inventar do meu marido de mentira para tentar queimá-lo para mim.
's point of view.
Deixei o elevador e encontrei Jordyn já em seu posto, concentrada em sua digitação. Quase não me viu chegar. Quando o fez, desviou as atenções da tela para mim, sorrindo amarelo.
— Bom dia, Sr. — ela me cumprimentou e eu retribuí, sem ânimo para sorrir de volta. — Seu pai te aguarda em sua sala.
Assenti, entendendo seu comportamento receoso quando me viu.
— Obrigada, Jordyn — suspirei derrotado, querendo muito poder me dar ao luxo de dar meia-volta e ir embora pra minha casa. — Me deseje sorte — ri fraco, indo até minha porta e preparando-me para o que viria. Porque alguma coisa ele queria de mim para me esperar logo cedo na minha sala.
Desde que chegou, meu pai só trocou mais que algumas palavras comigo para brigar. Adentrei a sala e sentei-me calado na cadeira diante da mesa, que era ocupada por ele. Seus olhos claros me encararam, e eu apenas fiquei esperando o que sairia de sua boca daquela vez.
— O gato comeu sua língua, foi? Bom dia, .
Levei as mãos ao rosto, respirando fundo ao perceber a coincidência em sua fala. Ele parecia saber que tudo andava uma merda e estava se divertindo com aquilo, tirando uma com a minha cara. Aliás, saber não, ele devia ter certeza ao julgar pelo meu estado físico de quem não tinha uma boa noite de sono há dias.
— Problemas no paraíso, filho?
Minha vontade era de gritar com ele, perguntar o que ele queria de mim, afinal. Era a minha vida e eu escolhia o que deveria fazer com ela. Se ele aprovava ou não era um problema exclusivamente dele. Eu não tinha lhe pedido opiniões, e já tinha vinte e quatro anos nas costas.
— Achou que se casar seria moleza? — debochou, rindo, fazendo meu sangue ferver.
— E o que o senhor sabe disso, hein, pai? — disparei, levantando o rosto e encarando sua cara fechada.
A única coisa que eu queria naquele dia era ter meu pai ali, como sempre esteve, para me ajudar a resolver meus problemas. Queria poder lhe contar o inferno que passei em casa, lhe pedir conselhos sobre o que fazer, desabafar sobre como eu me senti um fraco ao ter e ameaçadas dentro da minha própria casa e não ter conseguido fazer nada para impedir que tentassem machucá-las.
Era engraçado perceber que ele tinha sido uma mera ilusão em minha vida. Naquele momento, eu pude ver. Ele não estava me ajudando com meus problemas no passado, pelo contrário. Eu sempre recorri a ele porque sabia que meu pai sempre faria de tudo para encobrir meus erros. Aquilo não era ajuda. Ele não me ensinava o certo a se fazer. Meu pai não se preocupava genuinamente, ele apenas vivia de aparências e levava o resto da família a também viver daquele jeito.
Eu estava há três meses num casamento de mentira que me fazia sentir mais livre e verdadeiro do que jamais pude ser enquanto vivia sob o teto dos meus pais.
— Você nunca ligou pra minha mãe ou para seus filhos de verdade. Nós sempre fomos um segundo plano na sua vida, éramos meros enfeites para que o senhor exibisse nos jantares de negócios para passar a imagem de um homem de família.
E pensar que eu estava prestes a ser obrigado a fazer o mesmo ao ir naquele evento de merda, levando para exibi-la em meio àqueles empresários nojentos.
— Você não nos criou, e seus presentes e jóias para mamãe com certeza não devem ter suprido sua ausência para ela.
— Só porque está brincando de casinha com aquela garota, está se achando maduro. Você não passa de um moleque, não sabe nada da vida para vir me julgar!
— Não estou brincando de casinha com ninguém. Elas são a minha prioridade. Ao contrário de você, eu sou um bom pai e um bom marido.
— Um bom pai — riu em escárnio. Eu parecia um humorista, o fazendo rir com algumas palavras que ele encarava como piadas. — Aquela criança não é sua filha.
— Sobrinha, filha, não importa! tem o meu sangue correndo pelas veias. O nosso, aliás — falei e ele se enfezou, levantando-se da cadeira num piscar de olhos. — Não olhou para o rostinho dela? Vai me dizer que ela não te lembrou sua filha.
Ele não seria louco de negar, nem que fosse com despeito. Teria que assumir que eu estava certo.
— Não me lembro do rosto dela, sequer olhei pra ela direito — andou incomodado em direção à porta.
— Eu tenho fotos aqui, se quiser relembrar — provoquei, pegando o celular do bolso.
Era óbvio que era mentira. Ele olhou sim para a neta, por tempo demais até!
— Não quero nada com essa criança, achei que estivesse claro — sua frieza me fez revirar o estômago, ao vê-lo desdenhar de novamente.
Mas também a culpa era minha. Insistir naquilo era um caso perdido. Ele quem tinha começado as provocações e eu caí na pilha, enfurecendo-me por algo que eu mesmo já sabia que não valia a pena discutir.
tinha razão. Criaríamos tão bem, rodeada de tanto amor, que ela não precisaria mendigar o dele nem o de minha mãe. Nós ficaríamos muito bem sem eles.
— O que veio fazer aqui, afinal? — questionei, e ele me olhou como se eu fosse um idiota. A empresa era dele, não era uma anormalidade vê-lo por ali. Eu esperava que ele fosse embora logo, inclusive.
— Vim revisar alguns relatórios. Estou organizando tudo para entregar a Beatrice tudo o que ela precisar saber da empresa e das finanças.
— Quem?
— Beatrice Thorpe. Estou arrumando a bagunça desse lugar para tentar não causar uma má impressão.
Revirei os olhos. Quem se importaria com o que aquela lá achava ou não? Nem experiência direito ela tinha! Como teria critérios para reprovar minha administração?
Respirei aliviado ao observá-lo sair e me deixar finalmente sozinho. Joguei-me na cadeira e reparei o porta-retrato caído em cima da mesa. Levantei-o de volta, percebendo que não tinha sido por um acidente – meu pai mal suportava olhar o rosto da própria neta.
Manobrei o carro e saí do estacionamento do prédio, pronto para ir para casa e deitar um pouco antes de ir buscar . Acenei para o funcionário da portaria, entrando atrás de um dos carros que formava o pequeno fluxo do trânsito usual naquele horário. Olhei distraído pelo para-brisa, cruzando meu olhar com a figura conhecida na calçada. Ela sorriu instantaneamente, feliz ao me ver. Fiz sinal para que ela viesse até mim e Dafne o fez, equilibrando-se em cima de seu salto alto.
— Olhe só quem apareceu! — ela se aproximou, e ri fraco ao encarar seu rosto na janela. Peguei sua mão estendida para mim enquanto ela se apoiava na porta, ainda do lado de fora. — Como estão as coisas?
Fazia tempo que não nos falávamos – desde Tulum, se não me engano. Tinha acontecido tanta coisa desde que chegamos em casa que não tive tempo de contatá-la, e ela também deveria estar ocupada com o fim da faculdade e o trabalho.
As coisas estavam péssimas. Eu sentia falta de conversar com ela. Cheguei a desabafar um pouco com , mas com existiam algumas coisas que eu não sabia se conseguiria falar abertamente. Era tão mais fácil falar sobre tudo com uma “desconhecida”, alguém que não fazia parte integralmente da minha vida.
Meu relacionamento com tinha melhorado a ponto de nos considerarmos amigos; porém, o nosso envolvimento além daquilo me deixava travado sobre o que sentir ou pensar, e eu não dividiria minhas dúvidas e o que eu sentia justo com a própria causadora das minhas confusões, né?
De qualquer forma, não era preciso falar com sobre nada daquilo. Eram coisas passageiras e sem importância.
— Está livre agora? Eu realmente preciso conversar com alguém — perguntei, e Dafne sorriu docemente. Ela assentiu, já levando a mão até a porta, que destravei para permitir sua entrada no veículo.
Seguimos para um café, um parque, sei lá, algum lugar tranquilo para que eu pudesse começar a lhe contar o monólogo sobre minha vida e a bagunça dos acontecimentos caóticos que sucederam nosso encontro inesperado.
Capítulo 33
Como o café escolhido ficava afastado da grande avenida, foi fácil pegar um atalho pelas ruas paralelas até chegar ao nosso destino. O caminho foi silencioso até aquele ponto, e minha cabeça matutava os assuntos que eu queria desabafar com Dafne: sobre meu pai, a empresa e a tensão da audiência, que estava cada dia mais próxima.
O que me deixava mais tenso era ter que expor aspectos da minha vida que, no início do nosso envolvimento, prometi a mim mesmo que não revelaria a ela. Mas não daria para desabafar e deixá-los de fora. Era a hora de me apresentar inteiramente para Dafne e deixá-la saber muito mais do que apenas meu primeiro nome. Claro, ainda escondendo a parte da farsa ao lado de .
— Você é um pai muito babão, — me dispersei ao vê-la se inclinar até onde minhas chaves estavam na ignição e pegar o chaveiro que tinha uma foto de . Soltei um riso tímido. — Meu pai é igualzinho, tem foto minha em tudo quanto é lugar.
Me mantive calado enquanto manobrava o carro para estacioná-lo numa das vagas em frente ao estabelecimento, que estava até vazio para o horário. Ao ter aquele pensamento, lembrei-me de me atentar às horas, já que logo teria que pegar no trabalho.
Escolhemos a costumeira mesa dos fundos, o mais longe possível da fachada e das outras paredes de vidro do local. Dafne continuava paranoica com aquela coisa de sair com um homem casado, apesar de não estarmos num clima para pegação no momento. Ela tinha entrado no carro sem me beijar, provavelmente percebendo que o assunto era sério.
— O que houve? Não me diga que são problemas no casamento — seu olhar preocupado focou-se em mim assim que terminamos de fazer os pedidos. Em seguida, o atendente deixou nossa mesa e levou consigo os livretos dos cardápios.
— Na verdade, não — sorri contido, vendo seu rosto se iluminar imediatamente. Era bizarro ver uma amante comemorando o sucesso do casal do qual fazia parte, mesmo sendo uma intrusa. — As coisas estão ótimas entre a gente.
Não me prolonguei. Eu tinha um trato com , e assim como todos os outros que fizemos desde que nos casamos, iria honrá-lo. Até porque não queria deixar brecha nenhuma para poder falar sobre nós com Tom, e para isso eu teria que ter moral para falar algo, caso acontecesse.
— Que susto. Por um momento, achei que as coisas tinham piorado entre vocês — ela levou a mão ao peito, aliviada.
Neguei com a cabeça. Tinha sido bem o contrário. Aliás, para piorar as coisas entre nós, do jeito que éramos antes da trégua, só se saíssemos nos tapas como fazíamos quando crianças.
— Estou feliz por vocês, por mais estranho que possa parecer — ela encolheu os ombros e soltou uma risadinha, fazendo-me imitá-la. — Vocês dois são muito novos, ficam lindos juntos e, ainda por cima, têm uma filha. Seria muito cedo para desistir.
Por incrível que poderia parecer, mesmo que as coisas não tivessem sido fáceis para nós no início – com a convivência difícil, adaptação e Miguel nos infernizando –, nunca nos passou pela cabeça a ideia de desistir. já deu seus chiliques vez ou outra; porém, duvido muito que não tenha sido tudo da boca pra fora.
Depois de tudo que passamos até ali, desistir parecia uma ideia estúpida desde o princípio. Antes, pensar na possibilidade de estar casado do dia pra noite e ser pai sem os nove meses de preparação psicológica parecia a coisa mais difícil que eu faria na vida. Lembrava-me de ter quase tido uma crise asmática minutos antes do casamento, pensando em tudo que viria pela frente. Mas, estranhamente, mesmo com as dificuldades, estava sendo mais fácil do que tinha imaginado.
— As fotos que me mandou na viagem já deixavam claro que as coisas estavam se ajeitando — Dafne apoiou o rosto na mão. — Você estava todo felizinho nelas.
Quase franzi o cenho. Não o fiz para não dar bandeira. Mas tinha como ser infeliz em Tulum? Eu estava feliz por estar descansando, por tirar uma folga de todos os problemas que aquele casamento me trouxe, só isso! não tinha nada a ver com aquilo, sequer tínhamos transado quando aquelas fotos foram tiradas!
— É, mas não era sobre isso que eu queria conversar — sorri amarelo, aproveitando para fazê-la parar de fanficar sobre e eu. — Dafne, eu estou com alguns problemas pessoais... Sei que não pode me ajudar, ninguém pode, aliás. Mas você me disse uma vez que eu poderia contar com você caso precisasse conversar um dia. E eu meio que preciso agora.
— Sou todo ouvidos, — ela pegou minha mão por cima da mesa, sorrindo de forma complacente. — Fico feliz que agora confie em mim para desabafar. Sei que no início você se esquivou de perguntas mais evasivas. Entendo que, por ser casado, deva bater uma insegurança na hora de revelar sua vida — Dafne era muito observadora. Eu tinha tentado a todo custo fazer aquilo de um modo discreto. — Não se preocupe, . Como acabei de te dizer, torço pra que você e sua esposa se resolvam. Não pretendo entrar no meio de vocês e nem expor o que temos a ninguém.
— Me desculpe por isso, é que é complicado — me remexi na cadeira, desconfortável. Ela concordou prontamente.
— Tem muita coisa em jogo, não é?
Tinha em jogo, e ela por si só já significava tudo. Não sabia o que faria se a perdesse por um deslize meu.
— Mas vamos lá, me conte sua história — Dafne continuou.
Fiz um resumo sobre a história com meu pai e a empresa, citando vagamente o acontecido com Grace para que ela não desse a devida importância, não ligasse os pontos e desconfiasse da veracidade do meu casamento com . Aproveitei e adicionei a histórinha de amor fake de como nos conhecemos, para ficar mais crível, e a tive rindo de nós dois, encantada com o que ouviu. Eu nunca entenderia o fascínio que Dafne tinha em mim e .
Aproveitei e contei um pouco sobre a tensão que a audiência estava nos trazendo, ocultando os ataques de Miguel para não deixá-la espantada. Tudo citando o mínimo possível; eu queria escondê-la ao máximo de Dafne para fazer minha parte no trato. Era estranho também ficar expondo para a mulher que achava que me dividia com ela. Sentia como se estivesse caçoando dela, o que de fato até fazia sentido; já que, para Dafne, era corna e não fazia ideia.
Ela me aconselhou sobre meu pai de um jeito completamente diferente de , o que me fez torcer o nariz, visivelmente incomodado com o que Dafne dizia. Ela tinha um ponto. Eu realmente não consegui discordar quando expôs que meu pai – e até mesmo a minha mãe –, talvez possam ter dificuldades na hora de aceitar , porque se sentiram traídos por Grace. Além disso, havia toda a questão do luto, que, para eles, poderia ser mais forte. Ambos estavam brigados com a filha e nem tiveram a oportunidade de se despedir ou conviver com ela em seus últimos meses de vida.
Na minha cabeça, por mais sentido que as coisas pudessem fazer – ao serem explicadas por ela de um jeito simples, mas profissional –, eu não conseguia aceitar que era aquilo que os afastava da neta. não poderia ser culpabilizada pelos erros da mãe, e meus pais estavam fazendo com a menina exatamente o que fizeram com Grace!
E foi aquilo que argumentei a ela, levemente alterado. Era difícil ver o lado deles quando as coisas poderiam ter sido muito mais fáceis se eles cooperassem! Segundo ela, eles precisariam trabalhar aquela questão do luto e das barreiras emocionais que os impedia de aceitar a existência de .
Ou seja, se eles precisavam de terapia e não faziam, eu que não os deixaria perto da minha filha para ela, no futuro, precisar de terapia por conta dos traumas que eles a proporcionariam.
— Sobre a assistente social, ... Eu não os conheço direito, mas pela história que me contou, que é linda por sinal, acredito que não devam ficar preocupados com isso.
Terminei minha xícara de café, limpei a boca com o guardanapo e chequei a hora no relógio que me deu. Nunca tive costume de usar relógios, porém, estava gostando da praticidade. Eu o usava todos os dias, e estava até pensando em comprar outros.
— Vocês devem ser ótimos pais. Então relaxe e tente deixar sua esposa tranquila. Sei o quanto ela deve estar com medo de perder a filha — deu um sorriso triste em minha direção. Franzi o cenho ao ver seus olhos claros se encherem de lágrimas e peguei sua mão, afagando-a ainda sem entender o motivo do choro. — Me desculpe, é que… uns dois anos atrás perdi um bebê com dois meses de gestação. Imagino que a dor de ter tido um filho nos braços por um tempo e depois ele ser tirado de você deva ser pior do que nunca tê-lo visto.
— Tenho certeza de que não há como comparar as dores — alcancei seu rosto, secando suas lágrimas que caíram por sua bochecha. — Eu não imaginava — murmurei, me sentindo culpado por ter entrado no assunto sobre filhos, mesmo que na inocência.
— Tudo bem. Eu falei de você, mas também não te contei sobre minha vida — ela riu em meio ao choro contido, fazendo-me arquear as sobrancelhas e negar com a cabeça, numa brincadeira em reprovação à sua hipocrisia. — Não tem nada de mais, fique tranquilo. Não sou uma fugitiva ou algo do tipo. Me casei aos vinte e quatro, passei dois anos ao lado dele e nos separamos após a perda do bebê.
Me surpreendi com o fato de eu não saber sequer sua idade direito, mas também nunca imaginei que ela tivesse sido casada um dia.
— Foi um período muito difícil na minha vida. Você foi um dos poucos caras com quem fiquei depois de meses e meses do meu divórcio, e, apesar de ser errado, o fato de você ser casado me dá segurança de que não vou querer algo sério contigo. Não sei se estou pronta para isso, entende? — ela perguntou, e eu concordei, compreensivo. Estava embasbacado. Não fazia ideia que sua história era tão triste. — Na época, larguei faculdade. Eu não me dava bem com ele, acho que o cansei aos poucos. Entendi completamente quando me pediu o divórcio, apesar de ficar magoada por ver que ele nem ao menos tentou me trazer de volta para seu lado.
Abracei-a e, sentindo-a deitar a cabeça em meu ombro, afaguei suas costas por um tempo. Logo Dafne saiu de meus braços, sorriu serena e me deu um selinho de leve, agradecendo-me pelo abraço. Ela não se deixava fragilizar por muito tempo, então logo lembrou-se que ela era a psicóloga ali e retornou para o seu lugar após secar as lágrimas.
— É por isso que eu te falo tanto sobre sua esposa, em como deve cuidar dela e não desistir tão fácil. Eu não tive a mesma sorte de ter o que vocês dois têm — sua mão acariciou minha bochecha, e eu engoli em seco.
Quando as pessoas vinham com aqueles papos sentimentais sobre e eu nos amarmos como um casal real, me sentia um merda por estar mentindo para elas. Nunca me esqueceria do que Theresa me falou sobre eu ajudar a superar um passado que eu não fazia ideia do que era. Não sabia descrever o que sentia ao ver que ela estava colocando aquela responsabilidade enorme nas minhas costas, sendo que, na realidade, nunca confiaria em mim para dividir nada daquilo.
— Falando nela, tenho que buscá-la no trabalho.
Salvo pelo gongo. Se não a tivesse interrompido, Dafne entraria no assunto de novo e eu teria que me esquivar mais uma vez, e estava difícil fazê-lo. Ainda mais quando sentia que tinha algumas coisas mal resolvidas dentro de mim em relação a , que talvez alguém de fora pudesse me ajudar. Mas, para ter sua ajuda para entendê-las, Dafne teria que saber de todo o contexto. E revelar o segredo do casamento falso era uma coisa que eu não faria.
Paguei a conta e chequei o relógio mais uma vez. talvez tivesse que esperar um pouquinho até que eu chegasse até a lanchonete.
— Vamos, eu te deixo em casa — levantei-me, esperando-a fazer o mesmo. Porém, a morena continuou onde estava.
— Não precisa, não quero te atrapalhar. Eu chamo um táxi — ela disse, e eu não insisti. Agradeci enquanto ia até ela, que se levantou daquela vez para me dar um abraço. — Senti sua falta. Temos que marcar de sairmos de novo qualquer dia desses.
Concordei com ela. Dafne era uma ótima ouvinte. Lhe beijei a boca, sentindo sua língua tocar a minha com calma. Foi um beijo rápido de despedida.
Logo fui apressado até meu carro. Não queria deixar esperando, muito menos sozinha.
's point of view.
Me despedi das meninas após insistir muito para que elas fossem embora, ao invés de cometer a loucura de ficarem comigo em frente à lanchonete esperando , que estava quinze minutos atrasado. Já estava escurecendo e elas pegariam transporte público para ir pra casa. Eu estaria segura ali na avenida movimentada por carros indo e vindo já com os faróis acesos.
Acabei não esperando por muito tempo. Logo o carro dele encostava no meio fio do meu trabalho para que eu pudesse embarcar. Acomodei-me no banco do passageiro, tendo seus olhos verdes em mim. vestia apenas a camisa preta de botões e não havia nem sinal de seu blazer. Devia estar no banco traseiro. Puxei o cinto, e ele se virou em minha direção de repente.
— Como foi seu dia? Está melhor? — perguntou, e inclinei-me até seu corpo, esperando até que sua boca se chocasse contra a minha. Porém, algo me interceptou no meio do caminho, fazendo-me virar o rosto rapidamente.
Um perfume feminino.
Funguei, ainda sentindo-o bem próximo de mim. Não era o meu, eu tinha certeza daquilo. acabou por beijar minha bochecha, puxando-me para um abraço desajeitado, deixando-me de cara com a pequena e quase imperceptível mancha clara no tecido. Eu tinha quase certeza que aquilo poderia ser maquiagem.
Uma certeza concreta somada àquela suspeita foi o bastante para querer me afastar de seu corpo. Assim que seu braço se afrouxou em volta do meu tronco, saí de perto ainda sentindo aquela sensação incômoda dentro do peito.
— Foi bom — murmurei e respirei fundo, tentando soar normal enquanto tentava entender o que estava acontecendo comigo.
Encostei-me no banco após finalmente colocar o cinto de segurança, que apenas fez o aperto do meu peito se intensificar. O celular dele vibrou sobre o compartimento entre os bancos do veículo, que era onde deixava o aparelho quando dirigia. No tempo em que sua mão deixou a marcha para apanhá-lo, pude ler o nome do remetente da mensagem que apareceu em sua tela inicial.
Dafne.
Aquele perfume era dela, a base manchada na camisa de era dela. Com certeza ela devia tê-lo abraçado e encostado a cabeça ali, em seu ombro. Aquilo explicaria o seu cheiro impregnado nele. Meu olhar foi direto em seu rosto, que estava de perfil, já que estava com o carro em movimento. Procurei outro resquício nele, talvez uma mancha de batom na bochecha ou no pescoço...
Senti meu estômago revirar. Me remexi no banco, desconfortável, tendo uma dúvida que me deixou paranoica. Será que ela tinha ocupado aquele lugar antes de mim?
— Droga — ele largou o aparelho no mesmo lugar após digitar uma mensagem rápida enquanto estávamos parados no trânsito.
Encarei-o novamente, numa pergunta silenciosa, sem verbalizar o que realmente queria lhe perguntar. Na verdade, nem eu mesma sabia qual seria minha dúvida. Estava tudo tão claro! E mesmo que não estivesse, se eu tivesse chances ou estivesse no direito de questioná-lo sobre algo envolvendo outra mulher, nem saberia por onde começar.
Eu estava me sentindo tão… tão...
Não conseguia identificar, e era aquilo o que mais me agoniava. Só sabia que era algo intenso. Intenso o bastante para me fazer querer descer do carro e ir embora para casa a pé.
— Esqueci meu blazer no café, se importa de irmos buscar?
Café.
Não na empresa. Em um café.
Se é que ele tinha se encontrado mesmo com Dafne num café. Eu já tinha mais de dez anos de idade, claramente sabia o que dava para fazer no tempo em que o expediente de acabou até o horário em que eu saí do trabalho. Imaginava também que o que eles devem ter feito juntos. Com certeza possibilitaria que deixasse para trás qualquer outra peça de roupa que tenha se esquecido de vestir de volta no corpo. Poderia ter sido um cinto, uma das meias, a gravata…
Olhei de novo para ele, verificando se a gravata azul-marinho estava devidamente colocada em seu pescoço. franziu a testa, ainda esperando uma resposta minha. Me toquei do que estava fazendo, agindo feito louca com um cara que nem era nada meu! Sinalizei que não com a cabeça, tendo-o mudando a rota do caminho que seguíamos.
Eu precisava de um banho e da minha cama. Era aquilo, descansar a mente, porque sentia que estava pirando aos poucos naquele dia.
— Cadê ? Pensei que tinha ido em casa como ontem — joguei um verde, coçando a nuca como quem não quer nada.
Não consegui segurar. Estava intrigada em querer saber o que eles tinham feito. Parecia que eu não dormiria aquela noite se não descobrisse.
— Não fui pra casa. Acho que se tivesse ido, não a traria comigo para te buscar mesmo assim. Não iria querer expor ela caso Miguel ainda esteja atrás de nós.
Não era aquela a resposta que eu queria.
O celular voltou a vibrar, fazendo-me respirar fundo daquela vez e olhar para fora pela janela. Não valia a pena ficar em busca de saber aquilo. Nem era da minha conta, de qualquer forma. Daquela vez, não lhe respondeu. Tínhamos chegado ao tal café e ele apenas desceu, indo para dentro do estabelecimento granfino.
O aparelho continuou ali, a uma esticada de braço de distância. Eu sabia que, se o pegasse e apenas fizesse o movimento de virá-lo para cima, seu visor acenderia e eu teria acesso àquela notificação e ao conteúdo da mensagem. Meu coração bateu forte no peito e me vi respirando fundo para não sucumbir àquela ideia estúpida. Parecia-se muito com aqueles pensamentos esquisitos da nossa cabeça, que, estranhamente, nos manda pular quando estamos passando por uma ponte, sabe?
Aquilo era violação de privacidade. Nem se estivéssemos num relacionamento real espiar suas notificações e ler as mensagens que chegavam seria aceitável. Até porque, pela milésima vez, não me devia fidelidade. Fora que era Dafne. Era mais fácil ele me esconder dela do que o contrário. era tão íntimo dela quanto era de mim. Aliás, se brincasse, ela poderia até ser mais do que eu, considerando o fato de que ele saía com ela porque gostava; tinha escolhido passar o tempo ao seu lado. Já comigo, era apenas sexo e carência. Eu tinha certeza que ele escolheria qualquer outra mulher para ter que se casar e estar no meu lugar.
Pelo vidro do local, pude ter acesso ao interior do café. Parecia aconchegante e me lembrava muito os lugares onde Colin me levava quando namorávamos – e ele, aparentemente, tinha vergonha de namorar uma bolsista ou só não queria que os pais soubessem. Era um lugar típico de alguém que queria esconder algo: discreto, longe da avenida e numa rua pouco movimentada.
Tinha um casal em uma das mesas dispostas do lado de fora do estabelecimento, sentados um ao lado do outro enquanto um dos homens acariciava os cabelos escuros do outro. Se aproximaram rindo de algo e se beijaram diante da mesa posta com alguns muffins e o que parecia ser uma bebida quente nas xícaras que levaram à boca após se separarem.
Ele a levava até ali para poderem se comportar livremente feito um casal como aqueles dois?
— Pronto — jogou a peça no banco de trás e ajeitou-se de volta antes de colocar o cinto. — Agora vamos pra casa — suspirou, colocando sua mão grande sobre minha coxa, prestes a me acariciar.
Ofeguei, encarando suas tatuagens aparentes na região. Eu não o queria me tocando, não antes que tomasse um banho. Tirei sua mão dali, vendo-o me analisar confuso por um instante.
— O que há com você? Está estranha.
Agindo como uma mulher traída? Pois é, , eu também estou me estranhando! Talvez o fato de estarmos transando tivesse algo a ver com aquela sensação horrível que eu estava sentindo.
Precisava de um tempinho comigo mesma, para, quem sabe, conseguir me pegar pelos ombros e chacoalhá-los enquanto me fazia entender que não poderia me sentir daquela forma em relação a .
Por hora, enquanto estava na presença dele, teria que me abster de abrir a boca seja qual fosse o motivo, fazer comentários, perguntas ou simplesmente falar abobrinhas. Manter a boca fechada talvez fosse a melhor estratégia no momento. Parar de avaliá-lo e tratar de impedir minha cabeça de criar suposições que envolviam os dois juntos também ajudaria. Até porque eu nem sabia como ela era fisicamente para imaginar alguma coisa.
Será que seria uma boa ideia pedi-lo para ver uma foto dela?
Respirei fundo, xingando-me mentalmente. Qual a parte de não abrir a boca não ficou clara? Aliás, eu não poderia dizer que nunca a tinha visto. Lembrava-me daquela vez em Tulum, que, sem querer, acabei vendo um nude que ela tinha enviado para durante o jantar. Ela tinha seios lindos, pareciam o “depois” sendo comparado com o “antes” daquelas fotos de cirurgias de silicone que deram certo.
Encarei meus próprios seios pequenos, cobertos pela camiseta do meu trabalho, sentindo-me estúpida. Era melhor nem saber como ela era fisicamente depois daquilo.
— Estou bem — tentei esboçar um sorriso, sem muito sucesso por estar brava por dentro. — Só estou cansada, quero tomar um banho e me deitar.
— Vamos passar na pizzaria então, aí não precisamos nos preocupar com o jantar.
Um funcionário saiu para fora, levando consigo um grande saco preto de lixo. De repente, quis me enfiar no espaço que tinha abaixo do porta-luvas, com medo de que ele olhasse para dentro do carro e reconhecesse como o cliente que estava ali um tempo antes, acompanhado de outra. Ele com certeza ligaris os pontos e iria querer ver a cara da corna conformada que ainda acompanhava o marido de volta ao local em que ele se encontra às escondidas com a amante.
— Vamos pedir em casa — argumentei, agoniada, querendo desaparecer dali num estalar de dedos e me teletransportar para dentro de casa. — Eu realmente estou cansada.
— Ainda está com dor? — indagou, e eu neguei sob seu semblante preocupado. — Então está bem, vamos pedir em casa — ele se aproximou e pegou meu rosto, puxando-me para perto.
Minha respiração falhou. Eu não era a esposa dele de verdade. Tudo bem, me custou enfiar aquilo na cabeça e admito que a sensação de traição ainda continuava intacta em algum lugar dentro de mim. Mas também aceitar que ele me beijasse logo depois de ter estado com ela já era demais, não é?!
— . Por favor, vamos embora — me desvencilhei quando estive bem próxima, com nossos narizes se tocando. Ele assentiu, ainda me olhando estranho, finalmente deixando o estacionamento do estabelecimento e dirigindo até em casa.
Fomos o caminho todo em silêncio, enquanto as vozes da minha cabeça se ocupavam do trabalho de me manter a mil por hora com um fluxo de pensamentos mais acelerado que o carro em que estávamos.
Chegamos em casa e encontramos Elisabeta sozinha na sala, vendo TV com a babá eletrônica em mãos. Antes de dispensá-la, trocou algumas palavras com ela, algo provavelmente envolvendo a troca dos vidros da casa que tinha sido feita naquela tarde.
Espiei a imagem do pequeno aparelho no sofá, observando a neném dormir serena em seu berço no escuro. Não sabia se iria deixá-la dormir em seu quartinho novamente tão cedo. Eu ainda ficaria paranoica por um bom tempo.
— Tchau, até amanhã — sua voz foi se aproximando e logo o senti enlaçar meu corpo por trás. — Vamos tomar um banho, hum?
Suspirei, sentindo seus lábios depositarem beijos em minha nuca. Se ele estava me chamando para tomarmos banho juntos, deveria repensar o convite quando soubesse que eu estava louca para pegar a bucha e esfregar sua pele inteira só para tirar o cheiro do perfume dela de si, e aquilo provavelmente iria doer.
— Não, — saí de seu abraço, desconfiando que talvez minha TPM tivesse algo a ver com todos aqueles sentimentos desagradáveis ao me lembrar da existência de Dafne. Porque era a única explicação, já que antes eu era indiferente ao caso que eles tinham. Bom, antes eu também não tinha transado com ele. — Vou ficar para pedir a pizza. E também, se acordar, a gente não vai ouvir — falei, por fim, considerando que não iríamos apenas tomar um banho caso entrássemos debaixo daquele chuveiro juntos e completamente nus.
— Então vai você primeiro, eu peço a pizza.
Assenti, observando-o se aproximar, receosa. pegou meu rosto, e, daquela vez, não tive escapatória. Ele selou os lábios nos meus, fazendo-me desvencilhar dele e subir praticamente correndo para cima.
Ele tinha beijado Dafne, eu tinha certeza! Mesmo que não tivessem transado como achei antes de realmente comprovar a existência do café e que eles estiveram lá, eu não podia ser ingênua a ponto de achar que eles foram até lá com outra intenção além de se pegarem.
Depois que saí do banho, o encontrei com bem acordada no colo e a pizza já sobre a mesa, com a embalagem ainda fechada. Peguei a bebê no colo e o esperei tomar banho para que jantássemos juntos. Brinquei um pouco com a menina enquanto me distraía para não ficar olhando pela janela recém-consertada toda hora. Às vezes parecia que tudo tinha sido apenas um sonho ruim.
— Ué, não vai comer? — chegou na cozinha, já vestindo pijamas.
— Eu estava esperando você — murmurei e me levantei, me servindo de uma fatia antes de voltar ao meu lugar na mesa.
— Não estou com fome — puxou uma cadeira ao lado, sentando-se bem perto. — Comi algumas coisas no café.
Cortei a pizza com força, levando um pedaço grande a boca e descontando a raiva na mastigação.
— Parece ser um lugar bem legal — comentei, encarando meu prato.
Era o tipo de lugar que ele jamais me levaria, porque, apesar de eu ser a droga da esposa dele, era eu quem ele pegava às escondidas. Não estava reclamando! Longe de mim, era exatamente daquele jeito que deveria ser! Mas, porra, levar a amante pra passear ou pra jantar sempre já era demais. tinha me deixado esperando porque estava ocupado com ela.
Quer saber? Talvez eu devesse mesmo ir jantar com Tom, já que eu tinha certeza que seu bom gosto o faria escolher um restaurante maravilhoso para me levar. E apesar de querer apenas ser amiga dele, eu me arrumaria como num encontro de verdade. Há tempos que não fazia aquele tipo de coisa. E se Dormian estava disposto a me dar uma noite agradável, eu não seria burra de negá-lo, certo?
— É sim — comentou, inclinando-se para limpar a baba de de seu pequeno queixo. — É bem tranquilo, eu precisava de um lugar assim pra conversar. Sabe, falar com Dafne foi muito esclarecedor pra mim.
Me segurei para não soltar um riso sarcástico. Ah, sim, sua amante é a detentora da sabedoria do universo, não é, ? Desisti daquela baboseira de comer com garfo e faca, pegando a pizza com as mãos mesmo.
— Ela me ajudou a ver as coisas de um outro jeito. Conversamos sobre meu pai e a situação da empresa. — Sorte dele que não ouvi meu nome. — Foi bom ouvir uma opinião mais profissional.
Olhei para ele de canto de olho, vendo-o brincar com a bebê no carrinho. Eu tinha sido o quê naquele dia? A única opção em sua frente? Eu o consolei e nem créditos recebia por aquilo?
Mas nããão, Dafne com certeza tinha o entendido melhor que eu, a pessoa que estava passando por aquele inferno ao lado dele.
Minha vontade naquele momento foi de lhe contar o que aconteceu no meu dia, que nem ele estava fazendo comigo justo no dia em que eu não queria saber de nada sobre ele e Dafne. Falar da visita que recebi no trabalho, do chocolate que ganhei e o quão delicioso estava. Falar também do modo como Tom se preocupou comigo e, ainda por cima, me chamou para sair!
— Bom pra você — lhe dei um sorriso cínico.
— Não vai comer mais? — indagou, ao me ver levantando já com o prato vazio em mãos.
— Estou satisfeita —fui até a pia, lavei minhas mãos e peguei do carrinho. — Boa noite, .
— Vai dormir agora, tão cedo?
— Estou cansada, só isso.
Fisicamente e principalmente mentalmente cansada. Estava ficando doida com o que aquele incômodo estava me causando. Eu só queria deitar, fechar meus olhos e dormir.
Sabia que não me permitiria fazer aquilo logo; porém, esperaria até que ela dormisse e, enquanto seu soninho não vinha, faria a minha digestão. Virei-me e fui em direção à saída da cozinha, quando ouvi a voz dele me chamar de volta.
— Espera — se levantou, indo até mim e dando boa noite para a bebê antes de enterrar uma das mãos em meus cabelos atrás da orelha. Seus olhos verdes me analisaram por um tempo e ele logo se aproximou, beijando minha boca.
Daquela vez, o retribuí, permitindo que ele tivesse passagem com a língua e me deixando levar pelo seu braço, que me abraçou e afagou minhas costas, tomando cuidado com em meu colo entre nossos corpos.
— Quase não me deixou te beijar hoje, cheia de charminho.
Ri sem graça com seu tom de voz e avancei contra seus lábios novamente, pegando em seu rosto e passando a mão em seus cabelos macios. Estava de banho tomado e com seu cheiro bom usual.
murmurou, provavelmente reclamando por estar sendo esmagada por nós.
— Boa noite, . Vou dar uma passada no escritório pra ver uns e-mails, pode deixar que organizo tudo aqui quando eu jantar.
Subi, brincando um pouco com a bebê, que demorou um pouquinho a cair no sono em meus braços. Quando o fez, a deitei no berço ao lado da nossa cama. O fim de semana se aproximava e, como ele, vinha o dia que me deixava com dor de barriga de nervoso. Eu sofria por antecedência ao imaginar o que seria de nós naquela audiência.
's point of view.
Os últimos três dias praticamente voaram. Voltamos à rotina de sempre e me surpreendi por estar aliviado. Estava me sentindo um velho aos vinte e quatro anos por ficar feliz em apenas trabalhar e ir pra casa ficar com minha filha. Era impressionante como eu tinha mudado tanto em tão pouco tempo.
Recebemos o corpo de Salém de volta e seguimos as instruções dos policiais de como deveríamos enterrá-lo no quintal. Cuidei disso, já que parecia não querer lidar com tais burocracias. Ela parecia estar mais tranquila quanto ao luto, apesar de continuar possessa com Miguel e a demora da polícia em resolver as coisas.
As câmeras o flagraram no quintal, e a da rua o filmou tanto invadindo minha casa quanto em sua fuga às pressas. Ele contou com a ajuda de um comparsa, que estava na moto esperando-o para irem embora. Infelizmente, ambos estavam de capacetes e toucas ninja, dificultando o reconhecimento. Pelo que entendi, a polícia tinha contatado Rodriguez para interrogá-lo, e ele foi liberado após apresentar alguns álibis. Foi ele, eu tinha certeza que sim, e mesmo que não fosse ele quem tinha invadido nossa residência, a pessoa que nos atacou foi lá a mando dele.
De qualquer forma, já que não podíamos contar com a proteção da lei – nem com a prisão de Miguel, muito menos com a medida protetora de –, tínhamos que nos proteger por conta própria. Instalei cercas elétricas em casa e continuaria a levar e buscar no trabalho. Eu sabia me cuidar, e duvidava muito que Miguel viesse atrás de mim. Aquele desgraçado era um covarde, por isso continuaria com sua mira em .
Chegava a ser ridículo ter a única casa naquele condomínio todo a ter uma cerca daquelas, já que aquele lugar nos foi vendido como extremamente seguro e familiar.
Naquele sábado, despertamos aflitos com o que viria. Foi uma noite mal dormida, com se revirando na cama a cada cinco minutos, enquanto eu nem sono tinha. Levantei primeiro, indo tomar um banho e já em contato com Amélia, que nos acompanharia na audiência. Ela passaria em casa para nos preparar para irmos, já que não fazíamos ideia de como nos portar ou o que aconteceria lá.
Me vesti de um jeito formal e desci com nos braços. Elisabeta iria olhá-la para nós naquele sábado, assim poderíamos ir tranquilos – se é que daria para usar aquela palavra naquele dia. Tranquilidade era a última coisa que sentíamos. Minhas mãos chegaram a suar em alguns momentos.
— Bom dia, — Amélia entrou em casa, vestida com seu costumeiro conjunto de saia e blazer, e o sorriso calmo de sempre nos lábios. — Oi, gatinha! — pegou a bebê nos braços, indo se sentar no sofá.
Invejei-a naquele instante. Eu queria muito estar indo a uma audiência sem que minha vida fosse decidida ali, sabe? Só pra olhar mesmo. Claro que ela iria a trabalho, porém apenas mediaria a conversa entre nós e a juíza.
— já está vindo.
não quis nem ao menos tomar café, disse que não conseguia comer nada, nervosa do jeito que estava. Quase não a vi naquela manhã. Preferi deixá-la sozinha enquanto se arrumava, já que estava uma pilha de nervos.
— Bom dia — Elisabeta chegou, sorrindo contida e fechando a porta atrás de si. — Já estão prontos para ir? — deixou a bolsa sobre o sofá e veio me dar um beijo na bochecha. Aceitei de bom grado o abraço aconchegante que me deu. Ela parecia saber que eu estava precisando de um daqueles abraços de mãe.
— Ainda não vamos. Primeiro temos que trocar algumas palavras — falei e a babá assentiu, pegando a neném nos braços e levando-a consigo ao pedir licença. Estava na hora de sua mamadeira. — Aí está ela.
Da escada veio , num vestido preto de mangas e gola alta. O tempo lá fora estava frio, então ela estaria protegida. Os cabelos loiros estavam presos num rabo de cavalo, e os fios, modelados em algumas ondas sutis. Se maquiou bem pouco; os olhos estavam destacados por um rímel nos cílios, e nos lábios, um batom discreto. O que mais chamava atenção em seu rosto era a ponta do nariz avermelhada. Mesmo quando ela sorriu para Amélia, era impossível dizer que não esteve chorando no andar de cima. Os olhos molhados também a entregaram.
— Bom dia, Amélia — sua voz amena murmurou. — Aceita um café enquanto conversamos?
— Aceito, mas acho melhor tomarmos um chá. Você precisa se acalmar e confiar que dará tudo certo — ela afagou as costas de , que assentiu, tentando parecer despreocupada.
Meu coração apertou dentro do peito. Fiz menção de ir até , mas o olhar que ela me deu me fez recuar. Amélia estava ali, e ela nos conhecia o bastante para saber que nós não nos abraçávamos de jeito nenhum. Aliás, eu mesmo tinha criado aquela regra imbecil no passado, por isso mantive minha distância enquanto íamos até a cozinha e colocava a água para ferver.
— Primeiro de tudo, o pai estará lá. Não surtem por isso.
Levei a mão ao rosto, respirando fundo para não soltar um xingo. Primeiro porque me fervia o sangue ouvir alguém se referir a outro como o pai de ; segundo porque ter que olhar para a cara daquele filho da puta e não poder fazer um estrago nela era quase impossível para mim.
estava do mesmo jeito, bufando de raiva encostada na pia. Largou até a xícara de chá que tinha em mãos para não derrubá-la. Se eu estava puto, imaginei ela, que tinha acabado de ser atacada e era perseguida por ele há tempos.
— Pra quê? Não vai me dizer que há possibilidade de ele conseguir alguma coisa — ri, incrédulo.
ofegou, aflita com a possibilidade. Acho que nem se ela tomasse um banho de camomila ficaria calma após aquela conversa.
— Ele pode tentar — Amélia murmurou, incerta se continuava ou não. — Acho que a guarda provisória ele não consegue tirar de vocês. Porém, pode exigir o direito de visita.
— Puta que pariu — não aguentei e xinguei, sentido que poderia explodir de tanta raiva.
— Eu não vou deixar aquele infeliz tocar um dedo só na minha filha, só por cima do meu cadáver! — esbravejou, já com os olhos cheios de lágrimas. — Ele tentou me acertar um tiro com ela no colo. Você acha mesmo que ele liga pro bem estar dela, quer conhecê-la ou quer ser presente na vida dela?
— Ele está querendo é dinheiro, isso sim.
— Se acalmem vocês dois. Infelizmente, não podem fazer nada se o juiz decretar o direito de visitas a Miguel — Amélia proferiu, mas eu neguei com a cabeça, ainda incrédulo. Não era possível que permitiriam aquele bandido chegar perto de um bebê indefeso. — Mesmo sabendo da autoria ou do envolvimento dele nos ataques que a sofreu, vocês ainda não têm provas.
Se antes eu já queria socar a cara dele só de vê-lo, imagine o que eu não faria ao saber que, além de fazer o que fez, ainda sairia impune e conseguiria direitos sobre ? Ele riria da nossa cara, certeza!
— O juiz não poderá adivinhar a conduta de Miguel no cotidiano, só saberá o que a assistente social que também foi até a casa dele lhe disser. Então essa é uma possibilidade, já que, querendo vocês ou não, ele é o pai biológico dela.
— Se eu conseguir a medida protetiva de Grace contra ele, posso fazer algo para reverter isso?
— Com certeza será algo que o juiz levará em conta na hora de decidir lhe dar o direito ou não, porque demonstra má conduta da parte dele. Pode conseguir o documento agora? — assenti, pedindo-a para aguardar na cozinha junto de enquanto ia até meu escritório.
“Má conduta”. Era pra rir mesmo. Miguel era tudo de ruim que um homem poderia ser. Além de covarde, era ganancioso o bastante para tentar trocar uma criança por dinheiro, e desprezível a ponto de ter abandonado Grace grávida sem sequer se importar com a criança que ela esperava.
Tudo o que eu pudesse fazer para prejudicá-lo, eu faria, sem pensar duas vezes. Ele ficaria sem o dinheiro e sem a menina e, se tudo desse certo, iria apodrecer na cadeia, que era o lugar dele.
— Aqui está — lhe entreguei o documento, suspirando. E pensar que poderia ser uma pilha de documentos ali.
A impunidade nunca tinha pesado tanto em nossas costas quanto naquele momento. Se tivéssemos todas as provas das coisas que Miguel fez contra nós, qualquer juiz com o mínimo de senso possível o manteria bem longe de e de .
— Ótimo. Vou apresentar o documento ao juiz — Amélia suspirou, levantando-se da mesa. — Só peço a vocês que, por favor, se acalmem e não o acusem de nada diante do juiz sem que tenham provas que comprovem os crimes cometidos.
Ou seja, não poderíamos falar nada.
— Vamos indo. Não cai bem chegar atrasado, não é mesmo?
Seguimos a mulher até a sala, onde estavam Elisabeta e no sofá. Nos despedimos de ambas; a babá nos desejou boa sorte e disse que faria uma oração por nós, já nos olhava despreocupada. Nem parecia que seu destino estaria começando a ser decidido naquela manhã de sábado. Aquela era apenas a primeira da grande batalha que travaríamos para poder tê-la conosco permanentemente, e saber daquilo já me deixava cansado. Porém, iríamos conseguir, audiência a audiência. Mostraríamos à justiça que éramos os pais de e que, como tal, merecíamos ficar com ela para sempre.
Amélia foi em seu carro, saindo na frente após indicar o endereço do fórum. Iríamos depois, logo atrás dela, não sem que antes eu me inclinasse até o banco passageiro e desse um beijo rápido em , que estava preocupada demais para falar algo. Por isso, apenas me ouviu falar que conseguiríamos passar por aquilo.
— Por — sussurrei diante de seu rosto sério. A loira me deu um meio-sorriso ao me ouvir falar aquilo, selando nossos lábios antes de repetir nosso mantra.
— Por .
Chegamos no fórum e nos identificamos, sendo orientados a aguardar num dos bancos do local até que nossa entrada fosse autorizada. batia o pé calçado num salto preto insistentemente, enquanto eu, sentado ao seu lado, dei um jeito de tentar acalmá-la lhe acariciando as costas disfarçadamente, com o braço esticado atrás dela. Amélia estava convencendo a recepcionista a entregar a medida protetiva de Grace ao juiz, que talvez não aceitasse por receber a prova em cima da hora, e este não estar incluso no processo.
— Vamos torcer para que func… — a voz de Amélia foi ficando cada vez mais distante, quando, na porta que entramos minutos atrás, avistei Miguel junto do advogado dele.
O filho de uma puta sorriu para mim quando me viu. Seus olhos escuros chegaram a brilhar em entusiasmo, exatamente do jeito que vi naquela madrugada, no quintal da minha casa.
— !
Não saberia dizer qual das duas tentou me parar com gritos ou simplesmente se prostrando diante de mim. Talvez tenham sido as duas juntas. A única coisa que eu sabia era que iria acertar ao menos um soco na cara dele.
Infelizmente, não completei meu trajeto até Miguel. Os seguranças do fórum intervieram e fizeram o que e Amélia não conseguiram: me impediram de encostar nele. Miguel ficou ali, parado, rindo e se divertindo dos meus esforços em me soltar e ir até ele lhe dar um gostinho do que eu estava sentindo.
Mas não, ele estava lá, intocável como sempre.
— Desculpem o meu cliente, não irá se repetir — Amélia falava com os homens de farda enquanto Miguel era levado para outro lugar, felizmente longe de nossos olhos. — , eu disse pra se controlar!
— Não consigo! Aquele filho da puta me tira do sério! — esbravejei, ainda tendo os seguranças em cima de mim, bloqueando minha visão. — Ele já foi. Da próxima vez, pensem antes de defender aquele band…
— Chega, ! — Amélia me interrompeu no meio de minha frase, agradeci mentalmente por aquilo. Vai saber se não poderia ser considerado desacato. Ser preso não nos ajudaria em nada. — Isso pode ser prejudicial a vocês. Tome uma água e se acalme se não quiser correr o risco de perder pela sua má conduta! — ela estava furiosa. Falava baixo, mas seu semblante era duro. Estava parecendo uma mãe dando bronca no filho.
Peguei o copo descartável cheio da mão de a contragosto. Ela não falou nada. Tinha certeza que, apesar de ter ficado com medo do que acabou de escutar da advogada, aprovava minha reação. Talvez tenha até pensado em fazer o mesmo.
Me ajeitei na cadeira e arrumei minhas roupas e cabelos, que bagunçaram com toda a ação. Aguardamos mais um pouco, minutos que mais pareceram horas intermináveis, e logo fomos chamados para entrar no salão.
— Próximo caso: , processo número 05893-01 — uma voz masculina anunciou, enquanto andávamos pelo local de paredes brancas e móveis majoritariamente em madeira clara.
As pessoas que estavam tratando com a juíza à frente passaram por nós quando nos aproximamos da mesa à esquerda da sala, onde havia três cadeiras apostas. Nos sentamos, tendo atrás de nós algumas pessoas – que, provavelmente, deviam estar esperando sua vez –, com a mulher de semblante sério concentrada nos papéis que tinha diante de si. Seus óculos redondos passearam pelos escritos antes que os erguesse em nossa direção. Engolimos em seco, e logo seus olhos escuros estavam do outro lado da sala, onde aquele ser estava sentado junto do advogado.
— Os tutores atuais da menor querem poder continuar zelando pelos interesses da criança e prover à ela uma boa qualidade de vida, moradia e um bom ambiente familiar — Amélia verbalizou, tendo total atenção da mulher de cabelos pretos sobre ela. — Demonstram grande interesse em prosseguir com o processo, a fim de conquistarem a guarda definitiva.
— Tenho em mãos a avaliação da assistente social, e parece que a situação é favorável para os tutores atuais — a juíza mais uma vez analisou a papelada. Ouvi suspirar ao meu lado, e eu a encarei de canto de olho. Ela mordia o lábio inferior, com os olhos cheios e um sorrisinho sendo contido. — Vamos ouvir a outra parte.
— Meu cliente quer entrar na disputa para conseguir a guarda definitiva da filha, que é biológica e tem o direito de conhecer o pai.
Miguel era ridículo, extremamente ridículo. Como ele podia fazer uma coisa daquelas? Tentar tirar de nós, sabendo que poderíamos dar tudo o que ela precisava? Amá-la, educá-la corretamente e fazer tudo o que ele, além de não querer fazer, não poderia lhe ofertar. Ele não a queria. Só queria ganhar em cima dela. Como alguém podia ser tão podre a ponto de colocar em risco uma vida para benefício próprio?
— Eu nunca nem vi seu rostinho! Me impediram até de entrar no hospital! — ele dizia, me fazendo fechar os olhos com força e respirar fundo para não surtar e fazer besteiras diante da juíza, que o encarou de sobrancelhas arqueadas. — Eu quero a minha filha! Eu tenho esse direito!
Mentiroso! Ele tinha a visto na noite da invasão a minha casa! Não era como se ele se importasse com aquilo, de qualquer forma.
— Sr. Rodriguez, abaixe o tom de voz — a juíza brandou, autoritária. — Não há necessidade de me informar seus direitos. Eu sei o que estou fazendo aqui.
Troquei olhares com Amélia, que acenou com a cabeça numa comunicação silenciosa. Tinha que agradecê-la por ter se preocupado tanto conosco e nos ajudado a nos encontrar mais cedo para dizer como deveríamos nos portar. Se ela não nos tivesse avisado, com certeza numa hora daquelas estaríamos e eu batendo boca com Miguel, rebatendo suas calúnias e deixando claro que ele queria dinheiro em troca de . Infelizmente, não tínhamos como provar.
— Diante do apresentado, a partir de agora, por meio desta — pegou minha mão suada, apertando meus dedos com os seus em puro nervosismo. Levei nossas mãos ao peito, esperando ansioso o veredito —, mantenho a custódia provisória física e legal de a Marie e Edward .
O alívio ficou estampado em nossos rostos. Amélia sorriu abertamente, porém manteve sua compostura, enquanto deu pulinhos ao meu lado, fazendo-me rir baixinho. Eu estava prestes a explodir de felicidade. era tudo o que nós tínhamos de mais valioso no mundo, e saber que ainda a teríamos em nossos braços era a melhor notícia do universo.
— Vossa Excelência — o homem ao lado de Miguel protestou, quando estávamos prestes a sermos dispensados.
Estava bom demais para ser verdade. Nos últimos dias, qualquer coisa conquistada fácil demais para mim e era realmente de se estranhar.
— Meu cliente gostaria, então, de ao menos ter o direito de visitar a menina.
e eu encaramos Amélia, aflitos.
Não saberia o que poderia ter sido de nós se Miguel não fosse o criminoso que era. Talvez tivesse ficado com para si, talvez ela nem tivesse esse nome ou eu só a veria vez ou outra para manter contato, não sei. Eram muitas possibilidades. Seria aceitável perdê-la para alguém que a amaria e lhe protegeria. Não era nem uma questão de egoísmo da nossa parte.
Quem complicou todas as coisas foi o próprio Miguel, que perseguiu e ameaçou minha irmã por diversas vezes. Ele não merecia estar perto de depois de contribuir para o mal dela, porque o parto de Grace foi tão delicado que poderiam ter morrido ambas, justo por culpa do estresse e do medo que ele a fez passar. Se dependesse de mim, a menina nem saberia da existência dele. Cresceria acreditando que ele estava morto.
— Sr. Rodriguez, a sessão já foi encerrada. Esta é minha decisão por enquanto. Me foi apresentado um documento que atesta o desejo da mãe de te manter distante dela. Logo, acho de bom tom manter o desejo dela e não te autorizar a ver a menor.
— Mas…
— Sessão encerrada — repetiu, com uma entonação diferente. — Terá o direito de apelar na próxima audiência, Sr. Rodriguez.
— Obrigada, muito obrigada — soluçou em direção à outra mulher, que se limitou em dar um sorriso discreto e acenar com a cabeça.
Eu não sabia descrever em palavras o sentimento bom que me tomou ali, diante de todos aqueles desconhecidos. e eu nos abraçamos forte. Senti-a chorar em meu ombro e me afastei para lhe tomar os lábios, apenas segurando seu rosto e colando sua boca na minha superficialmente. Quando seus olhos azuis se abriram, pude ver o brilho que ela tinha perdido nos últimos dias devido aos acontecimentos passados.
Sorri junto dela, que se virou para abraçar Amélia, que me olhava surpresa pelo ombro de . Esperava que ela não nos questionasse sobre aquilo, mas, de qualquer forma, estávamos em público, não? Era o que qualquer casal real faria. Aquela era uma ótima desculpa, aliás.
— Próximo caso — a juíza bateu o malhete, voltando a mexer nos papéis enquanto finalmente deixávamos o local.
O que me deixava mais tenso era ter que expor aspectos da minha vida que, no início do nosso envolvimento, prometi a mim mesmo que não revelaria a ela. Mas não daria para desabafar e deixá-los de fora. Era a hora de me apresentar inteiramente para Dafne e deixá-la saber muito mais do que apenas meu primeiro nome. Claro, ainda escondendo a parte da farsa ao lado de .
— Você é um pai muito babão, — me dispersei ao vê-la se inclinar até onde minhas chaves estavam na ignição e pegar o chaveiro que tinha uma foto de . Soltei um riso tímido. — Meu pai é igualzinho, tem foto minha em tudo quanto é lugar.
Me mantive calado enquanto manobrava o carro para estacioná-lo numa das vagas em frente ao estabelecimento, que estava até vazio para o horário. Ao ter aquele pensamento, lembrei-me de me atentar às horas, já que logo teria que pegar no trabalho.
Escolhemos a costumeira mesa dos fundos, o mais longe possível da fachada e das outras paredes de vidro do local. Dafne continuava paranoica com aquela coisa de sair com um homem casado, apesar de não estarmos num clima para pegação no momento. Ela tinha entrado no carro sem me beijar, provavelmente percebendo que o assunto era sério.
— O que houve? Não me diga que são problemas no casamento — seu olhar preocupado focou-se em mim assim que terminamos de fazer os pedidos. Em seguida, o atendente deixou nossa mesa e levou consigo os livretos dos cardápios.
— Na verdade, não — sorri contido, vendo seu rosto se iluminar imediatamente. Era bizarro ver uma amante comemorando o sucesso do casal do qual fazia parte, mesmo sendo uma intrusa. — As coisas estão ótimas entre a gente.
Não me prolonguei. Eu tinha um trato com , e assim como todos os outros que fizemos desde que nos casamos, iria honrá-lo. Até porque não queria deixar brecha nenhuma para poder falar sobre nós com Tom, e para isso eu teria que ter moral para falar algo, caso acontecesse.
— Que susto. Por um momento, achei que as coisas tinham piorado entre vocês — ela levou a mão ao peito, aliviada.
Neguei com a cabeça. Tinha sido bem o contrário. Aliás, para piorar as coisas entre nós, do jeito que éramos antes da trégua, só se saíssemos nos tapas como fazíamos quando crianças.
— Estou feliz por vocês, por mais estranho que possa parecer — ela encolheu os ombros e soltou uma risadinha, fazendo-me imitá-la. — Vocês dois são muito novos, ficam lindos juntos e, ainda por cima, têm uma filha. Seria muito cedo para desistir.
Por incrível que poderia parecer, mesmo que as coisas não tivessem sido fáceis para nós no início – com a convivência difícil, adaptação e Miguel nos infernizando –, nunca nos passou pela cabeça a ideia de desistir. já deu seus chiliques vez ou outra; porém, duvido muito que não tenha sido tudo da boca pra fora.
Depois de tudo que passamos até ali, desistir parecia uma ideia estúpida desde o princípio. Antes, pensar na possibilidade de estar casado do dia pra noite e ser pai sem os nove meses de preparação psicológica parecia a coisa mais difícil que eu faria na vida. Lembrava-me de ter quase tido uma crise asmática minutos antes do casamento, pensando em tudo que viria pela frente. Mas, estranhamente, mesmo com as dificuldades, estava sendo mais fácil do que tinha imaginado.
— As fotos que me mandou na viagem já deixavam claro que as coisas estavam se ajeitando — Dafne apoiou o rosto na mão. — Você estava todo felizinho nelas.
Quase franzi o cenho. Não o fiz para não dar bandeira. Mas tinha como ser infeliz em Tulum? Eu estava feliz por estar descansando, por tirar uma folga de todos os problemas que aquele casamento me trouxe, só isso! não tinha nada a ver com aquilo, sequer tínhamos transado quando aquelas fotos foram tiradas!
— É, mas não era sobre isso que eu queria conversar — sorri amarelo, aproveitando para fazê-la parar de fanficar sobre e eu. — Dafne, eu estou com alguns problemas pessoais... Sei que não pode me ajudar, ninguém pode, aliás. Mas você me disse uma vez que eu poderia contar com você caso precisasse conversar um dia. E eu meio que preciso agora.
— Sou todo ouvidos, — ela pegou minha mão por cima da mesa, sorrindo de forma complacente. — Fico feliz que agora confie em mim para desabafar. Sei que no início você se esquivou de perguntas mais evasivas. Entendo que, por ser casado, deva bater uma insegurança na hora de revelar sua vida — Dafne era muito observadora. Eu tinha tentado a todo custo fazer aquilo de um modo discreto. — Não se preocupe, . Como acabei de te dizer, torço pra que você e sua esposa se resolvam. Não pretendo entrar no meio de vocês e nem expor o que temos a ninguém.
— Me desculpe por isso, é que é complicado — me remexi na cadeira, desconfortável. Ela concordou prontamente.
— Tem muita coisa em jogo, não é?
Tinha em jogo, e ela por si só já significava tudo. Não sabia o que faria se a perdesse por um deslize meu.
— Mas vamos lá, me conte sua história — Dafne continuou.
Fiz um resumo sobre a história com meu pai e a empresa, citando vagamente o acontecido com Grace para que ela não desse a devida importância, não ligasse os pontos e desconfiasse da veracidade do meu casamento com . Aproveitei e adicionei a histórinha de amor fake de como nos conhecemos, para ficar mais crível, e a tive rindo de nós dois, encantada com o que ouviu. Eu nunca entenderia o fascínio que Dafne tinha em mim e .
Aproveitei e contei um pouco sobre a tensão que a audiência estava nos trazendo, ocultando os ataques de Miguel para não deixá-la espantada. Tudo citando o mínimo possível; eu queria escondê-la ao máximo de Dafne para fazer minha parte no trato. Era estranho também ficar expondo para a mulher que achava que me dividia com ela. Sentia como se estivesse caçoando dela, o que de fato até fazia sentido; já que, para Dafne, era corna e não fazia ideia.
Ela me aconselhou sobre meu pai de um jeito completamente diferente de , o que me fez torcer o nariz, visivelmente incomodado com o que Dafne dizia. Ela tinha um ponto. Eu realmente não consegui discordar quando expôs que meu pai – e até mesmo a minha mãe –, talvez possam ter dificuldades na hora de aceitar , porque se sentiram traídos por Grace. Além disso, havia toda a questão do luto, que, para eles, poderia ser mais forte. Ambos estavam brigados com a filha e nem tiveram a oportunidade de se despedir ou conviver com ela em seus últimos meses de vida.
Na minha cabeça, por mais sentido que as coisas pudessem fazer – ao serem explicadas por ela de um jeito simples, mas profissional –, eu não conseguia aceitar que era aquilo que os afastava da neta. não poderia ser culpabilizada pelos erros da mãe, e meus pais estavam fazendo com a menina exatamente o que fizeram com Grace!
E foi aquilo que argumentei a ela, levemente alterado. Era difícil ver o lado deles quando as coisas poderiam ter sido muito mais fáceis se eles cooperassem! Segundo ela, eles precisariam trabalhar aquela questão do luto e das barreiras emocionais que os impedia de aceitar a existência de .
Ou seja, se eles precisavam de terapia e não faziam, eu que não os deixaria perto da minha filha para ela, no futuro, precisar de terapia por conta dos traumas que eles a proporcionariam.
— Sobre a assistente social, ... Eu não os conheço direito, mas pela história que me contou, que é linda por sinal, acredito que não devam ficar preocupados com isso.
Terminei minha xícara de café, limpei a boca com o guardanapo e chequei a hora no relógio que me deu. Nunca tive costume de usar relógios, porém, estava gostando da praticidade. Eu o usava todos os dias, e estava até pensando em comprar outros.
— Vocês devem ser ótimos pais. Então relaxe e tente deixar sua esposa tranquila. Sei o quanto ela deve estar com medo de perder a filha — deu um sorriso triste em minha direção. Franzi o cenho ao ver seus olhos claros se encherem de lágrimas e peguei sua mão, afagando-a ainda sem entender o motivo do choro. — Me desculpe, é que… uns dois anos atrás perdi um bebê com dois meses de gestação. Imagino que a dor de ter tido um filho nos braços por um tempo e depois ele ser tirado de você deva ser pior do que nunca tê-lo visto.
— Tenho certeza de que não há como comparar as dores — alcancei seu rosto, secando suas lágrimas que caíram por sua bochecha. — Eu não imaginava — murmurei, me sentindo culpado por ter entrado no assunto sobre filhos, mesmo que na inocência.
— Tudo bem. Eu falei de você, mas também não te contei sobre minha vida — ela riu em meio ao choro contido, fazendo-me arquear as sobrancelhas e negar com a cabeça, numa brincadeira em reprovação à sua hipocrisia. — Não tem nada de mais, fique tranquilo. Não sou uma fugitiva ou algo do tipo. Me casei aos vinte e quatro, passei dois anos ao lado dele e nos separamos após a perda do bebê.
Me surpreendi com o fato de eu não saber sequer sua idade direito, mas também nunca imaginei que ela tivesse sido casada um dia.
— Foi um período muito difícil na minha vida. Você foi um dos poucos caras com quem fiquei depois de meses e meses do meu divórcio, e, apesar de ser errado, o fato de você ser casado me dá segurança de que não vou querer algo sério contigo. Não sei se estou pronta para isso, entende? — ela perguntou, e eu concordei, compreensivo. Estava embasbacado. Não fazia ideia que sua história era tão triste. — Na época, larguei faculdade. Eu não me dava bem com ele, acho que o cansei aos poucos. Entendi completamente quando me pediu o divórcio, apesar de ficar magoada por ver que ele nem ao menos tentou me trazer de volta para seu lado.
Abracei-a e, sentindo-a deitar a cabeça em meu ombro, afaguei suas costas por um tempo. Logo Dafne saiu de meus braços, sorriu serena e me deu um selinho de leve, agradecendo-me pelo abraço. Ela não se deixava fragilizar por muito tempo, então logo lembrou-se que ela era a psicóloga ali e retornou para o seu lugar após secar as lágrimas.
— É por isso que eu te falo tanto sobre sua esposa, em como deve cuidar dela e não desistir tão fácil. Eu não tive a mesma sorte de ter o que vocês dois têm — sua mão acariciou minha bochecha, e eu engoli em seco.
Quando as pessoas vinham com aqueles papos sentimentais sobre e eu nos amarmos como um casal real, me sentia um merda por estar mentindo para elas. Nunca me esqueceria do que Theresa me falou sobre eu ajudar a superar um passado que eu não fazia ideia do que era. Não sabia descrever o que sentia ao ver que ela estava colocando aquela responsabilidade enorme nas minhas costas, sendo que, na realidade, nunca confiaria em mim para dividir nada daquilo.
— Falando nela, tenho que buscá-la no trabalho.
Salvo pelo gongo. Se não a tivesse interrompido, Dafne entraria no assunto de novo e eu teria que me esquivar mais uma vez, e estava difícil fazê-lo. Ainda mais quando sentia que tinha algumas coisas mal resolvidas dentro de mim em relação a , que talvez alguém de fora pudesse me ajudar. Mas, para ter sua ajuda para entendê-las, Dafne teria que saber de todo o contexto. E revelar o segredo do casamento falso era uma coisa que eu não faria.
Paguei a conta e chequei o relógio mais uma vez. talvez tivesse que esperar um pouquinho até que eu chegasse até a lanchonete.
— Vamos, eu te deixo em casa — levantei-me, esperando-a fazer o mesmo. Porém, a morena continuou onde estava.
— Não precisa, não quero te atrapalhar. Eu chamo um táxi — ela disse, e eu não insisti. Agradeci enquanto ia até ela, que se levantou daquela vez para me dar um abraço. — Senti sua falta. Temos que marcar de sairmos de novo qualquer dia desses.
Concordei com ela. Dafne era uma ótima ouvinte. Lhe beijei a boca, sentindo sua língua tocar a minha com calma. Foi um beijo rápido de despedida.
Logo fui apressado até meu carro. Não queria deixar esperando, muito menos sozinha.
's point of view.
Me despedi das meninas após insistir muito para que elas fossem embora, ao invés de cometer a loucura de ficarem comigo em frente à lanchonete esperando , que estava quinze minutos atrasado. Já estava escurecendo e elas pegariam transporte público para ir pra casa. Eu estaria segura ali na avenida movimentada por carros indo e vindo já com os faróis acesos.
Acabei não esperando por muito tempo. Logo o carro dele encostava no meio fio do meu trabalho para que eu pudesse embarcar. Acomodei-me no banco do passageiro, tendo seus olhos verdes em mim. vestia apenas a camisa preta de botões e não havia nem sinal de seu blazer. Devia estar no banco traseiro. Puxei o cinto, e ele se virou em minha direção de repente.
— Como foi seu dia? Está melhor? — perguntou, e inclinei-me até seu corpo, esperando até que sua boca se chocasse contra a minha. Porém, algo me interceptou no meio do caminho, fazendo-me virar o rosto rapidamente.
Um perfume feminino.
Funguei, ainda sentindo-o bem próximo de mim. Não era o meu, eu tinha certeza daquilo. acabou por beijar minha bochecha, puxando-me para um abraço desajeitado, deixando-me de cara com a pequena e quase imperceptível mancha clara no tecido. Eu tinha quase certeza que aquilo poderia ser maquiagem.
Uma certeza concreta somada àquela suspeita foi o bastante para querer me afastar de seu corpo. Assim que seu braço se afrouxou em volta do meu tronco, saí de perto ainda sentindo aquela sensação incômoda dentro do peito.
— Foi bom — murmurei e respirei fundo, tentando soar normal enquanto tentava entender o que estava acontecendo comigo.
Encostei-me no banco após finalmente colocar o cinto de segurança, que apenas fez o aperto do meu peito se intensificar. O celular dele vibrou sobre o compartimento entre os bancos do veículo, que era onde deixava o aparelho quando dirigia. No tempo em que sua mão deixou a marcha para apanhá-lo, pude ler o nome do remetente da mensagem que apareceu em sua tela inicial.
Dafne.
Aquele perfume era dela, a base manchada na camisa de era dela. Com certeza ela devia tê-lo abraçado e encostado a cabeça ali, em seu ombro. Aquilo explicaria o seu cheiro impregnado nele. Meu olhar foi direto em seu rosto, que estava de perfil, já que estava com o carro em movimento. Procurei outro resquício nele, talvez uma mancha de batom na bochecha ou no pescoço...
Senti meu estômago revirar. Me remexi no banco, desconfortável, tendo uma dúvida que me deixou paranoica. Será que ela tinha ocupado aquele lugar antes de mim?
— Droga — ele largou o aparelho no mesmo lugar após digitar uma mensagem rápida enquanto estávamos parados no trânsito.
Encarei-o novamente, numa pergunta silenciosa, sem verbalizar o que realmente queria lhe perguntar. Na verdade, nem eu mesma sabia qual seria minha dúvida. Estava tudo tão claro! E mesmo que não estivesse, se eu tivesse chances ou estivesse no direito de questioná-lo sobre algo envolvendo outra mulher, nem saberia por onde começar.
Eu estava me sentindo tão… tão...
Não conseguia identificar, e era aquilo o que mais me agoniava. Só sabia que era algo intenso. Intenso o bastante para me fazer querer descer do carro e ir embora para casa a pé.
— Esqueci meu blazer no café, se importa de irmos buscar?
Café.
Não na empresa. Em um café.
Se é que ele tinha se encontrado mesmo com Dafne num café. Eu já tinha mais de dez anos de idade, claramente sabia o que dava para fazer no tempo em que o expediente de acabou até o horário em que eu saí do trabalho. Imaginava também que o que eles devem ter feito juntos. Com certeza possibilitaria que deixasse para trás qualquer outra peça de roupa que tenha se esquecido de vestir de volta no corpo. Poderia ter sido um cinto, uma das meias, a gravata…
Olhei de novo para ele, verificando se a gravata azul-marinho estava devidamente colocada em seu pescoço. franziu a testa, ainda esperando uma resposta minha. Me toquei do que estava fazendo, agindo feito louca com um cara que nem era nada meu! Sinalizei que não com a cabeça, tendo-o mudando a rota do caminho que seguíamos.
Eu precisava de um banho e da minha cama. Era aquilo, descansar a mente, porque sentia que estava pirando aos poucos naquele dia.
— Cadê ? Pensei que tinha ido em casa como ontem — joguei um verde, coçando a nuca como quem não quer nada.
Não consegui segurar. Estava intrigada em querer saber o que eles tinham feito. Parecia que eu não dormiria aquela noite se não descobrisse.
— Não fui pra casa. Acho que se tivesse ido, não a traria comigo para te buscar mesmo assim. Não iria querer expor ela caso Miguel ainda esteja atrás de nós.
Não era aquela a resposta que eu queria.
O celular voltou a vibrar, fazendo-me respirar fundo daquela vez e olhar para fora pela janela. Não valia a pena ficar em busca de saber aquilo. Nem era da minha conta, de qualquer forma. Daquela vez, não lhe respondeu. Tínhamos chegado ao tal café e ele apenas desceu, indo para dentro do estabelecimento granfino.
O aparelho continuou ali, a uma esticada de braço de distância. Eu sabia que, se o pegasse e apenas fizesse o movimento de virá-lo para cima, seu visor acenderia e eu teria acesso àquela notificação e ao conteúdo da mensagem. Meu coração bateu forte no peito e me vi respirando fundo para não sucumbir àquela ideia estúpida. Parecia-se muito com aqueles pensamentos esquisitos da nossa cabeça, que, estranhamente, nos manda pular quando estamos passando por uma ponte, sabe?
Aquilo era violação de privacidade. Nem se estivéssemos num relacionamento real espiar suas notificações e ler as mensagens que chegavam seria aceitável. Até porque, pela milésima vez, não me devia fidelidade. Fora que era Dafne. Era mais fácil ele me esconder dela do que o contrário. era tão íntimo dela quanto era de mim. Aliás, se brincasse, ela poderia até ser mais do que eu, considerando o fato de que ele saía com ela porque gostava; tinha escolhido passar o tempo ao seu lado. Já comigo, era apenas sexo e carência. Eu tinha certeza que ele escolheria qualquer outra mulher para ter que se casar e estar no meu lugar.
Pelo vidro do local, pude ter acesso ao interior do café. Parecia aconchegante e me lembrava muito os lugares onde Colin me levava quando namorávamos – e ele, aparentemente, tinha vergonha de namorar uma bolsista ou só não queria que os pais soubessem. Era um lugar típico de alguém que queria esconder algo: discreto, longe da avenida e numa rua pouco movimentada.
Tinha um casal em uma das mesas dispostas do lado de fora do estabelecimento, sentados um ao lado do outro enquanto um dos homens acariciava os cabelos escuros do outro. Se aproximaram rindo de algo e se beijaram diante da mesa posta com alguns muffins e o que parecia ser uma bebida quente nas xícaras que levaram à boca após se separarem.
Ele a levava até ali para poderem se comportar livremente feito um casal como aqueles dois?
— Pronto — jogou a peça no banco de trás e ajeitou-se de volta antes de colocar o cinto. — Agora vamos pra casa — suspirou, colocando sua mão grande sobre minha coxa, prestes a me acariciar.
Ofeguei, encarando suas tatuagens aparentes na região. Eu não o queria me tocando, não antes que tomasse um banho. Tirei sua mão dali, vendo-o me analisar confuso por um instante.
— O que há com você? Está estranha.
Agindo como uma mulher traída? Pois é, , eu também estou me estranhando! Talvez o fato de estarmos transando tivesse algo a ver com aquela sensação horrível que eu estava sentindo.
Precisava de um tempinho comigo mesma, para, quem sabe, conseguir me pegar pelos ombros e chacoalhá-los enquanto me fazia entender que não poderia me sentir daquela forma em relação a .
Por hora, enquanto estava na presença dele, teria que me abster de abrir a boca seja qual fosse o motivo, fazer comentários, perguntas ou simplesmente falar abobrinhas. Manter a boca fechada talvez fosse a melhor estratégia no momento. Parar de avaliá-lo e tratar de impedir minha cabeça de criar suposições que envolviam os dois juntos também ajudaria. Até porque eu nem sabia como ela era fisicamente para imaginar alguma coisa.
Será que seria uma boa ideia pedi-lo para ver uma foto dela?
Respirei fundo, xingando-me mentalmente. Qual a parte de não abrir a boca não ficou clara? Aliás, eu não poderia dizer que nunca a tinha visto. Lembrava-me daquela vez em Tulum, que, sem querer, acabei vendo um nude que ela tinha enviado para durante o jantar. Ela tinha seios lindos, pareciam o “depois” sendo comparado com o “antes” daquelas fotos de cirurgias de silicone que deram certo.
Encarei meus próprios seios pequenos, cobertos pela camiseta do meu trabalho, sentindo-me estúpida. Era melhor nem saber como ela era fisicamente depois daquilo.
— Estou bem — tentei esboçar um sorriso, sem muito sucesso por estar brava por dentro. — Só estou cansada, quero tomar um banho e me deitar.
— Vamos passar na pizzaria então, aí não precisamos nos preocupar com o jantar.
Um funcionário saiu para fora, levando consigo um grande saco preto de lixo. De repente, quis me enfiar no espaço que tinha abaixo do porta-luvas, com medo de que ele olhasse para dentro do carro e reconhecesse como o cliente que estava ali um tempo antes, acompanhado de outra. Ele com certeza ligaris os pontos e iria querer ver a cara da corna conformada que ainda acompanhava o marido de volta ao local em que ele se encontra às escondidas com a amante.
— Vamos pedir em casa — argumentei, agoniada, querendo desaparecer dali num estalar de dedos e me teletransportar para dentro de casa. — Eu realmente estou cansada.
— Ainda está com dor? — indagou, e eu neguei sob seu semblante preocupado. — Então está bem, vamos pedir em casa — ele se aproximou e pegou meu rosto, puxando-me para perto.
Minha respiração falhou. Eu não era a esposa dele de verdade. Tudo bem, me custou enfiar aquilo na cabeça e admito que a sensação de traição ainda continuava intacta em algum lugar dentro de mim. Mas também aceitar que ele me beijasse logo depois de ter estado com ela já era demais, não é?!
— . Por favor, vamos embora — me desvencilhei quando estive bem próxima, com nossos narizes se tocando. Ele assentiu, ainda me olhando estranho, finalmente deixando o estacionamento do estabelecimento e dirigindo até em casa.
Fomos o caminho todo em silêncio, enquanto as vozes da minha cabeça se ocupavam do trabalho de me manter a mil por hora com um fluxo de pensamentos mais acelerado que o carro em que estávamos.
Chegamos em casa e encontramos Elisabeta sozinha na sala, vendo TV com a babá eletrônica em mãos. Antes de dispensá-la, trocou algumas palavras com ela, algo provavelmente envolvendo a troca dos vidros da casa que tinha sido feita naquela tarde.
Espiei a imagem do pequeno aparelho no sofá, observando a neném dormir serena em seu berço no escuro. Não sabia se iria deixá-la dormir em seu quartinho novamente tão cedo. Eu ainda ficaria paranoica por um bom tempo.
— Tchau, até amanhã — sua voz foi se aproximando e logo o senti enlaçar meu corpo por trás. — Vamos tomar um banho, hum?
Suspirei, sentindo seus lábios depositarem beijos em minha nuca. Se ele estava me chamando para tomarmos banho juntos, deveria repensar o convite quando soubesse que eu estava louca para pegar a bucha e esfregar sua pele inteira só para tirar o cheiro do perfume dela de si, e aquilo provavelmente iria doer.
— Não, — saí de seu abraço, desconfiando que talvez minha TPM tivesse algo a ver com todos aqueles sentimentos desagradáveis ao me lembrar da existência de Dafne. Porque era a única explicação, já que antes eu era indiferente ao caso que eles tinham. Bom, antes eu também não tinha transado com ele. — Vou ficar para pedir a pizza. E também, se acordar, a gente não vai ouvir — falei, por fim, considerando que não iríamos apenas tomar um banho caso entrássemos debaixo daquele chuveiro juntos e completamente nus.
— Então vai você primeiro, eu peço a pizza.
Assenti, observando-o se aproximar, receosa. pegou meu rosto, e, daquela vez, não tive escapatória. Ele selou os lábios nos meus, fazendo-me desvencilhar dele e subir praticamente correndo para cima.
Ele tinha beijado Dafne, eu tinha certeza! Mesmo que não tivessem transado como achei antes de realmente comprovar a existência do café e que eles estiveram lá, eu não podia ser ingênua a ponto de achar que eles foram até lá com outra intenção além de se pegarem.
Depois que saí do banho, o encontrei com bem acordada no colo e a pizza já sobre a mesa, com a embalagem ainda fechada. Peguei a bebê no colo e o esperei tomar banho para que jantássemos juntos. Brinquei um pouco com a menina enquanto me distraía para não ficar olhando pela janela recém-consertada toda hora. Às vezes parecia que tudo tinha sido apenas um sonho ruim.
— Ué, não vai comer? — chegou na cozinha, já vestindo pijamas.
— Eu estava esperando você — murmurei e me levantei, me servindo de uma fatia antes de voltar ao meu lugar na mesa.
— Não estou com fome — puxou uma cadeira ao lado, sentando-se bem perto. — Comi algumas coisas no café.
Cortei a pizza com força, levando um pedaço grande a boca e descontando a raiva na mastigação.
— Parece ser um lugar bem legal — comentei, encarando meu prato.
Era o tipo de lugar que ele jamais me levaria, porque, apesar de eu ser a droga da esposa dele, era eu quem ele pegava às escondidas. Não estava reclamando! Longe de mim, era exatamente daquele jeito que deveria ser! Mas, porra, levar a amante pra passear ou pra jantar sempre já era demais. tinha me deixado esperando porque estava ocupado com ela.
Quer saber? Talvez eu devesse mesmo ir jantar com Tom, já que eu tinha certeza que seu bom gosto o faria escolher um restaurante maravilhoso para me levar. E apesar de querer apenas ser amiga dele, eu me arrumaria como num encontro de verdade. Há tempos que não fazia aquele tipo de coisa. E se Dormian estava disposto a me dar uma noite agradável, eu não seria burra de negá-lo, certo?
— É sim — comentou, inclinando-se para limpar a baba de de seu pequeno queixo. — É bem tranquilo, eu precisava de um lugar assim pra conversar. Sabe, falar com Dafne foi muito esclarecedor pra mim.
Me segurei para não soltar um riso sarcástico. Ah, sim, sua amante é a detentora da sabedoria do universo, não é, ? Desisti daquela baboseira de comer com garfo e faca, pegando a pizza com as mãos mesmo.
— Ela me ajudou a ver as coisas de um outro jeito. Conversamos sobre meu pai e a situação da empresa. — Sorte dele que não ouvi meu nome. — Foi bom ouvir uma opinião mais profissional.
Olhei para ele de canto de olho, vendo-o brincar com a bebê no carrinho. Eu tinha sido o quê naquele dia? A única opção em sua frente? Eu o consolei e nem créditos recebia por aquilo?
Mas nããão, Dafne com certeza tinha o entendido melhor que eu, a pessoa que estava passando por aquele inferno ao lado dele.
Minha vontade naquele momento foi de lhe contar o que aconteceu no meu dia, que nem ele estava fazendo comigo justo no dia em que eu não queria saber de nada sobre ele e Dafne. Falar da visita que recebi no trabalho, do chocolate que ganhei e o quão delicioso estava. Falar também do modo como Tom se preocupou comigo e, ainda por cima, me chamou para sair!
— Bom pra você — lhe dei um sorriso cínico.
— Não vai comer mais? — indagou, ao me ver levantando já com o prato vazio em mãos.
— Estou satisfeita —fui até a pia, lavei minhas mãos e peguei do carrinho. — Boa noite, .
— Vai dormir agora, tão cedo?
— Estou cansada, só isso.
Fisicamente e principalmente mentalmente cansada. Estava ficando doida com o que aquele incômodo estava me causando. Eu só queria deitar, fechar meus olhos e dormir.
Sabia que não me permitiria fazer aquilo logo; porém, esperaria até que ela dormisse e, enquanto seu soninho não vinha, faria a minha digestão. Virei-me e fui em direção à saída da cozinha, quando ouvi a voz dele me chamar de volta.
— Espera — se levantou, indo até mim e dando boa noite para a bebê antes de enterrar uma das mãos em meus cabelos atrás da orelha. Seus olhos verdes me analisaram por um tempo e ele logo se aproximou, beijando minha boca.
Daquela vez, o retribuí, permitindo que ele tivesse passagem com a língua e me deixando levar pelo seu braço, que me abraçou e afagou minhas costas, tomando cuidado com em meu colo entre nossos corpos.
— Quase não me deixou te beijar hoje, cheia de charminho.
Ri sem graça com seu tom de voz e avancei contra seus lábios novamente, pegando em seu rosto e passando a mão em seus cabelos macios. Estava de banho tomado e com seu cheiro bom usual.
murmurou, provavelmente reclamando por estar sendo esmagada por nós.
— Boa noite, . Vou dar uma passada no escritório pra ver uns e-mails, pode deixar que organizo tudo aqui quando eu jantar.
Subi, brincando um pouco com a bebê, que demorou um pouquinho a cair no sono em meus braços. Quando o fez, a deitei no berço ao lado da nossa cama. O fim de semana se aproximava e, como ele, vinha o dia que me deixava com dor de barriga de nervoso. Eu sofria por antecedência ao imaginar o que seria de nós naquela audiência.
's point of view.
Os últimos três dias praticamente voaram. Voltamos à rotina de sempre e me surpreendi por estar aliviado. Estava me sentindo um velho aos vinte e quatro anos por ficar feliz em apenas trabalhar e ir pra casa ficar com minha filha. Era impressionante como eu tinha mudado tanto em tão pouco tempo.
Recebemos o corpo de Salém de volta e seguimos as instruções dos policiais de como deveríamos enterrá-lo no quintal. Cuidei disso, já que parecia não querer lidar com tais burocracias. Ela parecia estar mais tranquila quanto ao luto, apesar de continuar possessa com Miguel e a demora da polícia em resolver as coisas.
As câmeras o flagraram no quintal, e a da rua o filmou tanto invadindo minha casa quanto em sua fuga às pressas. Ele contou com a ajuda de um comparsa, que estava na moto esperando-o para irem embora. Infelizmente, ambos estavam de capacetes e toucas ninja, dificultando o reconhecimento. Pelo que entendi, a polícia tinha contatado Rodriguez para interrogá-lo, e ele foi liberado após apresentar alguns álibis. Foi ele, eu tinha certeza que sim, e mesmo que não fosse ele quem tinha invadido nossa residência, a pessoa que nos atacou foi lá a mando dele.
De qualquer forma, já que não podíamos contar com a proteção da lei – nem com a prisão de Miguel, muito menos com a medida protetora de –, tínhamos que nos proteger por conta própria. Instalei cercas elétricas em casa e continuaria a levar e buscar no trabalho. Eu sabia me cuidar, e duvidava muito que Miguel viesse atrás de mim. Aquele desgraçado era um covarde, por isso continuaria com sua mira em .
Chegava a ser ridículo ter a única casa naquele condomínio todo a ter uma cerca daquelas, já que aquele lugar nos foi vendido como extremamente seguro e familiar.
Naquele sábado, despertamos aflitos com o que viria. Foi uma noite mal dormida, com se revirando na cama a cada cinco minutos, enquanto eu nem sono tinha. Levantei primeiro, indo tomar um banho e já em contato com Amélia, que nos acompanharia na audiência. Ela passaria em casa para nos preparar para irmos, já que não fazíamos ideia de como nos portar ou o que aconteceria lá.
Me vesti de um jeito formal e desci com nos braços. Elisabeta iria olhá-la para nós naquele sábado, assim poderíamos ir tranquilos – se é que daria para usar aquela palavra naquele dia. Tranquilidade era a última coisa que sentíamos. Minhas mãos chegaram a suar em alguns momentos.
— Bom dia, — Amélia entrou em casa, vestida com seu costumeiro conjunto de saia e blazer, e o sorriso calmo de sempre nos lábios. — Oi, gatinha! — pegou a bebê nos braços, indo se sentar no sofá.
Invejei-a naquele instante. Eu queria muito estar indo a uma audiência sem que minha vida fosse decidida ali, sabe? Só pra olhar mesmo. Claro que ela iria a trabalho, porém apenas mediaria a conversa entre nós e a juíza.
— já está vindo.
não quis nem ao menos tomar café, disse que não conseguia comer nada, nervosa do jeito que estava. Quase não a vi naquela manhã. Preferi deixá-la sozinha enquanto se arrumava, já que estava uma pilha de nervos.
— Bom dia — Elisabeta chegou, sorrindo contida e fechando a porta atrás de si. — Já estão prontos para ir? — deixou a bolsa sobre o sofá e veio me dar um beijo na bochecha. Aceitei de bom grado o abraço aconchegante que me deu. Ela parecia saber que eu estava precisando de um daqueles abraços de mãe.
— Ainda não vamos. Primeiro temos que trocar algumas palavras — falei e a babá assentiu, pegando a neném nos braços e levando-a consigo ao pedir licença. Estava na hora de sua mamadeira. — Aí está ela.
Da escada veio , num vestido preto de mangas e gola alta. O tempo lá fora estava frio, então ela estaria protegida. Os cabelos loiros estavam presos num rabo de cavalo, e os fios, modelados em algumas ondas sutis. Se maquiou bem pouco; os olhos estavam destacados por um rímel nos cílios, e nos lábios, um batom discreto. O que mais chamava atenção em seu rosto era a ponta do nariz avermelhada. Mesmo quando ela sorriu para Amélia, era impossível dizer que não esteve chorando no andar de cima. Os olhos molhados também a entregaram.
— Bom dia, Amélia — sua voz amena murmurou. — Aceita um café enquanto conversamos?
— Aceito, mas acho melhor tomarmos um chá. Você precisa se acalmar e confiar que dará tudo certo — ela afagou as costas de , que assentiu, tentando parecer despreocupada.
Meu coração apertou dentro do peito. Fiz menção de ir até , mas o olhar que ela me deu me fez recuar. Amélia estava ali, e ela nos conhecia o bastante para saber que nós não nos abraçávamos de jeito nenhum. Aliás, eu mesmo tinha criado aquela regra imbecil no passado, por isso mantive minha distância enquanto íamos até a cozinha e colocava a água para ferver.
— Primeiro de tudo, o pai estará lá. Não surtem por isso.
Levei a mão ao rosto, respirando fundo para não soltar um xingo. Primeiro porque me fervia o sangue ouvir alguém se referir a outro como o pai de ; segundo porque ter que olhar para a cara daquele filho da puta e não poder fazer um estrago nela era quase impossível para mim.
estava do mesmo jeito, bufando de raiva encostada na pia. Largou até a xícara de chá que tinha em mãos para não derrubá-la. Se eu estava puto, imaginei ela, que tinha acabado de ser atacada e era perseguida por ele há tempos.
— Pra quê? Não vai me dizer que há possibilidade de ele conseguir alguma coisa — ri, incrédulo.
ofegou, aflita com a possibilidade. Acho que nem se ela tomasse um banho de camomila ficaria calma após aquela conversa.
— Ele pode tentar — Amélia murmurou, incerta se continuava ou não. — Acho que a guarda provisória ele não consegue tirar de vocês. Porém, pode exigir o direito de visita.
— Puta que pariu — não aguentei e xinguei, sentido que poderia explodir de tanta raiva.
— Eu não vou deixar aquele infeliz tocar um dedo só na minha filha, só por cima do meu cadáver! — esbravejou, já com os olhos cheios de lágrimas. — Ele tentou me acertar um tiro com ela no colo. Você acha mesmo que ele liga pro bem estar dela, quer conhecê-la ou quer ser presente na vida dela?
— Ele está querendo é dinheiro, isso sim.
— Se acalmem vocês dois. Infelizmente, não podem fazer nada se o juiz decretar o direito de visitas a Miguel — Amélia proferiu, mas eu neguei com a cabeça, ainda incrédulo. Não era possível que permitiriam aquele bandido chegar perto de um bebê indefeso. — Mesmo sabendo da autoria ou do envolvimento dele nos ataques que a sofreu, vocês ainda não têm provas.
Se antes eu já queria socar a cara dele só de vê-lo, imagine o que eu não faria ao saber que, além de fazer o que fez, ainda sairia impune e conseguiria direitos sobre ? Ele riria da nossa cara, certeza!
— O juiz não poderá adivinhar a conduta de Miguel no cotidiano, só saberá o que a assistente social que também foi até a casa dele lhe disser. Então essa é uma possibilidade, já que, querendo vocês ou não, ele é o pai biológico dela.
— Se eu conseguir a medida protetiva de Grace contra ele, posso fazer algo para reverter isso?
— Com certeza será algo que o juiz levará em conta na hora de decidir lhe dar o direito ou não, porque demonstra má conduta da parte dele. Pode conseguir o documento agora? — assenti, pedindo-a para aguardar na cozinha junto de enquanto ia até meu escritório.
“Má conduta”. Era pra rir mesmo. Miguel era tudo de ruim que um homem poderia ser. Além de covarde, era ganancioso o bastante para tentar trocar uma criança por dinheiro, e desprezível a ponto de ter abandonado Grace grávida sem sequer se importar com a criança que ela esperava.
Tudo o que eu pudesse fazer para prejudicá-lo, eu faria, sem pensar duas vezes. Ele ficaria sem o dinheiro e sem a menina e, se tudo desse certo, iria apodrecer na cadeia, que era o lugar dele.
— Aqui está — lhe entreguei o documento, suspirando. E pensar que poderia ser uma pilha de documentos ali.
A impunidade nunca tinha pesado tanto em nossas costas quanto naquele momento. Se tivéssemos todas as provas das coisas que Miguel fez contra nós, qualquer juiz com o mínimo de senso possível o manteria bem longe de e de .
— Ótimo. Vou apresentar o documento ao juiz — Amélia suspirou, levantando-se da mesa. — Só peço a vocês que, por favor, se acalmem e não o acusem de nada diante do juiz sem que tenham provas que comprovem os crimes cometidos.
Ou seja, não poderíamos falar nada.
— Vamos indo. Não cai bem chegar atrasado, não é mesmo?
Seguimos a mulher até a sala, onde estavam Elisabeta e no sofá. Nos despedimos de ambas; a babá nos desejou boa sorte e disse que faria uma oração por nós, já nos olhava despreocupada. Nem parecia que seu destino estaria começando a ser decidido naquela manhã de sábado. Aquela era apenas a primeira da grande batalha que travaríamos para poder tê-la conosco permanentemente, e saber daquilo já me deixava cansado. Porém, iríamos conseguir, audiência a audiência. Mostraríamos à justiça que éramos os pais de e que, como tal, merecíamos ficar com ela para sempre.
Amélia foi em seu carro, saindo na frente após indicar o endereço do fórum. Iríamos depois, logo atrás dela, não sem que antes eu me inclinasse até o banco passageiro e desse um beijo rápido em , que estava preocupada demais para falar algo. Por isso, apenas me ouviu falar que conseguiríamos passar por aquilo.
— Por — sussurrei diante de seu rosto sério. A loira me deu um meio-sorriso ao me ouvir falar aquilo, selando nossos lábios antes de repetir nosso mantra.
— Por .
Chegamos no fórum e nos identificamos, sendo orientados a aguardar num dos bancos do local até que nossa entrada fosse autorizada. batia o pé calçado num salto preto insistentemente, enquanto eu, sentado ao seu lado, dei um jeito de tentar acalmá-la lhe acariciando as costas disfarçadamente, com o braço esticado atrás dela. Amélia estava convencendo a recepcionista a entregar a medida protetiva de Grace ao juiz, que talvez não aceitasse por receber a prova em cima da hora, e este não estar incluso no processo.
— Vamos torcer para que func… — a voz de Amélia foi ficando cada vez mais distante, quando, na porta que entramos minutos atrás, avistei Miguel junto do advogado dele.
O filho de uma puta sorriu para mim quando me viu. Seus olhos escuros chegaram a brilhar em entusiasmo, exatamente do jeito que vi naquela madrugada, no quintal da minha casa.
— !
Não saberia dizer qual das duas tentou me parar com gritos ou simplesmente se prostrando diante de mim. Talvez tenham sido as duas juntas. A única coisa que eu sabia era que iria acertar ao menos um soco na cara dele.
Infelizmente, não completei meu trajeto até Miguel. Os seguranças do fórum intervieram e fizeram o que e Amélia não conseguiram: me impediram de encostar nele. Miguel ficou ali, parado, rindo e se divertindo dos meus esforços em me soltar e ir até ele lhe dar um gostinho do que eu estava sentindo.
Mas não, ele estava lá, intocável como sempre.
— Desculpem o meu cliente, não irá se repetir — Amélia falava com os homens de farda enquanto Miguel era levado para outro lugar, felizmente longe de nossos olhos. — , eu disse pra se controlar!
— Não consigo! Aquele filho da puta me tira do sério! — esbravejei, ainda tendo os seguranças em cima de mim, bloqueando minha visão. — Ele já foi. Da próxima vez, pensem antes de defender aquele band…
— Chega, ! — Amélia me interrompeu no meio de minha frase, agradeci mentalmente por aquilo. Vai saber se não poderia ser considerado desacato. Ser preso não nos ajudaria em nada. — Isso pode ser prejudicial a vocês. Tome uma água e se acalme se não quiser correr o risco de perder pela sua má conduta! — ela estava furiosa. Falava baixo, mas seu semblante era duro. Estava parecendo uma mãe dando bronca no filho.
Peguei o copo descartável cheio da mão de a contragosto. Ela não falou nada. Tinha certeza que, apesar de ter ficado com medo do que acabou de escutar da advogada, aprovava minha reação. Talvez tenha até pensado em fazer o mesmo.
Me ajeitei na cadeira e arrumei minhas roupas e cabelos, que bagunçaram com toda a ação. Aguardamos mais um pouco, minutos que mais pareceram horas intermináveis, e logo fomos chamados para entrar no salão.
— Próximo caso: , processo número 05893-01 — uma voz masculina anunciou, enquanto andávamos pelo local de paredes brancas e móveis majoritariamente em madeira clara.
As pessoas que estavam tratando com a juíza à frente passaram por nós quando nos aproximamos da mesa à esquerda da sala, onde havia três cadeiras apostas. Nos sentamos, tendo atrás de nós algumas pessoas – que, provavelmente, deviam estar esperando sua vez –, com a mulher de semblante sério concentrada nos papéis que tinha diante de si. Seus óculos redondos passearam pelos escritos antes que os erguesse em nossa direção. Engolimos em seco, e logo seus olhos escuros estavam do outro lado da sala, onde aquele ser estava sentado junto do advogado.
— Os tutores atuais da menor querem poder continuar zelando pelos interesses da criança e prover à ela uma boa qualidade de vida, moradia e um bom ambiente familiar — Amélia verbalizou, tendo total atenção da mulher de cabelos pretos sobre ela. — Demonstram grande interesse em prosseguir com o processo, a fim de conquistarem a guarda definitiva.
— Tenho em mãos a avaliação da assistente social, e parece que a situação é favorável para os tutores atuais — a juíza mais uma vez analisou a papelada. Ouvi suspirar ao meu lado, e eu a encarei de canto de olho. Ela mordia o lábio inferior, com os olhos cheios e um sorrisinho sendo contido. — Vamos ouvir a outra parte.
— Meu cliente quer entrar na disputa para conseguir a guarda definitiva da filha, que é biológica e tem o direito de conhecer o pai.
Miguel era ridículo, extremamente ridículo. Como ele podia fazer uma coisa daquelas? Tentar tirar de nós, sabendo que poderíamos dar tudo o que ela precisava? Amá-la, educá-la corretamente e fazer tudo o que ele, além de não querer fazer, não poderia lhe ofertar. Ele não a queria. Só queria ganhar em cima dela. Como alguém podia ser tão podre a ponto de colocar em risco uma vida para benefício próprio?
— Eu nunca nem vi seu rostinho! Me impediram até de entrar no hospital! — ele dizia, me fazendo fechar os olhos com força e respirar fundo para não surtar e fazer besteiras diante da juíza, que o encarou de sobrancelhas arqueadas. — Eu quero a minha filha! Eu tenho esse direito!
Mentiroso! Ele tinha a visto na noite da invasão a minha casa! Não era como se ele se importasse com aquilo, de qualquer forma.
— Sr. Rodriguez, abaixe o tom de voz — a juíza brandou, autoritária. — Não há necessidade de me informar seus direitos. Eu sei o que estou fazendo aqui.
Troquei olhares com Amélia, que acenou com a cabeça numa comunicação silenciosa. Tinha que agradecê-la por ter se preocupado tanto conosco e nos ajudado a nos encontrar mais cedo para dizer como deveríamos nos portar. Se ela não nos tivesse avisado, com certeza numa hora daquelas estaríamos e eu batendo boca com Miguel, rebatendo suas calúnias e deixando claro que ele queria dinheiro em troca de . Infelizmente, não tínhamos como provar.
— Diante do apresentado, a partir de agora, por meio desta — pegou minha mão suada, apertando meus dedos com os seus em puro nervosismo. Levei nossas mãos ao peito, esperando ansioso o veredito —, mantenho a custódia provisória física e legal de a Marie e Edward .
O alívio ficou estampado em nossos rostos. Amélia sorriu abertamente, porém manteve sua compostura, enquanto deu pulinhos ao meu lado, fazendo-me rir baixinho. Eu estava prestes a explodir de felicidade. era tudo o que nós tínhamos de mais valioso no mundo, e saber que ainda a teríamos em nossos braços era a melhor notícia do universo.
— Vossa Excelência — o homem ao lado de Miguel protestou, quando estávamos prestes a sermos dispensados.
Estava bom demais para ser verdade. Nos últimos dias, qualquer coisa conquistada fácil demais para mim e era realmente de se estranhar.
— Meu cliente gostaria, então, de ao menos ter o direito de visitar a menina.
e eu encaramos Amélia, aflitos.
Não saberia o que poderia ter sido de nós se Miguel não fosse o criminoso que era. Talvez tivesse ficado com para si, talvez ela nem tivesse esse nome ou eu só a veria vez ou outra para manter contato, não sei. Eram muitas possibilidades. Seria aceitável perdê-la para alguém que a amaria e lhe protegeria. Não era nem uma questão de egoísmo da nossa parte.
Quem complicou todas as coisas foi o próprio Miguel, que perseguiu e ameaçou minha irmã por diversas vezes. Ele não merecia estar perto de depois de contribuir para o mal dela, porque o parto de Grace foi tão delicado que poderiam ter morrido ambas, justo por culpa do estresse e do medo que ele a fez passar. Se dependesse de mim, a menina nem saberia da existência dele. Cresceria acreditando que ele estava morto.
— Sr. Rodriguez, a sessão já foi encerrada. Esta é minha decisão por enquanto. Me foi apresentado um documento que atesta o desejo da mãe de te manter distante dela. Logo, acho de bom tom manter o desejo dela e não te autorizar a ver a menor.
— Mas…
— Sessão encerrada — repetiu, com uma entonação diferente. — Terá o direito de apelar na próxima audiência, Sr. Rodriguez.
— Obrigada, muito obrigada — soluçou em direção à outra mulher, que se limitou em dar um sorriso discreto e acenar com a cabeça.
Eu não sabia descrever em palavras o sentimento bom que me tomou ali, diante de todos aqueles desconhecidos. e eu nos abraçamos forte. Senti-a chorar em meu ombro e me afastei para lhe tomar os lábios, apenas segurando seu rosto e colando sua boca na minha superficialmente. Quando seus olhos azuis se abriram, pude ver o brilho que ela tinha perdido nos últimos dias devido aos acontecimentos passados.
Sorri junto dela, que se virou para abraçar Amélia, que me olhava surpresa pelo ombro de . Esperava que ela não nos questionasse sobre aquilo, mas, de qualquer forma, estávamos em público, não? Era o que qualquer casal real faria. Aquela era uma ótima desculpa, aliás.
— Próximo caso — a juíza bateu o malhete, voltando a mexer nos papéis enquanto finalmente deixávamos o local.
Capítulo 34
— Vou me despedir de vocês aqui. Meu filho está se apresentando no recital de piano dele.
murchou o sorriso. Provavelmente, já estava pronta para convidá-la para almoçar conosco em casa.
A relação de carinho que construímos com Amélia ia muito além do profissional. Sim, ela era uma ótima advogada, nos ajudou muito desde que embarcamos naquela empreitada; porém, era também parte da família estranha que , e eu formávamos. não teria tios, tias e afins. Teria uma advogada, nossos amigos do trabalho e as várias vizinhas que moravam perto de nós como referência de parentes. As crianças daquele condomínio seriam como primos para brincar.
Eu esperava que aquilo bastasse para fazê-la feliz. Não queria que ela crescesse sentindo falta de algo que não teve por ignorância alheia.
— Tudo bem, a gente queria te agradecer por hoje — abraçou a outra loira, que sorriu desdenhando, como se não tivesse feito nada de mais. Modesta como sempre. — Vamos marcar um outro dia para nos encontrarmos, sim?
— Com certeza! Quero saber como andam as coisas com vocês dois — seu olhar sugestivo passou despercebido por , mas por mim não. Sorri, fazendo-me de desentendido enquanto a abraçava de volta. — Vou indo, se não chegarei atrasada.
A mulher entrou no carro e deu partida, sumindo avenida a fora.
Encarei , que já me olhava parada ao meu lado diante do grandioso fórum e sua escadaria imponente.
— Ela está desconfiada de algo — apontei para a direção que o carro de Amélia foi.
— O quê? Sobre nós? — apontou pra si e depois para mim, com uma feição confusa no rosto. — Você acha? Eu não percebi nada. Nós somos tão discretos!
Reavaliei todas as nossas interações ao lado de Briggs e me perguntei se não estava ficando paranoico. Talvez por perceber que estávamos naturalizando aquela coisa toda de nos beijar em público ou até demonstrar afeto com nossa amizade recém-firmada.
De qualquer forma, iria me policiar mais quando estivéssemos junto de Amélia. era mais tranquila; geralmente eu quem era o problema. Às vezes era difícil processar que não poderia tocá-la ou beijá-la, principalmente depois de mais de três meses convivendo com a ideia de ela ser minha esposa e, ainda por cima, dormir agarrado nela todas as noites.
— Talvez seja só coisa da minha cabeça — murmurei, rindo sozinho.
— Ultimamente, estamos tão acostumados a ter coisas para nos preocupar que, quando está tudo tranquilo, arranjamos algo para passar nervoso — gargalhou, fazendo-me concordar com a cabeça.
— Hoje sinto que nem Miguel consegue me tirar o alívio e a felicidade que estou sentindo.
A loira envolveu meus ombros com seus braços à medida em que eu a trazia para perto, pela cintura.
— Eu amo essa sensação — fechou os olhos, aproximando o rosto do meu.
Sorri antes de fazer o mesmo. Toquei sua boca com a minha e a senti se entreabrir, fazendo-me enroscar a língua na dela num beijo calmo e lento.
Perdi a noção de quanto tempo ficamos ali, trocando beijos diante do fórum. Enquanto isso, as pessoas transitavam pela calçada onde estávamos e passavam por nós, subindo e descendo a escadaria, aparentemente apressados demais para nos notar ali. Também quase não percebíamos o que acontecia à nossa volta; estávamos ocupados demais, imersos naquela atmosfera deliciosa.
A segurança que a juíza nos passou ao se mostrar ciente de que cuidávamos muito bem de – e, de bônus, conseguir ter mostrado a ela que Miguel era perigoso – era reconfortante. Nos dava a sensação de dever cumprido. Nos garantia a certeza de que a bebê ficaria conosco pelos próximos meses, crescendo saudável e sendo muito, mas muito amada.
— Vamos logo pra casa — sorriu animada, pegando minha mão. Desferi um selinho em seus lábios, que, àquela altura, nem batom tinha mais. — Quero apertar muito minha bonequinha nos braços — puxou-me em direção ao estacionamento, provocando-me um risinho ao me lembrar do tanto que gostava de esmagar Salém.
— Pobre .
Ela me deu a língua antes de se virar e me arrastar pela calçada.
O vento balançou a barra de seu vestido, fazendo-a usar a outra mão para segurá-lo no lugar e o impedir que subisse. O vestido ficou justo em seu corpo, o que atraiu minha atenção para sua bunda redondinha. Mordi o lábio, pensando que ser esmagado por e seu corpo delicioso talvez não fosse um castigo, mas sim uma benção.
— Victoria está nos convidando para a festinha dos gêmeos dela — me mostrou o celular, onde um convite digital com personagens da Disney apareceu com a foto dos dois. Eles tinham cara de serem dois pestinhas, sorridentes e com algumas janelinhas entre os dentes, que ainda estavam de pé.
— Parece que teremos bastantes eventos esse mês — murmurei, pegando a avenida principal.
Tínhamos acabado de marcar algo com Amélia, eu tinha combinado de me encontrar com Dafne um dia desses, havia a droga do evento da empresa e agora mais essa! Apesar de estar acostumado com uma vida agitada antigamente, não poderia dizer que estava animado para aquela bateria de lugares para ir. Queria ter um pouco de paz, coisa que sabia que não encontraria fora de casa, com nossos vizinhos nos metendo em confusões ou tendo que fazer teatro na frente de Amélia e meu pai.
(...)
Os dias que se passaram foram tranquilos. A calmaria, que antes eu jurava que só duraria no dia em que saímos vencedores daquela audiência, perdurou por pelo menos uma semana. Foi a mesma rotina de sempre: acordávamos juntos e logo eu levava para o trabalho, parava o carro em frente ao mesmo prédio aleatório para poder beijá-la escondido de Anne e, depois, ia para a empresa e evitava ir à copa quando chegava, para não esbarrar com meu pai por lá. Nos falávamos apenas em urgências e através de e-mails estritamente profissionais. Aos poucos conseguimos colocar tudo em ordem, para que a tal Beatrice não pensasse merda de nós.
Seria meio difícil não fazê-lo, principalmente quando a enxerida desse uma olhada na situação em que a empresa se encontrava no momento. Aliás, pelo visto, nem o pai dela deve ter olhado direito, porque a rapidez com que ele realizou aquela compra me fazia pensar seriamente se Phillip não tinha sido vítima de um golpe.
Quando finalizava meu turno, deixava o prédio praticamente vazio e pegava meu carro, indo direto para casa, onde me despedia de Elisabeta e ficava com até dar a hora de buscar . Jantávamos, brincávamos com a bebê até que ela dormisse, trocávamos alguns beijos e carícias e logo caíamos no sono, cansados do dia que tivemos no trabalho.
Olhando desse jeito, pode parecer extremamente entediante e uma vida de casados digna de pena, com direito a falta de sexo e nem sinal de paqueras extraconjugais; já que nem Dafne deu as caras nos últimos dias, ocupada com a finalização de seu TCC na faculdade. Mas após os últimos sufocos que passamos, aquela era a rotina perfeita.
No fim do dia, a única coisa que queríamos era ter Miguel longe de nós e em casa nos esperando para niná-la e colocá-la para dormir.
A tão esperada sexta-feira estava ali. Cheguei no trabalho feliz por ter ouvido boatos de que meu pai estava de viagem marcada para segunda-feira à noite. Nunca imaginei que comemoraria aquilo algum dia. Lembro-me de adorar receber visitas dele antes de tudo acontecer. Saíamos para jantar e ele sempre me contava como as coisas estavam em casa com Grace e mamãe.
Ainda era estranho olhar para trás e perceber que eu não reconhecia mais aquele de antes. Hoje, se me sentasse à mesa para comer com meu pai, a indigestão viria de imediato. Eu não sabia se algum dia voltaria a conviver com ele amistosamente. Independente dos erros cometidos, nós nunca planejamos excluir pessoas tão importantes de nossas vidas e seguir em frente sem pensar em como seria se ainda fôssemos próximos.
Às vezes, inevitavelmente, quando eu estava com , minha mãe me vinha à mente. Lembrava-me do meu aniversário de vinte e três anos, quando estava de rolo com uma garota que ela gostava – de família rica, fazia faculdade comigo. Mamãe, um dia, disse que gostaria de me ver casado e que era louca para ter um netinho. Na época, eu tinha ficado assustado com aquela possibilidade, mas hoje me pergunto o motivo de alguém ter o que tanto desejava ao alcance das mãos e decidir renegar por pura ignorância.
Andei pensando muito no que Dafne me disse, porém, ainda não conseguia aceitar tudo aquilo. Eu continuava pensando como , e achava que, infelizmente, aquele pensamento de finalmente ser independente de meus pais era uma das únicas coisas certas que eu tinha na vida.
— Bom dia, Jordyn — lhe sorri assim que a porta do elevador se abriu e adentrei o hall, próximo da minha sala.
— Parece que alguém está de bom humor — ela riu, deixando o teclado em que digitava para me espiar diante de sua mesa. — Uma festa é sempre uma boa pedida para uma sexta à noite, não é mesmo?
— Festa? — franzi o cenho, confuso.
— O senhor não está lembrado? O leilão beneficente que seu pai organizou para dar as boas-vindas à Srta. Thorpe.
— Eu juro que me esqueci completamente disso — bati a mão na testa.
Estava explicada aquela paz interior toda durante os últimos dias. Eu tinha me esquecido não só da presença do meu pai naquele prédio, como também que aquele monstrinho iria chegar!
— Toda a organização deve ter te deixado sobrecarregado — a secretária riu fraco, sendo compreensiva com minha gafe. — Mas é para isso que eu sirvo, não?
— Obrigado, Jordyn. Nossa, você merecia até um aumento depois dessa.
— Acho que seu pai não aprovaria — sorriu amarelo, fazendo-me rir ao perceber que ela não ia muito com a cara de Joseph . Não julgava, afinal de contas, compartilhávamos a mesma aversão a ele. — Mas obrigada por, pelo menos, pensar na possibilidade.
Me despedi dela e entrei para minha sala quase correndo. Saquei o celular e procurei pelo número de , que apenas chamou e caiu na caixa postal. Provavelmente estava ocupada. Droga. Tentaria novamente mais tarde. iria me matar quando soubesse que me esqueci da festa. Ela não tinha um vestido. Teríamos que dar um jeito naquilo, e urgentemente.
Meu Deus, e ? Não dava para levá-la. Primeiro porque era uma festa agitada e seria à noite; segundo porque meu pai estaria por lá. Teria que tentar falar com Elisabeta e torcer para que ela pudesse ficar com a bebê.
Eram tantas coisas para fazer que me vi estressado. Aparentemente, todas as vezes que eu chegava de bom humor naquela empresa algo acontecia para me tirar aquilo. E pior! Com a chegada da tal Beatrice, aquilo tendia a ser definitivo! Era a noite de suas “boas-vindas”, e eu ainda não tinha engolido a ideia de tê-la trabalhando comigo. Acho que nem com litros de água eu engoliria. Se dependesse de mim, seria uma festa de despedida e sem possibilidade de retorno. Queria lhe comprar uma passagem só de ida de volta a Nova Iorque, de onde ela nunca deveria ter saído.
Fiquei a manhã toda tentando falar com , sem sucesso. Então, decidi ir até a lanchonete em seu horário de almoço. Provavelmente seu chefe não devia deixá-la falar ao telefone durante o expediente. Pelo que me relatava, o Sr. Williams era bem exigente com ela e as outras duas funcionárias que tinha.
— Estou indo almoçar — murmurei para Jordyn, indo até o elevador.
O trajeto até o trabalho de era curto. Logo eu estacionava numa rua paralela a avenida, por já ver que não havia vagas disponíveis naquele horário. Tive um déjà vu quando empurrei a porta de vidro do estabelecimento, ouvindo o sininho tocar e tendo as atenções de Tiffany e sobre mim.
— O que faz aqui? Aconteceu alguma coisa? — a loira veio até mim com uma bandeja abarrotada de comida em mãos. Me impressionei com sua habilidade em segurá-la sem deixar tudo cair no chão.
— Aconteceu, preciso falar com você — a segui até onde ela foi, recebendo um olhar curioso dos ocupantes da mesa em questão.
— Estou um pouco ocupada agora — murmurou, servindo os pratos para os quatro homens. Um deles olhava para Fanny de costas descaradamente, e não eram seus cabelos presos e ondulados presos que chamaram sua atenção, daquilo eu tinha certeza. — Meu almoço é só daqui cinco minutos — espiou o relógio pendurado em uma das paredes. — Mais alguma coisa?
— Não, obrigado, .
Encarei o moreno que lhe sorriu amigável. Quanta intimidade, não?
— Senta e espera — ela indicou uma mesa vazia ao fundo. Encarei-a de sobrancelhas arqueadas. — Ou prefere ficar me seguindo? — manejou a bandeja e voltou a andar até a área restrita a funcionários.
Suspirei e fiz o que me sugeriu: sentei-me ali e espiei as mesas alheias, sentindo meu estômago roncar. Não seria má ideia ficar para comer algo enquanto e eu resolvíamos o que faríamos com mais tarde.
— Olhe só quem veio visitar os pobres — Tiffany chegou em minha mesa, fazendo-me rir e negar com a cabeça.
Desde que descobri que Anne andava cuidando da vida de e, consequentemente, da minha também, eu evitava descer do carro, seja para levar ou buscar minha esposa no fim do expediente. Aquilo seguraria minha língua para não falar algo que com certeza daria em uma bronca de .
— Vim falar com , mas ela parece estar ocupada demais no momento — foquei-me na loira de pé diante da mesma mesa que tinha acabado de servir. Pensei ter ouvido o cliente falar que não queria mais nada, mas lá estava , rindo junto deles.
— Por um momento achei que você estivesse com ciúmes — franziu a testa, balançando a cabeça em descrença. Ri sem humor. De onde ela tinha tirado aquilo? — Essa coisa toda de fingir às vezes bagunça a cabeça da gente, né? Não sei como vocês conseguem.
Simples: não conseguíamos. Tanto que já tínhamos até transado.
— Mas e aí, o que vai pedir? — ela me estendeu o cardápio. Olhei curioso para tudo o que tinha ali; a maioria das coisas não tinha nos cafés que eu costumava frequentar. — Posso te trazer o meu favorito? — Tiffany percebeu minha confusão mental e riu da minha cara. Assenti sem pensar duas vezes. — Já venho.
Fanny era tão enérgica que aquele diálogo todo praticamente só teve falas vindas dela. Aquela tinha uma boa lábia, devia vender horrores.
— Pronto, o que houve? está bem? — sentou-se ao meu lado no sofá vermelho.
— Oi, , já foi atendido? — encarei Anne, parada e sorridente diante de mim. fez o mesmo, voltando a me encarar logo depois.
— O quê, você vai comer aqui? — riu. Respirei fundo, ignorando a implicância. — O que houve com os restaurantes granfinos que você almoça todos os dias?
— Já disse, precisava falar com você. Vou aproveitar e almoçar enquanto isso — lhe respondi a contragosto, incomodado com a presença de Anne ainda de pé ao nosso lado ouvindo nossa conversa. — Fanny já me atendeu, obrigado.
— Tudo bem. Bom apetite, então — ela sorriu amigavelmente, fazendo-me pensar em como as aparências enganam.
Anne parecia ser inofensiva; porém, além de ser invejosa, ainda por cima se aproveitou da minha embriaguez pós-casamento para ir pra cama comigo. Não que eu não tenha aproveitado a noite, mas só de saber daquele fato já dava para ter uma ideia que ela tinha uma personalidade, digamos, questionável.
— Temos que arranjar alguém pra ficar com essa noite, comprar um vestido pra você e ir à bosta da festa de boas-vindas — soltei tudo de uma vez, aproveitando-me da presença de Tiffany, que colocava meu pedido sobre a mesa. Talvez não me mataria na frente dela.
— O quê?! A festa é hoje? — ela arregalou os olhos. — , por que não me avisou antes? Como vamos ter tempo pra fazer tudo isso tão em cima da hora?
Eu tive a mesma reação que a sua, cara .
— É pra isso que estou aqui! Vamos, peça algo e almoce rápido para que dê tempo de ir atrás do vestido.
Entendi a sensação que tive quando achei já ter vivido aquela cena ao entrar na lanchonete. Eu já tinha mesmo! Fui buscar para comprar o vestido de casamento.
— Quer que eu te traga algo, ? — a diferença de Fanny para Anne era gritante. Nem ao menos me importei em vê-la entrando no meio da conversa.
Eu não acreditava naquela baboseira de energia; porém, se me pedissem para classificar como me sentia na presença das duas, Fanny com certeza era alguém que emanava algo bom de si. Já Anne…
— Por favor, amiga — a morena saiu apressada, deixando-nos a sós. — Bom, Elisabeta seria nossa primeira opção, não? Pagamos a mais e el…
— Já tentei ela, tem o marido doente, lembra? Não pode ficar até de noite.
Pensativa, suspirou enquanto eu mastigava o mais rápido que conseguia. Ficamos em silêncio por um tempo, matutando algo que pudesse nos livrar de ter que levar a neném até a festa.
— Bom, Victoria está viajando, nos restou Megan…
— Nós podemos ficar com ela! — encarou Tiffany como se ela tivesse acabado de soltar o maior absurdo da face da Terra. — Eu e Anne! — Fanny puxou a loira que passava por ali.
— Nem pensar! Não confiei nem meu gato a vocês quando fomos pra Tulum, quem dirá minha filha, que é um bebê de três meses! — respondeu e as duas abriram a boca, ultrajadas. — Não, não, não, não estou nem louca!
— , minha mãe mora comigo, se esqueceu? Ela criou três filhos muito bem, não é como se não soubesse manter uma criança viva — Fanny argumentou, fazendo-me analisar a possibilidade numa comunicação silenciosa com . — Será só por uma noite, sua boba! Nós cuidaremos bem dela.
— Sim, vamos fazer uma noite das garotas com . Será muito divertido!
Encarei Anne com a sobrancelha arqueada. Ela sabia que era um bebê real e não uma boneca, não é?
Apesar de metade de mim estar igual a , achando aquilo uma péssima ideia, não poderia dizer que seria uma boa saída – claro, se a mãe de Tiffany realmente estivesse presente.
— Acho que pode ser uma boa ideia — sugeri, com medo de me bater por estar concordando com as meninas.
— É! Pegamos ela quando vier te buscar. Aí, quando ele te trouxer pra trabalhar no sábado, devolvemos .
— Tudo bem — olhou desconfiada para as duas, que seguravam a animação de ter um bebê por uma noite. Elas eram estranhas. — Mas prometam que qualquer coisinha que acontecer, se ao menos soluçar, vocês vão nos ligar — não formalizou uma ameaça de morte caso algo acontecesse com a bebê, mas aquele olhar ameaçador falava mais que mil palavras.
— Vamos, amiga, o Sr. Williams já está olhando pra cá.
O velho estava parado no balcão, alisando o bigode com a mão enquanto observava as funcionárias papeando no meio do expediente.
— Acha mesmo que isso vai funcionar? — remexeu a comida, receosa. Do jeito que era lerda pra comer, só sairíamos dali quando anoitecesse.
— Não temos tempo pra isso agora, ainda temos que ir atrás do vestido — falei, e entendeu o recado, se apressando em suas garfadas.
Enquanto comíamos, reparei no par de olhos azuis nos rondando à medida em que o corpo de média estatura transitava pelo estabelecimento. Larguei meus talheres sobre o prato e respirei fundo. Passei a encarar Anne de volta, mas a loira começou a desviar o olhar e abaixar a cabeça quando percebeu que foi pega nos espiando.
— Ela costuma te olhar tanto assim ou está apenas nos vigiando mesmo? — perguntei, “apenas” sendo claramente uma ironia. Encostei-me no sofá atrás de mim. — Perdi a fome.
— ... — minha esposa me censurou com o olhar, fazendo-me desviar minhas atenções de sua amiguinha para encará-la de sobrancelhas arqueadas.
E eu estava errado em ficar bravo? Tinha vontade de chamar Anne num canto e perguntar se ela queria uma foto de mim e juntos, pra ficar olhando ou até se masturbar em casa, porque, caralho, que tesão esquisito aquela garota tinha em nós dois!
— Queria ver a reação dela caso imaginasse o que está acontecendo debaixo dessa mesa… — estiquei a mão sobre a coxa de , que petrificou diante de mim numa expressão hilária de quem perdeu a compostura. Subi meu toque até sua intimidade, mas fui impedido de continuar quando sua mão segurou a minha.
— Pare já com isso! — sussurrou e olhou em volta, se certificando que ninguém estava percebendo o rubor em seu rosto. As pessoas do prédio à frente deviam estar vendo; disfarçava muito mal.
— O que foi? Só estou acariciando minha esposa — me fiz de desentendido, avançando minha mão pelo seu jeans e fazendo praticamente dar um pulo para o lado, para longe de mim. — Isso é ridículo, você tem medo dela! — ri desacreditado, enquanto disfarçava ao espiar Anne.
— Eu não quero magoar ninguém, mas você não deve saber o que é isso — justificou, fazendo-me ofegar, ultrajado.
— Acho que já está na hora de contar a elas o que andamos fazendo em casa.
negou com a cabeça, em pânico. Era óbvio que eu estava blefando, mas queria ver sua reação. quase pulou no meu pescoço quando fiz um sinal para chamar Fanny até nossa mesa.
— , eu juro que te mato! — ela disse entredentes, com sua famosa ruguinha marcada entre as sobrancelhas, divertindo-me com a cena. E pensar que, um tempo atrás, seria raro um dia em que ela não me ameaçasse de morte.
— O que foi? — a morena se aproximou com a bandeja vazia em mãos. Encarei de canto de olho, vendo-a vermelha de raiva.
— Traz a conta, por favor? — então, sorri cinicamente na direção de quando ficamos a sós. — Calminha aí, eu só estava brincando. Queria te ver se borrando de medo.
— Idiota — desferiu um tapa no meu braço. — Eu não tenho medo dela, já disse.
Olhei para ela com tédio. E eu não acreditava, já disse.
— Por que você é assim, hein?
— Por que você é assim? — devolvi sua pergunta. Eu nunca entenderia o fato de se sujeitar àquelas situações só para manter alguém como Anne em sua vida.
— É sério, . Eu a amo como uma irmã. Não quero estragar nossa amizade com algo tão banal.
“Banal”.
Me calei diante de sua resposta.
Anne era prioridade, eu já tinha entendido tudo. Engoli em seco e encarei o horizonte, quando Tiffany chegou com a conta. Separei as notas e as deixei sobre a mesa, levantando-me sem ao menos ver se me acompanhava. Adentrei meu carro e a esperei-a entrar também para dar a partida.
Dirigi até o shopping próximo dali, deixando o estacionamento apressado ao lado dela. Assim que chegamos no piso em que se concentrava a maioria das lojas, chamei sua atenção, já que ia andando como se eu estivesse ao seu lado.
— Escolha e compre, vou na praça de alimentação tomar um sorvete — estendi o cartão em sua direção. franziu o cenho, parada onde estava.
— Você não vai comigo?
Me mantive impassível, vendo seus ombros caídos. Eu não era algo banal na vida dela? Pois bem, que se virasse sozinha, então.
— Sabe o que aconteceu da última vez que entrei com o uniforme da lanchonete numa dessas lojas de grife, né?
Sim, eu me lembrava da vendedora fazendo-a chorar por jogar na sua cara que não teria dinheiro para comprar ali.
— Vem — pegou minha mão, aproximando-se do meu corpo. Evitei olhar para seu rosto, porém seus olhos azuis atraíram os meus como se fossem dois ímãs. — Por favor — desferiu um selinho em meus lábios. Suspirei derrotado ao vê-la sorrir satisfeita.
Aquilo poderia ser considerado manipulação psicológica?
Adentramos a loja de vitrine escura e cheia de luzes brancas, tendo os holofotes direcionados às manequins pálidas em poses esquisitíssimas. Estava vazia. Só tinha uma vendedora ali, que prontamente veio até nós, sorrindo de forma solícita e, aparentemente, não sendo uma esnobe como as funcionárias da loja de noivas.
— Estamos procurando um vestido — me olhou ao falar. Parecia estar com medo de falar com a mulher.
— Para qual ocasião seria?
me olhou novamente. Daquela vez, era até compreensível; afinal, ela não sabia do que se tratava a festa.
— Será um evento formal, à noite.
Britney, como indicava o crachá, assentiu enquanto transitava pela loja e levava junto de si. Me assustei com a empolgação da moça, que começou a encher os braços de de modelos. Olhei a hora pelo relógio em meu pulso e me preocupei com o tempo limitado que tínhamos ali. finalmente conseguiu fazê-la entender que não daria para experimentar tudo aquilo, então foi direcionada ao provador de loja.
— Fique à vontade. Se precisar de algo, é só chamar — a vendedora falou e eu assenti, vendo-a entrar pelo corredor junto de .
Olhei em volta, observando a decoração sofisticada da grande sala repleta de espelhos e luzes. Deixei-me relaxar no estofado branco, saquei o celular e chequei meus e-mails durante a ligeira demora. Logo ouvi passos vindos do corredor, e surgiu diante de mim usando um vestido vermelho.
— O que acha? — passou as mãos pela saia longa e justa em seu corpo, evidenciando seu quadril e pernas esguias. O decote aberto deixava o vão entre seus seios pequenos à mostra.
Que grande gostosa.
— Deixe ele ver as costas — Britney sorriu animada, segurando os cabelos loiros de e deixando a parte de trás à mostra. O vestido era vazado, apenas com algumas linhas de tecido que faziam o desenho de um X em suas costas. — É maravilhoso, não?
— Caralho — soltei sem querer. Sei que poderia falar outra coisa ao invés daquele palavrão; porém, estava sem saber o que dizer, e ele resumia bem o modo como fiquei ao vê-la vestindo a peça. — Desculpe — murmurei sem graça diante do olhar censurador de .
— Acho que precisará fazer um pouco a barra — a mulher se abaixou, pegando o tecido e dobrando uma pequena parte dele. Realmente, provavelmente arrastaria no chão.
— Não temos tempo pra isso — lamentou, e eu também. Aquele vestido desenhava seu corpo como se tivesse sido feito sob medida. — Vou experimentar os outros.
Enquanto estive sozinho ali, aproveitei para enviar mensagens a Jordyn e Chace, tentando resolver as coisas referentes à empresa a distância mesmo, já que era o único jeito no momento. foi e voltou com mais alguns vestidos, mas não teve jeito. O vermelho ainda era o meu favorito entre todos, e parecia que para também.
Caminhávamos para fora da loja de mãos vazias após eu receber uma ligação de meu pai, querendo saber o que eu ainda fazia longe da empresa quando meu horário de almoço já tinha acabado. Se não houvesse aquela droga de festa para ir, eu estaria lá! Me deu impressão de que ele só tinha me ligado por implicância, por necessidade de se autoafirmar meu chefe e dono daquela empresa.
Quando passamos pelas araras, enquanto se desculpava milhões de vezes com a vendedora por tê-la feito perder tempo e pela bagunça no provador, um tecido em especial me chamou a atenção. Fui até ele e o puxei para fora.
— Que tal esse aqui? — retirei o cabide com o vestido da fileira. — Parece servir.
me olhou como se eu fosse um idiota. Tudo bem, como homem, eu sabia que talvez aquele não fosse o jeito mais eficaz de comprar um vestido, mas estávamos com pressa. A loira analisou o vestido que estendi diante de seu corpo e o pegou em mãos. Era inteiro num azul naval intenso, com uma fenda lateral que eu sabia que ela gostava. Também tinha um detalhe em pedraria e um corte discreto em ambos os lados da cintura.
— Ele é lindo.
— Vá provar! — a vendedora insistiu, fazendo-nos trocar olhares preocupados. Eu tinha meu pai, mas o chefe de conseguia ser bem pior que ele, e o horário dela já estava perto do fim. — Apesar de que acho que seu marido tem razão, parece servir certinho.
— Vamos levar assim mesmo, vamos tentar a sorte — o sorrisinho irônico dela me fez rir baixinho. A sorte quase nunca esteve a nosso favor.
O caminho de volta foi o mais rápido que conseguimos ir. Deixei em frente a lanchonete sentindo falta de um beijo de despedida; porém, resolvi não insistir mais naquela história, ainda mais depois daquela resposta que levei mais cedo. havia deixado bem claro para mim sua lista de prioridades. E tudo bem, acho que fui muito ingênuo em pensar que nossa amizade e o fato de dividirmos como tutores me colocaria numa posição de destaque. Me senti um idiota ao pensar naquilo enquanto dirigia sozinho no carro de volta à empresa.
O resto do dia se passou sem muitas surpresas ou estresses. Acho que estava me abstendo de passar nervoso, guardando para o fim do dia para quando aquela festa aconteceria. O próprio Phillip esteve presente na reunião que meu pai me encheu o saco para ir quando eu estava naquela loja com . Lembro-me de ter chegado atrasado e receber um olhar feio de meu pai; Phillip seguiu indiferente. Acho que já tinha ficado implícito para ele o quanto eu estava odiando tudo que envolvia aquela venda, além da minha antipatia por sua filha, que ainda não tinha dado o ar da graça.
Da última vez que foi feito tanto suspense sobre algo nos últimos tempos, Anne me apareceu namorando Miguel. Então, eu já não esperava nada mais que o pior vindo da tal Beatrice.
Dirigi de volta para casa assim que o expediente se findou. Pedi para Elisabeta ficar até que chegasse do trabalho novamente. Eu iria pagá-la quando fosse embora, junto com o pagamento da vez em que encontrei Dafne depois do expediente.
Aproveitei sua ajuda para me arrumar. Eu sabia o quanto poderia ser demorada, ainda mais para ir a uma festa. Por isso, me preveni, estando pronto antes.
Assim que deu o horário, fui até a lanchonete, cansado de tantas idas e vindas dirigindo. embarcou junto de Anne e Tiffany, que estavam curiosas com o vestido ensacado estendido sobre o banco do passageiro. foi o caminho todo dando recomendações um tanto óbvias sobre como cuidar de um bebê, fazendo nós três rir de seus exageros de mãe. Também deu dicas sobre o comportamento de , como a pequena gostava de ser balançada quando era ninada e coisas do tipo.
Era muito louco perceber como um serzinho de apenas três meses de vida tinha os próprios costumes e percepção sobre o mundo, mesmo sem entendê-lo direito. Era quase como uma personalidade própria. Nunca teria aprendido sobre aquilo se ainda não fosse pai. cada dia mais se mostrava parecida com Grace em seu jeitinho: era sociável com estranhos, já sorria com estímulos e era bastante curiosa, principalmente com sons. Absolutamente qualquer ruído atraía a atenção de seus olhos grandes e verdes.
Quando chegamos, me juntei à Elisabeta e às meninas na sala, enquanto foi direto para o banho e levou consigo o vestido recém-comprado. A babá deu um banho em , mostrando a Tiffanny e Anne como fazia caso precisasse. Os argumentos de Fanny sobre sua mãe ajudá-las não colaram nem com Elisabeta, que pareceu uma avó, teimando em ensiná-las tudo sobre exatamente como fez no carro. Acho que as duas nunca ouviram tanto na vida.
— Vou lá apressar , aproveito e pego seu pagamento — anunciei a Elisabeta, que ensinava a colocar a fralda na criança como se fosse a coisa mais difícil do mundo.
Adentrei o quarto, vendo-o vazio e a porta do banheiro entreaberta. Fui até minha pasta, pegando a quantia que saquei para dar a Elisabeta. Ouvi o característico barulho de saltos pelo chão do quarto e me virei, observando praticamente desfilar em minha direção. Ofeguei sem nem perceber enquanto ela se voltava ao espelho da cômoda, ajeitando o batom escuro nos lábios como se não tivesse acabado de quase me matar do coração.
Naquelas horas, ser mulher me parecia muito simples. Era só vestir algo que praticamente esculpia seu corpo, subir num par de saltos e realçar os próprios traços com maquiagem para deixar quem quer que fosse hipnotizado. Infelizmente, eu sabia que aquilo era apenas uma ilusão. não costumava ser confiante como parecia naquela noite, e aquilo me deixava incomodado. Apesar de ter me tirado o fôlego, linda daquele jeito, eu ainda conseguia enxergá-la daquele modo quando ela vestia apenas pijamas e estava de cara limpa.
— Antes que me apresse, só quero avisar que já estou pronta — resmungou, fazendo-me sorrir atrás dela no espelho.
Distraída, borrifou seu perfume nos pontos de sempre. Respirei fundo, sentindo aquele cheiro delicioso que me instigou a me aproximar de seu corpo. Com aquele par de sandálias, ela estava praticamente da minha altura.
— Estou vendo — a envolvi em meus braços, vendo seu sorrisinho sem graça surgir. Fiquei em dúvida se a elogiava naquele momento ou deixava para mais tarde, quando estaríamos agindo como um casal e eu poderia beijar sua boca e tirar todo aquele batom que a deixava incrivelmente sexy. — Percebeu uma coisa? — perguntei, e franziu o cenho no reflexo à nossa frente. — Vamos ter a casa toda pra nós esta noite — lhe sussurrei ao pé do ouvido. Ela se encolheu e seus pelos se eriçaram.
Beijei seu pescoço, sentindo o perfume intenso diretamente na sua pele quente. Desci os beijos pelo seu ombro descoberto pelo vestido, explorando sua pele macia. Senti suspirar em meus braços, enquanto sua bunda encostava em meu membro, fazendo-o endurecer ao imaginar o que faríamos naquela casa sozinhos quando chegássemos daquela festa ridícula. Iria lhe arrancar aquele vestido do corpo, jogá-la no sofá, em cima da mesa da cozinha, não interessava o cômodo daquela casa. Eu iria fodê-la. Queria estar dentro dela e matar aquela vontade que me rondou desde o momento em que a vi de vermelho naquele provador de loja.
A porta foi aberta antes mesmo que abrisse a boca para responder e confabular comigo sobre nossos planos para aquela noite de “solteiros” sem . Minha única reação foi soltá-la, porém não tive tempo de me afastar da cômoda. Se o fizesse, com certeza deixaria Anne desconfiada, ou seja, mais do que ela já era. Ficaria claro com meu movimento brusco que estávamos fazendo algo “errado”.
Eu juro que queria rir de desgosto ao me encontrar numa situação como aquela.
— Ah… Elisabeta disse que precisa ir. O filho dela está lá fora para buscá-la — seus olhos claros analisaram minha mão apoiada no móvel branco, prendendo lateralmente ali.
— Está vendo, ? Está atrasando Elisabeta também! — ralhei, endurecendo minhas feições.
soltou um riso debochado, encarando-me irritadiça por cima do ombro.
— Já te disse pra não ficar me apressando, que saco! — ajeitou os cabelos, como se ainda precisasse colocá-los no lugar.
Não era nenhuma novidade para mim, mas vi um esboço de sorriso ser mascarado por Annelise ao comprimir os lábios. O divertimento em seu olhar me deu nos nervos. Queria muito voltar a agarrar e beijá-la, só para ver aquele deleite todo se desmanchar em lágrimas saindo dos seus olhos.
Duvidava muito que Anne chegasse ao ponto de chorar ao nos ver juntos, mas falava tanto dela como alguém frágil que parecia que Annelise se quebraria ao meio quando visse que a amiga tinha o que ela achava que merecia no lugar dela.
— Avise que já vamos, sim? — suspirei, realmente bravo daquela vez. Anne entendeu o recado ao encarar meus olhos e assentiu. — Porra, essa insuportável sempre arranja um jeito de nos atrasar.
Anne arregalou os olhos com meu tom de voz, enquanto me encarou estranhando meu exagero, apesar de no fundo saber para quem eu estava direcionando minha raiva. A loira assentiu e saiu do quarto, fechando a porta. respirou aliviada por não termos sido pegos por Anne cometendo aquele crime hediondo.
— O que foi isso? — indagou, enquanto íamos até a porta.
— É isso mesmo, está insuportável hoje — confirmei, e se virou já com sua ruga entre as sobrancelhas, bravinha como sempre. — Insuportavelmente gostosa — lhe agarrei, pegando em sua bunda.
— Seu idiota — ela me socou o peito de leve. — Me solta, vamos logo. Elisabeta está esperando.
Deixei-a ir a contragosto, rindo junto dela. Mesmo depois de nosso pacto de amizade e de uma convivência amena, ainda caía na minha pilha como antigamente.
Fomos pelo corredor, tentando não rir alto enquanto eu lhe agarrava à medida que avançávamos até a escada. com certeza me mataria se não estivesse se divertindo com a situação. Assim que descemos o primeiro degrau, ela se afastou para se recompor. Apesar de continuar achando tudo aquilo uma palhaçada, lhe acompanhei e respeitei sua decisão de não contar nada a ninguém. Afinal, eu havia concordado com aquilo desde o início, mesmo com Anne me tirando do sério e me fazendo querer esfregar tudo na cara dela.
As três, assim que nos ouviram descer, se levantaram e nos esperaram na ponta da escada. Elisabeta deu nos braços de Tiffany e Anne apanhou a malinha da bebê junto do jacaré de pelúcia que lhe dei de presente no Natal. Ela realmente não conseguia ficar sem ele no berço para dormir.
— Está lindíssima, Sra. — a mais velha disse, olhando minha esposa de cima a baixo.
Evitei fazer o mesmo, afinal de contas, as amigas de ainda estavam ali, e uma delas nos vigiava sempre que podia. Era uma bagunça quando tínhamos que dividir o mesmo ambiente com as pessoas que sabiam da nossa farsa e que estavam junto das que não imaginavam que era tudo uma mentira.
Eu nunca sabia como agir direito depois que e eu realmente começamos a transar. Não sabia se a beijava e demonstrava afeto, para manter a mentira aos olhos de quem era alheio à nossa farsa, ou se me continha, para não transparecer a quem sabia da mentira que e eu já tínhamos nos relacionado intimamente.
Era um emaranhado de mentiras, ficava até confuso em situações como aquelas.
— Eu adorei o vestido — Fanny comentou com a bebê nos braços. Até mesmo tinha os olhos grudados na mãe, que se encolhia enquanto sorria timidamente com tamanha atenção e elogios. — Vou querer emprestado.
Anne concordou de imediato, fazendo revirar os olhos.
— Se cuidarem bem da minha filha, podem levar meu guarda-roupa inteiro — riu. Anne me encarou de canto de olho. — Foi quem escolheu.
se arrependeu no exato momento em que terminou aquela frase. As amigas a olharam com as sobrancelhas arqueadas.
— Quer dizer, e-ele pegou da arara e me mostrou, eu nem ia levar nada da loja, estávamos com tanta pressa que quase não comprei esse, n-nem cheguei a experimentar antes de comprar — desatou a falar, quase gaguejando explicações para fazer parecer que tinha sido algo banal.
Mais uma vez aquela palavra ou, pelo menos, a menção dela.
Independente do meu incômodo, até que a desculpa colou e as duas pareceram acreditar em , que, na verdade não disse nenhuma mentira. Não tinha motivo para fantasiar nada em cima daquela história de qualquer forma.
— Mas é claro que ele saberia o tamanho certo! Ele conhece bem esse corpinho — Elisabeta deu uma risadinha, alternando o olhar entre nós dois.
Não tinha motivo, pelo menos até ela falar aquilo.
Estava errada? Não, não estava. Eu realmente conhecia bem aquele corpo, mas não era de bom tom falar aquilo, pelo menos não na frente das meninas.
— Aliás, o senhor tem um ótimo gosto!
Sorri em agradecimento, vendo ainda disfarçando a vermelhidão em seu rosto.
— Obrigado, Elisabeta. Vamos, vou te levar até a porta e te dar seu pagamento.
A babá assentiu compreensiva, beijando a mãozinha de e se despedindo das outras três.
Deixei se virar para amenizar a fala de Elisabeta para as amigas, e imaginava até a desculpa que ela iria usar. Éramos casados de verdade na cabeça de Elisabeta, seria normal ela tirar tais conclusões. O que as meninas não sabiam – e nem iriam saber se dependesse de – era que Elisabeta convivia conosco e já tinha presenciado beijos e trocas de carícias entre nós, mesmo quando sua presença não era percebida por ambos.
— Vamos? Estamos atrasados já — antes que começasse seu discurso, puxei-a pela mão. Anne e Tiffany nos seguiram apressadas para fora da casa, que foi trancada por mim.
— Pode deixar que vamos cuidar dela como se fosse nossa — Fanny nos assegurou quando o Uber chegou. Elas encaixaram o bebê-conforto no carro, deixando visivelmente aflita. — Se divirtam os dois, estão precisando — deu um abraço na amiga. — Você principalmente, mocinha. Ache um solteirão rico e o beije escondido na primeira oportunidade! — pegou suas mãos, fazendo-a rir. Fingi não escutar, abrindo o portão de casa para tirar o carro da garagem.
Assim que embarcou no veículo, fomos rumo àquele verdadeiro show de horrores. A única pessoa que beijaria era eu, mas, sobre o rest,o Tiffany tinha razão. Precisávamos nos divertir um pouco, e por que não naquela festa? Seria o único jeito de amenizar o desastre que seria aquela noite.
murchou o sorriso. Provavelmente, já estava pronta para convidá-la para almoçar conosco em casa.
A relação de carinho que construímos com Amélia ia muito além do profissional. Sim, ela era uma ótima advogada, nos ajudou muito desde que embarcamos naquela empreitada; porém, era também parte da família estranha que , e eu formávamos. não teria tios, tias e afins. Teria uma advogada, nossos amigos do trabalho e as várias vizinhas que moravam perto de nós como referência de parentes. As crianças daquele condomínio seriam como primos para brincar.
Eu esperava que aquilo bastasse para fazê-la feliz. Não queria que ela crescesse sentindo falta de algo que não teve por ignorância alheia.
— Tudo bem, a gente queria te agradecer por hoje — abraçou a outra loira, que sorriu desdenhando, como se não tivesse feito nada de mais. Modesta como sempre. — Vamos marcar um outro dia para nos encontrarmos, sim?
— Com certeza! Quero saber como andam as coisas com vocês dois — seu olhar sugestivo passou despercebido por , mas por mim não. Sorri, fazendo-me de desentendido enquanto a abraçava de volta. — Vou indo, se não chegarei atrasada.
A mulher entrou no carro e deu partida, sumindo avenida a fora.
Encarei , que já me olhava parada ao meu lado diante do grandioso fórum e sua escadaria imponente.
— Ela está desconfiada de algo — apontei para a direção que o carro de Amélia foi.
— O quê? Sobre nós? — apontou pra si e depois para mim, com uma feição confusa no rosto. — Você acha? Eu não percebi nada. Nós somos tão discretos!
Reavaliei todas as nossas interações ao lado de Briggs e me perguntei se não estava ficando paranoico. Talvez por perceber que estávamos naturalizando aquela coisa toda de nos beijar em público ou até demonstrar afeto com nossa amizade recém-firmada.
De qualquer forma, iria me policiar mais quando estivéssemos junto de Amélia. era mais tranquila; geralmente eu quem era o problema. Às vezes era difícil processar que não poderia tocá-la ou beijá-la, principalmente depois de mais de três meses convivendo com a ideia de ela ser minha esposa e, ainda por cima, dormir agarrado nela todas as noites.
— Talvez seja só coisa da minha cabeça — murmurei, rindo sozinho.
— Ultimamente, estamos tão acostumados a ter coisas para nos preocupar que, quando está tudo tranquilo, arranjamos algo para passar nervoso — gargalhou, fazendo-me concordar com a cabeça.
— Hoje sinto que nem Miguel consegue me tirar o alívio e a felicidade que estou sentindo.
A loira envolveu meus ombros com seus braços à medida em que eu a trazia para perto, pela cintura.
— Eu amo essa sensação — fechou os olhos, aproximando o rosto do meu.
Sorri antes de fazer o mesmo. Toquei sua boca com a minha e a senti se entreabrir, fazendo-me enroscar a língua na dela num beijo calmo e lento.
Perdi a noção de quanto tempo ficamos ali, trocando beijos diante do fórum. Enquanto isso, as pessoas transitavam pela calçada onde estávamos e passavam por nós, subindo e descendo a escadaria, aparentemente apressados demais para nos notar ali. Também quase não percebíamos o que acontecia à nossa volta; estávamos ocupados demais, imersos naquela atmosfera deliciosa.
A segurança que a juíza nos passou ao se mostrar ciente de que cuidávamos muito bem de – e, de bônus, conseguir ter mostrado a ela que Miguel era perigoso – era reconfortante. Nos dava a sensação de dever cumprido. Nos garantia a certeza de que a bebê ficaria conosco pelos próximos meses, crescendo saudável e sendo muito, mas muito amada.
— Vamos logo pra casa — sorriu animada, pegando minha mão. Desferi um selinho em seus lábios, que, àquela altura, nem batom tinha mais. — Quero apertar muito minha bonequinha nos braços — puxou-me em direção ao estacionamento, provocando-me um risinho ao me lembrar do tanto que gostava de esmagar Salém.
— Pobre .
Ela me deu a língua antes de se virar e me arrastar pela calçada.
O vento balançou a barra de seu vestido, fazendo-a usar a outra mão para segurá-lo no lugar e o impedir que subisse. O vestido ficou justo em seu corpo, o que atraiu minha atenção para sua bunda redondinha. Mordi o lábio, pensando que ser esmagado por e seu corpo delicioso talvez não fosse um castigo, mas sim uma benção.
— Victoria está nos convidando para a festinha dos gêmeos dela — me mostrou o celular, onde um convite digital com personagens da Disney apareceu com a foto dos dois. Eles tinham cara de serem dois pestinhas, sorridentes e com algumas janelinhas entre os dentes, que ainda estavam de pé.
— Parece que teremos bastantes eventos esse mês — murmurei, pegando a avenida principal.
Tínhamos acabado de marcar algo com Amélia, eu tinha combinado de me encontrar com Dafne um dia desses, havia a droga do evento da empresa e agora mais essa! Apesar de estar acostumado com uma vida agitada antigamente, não poderia dizer que estava animado para aquela bateria de lugares para ir. Queria ter um pouco de paz, coisa que sabia que não encontraria fora de casa, com nossos vizinhos nos metendo em confusões ou tendo que fazer teatro na frente de Amélia e meu pai.
Os dias que se passaram foram tranquilos. A calmaria, que antes eu jurava que só duraria no dia em que saímos vencedores daquela audiência, perdurou por pelo menos uma semana. Foi a mesma rotina de sempre: acordávamos juntos e logo eu levava para o trabalho, parava o carro em frente ao mesmo prédio aleatório para poder beijá-la escondido de Anne e, depois, ia para a empresa e evitava ir à copa quando chegava, para não esbarrar com meu pai por lá. Nos falávamos apenas em urgências e através de e-mails estritamente profissionais. Aos poucos conseguimos colocar tudo em ordem, para que a tal Beatrice não pensasse merda de nós.
Seria meio difícil não fazê-lo, principalmente quando a enxerida desse uma olhada na situação em que a empresa se encontrava no momento. Aliás, pelo visto, nem o pai dela deve ter olhado direito, porque a rapidez com que ele realizou aquela compra me fazia pensar seriamente se Phillip não tinha sido vítima de um golpe.
Quando finalizava meu turno, deixava o prédio praticamente vazio e pegava meu carro, indo direto para casa, onde me despedia de Elisabeta e ficava com até dar a hora de buscar . Jantávamos, brincávamos com a bebê até que ela dormisse, trocávamos alguns beijos e carícias e logo caíamos no sono, cansados do dia que tivemos no trabalho.
Olhando desse jeito, pode parecer extremamente entediante e uma vida de casados digna de pena, com direito a falta de sexo e nem sinal de paqueras extraconjugais; já que nem Dafne deu as caras nos últimos dias, ocupada com a finalização de seu TCC na faculdade. Mas após os últimos sufocos que passamos, aquela era a rotina perfeita.
No fim do dia, a única coisa que queríamos era ter Miguel longe de nós e em casa nos esperando para niná-la e colocá-la para dormir.
A tão esperada sexta-feira estava ali. Cheguei no trabalho feliz por ter ouvido boatos de que meu pai estava de viagem marcada para segunda-feira à noite. Nunca imaginei que comemoraria aquilo algum dia. Lembro-me de adorar receber visitas dele antes de tudo acontecer. Saíamos para jantar e ele sempre me contava como as coisas estavam em casa com Grace e mamãe.
Ainda era estranho olhar para trás e perceber que eu não reconhecia mais aquele de antes. Hoje, se me sentasse à mesa para comer com meu pai, a indigestão viria de imediato. Eu não sabia se algum dia voltaria a conviver com ele amistosamente. Independente dos erros cometidos, nós nunca planejamos excluir pessoas tão importantes de nossas vidas e seguir em frente sem pensar em como seria se ainda fôssemos próximos.
Às vezes, inevitavelmente, quando eu estava com , minha mãe me vinha à mente. Lembrava-me do meu aniversário de vinte e três anos, quando estava de rolo com uma garota que ela gostava – de família rica, fazia faculdade comigo. Mamãe, um dia, disse que gostaria de me ver casado e que era louca para ter um netinho. Na época, eu tinha ficado assustado com aquela possibilidade, mas hoje me pergunto o motivo de alguém ter o que tanto desejava ao alcance das mãos e decidir renegar por pura ignorância.
Andei pensando muito no que Dafne me disse, porém, ainda não conseguia aceitar tudo aquilo. Eu continuava pensando como , e achava que, infelizmente, aquele pensamento de finalmente ser independente de meus pais era uma das únicas coisas certas que eu tinha na vida.
— Bom dia, Jordyn — lhe sorri assim que a porta do elevador se abriu e adentrei o hall, próximo da minha sala.
— Parece que alguém está de bom humor — ela riu, deixando o teclado em que digitava para me espiar diante de sua mesa. — Uma festa é sempre uma boa pedida para uma sexta à noite, não é mesmo?
— Festa? — franzi o cenho, confuso.
— O senhor não está lembrado? O leilão beneficente que seu pai organizou para dar as boas-vindas à Srta. Thorpe.
— Eu juro que me esqueci completamente disso — bati a mão na testa.
Estava explicada aquela paz interior toda durante os últimos dias. Eu tinha me esquecido não só da presença do meu pai naquele prédio, como também que aquele monstrinho iria chegar!
— Toda a organização deve ter te deixado sobrecarregado — a secretária riu fraco, sendo compreensiva com minha gafe. — Mas é para isso que eu sirvo, não?
— Obrigado, Jordyn. Nossa, você merecia até um aumento depois dessa.
— Acho que seu pai não aprovaria — sorriu amarelo, fazendo-me rir ao perceber que ela não ia muito com a cara de Joseph . Não julgava, afinal de contas, compartilhávamos a mesma aversão a ele. — Mas obrigada por, pelo menos, pensar na possibilidade.
Me despedi dela e entrei para minha sala quase correndo. Saquei o celular e procurei pelo número de , que apenas chamou e caiu na caixa postal. Provavelmente estava ocupada. Droga. Tentaria novamente mais tarde. iria me matar quando soubesse que me esqueci da festa. Ela não tinha um vestido. Teríamos que dar um jeito naquilo, e urgentemente.
Meu Deus, e ? Não dava para levá-la. Primeiro porque era uma festa agitada e seria à noite; segundo porque meu pai estaria por lá. Teria que tentar falar com Elisabeta e torcer para que ela pudesse ficar com a bebê.
Eram tantas coisas para fazer que me vi estressado. Aparentemente, todas as vezes que eu chegava de bom humor naquela empresa algo acontecia para me tirar aquilo. E pior! Com a chegada da tal Beatrice, aquilo tendia a ser definitivo! Era a noite de suas “boas-vindas”, e eu ainda não tinha engolido a ideia de tê-la trabalhando comigo. Acho que nem com litros de água eu engoliria. Se dependesse de mim, seria uma festa de despedida e sem possibilidade de retorno. Queria lhe comprar uma passagem só de ida de volta a Nova Iorque, de onde ela nunca deveria ter saído.
Fiquei a manhã toda tentando falar com , sem sucesso. Então, decidi ir até a lanchonete em seu horário de almoço. Provavelmente seu chefe não devia deixá-la falar ao telefone durante o expediente. Pelo que me relatava, o Sr. Williams era bem exigente com ela e as outras duas funcionárias que tinha.
— Estou indo almoçar — murmurei para Jordyn, indo até o elevador.
O trajeto até o trabalho de era curto. Logo eu estacionava numa rua paralela a avenida, por já ver que não havia vagas disponíveis naquele horário. Tive um déjà vu quando empurrei a porta de vidro do estabelecimento, ouvindo o sininho tocar e tendo as atenções de Tiffany e sobre mim.
— O que faz aqui? Aconteceu alguma coisa? — a loira veio até mim com uma bandeja abarrotada de comida em mãos. Me impressionei com sua habilidade em segurá-la sem deixar tudo cair no chão.
— Aconteceu, preciso falar com você — a segui até onde ela foi, recebendo um olhar curioso dos ocupantes da mesa em questão.
— Estou um pouco ocupada agora — murmurou, servindo os pratos para os quatro homens. Um deles olhava para Fanny de costas descaradamente, e não eram seus cabelos presos e ondulados presos que chamaram sua atenção, daquilo eu tinha certeza. — Meu almoço é só daqui cinco minutos — espiou o relógio pendurado em uma das paredes. — Mais alguma coisa?
— Não, obrigado, .
Encarei o moreno que lhe sorriu amigável. Quanta intimidade, não?
— Senta e espera — ela indicou uma mesa vazia ao fundo. Encarei-a de sobrancelhas arqueadas. — Ou prefere ficar me seguindo? — manejou a bandeja e voltou a andar até a área restrita a funcionários.
Suspirei e fiz o que me sugeriu: sentei-me ali e espiei as mesas alheias, sentindo meu estômago roncar. Não seria má ideia ficar para comer algo enquanto e eu resolvíamos o que faríamos com mais tarde.
— Olhe só quem veio visitar os pobres — Tiffany chegou em minha mesa, fazendo-me rir e negar com a cabeça.
Desde que descobri que Anne andava cuidando da vida de e, consequentemente, da minha também, eu evitava descer do carro, seja para levar ou buscar minha esposa no fim do expediente. Aquilo seguraria minha língua para não falar algo que com certeza daria em uma bronca de .
— Vim falar com , mas ela parece estar ocupada demais no momento — foquei-me na loira de pé diante da mesma mesa que tinha acabado de servir. Pensei ter ouvido o cliente falar que não queria mais nada, mas lá estava , rindo junto deles.
— Por um momento achei que você estivesse com ciúmes — franziu a testa, balançando a cabeça em descrença. Ri sem humor. De onde ela tinha tirado aquilo? — Essa coisa toda de fingir às vezes bagunça a cabeça da gente, né? Não sei como vocês conseguem.
Simples: não conseguíamos. Tanto que já tínhamos até transado.
— Mas e aí, o que vai pedir? — ela me estendeu o cardápio. Olhei curioso para tudo o que tinha ali; a maioria das coisas não tinha nos cafés que eu costumava frequentar. — Posso te trazer o meu favorito? — Tiffany percebeu minha confusão mental e riu da minha cara. Assenti sem pensar duas vezes. — Já venho.
Fanny era tão enérgica que aquele diálogo todo praticamente só teve falas vindas dela. Aquela tinha uma boa lábia, devia vender horrores.
— Pronto, o que houve? está bem? — sentou-se ao meu lado no sofá vermelho.
— Oi, , já foi atendido? — encarei Anne, parada e sorridente diante de mim. fez o mesmo, voltando a me encarar logo depois.
— O quê, você vai comer aqui? — riu. Respirei fundo, ignorando a implicância. — O que houve com os restaurantes granfinos que você almoça todos os dias?
— Já disse, precisava falar com você. Vou aproveitar e almoçar enquanto isso — lhe respondi a contragosto, incomodado com a presença de Anne ainda de pé ao nosso lado ouvindo nossa conversa. — Fanny já me atendeu, obrigado.
— Tudo bem. Bom apetite, então — ela sorriu amigavelmente, fazendo-me pensar em como as aparências enganam.
Anne parecia ser inofensiva; porém, além de ser invejosa, ainda por cima se aproveitou da minha embriaguez pós-casamento para ir pra cama comigo. Não que eu não tenha aproveitado a noite, mas só de saber daquele fato já dava para ter uma ideia que ela tinha uma personalidade, digamos, questionável.
— Temos que arranjar alguém pra ficar com essa noite, comprar um vestido pra você e ir à bosta da festa de boas-vindas — soltei tudo de uma vez, aproveitando-me da presença de Tiffany, que colocava meu pedido sobre a mesa. Talvez não me mataria na frente dela.
— O quê?! A festa é hoje? — ela arregalou os olhos. — , por que não me avisou antes? Como vamos ter tempo pra fazer tudo isso tão em cima da hora?
Eu tive a mesma reação que a sua, cara .
— É pra isso que estou aqui! Vamos, peça algo e almoce rápido para que dê tempo de ir atrás do vestido.
Entendi a sensação que tive quando achei já ter vivido aquela cena ao entrar na lanchonete. Eu já tinha mesmo! Fui buscar para comprar o vestido de casamento.
— Quer que eu te traga algo, ? — a diferença de Fanny para Anne era gritante. Nem ao menos me importei em vê-la entrando no meio da conversa.
Eu não acreditava naquela baboseira de energia; porém, se me pedissem para classificar como me sentia na presença das duas, Fanny com certeza era alguém que emanava algo bom de si. Já Anne…
— Por favor, amiga — a morena saiu apressada, deixando-nos a sós. — Bom, Elisabeta seria nossa primeira opção, não? Pagamos a mais e el…
— Já tentei ela, tem o marido doente, lembra? Não pode ficar até de noite.
Pensativa, suspirou enquanto eu mastigava o mais rápido que conseguia. Ficamos em silêncio por um tempo, matutando algo que pudesse nos livrar de ter que levar a neném até a festa.
— Bom, Victoria está viajando, nos restou Megan…
— Nós podemos ficar com ela! — encarou Tiffany como se ela tivesse acabado de soltar o maior absurdo da face da Terra. — Eu e Anne! — Fanny puxou a loira que passava por ali.
— Nem pensar! Não confiei nem meu gato a vocês quando fomos pra Tulum, quem dirá minha filha, que é um bebê de três meses! — respondeu e as duas abriram a boca, ultrajadas. — Não, não, não, não estou nem louca!
— , minha mãe mora comigo, se esqueceu? Ela criou três filhos muito bem, não é como se não soubesse manter uma criança viva — Fanny argumentou, fazendo-me analisar a possibilidade numa comunicação silenciosa com . — Será só por uma noite, sua boba! Nós cuidaremos bem dela.
— Sim, vamos fazer uma noite das garotas com . Será muito divertido!
Encarei Anne com a sobrancelha arqueada. Ela sabia que era um bebê real e não uma boneca, não é?
Apesar de metade de mim estar igual a , achando aquilo uma péssima ideia, não poderia dizer que seria uma boa saída – claro, se a mãe de Tiffany realmente estivesse presente.
— Acho que pode ser uma boa ideia — sugeri, com medo de me bater por estar concordando com as meninas.
— É! Pegamos ela quando vier te buscar. Aí, quando ele te trouxer pra trabalhar no sábado, devolvemos .
— Tudo bem — olhou desconfiada para as duas, que seguravam a animação de ter um bebê por uma noite. Elas eram estranhas. — Mas prometam que qualquer coisinha que acontecer, se ao menos soluçar, vocês vão nos ligar — não formalizou uma ameaça de morte caso algo acontecesse com a bebê, mas aquele olhar ameaçador falava mais que mil palavras.
— Vamos, amiga, o Sr. Williams já está olhando pra cá.
O velho estava parado no balcão, alisando o bigode com a mão enquanto observava as funcionárias papeando no meio do expediente.
— Acha mesmo que isso vai funcionar? — remexeu a comida, receosa. Do jeito que era lerda pra comer, só sairíamos dali quando anoitecesse.
— Não temos tempo pra isso agora, ainda temos que ir atrás do vestido — falei, e entendeu o recado, se apressando em suas garfadas.
Enquanto comíamos, reparei no par de olhos azuis nos rondando à medida em que o corpo de média estatura transitava pelo estabelecimento. Larguei meus talheres sobre o prato e respirei fundo. Passei a encarar Anne de volta, mas a loira começou a desviar o olhar e abaixar a cabeça quando percebeu que foi pega nos espiando.
— Ela costuma te olhar tanto assim ou está apenas nos vigiando mesmo? — perguntei, “apenas” sendo claramente uma ironia. Encostei-me no sofá atrás de mim. — Perdi a fome.
— ... — minha esposa me censurou com o olhar, fazendo-me desviar minhas atenções de sua amiguinha para encará-la de sobrancelhas arqueadas.
E eu estava errado em ficar bravo? Tinha vontade de chamar Anne num canto e perguntar se ela queria uma foto de mim e juntos, pra ficar olhando ou até se masturbar em casa, porque, caralho, que tesão esquisito aquela garota tinha em nós dois!
— Queria ver a reação dela caso imaginasse o que está acontecendo debaixo dessa mesa… — estiquei a mão sobre a coxa de , que petrificou diante de mim numa expressão hilária de quem perdeu a compostura. Subi meu toque até sua intimidade, mas fui impedido de continuar quando sua mão segurou a minha.
— Pare já com isso! — sussurrou e olhou em volta, se certificando que ninguém estava percebendo o rubor em seu rosto. As pessoas do prédio à frente deviam estar vendo; disfarçava muito mal.
— O que foi? Só estou acariciando minha esposa — me fiz de desentendido, avançando minha mão pelo seu jeans e fazendo praticamente dar um pulo para o lado, para longe de mim. — Isso é ridículo, você tem medo dela! — ri desacreditado, enquanto disfarçava ao espiar Anne.
— Eu não quero magoar ninguém, mas você não deve saber o que é isso — justificou, fazendo-me ofegar, ultrajado.
— Acho que já está na hora de contar a elas o que andamos fazendo em casa.
negou com a cabeça, em pânico. Era óbvio que eu estava blefando, mas queria ver sua reação. quase pulou no meu pescoço quando fiz um sinal para chamar Fanny até nossa mesa.
— , eu juro que te mato! — ela disse entredentes, com sua famosa ruguinha marcada entre as sobrancelhas, divertindo-me com a cena. E pensar que, um tempo atrás, seria raro um dia em que ela não me ameaçasse de morte.
— O que foi? — a morena se aproximou com a bandeja vazia em mãos. Encarei de canto de olho, vendo-a vermelha de raiva.
— Traz a conta, por favor? — então, sorri cinicamente na direção de quando ficamos a sós. — Calminha aí, eu só estava brincando. Queria te ver se borrando de medo.
— Idiota — desferiu um tapa no meu braço. — Eu não tenho medo dela, já disse.
Olhei para ela com tédio. E eu não acreditava, já disse.
— Por que você é assim, hein?
— Por que você é assim? — devolvi sua pergunta. Eu nunca entenderia o fato de se sujeitar àquelas situações só para manter alguém como Anne em sua vida.
— É sério, . Eu a amo como uma irmã. Não quero estragar nossa amizade com algo tão banal.
“Banal”.
Me calei diante de sua resposta.
Anne era prioridade, eu já tinha entendido tudo. Engoli em seco e encarei o horizonte, quando Tiffany chegou com a conta. Separei as notas e as deixei sobre a mesa, levantando-me sem ao menos ver se me acompanhava. Adentrei meu carro e a esperei-a entrar também para dar a partida.
Dirigi até o shopping próximo dali, deixando o estacionamento apressado ao lado dela. Assim que chegamos no piso em que se concentrava a maioria das lojas, chamei sua atenção, já que ia andando como se eu estivesse ao seu lado.
— Escolha e compre, vou na praça de alimentação tomar um sorvete — estendi o cartão em sua direção. franziu o cenho, parada onde estava.
— Você não vai comigo?
Me mantive impassível, vendo seus ombros caídos. Eu não era algo banal na vida dela? Pois bem, que se virasse sozinha, então.
— Sabe o que aconteceu da última vez que entrei com o uniforme da lanchonete numa dessas lojas de grife, né?
Sim, eu me lembrava da vendedora fazendo-a chorar por jogar na sua cara que não teria dinheiro para comprar ali.
— Vem — pegou minha mão, aproximando-se do meu corpo. Evitei olhar para seu rosto, porém seus olhos azuis atraíram os meus como se fossem dois ímãs. — Por favor — desferiu um selinho em meus lábios. Suspirei derrotado ao vê-la sorrir satisfeita.
Aquilo poderia ser considerado manipulação psicológica?
Adentramos a loja de vitrine escura e cheia de luzes brancas, tendo os holofotes direcionados às manequins pálidas em poses esquisitíssimas. Estava vazia. Só tinha uma vendedora ali, que prontamente veio até nós, sorrindo de forma solícita e, aparentemente, não sendo uma esnobe como as funcionárias da loja de noivas.
— Estamos procurando um vestido — me olhou ao falar. Parecia estar com medo de falar com a mulher.
— Para qual ocasião seria?
me olhou novamente. Daquela vez, era até compreensível; afinal, ela não sabia do que se tratava a festa.
— Será um evento formal, à noite.
Britney, como indicava o crachá, assentiu enquanto transitava pela loja e levava junto de si. Me assustei com a empolgação da moça, que começou a encher os braços de de modelos. Olhei a hora pelo relógio em meu pulso e me preocupei com o tempo limitado que tínhamos ali. finalmente conseguiu fazê-la entender que não daria para experimentar tudo aquilo, então foi direcionada ao provador de loja.
— Fique à vontade. Se precisar de algo, é só chamar — a vendedora falou e eu assenti, vendo-a entrar pelo corredor junto de .
Olhei em volta, observando a decoração sofisticada da grande sala repleta de espelhos e luzes. Deixei-me relaxar no estofado branco, saquei o celular e chequei meus e-mails durante a ligeira demora. Logo ouvi passos vindos do corredor, e surgiu diante de mim usando um vestido vermelho.
— O que acha? — passou as mãos pela saia longa e justa em seu corpo, evidenciando seu quadril e pernas esguias. O decote aberto deixava o vão entre seus seios pequenos à mostra.
Que grande gostosa.
— Deixe ele ver as costas — Britney sorriu animada, segurando os cabelos loiros de e deixando a parte de trás à mostra. O vestido era vazado, apenas com algumas linhas de tecido que faziam o desenho de um X em suas costas. — É maravilhoso, não?
— Caralho — soltei sem querer. Sei que poderia falar outra coisa ao invés daquele palavrão; porém, estava sem saber o que dizer, e ele resumia bem o modo como fiquei ao vê-la vestindo a peça. — Desculpe — murmurei sem graça diante do olhar censurador de .
— Acho que precisará fazer um pouco a barra — a mulher se abaixou, pegando o tecido e dobrando uma pequena parte dele. Realmente, provavelmente arrastaria no chão.
— Não temos tempo pra isso — lamentou, e eu também. Aquele vestido desenhava seu corpo como se tivesse sido feito sob medida. — Vou experimentar os outros.
Enquanto estive sozinho ali, aproveitei para enviar mensagens a Jordyn e Chace, tentando resolver as coisas referentes à empresa a distância mesmo, já que era o único jeito no momento. foi e voltou com mais alguns vestidos, mas não teve jeito. O vermelho ainda era o meu favorito entre todos, e parecia que para também.
Caminhávamos para fora da loja de mãos vazias após eu receber uma ligação de meu pai, querendo saber o que eu ainda fazia longe da empresa quando meu horário de almoço já tinha acabado. Se não houvesse aquela droga de festa para ir, eu estaria lá! Me deu impressão de que ele só tinha me ligado por implicância, por necessidade de se autoafirmar meu chefe e dono daquela empresa.
Quando passamos pelas araras, enquanto se desculpava milhões de vezes com a vendedora por tê-la feito perder tempo e pela bagunça no provador, um tecido em especial me chamou a atenção. Fui até ele e o puxei para fora.
— Que tal esse aqui? — retirei o cabide com o vestido da fileira. — Parece servir.
me olhou como se eu fosse um idiota. Tudo bem, como homem, eu sabia que talvez aquele não fosse o jeito mais eficaz de comprar um vestido, mas estávamos com pressa. A loira analisou o vestido que estendi diante de seu corpo e o pegou em mãos. Era inteiro num azul naval intenso, com uma fenda lateral que eu sabia que ela gostava. Também tinha um detalhe em pedraria e um corte discreto em ambos os lados da cintura.
— Ele é lindo.
— Vá provar! — a vendedora insistiu, fazendo-nos trocar olhares preocupados. Eu tinha meu pai, mas o chefe de conseguia ser bem pior que ele, e o horário dela já estava perto do fim. — Apesar de que acho que seu marido tem razão, parece servir certinho.
— Vamos levar assim mesmo, vamos tentar a sorte — o sorrisinho irônico dela me fez rir baixinho. A sorte quase nunca esteve a nosso favor.
O caminho de volta foi o mais rápido que conseguimos ir. Deixei em frente a lanchonete sentindo falta de um beijo de despedida; porém, resolvi não insistir mais naquela história, ainda mais depois daquela resposta que levei mais cedo. havia deixado bem claro para mim sua lista de prioridades. E tudo bem, acho que fui muito ingênuo em pensar que nossa amizade e o fato de dividirmos como tutores me colocaria numa posição de destaque. Me senti um idiota ao pensar naquilo enquanto dirigia sozinho no carro de volta à empresa.
O resto do dia se passou sem muitas surpresas ou estresses. Acho que estava me abstendo de passar nervoso, guardando para o fim do dia para quando aquela festa aconteceria. O próprio Phillip esteve presente na reunião que meu pai me encheu o saco para ir quando eu estava naquela loja com . Lembro-me de ter chegado atrasado e receber um olhar feio de meu pai; Phillip seguiu indiferente. Acho que já tinha ficado implícito para ele o quanto eu estava odiando tudo que envolvia aquela venda, além da minha antipatia por sua filha, que ainda não tinha dado o ar da graça.
Da última vez que foi feito tanto suspense sobre algo nos últimos tempos, Anne me apareceu namorando Miguel. Então, eu já não esperava nada mais que o pior vindo da tal Beatrice.
Dirigi de volta para casa assim que o expediente se findou. Pedi para Elisabeta ficar até que chegasse do trabalho novamente. Eu iria pagá-la quando fosse embora, junto com o pagamento da vez em que encontrei Dafne depois do expediente.
Aproveitei sua ajuda para me arrumar. Eu sabia o quanto poderia ser demorada, ainda mais para ir a uma festa. Por isso, me preveni, estando pronto antes.
Assim que deu o horário, fui até a lanchonete, cansado de tantas idas e vindas dirigindo. embarcou junto de Anne e Tiffany, que estavam curiosas com o vestido ensacado estendido sobre o banco do passageiro. foi o caminho todo dando recomendações um tanto óbvias sobre como cuidar de um bebê, fazendo nós três rir de seus exageros de mãe. Também deu dicas sobre o comportamento de , como a pequena gostava de ser balançada quando era ninada e coisas do tipo.
Era muito louco perceber como um serzinho de apenas três meses de vida tinha os próprios costumes e percepção sobre o mundo, mesmo sem entendê-lo direito. Era quase como uma personalidade própria. Nunca teria aprendido sobre aquilo se ainda não fosse pai. cada dia mais se mostrava parecida com Grace em seu jeitinho: era sociável com estranhos, já sorria com estímulos e era bastante curiosa, principalmente com sons. Absolutamente qualquer ruído atraía a atenção de seus olhos grandes e verdes.
Quando chegamos, me juntei à Elisabeta e às meninas na sala, enquanto foi direto para o banho e levou consigo o vestido recém-comprado. A babá deu um banho em , mostrando a Tiffanny e Anne como fazia caso precisasse. Os argumentos de Fanny sobre sua mãe ajudá-las não colaram nem com Elisabeta, que pareceu uma avó, teimando em ensiná-las tudo sobre exatamente como fez no carro. Acho que as duas nunca ouviram tanto na vida.
— Vou lá apressar , aproveito e pego seu pagamento — anunciei a Elisabeta, que ensinava a colocar a fralda na criança como se fosse a coisa mais difícil do mundo.
Adentrei o quarto, vendo-o vazio e a porta do banheiro entreaberta. Fui até minha pasta, pegando a quantia que saquei para dar a Elisabeta. Ouvi o característico barulho de saltos pelo chão do quarto e me virei, observando praticamente desfilar em minha direção. Ofeguei sem nem perceber enquanto ela se voltava ao espelho da cômoda, ajeitando o batom escuro nos lábios como se não tivesse acabado de quase me matar do coração.
Naquelas horas, ser mulher me parecia muito simples. Era só vestir algo que praticamente esculpia seu corpo, subir num par de saltos e realçar os próprios traços com maquiagem para deixar quem quer que fosse hipnotizado. Infelizmente, eu sabia que aquilo era apenas uma ilusão. não costumava ser confiante como parecia naquela noite, e aquilo me deixava incomodado. Apesar de ter me tirado o fôlego, linda daquele jeito, eu ainda conseguia enxergá-la daquele modo quando ela vestia apenas pijamas e estava de cara limpa.
— Antes que me apresse, só quero avisar que já estou pronta — resmungou, fazendo-me sorrir atrás dela no espelho.
Distraída, borrifou seu perfume nos pontos de sempre. Respirei fundo, sentindo aquele cheiro delicioso que me instigou a me aproximar de seu corpo. Com aquele par de sandálias, ela estava praticamente da minha altura.
— Estou vendo — a envolvi em meus braços, vendo seu sorrisinho sem graça surgir. Fiquei em dúvida se a elogiava naquele momento ou deixava para mais tarde, quando estaríamos agindo como um casal e eu poderia beijar sua boca e tirar todo aquele batom que a deixava incrivelmente sexy. — Percebeu uma coisa? — perguntei, e franziu o cenho no reflexo à nossa frente. — Vamos ter a casa toda pra nós esta noite — lhe sussurrei ao pé do ouvido. Ela se encolheu e seus pelos se eriçaram.
Beijei seu pescoço, sentindo o perfume intenso diretamente na sua pele quente. Desci os beijos pelo seu ombro descoberto pelo vestido, explorando sua pele macia. Senti suspirar em meus braços, enquanto sua bunda encostava em meu membro, fazendo-o endurecer ao imaginar o que faríamos naquela casa sozinhos quando chegássemos daquela festa ridícula. Iria lhe arrancar aquele vestido do corpo, jogá-la no sofá, em cima da mesa da cozinha, não interessava o cômodo daquela casa. Eu iria fodê-la. Queria estar dentro dela e matar aquela vontade que me rondou desde o momento em que a vi de vermelho naquele provador de loja.
A porta foi aberta antes mesmo que abrisse a boca para responder e confabular comigo sobre nossos planos para aquela noite de “solteiros” sem . Minha única reação foi soltá-la, porém não tive tempo de me afastar da cômoda. Se o fizesse, com certeza deixaria Anne desconfiada, ou seja, mais do que ela já era. Ficaria claro com meu movimento brusco que estávamos fazendo algo “errado”.
Eu juro que queria rir de desgosto ao me encontrar numa situação como aquela.
— Ah… Elisabeta disse que precisa ir. O filho dela está lá fora para buscá-la — seus olhos claros analisaram minha mão apoiada no móvel branco, prendendo lateralmente ali.
— Está vendo, ? Está atrasando Elisabeta também! — ralhei, endurecendo minhas feições.
soltou um riso debochado, encarando-me irritadiça por cima do ombro.
— Já te disse pra não ficar me apressando, que saco! — ajeitou os cabelos, como se ainda precisasse colocá-los no lugar.
Não era nenhuma novidade para mim, mas vi um esboço de sorriso ser mascarado por Annelise ao comprimir os lábios. O divertimento em seu olhar me deu nos nervos. Queria muito voltar a agarrar e beijá-la, só para ver aquele deleite todo se desmanchar em lágrimas saindo dos seus olhos.
Duvidava muito que Anne chegasse ao ponto de chorar ao nos ver juntos, mas falava tanto dela como alguém frágil que parecia que Annelise se quebraria ao meio quando visse que a amiga tinha o que ela achava que merecia no lugar dela.
— Avise que já vamos, sim? — suspirei, realmente bravo daquela vez. Anne entendeu o recado ao encarar meus olhos e assentiu. — Porra, essa insuportável sempre arranja um jeito de nos atrasar.
Anne arregalou os olhos com meu tom de voz, enquanto me encarou estranhando meu exagero, apesar de no fundo saber para quem eu estava direcionando minha raiva. A loira assentiu e saiu do quarto, fechando a porta. respirou aliviada por não termos sido pegos por Anne cometendo aquele crime hediondo.
— O que foi isso? — indagou, enquanto íamos até a porta.
— É isso mesmo, está insuportável hoje — confirmei, e se virou já com sua ruga entre as sobrancelhas, bravinha como sempre. — Insuportavelmente gostosa — lhe agarrei, pegando em sua bunda.
— Seu idiota — ela me socou o peito de leve. — Me solta, vamos logo. Elisabeta está esperando.
Deixei-a ir a contragosto, rindo junto dela. Mesmo depois de nosso pacto de amizade e de uma convivência amena, ainda caía na minha pilha como antigamente.
Fomos pelo corredor, tentando não rir alto enquanto eu lhe agarrava à medida que avançávamos até a escada. com certeza me mataria se não estivesse se divertindo com a situação. Assim que descemos o primeiro degrau, ela se afastou para se recompor. Apesar de continuar achando tudo aquilo uma palhaçada, lhe acompanhei e respeitei sua decisão de não contar nada a ninguém. Afinal, eu havia concordado com aquilo desde o início, mesmo com Anne me tirando do sério e me fazendo querer esfregar tudo na cara dela.
As três, assim que nos ouviram descer, se levantaram e nos esperaram na ponta da escada. Elisabeta deu nos braços de Tiffany e Anne apanhou a malinha da bebê junto do jacaré de pelúcia que lhe dei de presente no Natal. Ela realmente não conseguia ficar sem ele no berço para dormir.
— Está lindíssima, Sra. — a mais velha disse, olhando minha esposa de cima a baixo.
Evitei fazer o mesmo, afinal de contas, as amigas de ainda estavam ali, e uma delas nos vigiava sempre que podia. Era uma bagunça quando tínhamos que dividir o mesmo ambiente com as pessoas que sabiam da nossa farsa e que estavam junto das que não imaginavam que era tudo uma mentira.
Eu nunca sabia como agir direito depois que e eu realmente começamos a transar. Não sabia se a beijava e demonstrava afeto, para manter a mentira aos olhos de quem era alheio à nossa farsa, ou se me continha, para não transparecer a quem sabia da mentira que e eu já tínhamos nos relacionado intimamente.
Era um emaranhado de mentiras, ficava até confuso em situações como aquelas.
— Eu adorei o vestido — Fanny comentou com a bebê nos braços. Até mesmo tinha os olhos grudados na mãe, que se encolhia enquanto sorria timidamente com tamanha atenção e elogios. — Vou querer emprestado.
Anne concordou de imediato, fazendo revirar os olhos.
— Se cuidarem bem da minha filha, podem levar meu guarda-roupa inteiro — riu. Anne me encarou de canto de olho. — Foi quem escolheu.
se arrependeu no exato momento em que terminou aquela frase. As amigas a olharam com as sobrancelhas arqueadas.
— Quer dizer, e-ele pegou da arara e me mostrou, eu nem ia levar nada da loja, estávamos com tanta pressa que quase não comprei esse, n-nem cheguei a experimentar antes de comprar — desatou a falar, quase gaguejando explicações para fazer parecer que tinha sido algo banal.
Mais uma vez aquela palavra ou, pelo menos, a menção dela.
Independente do meu incômodo, até que a desculpa colou e as duas pareceram acreditar em , que, na verdade não disse nenhuma mentira. Não tinha motivo para fantasiar nada em cima daquela história de qualquer forma.
— Mas é claro que ele saberia o tamanho certo! Ele conhece bem esse corpinho — Elisabeta deu uma risadinha, alternando o olhar entre nós dois.
Não tinha motivo, pelo menos até ela falar aquilo.
Estava errada? Não, não estava. Eu realmente conhecia bem aquele corpo, mas não era de bom tom falar aquilo, pelo menos não na frente das meninas.
— Aliás, o senhor tem um ótimo gosto!
Sorri em agradecimento, vendo ainda disfarçando a vermelhidão em seu rosto.
— Obrigado, Elisabeta. Vamos, vou te levar até a porta e te dar seu pagamento.
A babá assentiu compreensiva, beijando a mãozinha de e se despedindo das outras três.
Deixei se virar para amenizar a fala de Elisabeta para as amigas, e imaginava até a desculpa que ela iria usar. Éramos casados de verdade na cabeça de Elisabeta, seria normal ela tirar tais conclusões. O que as meninas não sabiam – e nem iriam saber se dependesse de – era que Elisabeta convivia conosco e já tinha presenciado beijos e trocas de carícias entre nós, mesmo quando sua presença não era percebida por ambos.
— Vamos? Estamos atrasados já — antes que começasse seu discurso, puxei-a pela mão. Anne e Tiffany nos seguiram apressadas para fora da casa, que foi trancada por mim.
— Pode deixar que vamos cuidar dela como se fosse nossa — Fanny nos assegurou quando o Uber chegou. Elas encaixaram o bebê-conforto no carro, deixando visivelmente aflita. — Se divirtam os dois, estão precisando — deu um abraço na amiga. — Você principalmente, mocinha. Ache um solteirão rico e o beije escondido na primeira oportunidade! — pegou suas mãos, fazendo-a rir. Fingi não escutar, abrindo o portão de casa para tirar o carro da garagem.
Assim que embarcou no veículo, fomos rumo àquele verdadeiro show de horrores. A única pessoa que beijaria era eu, mas, sobre o rest,o Tiffany tinha razão. Precisávamos nos divertir um pouco, e por que não naquela festa? Seria o único jeito de amenizar o desastre que seria aquela noite.
Capítulo 35
Depois de quase trinta minutos naquela maldita estrada para chegar ao local do evento, deixamos o carro estacionado em meio aos outros e entramos para dentro. Era até aliviante chegar depois de quase todo mundo. Planejávamos ser os primeiros a ir embora, logo não teríamos dor de cabeça na hora de sair com o carro do estacionamento cheio.
— Merda, eu nunca saio boa nessas fotos com flash — praguejou entredentes, fazendo-me rir diante do fotógrafo estrategicamente colocado na entrada. Toda aquela palhaçada para registrar nos mínimos detalhes a primeira aparição do monstrinho de Phillip Thorpe como membro da diretoria das empresas .
Soltei sua cintura e peguei sua mão quando o homem já tinha conseguido fotos o suficiente. Entramos após nos identificarmos para a funcionária e nos deparamos com um extenso gramado verde. Ele era repleto de mesas redondas postas em frente a um pequeno palco com um púlpito escuro, onde, mais tarde, aconteceria o tal leilão beneficente.
Como meu pai era benevolente com os mais necessitados. Não sei se aquele gesto tão lindo vindo dele compensaria o fato de ele renegar a própria neta.
Ao fundo, instrumentais de músicas clássicas tocavam num volume agradável, apenas para endossar o que eu já imaginava encontrar ali: uma festa de ricaços, tão entediante que chegava a dar sono. O pior era que eu não estava vendo nenhum tipo de mini bar ou a menção da presença de um barman para preparar drinks e nos ajudar a passar por aquela sessão de tortura ilesos, nem que fosse para ficar um pouco tonto.
Paramos próximos da entrada assim que ouvi uma voz conhecida chamar meu nome:
— ?
Procurei pelos lados até encontrar o dono dela atrás de nós, encostado no grande portão com um cigarro na mão. Encarei o homem alto e um tanto franzino que me sorria cheio de ironia. Franzi o cenho. Ele jogou o cigarro no chão e pisou em cima antes de vir até nós.
— Não está me reconhecendo não, cara?
Encarei seus olhos azuis pequenos com as pequenas ruguinhas embaixo de ambos. Então, soltei uma risada surpresa.
— McLain! — soltei a mão de , indo até ele para abraçálo forte, lhe dando tapas nas costas. — Cara, quanto tempo! — me afastei e o encarei, admirado.
— É, andei sumido por uns tempos. Sabe como é, né? Los Angeles… The Hills… — Chris riu, mas eu não o acompanhei. Muito menos , que, na certa, nem sabia que se tratava de uma clínica de reabilitação caríssima.
Encarei a bituca do cigarro no meio da grama e lamentei. Pelo visto, alguns vícios iriam acompanhá-lo até a morte.
— É bom te ver bem de novo — lhe sorri complacente.
— Já não posso dizer o mesmo de você, irmão — olhou para , que continuava a olhá-lo estranho. De certa não o reconheceu. — Casado!
Sorri amarelo, vendo-o fazer aquela piada manjada sobre casamento. Eu não era o maior fã e, se não tivesse sido obrigado, talvez não estaria casado. Mas, já que estava, não ficaria caçoando como se fosse a pior coisa do mundo. Até que não era, inclusive.
— Essa é , você já a conhece — apresentei.
e ele se olharam, surpresos. Ela, por talvez não ter relacionado aquele Chris ao pré-adolescente um tanto gordinho que vivia pra cima e pra baixo ao meu lado nas férias escolares; ele, bom, por ser .
Assenti e comprimi os lábios quando McLain se virou para mim, ainda boquiaberto.
— Cara, eu não acredito nisso! — riu da minha cara, enquanto se mantinha séria ao meu lado; provavelmente lembrando-se de todas as presepadas que aprontamos com ela naquele tempo.
Doze anos não era uma idade para alguém se considerar maduro. Eu preferia usar aquela justificativa antes de relembrar minhas ações um tanto ridículas em relação ao que fazíamos com . Chris era filho de George McLain, um empresário ricaço e amigo pessoal de meu pai. Meu amigo não suportava por ser filha de Theresa, que era nossa empregada. Logo, também não gostava muito de Grace, por tratá-la como se fosse da família.
Minha irmã se livrava dos sustos, apelidos ridículos e provocações por ser protegida por mim. Já acabava tendo os dois pegando em seu pé. chegou a passar dias sem ir até minha casa por saber que Chris estaria lá por uns dias. Grace nunca gostou dele, e até um certo ponto eu achava que era por conta do que fazíamos a , ou pelo fato de meninas de oito anos acharem meninos nojentos. Mas, conforme ficávamos mais velhos, descobri o motivo por trás daquilo.
— Pois é — desconversei, antes que ele inventasse de começar a caçoar de mim ou, sei lá, relembrar algum apelido de , que chegava a chorar por diversas vezes, não suportando nós dois o dia inteiro em seus ouvidos. — E você, cara, nada?
Quando começamos a sair para ir a festas, Chris pegava meio mundo. Não era possível que ainda estivesse solteiro, ou que, pelo menos, não tinha engravidado ninguém naquele meio-tempo.
— Estou namorando, ela deve estar por aí — indicou o local à frente, tirando do bolso um cantil e tomando um grande gole antes de voltar a nos encarar. — Quer um pouco? — ele ofereceu, mas neguei, apesar de ter acabado de lamentar o fato de não ter bebida alcoólica ali. — Vai precisar, essa festa está um porre.
McLain sumiu quando tínhamos uns quinze anos. Nos conhecíamos desde pequenos, e nossas famílias sempre fizeram questão daquela amizade, até meus pais começarem a me proibir de sair com ele. Chris experimentou cocaína na minha frente; eu neguei quando me foi oferecida a droga e queria que ele tivesse feito o mesmo.
Descobriram só depois de um ano. George suspendeu sua mesada assim que descobriu que financiava o vício do filho e cuidou para que ele fosse para a melhor e mais cara clínica de reabilitação. Ele saiu de lá limpo; porém, ainda tinha reincidências e logo voltava a ser internado.
Bom, ao que parecia, ele estava bem, apesar de me dar a sensação que precisava de álcool e nicotina para ficar sóbrio das drogas, como estava fazendo naquele exato momento.
— , !
Avistamos a mesa de onde Suzanne chacoalhou os braços, chamando nossa atenção.
— Vai lá, cara. Bom te ver — Chris me deu outro abraço. Eu quem estava feliz em vê-lo recuperado. Não tive boas notícias da última vez que ouvi sobre ele. — Depois a gente se fala. Bom te ver também, bonitinha.
não o respondeu, fazendo-me puxá-la pela mão para longe dele, que a olhava de cima a baixo e sorria à medida que nos afastávamos. soltou minha mão quando chegamos e fomos recebidos por abraços, principalmente , que não via nenhum deles desde a volta de Tulum.
— Linda como sempre.
Observei as mãos de Chace pegarem pela cintura quando se afastaram. Seus olhos claros praticamente a comeram enquanto apenas agradecia, sorrindo timidamente. Tinha me esquecido do quão galanteador aquele ali era, principalmente pra cima de . Tratei de ir até ele para abraçá-lo num cumprimento rápido para que ele a soltasse, mesmo que já tivéssemos nos visto mais cedo no trabalho.
Virei o rosto enquanto falava algo com Jack e Chace e me deparei com a dona da voz melodiosa que soou próxima de nós:
— Oh, me desculpa!
— Não! Tudo bem, eu que não te vi passar — riu fraco, sem graça, ainda sob o olhar da outra mulher.
— Uau, que vestido lindo.
Os olhos azuis de me encararam, arrancando-me um sorriso convencido. Elisabeta tinha razão, eu realmente tinha um ótimo gosto! Porém, jamais poderia tirar os méritos dos encantos de , linda do jeito que estava.
— Combinou muito com seus olhos.
— Obrigada! Acho que vou começar a pedir pro meu marido começar a escolher minhas roupas. Já perdi as contas de quantos elogios recebi pelo vestido — me virei completamente para ambas após ouvi-la me citar indiretamente. Então, os olhos escuros da estranha se voltaram para mim. — Mas o seu também é divino.
A mulher abriu um grande sorriso em agradecimento, olhando para si mesma e mexendo no vestido rosa-pink tomara que caia, que exibia bem seus seios fartos. Havia um detalhe nas mangas mais abaixo, deixando os ombros também à mostra. A cor contrastava perfeitamente com sua pele negra. As joias que usava nas orelhas, os anéis nas mãos e sua postura refinada, tudo transparecia riqueza. Me vi curioso para saber quem era ela. Nunca tinha a visto nas festas da empresa.
— Nem me apresentei, desculpe! — riu sozinha, levando a mão à testa. — Prazer, Beatrice Thorpe.
Puta que pariu.
— . — vacilou por um instante, antes de aceitar o aperto de mão da mulher, que não percebeu sua hesitação momentânea. Porém, ao ouvir o sobrenome, ela se voltou para mim, assumiu uma postura mais séria e foi correspondida a altura.
— Então suponho que você seja — disse, ao que assenti, lhe dando um aperto de mão a contragosto. — Bom, que bom que os encontrei! Seus lugares estão marcados na nossa mesa. Vamos, o jantar já será servido.
Nossa.
Já não me bastava ter que dividir o comando da empresa, ela ainda queria que eu dividisse a mesa com ela. Quando olhei para a direção em que Beatrice apontou, senti meu estômago revirar ao ver que ela seria o menor dos meus problemas naquela mesa. Meu pai estava sentado ao lado de Phillip, já desfrutando da refeição e conversando entre si.
— Ah, que ótimo — suspirei ao lado de , que engoliu em seco ao ver que seria obrigada a sentar-se à mesa com meu pai. Bom, pelo menos sofreríamos juntos durante aquele jantar.
— Depois voltamos aqui para conversarmos, sim? — se voltou para Suzanne e os demais, que concordaram e nos viram seguir Beatrice. — Nem comi nada e está me dando uma indigestão… — sussurrou, ainda andando na minha frente.
— Nem me fale.
— Aliás, errou feio, . Beatrice não tem nada de monstrinho, ela é deslumbrante! — estava louquinha para voltar a ser minha inimiga de novo.
Não era a primeira vez que ela defendia Beatrice. Eu achava que um dos pilares de uma amizade era odiar a mesma pessoa, mas não estava colaborando para a consolidação da nossa.
É claro que, apesar dos pesares, eu não poderia discordar de naquele momento. Vi com meus próprios olhos – seria mau-caratismo meu se continuasse a chamá-la daquela forma. Porém, por mais linda e deslumbrante que Beatrice fosse, ela continuava sendo uma grande pedra no meu sapato e alguém que eu desejava me livrar o mais rápido possível.
— Olha quem chegou! — Phillip sorriu para nós, enquanto meu pai encarava sem expressão. — Sentem-se, estávamos esperando por vocês.
Puxei a cadeira para , que me agradeceu baixinho ao se sentar bem longe do meu pai, deixando o lugar ao lado dele vago para mim. À minha frente, estavam Phillip e Beatrice ao lado. Talvez eu devesse ter aceitado a bebida de Chris. Nunca imaginei que fosse pensar aquilo algum dia, mas preferia jantar só com na mesa.
— E quem é a moça? — Phlilip, de novo, se pronunciou animadamente, indicando com o queixo. — Não fomos apresentados.
— Ah, essa é , minha esposa.
Meu pai tossiu, servindo-se com um pouco de água. Era bom que ajudava o nosso casamento a descer garganta abaixo, porque ele teria que engolir querendo ou não.
— Ah, sim. Prazer, Phillip. Estou muito feliz em juntar nossas empresas, agora somos quase uma família — proferiu educadamente. Eu até que ia com a cara dele, mas tudo passava quando Phillip me lembrava que tinha comprado a empresa que deveria ser inteira dos . — A indústria Thorpe também é um bem passado de geração em geração. Infelizmente, minha esposa e outras duas meninas não puderam estar presentes, mas a sua família está quase completa, não é Joseph?
Meu pai concordou, fazendo-me suspirar. Nossa família nunca mais estaria completa sem Grace. Não sabia dizer nem o que nós éramos mais, afinal, estávamos bem longe de ser uma família.
— Só faltou Margot, que não estava disposta para viajar até aqui — seu olhar sugestivo para deixou implícito qual era o real motivo de mamãe não estar presente. — Mas haverá outras oportunidades de reunirmos a todos.
— Quem sabe até lá Beatrice já não está comprometida?
Os olhos da filha quase saíram para fora, enquanto se engasgava levemente com a comida que levara à boca. lhe sorriu contida, sem graça por ela.
— Pai!
— O que foi, querida? — indignou-se com a bronca da filha. — Só estou comentando! Você é uma mulher tão linda, não devia estar solteira.
Linda ela era, mas eu tinha certeza que seu defeito de ser intrometida onde não era chamada devia ser o maior empecilho para qualquer cara gostar dela.
— Eu brinco com ela que as irmãs já estão me dando até netinhos, e Bea aí, atrasada — Phillip explicou, sorrindo e contagiando a filha, que ainda sorria sem graça com as brincadeiras do pai.
Eu estava quase tampando a boca de para que ela não começasse a militar para cima de Thorpe sobre como ele estava envergonhando a filha. Eu estava achando ótimo. Mal a conhecia, mas já adorava ver alguém falando mal dela. Inclusive, quando a conhecesse melhor, me juntaria a quem quer que estivesse falando.
— E vocês, quando vão dar netinhos a Joseph? — os dois não perceberam, mas um garçom invisível tinha acabado de passar na nossa mesa e servido uma enorme e gélida torta de climão. — Imagino que, por ser filho único, depois do casamento a cobrança já deve ter começado.
Filho único?
— Na verdade, eu tenho uma irmã — falei, fazendo Phillip franzir o cenho e olhar para meu pai num questionamento silencioso. — Aliás, tinha…
Eu não acreditava que meu pai tinha sido capaz de simplesmente acabar com a existência de Grace e agir como se ela nunca tivesse nascido!
— O quê, ele não te contou? — disse, e olhei para ela, paralisado. Já meu pai a fuzilou com os olhos, sentado onde estava.
Pronto, o Casos de Família já estava montado. Ainda bem que havia duas cadeiras sobrando na mesa; uma para Christina Rocha e outra para a psicóloga.
— Grace morreu no parto de . Nós já temos uma filha, a criamos como se fosse nossa.
Os Thorpe encararam meu pai, que terminou de mastigar enquanto ganhava tempo para formular uma desculpa para aquela palhaçada. Se é que ele teria alguma.
— Não acredito que não contou a ele — ralhei, ainda boquiaberto. Mais do que isso, magoado. E eu que achei que não me surpreenderia com mais nada vindo dele.
— Não contei porque é uma perda recente, ainda dói falar sobre.
A cara nem ardia, né? Sentir a perda de Grace não ajudaria em nada. Ele devia fazer algo por quem tinha ficado, quem estava vivo.
— Então já tem uma herdeira para continuar o legado dos ! Que bom — Phillip ainda era a única pessoa a sorrir naquela mesa. A própria Beatrice percebeu que havia algo de errado. Não que ela fosse inteligente por notar aquilo; era só ver como nem ao menos olhava na cara do meu pai. — Eu amo ser avô. Estou estranhando que não me contou da bebê, eu mostro a foto dos meus netos pra todo mundo — Beatrice sorriu com ele.
— Não tenho contato com a criança.
O sorriso de Thorpe murchou no mesmo instante. Me adminrava um homem tão “família” ter comprado a empresa de um miserável como meu pai. De certo, Joseph devia ter mentido sobre nós no ato da venda. A famosa propaganda enganosa. Ninguém se filiaria a alguém como meu pai sabendo de tudo.
Quando um homem não valoriza nem a própria prole, não há como esperar lealdade alguma numa sociedade envolvendo negócios.
— Agora pergunte o motivo — sorriu irônica em direção a Phillip. — Estou curiosíssima para saber também — levou a mão ao queixo, encarando meu pai determinada a tirá-lo do sério.
Mais uma vez os dois novatos na confusão se viraram para ele.
— Você sabe bem o porquê. Aliás, a culpa é toda sua — sorriu orgulhosa de seus feitos como mãe. — Essa criança é ilegítima.
Os Thorpe se entreolharam, ainda confusos. E eu estava bem no meu canto, torcendo muito para que Phillip repensasse a compra da empresa. Ainda dava tempo de rasgar os papéis assinados, desfazer todos os trâmites de compra e fingir que nada tinha acontecido.
— Ah, por favor — riu com gosto, jogando o guardanapo sobre seu prato quase intocado. — Em que século estamos? No quinze? — projetou o quadril para trás, empurrando a cadeira para sair. — Pois eu espero muito que continue não querendo nenhum tipo de contato com minha filha, porque é agora mesmo que não vai ter nunca!
— Nos dê licença, sim? — murmurei a Phillip quando já estava era longe. Por sorte, ele estava tão atônito com o que havia acabado de escutar que nem se importou com a falta de etiqueta de .
Dei passos largos até ela, que andava entre as mesas com pressa e muito irritada.
— Ei, espere.
parou, se virando para mim quando estávamos longe deles.
— Eu sei o que te falei naquele dia. Foda-se seus pais e o que eles pensam sobre . Sei que ela será amada por nós, mas porra, eu não consigo aceitar que exista alguém nesse mundo que a odeie — seu rosto molhado por lágrimas me partiu o coração. A guiei até uma das mesas próximas e nos sentamos ali. — Ainda mais sendo da família. Ela é só um bebê, a criança mais linda e carinhosa que já vi na vida. Eu fico revoltada com isso.
— Eu sei disso, — suspirei, secando seu rosto. — Me sinto um tolo por me importar tanto com isso. Imagino que esteja se sentindo do mesmo jeito. — a loira chorosa assentiu, fungando enquanto controlava o choro. — Não vale a pena, sabia?
afirmou com a cabeça novamente, respirando fundo e se recompondo aos poucos.
— Venha, vamos dançar um pouco — puxei-a pela mão em direção ao espaço vazio entre as mesas e o palco pequeno.
— Não, ! Não tem ninguém dançando — exclamou, olhando em volta, envergonhada com os olhares que recebíamos.
— É isso ou ter que voltar para aquela mesa — avisei, e negou com a cabeça veementemente. — Dissemos que iríamos nos divertir, então vamos tentar fazer isso, nem que seja caçoando do bronzeado laranja daqueles velhos ali — virou o pescoço discretamente, rindo junto de mim. — Ou, quem sabe, sair de fininho pra dar uma rapidinha em algum cantinho por aí… — eu já a guiava em passos suaves na dança.
Era completamente suspeito para falar, mas ficava com a segunda opção. Na verdade, estava com ela em mente antes mesmo de sairmos de casa.
— … — minha esposa abaixou a cabeça, envergonhada, com as bochechas já rubras. Então, encostou a testa em meu ombro, arrancando um riso meu.
— Como é que ainda fica envergonhada desse jeito por nada? — indaguei, indignado, ao mesmo tempo que achava adorável.
Às vezes parecíamos estar num daqueles primeiros encontros que estamos tão nervosos que absolutamente tudo nos causa um riso sem graça daqueles. Aquela era a melhor parte – depois do sexo, é claro – daquilo que estávamos fazendo. Não tínhamos compromisso, não era algo pensado para durar. Por isso, nunca sairíamos do início, e o começo era sempre a melhor parte.
— Eu não sei — me fez rir, ainda escondendo seu rosto de mim. — É que já faz um tempo, não? — franziu o cenho, e assenti de imediato. Desde o Ano-Novo, na viagem de volta para casa.
Desde então, tinha acontecido tanta coisa que nem houve clima para transar na maioria das vezes. Antigamente, eu achava que ficaria louco, subindo pelas paredes se passasse tantos dias sem sexo. Mas, pelo visto, abstinência não matava ninguém, e, no nosso caso, foi necessária. As coisas ainda estavam sendo colocadas no lugar após aquele ataque e a audiência de .
— Eu sinto a sua falta… — aproximei a boca de sua orelha pequena, vendo-a se encolher em meus braços, arrepiada.
Não era mentira, não era da boca para fora. Apesar dos dias difíceis e de ter levado todo aquele tempo sem transar numa boa, eu não poderia negar que sentia falta dela. Às vezes, no meio do expediente, me pegava pensando em tudo que fizemos durante aquela viagem. Não somente do sexo em si, mas do modo como que ficamos abraçados naquela piscina, da textura de sua pele grudada junto à minha debaixo da água, de como dançamos naquele restaurante e das boas risadas que demos enquanto transávamos naquele banheiro de avião.
Eu realmente sentia falta de todos aqueles dias.
— Eu estou bem aqui — ela sorriu, ainda sem jeito sob meu olhar intenso. — Na sua frente, literalmente, todos os dias e noites — encolheu os ombros.
— Não é desse jeito.
ficou séria, ainda com ambas as mãos em meus ombros enquanto dançávamos sozinhos diante das mesas. Eu sabia que ela tinha entendido o que eu quis dizer. Estava desconversando por ficar tímida comigo falando sacanagens em público. Mas eu sentia muito por ela, porque não conseguia mais segurar e deixar tudo aquilo somente na minha cabeça, enlouquecendo-me aos poucos por ter todos aqueles desejos aprisionados.
Tomei sua boca devagar, invadindo-a com minha língua num beijo molhado. Respirei forte pelo nariz, contendo minha vontade de explorar seu corpo com minhas mãos diante daquelas pessoas sentadas ao nosso redor. Me contentei apenas em apertar sua cintura descoberta pelo vestido, sentir sua pele macia na ponta de meus dedos.
— Eu te quero nua, dançando só pra mim — escorreguei o rosto pela lateral do dela, voltando a sussurrar ao pé de seu ouvido. suspirou, deslizando as mãos de meus ombros até a parte de trás dos meus bíceps. — Quero você descendo e subindo no meu pau, quicando sobre minhas coxas do jeito que só você faz — minha voz saía trêmula, tamanho o tesão que estava sentindo. não estava diferente. Seus dedos se fecharam nos meus braços à medida que nossos corpos se colavam ainda mais. — Te quero gemendo, soluçando baixinho no meu ouvido, me implorando pra te foder mais rápido e mais forte.
— Pare, por favor, pare — se afastou de pálpebras pesadas. Sua respiração alterada e o modo como ficou mole em meus braços demonstravam que ela estava louca para fazer tudo o que eu tinha acabado de descrever. — Céus, você é tão… depravado — tentava ficar séria, mas eu conhecia bem aquela carinha de safada dela.
— E você adora, não é mesmo? — voltei a agarrá-la. mordeu o lábio em desejo, assentindo com veemência.
— Então aproveite e não reclame.
Sorri feito besta, imitando-a. se aproximou do meu rosto e chocou o nariz contra o meu levemente, antes que eu tomasse iniciativa e beijasse sua boca. Segurei-a pela nuca e esbarrei os dedos em seus cabelos loiros presos no penteado.
— Boa noite a todos — a voz do meu pai soou por todo o local com a ajuda de um microfone. Terminei o beijo, tendo-a suspirando de forma derrotada. O que não poderia ficar mais tediante tinha acabado de ficar. — Primeiramente, gostaria de dizer que é um prazer recebê-los nesta noite tão especial…
Revirei os olhos com tamanha bajulação. Depois do que houve naquela mesa, acho que meu pai teria que beijar os pés dos Thorpe para tentar camuflar sua verdadeira imagem – a que eu e fizemos questão de deixar bem explícita.
— Por favor, arranje um lugar pra nos esconder — ela suplicou ao ver os funcionários do local passarem de mesa em mesa distribuindo as placas de números. O leilão iria começar.
Olhei em volta e percebi ao fundo um pequeno sobrado. Parecia ser a área de funcionários, já que alguns saíam da porta do primeiro andar com pressa, carregando bandejas. Próximo da porta havia uma escadaria que dava para outra porta. As janelas pequenas ao alto evidenciaram estar escuro lá dentro, provavelmente inabitada.
— Venha, vamos aproveitar que estão todos distraídos — peguei sua mão e a entrelacei com a minha.
Quando chequei se ninguém nos via, cruzei o olhar com meu pai, que negou com a cabeça em reprovação enquanto nos observava do palco literalmente dar fuga dali. Subimos as escadas rapidamente, tomando cuidado com por estar de saltos e com o vestido longo. Por sorte, a porta estava aberta. Assim que acionei o interruptor, a luz se fez presente, revelando um banheiro simples e limpo.
— Parece que nós gostamos de banheiros, não? — riu, olhando em volta. Assenti, mordendo o lábio em desejo. Agarrei-a forte e colei seu corpo ao meu. — A porta… — ela desgrudou a boca da minha com dificuldade, fazendo-me largá-la com muito custo para ir até a porta, girar a chave e trancá-la.
Assim que me virei de volta, vi me esperando ansiosa encostada na pia. Seus olhos azuis e brilhantes estavam espremidos, disputando espaço com o sorriso aberto que ocupava quase todo seu rosto vermelho. Não estava calor ali dentro, mas pude ver que ela estava com a mesma vontade que me motivava a ir até ela. Queria poder piscar os olhos e já vê-la despida. Eu tinha tanta pressa de tê-la mais uma vez, tanta saudade, que até o ato de tirar as roupas parecia durar uma eternidade.
— Vem cá, minha gostosa — murmurei envolvendo seus quadris com ambas as mãos, enterrando o rosto na curva de seu pescoço. Enquanto distribuía beijos em seu cangote cheiroso, ouvi gargalhar em nervosismo, de ombros encolhidos.
— Eu não sou sua! — exclamou, com a voz esganiçada pelo riso.
Eu era uma piada para ela?
— Se não é minha, é de quem então? — encarei seu rosto e torci para que ela não pensasse em citar outro homem, muito menos Tom. Se não, no auge dos meus vinte e quatro anos de vida, aquela seria a minha primeira vez brochando.
— Da , sou a mãe da — ela levou os braços até meu pescoço, sorrindo cinicamente. — Não sou sua, e você não é meu.
— E eu sou de quem? — arqueei minhas sobrancelhas.
— Você é pai da …
— Não, como homem — teimei, vendo-a revirar os olhos.
Eu queria ver sua resposta, e uma ansiedade me tomou. De repente, me vi ansiando por verbalizar o que minha cabeça gritava insistentemente, embora eu achasse que aquilo era apenas um efeito do tesão que estava sentindo.
— Eu não sei, — deu de ombros. — Você é quem tem que saber, talvez até já saiba e fique com ela quando o divórcio sair — desdenhou, evitando meu olhar.
— Está falando da Dafne? — franzi o cenho. soltou um risinho fraco, tirando os braços de volta do meu pescoço.
— Está vendo? Você até adivinhou.
— Eu não tenho nada com Dafne — a prensei contra a pia, pegando seus braços e colocando-os de volta onde estavam. — , eu…
— Quer saber? Você não tem que ficar me explicando isso. Não sei nem por que entramos nesse assunto numa hora dessas — sorriu amarelo.
Suspirei, assentindo, apesar de meu coração bater acelerado, atiçando-me a continuar explicando a ela até que não restassem dúvidas. Mas estava certa. Eu não lhe devia explicações, do mesmo jeito que não poderia ficar bravo caso ela externasse algum pensamento sobre Tom ou qualquer outro.
Pensar que estava certa naquela situação específica me fazia relembrar um pouco do ódio que um dia já senti por ela. Eu odiava o modo como se sentia a dona da razão, não dando a ninguém o benefício da dúvida, mesmo que existissem. Ela estar certa no que disse me fazia querer largá-la ali e correr para longe de sua vista. Fugir para não ter que lidar com a frustração de querer discordar e não poder.
Até porque discordar dela ali seria um caminho sem volta de um lugar desconhecido. Era algo que exigiria certeza. sempre foi alguém que inspirava dureza. Com ela era sempre oito ou oitenta, quente ou frio, e eu não sabia o que sentia ou faria. Não havia lugar para as minhas incertezas naquela discussão.
— Tem razão — cedi, mesmo que contrariado. Lhe beijei, sendo correspondido fracamente. — O que está lá fora, fica lá fora — peguei seu rosto, vendo-a respirar fundo ao concordar com a cabeça.
Lá fora… Fora de casa, fora daquele banheiro, fora da nossa redoma de vidro colocada sobre nós quando decidimos fazer parte daquele plano. Todo mundo passava e espiava nossa vida, nos influenciava a tomar decisões e até mesmo a invadiam sem serem chamados. Às vezes algumas rachaduras surgiam, e eu sentia como se tudo estivesse prestes a desmoronar; outras, parecíamos estar sob um vidro inquebrável, escuro e à prova de ruídos. Normalmente, eram momentos como aquele, quando estávamos sozinhos e escondidos dos olhos alheios.
— Eu sou o seu homem — enquanto eu assentia, ria e negava com a cabeça. — Pelo menos aqui, onde estamos só você, eu e mais ninguém — dei-lhe um selinho. — E você, , é minha mulher — peguei seus quadris, dando-lhe impulso para ela ficar sentada sobre o gabinete de granito que abrigava a pia. — O que me diz… hein? — beijei sua boca, tendo seu olhar risonho sobre mim. — Não diga que sou louco.
— Você me conhece tão bem — brincou, deixando-me entrar no vão entre suas pernas, abraçando-me pelos ombros. Relembrei como era deliciosa a sensação de estar preso em seus braços. Peguei suas coxas e as entrelacei em meus quadris.
Não, , eu não poderia dizer que te conheço bem.
Desde seu passado obscuro até o que se passava em sua cabeça, quando eu não conseguia evitar soltar minha língua e dizia o que estava sentindo, eu nunca sabia o que ela pensava. Não conseguia prever seus próximos passos ou saber suas reais intenções. Me sentia numa sala escura, onde só sua voz me guiava lá dentro, que era a única coisa que eu tinha de . Sua voz, o que ela escolhia dividir comigo.
Não parecia existir uma saída, mas, por incrível que pudesse parecer, eu não queria deixar aquele lugar. Me sentia confortável ali, e esperava pacientemente até o dia em que acenderia as luzes e me deixaria saber o que ela sentia ou o que a assombrava tanto, a ponto de fazê-la esconder tão bem.
— Esse corpo também — repeti a fala de Elisabeta e mordi seu lábio inferior, avançando a mão pela fenda em sua coxa em direção a sua virilha.
Minha esposa gemeu baixinho quando dedilhei sua intimidade ainda por cima da calcinha, que invadi e senti sua buceta molhada pulsar em excitação, fazendo-me deleitar ao olhar em seu rosto e ver a luxúria estampada nele. Se não queria dizer que era minha por bem, então eu a faria confessar enquanto estivesse fora de si. Se bem que palavras não seriam necessárias quando estivesse gozando sobre aquela pia. As imagens sempre falavam por si próprias.
Eu enroscava minha língua contra a sua num beijo urgente, necessitado, enquanto a masturbava já sentindo suas mãos cheias em meu membro, que sofria aprisionado naquela calça, apertada até demais.
— Ouviu isso?
Ignorei-a, colocando velocidade em meus dedos enquanto beijava sua bochecha e ia em direção ao seu pescoço.
Deveriam ser gritos do leilão. Para aqueles velhos era como jogar num bingo. Eles diziam pra todo mundo que era pela caridade, mas eu sabia bem que era apenas para esbanjar o dinheiro que tinham uns pros outros. Eles estavam pouco se fodendo para os necessitados.
— , é sério, tem uma mulher gritando — ela livrou-se de minha mão, tirou-a de dentro do vestido e me empurrou levemente para longe do seu caminho. Suspirei, observando seu corpo ir até uma das janelas e por ali ficar. — Aquele não é o seu amigo?
Fui até onde ela estava e vi, pelo vão do vidro da janela, Chris discutir com uma mulher desconhecida; provavelmente. era a tal namorada. exclamou em espanto quando o viu pegá-la fortemente pelos braços enquanto se aproximava de seu rosto e falava coisas incompreensíveis, vermelho de raiva. Ele a empurrou contra a parede, fazendo meu coração pulsar em ódio. O que aquele imbecil achava que estava fazendo?
— , onde você vai?
's point of view.
Ignorei a voz de me chamando e fui praticamente cega de ódio até a saída daquele banheiro. Desci os degraus segurando-me no corrimão para tentar não cair da escada enquanto ia rápido, sem me preocupar com os saltos que usava. Corri pelo gramado e fui em direção à parte de trás do pequeno prédio, onde aquele filho da puta prensava a mulher contra a parede branca. Ele a segurava pelo pescoço enquanto ela se debatia, tentando acertar as unhas grandes em seu rosto.
Meu coração se acelerou ainda mais. Eu realmente não sabia que conseguia atingir aquela velocidade sem cair dura no chão. Na verdade, não entendia meu choque todo com aquela cena. Não era uma novidade para mim; eu já tinha visto aquele filme de horror mais vezes que gostaria.
— Larga ela! — rugi, empurrando-o com força pelo ombro e quebrando o contato dele com o corpo da namorada, que chorava copiosamente. Ela estava inclinada para frente com a mão onde a dele estava segundos atrás.
Eu não tinha a visto ainda; seus cabelos castanhos e curtos lhe cobriam o rosto vermelho e repleto de resquícios de maquiagem borrada. Peguei impulso para ir até ela, checar se estava bem e, se não estivesse, me asseguraria que ficasse. Não era a primeira vez que eu fazia tudo aquilo. Comecei muito antes de ser considerada uma adolescente. Ainda criança, aos nove, dez anos, já ajudava minha mãe a se recuperar da passagem do furacão que era meu pai.
Tudo o que ele tocava, ele destruía.
— Algumas coisas nunca vão mudar — a risada dele me provocou enjoo. Senti meu corpo ser puxado para longe dela e cambaleei, conseguindo me manter de pé por um milagre. — Você sempre foi uma enxerida de merda.
A voz mansa não contrastava nada bem com sua expressão facial, que se contorcia numa raiva descomunal. Sua respiração estava descompensada, e os cabelos escuros, desgrenhados. Chris falava com o rosto bem próximo do meu. Encarava-me de cima dos seus um metro e oitenta de altura e jurava que estava me apavorando com tudo aquilo.
— Eu não tenho medo dessa sua vozinha calma, muito menos desse seu aperto no braço — cuspi em seu rosto, fazendo-o me soltar para secar a saliva que escorria por seu olho direito.
Eu havia crescido em meio a gritos, empurrões e pancadas. Aquela postura passivo-agressiva dele não me fazia nem cócegas.
— Filha de uma puta — esbravejou, empurrando-me fortemente pelos ombros.
Daquela vez, não consegui me manter de pé. Fui ao chão, já vendo-o se aproximar rapidamente de punho cerrado, pronto para me acertar. Eu não podia acreditar que, depois de tão pouco tempo tendo um pouco de paz, a violência doméstica voltaria a me rondar daquela forma.
— O que pensa que está fazendo, Chris? — a voz imponente de soou pelo local, atraindo a atenção do idiota, que mesmo assim não hesitou.
o empurrou para longe de mim, pegando-o pelo colarinho quando estavam a uma distância considerável de meu corpo. Ofeguei aliviada, engolindo em seco ao ver os olhos azuis raivosos sendo direcionados a mim por cima do ombro de , como se eu fosse o centro de um alvo que ele ansiava acertar.
— Essa vadia! Se intrometendo onde não foi chamada! — avançou em minha direção. o parou, enfurecido, voltando a empurrá-lo para trás.
— Se tocar nela de novo, eu juro…
— Qual é, ! Vai ficar do lado dela? — daquela vez, ele tentou empurrar , porém, não teve muito sucesso. McLain só crescia pra cima de mulheres; com , ele estava tentando argumentar. — Sua mulher está errada, ninguém a chamou na conversa…
— Conversa? — me levantei cambaleante, sentindo o ódio me cegar novamente. — Que tipo de conversa é essa? Eu não vi ninguém conversando aqui, só você tentando enforcá-la — apontei para a moça, que soluçava audivelmente, encolhida contra a parede. Ela estava sentada no chão ao lado do próprio celular, um iPhone completamente despedaçado.
— Isso não é da sua conta! — McLain brandou e avançou de novo, sendo impedido novamente.
Eu só consegui rir, completamente desacreditada do que ouvi. O que uma pessoa daquelas tinha na cabeça para pensar que estava com a razão naquela situação? O que o fazia acreditar que ele estava certo em agredir a namorada daquela maneira e, ainda por cima, destruir o celular dela? Independente do motivo da discussão que iniciou aquilo tudo, nada justificaria toda aquela violência.
— Ei, chega, saia daqui. Vá tomar uma água e se acalmar — franzi o cenho ao ouvir a voz de falar aquilo. Se não estivesse vendo com meus próprios olhos, duvidaria de quem quer que fosse a pessoa que me contasse que aquilo saiu de sua boca. — Você está bêbado, cara! Chega de fazer besteiras!
— Não, ele não precisa se acalmar. Ele precisa ir preso, isso sim! — peguei o celular do chão com as mãos trêmulas, sentindo falta do meu que estava na mesa onde jantamos anteriormente. Sentei-me ao lado da mulher, que abraçava os próprios joelhos e escondia o rosto em vergonha.
— Não, cara, peraí! — Chris tentou se desvencilhar de para vir até mim, já com outra postura. A voz soou desesperada, os olhos azuis se encheram de lágrimas e ele juntava as mãos num sinal de súplica. — , eu não posso ir preso, você sabe que não posso. A minha ficha, ela… Você sabe, não sabe, ?
Encarei e o vi hesitar, suspirando ao segurá-lo. McLain se lançou nos braços do amigo, o abraçando enquanto se lamuriava. Eu assistia à cena derramando lágrimas de puro desgosto. Como era fácil conseguir a pena de outro homem. Ele tinha acabado de enforcar uma mulher na minha frente, mas, naquele momento, abraçava como se fosse uma pobre vítima da sociedade. Aquele burguês filho da puta achava mesmo que iria se safar do que fez choramingando?
— Eu prometo que não faço mais, cara. Prometo que essa é a última vez que bebo — ele continuava tentando convencer de ajudá-lo. — Por favor, cara, você me conhece desde pequeno. Me livra dessa.
— Você tem noção do que fez? — reagiu, tirando os braços dele de volta de si. — Acabou de machucar sua namorada e ia bater na minha mulher! Está louco, caralho? Eu achei que você tinha mudado!
Era ridículo acreditar em mudanças de pessoas como McLain. Não adiantava ter um só pingo de esperança, aquilo não iria acontecer. seria muito ingênuo se cedesse àquele argumento. Aliás, mesmo se o fizesse, nada nem ninguém me impediria de denunciá-lo.
— Tem razão, me perdoe. Por favor, me perdoe — se ajoelhou diante de , que tentava levantá-lo com muito custo.
Ele estava se desculpando com pelo quê, exatamente?
— Amor, amor, me desculpa, eu não fiz por mal… Eu não faço mais… — se arrastou até a namorada.
— Saia de perto dela, cacete! — o empurrava e o chutava para longe, enquanto ele insistia em tocá-la.
A tela se acendeu em meio às dezenas de rachaduras. Tentei digitar, mas não conseguia visualizar direito o que tinha ali. Então, pressionei o botão lateral de bloqueio três vezes. Sabia que, quando completasse as cinco, teria a opção de ligar para os serviços de emergência. Porém, fui surpreendida ao ter o aparelho praticamente arrancado de minhas mãos.
— N-Não chame a policia, por favor. Não precisa! — a mulher pediu, e eu a encarei incrédula. Mas, mais uma vez, não deveria estar surpresa. — E-Eu estou bem.
Minha mãe fazia a mesma coisa sempre: aceitava flores e as desculpas dele. Inclusive, estava com meu pai vivendo sob o mesmo teto até hoje, mesmo depois de anos ameaçando deixá-lo ou mandando-o ir embora. Ela chegava até a ir na delegacia registrar o boletim de ocorrência; às vezes, não conseguia nem terminar o trajeto, voltava para casa arrependida de pensar em denunciar o pai da filha. Quando conseguia ter forças para falar com a polícia, depois de alguns dias, ia até lá retirar a queixa.
Ele sempre a convencia de que era o certo a se fazer e prometia ser um homem melhor.
Eu nunca entenderia que sentimento era aquele que tanto se parecia com o amor, a ponto de fazê-las acreditar cegamente em alguém que já lhes fez tanto mal. A ponto de fazê-las insistir num erro tão doloroso, que não machucava apenas a pele, mas também a alma, e feria a dignidade delas.
Como alguém conseguia aceitar viver daquele jeito só para continuar em função de fazer outra pessoa feliz?
O amor não te machuca, não te faz chorar mais do que sorrir e não te faz se sentir um lixo. Eu tinha certeza que minha mãe não amava meu pai, assim como também podia ver que aquela mulher não tinha sentimentos bons por Chris. O modo como ela virava o rosto vermelho e molhado por lágrimas quando ele se aproximou para beijá-la, o jeito como ela se encolheu em nojo quando seus braços estiveram em volta de si…
Desolada, observei McLain levantar a namorada – que, minutos atrás, ele mesmo empurrou – e levá-la para longe. Solucei e apoiei as mãos no chão, sentindo a terra e a grama entre meus dedos entrando por baixo de minhas unhas quando as raspei contra o terreno com força. Fechei ambas as mãos e tentei descontar minha raiva ao sentir que estava tendo mais um dos meus déjà vus /que me assombravam desde criança.
Eu sempre acabaria daquele jeito? Não parecia existir saída para aquilo. Se existia, eu pelo menos nunca presenciei.
— Venha, vamos tomar uma água e se acalmar — meu olhar subiu dos sapatos caros de para suas pernas, até chegar em sua mão estendida em minha direção.
Ignorei-o e voltei a soluçar, ainda desacreditada em como tudo aquilo tinha acabado. Quando corri até eles, achei que tudo ficaria bem. Realmente pensei que poderia fazer algo. Pensei que se juntaria a mim e me protegeria de Chris, que, por sua vez, ficaria bravo por me ter acabando com sua farra. Tinha pensado que, daquela vez, eu poderia impedir que ela o perdoasse e a incentivaria a fazer algo a respeito.
Tinha tentado tantas e tantas vezes com minha mãe, e a sensação era… Eu nem ao menos conseguia descrever a dor que me comprimia o peito, a impotência e a raiva de vê-lo sair ileso! Me sentia inútil, e aquilo me matava por dentro.
— …
— Você realmente acha que água resolve uma situação dessas? — esbravejei, tirando suas mãos de mim e arranhando-o com minhas unhas, como um animal selvagem que se sentia ameaçado. — Como pôde deixá-lo ir desse jeito, como se ele não tivesse feito nada de errado?! — me levantei, apoiando-me na parede. Meu estado emocional era tão extremo que eu chegava a sentir minhas pernas trêmulas.
achava que o amigo tinha feito algo errado, não achava? Ele tinha ficado bravo daquele jeito só pelo empurrão que levei?
— O que quer que eu faça? Tentei ajudar, você tentou ajudar, e olha onde acabamos? Brigando por conta dos problemas dos outros!
— Problemas dos outros… — repliquei, sentindo tudo girar à minha volta. — Você realmente acha que isso é um problema só deles?! — ri em meio ao choro que me subiu à garganta. — Ele poderia matá-la aqui e ainda assim não seria problema nosso! — o sarcasmo ficou evidente naquela última frase.
— Eu não disse isso… — ele hasteou o dedo. — Eu disse que ela não queria ajuda, você mesma viu.
Cada vez que ele abria a boca, mais decepcionada eu ficava.
— E só por isso não devemos ajudá-la?
levou as mãos aos cabelos, puxando-os como se estivesse farto daquela discussão. Era eu quem estava farta.
— , ele está bêbado. Não sei se sabe, mas Chris tem problemas com drogas — enquanto ele explicava, cruzei meus braços, indignada. — Sei que isso não justifica o que ele fez, mas, porra… Eu não o vejo desde a adolescência, porque meu pai decidiu que ele não era boa influência pra mim por ter começado a se drogar. Tem noção de como eu fiquei? Eu dei as costas pra ele quando ele mais precisava de mim, e agora… — comprimiu os lábios, com os olhos cheios de lágrimas. — Eu não sabia o que fazer!
Foda-se os problemas dele com drogas. Meu pai chegava em casa caindo de bêbado e, mesmo assim, encontrava um jeito de agredir minha mãe, que, assim como aquela mulher, não tinha porra nenhuma a ver com o vício dele! Quando as pessoas iriam parar de vitimizar homens adultos e começar a se preocupar com as mulheres que pagavam apanhando? Quando eles iriam começar a arcar com as consequências das próprias escolhas?
Porque eu mesma já me perguntei milhares de vezes como minha mãe tinha acabado numa situação daquelas, como se estar ali, apanhando dele, fosse uma escolha dela. Mas foram poucas as vezes que questionei meu pai por beber tanto e não querer se tratar do vício que tinha. Ele nunca ao menos tentou!
— Você sabia o que fazer. Não venha com esse papo furado, . Você não fez porque não quis! — o encarei, enojada. — Quer ajudar seu amigo? Deveria denunciá-lo. Melhor ele preso e longe dela do que ela acabar morta por ele, porque aí sim Chris vai ter se ferrado e você não vai poder ajudá-lo. Apesar de que, tratando-se de vocês, ricos, é bem capaz de conseguirem sim livrá-lo de pagar por isso. O dinheiro resolve tudo, não é? Vocês homens se protegem, fingem que não vêem situações como essa e seguem suas vidas como se nada tivesse acontecido. Vocês sempre se ajudam.
Na minha antiga casa, infelizmente, não eram só os homens que faziam aquele pacto de silêncio desumano. As vizinhas do bairro já ajudaram com os ferimentos, os maridos já lhe deram carona até a delegacia, e eu tinha certeza que todos eles ouviam os gritos dela e ignoravam como se fosse uma briga de casal normal. A omissão era a pior das violências. Parecia que eles o ajudavam a surrá-la quando estavam cientes do que acontecia na minha casa e não faziam nada a respeito.
Aquilo me deixava tão revoltada. Perdi as contas de quantas vezes quis que alguém aparecesse e parasse tudo aquilo. No dia em que tomei coragem para tentar fazê-lo parar, as coisas não acabaram nada bem pro meu lado.
— , aonde você vai? — quando lhe dei as costas, o ouvi me chamar de novo, exatamente como fez anteriormente. — Espera, você vai se machucar desse jeito! — exclamou quando me viu tropeçar pela dificuldade de andar tão rápido pelo extenso gramado.
— Eu vou embora! — me virei para ele a uma distância considerável.
— Espera, venha aqui, vamos conversar, esclarecer as coisas — estendeu a mão de novo para mim. Neguei veementemente, soluçando e querendo manter distância dele e daquele olhar que me dava.
Eu não sabia mais o que pensar em relação a ele. Estava tão paranoica que me lembrei até do dia que ele deu aquele presente para a minha mãe. Eu tinha ficado tão brava com a possibilidade de estar gastando dinheiro numa viagem para meu pai viajar com minha mãe, depois de tudo o que ele nos fez, como se soubesse do meu passado.
Mas, agora, vê-lo tentar justificar o amigo…
O que conheci nos últimos meses e que estava vendo ali, diante de mim, me olhando daquele jeito terno, aquele homem carinhoso e engraçado, oscilava com a imagem que eu tinha acabado de ter dele relativizando a violência doméstica. Nutri ódio por ele durante anos, mas nunca pensei que fosse capaz de ficar do lado de um agressor!
— Eu não tenho nada pra conversar com você — voltei a andar para longe.
— Espera! Você vai embora como, ? Está muito tarde pra pedir táxi, pode ser perigoso.
— Não te interessa como eu vou embora — esbravejei ao me virar para ele de novo. — Vá, volte pra essa droga de festa. Aproveite o leilão pra fingir que é caridoso e que se importa com as pessoas. Vá manter sua imagem de empresário que seu pai tanto limpou pra você.
odiava tanto aquilo no pai, mas, naquela noite, eu olhava pra ele e só conseguia ver Joseph. Não aceitava o fato de ter me casado com aquele homem, mesmo que fosse uma farsa.
— , você está sendo injusta comigo.
Discordei. Eu não tinha erros quando se tratava de julgar envolvidos naquele assunto. Sabia o que era sofrer com tudo aquilo e estava pouco me fodendo com o que ele ou qualquer outra pessoa achasse sobre o meu senso de justiça. Injusto foi ver aquele infeliz sair ileso.
— Quer saber, ? Acho que isso não está funcionando, nunca vai funcionar — falei com convicção.
Parecia que quanto mais próximos ficávamos, mais doía quando brigávamos. E se fosse para ser daquele jeito, era melhor pararmos por ali.
— Não podemos ser amigos. Eu não posso ser amiga de alguém como você — minha voz embargava a cada palavra dita. Meu coração se apertava dentro do peito, procurando um lugarzinho para se aconchegar em meio ao caos que estava acontecendo dentro de mim.
Tom tinha razão. quebrou meu coração em pedaços, e, como eu previa, não tinha sido por conta de uma desilusão amorosa. Naquele momento, nem mesmo a raiva de tê-lo com Dafne me incomodava mais, aquilo virou um mero detalhe.
O homem que tinha conhecido nos últimos meses não existia. Eu não conseguia compreender como fui cair naquela ladainha de mudança. sempre foi e sempre será o homem que eu odeio, e nada, nem mesmo o amor que sentíamos por parecia ser capaz de mudar aquilo.
— De agora em diante, vamos nos tratar apenas como tutores de — olhei para o seu rosto retorcido em tristeza, sentindo-me da mesma forma.
— Espera — pediu, então parei novamente, daquela vez ainda de costas. — Toma, pegue a chave do carro, também vou embora.
Retrocedi meus passos, ainda sob seu olhar chateado.
— Vou só me despedir do pessoal.
Ouvi-lo falar dos amigos me fazia lembrar dos dias que passamos naquela viagem. Tulum foi mágico, mas eu não sabia se nossos momentos bons poderiam se sobressair ao que havia acontecido naquela noite.
A pior das coisas que poderia ter me feito, a pior de todas! Eu nem sequer imaginaria algo que me machucasse mais que aquilo, e ele o fez. E mesmo que tenha sido sem saber dos meus motivos para me afastar, ainda doía como se jogassem sal em minhas feridas.
Quando toquei sua mão para pegar as chaves, seus dedos se fecharam em volta da minha; mas não de um jeito forte ou bruto, eu ainda conseguia me soltar se quisesse. E eu queria, mas meu corpo se recusou a obedecer meus comandos ao se deparar com aquela espécie de hipnose que seus olhos verdes tinham sobre mim.
— Amor, eu…
— Não me chame assim — reagi, contrariando o frio na barriga que senti ao ser chamada daquela forma. — Me enoja — puxei minha mão de volta, marchando em direção ao estacionamento, parando apenas para tirar aquela droga de sandália dos meus pés.
Abri o carro e me lancei no banco de trás, levando as mãos ao rosto e sentindo o choro vir à tona de novo. Eu ainda não conseguia entender como poderia ter me enganado tão bem; apesar de saber que meu pai demorou alguns anos depois do casamento para começar a apresentar seu comportamento violento.
Sabia que não tinha me batido e, naqueles quase quatro meses juntos, nunca tinha feito menção de levantar a mão para mim. Mas eu acreditava que, quando víamos algo acontecendo e não fazíamos nada para impedir ou parar, era porque concordávamos com a situação. E eu não conseguia acreditar que tinha acabado como minha mãe, me casado, me deitado com um homem que normalizava agressões. Aquele era o meu maior medo da vida, e ele estava se concretizando diante dos meus olhos.
Eu me sentia dentro de um pesadelo.
— S-Só m-mais oito m-meses, , s-só oi-ito meses — sussurrei para mim mesma repetidas vezes, como um mantra para me acalmar, enquanto repassava todas aquelas imagens na minha cabeça e tentava me distanciar de tudo de bom que eu já tinha sentido ao lado de .
’s point of view.
Regressei meus passos até o local onde estava concentrado o restante dos convidados que participavam do leilão. Eu estava desorientado com o que acabara de acontecer. Parei por um instante e observei indo em direção ao estacionamento num estado deplorável. Já ia descalça, com as sandálias em mãos enquanto seu choro ainda não tinha cessado.
Transitei pelas mesas ainda consternado, olhando para o chão e evitando contato visual com as pessoas ali. Um choro estava entalado em minha garganta, e eu tinha certeza que meu rosto transparecia meu estado caótico.
me disse que aquilo não iria funcionar, que não estava funcionando. Estava mentindo, óbvio que estava! Estávamos muito bem antes daquele incidente. Mas a certeza em sua fala quando anunciou que seríamos apenas tutores de me fizeram temer que, a partir daquela noite, ela daria um fim definitivo ao que tínhamos. Aquilo me deixou inquieto.
Daquela vez, não me restavam mais dúvidas: tinha sido vítima de algum namorado violento. Não tinha outra explicação para sua reação diante do que houve. Claro que, por ser mulher, já era de se imaginar que se assustasse e se indignasse com o que presenciou, mas o jeito como ela ficou, o ódio puro em seu olhar… Me senti a pior pessoa do universo ao vê-la falar daquele jeito de mim. Eu não era aquele monstro e não concordava com o que Chris fizera a nenhuma das duas.
Eu jamais encostaria um dedo nela para machucá-la. Não somente , mas qualquer outra mulher! Sempre me preocupei com sua segurança. Queria protegê-la e, quando falhava, me sentia péssimo. Sabia que era egoísmo puro, mas eu também saí chateado daquela história toda.
realmente chegou a acreditar que eu fosse capaz de algo do tipo? Tudo bem, na noite de Ano-Novo ela estava bêbada, mas depois a própria afirmou que não a machuquei nem tive a intenção de fazê-lo. Ela me conhecia há anos e sabia que eu não era aquele tipo de homem.
Mas por que então me olhou como se eu fosse? Eu não era! Vê-la duvidar me machucava. A dúvida poderia vir de qualquer pessoa, mas vindo dela… me causava um incômodo no peito tão grande que acho que não conseguiria dormir aquela noite até conseguir lhe assegurar o contrário.
Ao mesmo tempo, por especular que talvez tivesse um passado relacionado à violência, tudo parecia completamente justificável. E aquilo era o que me deixava pior ainda: saber que estaria certa em não me querer mais por perto, porque fui um idiota ao ficar ao lado de uma pessoa igual a quem lhe fez mal algum dia.
não dormiria ao meu lado, não me deixaria beijá-la ou abraçá-la mais. Voltaríamos para o início. me odiaria como no nosso primeiro dia de casados, ou até mais! Ao pensar que eu era um monstro daqueles. E eu sofreria não só pela culpa de ter estragado tudo, mas também por saber que já não poderia mais olhá-la diferente do que estava olhando nos últimos tempos. Não teria suas mãos em mim e não tocaria mais aquele corpo, nem mesmo abraçá-la antes de pegarmos no sono.
Eu não queria mais aquela vida. Não era a nossa vida.
Ainda trêmulo, peguei a bolsa de e deixei o local, fazendo o mesmo caminho de quando fomos até aquele banheiro. McLain estava numa das mesas com a namorada, que tentava disfarçar a cara de choro e o nervosismo após o que tinha passado. Enquanto isso, Chris conversava e ria com um cara aleatório da mesa ao lado, como se nada tivesse acontecido. Realmente nada aconteceu para ele.
Saquei o celular do bolso e disquei o conhecido número de três dígitos. Enquanto o aparelho chamava em meu ouvido, deixei escapar algumas lágrimas de raiva. Queria me bater de tão estúpido que fui! Só de pensar em como tinha sido um covarde desgraçado ao ter que esperar tudo aquilo acontecer para fazer alguma coisa.
Aquela não era a primeira vez que eu ferrava com tudo, que eu fazia chorar e a machucava, mesmo sem intenção. Por mais horrível que pudesse parecer a ideia de nos afastar depois de tudo o que vivemos naqueles três meses, talvez tivesse razão.
— Boa noite, gostaria de denunciar uma agressão contra uma mulher — funguei, encostando-me na parede.
A ligação não durou muito tempo. Mantive minha identidade em sigilo e fiz o que tinha que ser feito, lhe dando o máximo de informações que podia. Por mais doloroso que fosse para mim fazer aquilo, estava certa ao dizer que eu estaria ajudando Chris se o denunciasse.
Se eu não fizesse nada, iria parecer meu pai passando pano para os meus erros quando eu era mais jovem. E não aprendi nada da vida tendo meus deslizes apagados como se nunca tivessem existido. Estava aprendendo naquele momento, com um casamento, com um bebê que logo me chamaria de papai. Sentia que nem nem mereciam um homem como eu ao lado delas, alguém que ainda está aprendendo a lidar com responsabilidades. Eu me sentia insuficiente para elas.
Eu, como pai de uma menina, como marido de , irmão de Grace, filho da minha mãe e pelo homem que fui criado para ser, deveria saber que a primeira coisa que devia ter sido feita era aquela ligação. Por mais que me doesse o coração denunciar Chris, me senti aliviado ao terminar aquilo. Era triste vê-lo se deteriorar tanto por conta de um vício, mas aquilo não justificava sua atitude de machucar outras pessoas e envolvê-las naquele sofrimento.
Retornei ao carro não cumprindo o que disse a sobre ir me despedir do pessoal. Eu não tinha ânimo para encará-los, muito menos sabia se conseguiria olhar no rosto de Chris tão cedo. Aquele talvez pudesse ser o fim de nossa amizade – que já não ia tão bem por conta do distanciamento –, mas que eu nunca pensei que acabaria daquela forma. McLain nunca iria entender que fiz aquilo para o seu bem.
Assim que abri o carro e me sentei, visualizei o corpo encolhido próximo a porta atrás do banco ao meu lado; parecia que queria ficar o mais longe possível de mim. Nem me olhar ela queria, já que abraçava os próprios joelhos com o rosto enterrado no vão entre os braços. Suspirei. Deixei sua bolsa no lugar ao lado, onde ela devia estar sentada, e coloquei o cinto, indo embora daquela festa que conseguiu superar minhas expectativas e terminou pior do que eu imaginava.
O caminho foi silencioso. Eu tentava espiá-la pelo retrovisor, mas ela ainda parecia abatida. Já mostrava o rosto inchado e vermelho pelo choro e tinha a cabeça encostada no vidro. Seu olhar estava estático na janela; porém, não parecia interessada na estrada. Tinha o mesmo olhar longe, estava aérea e completamente alheia ao que acontecia à sua volta.
Com a falta de carros nas ruas, chegamos bem rápido. Não precisei gastar a mesma eternidade da ida no retorno para casa. Virei-me para apertar o botão do controle do portão e reparei o olhar dela em mim. Tirei o cinto, fazendo menção de virar mais o tronco em sua direção, mas só consegui fazer com que se encolhesse no lugar. Senti um frio na barriga ruim ao vê-la demonstrar medo ou algo do tipo com relação a mim. Hesitei, decidindo tentar conversar no dia seguinte, quando a poeira baixasse.
Desembarquei do veículo e deixei decidir fazê-lo quando se sentisse pronta. Levei sua bolsa comigo e, enquanto destrancava a porta de casa, ouvi o barulho da porta do carro bater. Acendi as luzes, tirei aquela gravata que me apertava o pescoço e, antes de me livrar do blazer ao ir em direção às escadas, vi que ela fechou a porta, girando a chave duas vezes.
— Cadê meu celular?
Parei onde estava, surpreso por ouvir sua voz fraca. Realmente achei que não falaria mais comigo naquela noite.
— Está na bolsa, em cima do sofá — girei os calcanhares, apoiando-me no sofá. Fiquei calado ao observá-la ir quase correndo até a bolsa-carteira e pegar o aparelho às pressas.
digitou rápido os três números – os mesmos que disquei ainda no local da festa –, mas com um desespero bem maior que o meu quando escutei o aparelho chamar. Sua respiração era audível. Ela tinha o cenho franzido enquanto aguardava ser atendida. — Alô, boa noite… Eu gostaria de denunciar um crime q-que presenciei agora há pouco.
Eu nunca tinha visto naquele estado emocional. Nem mesmo na noite em que perdemos Grace a vi desorientada daquela forma.
— E-Eu vi um cara, Chris o nome dele. Não sei o sobrenome. Ele enforcou a namorada n-na minha frente, eu tentei… tentei tirá-lo de cima dela e e-ele me empurrou no chão… — ela levou a mão até a boca, tentando abafar o soluço que soltou ao derramar uma dúzia de lágrimas grossas num choro desesperado. — Eu já saí de lá, m-mas a menina ainda está com ele. Ele a levou consigo. Ela não queria que eu ligasse, mas… — foi interrompida pela atendente. Eu conseguia ouvir daquela distância, mas não era capaz de saber o teor da conversa. — E-Eu não sei o endereço… É um local de eventos, está acontecendo um leilão lá e… — mais uma interrupção. — Isso! Empresas , essa mesma. F-Foi nesse local mesmo.
Os olhos molhados de me procuraram pela sala quando a mulher a deixou em silêncio por um tempo, apenas ouvindo o que ela lhe dizia do outro lado da linha. Seu queixo tremia e suas lágrimas pingavam em seu vestido azul; a barriga subia e descia com rapidez. precisava se acalmar, mas, por mais que eu quisesse muito ir até ela e abraçá-la, não sabia se eu era a pessoa mais indicada para fazer aquilo.
— Tudo bem — sua voz saiu quase como um sussurro. — Tudo bem, o-obrigada. Boa noite — finalizou a chamada, passando as costas da mão no rosto desajeitadamente. — V-Você ligou? — trêmula, a loira deu passos até mim; porém, parou quando ainda estava longe demais de me alcançar. Engoli em seco, procurando um pouco de voz para confirmar. Não o fiz, restando-me apenas um aceno com a cabeça. — Eles disseram que já receberam um chamado e que ele já foi detido — ela abaixou a cabeça e, em silêncio, encarou o aparelho em mãos.
— Você estava certa, — admiti. A loira me olhou incerta, ainda parada onde estava. Eu queria que chegasse mais perto, mas algo em seu olhar demonstrava que ela estava dividida. — Não posso passar a mão na cabeça de Chris, não seria seu amigo se o fizesse — sorri sem humor.
Talvez ele nem fosse mais meu amigo e aquela preocupação fosse apenas um apego meu com as lembranças da nossa infância. Só conheci Chris até a adolescência; a partir dali, eu desconhecia o homem que ele havia se tornado com o passar do tempo. O Chris que eu considerava um irmão não era aquele tipo de pessoa, ou pelo menos eu não tinha percebido antes o que ele se tornaria no futuro. Reconhecia que, ao lado dele, minhas implicâncias com eram muito mais intensas, mas, na época, eu achava que era porque eram dois contra uma e que era uma chorona.
— Me desculpa — a encarei, mas ela desviou o olhar do meu. Me levantei, preparando-me para ir até ela e quebrar a distância entre nós, porém, deu passos para trás. — Não só por hoje, mas também por todas as minhas implicâncias idiotas. Principalmente quando Chris estava lá em casa.
A loira assentiu e voltou a derramar lágrimas, ainda olhando para o chão enquanto comprimia os lábios. Respirei fundo e decidi lhe dar espaço, ao mesmo tempo que queria tomá-la nos braços. Me sentia fraco ao vê-la daquela forma, e saber que não conseguia fazer nada para ajudar me deixava pior ainda. já não me deixava saber o que sentia; quando se tratava de seu passado e o que a machucava, então, erguia muralhas em volta de si e não deixava ninguém se aproximar.
— Ah, e não se preocupe, o pai de Chris não vai tirá-lo da cadeia tão cedo. Deve estar farto das palhaçadas dele.
respirou em alívio antes de me ver sumir escada acima.
Troquei de roupas dentro do closet, achando que ela subiria logo depois de mim. Ainda sozinho no quarto, fui até o banheiro, onde joguei uma água no rosto a fim de dissipar um pouco da tensão das últimas horas. Escovei os dentes e me deitei, sentindo não só a cama, mas o quarto inteiro gélido sem a presença dela ali. Virei-me para o lado oposto da porta e encarei o relógio digital, que já marcava uma e meia da manhã.
Logo adentrou o quarto parcialmente escuro e andou até o banheiro. Pude ouvir quando trancou a porta, fazendo-me suspirar. Nem em nossos primeiros dias de casados naquela casa ela fazia aquilo. Fiquei de olhos bem abertos, encarando a luz que saía pelas frestas da madeira branca. demorou ali; quando saiu, já de cabelos soltos e caídos pelas costas, foi direto para dentro do closet.
Ela não acendeu a luz, apenas remexeu algumas peças lá dentro e permaneceu naquele silêncio torturante enquanto esteve fora do meu campo de visão. Me surpreendi quando ela regrediu os passos, parando próximo da cama.
— ? — chamou. Murmurei algo, esperando que ela continuasse. — Me ajuda com o vestido?
Suspirei de olhos fechados antes de atender seu chamado, sentindo meu coração se acelerar a cada centímetro que meu corpo se aproximava do dela. Quando coloquei minhas mãos nela, senti tensionar os ombros e respirar fundo, tirando os cabelos do caminho. Derrotado, percebi que ela só tinha me pedido aquilo pelo fato do zíper estar emperrado e saber que não conseguiria tirá-lo sozinha. Com um pouco de força, ele me obedeceu, descendo e abrindo a parte de trás, revelando sua pele quente. Tão quente que eu sentia seu calor emanar sem sequer encostar nela.
Não resisti a ideia de tê-la tão próxima de mim e não poder tocá-la. Se aquilo era um castigo do Universo pelo fato de eu tê-la magoado naquela noite, eu sentia muito, mas não aceitaria aquela penitência. Pelo menos não até que ela me pedisse para me afastar, apesar do medo que me causou ao ouvir o que disse horas atrás. Eu me via na necessidade de tentar reverter aquilo de alguma forma. Não conseguia aceitar.
Deslizei devagar os dedos pelas alças do vestido, empurrando-as para os lados, vendo o tecido se arrastar por sua pele e deixar seu corpo, que ainda continuava estático diante de mim. Inspirei seu perfume e encostei o nariz em sua nuca, assistindo os pelos de seus braços se eriçarem. Senti como se eu estivesse numa estufa de rosas com aquele cheiro maravilhoso. De olhos fechados para apreciar cada detalhe dela, depositei o primeiro dos três beijos pelo seu ombro enquanto empurrava o vestido para baixo, passando-o de seus quadris e calcinha, largando-o quando tive certeza de que ele iria ao chão.
suspirou em meio ao escuro. Então, a fala de Dafne me veio à mente. Era um momento bem inoportuno para aquilo, mas eu conseguia ouvir com clareza sua voz me repetir que eu não deveria desistir tão fácil. Era estúpido pensar que ela estava falando sério de um casamento, e nossa situação era muito diferente naquele momento. Mas o conselho não deixou de ser válido.
— Você realmente quis dizer aquilo? — toquei sua cintura, sussurrando em seu ouvido. ofegou, tirando ambas minhas mãos de sua barriga desnuda.
— , não… — girou os calcanhares, levantando a cabeça para tentar me enxergar de perto. Eu mal podia ver seu rosto, mas sabia seus traços de cor: eu a imaginava com a mesma expressão que ela fazia quando iria me negar algo.
Estava cansado de ouvir “nãos” vindos dela. Cansado de ter que perguntar se ela realmente queria estar comigo ao invés de apenas ouvi-la falar por conta própria. Sinceramente, não entendia o motivo de eu ainda estar ali, querendo-a e procurando tê-la, se sempre demonstrava o contrário.
Apesar disso, mesmo que ferisse meu ego insistir tanto, eu iria fazê-lo. Era uma dor suportável comparada ao modo como me sentiria dali para frente, caso eu aceitasse calado que desse um fim no que tínhamos.
Dava para ver que estava com medo daquela vez, provavelmente com receio de voltar a sofrer como no passado que ela escondia tão bem de mim.
— Me diga o que há de errado, por favor, . Me deixe ajudar — peguei-a pela cintura, colando seu corpo seminu ao meu.
— E-Eu não preciso de ajuda nenhuma — ela fez pressão com as palmas das mãos em meu peito, fazendo-me deixá-la ir. Meu Deus, como era difícil. parecia um punhado de areia escapando pelas frestas entre meus dedos. — Eu preciso pensar.
Assenti, pegando seu rosto e tendo sua mão sobre meu braço, que tentava se desvencilhar de meu toque.
— Pensa com carinho, sim? — pedi. Sua mão se afrouxou, permitindo-me aproximar meu corpo do seu. Engoli em seco a vontade de tomar seus lábios e me limitei a apenas depositar um beijo em sua testa. — Não quero ficar longe de você…
— , por favor, não faça isso ser mais difícil do que já está sendo — argumentou, em meio a um sussurro falho.
Assenti, duvidando sinceramente de que estava sendo difícil para ela fazer aquilo, já que, usando suas próprias palavras, eu era algo banal. Me afastei e levei as mãos à cabeça, esfregando meu rosto com força antes de voltar a me afundar em meio às cobertas, calado.
Após se vestir, se deitou do outro lado, o mais longe possível na cama. Decidi fechar os olhos e tirar meu time de campo por hora. Estava arrependido, me sentindo um otário por ser tão teimoso e ter mudado de ideia sobre minha decisão de esperar a poeira baixar.
Ter pressa ali não iria adiantar nada.
Caí no sono um tempo depois. Ao mudar de posição na cama, dei de cara com ainda acordada, de barriga para cima, encarando o teto enquanto torcia a ponta da coberta entre os dedos. Voltei a fechar os olhos, abrindo mão de me preocupar com ela naquele momento.
Quando os abri de volta um tempo depois, os arregalei ao ouvi-la gritar e se debater contra a cama. Os cabelos loiros grudavam-se na testa e ambos os punhos estavam fechados. Seus braços se chacoalhavam, como se estivesse tentando bater em alguém ao mesmo tempo em que esperneava violentamente.
Enfrentei alguns de seus socos e chamei-a em voz alta, conseguindo despertá-la do que se parecia muito com um pesadelo terrível. Caí sentado sobre a cama ao ter meu corpo atingido pelo seu, numa velocidade que não me deu tempo de me preparar para o impacto. se encolheu em meus braços como um animal indefeso. Tremia e chorava incessantemente, fazendo-me apenas acolhê-la em meus braços e apertá-la contra meu peito, que, naquela hora, já estava molhado com suas lágrimas.
— Está tudo bem, , foi só um pesadelo — afaguei suas costas, após esperar que ela se acalmasse. Mas isso não parecia estar acontecendo, já que eu podia sentir seu coração acelerado até demais batendo dentro do peito. — Vou pegar um pouco de água pra você — tentei sair de seu abraço apertado.
— N-Não, por favor, fica a-aqui comigo.
Assim como fez no dia da invasão, se grudou em minhas roupas para me manter ali. Estiquei-me para acender o abajur, encontrando-a num estado caótico, com o rosto banhado em lágrimas e muito vermelho. Seus olhos azuis permaneceram arregalados desde que se abriram e, naquele momento, vagavam pelo quarto escuro como se estivessem checando se tinha mais alguém ali.
— Eu só vou lá embaixo, não precisa se preocupar — tentei tranquilizá-la, mas parecia que eu estava falando sozinho. continuava a olhar para os lados. — Não tem ninguém aqui, só você e eu — peguei seu rosto, olhando em seus olhos.
— Então me leva com você — pediu em desespero.
Assenti e deixei a cama ao lado dela, que ainda não tinha desgrudado as mãos da minha camiseta.
Descemos as escadas em meio a escuridão, com apenas a lanterna do celular iluminando o caminho. continuava paranoica, praticamente se fundia com meu corpo, e permaneceu naquele estado até que chegássemos à cozinha. Com as luzes acesas, a guiei até o balcão e puxei uma das cadeiras para que ela se sentasse.
Enquanto enchia o copo de água, vi minha esposa cobrir o rosto com as mãos e apoiar os cotovelos, com os cabelos completamente bagunçados caindo pelos ombros e tampando a visão do que restou de sua testa.
— Aqui.
Sua mão trêmula recolheu o copo, revelando seu rosto molhado novamente. Ela bebeu a água em desespero, dando para ouvir sua respiração acelerada. Respirei fundo, olhando para longe em agonia.
— Já chega, . Eu preciso saber o que está acontecendo pra que eu possa te ajudar.
A loira deixou o copo de lado, negando com a cabeça veementemente ao mesmo tempo em que o choro desenfreado retornava. Desmontei minha pose autoritária e me sentei na cadeira ao lado, virado para ela.
— , por favor, me diga o que há de errado — pedi pela segunda vez naquela noite. — Eu sei que posso ajudar, sua mãe me disse que eu podia. Me deixe ao menos tentar — implorei, já em desespero.
Eu não aguentava mais viver com aquela dúvida, principalmente depois da confusão que passamos e ver o quanto aquilo afetou , a ponto de lhe causar aquele pesadelo terrível. Se alguém a machucou, eu precisava saber. Nem que fosse para ir atrás do desgraçado e fazê-lo pagar com minhas próprias mãos.
voltou a se lançar contra mim, escondendo-se em meu peito e causando-me uma sensação horrível ao vê-la tão frágil. nunca foi daquele jeito, nem aos oito anos, quando eu, aos doze, a provocava dia e noite. Ela sempre foi forte, bateu de frente comigo e até me batia! chorava quando brigávamos, mas era de ódio! Naquele momento, em seu semblante, eu só conseguia ver sua expressão de dor. Chegava a se encolher em meus braços enquanto soluçava audivelmente.
— Por favor, , eu odeio te ver assim — afaguei suas costas, afastando seu corpo do meu em seguida. — Olha pra mim, eu sou o seu marido. Você sabe que pode me contar qualquer coisa — seus olhos vermelhos me encararam em dúvida. — Confie em mim. Sei que nos odiávamos antes, e talvez te pedir isso agora soe como um grande sacrifício, mas, por favor, me conte o que aconteceu com você.
's point of view.
Olhei para o rosto à minha frente e não consegui evitar de pensar em me jogar em seus braços pela terceira vez, para não me sentir desamparada como estava me sentindo naquele momento, em que eu não tinha mais seu peito para me aconchegar. Estava ficando mal acostumada com ele ali, me apertando contra si e me dizendo todas aquelas coisas; com sua mão estendida para me levantar daquele buraco fundo em que eu me encontrava.
Aquela vala foi cavada com o passar dos anos. Quanto mais funda ela ficava, mais em silêncio eu permanecia sobre aquele assunto. Eu não tinha ninguém para conversar sobre aquilo. Quando era menor, já pensei em falar para alguém sobre as surras que meu pai dava em minha mãe toda semana; porém, sempre fui silenciada por ela.
Apesar de odiar aquele segredo com todas as minhas forças – e ter certeza de que ele me sufocara durante todos aqueles anos –, sempre o mantive guardado a sete chaves. Saber que minha mãe me odiaria se eu me atrevesse a contar, ou imaginar que tanto Grace quanto minhas colegas de escola não me entenderiam por terem uma família perfeita, me ajudaram naquele processo. Até porque, quando eu estava fora de casa, não tinha que me lembrar das coisas que passava lá dentro. O mundo fora daquelas paredes frias era uma grande válvula de escape.
Nunca tinha sido colocada contra a parede como estava fazendo comigo, muito menos questionada. Aquele assunto nunca esteve presente na bolha de amigas ricas que Grace me introduziu na adolescência.
— Me conte o que tinha nesse sonho — ele insistiu, tirando meus cabelos grudados do rosto.
Seu toque delicado me acariciou a bochecha, amolecendo-me e me instigando cada vez mais a parar de resistir àquela ânsia de soltar tudo para fora, como eu não sentia há muito tempo.
Cheguei a ensaiar como contaria para Grace, mas sempre recuava na hora H por medo. Porém, as coisas eram diferentes antes. Agora eu estava longe daquela casa, na minha casa, sem correr o risco de ter que voltar a dividir o teto com aquele homem. Eu trabalhava, era independente e, principalmente, não era mais uma adolescente temendo ser incompreendida.
Depois de ver que tinha denunciado seu amigo de infância, senti que ele conseguiu retomar ao menos um pouco da confiança que eu tinha nele. O que mais fez foi cuidar de mim naqueles primeiros meses juntos. E se não entendesse minha dor, bom, pelo menos eu poderia desabafar.
Esperei tanto por aquele momento, tanto, que meu coração chegava a errar as batidas, de tão acelerado e ansioso para se ver livre de todo aquele peso que o maltratou por anos.
— N-Não foi só um sonho — murmurei, checando sua expressão, que se tornou confusa. — Foi uma lembrança, que eu queria muito que fosse apenas coisa da minha cabeça — solucei, tomando fôlego para finalmente contar.
— Foi algum ex-namorado seu?
Neguei com a cabeça, quase rindo de desgosto.
— Bem que eu queria que fosse. Quem sabe assim eu poderia terminar de vez com ele, nunca mais olhar em sua cara ou ouvir sua voz — tentei secar meu rosto, respirando devagar para manter a calma. — Infelizmente, não consegui me livrar dele tão facilmente. Às vezes sinto que, mesmo aqui, quilômetros distante, ele ainda me persegue e consegue me assombrar. Afinal de contas, ele é o meu pai. E mesmo que eu o odeie com todas as minhas forças, ainda o enxergo nos meus traços refletidos no espelho ou quando presencio uma situação como a que vimos na festa.
não esboçou nenhuma expressão de surpresa ao finalmente descobrir quem era o homem violento que me maltratou e agrediu a pessoa que eu mais amava nesse mundo durante anos, destruindo minha infância e fazendo de mim a mulher desconfiada que eu tinha crescido para ser. Acho que ele mesmo devia perceber aquele meu comportamento involuntário, quando, mesmo sendo meu marido de mentira e com prazo para acabar, eu não o deixava se aproximar por temer que algum dia ele mudasse e se tornasse uma espécie de monstro, exatamente como acompanhei meu pai se tornar.
Não foi do dia pra noite, claro. Eu era muito pequena para saber como tudo aquilo tinha começado. Porém, me recordava de tentar mudar as coisas em casa quando percebi que havia algo de errado. Tentava ser uma boa aluna; assim, minha mãe não teria que se preocupar com meu rendimento escolar ao mesmo tempo que tinha que se cuidar e curar as feridas abertas por ele, semana a semana. Desenvolvi responsabilidade por mim mesma muito cedo, já que minha mãe trabalhava muito e eu falava com meu pai o mínimo possível. Já na época eu temia sua presença e achava que o irritava, quando, na verdade, eu era apenas uma criança querendo a atenção que ele queria dedicar ao álcool e aos amigos da rua.
Durante anos, tentei ser a filha que eles queriam que eu fosse, que qualquer pai e mãe desejariam ter em casa: era responsável, estudiosa e autossuficiente para não lhes dar trabalho. Tentei não desagradar durante muito tempo, mas me dei conta que eles não me mereciam. Eu tinha meus defeitos, mas sabia que era uma pessoa boa, esforçada, e, qualquer um que não enxergasse aquilo em mim, não tinha por quê estar ao meu lado.
— Até mesmo ouvir sua voz me proporciona flashbacks das coisas horríveis que ele fazia em casa. É como se sua simples existência fosse capaz de me aterrorizar — encolhi os ombros, sentindo calafrios como na última noite de Natal, quando ouvi sua voz e foi o bastante para me despertar gatilhos a noite toda em meus sonhos. — Tenho tido esses sonhos frequentes. Tive antes da viagem para Tulum, mas nunca tinha sido tão… assustador.
me olhava com atenção, percebendo meu estado só de pensar naquelas experiências. Ele pegou minha mão e a envolveu nas suas grandes e quentes, passando-me alguma segurança.
— É sempre igual — continuei. — Estou na minha antiga casa, como sempre trancada no quarto, tapando os ouvidos e esperando que tudo aquilo acabe para poder sair e me certificar que minha mãe está bem… Bom, “bem” não é a palavra que cabe a situação em que eu a encontrava quando ele finalmente a deixava no chão da sala.
O nó me subiu a garganta novamente. Eu não sabia como ainda tinha lágrimas para chorar, como meu coração ainda aguentava tanta dor. Relembrar tudo aquilo que lutei por meses para esquecer doía como a primeira vez. Eu esperava que o fato de estar despejando aquilo tudo a alguém e receber consolo amenizasse a sensação de desamparo que senti por muito tempo.
— Eu era só uma criança — meu queixo tremeu junto de minha voz. — Mas estava cansada de ouvir aqueles gritos, por isso eu vivia enfiada na sua casa, com Grace, e só voltava quando sabia que ele já teria saído para trabalhar.
— Meu Deus, — levou a mão restante ao rosto, horrorizado. — Eu sinto muito — seus olhos verdes marejaram, enquanto eu o assistia perceber que ele fez parte da pior fase da minha vida sem nunca ter se dado conta. — Me desculpa, por favor, me perdoe — levou o dorso da minha mão à boca, beijando-a ao derramar lágrimas.
— Ah, não se preocupe — funguei, secando seu rosto e tentando esboçar um sorriso terno. — Aguentar você implicando comigo não era nada comparado a ficar naquela casa.
costumava ser inconveniente até demais quando eu passava praticamente todos os fins de semana com Grace, dormindo lá e fazendo as refeições na mesa como se fosse da família. Ele perguntava na minha frente quando eu iria embora e implicava quando íamos para a sala ver TV, não o deixando jogar seu videogame. Margot nunca ligou para minha presença lá, até porque eu tinha minha mãe por perto me olhando enquanto trabalhava limpando a casa.
Apesar de ficar irritada com aquele comportamento de , eu não lhe dava ouvidos. Ele era só um adolescente estúpido que achava divertido implicar com alguém mais novo.
— Naquele dia específico, eu decidi arranjar um jeito de fazer meu pai parar. Sabia que ninguém mais poderia fazer aquilo, já que minha mãe não conseguia se defender, e os vizinhos sabiam e não faziam nada para ajudar — funguei, tendo as imagens perfeitas passando pela minha cabeça. — Esse momento sempre se repete, a hora em que eu abro a porta do quarto e saio determinada a ir até lá. Mas, no pesadelo, eu nunca consigo correr até a sala no fim do corredor. Sempre sinto sua presença se aproximar, os passos vindo até mim. E fico ali, paralisada perto da porta, esperando que ele aparecesse, mas ele nunca vem.
Eu sempre experienciava a sensação de saber que meu pai estava chegando bêbado da rua. Era aquele medo do que aconteceria da próxima vez: se ele iria direto pro quarto dormir ou se começaria uma briga com minha mãe.
— Dessa vez, eu consegui ir até lá. Esta noite, corri até ele e tentei puxá-lo pela camisa para distraí-lo e dar tempo de minha mãe se levantar e fugir.
Não aconteceu. Nem no sonho, muito menos na realidade.
— Ao invés disso, tive a ira dele direcionada a mim. Aquele homem me agarrou o punho com força, me assustando com o seu olhar raivoso. Tive tanto medo que nem consegui esboçar reação. Fui arrastada corredor adentro. Lembro de não conseguir acompanhar seus passos, por ainda não ser tão grande quanto ele e de ter tropeçado no meio do caminho. Ele abriu a porta em meio aos meus gritos e me arremessou contra o chão gelado, como se eu fosse um saco de lixo.
Não me achava capaz de me esquecer da cena de seu rosto em cima de mim, prestes a me desferir algum tapa quando caí ainda gritando e chorando copiosamente. Não sei o que poderia ter acontecido se minha mãe não tivesse chegado e feito o que tentei fazer por ela. Ela o levou pra longe, fechou a porta e se trancou comigo lá dentro.
— Não quebrei o meu braço numa queda de patins. Meu pai quebrou quando me jogou daquele jeito.
Lembro da minha mãe implorando para a vizinha me levar ao hospital, porque ela mesma não poderia ir sem levantar suspeitas para aquele desgraçado, que também não fez questão alguma de me levar. A mesma mentira foi contada para todos, inclusive para o médico.
— Eu não fazia ideia, .
Aproveitei-me mais uma vez do seu calor humano e me aconcheguei em seu peito, chorando mais um pouco e molhando seu pijama cinza. não parecia se importar com aquele detalhe; apenas me abraçava e emaranhava os dedos em meus cabelos, fazendo um cafuné suave.
Estava sentindo-me leve. Eu finalmente podia falar. Guardar tudo aquilo me fazia um mal imensurável.
— Sinto muito — ele sussurrou algumas vezes em meu ouvido, enquanto me balançava em seus braços. Fiquei ali por um tempo, soluçando contra ele e sendo consolada com paciência e calma. Tempo o suficiente para finalmente desacelerar as batidas do meu coração. — Me desculpe por não prestar atenção. Nós convivíamos com vocês duas, sua mãe praticamente morava em minha casa. Poderíamos tê-la ajudado se tivéssemos percebido algo.
Neguei com a cabeça em discordância. Não adiantaria nada. Apesar da ironia de ter acabado de brigar com por ele não querer denunciar Chris, justamente a pedido da namorada, no caso dela eu tive esperanças de ser sua primeira e última denúncia.
— Ela já recebeu todo tipo de ajuda. Já o denunciou diversas vezes, mas parece que ele tinha uma espécie de feitiço. Minha mãe o perdoava todas as vezes. Até hoje ela insiste em me fazer voltar a falar com ele e perdoá-lo também — argumentei, revoltada, me desvencilhando de seus braços.
Minha mãe já chegou ao ponto de me julgar por não perdoar o que ele me fez. Queria que voltássemos a ser a família que éramos antes de ele começar a beber e estragar tudo. Eu não me lembrava quase nada daquela época por ser muito pequena, e acreditava que nunca o veria como um pai ou um homem decente. Sinceramente, achava que ele nunca seria alguém assim, porque, para mim, ele nunca iria mudar.
Ele não quis ser meu pai durante anos e nunca foi julgado ou repreendido por isso. Mas quando eu me cansei e resolvi não querer mais ser a filha dele, fui transformada num monstro sem coração. Eu não tinha culpa, fui eu quem foi magoada.
— Nós não deveríamos ter ido a essa festa. Olhe tudo o que você passou esta noite por minha culpa — ajeitou meus cabelos atrás da minha orelha, encarando-me consternado.
— Só espero que, diferente da minha mãe, aquela moça consiga se livrar desse relacionamento e siga em frente bem longe de Chris — refleti, cabisbaixa.
Como eu queria que minha mãe se livrasse daquele traste… Ela era tão incrível, independente financeiramente. Mas, infelizmente, era dependente emocionalmente. Queria que ela fosse feliz, o que eu não achava que daria para ser ao lado dele.
— Vou tentar entrar em contato com ela pra ver se podemos ajudar com algo — murmurou, suspirando. Olhei para seu rosto sério e soltei um sorriso sem graça. — O que foi? — seu sorriso ladino revelou uma de suas covinhas.
— Me desculpa por ter te julgado mal.
assentiu, se inclinando até mim e beijando minha bochecha.
— Espero que eu consiga fazer algo pra te ajudar também. Se souber como, me deixe saber, por favor — ele pegou meu rosto, acariciando a região com o polegar.
— Você já ajudou, me ouvindo e tirando esse peso das minhas costas. Nem mesmo Grace sabia disso, . Eu precisava contar a alguém logo, isso estava me matando por dentro — respirei fundo, engolindo em seco. — Você me ajuda a esquecer quando se mostra ser esse pai maravilhoso pra . É a primeira vez que vejo um pai de verdade em ação. Fico muito feliz que ela tenha a oportunidade de ter um.
O sorriso que ele abriu quase lhe rasgou o rosto, que ficou vermelho enquanto esteve sem graça diante de mim. Uma das pouquíssimas vezes que presenciei aquilo, aliás.
— Você é o pai que eu sempre sonhei em ter.
Ele se aproximou, receoso. Seus olhos verdes focaram-se em meus lábios; porém, recuou, beijando minha testa ao invés de se arriscar em me beijar a boca depois da nossa discussão.
— Pode me chamar de daddy (papai), se quiser — não pude deixar de rir diante daquela fala. — Sentar no meu colo, mamar a…
— ! — exclamei já de olhos arregalados, sentindo o rosto esquentar. gargalhou, puxando-me para mais um abraço.
— Venha, vamos dormir — beijou o topo da minha cabeça antes de me soltar.
Quando o vi se levantar da cadeira, ofeguei já em receio. Depois daquele pesadelo, eu não sabia se queria fechar os olhos e dormir tão cedo. Tinha medo de ele voltar a assombrar meus sonhos.
pegou minha mão, levantou-me e me guiou pela casa escura escada acima. Deitei-me primeiro, escolhendo o lado que queria, e logo colei meu corpo no seu. Remexi a cabeça, nervosa, já encostada em seu peito e tendo sua mão afagando meu braço.
— Durma, , eu estou aqui com você — mexeu em meus cabelos, causando-me uma moleza instantânea.
— Obrigada — estiquei-me, selando minha boca na sua e pegando-o de surpresa.
Voltei a me encostar nele, tentando confiar no que me disse e me entregar ao sono, tendo a certeza de que não estaria só.
— Merda, eu nunca saio boa nessas fotos com flash — praguejou entredentes, fazendo-me rir diante do fotógrafo estrategicamente colocado na entrada. Toda aquela palhaçada para registrar nos mínimos detalhes a primeira aparição do monstrinho de Phillip Thorpe como membro da diretoria das empresas .
Soltei sua cintura e peguei sua mão quando o homem já tinha conseguido fotos o suficiente. Entramos após nos identificarmos para a funcionária e nos deparamos com um extenso gramado verde. Ele era repleto de mesas redondas postas em frente a um pequeno palco com um púlpito escuro, onde, mais tarde, aconteceria o tal leilão beneficente.
Como meu pai era benevolente com os mais necessitados. Não sei se aquele gesto tão lindo vindo dele compensaria o fato de ele renegar a própria neta.
Ao fundo, instrumentais de músicas clássicas tocavam num volume agradável, apenas para endossar o que eu já imaginava encontrar ali: uma festa de ricaços, tão entediante que chegava a dar sono. O pior era que eu não estava vendo nenhum tipo de mini bar ou a menção da presença de um barman para preparar drinks e nos ajudar a passar por aquela sessão de tortura ilesos, nem que fosse para ficar um pouco tonto.
Paramos próximos da entrada assim que ouvi uma voz conhecida chamar meu nome:
— ?
Procurei pelos lados até encontrar o dono dela atrás de nós, encostado no grande portão com um cigarro na mão. Encarei o homem alto e um tanto franzino que me sorria cheio de ironia. Franzi o cenho. Ele jogou o cigarro no chão e pisou em cima antes de vir até nós.
— Não está me reconhecendo não, cara?
Encarei seus olhos azuis pequenos com as pequenas ruguinhas embaixo de ambos. Então, soltei uma risada surpresa.
— McLain! — soltei a mão de , indo até ele para abraçálo forte, lhe dando tapas nas costas. — Cara, quanto tempo! — me afastei e o encarei, admirado.
— É, andei sumido por uns tempos. Sabe como é, né? Los Angeles… The Hills… — Chris riu, mas eu não o acompanhei. Muito menos , que, na certa, nem sabia que se tratava de uma clínica de reabilitação caríssima.
Encarei a bituca do cigarro no meio da grama e lamentei. Pelo visto, alguns vícios iriam acompanhá-lo até a morte.
— É bom te ver bem de novo — lhe sorri complacente.
— Já não posso dizer o mesmo de você, irmão — olhou para , que continuava a olhá-lo estranho. De certa não o reconheceu. — Casado!
Sorri amarelo, vendo-o fazer aquela piada manjada sobre casamento. Eu não era o maior fã e, se não tivesse sido obrigado, talvez não estaria casado. Mas, já que estava, não ficaria caçoando como se fosse a pior coisa do mundo. Até que não era, inclusive.
— Essa é , você já a conhece — apresentei.
e ele se olharam, surpresos. Ela, por talvez não ter relacionado aquele Chris ao pré-adolescente um tanto gordinho que vivia pra cima e pra baixo ao meu lado nas férias escolares; ele, bom, por ser .
Assenti e comprimi os lábios quando McLain se virou para mim, ainda boquiaberto.
— Cara, eu não acredito nisso! — riu da minha cara, enquanto se mantinha séria ao meu lado; provavelmente lembrando-se de todas as presepadas que aprontamos com ela naquele tempo.
Doze anos não era uma idade para alguém se considerar maduro. Eu preferia usar aquela justificativa antes de relembrar minhas ações um tanto ridículas em relação ao que fazíamos com . Chris era filho de George McLain, um empresário ricaço e amigo pessoal de meu pai. Meu amigo não suportava por ser filha de Theresa, que era nossa empregada. Logo, também não gostava muito de Grace, por tratá-la como se fosse da família.
Minha irmã se livrava dos sustos, apelidos ridículos e provocações por ser protegida por mim. Já acabava tendo os dois pegando em seu pé. chegou a passar dias sem ir até minha casa por saber que Chris estaria lá por uns dias. Grace nunca gostou dele, e até um certo ponto eu achava que era por conta do que fazíamos a , ou pelo fato de meninas de oito anos acharem meninos nojentos. Mas, conforme ficávamos mais velhos, descobri o motivo por trás daquilo.
— Pois é — desconversei, antes que ele inventasse de começar a caçoar de mim ou, sei lá, relembrar algum apelido de , que chegava a chorar por diversas vezes, não suportando nós dois o dia inteiro em seus ouvidos. — E você, cara, nada?
Quando começamos a sair para ir a festas, Chris pegava meio mundo. Não era possível que ainda estivesse solteiro, ou que, pelo menos, não tinha engravidado ninguém naquele meio-tempo.
— Estou namorando, ela deve estar por aí — indicou o local à frente, tirando do bolso um cantil e tomando um grande gole antes de voltar a nos encarar. — Quer um pouco? — ele ofereceu, mas neguei, apesar de ter acabado de lamentar o fato de não ter bebida alcoólica ali. — Vai precisar, essa festa está um porre.
McLain sumiu quando tínhamos uns quinze anos. Nos conhecíamos desde pequenos, e nossas famílias sempre fizeram questão daquela amizade, até meus pais começarem a me proibir de sair com ele. Chris experimentou cocaína na minha frente; eu neguei quando me foi oferecida a droga e queria que ele tivesse feito o mesmo.
Descobriram só depois de um ano. George suspendeu sua mesada assim que descobriu que financiava o vício do filho e cuidou para que ele fosse para a melhor e mais cara clínica de reabilitação. Ele saiu de lá limpo; porém, ainda tinha reincidências e logo voltava a ser internado.
Bom, ao que parecia, ele estava bem, apesar de me dar a sensação que precisava de álcool e nicotina para ficar sóbrio das drogas, como estava fazendo naquele exato momento.
— , !
Avistamos a mesa de onde Suzanne chacoalhou os braços, chamando nossa atenção.
— Vai lá, cara. Bom te ver — Chris me deu outro abraço. Eu quem estava feliz em vê-lo recuperado. Não tive boas notícias da última vez que ouvi sobre ele. — Depois a gente se fala. Bom te ver também, bonitinha.
não o respondeu, fazendo-me puxá-la pela mão para longe dele, que a olhava de cima a baixo e sorria à medida que nos afastávamos. soltou minha mão quando chegamos e fomos recebidos por abraços, principalmente , que não via nenhum deles desde a volta de Tulum.
— Linda como sempre.
Observei as mãos de Chace pegarem pela cintura quando se afastaram. Seus olhos claros praticamente a comeram enquanto apenas agradecia, sorrindo timidamente. Tinha me esquecido do quão galanteador aquele ali era, principalmente pra cima de . Tratei de ir até ele para abraçá-lo num cumprimento rápido para que ele a soltasse, mesmo que já tivéssemos nos visto mais cedo no trabalho.
Virei o rosto enquanto falava algo com Jack e Chace e me deparei com a dona da voz melodiosa que soou próxima de nós:
— Oh, me desculpa!
— Não! Tudo bem, eu que não te vi passar — riu fraco, sem graça, ainda sob o olhar da outra mulher.
— Uau, que vestido lindo.
Os olhos azuis de me encararam, arrancando-me um sorriso convencido. Elisabeta tinha razão, eu realmente tinha um ótimo gosto! Porém, jamais poderia tirar os méritos dos encantos de , linda do jeito que estava.
— Combinou muito com seus olhos.
— Obrigada! Acho que vou começar a pedir pro meu marido começar a escolher minhas roupas. Já perdi as contas de quantos elogios recebi pelo vestido — me virei completamente para ambas após ouvi-la me citar indiretamente. Então, os olhos escuros da estranha se voltaram para mim. — Mas o seu também é divino.
A mulher abriu um grande sorriso em agradecimento, olhando para si mesma e mexendo no vestido rosa-pink tomara que caia, que exibia bem seus seios fartos. Havia um detalhe nas mangas mais abaixo, deixando os ombros também à mostra. A cor contrastava perfeitamente com sua pele negra. As joias que usava nas orelhas, os anéis nas mãos e sua postura refinada, tudo transparecia riqueza. Me vi curioso para saber quem era ela. Nunca tinha a visto nas festas da empresa.
— Nem me apresentei, desculpe! — riu sozinha, levando a mão à testa. — Prazer, Beatrice Thorpe.
Puta que pariu.
— . — vacilou por um instante, antes de aceitar o aperto de mão da mulher, que não percebeu sua hesitação momentânea. Porém, ao ouvir o sobrenome, ela se voltou para mim, assumiu uma postura mais séria e foi correspondida a altura.
— Então suponho que você seja — disse, ao que assenti, lhe dando um aperto de mão a contragosto. — Bom, que bom que os encontrei! Seus lugares estão marcados na nossa mesa. Vamos, o jantar já será servido.
Nossa.
Já não me bastava ter que dividir o comando da empresa, ela ainda queria que eu dividisse a mesa com ela. Quando olhei para a direção em que Beatrice apontou, senti meu estômago revirar ao ver que ela seria o menor dos meus problemas naquela mesa. Meu pai estava sentado ao lado de Phillip, já desfrutando da refeição e conversando entre si.
— Ah, que ótimo — suspirei ao lado de , que engoliu em seco ao ver que seria obrigada a sentar-se à mesa com meu pai. Bom, pelo menos sofreríamos juntos durante aquele jantar.
— Depois voltamos aqui para conversarmos, sim? — se voltou para Suzanne e os demais, que concordaram e nos viram seguir Beatrice. — Nem comi nada e está me dando uma indigestão… — sussurrou, ainda andando na minha frente.
— Nem me fale.
— Aliás, errou feio, . Beatrice não tem nada de monstrinho, ela é deslumbrante! — estava louquinha para voltar a ser minha inimiga de novo.
Não era a primeira vez que ela defendia Beatrice. Eu achava que um dos pilares de uma amizade era odiar a mesma pessoa, mas não estava colaborando para a consolidação da nossa.
É claro que, apesar dos pesares, eu não poderia discordar de naquele momento. Vi com meus próprios olhos – seria mau-caratismo meu se continuasse a chamá-la daquela forma. Porém, por mais linda e deslumbrante que Beatrice fosse, ela continuava sendo uma grande pedra no meu sapato e alguém que eu desejava me livrar o mais rápido possível.
— Olha quem chegou! — Phillip sorriu para nós, enquanto meu pai encarava sem expressão. — Sentem-se, estávamos esperando por vocês.
Puxei a cadeira para , que me agradeceu baixinho ao se sentar bem longe do meu pai, deixando o lugar ao lado dele vago para mim. À minha frente, estavam Phillip e Beatrice ao lado. Talvez eu devesse ter aceitado a bebida de Chris. Nunca imaginei que fosse pensar aquilo algum dia, mas preferia jantar só com na mesa.
— E quem é a moça? — Phlilip, de novo, se pronunciou animadamente, indicando com o queixo. — Não fomos apresentados.
— Ah, essa é , minha esposa.
Meu pai tossiu, servindo-se com um pouco de água. Era bom que ajudava o nosso casamento a descer garganta abaixo, porque ele teria que engolir querendo ou não.
— Ah, sim. Prazer, Phillip. Estou muito feliz em juntar nossas empresas, agora somos quase uma família — proferiu educadamente. Eu até que ia com a cara dele, mas tudo passava quando Phillip me lembrava que tinha comprado a empresa que deveria ser inteira dos . — A indústria Thorpe também é um bem passado de geração em geração. Infelizmente, minha esposa e outras duas meninas não puderam estar presentes, mas a sua família está quase completa, não é Joseph?
Meu pai concordou, fazendo-me suspirar. Nossa família nunca mais estaria completa sem Grace. Não sabia dizer nem o que nós éramos mais, afinal, estávamos bem longe de ser uma família.
— Só faltou Margot, que não estava disposta para viajar até aqui — seu olhar sugestivo para deixou implícito qual era o real motivo de mamãe não estar presente. — Mas haverá outras oportunidades de reunirmos a todos.
— Quem sabe até lá Beatrice já não está comprometida?
Os olhos da filha quase saíram para fora, enquanto se engasgava levemente com a comida que levara à boca. lhe sorriu contida, sem graça por ela.
— Pai!
— O que foi, querida? — indignou-se com a bronca da filha. — Só estou comentando! Você é uma mulher tão linda, não devia estar solteira.
Linda ela era, mas eu tinha certeza que seu defeito de ser intrometida onde não era chamada devia ser o maior empecilho para qualquer cara gostar dela.
— Eu brinco com ela que as irmãs já estão me dando até netinhos, e Bea aí, atrasada — Phillip explicou, sorrindo e contagiando a filha, que ainda sorria sem graça com as brincadeiras do pai.
Eu estava quase tampando a boca de para que ela não começasse a militar para cima de Thorpe sobre como ele estava envergonhando a filha. Eu estava achando ótimo. Mal a conhecia, mas já adorava ver alguém falando mal dela. Inclusive, quando a conhecesse melhor, me juntaria a quem quer que estivesse falando.
— E vocês, quando vão dar netinhos a Joseph? — os dois não perceberam, mas um garçom invisível tinha acabado de passar na nossa mesa e servido uma enorme e gélida torta de climão. — Imagino que, por ser filho único, depois do casamento a cobrança já deve ter começado.
Filho único?
— Na verdade, eu tenho uma irmã — falei, fazendo Phillip franzir o cenho e olhar para meu pai num questionamento silencioso. — Aliás, tinha…
Eu não acreditava que meu pai tinha sido capaz de simplesmente acabar com a existência de Grace e agir como se ela nunca tivesse nascido!
— O quê, ele não te contou? — disse, e olhei para ela, paralisado. Já meu pai a fuzilou com os olhos, sentado onde estava.
Pronto, o Casos de Família já estava montado. Ainda bem que havia duas cadeiras sobrando na mesa; uma para Christina Rocha e outra para a psicóloga.
— Grace morreu no parto de . Nós já temos uma filha, a criamos como se fosse nossa.
Os Thorpe encararam meu pai, que terminou de mastigar enquanto ganhava tempo para formular uma desculpa para aquela palhaçada. Se é que ele teria alguma.
— Não acredito que não contou a ele — ralhei, ainda boquiaberto. Mais do que isso, magoado. E eu que achei que não me surpreenderia com mais nada vindo dele.
— Não contei porque é uma perda recente, ainda dói falar sobre.
A cara nem ardia, né? Sentir a perda de Grace não ajudaria em nada. Ele devia fazer algo por quem tinha ficado, quem estava vivo.
— Então já tem uma herdeira para continuar o legado dos ! Que bom — Phillip ainda era a única pessoa a sorrir naquela mesa. A própria Beatrice percebeu que havia algo de errado. Não que ela fosse inteligente por notar aquilo; era só ver como nem ao menos olhava na cara do meu pai. — Eu amo ser avô. Estou estranhando que não me contou da bebê, eu mostro a foto dos meus netos pra todo mundo — Beatrice sorriu com ele.
— Não tenho contato com a criança.
O sorriso de Thorpe murchou no mesmo instante. Me adminrava um homem tão “família” ter comprado a empresa de um miserável como meu pai. De certo, Joseph devia ter mentido sobre nós no ato da venda. A famosa propaganda enganosa. Ninguém se filiaria a alguém como meu pai sabendo de tudo.
Quando um homem não valoriza nem a própria prole, não há como esperar lealdade alguma numa sociedade envolvendo negócios.
— Agora pergunte o motivo — sorriu irônica em direção a Phillip. — Estou curiosíssima para saber também — levou a mão ao queixo, encarando meu pai determinada a tirá-lo do sério.
Mais uma vez os dois novatos na confusão se viraram para ele.
— Você sabe bem o porquê. Aliás, a culpa é toda sua — sorriu orgulhosa de seus feitos como mãe. — Essa criança é ilegítima.
Os Thorpe se entreolharam, ainda confusos. E eu estava bem no meu canto, torcendo muito para que Phillip repensasse a compra da empresa. Ainda dava tempo de rasgar os papéis assinados, desfazer todos os trâmites de compra e fingir que nada tinha acontecido.
— Ah, por favor — riu com gosto, jogando o guardanapo sobre seu prato quase intocado. — Em que século estamos? No quinze? — projetou o quadril para trás, empurrando a cadeira para sair. — Pois eu espero muito que continue não querendo nenhum tipo de contato com minha filha, porque é agora mesmo que não vai ter nunca!
— Nos dê licença, sim? — murmurei a Phillip quando já estava era longe. Por sorte, ele estava tão atônito com o que havia acabado de escutar que nem se importou com a falta de etiqueta de .
Dei passos largos até ela, que andava entre as mesas com pressa e muito irritada.
— Ei, espere.
parou, se virando para mim quando estávamos longe deles.
— Eu sei o que te falei naquele dia. Foda-se seus pais e o que eles pensam sobre . Sei que ela será amada por nós, mas porra, eu não consigo aceitar que exista alguém nesse mundo que a odeie — seu rosto molhado por lágrimas me partiu o coração. A guiei até uma das mesas próximas e nos sentamos ali. — Ainda mais sendo da família. Ela é só um bebê, a criança mais linda e carinhosa que já vi na vida. Eu fico revoltada com isso.
— Eu sei disso, — suspirei, secando seu rosto. — Me sinto um tolo por me importar tanto com isso. Imagino que esteja se sentindo do mesmo jeito. — a loira chorosa assentiu, fungando enquanto controlava o choro. — Não vale a pena, sabia?
afirmou com a cabeça novamente, respirando fundo e se recompondo aos poucos.
— Venha, vamos dançar um pouco — puxei-a pela mão em direção ao espaço vazio entre as mesas e o palco pequeno.
— Não, ! Não tem ninguém dançando — exclamou, olhando em volta, envergonhada com os olhares que recebíamos.
— É isso ou ter que voltar para aquela mesa — avisei, e negou com a cabeça veementemente. — Dissemos que iríamos nos divertir, então vamos tentar fazer isso, nem que seja caçoando do bronzeado laranja daqueles velhos ali — virou o pescoço discretamente, rindo junto de mim. — Ou, quem sabe, sair de fininho pra dar uma rapidinha em algum cantinho por aí… — eu já a guiava em passos suaves na dança.
Era completamente suspeito para falar, mas ficava com a segunda opção. Na verdade, estava com ela em mente antes mesmo de sairmos de casa.
— … — minha esposa abaixou a cabeça, envergonhada, com as bochechas já rubras. Então, encostou a testa em meu ombro, arrancando um riso meu.
— Como é que ainda fica envergonhada desse jeito por nada? — indaguei, indignado, ao mesmo tempo que achava adorável.
Às vezes parecíamos estar num daqueles primeiros encontros que estamos tão nervosos que absolutamente tudo nos causa um riso sem graça daqueles. Aquela era a melhor parte – depois do sexo, é claro – daquilo que estávamos fazendo. Não tínhamos compromisso, não era algo pensado para durar. Por isso, nunca sairíamos do início, e o começo era sempre a melhor parte.
— Eu não sei — me fez rir, ainda escondendo seu rosto de mim. — É que já faz um tempo, não? — franziu o cenho, e assenti de imediato. Desde o Ano-Novo, na viagem de volta para casa.
Desde então, tinha acontecido tanta coisa que nem houve clima para transar na maioria das vezes. Antigamente, eu achava que ficaria louco, subindo pelas paredes se passasse tantos dias sem sexo. Mas, pelo visto, abstinência não matava ninguém, e, no nosso caso, foi necessária. As coisas ainda estavam sendo colocadas no lugar após aquele ataque e a audiência de .
— Eu sinto a sua falta… — aproximei a boca de sua orelha pequena, vendo-a se encolher em meus braços, arrepiada.
Não era mentira, não era da boca para fora. Apesar dos dias difíceis e de ter levado todo aquele tempo sem transar numa boa, eu não poderia negar que sentia falta dela. Às vezes, no meio do expediente, me pegava pensando em tudo que fizemos durante aquela viagem. Não somente do sexo em si, mas do modo como que ficamos abraçados naquela piscina, da textura de sua pele grudada junto à minha debaixo da água, de como dançamos naquele restaurante e das boas risadas que demos enquanto transávamos naquele banheiro de avião.
Eu realmente sentia falta de todos aqueles dias.
— Eu estou bem aqui — ela sorriu, ainda sem jeito sob meu olhar intenso. — Na sua frente, literalmente, todos os dias e noites — encolheu os ombros.
— Não é desse jeito.
ficou séria, ainda com ambas as mãos em meus ombros enquanto dançávamos sozinhos diante das mesas. Eu sabia que ela tinha entendido o que eu quis dizer. Estava desconversando por ficar tímida comigo falando sacanagens em público. Mas eu sentia muito por ela, porque não conseguia mais segurar e deixar tudo aquilo somente na minha cabeça, enlouquecendo-me aos poucos por ter todos aqueles desejos aprisionados.
Tomei sua boca devagar, invadindo-a com minha língua num beijo molhado. Respirei forte pelo nariz, contendo minha vontade de explorar seu corpo com minhas mãos diante daquelas pessoas sentadas ao nosso redor. Me contentei apenas em apertar sua cintura descoberta pelo vestido, sentir sua pele macia na ponta de meus dedos.
— Eu te quero nua, dançando só pra mim — escorreguei o rosto pela lateral do dela, voltando a sussurrar ao pé de seu ouvido. suspirou, deslizando as mãos de meus ombros até a parte de trás dos meus bíceps. — Quero você descendo e subindo no meu pau, quicando sobre minhas coxas do jeito que só você faz — minha voz saía trêmula, tamanho o tesão que estava sentindo. não estava diferente. Seus dedos se fecharam nos meus braços à medida que nossos corpos se colavam ainda mais. — Te quero gemendo, soluçando baixinho no meu ouvido, me implorando pra te foder mais rápido e mais forte.
— Pare, por favor, pare — se afastou de pálpebras pesadas. Sua respiração alterada e o modo como ficou mole em meus braços demonstravam que ela estava louca para fazer tudo o que eu tinha acabado de descrever. — Céus, você é tão… depravado — tentava ficar séria, mas eu conhecia bem aquela carinha de safada dela.
— E você adora, não é mesmo? — voltei a agarrá-la. mordeu o lábio em desejo, assentindo com veemência.
— Então aproveite e não reclame.
Sorri feito besta, imitando-a. se aproximou do meu rosto e chocou o nariz contra o meu levemente, antes que eu tomasse iniciativa e beijasse sua boca. Segurei-a pela nuca e esbarrei os dedos em seus cabelos loiros presos no penteado.
— Boa noite a todos — a voz do meu pai soou por todo o local com a ajuda de um microfone. Terminei o beijo, tendo-a suspirando de forma derrotada. O que não poderia ficar mais tediante tinha acabado de ficar. — Primeiramente, gostaria de dizer que é um prazer recebê-los nesta noite tão especial…
Revirei os olhos com tamanha bajulação. Depois do que houve naquela mesa, acho que meu pai teria que beijar os pés dos Thorpe para tentar camuflar sua verdadeira imagem – a que eu e fizemos questão de deixar bem explícita.
— Por favor, arranje um lugar pra nos esconder — ela suplicou ao ver os funcionários do local passarem de mesa em mesa distribuindo as placas de números. O leilão iria começar.
Olhei em volta e percebi ao fundo um pequeno sobrado. Parecia ser a área de funcionários, já que alguns saíam da porta do primeiro andar com pressa, carregando bandejas. Próximo da porta havia uma escadaria que dava para outra porta. As janelas pequenas ao alto evidenciaram estar escuro lá dentro, provavelmente inabitada.
— Venha, vamos aproveitar que estão todos distraídos — peguei sua mão e a entrelacei com a minha.
Quando chequei se ninguém nos via, cruzei o olhar com meu pai, que negou com a cabeça em reprovação enquanto nos observava do palco literalmente dar fuga dali. Subimos as escadas rapidamente, tomando cuidado com por estar de saltos e com o vestido longo. Por sorte, a porta estava aberta. Assim que acionei o interruptor, a luz se fez presente, revelando um banheiro simples e limpo.
— Parece que nós gostamos de banheiros, não? — riu, olhando em volta. Assenti, mordendo o lábio em desejo. Agarrei-a forte e colei seu corpo ao meu. — A porta… — ela desgrudou a boca da minha com dificuldade, fazendo-me largá-la com muito custo para ir até a porta, girar a chave e trancá-la.
Assim que me virei de volta, vi me esperando ansiosa encostada na pia. Seus olhos azuis e brilhantes estavam espremidos, disputando espaço com o sorriso aberto que ocupava quase todo seu rosto vermelho. Não estava calor ali dentro, mas pude ver que ela estava com a mesma vontade que me motivava a ir até ela. Queria poder piscar os olhos e já vê-la despida. Eu tinha tanta pressa de tê-la mais uma vez, tanta saudade, que até o ato de tirar as roupas parecia durar uma eternidade.
— Vem cá, minha gostosa — murmurei envolvendo seus quadris com ambas as mãos, enterrando o rosto na curva de seu pescoço. Enquanto distribuía beijos em seu cangote cheiroso, ouvi gargalhar em nervosismo, de ombros encolhidos.
— Eu não sou sua! — exclamou, com a voz esganiçada pelo riso.
Eu era uma piada para ela?
— Se não é minha, é de quem então? — encarei seu rosto e torci para que ela não pensasse em citar outro homem, muito menos Tom. Se não, no auge dos meus vinte e quatro anos de vida, aquela seria a minha primeira vez brochando.
— Da , sou a mãe da — ela levou os braços até meu pescoço, sorrindo cinicamente. — Não sou sua, e você não é meu.
— E eu sou de quem? — arqueei minhas sobrancelhas.
— Você é pai da …
— Não, como homem — teimei, vendo-a revirar os olhos.
Eu queria ver sua resposta, e uma ansiedade me tomou. De repente, me vi ansiando por verbalizar o que minha cabeça gritava insistentemente, embora eu achasse que aquilo era apenas um efeito do tesão que estava sentindo.
— Eu não sei, — deu de ombros. — Você é quem tem que saber, talvez até já saiba e fique com ela quando o divórcio sair — desdenhou, evitando meu olhar.
— Está falando da Dafne? — franzi o cenho. soltou um risinho fraco, tirando os braços de volta do meu pescoço.
— Está vendo? Você até adivinhou.
— Eu não tenho nada com Dafne — a prensei contra a pia, pegando seus braços e colocando-os de volta onde estavam. — , eu…
— Quer saber? Você não tem que ficar me explicando isso. Não sei nem por que entramos nesse assunto numa hora dessas — sorriu amarelo.
Suspirei, assentindo, apesar de meu coração bater acelerado, atiçando-me a continuar explicando a ela até que não restassem dúvidas. Mas estava certa. Eu não lhe devia explicações, do mesmo jeito que não poderia ficar bravo caso ela externasse algum pensamento sobre Tom ou qualquer outro.
Pensar que estava certa naquela situação específica me fazia relembrar um pouco do ódio que um dia já senti por ela. Eu odiava o modo como se sentia a dona da razão, não dando a ninguém o benefício da dúvida, mesmo que existissem. Ela estar certa no que disse me fazia querer largá-la ali e correr para longe de sua vista. Fugir para não ter que lidar com a frustração de querer discordar e não poder.
Até porque discordar dela ali seria um caminho sem volta de um lugar desconhecido. Era algo que exigiria certeza. sempre foi alguém que inspirava dureza. Com ela era sempre oito ou oitenta, quente ou frio, e eu não sabia o que sentia ou faria. Não havia lugar para as minhas incertezas naquela discussão.
— Tem razão — cedi, mesmo que contrariado. Lhe beijei, sendo correspondido fracamente. — O que está lá fora, fica lá fora — peguei seu rosto, vendo-a respirar fundo ao concordar com a cabeça.
Lá fora… Fora de casa, fora daquele banheiro, fora da nossa redoma de vidro colocada sobre nós quando decidimos fazer parte daquele plano. Todo mundo passava e espiava nossa vida, nos influenciava a tomar decisões e até mesmo a invadiam sem serem chamados. Às vezes algumas rachaduras surgiam, e eu sentia como se tudo estivesse prestes a desmoronar; outras, parecíamos estar sob um vidro inquebrável, escuro e à prova de ruídos. Normalmente, eram momentos como aquele, quando estávamos sozinhos e escondidos dos olhos alheios.
— Eu sou o seu homem — enquanto eu assentia, ria e negava com a cabeça. — Pelo menos aqui, onde estamos só você, eu e mais ninguém — dei-lhe um selinho. — E você, , é minha mulher — peguei seus quadris, dando-lhe impulso para ela ficar sentada sobre o gabinete de granito que abrigava a pia. — O que me diz… hein? — beijei sua boca, tendo seu olhar risonho sobre mim. — Não diga que sou louco.
— Você me conhece tão bem — brincou, deixando-me entrar no vão entre suas pernas, abraçando-me pelos ombros. Relembrei como era deliciosa a sensação de estar preso em seus braços. Peguei suas coxas e as entrelacei em meus quadris.
Não, , eu não poderia dizer que te conheço bem.
Desde seu passado obscuro até o que se passava em sua cabeça, quando eu não conseguia evitar soltar minha língua e dizia o que estava sentindo, eu nunca sabia o que ela pensava. Não conseguia prever seus próximos passos ou saber suas reais intenções. Me sentia numa sala escura, onde só sua voz me guiava lá dentro, que era a única coisa que eu tinha de . Sua voz, o que ela escolhia dividir comigo.
Não parecia existir uma saída, mas, por incrível que pudesse parecer, eu não queria deixar aquele lugar. Me sentia confortável ali, e esperava pacientemente até o dia em que acenderia as luzes e me deixaria saber o que ela sentia ou o que a assombrava tanto, a ponto de fazê-la esconder tão bem.
— Esse corpo também — repeti a fala de Elisabeta e mordi seu lábio inferior, avançando a mão pela fenda em sua coxa em direção a sua virilha.
Minha esposa gemeu baixinho quando dedilhei sua intimidade ainda por cima da calcinha, que invadi e senti sua buceta molhada pulsar em excitação, fazendo-me deleitar ao olhar em seu rosto e ver a luxúria estampada nele. Se não queria dizer que era minha por bem, então eu a faria confessar enquanto estivesse fora de si. Se bem que palavras não seriam necessárias quando estivesse gozando sobre aquela pia. As imagens sempre falavam por si próprias.
Eu enroscava minha língua contra a sua num beijo urgente, necessitado, enquanto a masturbava já sentindo suas mãos cheias em meu membro, que sofria aprisionado naquela calça, apertada até demais.
— Ouviu isso?
Ignorei-a, colocando velocidade em meus dedos enquanto beijava sua bochecha e ia em direção ao seu pescoço.
Deveriam ser gritos do leilão. Para aqueles velhos era como jogar num bingo. Eles diziam pra todo mundo que era pela caridade, mas eu sabia bem que era apenas para esbanjar o dinheiro que tinham uns pros outros. Eles estavam pouco se fodendo para os necessitados.
— , é sério, tem uma mulher gritando — ela livrou-se de minha mão, tirou-a de dentro do vestido e me empurrou levemente para longe do seu caminho. Suspirei, observando seu corpo ir até uma das janelas e por ali ficar. — Aquele não é o seu amigo?
Fui até onde ela estava e vi, pelo vão do vidro da janela, Chris discutir com uma mulher desconhecida; provavelmente. era a tal namorada. exclamou em espanto quando o viu pegá-la fortemente pelos braços enquanto se aproximava de seu rosto e falava coisas incompreensíveis, vermelho de raiva. Ele a empurrou contra a parede, fazendo meu coração pulsar em ódio. O que aquele imbecil achava que estava fazendo?
— , onde você vai?
's point of view.
Ignorei a voz de me chamando e fui praticamente cega de ódio até a saída daquele banheiro. Desci os degraus segurando-me no corrimão para tentar não cair da escada enquanto ia rápido, sem me preocupar com os saltos que usava. Corri pelo gramado e fui em direção à parte de trás do pequeno prédio, onde aquele filho da puta prensava a mulher contra a parede branca. Ele a segurava pelo pescoço enquanto ela se debatia, tentando acertar as unhas grandes em seu rosto.
Meu coração se acelerou ainda mais. Eu realmente não sabia que conseguia atingir aquela velocidade sem cair dura no chão. Na verdade, não entendia meu choque todo com aquela cena. Não era uma novidade para mim; eu já tinha visto aquele filme de horror mais vezes que gostaria.
— Larga ela! — rugi, empurrando-o com força pelo ombro e quebrando o contato dele com o corpo da namorada, que chorava copiosamente. Ela estava inclinada para frente com a mão onde a dele estava segundos atrás.
Eu não tinha a visto ainda; seus cabelos castanhos e curtos lhe cobriam o rosto vermelho e repleto de resquícios de maquiagem borrada. Peguei impulso para ir até ela, checar se estava bem e, se não estivesse, me asseguraria que ficasse. Não era a primeira vez que eu fazia tudo aquilo. Comecei muito antes de ser considerada uma adolescente. Ainda criança, aos nove, dez anos, já ajudava minha mãe a se recuperar da passagem do furacão que era meu pai.
Tudo o que ele tocava, ele destruía.
— Algumas coisas nunca vão mudar — a risada dele me provocou enjoo. Senti meu corpo ser puxado para longe dela e cambaleei, conseguindo me manter de pé por um milagre. — Você sempre foi uma enxerida de merda.
A voz mansa não contrastava nada bem com sua expressão facial, que se contorcia numa raiva descomunal. Sua respiração estava descompensada, e os cabelos escuros, desgrenhados. Chris falava com o rosto bem próximo do meu. Encarava-me de cima dos seus um metro e oitenta de altura e jurava que estava me apavorando com tudo aquilo.
— Eu não tenho medo dessa sua vozinha calma, muito menos desse seu aperto no braço — cuspi em seu rosto, fazendo-o me soltar para secar a saliva que escorria por seu olho direito.
Eu havia crescido em meio a gritos, empurrões e pancadas. Aquela postura passivo-agressiva dele não me fazia nem cócegas.
— Filha de uma puta — esbravejou, empurrando-me fortemente pelos ombros.
Daquela vez, não consegui me manter de pé. Fui ao chão, já vendo-o se aproximar rapidamente de punho cerrado, pronto para me acertar. Eu não podia acreditar que, depois de tão pouco tempo tendo um pouco de paz, a violência doméstica voltaria a me rondar daquela forma.
— O que pensa que está fazendo, Chris? — a voz imponente de soou pelo local, atraindo a atenção do idiota, que mesmo assim não hesitou.
o empurrou para longe de mim, pegando-o pelo colarinho quando estavam a uma distância considerável de meu corpo. Ofeguei aliviada, engolindo em seco ao ver os olhos azuis raivosos sendo direcionados a mim por cima do ombro de , como se eu fosse o centro de um alvo que ele ansiava acertar.
— Essa vadia! Se intrometendo onde não foi chamada! — avançou em minha direção. o parou, enfurecido, voltando a empurrá-lo para trás.
— Se tocar nela de novo, eu juro…
— Qual é, ! Vai ficar do lado dela? — daquela vez, ele tentou empurrar , porém, não teve muito sucesso. McLain só crescia pra cima de mulheres; com , ele estava tentando argumentar. — Sua mulher está errada, ninguém a chamou na conversa…
— Conversa? — me levantei cambaleante, sentindo o ódio me cegar novamente. — Que tipo de conversa é essa? Eu não vi ninguém conversando aqui, só você tentando enforcá-la — apontei para a moça, que soluçava audivelmente, encolhida contra a parede. Ela estava sentada no chão ao lado do próprio celular, um iPhone completamente despedaçado.
— Isso não é da sua conta! — McLain brandou e avançou de novo, sendo impedido novamente.
Eu só consegui rir, completamente desacreditada do que ouvi. O que uma pessoa daquelas tinha na cabeça para pensar que estava com a razão naquela situação? O que o fazia acreditar que ele estava certo em agredir a namorada daquela maneira e, ainda por cima, destruir o celular dela? Independente do motivo da discussão que iniciou aquilo tudo, nada justificaria toda aquela violência.
— Ei, chega, saia daqui. Vá tomar uma água e se acalmar — franzi o cenho ao ouvir a voz de falar aquilo. Se não estivesse vendo com meus próprios olhos, duvidaria de quem quer que fosse a pessoa que me contasse que aquilo saiu de sua boca. — Você está bêbado, cara! Chega de fazer besteiras!
— Não, ele não precisa se acalmar. Ele precisa ir preso, isso sim! — peguei o celular do chão com as mãos trêmulas, sentindo falta do meu que estava na mesa onde jantamos anteriormente. Sentei-me ao lado da mulher, que abraçava os próprios joelhos e escondia o rosto em vergonha.
— Não, cara, peraí! — Chris tentou se desvencilhar de para vir até mim, já com outra postura. A voz soou desesperada, os olhos azuis se encheram de lágrimas e ele juntava as mãos num sinal de súplica. — , eu não posso ir preso, você sabe que não posso. A minha ficha, ela… Você sabe, não sabe, ?
Encarei e o vi hesitar, suspirando ao segurá-lo. McLain se lançou nos braços do amigo, o abraçando enquanto se lamuriava. Eu assistia à cena derramando lágrimas de puro desgosto. Como era fácil conseguir a pena de outro homem. Ele tinha acabado de enforcar uma mulher na minha frente, mas, naquele momento, abraçava como se fosse uma pobre vítima da sociedade. Aquele burguês filho da puta achava mesmo que iria se safar do que fez choramingando?
— Eu prometo que não faço mais, cara. Prometo que essa é a última vez que bebo — ele continuava tentando convencer de ajudá-lo. — Por favor, cara, você me conhece desde pequeno. Me livra dessa.
— Você tem noção do que fez? — reagiu, tirando os braços dele de volta de si. — Acabou de machucar sua namorada e ia bater na minha mulher! Está louco, caralho? Eu achei que você tinha mudado!
Era ridículo acreditar em mudanças de pessoas como McLain. Não adiantava ter um só pingo de esperança, aquilo não iria acontecer. seria muito ingênuo se cedesse àquele argumento. Aliás, mesmo se o fizesse, nada nem ninguém me impediria de denunciá-lo.
— Tem razão, me perdoe. Por favor, me perdoe — se ajoelhou diante de , que tentava levantá-lo com muito custo.
Ele estava se desculpando com pelo quê, exatamente?
— Amor, amor, me desculpa, eu não fiz por mal… Eu não faço mais… — se arrastou até a namorada.
— Saia de perto dela, cacete! — o empurrava e o chutava para longe, enquanto ele insistia em tocá-la.
A tela se acendeu em meio às dezenas de rachaduras. Tentei digitar, mas não conseguia visualizar direito o que tinha ali. Então, pressionei o botão lateral de bloqueio três vezes. Sabia que, quando completasse as cinco, teria a opção de ligar para os serviços de emergência. Porém, fui surpreendida ao ter o aparelho praticamente arrancado de minhas mãos.
— N-Não chame a policia, por favor. Não precisa! — a mulher pediu, e eu a encarei incrédula. Mas, mais uma vez, não deveria estar surpresa. — E-Eu estou bem.
Minha mãe fazia a mesma coisa sempre: aceitava flores e as desculpas dele. Inclusive, estava com meu pai vivendo sob o mesmo teto até hoje, mesmo depois de anos ameaçando deixá-lo ou mandando-o ir embora. Ela chegava até a ir na delegacia registrar o boletim de ocorrência; às vezes, não conseguia nem terminar o trajeto, voltava para casa arrependida de pensar em denunciar o pai da filha. Quando conseguia ter forças para falar com a polícia, depois de alguns dias, ia até lá retirar a queixa.
Ele sempre a convencia de que era o certo a se fazer e prometia ser um homem melhor.
Eu nunca entenderia que sentimento era aquele que tanto se parecia com o amor, a ponto de fazê-las acreditar cegamente em alguém que já lhes fez tanto mal. A ponto de fazê-las insistir num erro tão doloroso, que não machucava apenas a pele, mas também a alma, e feria a dignidade delas.
Como alguém conseguia aceitar viver daquele jeito só para continuar em função de fazer outra pessoa feliz?
O amor não te machuca, não te faz chorar mais do que sorrir e não te faz se sentir um lixo. Eu tinha certeza que minha mãe não amava meu pai, assim como também podia ver que aquela mulher não tinha sentimentos bons por Chris. O modo como ela virava o rosto vermelho e molhado por lágrimas quando ele se aproximou para beijá-la, o jeito como ela se encolheu em nojo quando seus braços estiveram em volta de si…
Desolada, observei McLain levantar a namorada – que, minutos atrás, ele mesmo empurrou – e levá-la para longe. Solucei e apoiei as mãos no chão, sentindo a terra e a grama entre meus dedos entrando por baixo de minhas unhas quando as raspei contra o terreno com força. Fechei ambas as mãos e tentei descontar minha raiva ao sentir que estava tendo mais um dos meus déjà vus /que me assombravam desde criança.
Eu sempre acabaria daquele jeito? Não parecia existir saída para aquilo. Se existia, eu pelo menos nunca presenciei.
— Venha, vamos tomar uma água e se acalmar — meu olhar subiu dos sapatos caros de para suas pernas, até chegar em sua mão estendida em minha direção.
Ignorei-o e voltei a soluçar, ainda desacreditada em como tudo aquilo tinha acabado. Quando corri até eles, achei que tudo ficaria bem. Realmente pensei que poderia fazer algo. Pensei que se juntaria a mim e me protegeria de Chris, que, por sua vez, ficaria bravo por me ter acabando com sua farra. Tinha pensado que, daquela vez, eu poderia impedir que ela o perdoasse e a incentivaria a fazer algo a respeito.
Tinha tentado tantas e tantas vezes com minha mãe, e a sensação era… Eu nem ao menos conseguia descrever a dor que me comprimia o peito, a impotência e a raiva de vê-lo sair ileso! Me sentia inútil, e aquilo me matava por dentro.
— …
— Você realmente acha que água resolve uma situação dessas? — esbravejei, tirando suas mãos de mim e arranhando-o com minhas unhas, como um animal selvagem que se sentia ameaçado. — Como pôde deixá-lo ir desse jeito, como se ele não tivesse feito nada de errado?! — me levantei, apoiando-me na parede. Meu estado emocional era tão extremo que eu chegava a sentir minhas pernas trêmulas.
achava que o amigo tinha feito algo errado, não achava? Ele tinha ficado bravo daquele jeito só pelo empurrão que levei?
— O que quer que eu faça? Tentei ajudar, você tentou ajudar, e olha onde acabamos? Brigando por conta dos problemas dos outros!
— Problemas dos outros… — repliquei, sentindo tudo girar à minha volta. — Você realmente acha que isso é um problema só deles?! — ri em meio ao choro que me subiu à garganta. — Ele poderia matá-la aqui e ainda assim não seria problema nosso! — o sarcasmo ficou evidente naquela última frase.
— Eu não disse isso… — ele hasteou o dedo. — Eu disse que ela não queria ajuda, você mesma viu.
Cada vez que ele abria a boca, mais decepcionada eu ficava.
— E só por isso não devemos ajudá-la?
levou as mãos aos cabelos, puxando-os como se estivesse farto daquela discussão. Era eu quem estava farta.
— , ele está bêbado. Não sei se sabe, mas Chris tem problemas com drogas — enquanto ele explicava, cruzei meus braços, indignada. — Sei que isso não justifica o que ele fez, mas, porra… Eu não o vejo desde a adolescência, porque meu pai decidiu que ele não era boa influência pra mim por ter começado a se drogar. Tem noção de como eu fiquei? Eu dei as costas pra ele quando ele mais precisava de mim, e agora… — comprimiu os lábios, com os olhos cheios de lágrimas. — Eu não sabia o que fazer!
Foda-se os problemas dele com drogas. Meu pai chegava em casa caindo de bêbado e, mesmo assim, encontrava um jeito de agredir minha mãe, que, assim como aquela mulher, não tinha porra nenhuma a ver com o vício dele! Quando as pessoas iriam parar de vitimizar homens adultos e começar a se preocupar com as mulheres que pagavam apanhando? Quando eles iriam começar a arcar com as consequências das próprias escolhas?
Porque eu mesma já me perguntei milhares de vezes como minha mãe tinha acabado numa situação daquelas, como se estar ali, apanhando dele, fosse uma escolha dela. Mas foram poucas as vezes que questionei meu pai por beber tanto e não querer se tratar do vício que tinha. Ele nunca ao menos tentou!
— Você sabia o que fazer. Não venha com esse papo furado, . Você não fez porque não quis! — o encarei, enojada. — Quer ajudar seu amigo? Deveria denunciá-lo. Melhor ele preso e longe dela do que ela acabar morta por ele, porque aí sim Chris vai ter se ferrado e você não vai poder ajudá-lo. Apesar de que, tratando-se de vocês, ricos, é bem capaz de conseguirem sim livrá-lo de pagar por isso. O dinheiro resolve tudo, não é? Vocês homens se protegem, fingem que não vêem situações como essa e seguem suas vidas como se nada tivesse acontecido. Vocês sempre se ajudam.
Na minha antiga casa, infelizmente, não eram só os homens que faziam aquele pacto de silêncio desumano. As vizinhas do bairro já ajudaram com os ferimentos, os maridos já lhe deram carona até a delegacia, e eu tinha certeza que todos eles ouviam os gritos dela e ignoravam como se fosse uma briga de casal normal. A omissão era a pior das violências. Parecia que eles o ajudavam a surrá-la quando estavam cientes do que acontecia na minha casa e não faziam nada a respeito.
Aquilo me deixava tão revoltada. Perdi as contas de quantas vezes quis que alguém aparecesse e parasse tudo aquilo. No dia em que tomei coragem para tentar fazê-lo parar, as coisas não acabaram nada bem pro meu lado.
— , aonde você vai? — quando lhe dei as costas, o ouvi me chamar de novo, exatamente como fez anteriormente. — Espera, você vai se machucar desse jeito! — exclamou quando me viu tropeçar pela dificuldade de andar tão rápido pelo extenso gramado.
— Eu vou embora! — me virei para ele a uma distância considerável.
— Espera, venha aqui, vamos conversar, esclarecer as coisas — estendeu a mão de novo para mim. Neguei veementemente, soluçando e querendo manter distância dele e daquele olhar que me dava.
Eu não sabia mais o que pensar em relação a ele. Estava tão paranoica que me lembrei até do dia que ele deu aquele presente para a minha mãe. Eu tinha ficado tão brava com a possibilidade de estar gastando dinheiro numa viagem para meu pai viajar com minha mãe, depois de tudo o que ele nos fez, como se soubesse do meu passado.
Mas, agora, vê-lo tentar justificar o amigo…
O que conheci nos últimos meses e que estava vendo ali, diante de mim, me olhando daquele jeito terno, aquele homem carinhoso e engraçado, oscilava com a imagem que eu tinha acabado de ter dele relativizando a violência doméstica. Nutri ódio por ele durante anos, mas nunca pensei que fosse capaz de ficar do lado de um agressor!
— Eu não tenho nada pra conversar com você — voltei a andar para longe.
— Espera! Você vai embora como, ? Está muito tarde pra pedir táxi, pode ser perigoso.
— Não te interessa como eu vou embora — esbravejei ao me virar para ele de novo. — Vá, volte pra essa droga de festa. Aproveite o leilão pra fingir que é caridoso e que se importa com as pessoas. Vá manter sua imagem de empresário que seu pai tanto limpou pra você.
odiava tanto aquilo no pai, mas, naquela noite, eu olhava pra ele e só conseguia ver Joseph. Não aceitava o fato de ter me casado com aquele homem, mesmo que fosse uma farsa.
— , você está sendo injusta comigo.
Discordei. Eu não tinha erros quando se tratava de julgar envolvidos naquele assunto. Sabia o que era sofrer com tudo aquilo e estava pouco me fodendo com o que ele ou qualquer outra pessoa achasse sobre o meu senso de justiça. Injusto foi ver aquele infeliz sair ileso.
— Quer saber, ? Acho que isso não está funcionando, nunca vai funcionar — falei com convicção.
Parecia que quanto mais próximos ficávamos, mais doía quando brigávamos. E se fosse para ser daquele jeito, era melhor pararmos por ali.
— Não podemos ser amigos. Eu não posso ser amiga de alguém como você — minha voz embargava a cada palavra dita. Meu coração se apertava dentro do peito, procurando um lugarzinho para se aconchegar em meio ao caos que estava acontecendo dentro de mim.
Tom tinha razão. quebrou meu coração em pedaços, e, como eu previa, não tinha sido por conta de uma desilusão amorosa. Naquele momento, nem mesmo a raiva de tê-lo com Dafne me incomodava mais, aquilo virou um mero detalhe.
O homem que tinha conhecido nos últimos meses não existia. Eu não conseguia compreender como fui cair naquela ladainha de mudança. sempre foi e sempre será o homem que eu odeio, e nada, nem mesmo o amor que sentíamos por parecia ser capaz de mudar aquilo.
— De agora em diante, vamos nos tratar apenas como tutores de — olhei para o seu rosto retorcido em tristeza, sentindo-me da mesma forma.
— Espera — pediu, então parei novamente, daquela vez ainda de costas. — Toma, pegue a chave do carro, também vou embora.
Retrocedi meus passos, ainda sob seu olhar chateado.
— Vou só me despedir do pessoal.
Ouvi-lo falar dos amigos me fazia lembrar dos dias que passamos naquela viagem. Tulum foi mágico, mas eu não sabia se nossos momentos bons poderiam se sobressair ao que havia acontecido naquela noite.
A pior das coisas que poderia ter me feito, a pior de todas! Eu nem sequer imaginaria algo que me machucasse mais que aquilo, e ele o fez. E mesmo que tenha sido sem saber dos meus motivos para me afastar, ainda doía como se jogassem sal em minhas feridas.
Quando toquei sua mão para pegar as chaves, seus dedos se fecharam em volta da minha; mas não de um jeito forte ou bruto, eu ainda conseguia me soltar se quisesse. E eu queria, mas meu corpo se recusou a obedecer meus comandos ao se deparar com aquela espécie de hipnose que seus olhos verdes tinham sobre mim.
— Amor, eu…
— Não me chame assim — reagi, contrariando o frio na barriga que senti ao ser chamada daquela forma. — Me enoja — puxei minha mão de volta, marchando em direção ao estacionamento, parando apenas para tirar aquela droga de sandália dos meus pés.
Abri o carro e me lancei no banco de trás, levando as mãos ao rosto e sentindo o choro vir à tona de novo. Eu ainda não conseguia entender como poderia ter me enganado tão bem; apesar de saber que meu pai demorou alguns anos depois do casamento para começar a apresentar seu comportamento violento.
Sabia que não tinha me batido e, naqueles quase quatro meses juntos, nunca tinha feito menção de levantar a mão para mim. Mas eu acreditava que, quando víamos algo acontecendo e não fazíamos nada para impedir ou parar, era porque concordávamos com a situação. E eu não conseguia acreditar que tinha acabado como minha mãe, me casado, me deitado com um homem que normalizava agressões. Aquele era o meu maior medo da vida, e ele estava se concretizando diante dos meus olhos.
Eu me sentia dentro de um pesadelo.
— S-Só m-mais oito m-meses, , s-só oi-ito meses — sussurrei para mim mesma repetidas vezes, como um mantra para me acalmar, enquanto repassava todas aquelas imagens na minha cabeça e tentava me distanciar de tudo de bom que eu já tinha sentido ao lado de .
’s point of view.
Regressei meus passos até o local onde estava concentrado o restante dos convidados que participavam do leilão. Eu estava desorientado com o que acabara de acontecer. Parei por um instante e observei indo em direção ao estacionamento num estado deplorável. Já ia descalça, com as sandálias em mãos enquanto seu choro ainda não tinha cessado.
Transitei pelas mesas ainda consternado, olhando para o chão e evitando contato visual com as pessoas ali. Um choro estava entalado em minha garganta, e eu tinha certeza que meu rosto transparecia meu estado caótico.
me disse que aquilo não iria funcionar, que não estava funcionando. Estava mentindo, óbvio que estava! Estávamos muito bem antes daquele incidente. Mas a certeza em sua fala quando anunciou que seríamos apenas tutores de me fizeram temer que, a partir daquela noite, ela daria um fim definitivo ao que tínhamos. Aquilo me deixou inquieto.
Daquela vez, não me restavam mais dúvidas: tinha sido vítima de algum namorado violento. Não tinha outra explicação para sua reação diante do que houve. Claro que, por ser mulher, já era de se imaginar que se assustasse e se indignasse com o que presenciou, mas o jeito como ela ficou, o ódio puro em seu olhar… Me senti a pior pessoa do universo ao vê-la falar daquele jeito de mim. Eu não era aquele monstro e não concordava com o que Chris fizera a nenhuma das duas.
Eu jamais encostaria um dedo nela para machucá-la. Não somente , mas qualquer outra mulher! Sempre me preocupei com sua segurança. Queria protegê-la e, quando falhava, me sentia péssimo. Sabia que era egoísmo puro, mas eu também saí chateado daquela história toda.
realmente chegou a acreditar que eu fosse capaz de algo do tipo? Tudo bem, na noite de Ano-Novo ela estava bêbada, mas depois a própria afirmou que não a machuquei nem tive a intenção de fazê-lo. Ela me conhecia há anos e sabia que eu não era aquele tipo de homem.
Mas por que então me olhou como se eu fosse? Eu não era! Vê-la duvidar me machucava. A dúvida poderia vir de qualquer pessoa, mas vindo dela… me causava um incômodo no peito tão grande que acho que não conseguiria dormir aquela noite até conseguir lhe assegurar o contrário.
Ao mesmo tempo, por especular que talvez tivesse um passado relacionado à violência, tudo parecia completamente justificável. E aquilo era o que me deixava pior ainda: saber que estaria certa em não me querer mais por perto, porque fui um idiota ao ficar ao lado de uma pessoa igual a quem lhe fez mal algum dia.
não dormiria ao meu lado, não me deixaria beijá-la ou abraçá-la mais. Voltaríamos para o início. me odiaria como no nosso primeiro dia de casados, ou até mais! Ao pensar que eu era um monstro daqueles. E eu sofreria não só pela culpa de ter estragado tudo, mas também por saber que já não poderia mais olhá-la diferente do que estava olhando nos últimos tempos. Não teria suas mãos em mim e não tocaria mais aquele corpo, nem mesmo abraçá-la antes de pegarmos no sono.
Eu não queria mais aquela vida. Não era a nossa vida.
Ainda trêmulo, peguei a bolsa de e deixei o local, fazendo o mesmo caminho de quando fomos até aquele banheiro. McLain estava numa das mesas com a namorada, que tentava disfarçar a cara de choro e o nervosismo após o que tinha passado. Enquanto isso, Chris conversava e ria com um cara aleatório da mesa ao lado, como se nada tivesse acontecido. Realmente nada aconteceu para ele.
Saquei o celular do bolso e disquei o conhecido número de três dígitos. Enquanto o aparelho chamava em meu ouvido, deixei escapar algumas lágrimas de raiva. Queria me bater de tão estúpido que fui! Só de pensar em como tinha sido um covarde desgraçado ao ter que esperar tudo aquilo acontecer para fazer alguma coisa.
Aquela não era a primeira vez que eu ferrava com tudo, que eu fazia chorar e a machucava, mesmo sem intenção. Por mais horrível que pudesse parecer a ideia de nos afastar depois de tudo o que vivemos naqueles três meses, talvez tivesse razão.
— Boa noite, gostaria de denunciar uma agressão contra uma mulher — funguei, encostando-me na parede.
A ligação não durou muito tempo. Mantive minha identidade em sigilo e fiz o que tinha que ser feito, lhe dando o máximo de informações que podia. Por mais doloroso que fosse para mim fazer aquilo, estava certa ao dizer que eu estaria ajudando Chris se o denunciasse.
Se eu não fizesse nada, iria parecer meu pai passando pano para os meus erros quando eu era mais jovem. E não aprendi nada da vida tendo meus deslizes apagados como se nunca tivessem existido. Estava aprendendo naquele momento, com um casamento, com um bebê que logo me chamaria de papai. Sentia que nem nem mereciam um homem como eu ao lado delas, alguém que ainda está aprendendo a lidar com responsabilidades. Eu me sentia insuficiente para elas.
Eu, como pai de uma menina, como marido de , irmão de Grace, filho da minha mãe e pelo homem que fui criado para ser, deveria saber que a primeira coisa que devia ter sido feita era aquela ligação. Por mais que me doesse o coração denunciar Chris, me senti aliviado ao terminar aquilo. Era triste vê-lo se deteriorar tanto por conta de um vício, mas aquilo não justificava sua atitude de machucar outras pessoas e envolvê-las naquele sofrimento.
Retornei ao carro não cumprindo o que disse a sobre ir me despedir do pessoal. Eu não tinha ânimo para encará-los, muito menos sabia se conseguiria olhar no rosto de Chris tão cedo. Aquele talvez pudesse ser o fim de nossa amizade – que já não ia tão bem por conta do distanciamento –, mas que eu nunca pensei que acabaria daquela forma. McLain nunca iria entender que fiz aquilo para o seu bem.
Assim que abri o carro e me sentei, visualizei o corpo encolhido próximo a porta atrás do banco ao meu lado; parecia que queria ficar o mais longe possível de mim. Nem me olhar ela queria, já que abraçava os próprios joelhos com o rosto enterrado no vão entre os braços. Suspirei. Deixei sua bolsa no lugar ao lado, onde ela devia estar sentada, e coloquei o cinto, indo embora daquela festa que conseguiu superar minhas expectativas e terminou pior do que eu imaginava.
O caminho foi silencioso. Eu tentava espiá-la pelo retrovisor, mas ela ainda parecia abatida. Já mostrava o rosto inchado e vermelho pelo choro e tinha a cabeça encostada no vidro. Seu olhar estava estático na janela; porém, não parecia interessada na estrada. Tinha o mesmo olhar longe, estava aérea e completamente alheia ao que acontecia à sua volta.
Com a falta de carros nas ruas, chegamos bem rápido. Não precisei gastar a mesma eternidade da ida no retorno para casa. Virei-me para apertar o botão do controle do portão e reparei o olhar dela em mim. Tirei o cinto, fazendo menção de virar mais o tronco em sua direção, mas só consegui fazer com que se encolhesse no lugar. Senti um frio na barriga ruim ao vê-la demonstrar medo ou algo do tipo com relação a mim. Hesitei, decidindo tentar conversar no dia seguinte, quando a poeira baixasse.
Desembarquei do veículo e deixei decidir fazê-lo quando se sentisse pronta. Levei sua bolsa comigo e, enquanto destrancava a porta de casa, ouvi o barulho da porta do carro bater. Acendi as luzes, tirei aquela gravata que me apertava o pescoço e, antes de me livrar do blazer ao ir em direção às escadas, vi que ela fechou a porta, girando a chave duas vezes.
— Cadê meu celular?
Parei onde estava, surpreso por ouvir sua voz fraca. Realmente achei que não falaria mais comigo naquela noite.
— Está na bolsa, em cima do sofá — girei os calcanhares, apoiando-me no sofá. Fiquei calado ao observá-la ir quase correndo até a bolsa-carteira e pegar o aparelho às pressas.
digitou rápido os três números – os mesmos que disquei ainda no local da festa –, mas com um desespero bem maior que o meu quando escutei o aparelho chamar. Sua respiração era audível. Ela tinha o cenho franzido enquanto aguardava ser atendida. — Alô, boa noite… Eu gostaria de denunciar um crime q-que presenciei agora há pouco.
Eu nunca tinha visto naquele estado emocional. Nem mesmo na noite em que perdemos Grace a vi desorientada daquela forma.
— E-Eu vi um cara, Chris o nome dele. Não sei o sobrenome. Ele enforcou a namorada n-na minha frente, eu tentei… tentei tirá-lo de cima dela e e-ele me empurrou no chão… — ela levou a mão até a boca, tentando abafar o soluço que soltou ao derramar uma dúzia de lágrimas grossas num choro desesperado. — Eu já saí de lá, m-mas a menina ainda está com ele. Ele a levou consigo. Ela não queria que eu ligasse, mas… — foi interrompida pela atendente. Eu conseguia ouvir daquela distância, mas não era capaz de saber o teor da conversa. — E-Eu não sei o endereço… É um local de eventos, está acontecendo um leilão lá e… — mais uma interrupção. — Isso! Empresas , essa mesma. F-Foi nesse local mesmo.
Os olhos molhados de me procuraram pela sala quando a mulher a deixou em silêncio por um tempo, apenas ouvindo o que ela lhe dizia do outro lado da linha. Seu queixo tremia e suas lágrimas pingavam em seu vestido azul; a barriga subia e descia com rapidez. precisava se acalmar, mas, por mais que eu quisesse muito ir até ela e abraçá-la, não sabia se eu era a pessoa mais indicada para fazer aquilo.
— Tudo bem — sua voz saiu quase como um sussurro. — Tudo bem, o-obrigada. Boa noite — finalizou a chamada, passando as costas da mão no rosto desajeitadamente. — V-Você ligou? — trêmula, a loira deu passos até mim; porém, parou quando ainda estava longe demais de me alcançar. Engoli em seco, procurando um pouco de voz para confirmar. Não o fiz, restando-me apenas um aceno com a cabeça. — Eles disseram que já receberam um chamado e que ele já foi detido — ela abaixou a cabeça e, em silêncio, encarou o aparelho em mãos.
— Você estava certa, — admiti. A loira me olhou incerta, ainda parada onde estava. Eu queria que chegasse mais perto, mas algo em seu olhar demonstrava que ela estava dividida. — Não posso passar a mão na cabeça de Chris, não seria seu amigo se o fizesse — sorri sem humor.
Talvez ele nem fosse mais meu amigo e aquela preocupação fosse apenas um apego meu com as lembranças da nossa infância. Só conheci Chris até a adolescência; a partir dali, eu desconhecia o homem que ele havia se tornado com o passar do tempo. O Chris que eu considerava um irmão não era aquele tipo de pessoa, ou pelo menos eu não tinha percebido antes o que ele se tornaria no futuro. Reconhecia que, ao lado dele, minhas implicâncias com eram muito mais intensas, mas, na época, eu achava que era porque eram dois contra uma e que era uma chorona.
— Me desculpa — a encarei, mas ela desviou o olhar do meu. Me levantei, preparando-me para ir até ela e quebrar a distância entre nós, porém, deu passos para trás. — Não só por hoje, mas também por todas as minhas implicâncias idiotas. Principalmente quando Chris estava lá em casa.
A loira assentiu e voltou a derramar lágrimas, ainda olhando para o chão enquanto comprimia os lábios. Respirei fundo e decidi lhe dar espaço, ao mesmo tempo que queria tomá-la nos braços. Me sentia fraco ao vê-la daquela forma, e saber que não conseguia fazer nada para ajudar me deixava pior ainda. já não me deixava saber o que sentia; quando se tratava de seu passado e o que a machucava, então, erguia muralhas em volta de si e não deixava ninguém se aproximar.
— Ah, e não se preocupe, o pai de Chris não vai tirá-lo da cadeia tão cedo. Deve estar farto das palhaçadas dele.
respirou em alívio antes de me ver sumir escada acima.
Troquei de roupas dentro do closet, achando que ela subiria logo depois de mim. Ainda sozinho no quarto, fui até o banheiro, onde joguei uma água no rosto a fim de dissipar um pouco da tensão das últimas horas. Escovei os dentes e me deitei, sentindo não só a cama, mas o quarto inteiro gélido sem a presença dela ali. Virei-me para o lado oposto da porta e encarei o relógio digital, que já marcava uma e meia da manhã.
Logo adentrou o quarto parcialmente escuro e andou até o banheiro. Pude ouvir quando trancou a porta, fazendo-me suspirar. Nem em nossos primeiros dias de casados naquela casa ela fazia aquilo. Fiquei de olhos bem abertos, encarando a luz que saía pelas frestas da madeira branca. demorou ali; quando saiu, já de cabelos soltos e caídos pelas costas, foi direto para dentro do closet.
Ela não acendeu a luz, apenas remexeu algumas peças lá dentro e permaneceu naquele silêncio torturante enquanto esteve fora do meu campo de visão. Me surpreendi quando ela regrediu os passos, parando próximo da cama.
— ? — chamou. Murmurei algo, esperando que ela continuasse. — Me ajuda com o vestido?
Suspirei de olhos fechados antes de atender seu chamado, sentindo meu coração se acelerar a cada centímetro que meu corpo se aproximava do dela. Quando coloquei minhas mãos nela, senti tensionar os ombros e respirar fundo, tirando os cabelos do caminho. Derrotado, percebi que ela só tinha me pedido aquilo pelo fato do zíper estar emperrado e saber que não conseguiria tirá-lo sozinha. Com um pouco de força, ele me obedeceu, descendo e abrindo a parte de trás, revelando sua pele quente. Tão quente que eu sentia seu calor emanar sem sequer encostar nela.
Não resisti a ideia de tê-la tão próxima de mim e não poder tocá-la. Se aquilo era um castigo do Universo pelo fato de eu tê-la magoado naquela noite, eu sentia muito, mas não aceitaria aquela penitência. Pelo menos não até que ela me pedisse para me afastar, apesar do medo que me causou ao ouvir o que disse horas atrás. Eu me via na necessidade de tentar reverter aquilo de alguma forma. Não conseguia aceitar.
Deslizei devagar os dedos pelas alças do vestido, empurrando-as para os lados, vendo o tecido se arrastar por sua pele e deixar seu corpo, que ainda continuava estático diante de mim. Inspirei seu perfume e encostei o nariz em sua nuca, assistindo os pelos de seus braços se eriçarem. Senti como se eu estivesse numa estufa de rosas com aquele cheiro maravilhoso. De olhos fechados para apreciar cada detalhe dela, depositei o primeiro dos três beijos pelo seu ombro enquanto empurrava o vestido para baixo, passando-o de seus quadris e calcinha, largando-o quando tive certeza de que ele iria ao chão.
suspirou em meio ao escuro. Então, a fala de Dafne me veio à mente. Era um momento bem inoportuno para aquilo, mas eu conseguia ouvir com clareza sua voz me repetir que eu não deveria desistir tão fácil. Era estúpido pensar que ela estava falando sério de um casamento, e nossa situação era muito diferente naquele momento. Mas o conselho não deixou de ser válido.
— Você realmente quis dizer aquilo? — toquei sua cintura, sussurrando em seu ouvido. ofegou, tirando ambas minhas mãos de sua barriga desnuda.
— , não… — girou os calcanhares, levantando a cabeça para tentar me enxergar de perto. Eu mal podia ver seu rosto, mas sabia seus traços de cor: eu a imaginava com a mesma expressão que ela fazia quando iria me negar algo.
Estava cansado de ouvir “nãos” vindos dela. Cansado de ter que perguntar se ela realmente queria estar comigo ao invés de apenas ouvi-la falar por conta própria. Sinceramente, não entendia o motivo de eu ainda estar ali, querendo-a e procurando tê-la, se sempre demonstrava o contrário.
Apesar disso, mesmo que ferisse meu ego insistir tanto, eu iria fazê-lo. Era uma dor suportável comparada ao modo como me sentiria dali para frente, caso eu aceitasse calado que desse um fim no que tínhamos.
Dava para ver que estava com medo daquela vez, provavelmente com receio de voltar a sofrer como no passado que ela escondia tão bem de mim.
— Me diga o que há de errado, por favor, . Me deixe ajudar — peguei-a pela cintura, colando seu corpo seminu ao meu.
— E-Eu não preciso de ajuda nenhuma — ela fez pressão com as palmas das mãos em meu peito, fazendo-me deixá-la ir. Meu Deus, como era difícil. parecia um punhado de areia escapando pelas frestas entre meus dedos. — Eu preciso pensar.
Assenti, pegando seu rosto e tendo sua mão sobre meu braço, que tentava se desvencilhar de meu toque.
— Pensa com carinho, sim? — pedi. Sua mão se afrouxou, permitindo-me aproximar meu corpo do seu. Engoli em seco a vontade de tomar seus lábios e me limitei a apenas depositar um beijo em sua testa. — Não quero ficar longe de você…
— , por favor, não faça isso ser mais difícil do que já está sendo — argumentou, em meio a um sussurro falho.
Assenti, duvidando sinceramente de que estava sendo difícil para ela fazer aquilo, já que, usando suas próprias palavras, eu era algo banal. Me afastei e levei as mãos à cabeça, esfregando meu rosto com força antes de voltar a me afundar em meio às cobertas, calado.
Após se vestir, se deitou do outro lado, o mais longe possível na cama. Decidi fechar os olhos e tirar meu time de campo por hora. Estava arrependido, me sentindo um otário por ser tão teimoso e ter mudado de ideia sobre minha decisão de esperar a poeira baixar.
Ter pressa ali não iria adiantar nada.
Caí no sono um tempo depois. Ao mudar de posição na cama, dei de cara com ainda acordada, de barriga para cima, encarando o teto enquanto torcia a ponta da coberta entre os dedos. Voltei a fechar os olhos, abrindo mão de me preocupar com ela naquele momento.
Quando os abri de volta um tempo depois, os arregalei ao ouvi-la gritar e se debater contra a cama. Os cabelos loiros grudavam-se na testa e ambos os punhos estavam fechados. Seus braços se chacoalhavam, como se estivesse tentando bater em alguém ao mesmo tempo em que esperneava violentamente.
Enfrentei alguns de seus socos e chamei-a em voz alta, conseguindo despertá-la do que se parecia muito com um pesadelo terrível. Caí sentado sobre a cama ao ter meu corpo atingido pelo seu, numa velocidade que não me deu tempo de me preparar para o impacto. se encolheu em meus braços como um animal indefeso. Tremia e chorava incessantemente, fazendo-me apenas acolhê-la em meus braços e apertá-la contra meu peito, que, naquela hora, já estava molhado com suas lágrimas.
— Está tudo bem, , foi só um pesadelo — afaguei suas costas, após esperar que ela se acalmasse. Mas isso não parecia estar acontecendo, já que eu podia sentir seu coração acelerado até demais batendo dentro do peito. — Vou pegar um pouco de água pra você — tentei sair de seu abraço apertado.
— N-Não, por favor, fica a-aqui comigo.
Assim como fez no dia da invasão, se grudou em minhas roupas para me manter ali. Estiquei-me para acender o abajur, encontrando-a num estado caótico, com o rosto banhado em lágrimas e muito vermelho. Seus olhos azuis permaneceram arregalados desde que se abriram e, naquele momento, vagavam pelo quarto escuro como se estivessem checando se tinha mais alguém ali.
— Eu só vou lá embaixo, não precisa se preocupar — tentei tranquilizá-la, mas parecia que eu estava falando sozinho. continuava a olhar para os lados. — Não tem ninguém aqui, só você e eu — peguei seu rosto, olhando em seus olhos.
— Então me leva com você — pediu em desespero.
Assenti e deixei a cama ao lado dela, que ainda não tinha desgrudado as mãos da minha camiseta.
Descemos as escadas em meio a escuridão, com apenas a lanterna do celular iluminando o caminho. continuava paranoica, praticamente se fundia com meu corpo, e permaneceu naquele estado até que chegássemos à cozinha. Com as luzes acesas, a guiei até o balcão e puxei uma das cadeiras para que ela se sentasse.
Enquanto enchia o copo de água, vi minha esposa cobrir o rosto com as mãos e apoiar os cotovelos, com os cabelos completamente bagunçados caindo pelos ombros e tampando a visão do que restou de sua testa.
— Aqui.
Sua mão trêmula recolheu o copo, revelando seu rosto molhado novamente. Ela bebeu a água em desespero, dando para ouvir sua respiração acelerada. Respirei fundo, olhando para longe em agonia.
— Já chega, . Eu preciso saber o que está acontecendo pra que eu possa te ajudar.
A loira deixou o copo de lado, negando com a cabeça veementemente ao mesmo tempo em que o choro desenfreado retornava. Desmontei minha pose autoritária e me sentei na cadeira ao lado, virado para ela.
— , por favor, me diga o que há de errado — pedi pela segunda vez naquela noite. — Eu sei que posso ajudar, sua mãe me disse que eu podia. Me deixe ao menos tentar — implorei, já em desespero.
Eu não aguentava mais viver com aquela dúvida, principalmente depois da confusão que passamos e ver o quanto aquilo afetou , a ponto de lhe causar aquele pesadelo terrível. Se alguém a machucou, eu precisava saber. Nem que fosse para ir atrás do desgraçado e fazê-lo pagar com minhas próprias mãos.
voltou a se lançar contra mim, escondendo-se em meu peito e causando-me uma sensação horrível ao vê-la tão frágil. nunca foi daquele jeito, nem aos oito anos, quando eu, aos doze, a provocava dia e noite. Ela sempre foi forte, bateu de frente comigo e até me batia! chorava quando brigávamos, mas era de ódio! Naquele momento, em seu semblante, eu só conseguia ver sua expressão de dor. Chegava a se encolher em meus braços enquanto soluçava audivelmente.
— Por favor, , eu odeio te ver assim — afaguei suas costas, afastando seu corpo do meu em seguida. — Olha pra mim, eu sou o seu marido. Você sabe que pode me contar qualquer coisa — seus olhos vermelhos me encararam em dúvida. — Confie em mim. Sei que nos odiávamos antes, e talvez te pedir isso agora soe como um grande sacrifício, mas, por favor, me conte o que aconteceu com você.
's point of view.
Olhei para o rosto à minha frente e não consegui evitar de pensar em me jogar em seus braços pela terceira vez, para não me sentir desamparada como estava me sentindo naquele momento, em que eu não tinha mais seu peito para me aconchegar. Estava ficando mal acostumada com ele ali, me apertando contra si e me dizendo todas aquelas coisas; com sua mão estendida para me levantar daquele buraco fundo em que eu me encontrava.
Aquela vala foi cavada com o passar dos anos. Quanto mais funda ela ficava, mais em silêncio eu permanecia sobre aquele assunto. Eu não tinha ninguém para conversar sobre aquilo. Quando era menor, já pensei em falar para alguém sobre as surras que meu pai dava em minha mãe toda semana; porém, sempre fui silenciada por ela.
Apesar de odiar aquele segredo com todas as minhas forças – e ter certeza de que ele me sufocara durante todos aqueles anos –, sempre o mantive guardado a sete chaves. Saber que minha mãe me odiaria se eu me atrevesse a contar, ou imaginar que tanto Grace quanto minhas colegas de escola não me entenderiam por terem uma família perfeita, me ajudaram naquele processo. Até porque, quando eu estava fora de casa, não tinha que me lembrar das coisas que passava lá dentro. O mundo fora daquelas paredes frias era uma grande válvula de escape.
Nunca tinha sido colocada contra a parede como estava fazendo comigo, muito menos questionada. Aquele assunto nunca esteve presente na bolha de amigas ricas que Grace me introduziu na adolescência.
— Me conte o que tinha nesse sonho — ele insistiu, tirando meus cabelos grudados do rosto.
Seu toque delicado me acariciou a bochecha, amolecendo-me e me instigando cada vez mais a parar de resistir àquela ânsia de soltar tudo para fora, como eu não sentia há muito tempo.
Cheguei a ensaiar como contaria para Grace, mas sempre recuava na hora H por medo. Porém, as coisas eram diferentes antes. Agora eu estava longe daquela casa, na minha casa, sem correr o risco de ter que voltar a dividir o teto com aquele homem. Eu trabalhava, era independente e, principalmente, não era mais uma adolescente temendo ser incompreendida.
Depois de ver que tinha denunciado seu amigo de infância, senti que ele conseguiu retomar ao menos um pouco da confiança que eu tinha nele. O que mais fez foi cuidar de mim naqueles primeiros meses juntos. E se não entendesse minha dor, bom, pelo menos eu poderia desabafar.
Esperei tanto por aquele momento, tanto, que meu coração chegava a errar as batidas, de tão acelerado e ansioso para se ver livre de todo aquele peso que o maltratou por anos.
— N-Não foi só um sonho — murmurei, checando sua expressão, que se tornou confusa. — Foi uma lembrança, que eu queria muito que fosse apenas coisa da minha cabeça — solucei, tomando fôlego para finalmente contar.
— Foi algum ex-namorado seu?
Neguei com a cabeça, quase rindo de desgosto.
— Bem que eu queria que fosse. Quem sabe assim eu poderia terminar de vez com ele, nunca mais olhar em sua cara ou ouvir sua voz — tentei secar meu rosto, respirando devagar para manter a calma. — Infelizmente, não consegui me livrar dele tão facilmente. Às vezes sinto que, mesmo aqui, quilômetros distante, ele ainda me persegue e consegue me assombrar. Afinal de contas, ele é o meu pai. E mesmo que eu o odeie com todas as minhas forças, ainda o enxergo nos meus traços refletidos no espelho ou quando presencio uma situação como a que vimos na festa.
não esboçou nenhuma expressão de surpresa ao finalmente descobrir quem era o homem violento que me maltratou e agrediu a pessoa que eu mais amava nesse mundo durante anos, destruindo minha infância e fazendo de mim a mulher desconfiada que eu tinha crescido para ser. Acho que ele mesmo devia perceber aquele meu comportamento involuntário, quando, mesmo sendo meu marido de mentira e com prazo para acabar, eu não o deixava se aproximar por temer que algum dia ele mudasse e se tornasse uma espécie de monstro, exatamente como acompanhei meu pai se tornar.
Não foi do dia pra noite, claro. Eu era muito pequena para saber como tudo aquilo tinha começado. Porém, me recordava de tentar mudar as coisas em casa quando percebi que havia algo de errado. Tentava ser uma boa aluna; assim, minha mãe não teria que se preocupar com meu rendimento escolar ao mesmo tempo que tinha que se cuidar e curar as feridas abertas por ele, semana a semana. Desenvolvi responsabilidade por mim mesma muito cedo, já que minha mãe trabalhava muito e eu falava com meu pai o mínimo possível. Já na época eu temia sua presença e achava que o irritava, quando, na verdade, eu era apenas uma criança querendo a atenção que ele queria dedicar ao álcool e aos amigos da rua.
Durante anos, tentei ser a filha que eles queriam que eu fosse, que qualquer pai e mãe desejariam ter em casa: era responsável, estudiosa e autossuficiente para não lhes dar trabalho. Tentei não desagradar durante muito tempo, mas me dei conta que eles não me mereciam. Eu tinha meus defeitos, mas sabia que era uma pessoa boa, esforçada, e, qualquer um que não enxergasse aquilo em mim, não tinha por quê estar ao meu lado.
— Até mesmo ouvir sua voz me proporciona flashbacks das coisas horríveis que ele fazia em casa. É como se sua simples existência fosse capaz de me aterrorizar — encolhi os ombros, sentindo calafrios como na última noite de Natal, quando ouvi sua voz e foi o bastante para me despertar gatilhos a noite toda em meus sonhos. — Tenho tido esses sonhos frequentes. Tive antes da viagem para Tulum, mas nunca tinha sido tão… assustador.
me olhava com atenção, percebendo meu estado só de pensar naquelas experiências. Ele pegou minha mão e a envolveu nas suas grandes e quentes, passando-me alguma segurança.
— É sempre igual — continuei. — Estou na minha antiga casa, como sempre trancada no quarto, tapando os ouvidos e esperando que tudo aquilo acabe para poder sair e me certificar que minha mãe está bem… Bom, “bem” não é a palavra que cabe a situação em que eu a encontrava quando ele finalmente a deixava no chão da sala.
O nó me subiu a garganta novamente. Eu não sabia como ainda tinha lágrimas para chorar, como meu coração ainda aguentava tanta dor. Relembrar tudo aquilo que lutei por meses para esquecer doía como a primeira vez. Eu esperava que o fato de estar despejando aquilo tudo a alguém e receber consolo amenizasse a sensação de desamparo que senti por muito tempo.
— Eu era só uma criança — meu queixo tremeu junto de minha voz. — Mas estava cansada de ouvir aqueles gritos, por isso eu vivia enfiada na sua casa, com Grace, e só voltava quando sabia que ele já teria saído para trabalhar.
— Meu Deus, — levou a mão restante ao rosto, horrorizado. — Eu sinto muito — seus olhos verdes marejaram, enquanto eu o assistia perceber que ele fez parte da pior fase da minha vida sem nunca ter se dado conta. — Me desculpa, por favor, me perdoe — levou o dorso da minha mão à boca, beijando-a ao derramar lágrimas.
— Ah, não se preocupe — funguei, secando seu rosto e tentando esboçar um sorriso terno. — Aguentar você implicando comigo não era nada comparado a ficar naquela casa.
costumava ser inconveniente até demais quando eu passava praticamente todos os fins de semana com Grace, dormindo lá e fazendo as refeições na mesa como se fosse da família. Ele perguntava na minha frente quando eu iria embora e implicava quando íamos para a sala ver TV, não o deixando jogar seu videogame. Margot nunca ligou para minha presença lá, até porque eu tinha minha mãe por perto me olhando enquanto trabalhava limpando a casa.
Apesar de ficar irritada com aquele comportamento de , eu não lhe dava ouvidos. Ele era só um adolescente estúpido que achava divertido implicar com alguém mais novo.
— Naquele dia específico, eu decidi arranjar um jeito de fazer meu pai parar. Sabia que ninguém mais poderia fazer aquilo, já que minha mãe não conseguia se defender, e os vizinhos sabiam e não faziam nada para ajudar — funguei, tendo as imagens perfeitas passando pela minha cabeça. — Esse momento sempre se repete, a hora em que eu abro a porta do quarto e saio determinada a ir até lá. Mas, no pesadelo, eu nunca consigo correr até a sala no fim do corredor. Sempre sinto sua presença se aproximar, os passos vindo até mim. E fico ali, paralisada perto da porta, esperando que ele aparecesse, mas ele nunca vem.
Eu sempre experienciava a sensação de saber que meu pai estava chegando bêbado da rua. Era aquele medo do que aconteceria da próxima vez: se ele iria direto pro quarto dormir ou se começaria uma briga com minha mãe.
— Dessa vez, eu consegui ir até lá. Esta noite, corri até ele e tentei puxá-lo pela camisa para distraí-lo e dar tempo de minha mãe se levantar e fugir.
Não aconteceu. Nem no sonho, muito menos na realidade.
— Ao invés disso, tive a ira dele direcionada a mim. Aquele homem me agarrou o punho com força, me assustando com o seu olhar raivoso. Tive tanto medo que nem consegui esboçar reação. Fui arrastada corredor adentro. Lembro de não conseguir acompanhar seus passos, por ainda não ser tão grande quanto ele e de ter tropeçado no meio do caminho. Ele abriu a porta em meio aos meus gritos e me arremessou contra o chão gelado, como se eu fosse um saco de lixo.
Não me achava capaz de me esquecer da cena de seu rosto em cima de mim, prestes a me desferir algum tapa quando caí ainda gritando e chorando copiosamente. Não sei o que poderia ter acontecido se minha mãe não tivesse chegado e feito o que tentei fazer por ela. Ela o levou pra longe, fechou a porta e se trancou comigo lá dentro.
— Não quebrei o meu braço numa queda de patins. Meu pai quebrou quando me jogou daquele jeito.
Lembro da minha mãe implorando para a vizinha me levar ao hospital, porque ela mesma não poderia ir sem levantar suspeitas para aquele desgraçado, que também não fez questão alguma de me levar. A mesma mentira foi contada para todos, inclusive para o médico.
— Eu não fazia ideia, .
Aproveitei-me mais uma vez do seu calor humano e me aconcheguei em seu peito, chorando mais um pouco e molhando seu pijama cinza. não parecia se importar com aquele detalhe; apenas me abraçava e emaranhava os dedos em meus cabelos, fazendo um cafuné suave.
Estava sentindo-me leve. Eu finalmente podia falar. Guardar tudo aquilo me fazia um mal imensurável.
— Sinto muito — ele sussurrou algumas vezes em meu ouvido, enquanto me balançava em seus braços. Fiquei ali por um tempo, soluçando contra ele e sendo consolada com paciência e calma. Tempo o suficiente para finalmente desacelerar as batidas do meu coração. — Me desculpe por não prestar atenção. Nós convivíamos com vocês duas, sua mãe praticamente morava em minha casa. Poderíamos tê-la ajudado se tivéssemos percebido algo.
Neguei com a cabeça em discordância. Não adiantaria nada. Apesar da ironia de ter acabado de brigar com por ele não querer denunciar Chris, justamente a pedido da namorada, no caso dela eu tive esperanças de ser sua primeira e última denúncia.
— Ela já recebeu todo tipo de ajuda. Já o denunciou diversas vezes, mas parece que ele tinha uma espécie de feitiço. Minha mãe o perdoava todas as vezes. Até hoje ela insiste em me fazer voltar a falar com ele e perdoá-lo também — argumentei, revoltada, me desvencilhando de seus braços.
Minha mãe já chegou ao ponto de me julgar por não perdoar o que ele me fez. Queria que voltássemos a ser a família que éramos antes de ele começar a beber e estragar tudo. Eu não me lembrava quase nada daquela época por ser muito pequena, e acreditava que nunca o veria como um pai ou um homem decente. Sinceramente, achava que ele nunca seria alguém assim, porque, para mim, ele nunca iria mudar.
Ele não quis ser meu pai durante anos e nunca foi julgado ou repreendido por isso. Mas quando eu me cansei e resolvi não querer mais ser a filha dele, fui transformada num monstro sem coração. Eu não tinha culpa, fui eu quem foi magoada.
— Nós não deveríamos ter ido a essa festa. Olhe tudo o que você passou esta noite por minha culpa — ajeitou meus cabelos atrás da minha orelha, encarando-me consternado.
— Só espero que, diferente da minha mãe, aquela moça consiga se livrar desse relacionamento e siga em frente bem longe de Chris — refleti, cabisbaixa.
Como eu queria que minha mãe se livrasse daquele traste… Ela era tão incrível, independente financeiramente. Mas, infelizmente, era dependente emocionalmente. Queria que ela fosse feliz, o que eu não achava que daria para ser ao lado dele.
— Vou tentar entrar em contato com ela pra ver se podemos ajudar com algo — murmurou, suspirando. Olhei para seu rosto sério e soltei um sorriso sem graça. — O que foi? — seu sorriso ladino revelou uma de suas covinhas.
— Me desculpa por ter te julgado mal.
assentiu, se inclinando até mim e beijando minha bochecha.
— Espero que eu consiga fazer algo pra te ajudar também. Se souber como, me deixe saber, por favor — ele pegou meu rosto, acariciando a região com o polegar.
— Você já ajudou, me ouvindo e tirando esse peso das minhas costas. Nem mesmo Grace sabia disso, . Eu precisava contar a alguém logo, isso estava me matando por dentro — respirei fundo, engolindo em seco. — Você me ajuda a esquecer quando se mostra ser esse pai maravilhoso pra . É a primeira vez que vejo um pai de verdade em ação. Fico muito feliz que ela tenha a oportunidade de ter um.
O sorriso que ele abriu quase lhe rasgou o rosto, que ficou vermelho enquanto esteve sem graça diante de mim. Uma das pouquíssimas vezes que presenciei aquilo, aliás.
— Você é o pai que eu sempre sonhei em ter.
Ele se aproximou, receoso. Seus olhos verdes focaram-se em meus lábios; porém, recuou, beijando minha testa ao invés de se arriscar em me beijar a boca depois da nossa discussão.
— Pode me chamar de daddy (papai), se quiser — não pude deixar de rir diante daquela fala. — Sentar no meu colo, mamar a…
— ! — exclamei já de olhos arregalados, sentindo o rosto esquentar. gargalhou, puxando-me para mais um abraço.
— Venha, vamos dormir — beijou o topo da minha cabeça antes de me soltar.
Quando o vi se levantar da cadeira, ofeguei já em receio. Depois daquele pesadelo, eu não sabia se queria fechar os olhos e dormir tão cedo. Tinha medo de ele voltar a assombrar meus sonhos.
pegou minha mão, levantou-me e me guiou pela casa escura escada acima. Deitei-me primeiro, escolhendo o lado que queria, e logo colei meu corpo no seu. Remexi a cabeça, nervosa, já encostada em seu peito e tendo sua mão afagando meu braço.
— Durma, , eu estou aqui com você — mexeu em meus cabelos, causando-me uma moleza instantânea.
— Obrigada — estiquei-me, selando minha boca na sua e pegando-o de surpresa.
Voltei a me encostar nele, tentando confiar no que me disse e me entregar ao sono, tendo a certeza de que não estaria só.
Capítulo 36
Abri os olhos sentindo-os ainda pesados, como se quisessem se fechar ao mesmo tempo em que meu corpo me mandava levantar por estar cansada de ficar na mesma posição. Era compreensível. Tinham se passado horas e horas, e eu nem ao menos sabia quanto tempo tinha hibernado naquela cama quente, que, naquele momento, estava fria sem o corpo deitado ao meu lado.
Não foi uma noite fácil. Tive mais alguns sonhos estranhos, nenhum que chegasse perto do de sempre, porém eram tão assustadores quanto. me acalmava quando eu me remexia demais. Ele voltou a me ninar em seus braços debaixo das cobertas quando acordei durante a noite. Se não fosse por ele, eu nem teria pregado os olhos; se estivesse sozinha, temeria fechá-los e encontrar aquele rosto novamente depois de tantos anos.
Andei pelo quarto parcialmente escuro e, já no banheiro, encarei-me diante do espelho, apoiando ambas as mãos sobre a pia. Meus olhos estavam inchados, resultado de tudo o que eu tinha chorado horas atrás. Sentia-me exausta mentalmente, com a cabeça fora do lugar, aérea. Nem parecia que todas aquelas coisas tinham acontecido numa noite só. Jamais imaginei como seria finalmente contar o maior segredo da minha vida a alguém. Eu não sabia o que esperar de dali pra frente e nem se gostaria que ele me tratasse diferente. Ainda era tudo muito confuso.
A única certeza que eu tinha era que aquela conversa tinha tirado toneladas das minhas costas.
Escovei os dentes, me despi e entrei num banho quente, lavando meus cabelos com resquícios do laquê da noite passada. Fiquei algum tempo ali, aproveitando a água morna que caía em minha cabeça à medida que eu esfregava meu couro cabeludo. Estava tudo tão calmo que aqueles poucos minutos chegaram a ser terapêuticos. Logo eu me vestia com um camisão qualquer, me preocupando apenas em pentear meus cabelos e vestir a primeira calcinha que vi na frente dentro da gaveta.
—“I just hope you see me in a little better light” (Eu só espero que você me veja em uma luz um pouco melhor) — desci os degraus devagar, ouvindo a voz um pouco rouca de cantarolar baixinho à medida que eu avançava para o andar de baixo. — “Do you think it's easy being of the jealous kind?” (Você acha que é fácil ser do tipo ciumento?)
Me aproximei ainda em silêncio, observando-o bater com a ponta dos dedos largos nas coxas com as dobrinhas à mostra da bebê. Ela se movimentava animada, deitada nas pernas dele, soltando pequenos gritinhos e murmúrios.
Às vezes eu achava que ela logo soltaria alguma palavra, de tanto que tentava se comunicar conosco. Tudo bem que era muito novinha para aquilo, talvez fosse apenas minha ansiedade falando alto em relação ao seu desenvolvimento.
— Oh, você está aí.
Lamentei quando os olhos verdes de focaram em mim e toda aquela cena adorável se cessou. Ele colocou sobre a cadeira de descanso colorida, montada próxima do sofá, e fechou o notebook na mesa de centro.
— Está melhor?
Olhei para o chão, sem jeito com a intensidade que ele continuou a me olhar. Eu não estava acostumada com toda aquela atenção de ninguém, muito menos a dele. Respirei fundo antes de voltar a retribuir, olhando em volta logo em seguida ao reparar no sol que fazia do lado de fora da casa.
— Melhor — murmurei, assentindo de modo fraco. Tentei sorrir, mas provavelmente falhando miseravelmente. — Que horas são? — minha voz saiu falha por conta do longo tempo calada. Olhei para novamente; se ela estava em casa, então tinha a pegado com as meninas, e claro, eu não estava junto para poder ir trabalhar.
— Venha cá — ele deu batidinhas no estofado ao seu lado, fazendo-me ir até lá e me sentar de pernas encolhidas no espaço entre as almofadas grandes e seu corpo quente. — São duas da tarde.
Arregalei os olhos instantaneamente.
— Meu Deus, o Sr. Williams vai me matar — levei as mãos ao rosto. Eu imaginava que estaria atrasada, mas não àquele ponto! Daquela vez eu realmente tinha ultrapassado todos os limites do sono, tinha praticamente hibernado.
— Tentei falar com ele quando fui buscar com as meninas, mas elas me disseram que ele teve uma emergência com a família e viajou pra cidade natal dele.
falar com meu chefe não adiantaria de nada. Infelizmente eu tinha faltado ao trabalho, e pior, justo num sábado! Com certeza descontaria o domingo junto, que era a minha folga. Tudo bem, eu não tinha mais os mesmos problemas financeiros de antes, mas ainda assim seria horrível enfrentá-lo quando eu retornasse.
— Disseram que ele volta na segunda à tarde — voltei a prestar atenção em , ainda preocupada, principalmente com as meninas que ficariam na lanchonete praticamente sozinhas. — Seu celular tocou, mas não consegui te acordar. Você passou a noite tendo pesadelos, . A culpa não é sua.
Lancei-lhe um olhar complacente. Eu sabia como as coisas tinham acontecido, mas ainda assim me sentia mal por ter faltado com a responsabilidade de estar lá.
— Até lá, tente não se torturar com isso, sim? — seus dedos me tocaram o rosto, erguendo meu queixo e me despertando das minhas paranoias.
Encarei o verde de seu olhar com pesar. Com certeza não seria um trabalho fácil tentar não antecipar a bronca que eu levaria na segunda-feira. Logo agora que eu tinha ajeitado meu horário certinho e não chegava atrasada nem um dia sequer!
— Eu vou tentar — suspirei, cabisbaixa. Justo quando tudo começava a dar certo, tudo tornava a dar errado de novo! — O que disse a elas?
— Disse que você não estava em condições de trabalhar hoje, que estava doente — explicou, e eu respirei aliviada ao ver que ele não tinha dado a entender o que houve noite passada. — Não se preocupe, , seu segredo está bem guardado comigo — sua mão fez menção de alcançar as minhas, repousadas em minhas pernas desnudas pela camiseta. Porém, ele a recolheu de último instante, receoso.
Lembrei-me da noite passada, principalmente da nossa pequena conversa enquanto ele me ajudava a me despir daquele vestido, mas não do jeito que planejamos no início da noite. Encare-o em silêncio. Como foi difícil negar seu toque e abrir mão de tê-lo perto quando eu mais precisava de alguém para me abraçar e me fazer sentir protegida.
Tinha dito que pensaria sobre nós, que não poderíamos mais ser amigos e mais outras trocentas coisas que eu nem me arriscaria a lembrar. Estava tão assustada! Tudo foi dito num momento de desespero ao me deparar com a possibilidade de ter defendendo homens como meu pai. A única coisa que se passou em minha cabeça foi a ideia de fugir dele sem ao menos deixá-lo argumentar.
Sua atitude quando fez a denúncia – e o modo como me pediu perdão até por coisas que não teve culpa – me fizeram entender que não compactuava com aquilo. Apesar de um tempo atrás eu duvidar piamente sobre isso, ele tinha um bom coração. A maturidade lhe caiu bem, principalmente depois de virar pai. estava se tornando um ótimo amigo; alguém para confiar mesmo eu sendo a pessoa mais desconfiada do universo quando o assunto era homens.
Talvez fosse a hora de baixar a guarda, eu sei. Já tinha tentado o mesmo há um tempo atrás, em Tulum, quando descobri aquela mentira dele. Mas, ainda assim, eu sentia que teria que começar a cooperar para que aquela amizade desse certo. Depois de vê-lo errar diante de mim e logo após se esforçar para se redimir, pude ver que talvez eu tenha sido muito dura com ele em todo o tempo que estávamos juntos naquele casamento.
Me inclinei em sua direção, tendo-o imóvel apenas me observando de perto. Esbocei um sorriso mínimo ao ter seu nariz tocando o meu e o tive ainda sério, olhando no fundo os meus olhos, numa expressão repleta de dúvidas. Selei nossos lábios devagar, sendo correspondida imediatamente quando uma de suas mãos agarrou minha nuca com possessividade, trazendo-me para mais perto, emaranhado os dedos em meus cabelos e causando-me arrepios.
— Pode me beijar se você quiser — murmurei contra sua boca e recebi outro beijo como resposta, daquela vez com sua língua acariciando a minha devagar, fazendo minhas pálpebras pesarem de tão serena e gostosa que estava a atmosfera que tínhamos criado com apenas alguns beijos.
“Não quero ficar longe de você…”
— Eu te quero perto — sussurrei ao tê-lo finalmente espalmando sua mão grande e macia em minha coxa, passeando devagar, acariciando toda a região até minha bunda, que foi apertada com vontade, arrancando-me um murmúrio de misericórdia para que ele pegasse leve.
continuava deitadinha a pouquíssimos centímetros, bem acordada e provavelmente atenta como sempre aos sons à sua volta. Entretanto, o que atrapalhou o beijo e fez com que eu me afastasse foi meu estômago falante, roncando alto e arrancando risos de nós dois.
— Está com fome, é? — disse contra minha boca, desferindo alguns selinhos enquanto me segurava pela nuca. Assenti sem graça, apesar de já prever que aquilo aconteceria. Afinal, eu tinha passado horas desacordada. — É bom que esteja mesmo, porque eu tentei cozinhar de novo.
— Isso sempre se parece muito com uma ameaça — gargalhei, percebendo que sempre jurava que estava certo quando afirmava que a fome era o melhor tempero do mundo. — Você não é tão ruim quanto pensa.
— Vamos lá tirar a prova, então.
Nos levantamos e pegou a bebê no colo, indo junto de mim até a cozinha até que limpa. Algo que eu gostava quando ele tentava cozinhar era que sua organização, diferente de mim, que sujava até mesmo o que não tinha usado no preparo da comida.
Me servi sem medo de colocar muito e me decepcionar; afinal, dei uma espiada na panela e estava com uma cara ótima, até mesmo o cheiro estava surpreendentemente bom. Sentei-me à mesa ainda sob o olhar analítico de , que se encostou no descanso da cadeira com a bebê deitada preguiçosamente em seu peito enquanto devorava o próprio dedo.
— Eu disse, está ótimo — limpei o canto da boca com o guardanapo.
Tudo bem, macarrão com queijo era uma das coisas mais fáceis do mundo de se preparar, mas eu estava sendo boazinha com ele e iria evitar desmerecê-lo só por aquele detalhe. Seu sorrisinho orgulhoso foi adorável.
— Eu tive uma ótima ajudante — desferiu um beijo no topo dos cabelos castanhos de , que soltou um murmúrio como se concordasse. — Ela já está tão crescidinha que já até dormiu fora de casa sozinha.
Ri em meio a minha mastigação, negando com a cabeça.
— Nem brinque com isso, ela ainda tem três meses. E se dependesse de mim, teria essa idade por anos.
Meu coração doía só de imaginar perder toda aquela manha que tinha, o jeito como ela gostava de ficar com a cabeça encostadinha no nosso ombro e o modo como ela parecia só ter olhos para nós dois.
Eu sabia que era uma visão completamente egoísta minha; esperava não ser a única mãe que lamentasse que um dia meu bebê cresceria. Devia ser por já prever o modo como as coisas perdiam a magia enquanto adquirimos consciência do mundo. E no caso de , ela conheceria a própria história, que, apesar de linda, ainda era triste demais para uma criatura tão pequena.
Apesar desse meu receio, não poderia dizer que não me pegava sendo contraditória ao comemorar cada evolução dela. estava numa fase de interagir com tudo à sua volta. Sempre fiquei fascinada em como o ser humano reagia a estímulos e desenvolvia os próprios instintos, mas ao conviver com um bebê, apenas conseguia ficar cada vez mais impressionada ao assistir tudo aquilo desde o início de seus dias.
— Ela ama te ver cantando, não é? — comentei ao reparar nos dois, que sempre estiveram grudados, mas naquele dia específico estavam juntos até demais. Até mesmo as cores das roupas estavam combinando. E sabendo o quão babão era, eu nem poderia cogitar a ideia de aquilo não ter sido proposital.
— Hoje eu deixei ela na mão — ele riu fraco, apertando a bebê nos braços. — A música está pela metade há anos. Acordei com ela na cabeça e tentei retomá-la depois de tanto tempo para enfim fazer um refrão, porém não consegui nada.
Eu sabia que apenas tinha ouvido algumas linhas, mas tinha curtido o pouco que tive delas; pelo menos o ritmo que ele cantava fora agradável. Não podia dizer que não era talentoso na música, nunca pude – inclusive era algo que me irritava muito quando era adolescente. Via todo mundo babando ele e sua banda e tinha que me fazer de indiferente, porque além de odiá-lo, ainda namorava Collin, seu rival nos shows de talento.
Depois de anos – e de descobrir que fui uma idiota por aceitar que ele me escondia dos pais por ser pobre –, eu podia admitir para mim mesma que não curtia sua voz tanto assim. Era anasalada, enjoativa. Agora que era amiga de , poderia até mesmo dar o braço a torcer e dizer que preferia a dele. Principalmente depois de experimentar ouvi-la de todos os jeitos possíveis, desde seus sussurros, tê-la ofegante e já ter me deliciado com seus murmúrios e gemidos.
Compará-lo a Collin chegava a ser covardia. Não sabia como eu conseguia chegar a ficar excitada com o modo broxante com que meu ex gemia, isso quando ele o fazia! Na maioria das vezes, parecia que eu estava transando sozinha. Claro que naquela época eu ainda era muito nova para reconhecer que era ruim, ou até mesmo tinha vergonha de reclamar quando algo não me agradava na cama. Talvez por gostar muito dele, ou estar completamente cega pelos sentimentos que um dia já senti por ele. Sozinha de novo, é sempre bom acrescentar.
— Sobre o que era? — perguntei rapidamente ao notar onde meus pensamentos estavam me levando sem que eu mesma percebesse. , que também estava absorto no próprio mundo, me encarou em dúvida. — A música, sobre o que era? — ofeguei em desespero, esperando conseguir prestar atenção em sua explicação quando ela saísse de sua boca.
Minha cabeça estava insistente, tentando me levar de volta às minhas lembranças mais deliciosas ao lado do homem que estava sentado à minha frente, COM A NOSSA FILHA NO COLO. Eu devia ter a decência de respeitá-la! Mas, por algum motivo, sua fala de ontem à noite me veio à cabeça e eu me deparei com um sentimento que se assemelhava muito à saudade, mas também me fazia passar mal como uma abstinência em drogas.
Fazia muitos dias desde que transamos naquele avião, muito tempo que apenas trocávamos beijos e, mesmo que tivéssemos os corpos colados um no outro, nada muito além acontecia. Os últimos dias foram intensos demais para que pensássemos em sexo, mas depois de passar por todos eles e sair “inteira” de tudo aquilo, a única coisa que eu desejava era me cansar com uma noite regada a sexo. Eu precisava relaxar e aquela era a forma mais tentadora que eu parecia encontrar; pelo menos ao tê-lo parado na minha frente, fazendo absolutamente nada de mais.
Desviei o olhar de seu rosto e reparei que estava encarando sua boca por tempo demais, perdendo o começo de sua explicação.
— … ela terminou comigo e eu admito que fiquei meio melancólico na época.
Perdi a parte em que ele dizia quem era a minha mais nova heroína, porque para fazer o da época da escola ficar mal com um término, ela devia ser muito incrível mesmo.
sempre teve muitas namoradas. Era até estranho vê-lo se lamentar de um passado que, se tinha, escondia muito bem quando o assunto era inseguranças ou até mesmo corações partidos. sempre me pareceu inabalável pelos corredores. Ele tinha quem quisesse: amigos, garotas e até mesmo privilégios por culpa da conta bancária do pai.
Na época, a vida dele realmente parecia perfeita aos meus olhos, e aquilo só me fazia odiá-lo ainda mais.
— Eu sempre redirecionava o que sentia para a música — ele continuou. — Era um jeito de desabafar sem que ficasse perceptível que eu estava sofrendo.
O que realmente encobria seu sofrimento era sua fila movimentada de pretendentes, não as letras de suas músicas. Acho que naquela época todo mundo encarava o que cantava nas músicas da banda como sendo coisas fictícias. Até mesmo quando ele cantava sobre amor ou estar apaixonado.
Me perguntei então em quem ele tinha pensado quando escreveu Sunflower, a composição que Collin mentiu sobre ter escrito para mim. Era uma letra tão linda que lembro de ter morrido de amores por ele no mesmo instante em que ouvi. Mal sabia eu que estava, na verdade, agindo feito uma boba apaixonada pelo cara errado.
O que na época poderia muito bem ter me causado um ataque cardíaco se tratando de quem era o verdadeiro compositor.
— Você nunca foi muito bom com palavras, não é? — o analisei, vendo-o arquear as sobrancelhas em minha direção. — Quero dizer, escrevendo sim, mas eu digo falando — me enrolei levemente, rindo fraco. — Grace sempre reclamava sobre isso quando vocês brigavam. Ela dizia que você a deixava sem graça quando a mimava logo depois, porque simplesmente não conseguia admitir que estava errado. Grace estava lá te odiando, enquanto você apenas se redimia sem avisá-la.
sorriu triste, deixando suas covinhas à mostra.
— Às vezes acho que eu deveria ter conversado mais com ela.
Neguei com a cabeça, discordando. Eu era a pessoa com quem Grace mais falava, a ouvia por horas e horas e, mesmo assim, eu tinha a mesma sensação de não tê-la aproveitado direito quando ela se foi.
— Deveria ter dito que a amava mais. Ironicamente, foi a última coisa que ela ouviu de mim quando estava sendo levada para o centro cirúrgico. Me lembro muito dos olhos dela brilhando em lágrimas e do sorriso que ela me deu antes de sumir da minha vista.
Estiquei-me e peguei sua mão por cima da mesa. Lhe sorri chorosa, acariciando sua pele e compartilhando da sua dor, que, apesar de fazer meses, ainda parecia doer como se tivéssemos acabado de perdê-la.
— Eu tenho certeza que ela sabia o quanto você a amava — funguei, esperando que aquilo o confortasse. — Essa é só sua linguagem do amor, o jeito como você demonstra o que sente, e está tudo bem ser assim.
Com ele era literalmente demonstrar.
Como dito antes, não era bom com palavras ou declarações. Apesar de ser falante demais, quando ele parecia dizer o que sentia, ainda era difícil identificar se falava sério ou estava apenas afetado pela situação em que estávamos. Como por exemplo todas as coisas que saíam de sua boca quando estávamos juntos.
Apesar de sentir tantos arrepios e ficar completamente molhada com tudo o que sua voz rouca sempre me falava ao pé do ouvido, eu sabia bem de seu histórico com palavras ditas da boca pra fora – em minha cabeça, era apenas coisa de momento.
O que me dizia com certeza que suas intenções eram certas, o que me fez decidir baixar a guarda em relação a ele foi justamente o que demonstrava sem precisar abrir a boca. O jeito de olhar, falar, o instinto em proteger – tudo aquilo e mais outras ações vindas dele eram provas do que ele sentia. Mas apesar de vê-las todas nitidamente acontecendo no nosso dia a dia, eu ainda me mantinha com o pé atrás por não saber direito como interpretar.
— E quanto a você, ? Qual sua linguagem do amor? — seus olhos verdes focaram-se em minha mão sobre a sua em cima da mesa. Senti um nervoso estranho, quase como um frio na barriga que me fez interromper o toque imediatamente.
— Acho que não tenho uma — respondi sem graça, com o rosto queimando e procurando um jeito de disfarçar minha reação estúpida a uma pergunta tão boba.
— Mas é claro que tem! — ele riu fraco, ajeitando em seus braços. — Todo mundo tem uma.
— Eu não fui ensinada a demonstrar, muito menos a falar — encolhi os ombros, percebendo o nível de estranheza que devia ser me ouvir falar aquilo. Afinal, tinha razão: todo mundo tinha um jeito próprio de expressar o que sentia de um modo que era nítido para quem observava de fora. — Sempre foi muito complicado me expressar dessa maneira.
Era esquisito pensar em como eu tinha conseguido ter dois namorados na vida. Me dava muito bem quando conhecia caras com quem eu não teria muito contato depois de dormirmos juntos, mas quando o assunto era ceder, admitir sentimentos, me abrir e me permitir parecer frágil diante de algum deles, eu travava. Meus dois únicos relacionamentos só aconteceram por insistência dos namorados que tive. Eu estava apaixonada e, na época de Collin, até demais; porém, não sabia o que fazer com o sentimento que tinha.
Eu reclamava de , mas conseguia ser mil vezes pior que ele!
— Quem te fez pensar assim? — sua pergunta me fez olhar confusa para seu rosto sério. Dei de ombros mais uma vez, encontrando dificuldades para falar algo que sentia dentro de mim há muitos anos.
— Todo mundo — engoli o choro que me subiu a garganta, piscando rapidamente a fim de dissipar as lágrimas que me surgiram nos olhos.
Eu me sentia estúpida por tentar procurar culpados por eu ser do jeito que era. As pessoas com quem vivi durante anos sempre me fizeram parecer errada por ser do jeito que eu era, fechada demais, rancorosa demais. Sempre parecia um sacrifício conviver com alguém como eu, e eu sabia que às vezes poderia ser. O quão difícil deve ser amar alguém e não saber se essa pessoa te ama de volta?
— Menos Grace, ela foi a única pessoa na minha vida que não me fazia parecer difícil de ser amada — respirei fundo e encarei uma das paredes da cozinha, ainda segurando com todas as minhas forças as lágrimas que estavam à beira de transbordar pelo meu rosto inteiro.
Incomodada, evitei durante um tempo olhar para . Quando voltei meus olhos para os seus, ele continuava a me encarar do mesmo jeito sereno de antes.
— Isso não é verdade, — disse, e eu sequei o rosto rapidamente, fungando ao encará-lo ainda consternada. — Olhe pra . Ela é apenas um bebê de três meses e já te ama mais do que qualquer coisa no mundo.
A bebê me olhava com aquelas pequenas esmeraldas brilhantes enquanto continuava a babar a própria mãozinha. Sorri fraco ao contemplá-la, sentindo meu coração se aquecer aos poucos.
— E ela não sabe se expressar ainda, muito menos falar, mas não precisa de muito pra saber que ela te ama.
— É diferente, eu sou a mãe dela — argumentei, fungando ao rir fraco.
Era óbvio que me amava! Eu era uma das poucas pessoas que ela conhecia.
— Não é, . Pouquíssimas pessoas fariam o que você fez por ela e por Grace. Você é uma amiga sensacional, uma mãe incrível, tem um coração enorme e, por mais que me irrite ter que te pressionar para saber o que você quer de vez em quando… — arqueei as sobrancelhas, soltando um riso de puro nervosismo. — Sério, estou cansado de tanto te ouvir me dizendo não — ele realmente falou sério, fazendo-me encolher os ombros ao assumir que eu fazia aquilo por não saber o que fazer ou dizer às vezes. — Eu vou continuar insistindo, porque sei que você é assim, mas que uma hora irá se abrir.
Olhei para o prato à minha frente e remexi a comida já sem muita fome, quebrando outra vez o contato visual com na tentativa de mascarar minha reação ao que acabara de ouvir. Comprimi os lábios, freando o sorriso besta que lutava para ficar escancarado. Ok, aquilo tinha sido bonitinho da parte dele.
— Obrigada por ter paciência.
Devia ser obrigatório ter um pouco em qualquer uma das relações humanas. O mais bizarro de tudo era encontrar aquele item justo na pessoa que menos imaginei que se esforçaria para me compreender na vida.
— Prometo tentar melhorar, assim como você.
assentiu, compreensivo. Ele nitidamente não era o mesmo de quando Grace reclamava de sua falta de comunicação. Acho que se não fosse por ele tomar as iniciativas, ainda estaríamos nos matando pela casa. Aquele crédito era todo dele, por mais esquisito que aquilo pudesse soar para mim.
— Acredite, não é tão difícil como parece — riu fraco, fazendo-me acompanhá-lo. Não era mesmo. Desde ontem estava conseguindo me abrir um pouco com ele, aos poucos ganharia mais confiança. — E quanto às outras pessoas da sua vida, ... foda-se, você não deve nada a eles.
— Na verdade, acho que eles é quem me devem algo.
Um pedido de desculpas, talvez?
Eu sabia que não era perfeita e que talvez pudesse ter machucado alguém sem ter a intenção de fazê-lo; porém, no caso deles… Collin claramente sabia que era errado me esconder dos pais por vergonha da minha classe social, fora todas as mentiras e os chifres que me colocou. Meu outro ex tinha noção do quanto me rebaixava, e mesmo assim o fazia sem remorso aparente. E meus pais… Bom, eles tinham ciência do quão prejudicial era o ambiente no qual me criaram, e não pareciam dispostos a olhar para trás e enxergar que me fizeram mal.
— Acho que eu deveria parar de esperar algo deles — concluí, já cansada de pensar sobre aquilo.
Não era minha primeira vez refletindo sobre as pessoas do meu passado. Todas as vezes que me forcei a pensar neles daquela forma, meu peito doía e tudo se assemelhava a uma tortura física.
Não aconteceria nada daquilo, e era por aquele motivo que eu deveria seguir em frente.
ficou em silêncio, me avaliando enquanto eu me mantive naquele estado de espírito triste e deplorável. Eu não gostava muito de refletir sobre aquelas coisas. O passado que tinha deixado em nossa cidade natal raramente me revisitava. Eu era muito mais feliz desde que cheguei a Londres, e tentava me esquecer de tudo o que me deixava do jeito que estava naquele momento.
— Bom, o que vamos fazer hoje pelo restante do dia? — passei as mãos pelo rosto, forçando um sorriso ao virar o pescoço e encarar o céu azul que fazia do lado de fora da janela de vidro.
— Eu e estávamos conversando agora há pouco — franzi o cenho, vendo sua expressão de cinismo reinar enquanto a bebê estava alheia a nós dois —, e combinamos de ir ao parque juntos — torci o nariz de imediato. — Não esse parque do condomínio. Estávamos pensando em ir pra longe daqui, sabe? Passear um pouco de carro. Ela me disse que adora andar de carro, até dorme no caminho.
Pior que era verdade. amava o balanço que o veículo fazia.
— Ela é uma bebê bem falante, não? — apoiei o queixo em minha mão, prestando atenção na idiotice de . Ele permanecia sério, como se realmente relatasse um bate-papo entre os dois.
— Oh, sim, é meio difícil fazê-la calar a boca — confidenciou, falando num tom mais baixo, como se pudesse entendê-lo. Não consegui segurar a risada. — Mas enfim, queríamos saber se você está a fim de ir conosco — balbuciou algo, chamando nossa atenção. — Claro, se não for te atrapalhar…
alternou seus olhos verdes na bebê e depois em mim, rindo minimamente ao perceber que eu negava com a cabeça, reprovando falsamente sua brincadeira. Ele parecia uma criança inventando histórias aleatórias com direito a até falas imaginárias. Levantei-me, peguei meu prato e fui colocá-lo na pia ainda sob seu olhar.
— Acho que tenho um espacinho na minha agenda — ajeitei minha cadeira, vendo-o se levantar e vir até mim acompanhado da menina, que logo iniciou uma série de murmúrios como se estivesse querendo falar de verdade.
— Viu, ? Sua mãe é uma mulher muito ocupada — revirei os olhos ainda rindo. — Da próxima vez precisamos marcar um horário com ela — provocou, “envenenando” a menina contra mim. Arfei ofendida, tratando de me retratar com .
— Não, meu amor, pra você eu estou disponível sempre — beijei sua testa, afagando sua barriguinha. — Não ouça seu pai, homens são mentirosos.
— Que calúnia — ele exclamou, fingindo-se. Depois se aproximou, dando mais passos próximo de mim, e eu mantive o contato visual, tentando ficar impassível. — Então senhora está disponível só pra ela? — arqueou as sobrancelhas, provocando-me um frio na barriga involuntário ao ter sua voz mansa soando tão próxima ao meu ouvido.
— E o que o senhor quer comigo, afinal? — mordi o lábio inferior, disfarçando o sorrisinho que queria dar. Elevei meu queixo, olhando no fundo de seus olhos claros.
— Creio que ainda não tenha idade o suficiente para presenciar uma conversa com o teor das coisas que estão se passando pela minha cabeça agora — a malícia com que ele murmurou tudo aquilo me fez ofegar ansiosa, mesmo que não tivesse previsão alguma de quando poderíamos realizar todas as coisas sórdidas que planejava fazer comigo quando pudéssemos.
— Sendo assim, acho que podemos marcar uma reunião pra mais tarde, quem sabe — dei de ombros, selando meus lábios contra os dele, que tomaram os meus devagar. usou a mão livre para me apertar a cintura, enquanto a outra ainda segurava a bebê no braço esquerdo.
— Mal posso esperar — ele mordiscou meu lábio, se afastando assim que reclamou de quase ser esmagada por nós, movendo os bracinhos e perninhas para chamar atenção junto dos seus gritinhos.
— Vá arrumar as coisas que eu já subo pra me trocar. Vou preparar alguns lanches pra levar.
Meu marido assentiu, roubando-me um selinho antes de ajeitar no colo. Ele deitou-a contra o próprio peito e me deu as costas, me dando a visão de seus olhinhos me espiando por cima do ombro do pai, que se afastava indo em direção às escadas.
Suspirei, me dando conta do tanto que tinha conseguido desabafar com desde a noite anterior. Eu estava aliviada ao perceber que ele tinha razão. Não parecia ser um bicho de sete cabeças dizer ou demonstrar o que sente, principalmente quando se encontra compreensão e reciprocidade na pessoa que irá te ouvir.
Ele fez parecer tudo ser tão fácil. Parecia até que não tinha nada de errado comigo e que aquele momento que acabamos de ter, cheio de risos e beijos, fosse algo da nossa rotina de sempre.
E até era.
Sorri triste encarando o corredor vazio à minha frente.
Era tudo uma mentira.
's point of view.
Dirigi tranquilo pelas ruas da cidade, que pareceram colaborar para o nosso plano de relaxar em algum ponto, já que simplesmente não encontramos trânsito e nem nos estressamos na hora de arranjar uma vaga no estacionamento do parque. Não estava vazio, mas também não estava tão cheio. O clima agradável atraiu um público razoável para o local; porém, ainda conseguimos encontrar um ponto abaixo de uma árvore grande para nos abrigar do sol.
As tardes de sábado agitadas em que costumava passar jogando bola ou em piscinas rodeado de mulheres de biquínis pequenos e bronzeados exagerados foram substituídas por um piquenique simples. Bom, a única semelhança que tinha com o passado naquele momento eram as mulheres em cima de mim. Eu ainda parecia ter um ímã que as atraia, visto que tinha pego no sono deitada em meu peito, enquanto decidiu usar uma de minhas coxas como travesseiro para apoiar a cabeça e começar a ler um livro.
Afastei os cabelos ralos da bebê adormecida de seu rostinho, visto que estava calor até mesmo para mim, que usava uma camiseta fina e uma bermuda qualquer. Lamentei o fato de ainda ser tão dorminhoca, apesar de não gostar de pensar que a bebê logo iria crescer. Eu discordava totalmente e observava as crianças no parquinho ao fundo correndo pra lá e pra cá, desejando que logo fosse minha filha ali.
Eu sabia que ela daria muito trabalho solta daquele jeito. Fiz uma careta instantânea ao ver um garotinho tombar no chão enquanto corria atrás de uma bola. Admitia que tinha medo de que ela se machucasse, porém sabia que cair fazia parte do processo todo de perder o medo de andar com as próprias pernas. Queria muito que chegasse logo a fase em que pudéssemos interagir mais com , brincar de correr, ensiná-la palavras novas e todas aquelas coisas que me deixavam bobo de observar outras crianças fazendo.
— Olhe lá — levantou-se, sentando sobre a toalha e ajeitando o vestido soltinho que usava a fim de cobrir as pernas. Distraí-me com a visão e perdi o foco onde ela chamou minha atenção para ver. — Olha o tamanho da barriga dela, certeza que são gêmeos.
— Caralho — finalmente avistei a grávida, toda adornada de tecidos e uma coroa de flores posando para um fotógrafo posicionado logo à sua frente. — Já deve estar pra ganhar — comentei, lembrando-me de Grace e de como ela parecia prestes a explodir dias antes de dar a luz.
— Sei que é a coisa mais normal do universo, mas acho que nunca vou conseguir olhar pra uma grávida normalmente, principalmente depois daquele curso — comentou, ainda concentrada no ensaio que acontecia a alguns metros de distância de nós.
Encarei-a contrariado. Depois do show que deu em Tulum apenas com a possibilidade de engravidar, comecei a estranhar seu espanto. Sempre achei que iria querer ser mãe biológica algum dia, principalmente depois de vê-la cuidando de e amar tanto a experiência.
— Não vai querer ter mais filhos?
— Sim — se dispersou, voltando a me encarar. — Mas não deixa de ser assustador pensar sobre todo o processo para que isso aconteça — riu nervosa ao encolher os ombros, fazendo-me assentir em concordância. Eu agradecia todos os dias por ter nascido homem e não precisar sequer pensar na possibilidade de gerar outro ser. — E, também, será só daqui uns anos… Tudo é tão incerto ainda, não sabemos o que vai acontecer depois do divórcio.
Ajeitei-me, sentindo-me desconfortável encostado na mesma posição por muito tempo. Troquei o peso do corpo, ainda mantendo adormecida em meus braços.
— Mas você pretende se casar ou… vai ficar sozinha? — eu ainda me remexia ao perguntar sobre aquele assunto. Sentia-me esquisito, com o coração levemente agitado com aquelas suposições.
Era egoísmo demais da minha parte dizer que não gostava da ideia de ser substituído? Bom, se não era, ao menos soava como uma idiotice absurda; afinal de contas, aquele era o plano desde o início. Me irritei com Tom naquela noite tentando ficar em meu lugar naquela farsa, mas acho que não me sentia preparado para ver outro fazer aquilo de verdade. Para sempre.
Por mais esperado por nós que aquele divórcio fosse, passar por ele não seria nada fácil. Toda a mudança para uma outra casa e passar a viver sozinho, a partilha da guarda de e todo o estresse que aquilo causaria se parecia muito com uma grande dor de cabeça, principalmente após tanto tempo vivendo aquela mentira. Se já era estranho pensar naquela família se dividindo em duas com apenas três meses de existência, imagine depois dos nove meses completos.
— Acho que vou ficar só por um tempo — ela murmurou distraída. — Com as coisas vão mudar muito, né? Antes eu era solteira e livre, quer dizer, ainda sou — sorriu sem graça, enquanto eu ainda a olhava, atento à sua resposta. — Mas você sabe, homens não curtem muito mulheres que já são mães, e ela também é muito pequena. Não sei se confiaria em um desconhecido pra participar assim da vida dela junto de mim.
— Engraçado, com as mulheres geralmente é o contrário, não? Elas costumam achar sexy ver homens sendo pais. Quando estou com recebo bastante olhares.
me olhou com as sobrancelhas arqueadas.
— Não vai me dizer que usa pra paquerar mulheres por aí.
Neguei de imediato. Eu não precisava daquilo, nunca precisei, só tinha feito uma observação e dado um exemplo do cotidiano. Não entendi sua irritação repentina.
— Pelo amor de Deus, não use uma criança para isso.
— Como foi que consegui você mesmo? — retruquei, e riu instantaneamente, encarando-me perplexa antes de abrir e fechar a boca algumas vezes, sem palavras.
— E quem foi que te disse que você me tem? — ela arqueou as sobrancelhas e eu estreitei os olhos, espiando seu cinismo. Precisava falar depois de tê-la tido nos meus braços mais vezes que poderia contar com os dedos de uma das mãos?
sempre se esquivava daqueles assuntos bobos, como fez no banheiro após me ouvir falar algo sob influência do tesão. Minha, meu, ter ou não ter… Tudo aquilo eram apenas meras nomenclaturas, literalmente só palavras! Não sabia se falar em voz alta a fazia sentir-se uma posse minha, mas na minha cabeça não fazia sentido implicar com aquele detalhe. Não era algo palpável, que tinha um significado – era apenas um sentimento de pertencimento.
No momento em que a tinha colada com o corpo no meu, a sentia minha. Seus arrepios, gemidos, até mesmo sua respiração agia sob influência do meu toque, dos meus lábios e corpo. Todas as reações que causava em enquanto transávamos ou apenas trocávamos beijos eram minhas.
Assim como também era dona e proprietária de tudo o que o meu desejo por ela me despertava.
— Tá, você não quer me dizer — revirei os olhos, vendo seu sorrisinho crescer em seus lábios. Desferi um beijo casto ali, e ela se apoiou em um dos braços para se inclinar e aprofundar, invadindo minha boca com sua língua quente.
Sonsa, e ainda tinha coragem de ficar negando.
— Ainda — finalizei com um selinho, ouvindo sua risadinha quando ela se afastou e negou com a cabeça.
falava que eu não era bom com palavras, mas eu estava me esforçando desde que passamos a dividir o mesmo teto. Eu tinha literalmente me tornado outro com ela, numa mudança tão rápida que nem eu mesmo tinha percebido quando aconteceu. Porém, ela ainda mantinha suas travas consigo. Esperava que a conversa que tivemos mais cedo surtisse efeito logo.
Seus olhos azuis acompanharam interessados algo que tinha atrás da árvore em que eu apoiava minhas costas. Virei-me quando percebi seu olhar seguir um cara de bermuda preta empurrando uma bicicleta enorme, com uma tatuagem cobrindo a lateral do abdômen exposto.
Encarei de sobrancelha arqueada. Porra, na frente de ? Tudo bem, ela estava dormindo, mas… e se ela acordasse e flagrasse a mãe secando um descamisado no parque daquele jeito tão explícito?
— O que foi? Estou olhando a bicicleta! — ela se defendeu, voltando a encarar o par de rodas enorme. — Ela é linda! Sinto falta da minha Amy.
— Essa bicicleta é alugada aqui no parque — observei, vendo o logotipo impresso na lateral da bicicleta verde. me encarou esperançosa, piscando seus olhos azuis pidões, fazendo-me suspirar. — Você vai vestida desse jeito? — olhei para seu vestido, atraindo seu próprio olhar para si.
— Eu prometo cuidar pra não mostrar nada — insistiu, se aproximando de meu rosto, deixando-me desconfortável com seu jeito de me pedir aquilo. Parecia uma criança! — Por favor, por favorzinho.
— Vá.
comemorou, distribuindo beijos pelo meu rosto, fazendo-me censurá-la com o olhar ao ver se remexer em meu peito. A verdadeira criança ali, no caso.
— Cuidado para não cair, hein! — alertei, já tendo-a de pé diante de mim.
— Eu sou uma ótima ciclista, ok? — ela jogou os cabelos loiros e saiu rebolando sua bunda pequena para longe, fazendo-me suspirar com a visão enquanto percebia que a bebê despertava de seu soninho tranquilo.
Fiquei ali tranquilo com já bem acordada balbuciando coisas sem sentido nenhum apoiada em minhas coxas, brincando de fazer barulho de pum em sua barriguinha e fazendo-a gargalhar e espernear contente. Logo passava por nós parecendo uma criança feliz, adornada com um capacete cor-de-rosa enquanto ia em alta velocidade pra lá e pra cá. O ciclista descamisado a acompanhou em uma das voltas; acho que ele não estava enxergando a aliança na mão dela.
Já começava a escurecer quando minha esposa voltou sem a bicicleta e com um semblante cansado, apesar de ainda manter o sorriso intacto no rosto quando pegou a bebê dos meus braços para que eu juntasse nossas coisas e fôssemos juntos para o carro. Abri o porta-malas e tive uma ideia interessante ao vê-la terminar de afivelar em sua cadeirinha no banco traseiro.
— — chamei, já lhe jogando o molho de chaves, fazendo-a pegá-lo num ótimo reflexo antes de perceber o que eu queria e me olhar completamente em pânico.
— Não — ela negou com a cabeça. Eu ri da sua palidez, negando de volta. — , está no carro também, não é uma boa ideia.
— Confio em você — falei, mas mais uma vez negou. — Você não vive dizendo que sabe dirigir, que não comprou sua carteira? — tentei ficar sério diante do pavor dela, mas não dava! estava hilária ali, paralisada só com a simples ideia de dirigir. — Vamos lá, . Já me ensinou a cozinhar uma vez, eu tentei sozinho outras vezes, mas você ainda não pegou nem no volante do carro.
A loira tentou ser esperta, fechando a porta traseira e tentando sair pela lateral para contornar o carro e se enfiar no banco do passageiro. Coloquei o braço em seu caminho, vendo-a praticamente me cozinhar com o olhar, já começando a ficar bravinha achando que era uma provocação minha. Não era, mas também não era justo ela não cumprir sua parte no nosso combinado!
— Amor… — arqueei a sobrancelha, ainda imóvel. Ela iria mesmo usar aquilo contra mim? Nem que falasse aquilo com a maior manha do universo eu não daria para trás. se lançou em meus braços, envolvendo meu pescoço com ambos os dela, beijando o canto da minha boca. — Por favor, hoje não...
Confesso que dei uma balançada com sua voz ao pé do ouvido. Mas não, eu não iria cair naquele papinho de “por favor” dela, não de novo! estava começando a ficar ciente das minhas fraquezas diante de si; se eu deixasse aquele monstrinho crescer, ficaria incontrolável e faltaria pouco para que ela me colocasse uma coleira no pescoço e me desse comandos para fazer sua vontade.
Considerando o fato de que eu mesmo ainda estava descobrindo meus pontos fracos em relação a ela, não seria uma boa ideia deixá-la descobrir por si própria.
— Agora eu sou o seu amor, é? — ri de sua cara de pau, tirando seus braços de volta de mim e afastando seu corpo que estava perigosamente perto demais. Era melhor prevenir futuras tentativas vindas dela. — Não vai colar, . Entre logo no carro — a guiei pela cintura sem usar força. Não queria deixá-la mais nervosa do que já estava, muito menos assustá-la após a conversa que tivemos ontem.
— Tá bom, tá bom — tentou se desvencilhar de minhas mãos, porém me mantive perto dela para caso estivesse blefando —, mas quando eu não quiser mais, você assume.
Assenti sem pestanejar. Eu sabia que existia aquele risco, afinal, não dirigia há muitos anos, e eu estava ali para ajudar de qualquer forma.
— Promete — exigiu, hasteando o dedo em minha direção. Revirei os olhos diante de sua falta de fé em mim.
— Eu prometo — lhe dei um selinho. — Agora vamos, daqui a pouco fica irritada.
A loira assentiu, finalmente entrando no carro. Me acomodei no passageiro e coloquei o cinto quando ela, já exalando preocupação, praticamente me ordenou que o fizesse.
— Vai dar tudo certo, . Faça o que aprendeu na autoescola que logo estaremos em casa sãos e salvos.
Minha esposa assentiu, olhando-me incerta antes de respirar fundo algumas vezes. Fiquei calado, esperando, tentando não atrapalhar seu ritual de manter a calma. Até porque era capaz de eu apanhar caso tentasse desconcentrá-la num momento daqueles. Apesar da seriedade do momento, admito que me vi tentado a fazê-lo.
A loira começou a ditar todos os passos que faria em sussurros, como se estivesse lembrando a si mesma do que tinha que fazer para tirar um carro do lugar. O tom imperativo demonstrava que eram ordens, como se não houvesse margem para erros. Foi engraçado constatar que era mandona até consigo mesma, mas ao mesmo tempo imaginei que o fato de estar a bordo do veículo que ela dirigiria pela primeira vez depois de anos seria um agravante para seu nervosismo.
— Não é querendo me meter nas suas coisas, não... — comecei incerto, sentindo como se estivesse falando sozinho, já que nem ao menos me olhou de canto de olho. Ela estava concentradíssima no que fazia, dirigindo pelas dependências do parque. — Mas acho que aquele idoso de bengala acabou de ultrapassar a gente.
Não tinha idoso nenhum. Na velocidade em que estávamos, era capaz de todos eles já estarem em casa antes mesmo do nosso carro sonhar em deixar o parque. Mas como eu já previa, nem se deu o trabalho de conferir.
— Não fode, — ralhou, fazendo-me revirar os olhos. — Eu estou dirigindo, não era isso o que você queria?
Encarei seu perfil, me perguntando como podia sentir tanto tesão por aquela mulher tão arrogante. já arrancou uns bons fios de cabelo meu na infância, já literalmente deu na minha cara e eu ainda conseguia ficar duro ao ouvi-la me xingar.
— Só estou dizendo que pode acelerar mais um pouco. Não tenha medo, , você está indo bem.
Minha esposa me olhou brevemente antes de suspirar e fazer o que lhe aconselhei, apesar de contrariada, deixando o carro um pouco mais rápido. Ainda estávamos bem devagar, a ponto de não ter vento para bagunçar os cabelos, porém já era alguma coisa.
Assim que chegamos na saída, notei a tensão em seus ombros cobertos pelo vestido. me olhou e alternou seus olhos aflitos na rua à nossa frente. O movimento estava intenso e o céu já se mostrava escuro, obrigando os motoristas a ligarem seus faróis.
— … — engoliu em seco, segurando o carro ali sem saber o que faria. Um clarão invadiu nosso campo de visão, era o veículo de trás. — E-Eu não vou conseguir — trêmula, voltou a encarar os carros em movimento. O apressadinho de trás buzinou e assustou , que começou a chorar na cadeirinha.
— Vamos, . Eu assumo se não conseguir, se lembra? — acariciei sua coxa, tentando acalmá-la enquanto o corno manso continuou a buzinar, deixando ainda mais nervosa. — Vamos.
respirou fundo antes de finalmente sair do lugar, tremendo e se assustando com o babaca que a ultrapassou em alta velocidade quando ela lhe deu passagem.
Estiquei-me para acalmar , recolocando sua chupeta e pegando seu jacaré de pelúcia, aproximando dela. A bebê parou de chorar, distraindo-se um pouco. Observei com atenção quando ela quase esticou os bracinhos para tentar pegá-lo nas mãozinhas, porém eram apenas reflexos.
Quando voltei a checar , a vi praticamente esmagar o volante de tão forte que apertava, vidrada no tráfego intenso que tinha acabado de entrar. Mal respirava. Me senti culpado por não ter pensado naquilo quando resolvi propor que ela dirigisse. Talvez, se estivéssemos num lugar com menos veículos em volta, ela se sentiria menos pressionada a ir logo. Se a buzina de antes já a tinha tirado do eixo, as outras que surgiram no lugar e se multiplicaram apenas pioraram a situação.
As pessoas realmente não tinham um pingo de paciência com quem estava começando e aprendendo algo. ficou tão desestabilizada que deixou o carro morrer. Tentou sair do lugar, porém só conseguiu piorar a situação, brecando o carro algumas vezes e fazendo os pneus cantarem contra o asfalto. Os demais motoristas começaram a hostilizá-la, fazendo meu sangue ferver em ódio. Se não estivesse no carro com a gente, eu juro que colocaria a cabeça para fora e mandaria todos eles tomarem no cu.
— Quer me dar o carro? — indaguei com a voz contida, vendo-a tremer o queixo e assentir com os olhos azuis cheios de lágrimas, incapaz de falar algo.
Me livrei do cinto de segurança e saltei do banco do passageiro, ainda tentando segurar meu ódio para não deixá-la pior do que já estava. fez o mesmo, passando por trás do carro enquanto eu fui pela frente, assumindo o volante e nos tirando daquela avenida caótica e tentando pegar um atalho. Esperava que ela não desistisse por conta daquela péssima experiência.
— Está tudo bem, — a consolei, ouvindo-a soluçar ao meu lado, apertando meu coração de um jeito desconfortável. — Você foi muito bem — a vi levar a mão ao rosto, secando as poucas lágrimas que derramou.
— Acho que você estava certo, eu sou mesmo uma medrosa — riu sem graça, fazendo-me negar em discordância.
— Não, não é. E se for, vai enfrentar esse medo — parei atrás da fileira de carros, já vendo que não fui bem sucedido na minha tentativa de me livrar do trânsito num sábado à noite em plena Londres. Peguei sua mão, levando-a até minha boca e depositando um beijo em seu dorso, arrancando-lhe um sorriso aberto com seu nariz vermelho na ponta como um palhaço. — Se eu consegui me casar tendo pavor a compromissos, você também consegue dirigir.
Sorri satisfeito ao ouvir sua gargalhada sonora. Tinha sido às minhas custas, mas tinha valido a pena fazê-la rir. Era tiro e queda, zombar de mim mesmo sempre lhe arrancaria altas risadas. nem ao menos disfarçava o quanto ainda gostava de ouvir alguém falando mal de mim, mesmo que esse alguém fosse eu mesmo.
— Não compare, . Nosso casamento nem é de verdade — disse em meio a risos.
Olhei-a de canto de olho antes de voltar a avançar com o carro, vendo-a brincar com e o jacaré sorridente. Segui em silêncio pelo restante do caminho, sentindo a estranha vontade de responder aquilo que foi dito por último. Aquela simples resposta alugou um triplex em minha cabeça, que passou a formular vários tipos de réplicas para confrontar o que havia dito tão despretensiosamente.
Mas eu nunca conseguia chegar a uma resposta concreta. Eu apenas olhava para as duas ali, ao meu lado naquele carro, e já não sabia mais dizer até que ponto tudo aquilo era uma mentira.
Não foi uma noite fácil. Tive mais alguns sonhos estranhos, nenhum que chegasse perto do de sempre, porém eram tão assustadores quanto. me acalmava quando eu me remexia demais. Ele voltou a me ninar em seus braços debaixo das cobertas quando acordei durante a noite. Se não fosse por ele, eu nem teria pregado os olhos; se estivesse sozinha, temeria fechá-los e encontrar aquele rosto novamente depois de tantos anos.
Andei pelo quarto parcialmente escuro e, já no banheiro, encarei-me diante do espelho, apoiando ambas as mãos sobre a pia. Meus olhos estavam inchados, resultado de tudo o que eu tinha chorado horas atrás. Sentia-me exausta mentalmente, com a cabeça fora do lugar, aérea. Nem parecia que todas aquelas coisas tinham acontecido numa noite só. Jamais imaginei como seria finalmente contar o maior segredo da minha vida a alguém. Eu não sabia o que esperar de dali pra frente e nem se gostaria que ele me tratasse diferente. Ainda era tudo muito confuso.
A única certeza que eu tinha era que aquela conversa tinha tirado toneladas das minhas costas.
Escovei os dentes, me despi e entrei num banho quente, lavando meus cabelos com resquícios do laquê da noite passada. Fiquei algum tempo ali, aproveitando a água morna que caía em minha cabeça à medida que eu esfregava meu couro cabeludo. Estava tudo tão calmo que aqueles poucos minutos chegaram a ser terapêuticos. Logo eu me vestia com um camisão qualquer, me preocupando apenas em pentear meus cabelos e vestir a primeira calcinha que vi na frente dentro da gaveta.
—“I just hope you see me in a little better light” (Eu só espero que você me veja em uma luz um pouco melhor) — desci os degraus devagar, ouvindo a voz um pouco rouca de cantarolar baixinho à medida que eu avançava para o andar de baixo. — “Do you think it's easy being of the jealous kind?” (Você acha que é fácil ser do tipo ciumento?)
Me aproximei ainda em silêncio, observando-o bater com a ponta dos dedos largos nas coxas com as dobrinhas à mostra da bebê. Ela se movimentava animada, deitada nas pernas dele, soltando pequenos gritinhos e murmúrios.
Às vezes eu achava que ela logo soltaria alguma palavra, de tanto que tentava se comunicar conosco. Tudo bem que era muito novinha para aquilo, talvez fosse apenas minha ansiedade falando alto em relação ao seu desenvolvimento.
— Oh, você está aí.
Lamentei quando os olhos verdes de focaram em mim e toda aquela cena adorável se cessou. Ele colocou sobre a cadeira de descanso colorida, montada próxima do sofá, e fechou o notebook na mesa de centro.
— Está melhor?
Olhei para o chão, sem jeito com a intensidade que ele continuou a me olhar. Eu não estava acostumada com toda aquela atenção de ninguém, muito menos a dele. Respirei fundo antes de voltar a retribuir, olhando em volta logo em seguida ao reparar no sol que fazia do lado de fora da casa.
— Melhor — murmurei, assentindo de modo fraco. Tentei sorrir, mas provavelmente falhando miseravelmente. — Que horas são? — minha voz saiu falha por conta do longo tempo calada. Olhei para novamente; se ela estava em casa, então tinha a pegado com as meninas, e claro, eu não estava junto para poder ir trabalhar.
— Venha cá — ele deu batidinhas no estofado ao seu lado, fazendo-me ir até lá e me sentar de pernas encolhidas no espaço entre as almofadas grandes e seu corpo quente. — São duas da tarde.
Arregalei os olhos instantaneamente.
— Meu Deus, o Sr. Williams vai me matar — levei as mãos ao rosto. Eu imaginava que estaria atrasada, mas não àquele ponto! Daquela vez eu realmente tinha ultrapassado todos os limites do sono, tinha praticamente hibernado.
— Tentei falar com ele quando fui buscar com as meninas, mas elas me disseram que ele teve uma emergência com a família e viajou pra cidade natal dele.
falar com meu chefe não adiantaria de nada. Infelizmente eu tinha faltado ao trabalho, e pior, justo num sábado! Com certeza descontaria o domingo junto, que era a minha folga. Tudo bem, eu não tinha mais os mesmos problemas financeiros de antes, mas ainda assim seria horrível enfrentá-lo quando eu retornasse.
— Disseram que ele volta na segunda à tarde — voltei a prestar atenção em , ainda preocupada, principalmente com as meninas que ficariam na lanchonete praticamente sozinhas. — Seu celular tocou, mas não consegui te acordar. Você passou a noite tendo pesadelos, . A culpa não é sua.
Lancei-lhe um olhar complacente. Eu sabia como as coisas tinham acontecido, mas ainda assim me sentia mal por ter faltado com a responsabilidade de estar lá.
— Até lá, tente não se torturar com isso, sim? — seus dedos me tocaram o rosto, erguendo meu queixo e me despertando das minhas paranoias.
Encarei o verde de seu olhar com pesar. Com certeza não seria um trabalho fácil tentar não antecipar a bronca que eu levaria na segunda-feira. Logo agora que eu tinha ajeitado meu horário certinho e não chegava atrasada nem um dia sequer!
— Eu vou tentar — suspirei, cabisbaixa. Justo quando tudo começava a dar certo, tudo tornava a dar errado de novo! — O que disse a elas?
— Disse que você não estava em condições de trabalhar hoje, que estava doente — explicou, e eu respirei aliviada ao ver que ele não tinha dado a entender o que houve noite passada. — Não se preocupe, , seu segredo está bem guardado comigo — sua mão fez menção de alcançar as minhas, repousadas em minhas pernas desnudas pela camiseta. Porém, ele a recolheu de último instante, receoso.
Lembrei-me da noite passada, principalmente da nossa pequena conversa enquanto ele me ajudava a me despir daquele vestido, mas não do jeito que planejamos no início da noite. Encare-o em silêncio. Como foi difícil negar seu toque e abrir mão de tê-lo perto quando eu mais precisava de alguém para me abraçar e me fazer sentir protegida.
Tinha dito que pensaria sobre nós, que não poderíamos mais ser amigos e mais outras trocentas coisas que eu nem me arriscaria a lembrar. Estava tão assustada! Tudo foi dito num momento de desespero ao me deparar com a possibilidade de ter defendendo homens como meu pai. A única coisa que se passou em minha cabeça foi a ideia de fugir dele sem ao menos deixá-lo argumentar.
Sua atitude quando fez a denúncia – e o modo como me pediu perdão até por coisas que não teve culpa – me fizeram entender que não compactuava com aquilo. Apesar de um tempo atrás eu duvidar piamente sobre isso, ele tinha um bom coração. A maturidade lhe caiu bem, principalmente depois de virar pai. estava se tornando um ótimo amigo; alguém para confiar mesmo eu sendo a pessoa mais desconfiada do universo quando o assunto era homens.
Talvez fosse a hora de baixar a guarda, eu sei. Já tinha tentado o mesmo há um tempo atrás, em Tulum, quando descobri aquela mentira dele. Mas, ainda assim, eu sentia que teria que começar a cooperar para que aquela amizade desse certo. Depois de vê-lo errar diante de mim e logo após se esforçar para se redimir, pude ver que talvez eu tenha sido muito dura com ele em todo o tempo que estávamos juntos naquele casamento.
Me inclinei em sua direção, tendo-o imóvel apenas me observando de perto. Esbocei um sorriso mínimo ao ter seu nariz tocando o meu e o tive ainda sério, olhando no fundo os meus olhos, numa expressão repleta de dúvidas. Selei nossos lábios devagar, sendo correspondida imediatamente quando uma de suas mãos agarrou minha nuca com possessividade, trazendo-me para mais perto, emaranhado os dedos em meus cabelos e causando-me arrepios.
— Pode me beijar se você quiser — murmurei contra sua boca e recebi outro beijo como resposta, daquela vez com sua língua acariciando a minha devagar, fazendo minhas pálpebras pesarem de tão serena e gostosa que estava a atmosfera que tínhamos criado com apenas alguns beijos.
“Não quero ficar longe de você…”
— Eu te quero perto — sussurrei ao tê-lo finalmente espalmando sua mão grande e macia em minha coxa, passeando devagar, acariciando toda a região até minha bunda, que foi apertada com vontade, arrancando-me um murmúrio de misericórdia para que ele pegasse leve.
continuava deitadinha a pouquíssimos centímetros, bem acordada e provavelmente atenta como sempre aos sons à sua volta. Entretanto, o que atrapalhou o beijo e fez com que eu me afastasse foi meu estômago falante, roncando alto e arrancando risos de nós dois.
— Está com fome, é? — disse contra minha boca, desferindo alguns selinhos enquanto me segurava pela nuca. Assenti sem graça, apesar de já prever que aquilo aconteceria. Afinal, eu tinha passado horas desacordada. — É bom que esteja mesmo, porque eu tentei cozinhar de novo.
— Isso sempre se parece muito com uma ameaça — gargalhei, percebendo que sempre jurava que estava certo quando afirmava que a fome era o melhor tempero do mundo. — Você não é tão ruim quanto pensa.
— Vamos lá tirar a prova, então.
Nos levantamos e pegou a bebê no colo, indo junto de mim até a cozinha até que limpa. Algo que eu gostava quando ele tentava cozinhar era que sua organização, diferente de mim, que sujava até mesmo o que não tinha usado no preparo da comida.
Me servi sem medo de colocar muito e me decepcionar; afinal, dei uma espiada na panela e estava com uma cara ótima, até mesmo o cheiro estava surpreendentemente bom. Sentei-me à mesa ainda sob o olhar analítico de , que se encostou no descanso da cadeira com a bebê deitada preguiçosamente em seu peito enquanto devorava o próprio dedo.
— Eu disse, está ótimo — limpei o canto da boca com o guardanapo.
Tudo bem, macarrão com queijo era uma das coisas mais fáceis do mundo de se preparar, mas eu estava sendo boazinha com ele e iria evitar desmerecê-lo só por aquele detalhe. Seu sorrisinho orgulhoso foi adorável.
— Eu tive uma ótima ajudante — desferiu um beijo no topo dos cabelos castanhos de , que soltou um murmúrio como se concordasse. — Ela já está tão crescidinha que já até dormiu fora de casa sozinha.
Ri em meio a minha mastigação, negando com a cabeça.
— Nem brinque com isso, ela ainda tem três meses. E se dependesse de mim, teria essa idade por anos.
Meu coração doía só de imaginar perder toda aquela manha que tinha, o jeito como ela gostava de ficar com a cabeça encostadinha no nosso ombro e o modo como ela parecia só ter olhos para nós dois.
Eu sabia que era uma visão completamente egoísta minha; esperava não ser a única mãe que lamentasse que um dia meu bebê cresceria. Devia ser por já prever o modo como as coisas perdiam a magia enquanto adquirimos consciência do mundo. E no caso de , ela conheceria a própria história, que, apesar de linda, ainda era triste demais para uma criatura tão pequena.
Apesar desse meu receio, não poderia dizer que não me pegava sendo contraditória ao comemorar cada evolução dela. estava numa fase de interagir com tudo à sua volta. Sempre fiquei fascinada em como o ser humano reagia a estímulos e desenvolvia os próprios instintos, mas ao conviver com um bebê, apenas conseguia ficar cada vez mais impressionada ao assistir tudo aquilo desde o início de seus dias.
— Ela ama te ver cantando, não é? — comentei ao reparar nos dois, que sempre estiveram grudados, mas naquele dia específico estavam juntos até demais. Até mesmo as cores das roupas estavam combinando. E sabendo o quão babão era, eu nem poderia cogitar a ideia de aquilo não ter sido proposital.
— Hoje eu deixei ela na mão — ele riu fraco, apertando a bebê nos braços. — A música está pela metade há anos. Acordei com ela na cabeça e tentei retomá-la depois de tanto tempo para enfim fazer um refrão, porém não consegui nada.
Eu sabia que apenas tinha ouvido algumas linhas, mas tinha curtido o pouco que tive delas; pelo menos o ritmo que ele cantava fora agradável. Não podia dizer que não era talentoso na música, nunca pude – inclusive era algo que me irritava muito quando era adolescente. Via todo mundo babando ele e sua banda e tinha que me fazer de indiferente, porque além de odiá-lo, ainda namorava Collin, seu rival nos shows de talento.
Depois de anos – e de descobrir que fui uma idiota por aceitar que ele me escondia dos pais por ser pobre –, eu podia admitir para mim mesma que não curtia sua voz tanto assim. Era anasalada, enjoativa. Agora que era amiga de , poderia até mesmo dar o braço a torcer e dizer que preferia a dele. Principalmente depois de experimentar ouvi-la de todos os jeitos possíveis, desde seus sussurros, tê-la ofegante e já ter me deliciado com seus murmúrios e gemidos.
Compará-lo a Collin chegava a ser covardia. Não sabia como eu conseguia chegar a ficar excitada com o modo broxante com que meu ex gemia, isso quando ele o fazia! Na maioria das vezes, parecia que eu estava transando sozinha. Claro que naquela época eu ainda era muito nova para reconhecer que era ruim, ou até mesmo tinha vergonha de reclamar quando algo não me agradava na cama. Talvez por gostar muito dele, ou estar completamente cega pelos sentimentos que um dia já senti por ele. Sozinha de novo, é sempre bom acrescentar.
— Sobre o que era? — perguntei rapidamente ao notar onde meus pensamentos estavam me levando sem que eu mesma percebesse. , que também estava absorto no próprio mundo, me encarou em dúvida. — A música, sobre o que era? — ofeguei em desespero, esperando conseguir prestar atenção em sua explicação quando ela saísse de sua boca.
Minha cabeça estava insistente, tentando me levar de volta às minhas lembranças mais deliciosas ao lado do homem que estava sentado à minha frente, COM A NOSSA FILHA NO COLO. Eu devia ter a decência de respeitá-la! Mas, por algum motivo, sua fala de ontem à noite me veio à cabeça e eu me deparei com um sentimento que se assemelhava muito à saudade, mas também me fazia passar mal como uma abstinência em drogas.
Fazia muitos dias desde que transamos naquele avião, muito tempo que apenas trocávamos beijos e, mesmo que tivéssemos os corpos colados um no outro, nada muito além acontecia. Os últimos dias foram intensos demais para que pensássemos em sexo, mas depois de passar por todos eles e sair “inteira” de tudo aquilo, a única coisa que eu desejava era me cansar com uma noite regada a sexo. Eu precisava relaxar e aquela era a forma mais tentadora que eu parecia encontrar; pelo menos ao tê-lo parado na minha frente, fazendo absolutamente nada de mais.
Desviei o olhar de seu rosto e reparei que estava encarando sua boca por tempo demais, perdendo o começo de sua explicação.
— … ela terminou comigo e eu admito que fiquei meio melancólico na época.
Perdi a parte em que ele dizia quem era a minha mais nova heroína, porque para fazer o da época da escola ficar mal com um término, ela devia ser muito incrível mesmo.
sempre teve muitas namoradas. Era até estranho vê-lo se lamentar de um passado que, se tinha, escondia muito bem quando o assunto era inseguranças ou até mesmo corações partidos. sempre me pareceu inabalável pelos corredores. Ele tinha quem quisesse: amigos, garotas e até mesmo privilégios por culpa da conta bancária do pai.
Na época, a vida dele realmente parecia perfeita aos meus olhos, e aquilo só me fazia odiá-lo ainda mais.
— Eu sempre redirecionava o que sentia para a música — ele continuou. — Era um jeito de desabafar sem que ficasse perceptível que eu estava sofrendo.
O que realmente encobria seu sofrimento era sua fila movimentada de pretendentes, não as letras de suas músicas. Acho que naquela época todo mundo encarava o que cantava nas músicas da banda como sendo coisas fictícias. Até mesmo quando ele cantava sobre amor ou estar apaixonado.
Me perguntei então em quem ele tinha pensado quando escreveu Sunflower, a composição que Collin mentiu sobre ter escrito para mim. Era uma letra tão linda que lembro de ter morrido de amores por ele no mesmo instante em que ouvi. Mal sabia eu que estava, na verdade, agindo feito uma boba apaixonada pelo cara errado.
O que na época poderia muito bem ter me causado um ataque cardíaco se tratando de quem era o verdadeiro compositor.
— Você nunca foi muito bom com palavras, não é? — o analisei, vendo-o arquear as sobrancelhas em minha direção. — Quero dizer, escrevendo sim, mas eu digo falando — me enrolei levemente, rindo fraco. — Grace sempre reclamava sobre isso quando vocês brigavam. Ela dizia que você a deixava sem graça quando a mimava logo depois, porque simplesmente não conseguia admitir que estava errado. Grace estava lá te odiando, enquanto você apenas se redimia sem avisá-la.
sorriu triste, deixando suas covinhas à mostra.
— Às vezes acho que eu deveria ter conversado mais com ela.
Neguei com a cabeça, discordando. Eu era a pessoa com quem Grace mais falava, a ouvia por horas e horas e, mesmo assim, eu tinha a mesma sensação de não tê-la aproveitado direito quando ela se foi.
— Deveria ter dito que a amava mais. Ironicamente, foi a última coisa que ela ouviu de mim quando estava sendo levada para o centro cirúrgico. Me lembro muito dos olhos dela brilhando em lágrimas e do sorriso que ela me deu antes de sumir da minha vista.
Estiquei-me e peguei sua mão por cima da mesa. Lhe sorri chorosa, acariciando sua pele e compartilhando da sua dor, que, apesar de fazer meses, ainda parecia doer como se tivéssemos acabado de perdê-la.
— Eu tenho certeza que ela sabia o quanto você a amava — funguei, esperando que aquilo o confortasse. — Essa é só sua linguagem do amor, o jeito como você demonstra o que sente, e está tudo bem ser assim.
Com ele era literalmente demonstrar.
Como dito antes, não era bom com palavras ou declarações. Apesar de ser falante demais, quando ele parecia dizer o que sentia, ainda era difícil identificar se falava sério ou estava apenas afetado pela situação em que estávamos. Como por exemplo todas as coisas que saíam de sua boca quando estávamos juntos.
Apesar de sentir tantos arrepios e ficar completamente molhada com tudo o que sua voz rouca sempre me falava ao pé do ouvido, eu sabia bem de seu histórico com palavras ditas da boca pra fora – em minha cabeça, era apenas coisa de momento.
O que me dizia com certeza que suas intenções eram certas, o que me fez decidir baixar a guarda em relação a ele foi justamente o que demonstrava sem precisar abrir a boca. O jeito de olhar, falar, o instinto em proteger – tudo aquilo e mais outras ações vindas dele eram provas do que ele sentia. Mas apesar de vê-las todas nitidamente acontecendo no nosso dia a dia, eu ainda me mantinha com o pé atrás por não saber direito como interpretar.
— E quanto a você, ? Qual sua linguagem do amor? — seus olhos verdes focaram-se em minha mão sobre a sua em cima da mesa. Senti um nervoso estranho, quase como um frio na barriga que me fez interromper o toque imediatamente.
— Acho que não tenho uma — respondi sem graça, com o rosto queimando e procurando um jeito de disfarçar minha reação estúpida a uma pergunta tão boba.
— Mas é claro que tem! — ele riu fraco, ajeitando em seus braços. — Todo mundo tem uma.
— Eu não fui ensinada a demonstrar, muito menos a falar — encolhi os ombros, percebendo o nível de estranheza que devia ser me ouvir falar aquilo. Afinal, tinha razão: todo mundo tinha um jeito próprio de expressar o que sentia de um modo que era nítido para quem observava de fora. — Sempre foi muito complicado me expressar dessa maneira.
Era esquisito pensar em como eu tinha conseguido ter dois namorados na vida. Me dava muito bem quando conhecia caras com quem eu não teria muito contato depois de dormirmos juntos, mas quando o assunto era ceder, admitir sentimentos, me abrir e me permitir parecer frágil diante de algum deles, eu travava. Meus dois únicos relacionamentos só aconteceram por insistência dos namorados que tive. Eu estava apaixonada e, na época de Collin, até demais; porém, não sabia o que fazer com o sentimento que tinha.
Eu reclamava de , mas conseguia ser mil vezes pior que ele!
— Quem te fez pensar assim? — sua pergunta me fez olhar confusa para seu rosto sério. Dei de ombros mais uma vez, encontrando dificuldades para falar algo que sentia dentro de mim há muitos anos.
— Todo mundo — engoli o choro que me subiu a garganta, piscando rapidamente a fim de dissipar as lágrimas que me surgiram nos olhos.
Eu me sentia estúpida por tentar procurar culpados por eu ser do jeito que era. As pessoas com quem vivi durante anos sempre me fizeram parecer errada por ser do jeito que eu era, fechada demais, rancorosa demais. Sempre parecia um sacrifício conviver com alguém como eu, e eu sabia que às vezes poderia ser. O quão difícil deve ser amar alguém e não saber se essa pessoa te ama de volta?
— Menos Grace, ela foi a única pessoa na minha vida que não me fazia parecer difícil de ser amada — respirei fundo e encarei uma das paredes da cozinha, ainda segurando com todas as minhas forças as lágrimas que estavam à beira de transbordar pelo meu rosto inteiro.
Incomodada, evitei durante um tempo olhar para . Quando voltei meus olhos para os seus, ele continuava a me encarar do mesmo jeito sereno de antes.
— Isso não é verdade, — disse, e eu sequei o rosto rapidamente, fungando ao encará-lo ainda consternada. — Olhe pra . Ela é apenas um bebê de três meses e já te ama mais do que qualquer coisa no mundo.
A bebê me olhava com aquelas pequenas esmeraldas brilhantes enquanto continuava a babar a própria mãozinha. Sorri fraco ao contemplá-la, sentindo meu coração se aquecer aos poucos.
— E ela não sabe se expressar ainda, muito menos falar, mas não precisa de muito pra saber que ela te ama.
— É diferente, eu sou a mãe dela — argumentei, fungando ao rir fraco.
Era óbvio que me amava! Eu era uma das poucas pessoas que ela conhecia.
— Não é, . Pouquíssimas pessoas fariam o que você fez por ela e por Grace. Você é uma amiga sensacional, uma mãe incrível, tem um coração enorme e, por mais que me irrite ter que te pressionar para saber o que você quer de vez em quando… — arqueei as sobrancelhas, soltando um riso de puro nervosismo. — Sério, estou cansado de tanto te ouvir me dizendo não — ele realmente falou sério, fazendo-me encolher os ombros ao assumir que eu fazia aquilo por não saber o que fazer ou dizer às vezes. — Eu vou continuar insistindo, porque sei que você é assim, mas que uma hora irá se abrir.
Olhei para o prato à minha frente e remexi a comida já sem muita fome, quebrando outra vez o contato visual com na tentativa de mascarar minha reação ao que acabara de ouvir. Comprimi os lábios, freando o sorriso besta que lutava para ficar escancarado. Ok, aquilo tinha sido bonitinho da parte dele.
— Obrigada por ter paciência.
Devia ser obrigatório ter um pouco em qualquer uma das relações humanas. O mais bizarro de tudo era encontrar aquele item justo na pessoa que menos imaginei que se esforçaria para me compreender na vida.
— Prometo tentar melhorar, assim como você.
assentiu, compreensivo. Ele nitidamente não era o mesmo de quando Grace reclamava de sua falta de comunicação. Acho que se não fosse por ele tomar as iniciativas, ainda estaríamos nos matando pela casa. Aquele crédito era todo dele, por mais esquisito que aquilo pudesse soar para mim.
— Acredite, não é tão difícil como parece — riu fraco, fazendo-me acompanhá-lo. Não era mesmo. Desde ontem estava conseguindo me abrir um pouco com ele, aos poucos ganharia mais confiança. — E quanto às outras pessoas da sua vida, ... foda-se, você não deve nada a eles.
— Na verdade, acho que eles é quem me devem algo.
Um pedido de desculpas, talvez?
Eu sabia que não era perfeita e que talvez pudesse ter machucado alguém sem ter a intenção de fazê-lo; porém, no caso deles… Collin claramente sabia que era errado me esconder dos pais por vergonha da minha classe social, fora todas as mentiras e os chifres que me colocou. Meu outro ex tinha noção do quanto me rebaixava, e mesmo assim o fazia sem remorso aparente. E meus pais… Bom, eles tinham ciência do quão prejudicial era o ambiente no qual me criaram, e não pareciam dispostos a olhar para trás e enxergar que me fizeram mal.
— Acho que eu deveria parar de esperar algo deles — concluí, já cansada de pensar sobre aquilo.
Não era minha primeira vez refletindo sobre as pessoas do meu passado. Todas as vezes que me forcei a pensar neles daquela forma, meu peito doía e tudo se assemelhava a uma tortura física.
Não aconteceria nada daquilo, e era por aquele motivo que eu deveria seguir em frente.
ficou em silêncio, me avaliando enquanto eu me mantive naquele estado de espírito triste e deplorável. Eu não gostava muito de refletir sobre aquelas coisas. O passado que tinha deixado em nossa cidade natal raramente me revisitava. Eu era muito mais feliz desde que cheguei a Londres, e tentava me esquecer de tudo o que me deixava do jeito que estava naquele momento.
— Bom, o que vamos fazer hoje pelo restante do dia? — passei as mãos pelo rosto, forçando um sorriso ao virar o pescoço e encarar o céu azul que fazia do lado de fora da janela de vidro.
— Eu e estávamos conversando agora há pouco — franzi o cenho, vendo sua expressão de cinismo reinar enquanto a bebê estava alheia a nós dois —, e combinamos de ir ao parque juntos — torci o nariz de imediato. — Não esse parque do condomínio. Estávamos pensando em ir pra longe daqui, sabe? Passear um pouco de carro. Ela me disse que adora andar de carro, até dorme no caminho.
Pior que era verdade. amava o balanço que o veículo fazia.
— Ela é uma bebê bem falante, não? — apoiei o queixo em minha mão, prestando atenção na idiotice de . Ele permanecia sério, como se realmente relatasse um bate-papo entre os dois.
— Oh, sim, é meio difícil fazê-la calar a boca — confidenciou, falando num tom mais baixo, como se pudesse entendê-lo. Não consegui segurar a risada. — Mas enfim, queríamos saber se você está a fim de ir conosco — balbuciou algo, chamando nossa atenção. — Claro, se não for te atrapalhar…
alternou seus olhos verdes na bebê e depois em mim, rindo minimamente ao perceber que eu negava com a cabeça, reprovando falsamente sua brincadeira. Ele parecia uma criança inventando histórias aleatórias com direito a até falas imaginárias. Levantei-me, peguei meu prato e fui colocá-lo na pia ainda sob seu olhar.
— Acho que tenho um espacinho na minha agenda — ajeitei minha cadeira, vendo-o se levantar e vir até mim acompanhado da menina, que logo iniciou uma série de murmúrios como se estivesse querendo falar de verdade.
— Viu, ? Sua mãe é uma mulher muito ocupada — revirei os olhos ainda rindo. — Da próxima vez precisamos marcar um horário com ela — provocou, “envenenando” a menina contra mim. Arfei ofendida, tratando de me retratar com .
— Não, meu amor, pra você eu estou disponível sempre — beijei sua testa, afagando sua barriguinha. — Não ouça seu pai, homens são mentirosos.
— Que calúnia — ele exclamou, fingindo-se. Depois se aproximou, dando mais passos próximo de mim, e eu mantive o contato visual, tentando ficar impassível. — Então senhora está disponível só pra ela? — arqueou as sobrancelhas, provocando-me um frio na barriga involuntário ao ter sua voz mansa soando tão próxima ao meu ouvido.
— E o que o senhor quer comigo, afinal? — mordi o lábio inferior, disfarçando o sorrisinho que queria dar. Elevei meu queixo, olhando no fundo de seus olhos claros.
— Creio que ainda não tenha idade o suficiente para presenciar uma conversa com o teor das coisas que estão se passando pela minha cabeça agora — a malícia com que ele murmurou tudo aquilo me fez ofegar ansiosa, mesmo que não tivesse previsão alguma de quando poderíamos realizar todas as coisas sórdidas que planejava fazer comigo quando pudéssemos.
— Sendo assim, acho que podemos marcar uma reunião pra mais tarde, quem sabe — dei de ombros, selando meus lábios contra os dele, que tomaram os meus devagar. usou a mão livre para me apertar a cintura, enquanto a outra ainda segurava a bebê no braço esquerdo.
— Mal posso esperar — ele mordiscou meu lábio, se afastando assim que reclamou de quase ser esmagada por nós, movendo os bracinhos e perninhas para chamar atenção junto dos seus gritinhos.
— Vá arrumar as coisas que eu já subo pra me trocar. Vou preparar alguns lanches pra levar.
Meu marido assentiu, roubando-me um selinho antes de ajeitar no colo. Ele deitou-a contra o próprio peito e me deu as costas, me dando a visão de seus olhinhos me espiando por cima do ombro do pai, que se afastava indo em direção às escadas.
Suspirei, me dando conta do tanto que tinha conseguido desabafar com desde a noite anterior. Eu estava aliviada ao perceber que ele tinha razão. Não parecia ser um bicho de sete cabeças dizer ou demonstrar o que sente, principalmente quando se encontra compreensão e reciprocidade na pessoa que irá te ouvir.
Ele fez parecer tudo ser tão fácil. Parecia até que não tinha nada de errado comigo e que aquele momento que acabamos de ter, cheio de risos e beijos, fosse algo da nossa rotina de sempre.
E até era.
Sorri triste encarando o corredor vazio à minha frente.
Era tudo uma mentira.
's point of view.
Dirigi tranquilo pelas ruas da cidade, que pareceram colaborar para o nosso plano de relaxar em algum ponto, já que simplesmente não encontramos trânsito e nem nos estressamos na hora de arranjar uma vaga no estacionamento do parque. Não estava vazio, mas também não estava tão cheio. O clima agradável atraiu um público razoável para o local; porém, ainda conseguimos encontrar um ponto abaixo de uma árvore grande para nos abrigar do sol.
As tardes de sábado agitadas em que costumava passar jogando bola ou em piscinas rodeado de mulheres de biquínis pequenos e bronzeados exagerados foram substituídas por um piquenique simples. Bom, a única semelhança que tinha com o passado naquele momento eram as mulheres em cima de mim. Eu ainda parecia ter um ímã que as atraia, visto que tinha pego no sono deitada em meu peito, enquanto decidiu usar uma de minhas coxas como travesseiro para apoiar a cabeça e começar a ler um livro.
Afastei os cabelos ralos da bebê adormecida de seu rostinho, visto que estava calor até mesmo para mim, que usava uma camiseta fina e uma bermuda qualquer. Lamentei o fato de ainda ser tão dorminhoca, apesar de não gostar de pensar que a bebê logo iria crescer. Eu discordava totalmente e observava as crianças no parquinho ao fundo correndo pra lá e pra cá, desejando que logo fosse minha filha ali.
Eu sabia que ela daria muito trabalho solta daquele jeito. Fiz uma careta instantânea ao ver um garotinho tombar no chão enquanto corria atrás de uma bola. Admitia que tinha medo de que ela se machucasse, porém sabia que cair fazia parte do processo todo de perder o medo de andar com as próprias pernas. Queria muito que chegasse logo a fase em que pudéssemos interagir mais com , brincar de correr, ensiná-la palavras novas e todas aquelas coisas que me deixavam bobo de observar outras crianças fazendo.
— Olhe lá — levantou-se, sentando sobre a toalha e ajeitando o vestido soltinho que usava a fim de cobrir as pernas. Distraí-me com a visão e perdi o foco onde ela chamou minha atenção para ver. — Olha o tamanho da barriga dela, certeza que são gêmeos.
— Caralho — finalmente avistei a grávida, toda adornada de tecidos e uma coroa de flores posando para um fotógrafo posicionado logo à sua frente. — Já deve estar pra ganhar — comentei, lembrando-me de Grace e de como ela parecia prestes a explodir dias antes de dar a luz.
— Sei que é a coisa mais normal do universo, mas acho que nunca vou conseguir olhar pra uma grávida normalmente, principalmente depois daquele curso — comentou, ainda concentrada no ensaio que acontecia a alguns metros de distância de nós.
Encarei-a contrariado. Depois do show que deu em Tulum apenas com a possibilidade de engravidar, comecei a estranhar seu espanto. Sempre achei que iria querer ser mãe biológica algum dia, principalmente depois de vê-la cuidando de e amar tanto a experiência.
— Não vai querer ter mais filhos?
— Sim — se dispersou, voltando a me encarar. — Mas não deixa de ser assustador pensar sobre todo o processo para que isso aconteça — riu nervosa ao encolher os ombros, fazendo-me assentir em concordância. Eu agradecia todos os dias por ter nascido homem e não precisar sequer pensar na possibilidade de gerar outro ser. — E, também, será só daqui uns anos… Tudo é tão incerto ainda, não sabemos o que vai acontecer depois do divórcio.
Ajeitei-me, sentindo-me desconfortável encostado na mesma posição por muito tempo. Troquei o peso do corpo, ainda mantendo adormecida em meus braços.
— Mas você pretende se casar ou… vai ficar sozinha? — eu ainda me remexia ao perguntar sobre aquele assunto. Sentia-me esquisito, com o coração levemente agitado com aquelas suposições.
Era egoísmo demais da minha parte dizer que não gostava da ideia de ser substituído? Bom, se não era, ao menos soava como uma idiotice absurda; afinal de contas, aquele era o plano desde o início. Me irritei com Tom naquela noite tentando ficar em meu lugar naquela farsa, mas acho que não me sentia preparado para ver outro fazer aquilo de verdade. Para sempre.
Por mais esperado por nós que aquele divórcio fosse, passar por ele não seria nada fácil. Toda a mudança para uma outra casa e passar a viver sozinho, a partilha da guarda de e todo o estresse que aquilo causaria se parecia muito com uma grande dor de cabeça, principalmente após tanto tempo vivendo aquela mentira. Se já era estranho pensar naquela família se dividindo em duas com apenas três meses de existência, imagine depois dos nove meses completos.
— Acho que vou ficar só por um tempo — ela murmurou distraída. — Com as coisas vão mudar muito, né? Antes eu era solteira e livre, quer dizer, ainda sou — sorriu sem graça, enquanto eu ainda a olhava, atento à sua resposta. — Mas você sabe, homens não curtem muito mulheres que já são mães, e ela também é muito pequena. Não sei se confiaria em um desconhecido pra participar assim da vida dela junto de mim.
— Engraçado, com as mulheres geralmente é o contrário, não? Elas costumam achar sexy ver homens sendo pais. Quando estou com recebo bastante olhares.
me olhou com as sobrancelhas arqueadas.
— Não vai me dizer que usa pra paquerar mulheres por aí.
Neguei de imediato. Eu não precisava daquilo, nunca precisei, só tinha feito uma observação e dado um exemplo do cotidiano. Não entendi sua irritação repentina.
— Pelo amor de Deus, não use uma criança para isso.
— Como foi que consegui você mesmo? — retruquei, e riu instantaneamente, encarando-me perplexa antes de abrir e fechar a boca algumas vezes, sem palavras.
— E quem foi que te disse que você me tem? — ela arqueou as sobrancelhas e eu estreitei os olhos, espiando seu cinismo. Precisava falar depois de tê-la tido nos meus braços mais vezes que poderia contar com os dedos de uma das mãos?
sempre se esquivava daqueles assuntos bobos, como fez no banheiro após me ouvir falar algo sob influência do tesão. Minha, meu, ter ou não ter… Tudo aquilo eram apenas meras nomenclaturas, literalmente só palavras! Não sabia se falar em voz alta a fazia sentir-se uma posse minha, mas na minha cabeça não fazia sentido implicar com aquele detalhe. Não era algo palpável, que tinha um significado – era apenas um sentimento de pertencimento.
No momento em que a tinha colada com o corpo no meu, a sentia minha. Seus arrepios, gemidos, até mesmo sua respiração agia sob influência do meu toque, dos meus lábios e corpo. Todas as reações que causava em enquanto transávamos ou apenas trocávamos beijos eram minhas.
Assim como também era dona e proprietária de tudo o que o meu desejo por ela me despertava.
— Tá, você não quer me dizer — revirei os olhos, vendo seu sorrisinho crescer em seus lábios. Desferi um beijo casto ali, e ela se apoiou em um dos braços para se inclinar e aprofundar, invadindo minha boca com sua língua quente.
Sonsa, e ainda tinha coragem de ficar negando.
— Ainda — finalizei com um selinho, ouvindo sua risadinha quando ela se afastou e negou com a cabeça.
falava que eu não era bom com palavras, mas eu estava me esforçando desde que passamos a dividir o mesmo teto. Eu tinha literalmente me tornado outro com ela, numa mudança tão rápida que nem eu mesmo tinha percebido quando aconteceu. Porém, ela ainda mantinha suas travas consigo. Esperava que a conversa que tivemos mais cedo surtisse efeito logo.
Seus olhos azuis acompanharam interessados algo que tinha atrás da árvore em que eu apoiava minhas costas. Virei-me quando percebi seu olhar seguir um cara de bermuda preta empurrando uma bicicleta enorme, com uma tatuagem cobrindo a lateral do abdômen exposto.
Encarei de sobrancelha arqueada. Porra, na frente de ? Tudo bem, ela estava dormindo, mas… e se ela acordasse e flagrasse a mãe secando um descamisado no parque daquele jeito tão explícito?
— O que foi? Estou olhando a bicicleta! — ela se defendeu, voltando a encarar o par de rodas enorme. — Ela é linda! Sinto falta da minha Amy.
— Essa bicicleta é alugada aqui no parque — observei, vendo o logotipo impresso na lateral da bicicleta verde. me encarou esperançosa, piscando seus olhos azuis pidões, fazendo-me suspirar. — Você vai vestida desse jeito? — olhei para seu vestido, atraindo seu próprio olhar para si.
— Eu prometo cuidar pra não mostrar nada — insistiu, se aproximando de meu rosto, deixando-me desconfortável com seu jeito de me pedir aquilo. Parecia uma criança! — Por favor, por favorzinho.
— Vá.
comemorou, distribuindo beijos pelo meu rosto, fazendo-me censurá-la com o olhar ao ver se remexer em meu peito. A verdadeira criança ali, no caso.
— Cuidado para não cair, hein! — alertei, já tendo-a de pé diante de mim.
— Eu sou uma ótima ciclista, ok? — ela jogou os cabelos loiros e saiu rebolando sua bunda pequena para longe, fazendo-me suspirar com a visão enquanto percebia que a bebê despertava de seu soninho tranquilo.
Fiquei ali tranquilo com já bem acordada balbuciando coisas sem sentido nenhum apoiada em minhas coxas, brincando de fazer barulho de pum em sua barriguinha e fazendo-a gargalhar e espernear contente. Logo passava por nós parecendo uma criança feliz, adornada com um capacete cor-de-rosa enquanto ia em alta velocidade pra lá e pra cá. O ciclista descamisado a acompanhou em uma das voltas; acho que ele não estava enxergando a aliança na mão dela.
Já começava a escurecer quando minha esposa voltou sem a bicicleta e com um semblante cansado, apesar de ainda manter o sorriso intacto no rosto quando pegou a bebê dos meus braços para que eu juntasse nossas coisas e fôssemos juntos para o carro. Abri o porta-malas e tive uma ideia interessante ao vê-la terminar de afivelar em sua cadeirinha no banco traseiro.
— — chamei, já lhe jogando o molho de chaves, fazendo-a pegá-lo num ótimo reflexo antes de perceber o que eu queria e me olhar completamente em pânico.
— Não — ela negou com a cabeça. Eu ri da sua palidez, negando de volta. — , está no carro também, não é uma boa ideia.
— Confio em você — falei, mas mais uma vez negou. — Você não vive dizendo que sabe dirigir, que não comprou sua carteira? — tentei ficar sério diante do pavor dela, mas não dava! estava hilária ali, paralisada só com a simples ideia de dirigir. — Vamos lá, . Já me ensinou a cozinhar uma vez, eu tentei sozinho outras vezes, mas você ainda não pegou nem no volante do carro.
A loira tentou ser esperta, fechando a porta traseira e tentando sair pela lateral para contornar o carro e se enfiar no banco do passageiro. Coloquei o braço em seu caminho, vendo-a praticamente me cozinhar com o olhar, já começando a ficar bravinha achando que era uma provocação minha. Não era, mas também não era justo ela não cumprir sua parte no nosso combinado!
— Amor… — arqueei a sobrancelha, ainda imóvel. Ela iria mesmo usar aquilo contra mim? Nem que falasse aquilo com a maior manha do universo eu não daria para trás. se lançou em meus braços, envolvendo meu pescoço com ambos os dela, beijando o canto da minha boca. — Por favor, hoje não...
Confesso que dei uma balançada com sua voz ao pé do ouvido. Mas não, eu não iria cair naquele papinho de “por favor” dela, não de novo! estava começando a ficar ciente das minhas fraquezas diante de si; se eu deixasse aquele monstrinho crescer, ficaria incontrolável e faltaria pouco para que ela me colocasse uma coleira no pescoço e me desse comandos para fazer sua vontade.
Considerando o fato de que eu mesmo ainda estava descobrindo meus pontos fracos em relação a ela, não seria uma boa ideia deixá-la descobrir por si própria.
— Agora eu sou o seu amor, é? — ri de sua cara de pau, tirando seus braços de volta de mim e afastando seu corpo que estava perigosamente perto demais. Era melhor prevenir futuras tentativas vindas dela. — Não vai colar, . Entre logo no carro — a guiei pela cintura sem usar força. Não queria deixá-la mais nervosa do que já estava, muito menos assustá-la após a conversa que tivemos ontem.
— Tá bom, tá bom — tentou se desvencilhar de minhas mãos, porém me mantive perto dela para caso estivesse blefando —, mas quando eu não quiser mais, você assume.
Assenti sem pestanejar. Eu sabia que existia aquele risco, afinal, não dirigia há muitos anos, e eu estava ali para ajudar de qualquer forma.
— Promete — exigiu, hasteando o dedo em minha direção. Revirei os olhos diante de sua falta de fé em mim.
— Eu prometo — lhe dei um selinho. — Agora vamos, daqui a pouco fica irritada.
A loira assentiu, finalmente entrando no carro. Me acomodei no passageiro e coloquei o cinto quando ela, já exalando preocupação, praticamente me ordenou que o fizesse.
— Vai dar tudo certo, . Faça o que aprendeu na autoescola que logo estaremos em casa sãos e salvos.
Minha esposa assentiu, olhando-me incerta antes de respirar fundo algumas vezes. Fiquei calado, esperando, tentando não atrapalhar seu ritual de manter a calma. Até porque era capaz de eu apanhar caso tentasse desconcentrá-la num momento daqueles. Apesar da seriedade do momento, admito que me vi tentado a fazê-lo.
A loira começou a ditar todos os passos que faria em sussurros, como se estivesse lembrando a si mesma do que tinha que fazer para tirar um carro do lugar. O tom imperativo demonstrava que eram ordens, como se não houvesse margem para erros. Foi engraçado constatar que era mandona até consigo mesma, mas ao mesmo tempo imaginei que o fato de estar a bordo do veículo que ela dirigiria pela primeira vez depois de anos seria um agravante para seu nervosismo.
— Não é querendo me meter nas suas coisas, não... — comecei incerto, sentindo como se estivesse falando sozinho, já que nem ao menos me olhou de canto de olho. Ela estava concentradíssima no que fazia, dirigindo pelas dependências do parque. — Mas acho que aquele idoso de bengala acabou de ultrapassar a gente.
Não tinha idoso nenhum. Na velocidade em que estávamos, era capaz de todos eles já estarem em casa antes mesmo do nosso carro sonhar em deixar o parque. Mas como eu já previa, nem se deu o trabalho de conferir.
— Não fode, — ralhou, fazendo-me revirar os olhos. — Eu estou dirigindo, não era isso o que você queria?
Encarei seu perfil, me perguntando como podia sentir tanto tesão por aquela mulher tão arrogante. já arrancou uns bons fios de cabelo meu na infância, já literalmente deu na minha cara e eu ainda conseguia ficar duro ao ouvi-la me xingar.
— Só estou dizendo que pode acelerar mais um pouco. Não tenha medo, , você está indo bem.
Minha esposa me olhou brevemente antes de suspirar e fazer o que lhe aconselhei, apesar de contrariada, deixando o carro um pouco mais rápido. Ainda estávamos bem devagar, a ponto de não ter vento para bagunçar os cabelos, porém já era alguma coisa.
Assim que chegamos na saída, notei a tensão em seus ombros cobertos pelo vestido. me olhou e alternou seus olhos aflitos na rua à nossa frente. O movimento estava intenso e o céu já se mostrava escuro, obrigando os motoristas a ligarem seus faróis.
— … — engoliu em seco, segurando o carro ali sem saber o que faria. Um clarão invadiu nosso campo de visão, era o veículo de trás. — E-Eu não vou conseguir — trêmula, voltou a encarar os carros em movimento. O apressadinho de trás buzinou e assustou , que começou a chorar na cadeirinha.
— Vamos, . Eu assumo se não conseguir, se lembra? — acariciei sua coxa, tentando acalmá-la enquanto o corno manso continuou a buzinar, deixando ainda mais nervosa. — Vamos.
respirou fundo antes de finalmente sair do lugar, tremendo e se assustando com o babaca que a ultrapassou em alta velocidade quando ela lhe deu passagem.
Estiquei-me para acalmar , recolocando sua chupeta e pegando seu jacaré de pelúcia, aproximando dela. A bebê parou de chorar, distraindo-se um pouco. Observei com atenção quando ela quase esticou os bracinhos para tentar pegá-lo nas mãozinhas, porém eram apenas reflexos.
Quando voltei a checar , a vi praticamente esmagar o volante de tão forte que apertava, vidrada no tráfego intenso que tinha acabado de entrar. Mal respirava. Me senti culpado por não ter pensado naquilo quando resolvi propor que ela dirigisse. Talvez, se estivéssemos num lugar com menos veículos em volta, ela se sentiria menos pressionada a ir logo. Se a buzina de antes já a tinha tirado do eixo, as outras que surgiram no lugar e se multiplicaram apenas pioraram a situação.
As pessoas realmente não tinham um pingo de paciência com quem estava começando e aprendendo algo. ficou tão desestabilizada que deixou o carro morrer. Tentou sair do lugar, porém só conseguiu piorar a situação, brecando o carro algumas vezes e fazendo os pneus cantarem contra o asfalto. Os demais motoristas começaram a hostilizá-la, fazendo meu sangue ferver em ódio. Se não estivesse no carro com a gente, eu juro que colocaria a cabeça para fora e mandaria todos eles tomarem no cu.
— Quer me dar o carro? — indaguei com a voz contida, vendo-a tremer o queixo e assentir com os olhos azuis cheios de lágrimas, incapaz de falar algo.
Me livrei do cinto de segurança e saltei do banco do passageiro, ainda tentando segurar meu ódio para não deixá-la pior do que já estava. fez o mesmo, passando por trás do carro enquanto eu fui pela frente, assumindo o volante e nos tirando daquela avenida caótica e tentando pegar um atalho. Esperava que ela não desistisse por conta daquela péssima experiência.
— Está tudo bem, — a consolei, ouvindo-a soluçar ao meu lado, apertando meu coração de um jeito desconfortável. — Você foi muito bem — a vi levar a mão ao rosto, secando as poucas lágrimas que derramou.
— Acho que você estava certo, eu sou mesmo uma medrosa — riu sem graça, fazendo-me negar em discordância.
— Não, não é. E se for, vai enfrentar esse medo — parei atrás da fileira de carros, já vendo que não fui bem sucedido na minha tentativa de me livrar do trânsito num sábado à noite em plena Londres. Peguei sua mão, levando-a até minha boca e depositando um beijo em seu dorso, arrancando-lhe um sorriso aberto com seu nariz vermelho na ponta como um palhaço. — Se eu consegui me casar tendo pavor a compromissos, você também consegue dirigir.
Sorri satisfeito ao ouvir sua gargalhada sonora. Tinha sido às minhas custas, mas tinha valido a pena fazê-la rir. Era tiro e queda, zombar de mim mesmo sempre lhe arrancaria altas risadas. nem ao menos disfarçava o quanto ainda gostava de ouvir alguém falando mal de mim, mesmo que esse alguém fosse eu mesmo.
— Não compare, . Nosso casamento nem é de verdade — disse em meio a risos.
Olhei-a de canto de olho antes de voltar a avançar com o carro, vendo-a brincar com e o jacaré sorridente. Segui em silêncio pelo restante do caminho, sentindo a estranha vontade de responder aquilo que foi dito por último. Aquela simples resposta alugou um triplex em minha cabeça, que passou a formular vários tipos de réplicas para confrontar o que havia dito tão despretensiosamente.
Mas eu nunca conseguia chegar a uma resposta concreta. Eu apenas olhava para as duas ali, ao meu lado naquele carro, e já não sabia mais dizer até que ponto tudo aquilo era uma mentira.
Capítulo 37
Assim que chegamos, foi dar banho em e eu pude tomar o meu tranquilo, sabendo que depois trocaríamos para que ela tivesse sua vez. Era engraçado como nos dávamos tão bem sendo pais, mesmo sem quase nenhuma ajuda além dos poucos dias que Theresa esteve em casa ou das dicas de Elizabeta e Victória.
Não tive meus pais fazendo metade das coisas que e eu fazíamos com . Minha mãe sempre contratou babás, e meu pai provavelmente me pegou no colo pouquíssimas vezes enquanto eu era bebê. Eu me perguntava como deveria ser falar aos quatro ventos que era um pai ou uma mãe sem ter vivido a experiência completa.
Lembro que quase cheguei a entrar no centro cirúrgico para o parto de Grace quando ela deu à luz. Hoje em dia sinto que foi melhor não ter ido mesmo, eu não iria suportar vê-la partir. Não conseguia imaginar minha reação ao ver tudo dando errado após ter minha primeira visão da minha sobrinha vindo ao mundo.
Mas, no futuro, era algo que eu gostaria de presenciar.
Na minha conversa com , não falamos de mim. Acho que ela presumia que eu não iria querer ter outros filhos depois de tudo o que passamos com , ou vai ver minha vida de antes a influenciou naquele achismo sobre mim.
Nunca tinha pensado em ser pai. Eu era muito jovem para me preocupar com esse detalhe. Acho que, no fundo, acreditava no que minha mãe sempre me dizia – algo sobre algum dia eu encontrar uma esposa e aí sim formar uma família. A ordem dos fatores se bagunçou em meio à perda de Grace, mas não alterou o resultado final de qualquer forma. Acho que, depois de ser pai pela primeira vez, eu me via sim com vontade de ter outros filhos, me descobri apaixonado pela paternidade e todo o amor que um simples bebê me fazia sentir ao apenas existir.
É claro que encontrar uma parceira para aquilo não seria uma tarefa fácil. Eu me conhecia e minha mãe também, por isso ela sempre previa meu casamento para quando estivesse bem mais velho por conta do meu problema em permanecer com alguém por no máximo dois anos. Talvez a falta de maturidade tivesse influenciado isso.
Eu não conseguia prolongar sentimentos. Em alguns relacionamentos que tive, nem sei dizer até hoje se eles existiram. Gostava muito do início, quando existiam descobertas, os defeitos eram mascarados, era tudo envolto de muito sexo e desejo… Mas depois as coisas esfriavam, alguns defeitos eram incompatíveis, o tesão acabava, não sei… Acho que nunca cheguei a amar alguém, na verdade.
Aos meus vinte e quatro anos, eu ainda encarava o amor como uma lenda urbana, daquelas sobre sereias e seres mitológicos. Aquelas que são tão absurdas que só se víssemos com nossos próprios olhos acreditaríamos na existência, sabe? Meus pais sempre foram tão frios, e os casais apaixonados dos filmes sempre me passaram uma imagem falsa, justamente por nunca ter sentido tal coisa ou presenciado todo aquele afeto dentro de casa.
Apesar da minha descrença, eu me via curioso em saber se o amor entre um casal realmente existia, se era tão forte como diziam ser, se suportava mesmo a tudo e fazia com que o os anos de vida se parecessem poucos para viver ao lado de alguém. Se existisse mesmo, eu queria senti-lo. Sabia que tinha uma parcela de culpa por nenhum dos meus relacionamentos terem sido duradouros; porém, eu tinha esperança de descobrir o tal do amor. Achava que talvez ele fosse a solução de todos os meus problemas e, por que não, o motivo para que eu um dia me casasse e formasse uma família junto de ?
E de , é claro, afinal ela seria… minha ex-mulher.
Estranho pensar naquela nomenclatura, visto que, até um tempo atrás, nem amigos nós éramos. O fato era que jamais esqueceríamos o que estávamos vivendo e o que ainda viveríamos até aquele casamento se findar. Nós três éramos uma família. Não existia ex-família, mesmo que eu me casasse algum dia e também fizesse o mesmo – ainda continuaríamos sendo uma família.
O choro estridente se fez presente, invadindo minha cabeça e bagunçando minha linha de raciocínio. E que não tinha tanta importância, já que eu estava apenas matutando coisas que estavam longe de acontecer e que não tinha como prever se realmente aconteceriam daquela forma.
— Aqui, boa sorte para cuidar da estressadinha — me estendeu a bebê chorona, fazendo-me franzir a testa ao envolvê-la em meus braços e observar pegar uma toalha na gaveta para si.
— O que houve? — olhei para , tentando me balançar para acalmá-la.
— Não faço ideia. Acho que ela não queria tomar banho, ficou irritada quando a coloquei na água.
Ri, negando com a cabeça. Como pode uma bebê de três meses querer algo? Já vi que puxaria a mãe no quesito estresse, e no caso eu falo tanto de quanto de Grace.
Desci para a sala com o choro já me irritando o ouvido. Fiz de tudo, brinquei de aviãozinho com ela, verifiquei sua temperatura no caso de ainda não ter feito, massageei sua barriguinha para caso ela estivesse com cólica ou gases. Quando desisti, apelei para algo que e eu tínhamos acordado que não faríamos: liguei a TV e me sentei no sofá com ela em meu colo.
Bom, se era mesmo prejudicial a ela, eu não sabia, mas foi o único jeito que encontrei para ela ficar quieta. Lógico, depois de um tempinho eu desligaria para evitar uma bronca de . Era engraçado temer aquilo, nem da minha mãe eu tinha medo quando era mais novo.
Assim eu fiz. Quando ouvi seus passos no andar de cima, peguei o controle e desliguei, disfarçando com a bebê quando ela chegou nos degraus da escada. A espiei se aproximar, vestindo sua camisola sem graça que mais parecia roubada de sua avó.
— Eu ouvi a televisão — passou reto, indo para a cozinha. Comprimi os lábios antes de me levantar e ir atrás dela. — Só não vou brigar porque estou cansada demais pra fazer isso — riu, apoiando-se na pia.
— Te disse que a bicicleta não seria uma boa ideia.
— Não disse, não. Estava era preocupado com minha calcinha à mostra.
Tombei a cabeça para o lado, ponderando. É, aquilo também.
— Mas valeu a pena. Eu estava morta de saudades de pedalar por aí, mesmo que minhas pernas já estejam doendo hoje e, provavelmente, vão piorar amanhã. Fora que a gente passou um dia inteiro com essa coisinha linda — ela se aproximou, pegou a mãozinha da bebê e a beijou repetidamente.
— É, foi um bom dia — concluí, pensativo. — Sobre o que aconteceu no carro…
— Está tudo bem. Vamos tentar de novo outro dia, mas me avise antes pra eu fugir se não estiver preparada, sim? — riu sozinha, e eu apenas esbocei um sorriso fraco. Não consegui me eximir da culpa do estado que ela ficara. — Falando nesse trato, vamos jantar o seu macarrão de mais cedo?
Assenti, vendo-a ajeitar tudo para esquentar a comida. Eu não me importava nem um pouco e também achava que não seria justo fazê-la preparar outra coisa, cansada do jeito que estava. Mesmo tendo dormido até às duas, ainda suspeitava que não tinha sido o suficiente para que ela recarregasse as energias gastas dos últimos dias. Se eu, que não tinha vivido tudo aquilo na mesma intensidade que ainda estava cansado, imagine ela.
Tive uma ideia e fui até a dispensa, na parte em que armazenávamos algumas bebidas; entre elas, espumantes e alguns vinhos. Apanhei uma das garrafas enquanto equilibrava num braço só. Assim que cheguei na cozinha, a vi arquear as sobrancelhas e cruzar os braços, rindo ao negar com a cabeça.
— O que foi? É sábado à noite e é a única coisa que podemos fazer para nos divertir nessa casa.
— Ei! Nós duas somos super divertidas e não precisamos de álcool pra isso, ok? — se justificou, ofendida. Eu discordava; ficava ainda mais interessante quando estava sob influência do álcool.
— Não estou dizendo que não são, só que um bom vinho vai nos ajudar a relaxar um pouco — depositei um selinho em seus lábios antes de ir até o armário e apanhar duas taças.
Estendi a dela já cheia, vendo-a tomar um pouco enquanto voltava a se empenhar no que fazia antes. Apenas me sentei numa das cadeiras em volta da mesa e brinquei com , assistindo vez ou outra se movimentar pela cozinha enquanto bebericava seu vinho em mãos. Logo nos servimos e, após colocar a bebê no carrinho, passamos a jantar tranquilamente, conversando sobre bobagens, coisas monótonas e dando algumas risadas. era muito idiota, engraçada quando se soltava e, convenhamos, já estava muito mais solta diante de mim e vice-versa. com certeza discordaria e diria que eu era quem era o bobão.
Toda certeza de que nos odiávamos desde cedo talvez tenha nos atrapalhado na vida, porque, ao conviver com naqueles meses e dias, eu até poderia dizer que tínhamos pelo menos o senso de humor parecido. Minha esposa tinha razão: tanto ela quanto Olivia eram divertidas. Depois que passei a ter uma família de verdade, soube diferenciar e apreciar os momentos divertidos. A noite que passamos em Tulum naquele restaurante com música, bebidas e dançando sem preocupações foi divertidíssima, mas estar ali, ouvindo tagarelar sobre coisas que passou num transporte público ou na faculdade que fazia também era divertido – de um jeito diferente, mas não deixava de ser.
Havia um aconchego diferente em apenas fazer coisas cotidianas naquela casa, até mesmo Elisabeta parecia estar conosco há mais tempo que estava. Era tão tranquilo que nem vimos aqueles três meses passarem! já começava a dar gargalhadas sonoras. terminou seu prato e passou a conversar com a bebê no carrinho enquanto eu preparava a mamadeira. Aparentemente, também achava a mãe engraçada, já que riu gostosamente com as baboseiras que a loira lhe contava.
— Que vontade de gravar essa gargalhada pra ouvir o dia inteiro quando estiver longe! — exclamou ainda risonha quando fui até o carrinho já com a mamadeira em mãos. — Tem dia que eu tenho vontade de levar ela escondida pro trabalho, de tanta saudade que eu sinto dela — entreguei-lhe a mamadeira, vendo-a pegar a menina do carrinho e aconchegá-la em seu colo. — Às vezes eu queria poder dar de mamar a ela. Já ouvi muito falar da conexão que isso gera com o bebê.
— Eu estava pensando isso agora há pouco.
franziu o cenho, estranhando minha fala.
— Oh, não sobre você dar o peito a ela — justifiquei quando me dei conta. Realmente nunca tinha pensando naquilo, até porque teria que dividi-los comigo. — Sobre ter a experiência completa — respondi, tentando conter o riso que o meu pensamento anterior me causou. — Estava pensando sobre não ter assistido o parto, era para eu tê-la acompanhado. Porém, não me deixaram entrar, porque dei a entrada por Grace como irmão dela, não como o pai da criança.
Não estive presente nem mesmo quando Grace descobriu sua gravidez. Lembrava-me claramente do dia que ela me ligou para contar, já temerosa, prevendo tudo o que minha mãe faria e fez com ela quando descobrisse. Era estranho pensar que consegui passar tanto tempo longe da minha irmã, desde que fui para a faculdade e logo depois mudei-me para Londres para assumir a empresa. Se ela não tivesse ficado grávida, provavelmente ainda continuaríamos longe um do outro.
Que bom que consegui aproveitar sua presença em seu melhor momento da vida. Grace vivia por sem nem ao menos saber o nome dela. Estava radiante apesar de todas as turbulências que passou enquanto esteve grávida.
— Sim, mas isso não diminui o amor que sentimos por ela.
Concordei com a cabeça, sorrindo ao assisti-la beijar o topo da cabeça da neném, que tinha um dos bracinhos pendurados nas costas da mãe enquanto o outro se mexia devagar sobre a pele descoberta do braço de . Os olhinhos pequeninos estavam cerrados, quase se fechando, enquanto respirava serena e sugava o bico da mamadeira. Ela quase pegava no sono ao mesmo tempo em que queria a todo custo olhar para o rosto da mãe.
Me perguntei o que Grace diria se estivesse ali. Com certeza ela mesma estaria dando de mamar para a filha, ou senão teria colocado para lhe dar mamadeira como ela sempre dizia que faria quando desse à luz. Grace sempre brincou que os padrinhos não só dariam presentes e seriam figuras simbólicas na vida do bebê que esperava; ela colocaria nós dois para trocar fraldas e ninar.
Hoje eu via que, mesmo brincando, minha irmã tinha um dom de adivinhar as coisas. Queria que ela tivesse adivinhado que partiria logo, assim poderia me ensinar em vida como eu seguiria sem ela. O que antes eram apenas alguns quilômetros nos separando, agora era um vazio, uma eternidade de distância entre nós.
não terminou a mamadeira, seu sono não a deixou fazê-lo. Após esperá-la arrotar e subir com ela nos braços para trocar sua fralda, a deitei em seu berço para me certificar que sua janela estava travada por dentro. Acendi seu abajur de nuvem no canto da parede e fechei a porta devagar, vendo-a suspirar, deitada ao lado do jacaré de pelúcia que lhe dei de Natal.
Desci e encontrei debruçada sobre a pia, lavando a louça distraída. Cheguei por trás, envolvendo seus quadris. A camisola era broxante, mesmo assim eu tinha viva em minha memória a forma de seu corpo e a textura de sua pele macia. Então, naquele momento, era apenas um pedaço de pano que logo eu me livraria.
— Deixe isso aí — sussurrei ao pé de seu ouvido, fazendo-a encolher os ombros e rir fraco.
— Não. Vou lavar hoje pra não deixar para amanhã, se não, acumula tudo! — teimou, abrindo a torneira para enxaguar os copos.
— Deixe isso, … — passei o braço sobre o dela, tentando fechar a torneira por cima de sua mão.
continuou a segurar pelo prazer da implicância, porque ao mesmo tempo gargalhava junto de mim. A água caía enquanto cada um forçava a torneira para um lado. Até que, num movimento rápido, um de nós soltou enquanto o outro continuou teimando, resultando na parte de cima da torneira saindo e jorrando água pra todo lado.
se protegeu com as mãos como se pudesse parar a água, enquanto eu alcancei o que restou da peça de alumínio e fechei o registro, parando o fluxo.
— Olhe o que você fez, — apontou para si, fingindo-se de brava enquanto lutava consigo mesma para não explodir em risadas.
Não resisti quando a avaliei e vi metade de sua camisola encharcada, colada ao corpo. Mordi o lábio inferior ao notar a transparência do tecido.
— Isso a gente resolve amanhã — larguei a peça da torneira dentro da pia, antes de me aproximar sorrateiramente dela. A loira me olhava risonha ao entender quais seriam meus próximos passos. — Agora nisso aqui — apontei para sua roupa molhada —, damos um jeito agora mesmo.
Envolvi o primeiro botão da camisola clara com meus dedos, não encontrando dificuldade em abri-lo. Seu olhar estava concentrado em minhas mãos enquanto apenas se deixou ser despida. Beijei seu pescoço, descendo ao arrastar os lábios recém-umedecidos por sua pele macia, parando em sua clavícula proeminente para depositar outro beijo. respirou mais fundo quando voltei minhas atenções ao próximo botão, ansiosa para que eu parasse de torturá-la com minha lentidão.
Mal sabia ela que era um péssimo negócio demonstrar ansiedade justo para mim, que adorava deixá-la louca, vê-la ansiar por mim. Ao mesmo tempo que queria apressar as coisas, pular toda aquela premissa e ir logo direto ao ponto, eu não conseguia abrir mão de todo aquele processo que envolvia dar o máximo de atenção possível a cada centímetro de pele dela, beijar, morder, apertar, acariciar…
Era exatamente aquilo que eu estava fazendo naquele exato momento. A cada botão que abria, eu depositava um beijo no local recém-descoberto. Já estava no terceiro, meus lábios tocaram o meio de seus seios, que ainda eram cobertos pela camisola. Sorri ao sentir seus batimentos acelerados. Saber que eu a deixava naquele estado febril, com o coração saindo pela boca, acariciava meu ego como poucas coisas nessa vida.
— Estava mesmo na hora da nossa reunião que combinamos mais cedo — falei, e soltou uma risadinha ao alcançar meus cabelos e emaranhar os dedos finos ali. Ela me assistia descer com os botões abertos e os beijos pelo seu tronco, que a cada minuto ficava mais despido.
— E qual seria o assunto da pauta? — indagou de sobrancelhas arqueadas, fazendo-me espiar seu rosto após me colocar de joelhos diante dela. A loira sorria satisfeita diante de minha submissão. Quando abri outro botão, já tinha perdido as contas de quantos já tinham sido abertos.
— Esse corpo — beijei seu umbigo, vendo sua barriga subir e descer rapidamente quando ofegou antes de morder o lábio. Deslizei meus dedos por baixo do restante da camisola que ainda estava fechada e alcancei sua calcinha, puxando-a por ambas as laterais até tê-la descendo por suas pernas e indo parar no chão. — E tudo o que vou fazer com ele… — abri outro botão, repetindo o ritual do começo e deixando um beijo abaixo de sua barriga.
respirou com dificuldade e voltou a me pegar pelos cabelos, daquela vez nada gentil. Cheguei a sentir alguns fios sendo puxados, mas não me importei – até que a dor naquele contexto era satisfatória. Estava tão inebriado com seu corpo, a textura de sua pele e o cheiro de seu hidratante fresco que emanava dela, que tudo além daquilo virava um mero detalhe para mim.
Eu só tinha olhos para seu abdômen denunciando seus suspiros, para seus pelos eriçados, os lábios sendo mordidos para abafar suas reações e para aquele par de pupilas dilatadas.
— Qualquer coisa — ela disse, e daquela vez quem ofegou fui eu.
A urgência em sua voz deixou meu pau instantaneamente duro, pronto como nunca para fodê-la de todas as maneiras possíveis e imagináveis. Abri dois dos três últimos botões com rapidez, sentindo-me contagiar com a ansiedade dela no início.
— O quê? — sorri malicioso, querendo ter certeza do que me foi dito, mas já me antecipando e ficando completamente louco de tesão só de pensar em ter ouvido certo.
— Você pode fazer qualquer coisa com ele.
Abri o último.
Encarei sua intimidade bem próxima do meu rosto. Ali, de joelhos diante dela, umedeci meu lábios e avancei com o rosto em sua direção. Minha língua deslizou sobre seu clitóris, que já estava molhado, fazendo-me sentir seu gosto direto da fonte. Vi que suas pernas bambearam quando me afastei minimamente para espiá-la, antes de depositar o último dos beijos do meu ritual de apreciar seu corpo enquanto o despia.
Subi novamente, já agarrando-a com possessividade enquanto ainda lambia os lábios e a tinha ofegando em meus braços. Encostei nossas testas e olhei para baixo, tendo a visão de seu corpo exposto pela camisola aberta. Quase revirei os olhos ao ver e sentir seus mamilos rijos tão colados em meu peito coberto pela camiseta que usava.
— Não me provoca assim — voltei a encarar seus olhos. sorriu maliciosa ao notar minha voz falhar, tamanho era o meu desejo. — Você não sabe o quanto eu te quero, não imagina o que eu seria capaz de fazer… — agarrei sua mandíbula, ainda com seu rosto colado no meu.
— Faça — sussurrou e assentiu com a cabeça. Seus olhos azuis estavam escuros, flamejantes. A luxúria estampada neles era explícita. — Não importa o que seja.
Fechei os olhos tentando controlar minha respiração, sentindo meu pau latejar dentro da cueca. realmente não sabia o tamanho da minha saudade. Eu queria descontar todos aqueles dias que ficamos sem transar naquela noite apenas. Foder como se não houvesse amanhã, suar em cima dela, fazê-la desfalecer e ainda assim continuar a invadi-la com toda a força que eu tinha. estava assumindo a responsabilidade de aguentar e participar comigo das loucuras que minha cabeça estava projetando sem parar naquele momento.
Não pensei mais, apenas icei seu corpo para cima, fazendo-a entrelaçar as pernas em meu quadril, e a levei para o primeiro lugar que vi em minha frente.
— Na mesa? — riu, apoiando o corpo em ambas as mãos.
— Já fizemos num banheiro de avião, o que teria de anormal na mesa da cozinha? — inclinei-me sobre ela e beijei seu pescoço, arrepiando-a dos pés a cabeça ao sugar sua pele devagar. Sabia que se ficasse a marca, me mataria no dia seguinte, mas pelo menos eu morreria feliz. — Além do mais, você é minha sobremesa de hoje.
— ! — desferiu um tapa em meu peito e riu gostosamente, jogando a cabeça para trás e deixando todo o pescoço à mostra, onde voltei a atacá-la. Em seguida, deitei-a na mesa e senti me prender em suas pernas.
Eu amava sua gargalhada, amava ainda mais quando eu a fazia rir daquele jeito.
— O quê que tem? Eu também serei a sua hoje — lhe dei um selinho casto, ainda curvado sobre ela.
— Então tira essa camisa, vai? Está muito vestido.
Ergui meu tronco e fiz o que me foi mandado, me livrando da camiseta branca e vendo-a me secar descaradamente.
— Gostoso.
Senti um frio na barriga. Sorri malicioso ao contemplar a safadeza estampada no rosto dela.
— Você acha? — forcei meu bíceps teatralmente, vendo-a rir novamente.
— Sim, eu acho. Muito, muito gostoso — ergueu o tronco e tocou meu peito com suas mãos macias, sentindo meus batimentos, fazendo-me arrepiar com suas unhas curtas raspando em meu abdômen.
desceu até minha calça, desfez o laço do meu moletom e, com a minha ajuda, puxou a peça que eu vestia para baixo. Minha cueca estava estufada, com meu pau já não aguentado mais ficar preso ali dentro de tão duro que estava. Pronto para ela. encarou a região sem pudor algum, levou a mão até o volume e o delineou por cima do tecido que os separava.
— Olha como você me deixa — seus olhos azuis brilharam, alternando-se entre ele e meu rosto sôfrego. — Sempre consegue me deixar assim — murmurei, contemplando seu deleite.
me deixava de coração acelerado, morto de vontade de beijar aquela boca e nunca mais parar. Me deixava completamente viciado em seu gosto, corpo, jeito de rir e até mesmo suas expressões duras quando ela ficava bravinha e brigávamos por bobeiras. Sei que devia me preocupar com todas aquelas sensações, principalmente quando estava percebendo a que ponto elas estavam chegando.
A ponto de… não conseguir me satisfazer com nenhuma outra, porque o que cada célula do meu corpo almejava eu só encontrava no dela.
E apesar de às vezes me bater a tal preocupação, eu sempre ligava o foda-se. Tudo o que me proporcionava era bom pra caralho para eu ficar tentando procurar problemas naquilo.
— Até quando não está por perto, quando penso em você no trabalho, preso no trânsito ou no elevador da empresa… Você é o meu tesão diário, — a olhei intensamente, vendo-a suspirar diante de mim.
— Você pensa em mim? — seu rosto ganhou uma seriedade surpreendente.
Ambas as mãos dela foram de encontro à camisola que ainda vestia seu corpo. se despiu devagar, atraindo meu olhar em cada gesto que realizava ao deslizar a peça pelos ombros e deixá-la cair sobre os braços. Levei uma das mãos ao seu quadril desnudo, acariciando a região enquanto inspecionava cada centímetro de pele diante de mim.
E tinha como não pensar?
era deliciosa, e estava completamente nua e aberta para mim. Depois de me revelar seu maior segredo e se mostrar em seu pior momento, tê-la daquele jeito diante de mim só me fazia achá-la ainda mais gostosa. era uma mulher incrível, forte, incansável. Fazia o babaca do Tom parecer um otário ao lado dela.
Na verdade, poderia ser qualquer homem, inclusive eu. Mas eu nunca admitiria aquilo para ela.
— Mais do que gostaria — murmurei, pegando um de seus seios medianos. A loira mordeu o lábio quando me viu aproximar a boca de seu mamilo rijo, e gemeu manhosa. Chupei a região, passando a língua em volta de sua auréola quando larguei um para ir direto para o outro. — Às vezes, no tédio de alguma reunião, você me vem à cabeça e eu desejo por alguns instantes estar em qualquer outro lugar fazendo com você o que estamos fazendo agora.
Minha esposa nem ao menos percebeu minha outra mão se aproximar do meio de suas pernas. Gemeu gostoso quando acariciei seu clitóris, se abrindo ainda mais para mim.
— Penso nesse corpo quente... — seu abdômen se contraía, demonstrando o quão alterada sua respiração estava. passou a rebolar contra a minha mão. — Penso no seu interior, que me acolhe tão bem que faz o ato de estar dentro de você ser a melhor sensação do mundo…
— Eu amo ter você dentro de mim, me fodendo, me tratando como uma deusa… Às vezes me pego lembrando também. Quando vou ver, estou molhada, desejando ter seu corpo grande cobrindo o meu novamente e me matando de prazer como você sempre faz.
Toquei sua entrada de leve, torturando-a. ofegou imediatamente.
— Coloque… — sussurrou, imensa em tesão. Fiz o que me pediu, introduzindo um dedo, assistindo-a jogar a cabeça para trás e gemer. — Outro… — implorou, ofegante.
— Assim? — Arquei a sobrancelha, introduzindo mais um. — Seus olhos se reviraram. Mordi o lábio, constatando que aquela era uma das cenas mais sexys que já vi na vida.
Fiz um vai e vem lento, apenas sendo um mero telespectador de , que se desfazia de prazer apenas com meus dedos. Esperava que ela estivesse pronta para a noite que teríamos pela frente, e que aquele era apenas um aperitivo do que viria.
— Merda, — xingou, fazendo-me rir. — M-Mais rápido…
Tirei os dedos, vendo-a protestar na mesma hora. Neguei com a cabeça, sabendo que a tinha em mãos, desesperada para que eu continuasse a lhe dar prazer. Era o momento perfeito para ouvi-la me dizer o que eu tanto queria escutar.
— Por que parou? — indagou, indignada ao sentar-se sobre a mesa.
— Diga que é minha — desafiei, aproximando meu rosto do dela.
— Você só pode estar de brincadeira com a minha cara… — riu de nervoso, fazendo menção de se desvencilhar de mim e descer da mesa.
— É sério, — a prendi ali, apoiando ambas as mãos ao lado de suas coxas. — Diga — beijei seu queixo, rumando para sua mandíbula. — Prometo que te chupo todinha — sussurrei ao pé do ouvido antes de mordiscar sua orelha.
Ela respirou fundo, afastando-se minimamente de meu rosto para poder me encarar de frente. Passou a língua nos lábios, umidificando-os antes de revirar os olhos em implicância.
— Tá bom — focou seu olhar no meu, desmanchando o deboche em sua expressão e apenas mantendo o contato visual ao se aproximar e deixar um selinho bobo em minha boca. — Eu sou sua.
Tomei seus lábios devagar, deslizando minha língua pela sua num beijo sedento.
— Toda minha — desci pelo seu pescoço e barriga, aproveitando que deitava-se de volta na mesa. Passeei com minha língua pelo caminho que trilhei até o calor entre suas pernas.
se contorceu assim que dei a primeira pincelada com minha língua, superficialmente, apenas para dar uma provocada. Afastei seus lábios, chupando seu clitóris, sentindo-a ofegar cada vez mais. Quando espiei seu rosto, ainda com a boca ocupada, pude vê-la apertar os próprios seios enquanto tinha os lábios entreabertos gemendo baixinho. Acariciei sua bunda, sentindo-a envolver minha cabeça com suas pernas.
Ouvi-la me xingar enquanto agarrava meus cabelos e rebolava contra minha língua tinha sido o ponto alto da minha semana. Eu nunca tinha me sentido daquele jeito na cama com nenhuma outra; seu prazer me dava tanto prazer que parecia que era eu quem estava sendo chupado. Tê-la me pedindo em meio a murmúrios e soluços para não parar, cara, eu não queria parar nunca. Sentir seus pés me tocando as costas, como se ela desse pequenos passos sobre minhas escápulas a cada vez que se contorcia, e logo depois tê-la gozando num orgasmo de tirar o fôlego, me fazendo relembrar o quão gostoso seu gosto era… Eu não queria parar nunca.
— Vamos lá pra cima — peguei-a nos braços, tendo os dela envolvendo meus ombros.
mais uma vez entrelaçou as pernas em meus quadris, daquela vez sentindo meu pau coberto apenas pela cueca. Me beijou a boca, levemente descabelada e muito, mas muito sorridente.
O que um orgasmo não faz, não é mesmo?
— Espera — ela pediu, então parei próximo da saída da cozinha. — Preciso de um copo de água.
Coloquei-a no chão e vi aquela bunda passear pela cozinha até o armário e encher o copo na maior naturalidade do universo.
— Já cansou? — indaguei ao notar alguns fios grudados em sua testa suada.
— Não, só estou me preparando pro próximo round — murmurou ofegante, terminando de beber o líquido transparente.
Observei-a de longe soltando uma risadinha. Intimidade era mesmo uma coisa louca, não? Com quantas pessoas ela já havia estado na mesma situação? Eu poderia responder por mim – fora os banhos que já tomei acompanhado, dificilmente tive uma ex minha transitando nua pela casa diante de meus olhos.
— Vamos — interrompeu meu raciocínio, pegando minha mão e andando na frente. Encarei nossas mãos entrelaçadas, confuso, subindo degraus acima junto dela.
Logo entrávamos no quarto aos beijos. já tinha seus dedos largos puxando a barra da minha cueca para baixo; já eu lhe apertava a bunda, colando nossos quadris enquanto íamos aos tropeços e às cegas pelo quarto. Joguei-a contra a cama, pronto para finalmente libertar meu membro e ir atrás de um preservativo. já me esperava deitada, se tocando diante de mim, com aquela cara de malícia que eu reconheceria a quilômetros de distância e que me deixava completamente louco.
Até que…
— Acho que alguém acordou — minha esposa encarou a porta fechada, fazendo-me imitá-la e suspirar derrotado.
— Estava torcendo pra ser uma alucinação — meus ombros caíram junto do meu amiguinho, que desanimou assim que o choro ficou mais audível do outro lado da porta.
Olhei para em silêncio, já prevendo que sobraria para mim.
— Você está mais vestido — ela encolheu os ombros, se justificando.
Não disse?
Fui até o closet e peguei um moletom qualquer, vestindo-o às pressas. Quando voltei à área da cama, a loira continuava deitada, com a cabeça apoiada no cotovelo e esperando-me sair.
— Não se mexa, fique aí — me aproximei da cama; suspirou, assentindo. — Continue do jeito que está, não vista nadinha. Eu já volto pra continuarmos de onde paramos — lhe dei um selinho e saí porta afora, entrando no quarto da bebê chorona.
Acendi sua luz e a vi se esgoelar em choro. Apesar de odiar vê-la daquele jeito, não podia negar que achava extremamente adorável o biquinho que todos os bebês faziam quando choravam.
— O que foi, amor?
O som diminuiu. Seus olhinhos verdes me encontraram na ponta do berço, e moveu os bracinhos quando envolvi seu corpinho para trazê-la para o meu peito.
Descobri sozinho o que era após checar sua fraldinha e ver que estava suja – bem suja, na verdade. Retorci meu rosto em nojo ao limpá-la até que estivesse tudo certo para poder colocar outra fralda. Se não estivesse tão tarde, lhe daria até um banho; porém, além do horário, eu ainda estava com pressa.
Deitei em meu colo, esperando-a magicamente fechar os olhinhos e cair no sono como a neném bonitinha e tranquila que ela era. Porém, não foi o que aconteceu, e aquilo me frustrou um pouco. Depois de uns quinze minutos me balançando que nem um idiota com ela em meus braços, aquele pouco se tornou muito. E depois de meia hora – sim, eu estava contando o tempo – eu estava muito mais do que só frustrado.
Apesar dos pesares, não conseguia sentir raiva ao encarar seu rostinho e vê-la me olhando curiosa ao tentar se comunicar por meio de sons incompreensíveis. Eu a amava tanto que até quando ela empatava a minha foda conseguia ser adorável sem ao menos se esforçar.
— Dorme, neném, que o bicho-papão vem pegar… — franzi a testa, me perguntando se estava cantando certo. — Mamãe está esperando o papai para brincar… — me permiti ter uma licença poética e adaptei a canção de ninar para a situação atual. Quem sabe assim poderia ter dimensão da minha urgência em ir… brincar com a mãe dela. — Filha, por favor… — me senti um otário ao implorar algo pra uma criança de três meses. Bem que dizem que figuras femininas geralmente são as que mandam, mas estava levando aquilo muito a sério, muito cedo. — Olha, fazem muitos dias que mamãe e eu não… brincamos juntos. Dorme, bebê, por favor.
Passou-se mais dez minutos depois do meu clamor, implorando misericórdia de . Quase cheguei a prometer pegar leve com seus pretendentes quando ela crescesse. Ainda bem que não cheguei a aquele extremo.
A bebê se entregou ao soninho que veio devagarinho, primeiro fazendo-a piscar os olhinhos; depois tirando sua força dos braços, obrigando a pequena a largá-los caídos nas laterais. Logo sua barriguinha se movimentava lentamente, indicando que ela tinha enfim se entregado.
Coloquei-a de volta no berço num cuidado quase cirúrgico, cobrindo-a com seu cobertorzinho com tanta lentidão que eu parecia estar desarmando uma bomba. Quando me virei para deixar o quarto, vi seus olhinhos sonolentos se abrirem novamente.
— Tudo bem, você dorme com a gente hoje — sussurrei, já sabendo que não tinha mais clima nenhum pra sexo. — Mas é só hoje.
Levei-a comigo para o quarto, encontrando desmaiada no décimo quinto sono, ainda nua, me esperando como eu disse para ela ficar antes de sair. Olhei para e voltei a olhar para Meester, cutucando-lhe o braço.
— ... …
— Eu não dormi, não… eu… — ela se sentou num pulo, estranhando a presença do pequeno ser no recinto. — O que ela está fazendo aqui? — puxou os travesseiros, tentando se cobrir.
Suspirei ao assisti-la fazer aquilo. Se soubesse, teria agilizado as coisas lá embaixo mesmo, sem todas aquelas preliminares. Devia vir num manual de pais de primeira viagem:
Regra número 1: se tiver oportunidade de transar, transe logo. Não sonhe com preliminares, o bebê irá acordar antes mesmo de chegar na penetração.
— Se vista, ela vai dormir com a gente.
— Mas, no berço…
— Tente colocá-la no berço e veja o que acontece — ri sem humor, vendo ir até o closet e voltar com uma camiseta qualquer minha.
— anda muito mimada pro meu gosto.
Arqueei as sobrancelhas. falava como se ela não fosse a maior culpada. podia ser novinha, mas com certeza já devia ter percebido que, se chorasse, conseguiria o que quisesse de nós.
A loira se enfiou debaixo das cobertas e me deixou sem ação.
— Sem calcinha, ? — quase chorei ao entregar a bebê nos braços dela.
Quando a mandei se vestir, era porque sabia que não conseguiria dormir na mesma cama que ela nua sem fazer nada. Com na cama, então, eu nem sequer pensaria em sexo. Porém, eu não era de ferro, né?
— Vamos dormir logo, — virou-se para a bebê, colocando sua chupeta na boca e acariciando seus cabelos lisos, vendo-a voltar a fechar os olhinhos.
Deitei-me após apagar as luzes, encaixando meu corpo atrás do da minha esposa, sentindo-a segurar minha mão por cima de sua cintura. suspirou, virou a cabeça e beijou minha boca. Assim que desgrudei nossos lábios, depositei alguns beijos em sua nuca e pescoço.
— Eu amo esse barulhinho que ela faz — sussurrou em meio a escuridão. O som em questão era de com sua chupeta. Sorri ao enterrar meu rosto na curva de seu pescoço. — Boa noite, .
— Boa noite… minha — a ouvi segurar o riso para não acordar a menina.
— Vai se foder, .
's point of view.
Abri os olhos após me remexer devagar antes de fazê-lo. Lembrava-me de ter tido aquela preocupação mesmo que inconsciente durante grande parte da noite, por saber que estava na cama conosco. Eu sabia o quanto me mexia enquanto dormia; já perdi as contas de quantas vezes acordei de madrugada com movendo um braço ou perna minha que foi jogada sobre ele. Então, meu medo em relação a bebê tão frágil estar adormecida, tão pertinho de meu corpo, era compreensível até demais.
Por sorte, meu instinto materno tinha me mantido milagrosamente na linha aquela noite. Bom, ele e o braço de , que ainda estava descansado em minha cintura, provavelmente para me impor limites caso eu me esquecesse de e quisesse rolar sobre o colchão.
Era engraçado falar sobre instinto materno sem ter parido ninguém. Sempre achei que fosse algo biológico, que se cultivasse durante a gestação e que tivesse a ver com o laço da mãe com o bebê, que dividiram o mesmo espaço por nove meses. Mas não, eu também sentia aquele instinto de proteger . Tinha adquirido aquela crença de ter superpoderes quando pensava que algo pudesse machucá-la. Eu me sentia forte, indestrutível e capaz de tudo para defendê-la.
Jamais imaginei que a adoção fosse me fazer sentir as mesmas coisas que uma mãe biológica sente; aliás, eu jamais imaginei qualquer coisa sobre adoção na vida.
suspirou atrás de mim, chamando minha atenção e me tirando da grande viagem que eu tinha embarcado ao encarar ressonando tranquila ao nosso lado. Me remexi e fiquei de barriga para cima, virando meu rosto para espiá-lo ao achar que ele tivesse acordado.
Encarei , vendo-o de olhos fechados; sua mão continuava sobre meu corpo. Após minha movimentação, parou sobre meu umbigo e ali ficou, já que ele não moveu um músculo sequer. Ri pelo nariz ao reparar na semelhança física que e tinham se olhássemos para ambos com atenção.
A boca era idêntica. Olhei para a bebê e reparei no narizinho também, não precisando ter nenhum dos dois acordados para saber que a cor verde dos olhos também era algo em comum entre tio e sobrinha. Imaginei o que Grace diria se tivesse vivido o bastante para vê-lo com a filha nos braços. realmente parecia o pai dela, mas claro, ele e Grace também eram super parecidos. não se parecia nada com Miguel, e aquilo me intrigava quanto à resistência dos pais de em reconhecê-la como neta. Não existia nenhum traço daquele traste na bebê. Ela se parecia tanto com a mãe!
Nunca entraria na minha cabeça o motivo de renegarem tanto a menina! Ela poderia ser um ótimo remédio para curar a dor da perda de Grace, que eu sei que eles sentiam. foi a nossa cura. Com ela, sabíamos que teríamos a essência de Grace conosco para sempre. Com ela, a ausência de Grace era preenchida por completo, dia após dia.
— Está me observando dormir?
Ofeguei assustada, tendo rindo da minha cara já de olhos abertos e com a cara amassada.
— Não! Você me assustou, seu idiota — resmunguei, sentindo-o me apertar em seus braços. desferiu alguns beijos pelo meu rosto, fazendo-me encolher enquanto ria baixinho para não acordar a bebê ao nosso lado. — Não me beije, nem escovamos os dentes ainda.
Ele me ignorou, pegando meu queixo e beijando minha boca demoradamente. Cedi quando o senti pedir passagem com a língua, e suspirei contra seus lábios quando relaxei meu corpo; o dele cobriu o meu devagar.
— Isso é casamento, querida — me desferiu um selinho enquanto eu fingia não me arrepiar com o tom rouco de sua voz, tinha soado tão sexy. — Bom dia, aliás.
Peguei-o pela nuca, enroscando mais uma vez minha língua com a sua.
— Bom dia — lhe sorri contida, encarando-o tão de pertinho sobre mim, apoiado no colchão ao meu lado.
Aquilo com certeza também fazia parte do casamento como tinha acabado de brincar: dormir e acordar ao lado da mesma pessoa todos os dias. Era estranho o quanto nós dois tínhamos entrado naquela rotina sem nos darmos conta. As circunstâncias nos fizeram dividir a mesma casa e também a mesma cama – o quão louco seria imaginar tudo aquilo anos atrás? Como a vida poderia ser irônica… Colocar justo para ser meu marido.
Mesmo que fosse de mentira.
Pertinho de seu olho havia um cílio caído, que provavelmente tinha se soltado dos demais quando ele coçou os olhos há pouco. Estiquei minha mão em direção ao seu rosto, pegando-o delicadamente em meu dedo. me olhou confuso antes de ver o que eu tinha no dedo indicador.
— Vai, faz um pedido — lhe estendi a mão.
olhou para o lado e viu ainda dormindo, respirando tranquilamente de barriguinha para cima e chupeta na boca. Logo depois, me encarou por um tempo. Franzi a testa diante da sua lerdeza ao fazer algo tão simples! Devia estar lento por ter acabado de acordar. Arqueei as sobrancelhas, apressando-o, fazendo com que ele saísse do seu mundo particular. negou com a cabeça em silêncio, soprando o pequeno fio com um desdém enorme.
— Isso é bobagem — saiu de cima, deixando a cama e dando-me a visão de seu peito descoberto por ele ter dormido apenas de calça.
— Você é um chato — lhe dei a língua, arrancando-lhe uma risada fraca no caminho do banheiro.
— Não vai me dizer que acredita no Papai Noel e no coelho da Páscoa também! — sua voz debochou lá de dentro. Ri, baixo sentando-me na cama.
— Nunca acreditei. Nunca mentiram pra mim sobre isso — refleti, pensando na primeira vez que contei para Lisa, uma amiga do jardim de infância, que não existia Papai Noel e que aquele velho era só um homem qualquer fantasiado.
Levei uma bronca enorme da professora por fazer a menininha chorar e, quando cheguei em casa, levei outra de minha mãe, que me fez prometer não falar mais nada sobre aquilo com nenhuma outra criança. Era como se fosse um segredo de Estado.
— Então você também fingia que acreditava para Grace? — ele voltou para o quarto com a escova de dentes na boca.
Assenti, lembrando-me dos tantos Natais, Páscoas e de todas as estrelas cadentes e dentes-de-leão que já encontramos quando estávamos juntas. Estávamos sempre juntas. No fundo, eu não acreditava tanto assim naquela coisa de assoprar para dar sorte; porém, tinha esperanças de que a fé de Grace em todas aquelas superstições e crenças fosse capaz de fazer os meus desejos se realizarem também.
— Eu fingia até quando ela me dizia que ia parar de beber — levei a mão ao rosto, abafando minha risada. Já correu de volta para o banheiro depois de quase cuspir a pasta de dentes. Ouvi sua gargalhada sonora lá de dentro.
Grace nunca foi muito controlada com bebida, sempre saía mais louca que o Batman de todas as festas que íamos juntas. Por isso eu era fraca para álcool, geralmente não bebia muito para poder cuidar dela. A única vez que me descuidei foi justamente na noite em que ela me deu um perdido e saiu da festa que estávamos acompanhada de Miguel.
Lembrava-me do pânico que senti quando liguei diversas vezes e não obtive respostas. Cheguei a ligar para em Londres para que ele me ajudasse a procurá-la – aquela foi a nossa pior briga de todas. Ele me disse para me afastar da irmã dele, me acusou de tê-la largado sozinha! Quando Grace descobriu a gravidez, eu fui a primeira culpada por ele, que manteve aquela opinião até dias depois do nosso casamento.
Se continuava com a mesma opinião, eu já não sabia. Parecia que não; porém, não valia a pena retomar aquele assunto, visto que tínhamos combinado não fazê-lo por .
Falando nela, a bebê abriu o berreiro, despertando de seu sono pesado. Peguei-a nos braços e tentei acalmá-la, quando saiu da porta lateral do quarto já de rosto lavado.
— Aí, o resultado do álcool em excesso — brincou, pegando a neném para si quando lhe estendi, já que era minha vez de fazer minha higiene matinal.
Se estava fazendo piada com aquilo, era porque tinha superado. A cada dia que passava, eu via ficando cada vez mais distante a nossa fase de ódio mútuo. Depois de tê-lo me pedindo perdão por tudo o que já me fez na infância, sentia que estávamos entrando de vez naquela amizade que prometia durar anos por conta do laço que tínhamos com .
A manhã tinha se passado tranquila. Era um domingo normal, um dia de preguiça para a chegada da segunda-feira. Eu tinha conseguido deixar a tensão do dia de amanhã pra lá, quando me distraiu desde a manhã de ontem; porém, quando não o tive mais ao meu lado na cozinha de casa, a preocupação me tomou.
também pareceu ter sido tirado da paz que estávamos dentro de casa ao receber uma série de emails de Beatrice. Eu o conhecia bem o bastante para saber que estava furioso com a novata querendo mandar nele e na empresa que comandou como desejava nos últimos anos.
Sabia que se fecharia naquele escritório, se esquivar emocionalmente e fisicamente da minha presença e de como já havia começado a fazer, quando ouvi a porta batendo no fim do corredor ao lado da cozinha. Eu lhe daria espaço; ele sabia que, se precisasse, eu estaria ali para conversar como fiz da última vez, e também não arriscaria tentar me aproximar e ser afastada como já aconteceu anteriormente.
Contrariando-me por completo, horas depois, quando chegou o almoço, me vi sentada à mesa sozinha e resolvi fazer um prato para ele, que estava lá, trancafiado desde cedo. Aproveitei que estava dormindo e fui quase nas pontas dos pés até o escritório.
— Entra — ouvi sua voz abafada e abri a porta, empurrando-a devagar, com medo de derrubar o que eu tinha em mãos. A própria vergonha da profissão: uma garçonete que não conseguia equilibrar um prato e abrir uma porta ao mesmo tempo. — O que foi? — ele levou a mão ao queixo, olhando-me com sua carranca.
— Não é óbvio? — indiquei o prato. fez menção de negar, mas intervi no mesmo instante. — Não venha com essa! Vai ficar o dia sem comer? — me senti a própria mãe dele, ou pior, eu tinha feito uma piada sobre Elisabeta estar mimando ele não tinha muitos dias. E lá estava eu, pagando minha língua.
— , eu não estou com fome. Leva isso prá lá antes que derrube e suje o chão — ele pediu, mas continuei parada onde estava, vendo-o passar a mão pelos cabelos bagunçando-o. — Eu estou ocupado, ok? Não vou comer agora — murmurou, ainda impaciente.
— Não é nada que você não possa desviar os olhos ao menos cinco minutos, — avancei em direção à sua mesa, na cara e na coragem, pegando os papéis espalhados por ali e empilhando-os após deixar o prato diante dele, que assistia todos os meus movimentos sem ação. — Não vou deixar que você me afaste de novo só porque está estressado, ok? — apoiei minha mão na mesa, atraindo seu olhar cansado para meu rosto. não esboçou nenhuma reação. — Da primeira vez eu perdoei, não vou fazer o mesmo duas vezes.
Diante de sua aparente indiferença, suspirei e lhe dei as costas, preparando-me para deixar o escritório e não falar com ele pelo resto do dia inteiro. não gostava de ficar em silêncio? Pois então era o que ele teria de mim.
— Espera… — pegou meu braço, impedindo-me de tomar distância. Então, hesitou um pouco antes de me puxar de volta, afastando sua cadeira de rodinhas da mesa. — Eu não quero falar sobre isso com você porque sei sua opinião sobre o que eu penso em relação a Beatrice. E também não quero alimentar ódio por alguém que mal conheço, mas ela está dificultando as coisas sendo uma tremenda filha de uma put… — arqueei as sobrancelhas, fazendo-o se dar conta do que falava. — Está vendo? Não quero falar sobre isso.
Segurei muito o meu riso naquele momento. Ele estava realmente bravo.
— Não precisa me contar o que ela fez, ou o que tanto faz nessa droga de computador, só… Não me empurre pra longe com sua grosseria, senão vai me obrigar a te tratar com igualdade e vamos começar a brigar de novo. É isso o que você quer?
— Não — ele negou com a cabeça, respirando fundo. puxou-me pela mão, fazendo-me sentar em suas coxas. Acomodei-me em seu peito, sentindo seu abraço me envolver. — Me desculpe, já entendi que não dá pra separar tudo entre nós.
Peguei seu rosto com delicadeza, beijando sua bochecha e migrando para o canto de seus lábios rosados.
Mais uma coisa que não sabíamos, mas devia fazer parte da vida de casados, era o que tinha acabado de verbalizar: não existiam mais divisões em nossas vidas. Imaginei que não devia nem contar com o que trabalhava para suas ex-namoradas ou ficantes, logo, aquilo lhe dava a chance de se distrair dos problemas da empresa quando estava com elas, já que nenhuma nunca fazia ideia do que estava acontecendo.
Mas, casados, a coisa mudava de figura. Tudo, absolutamente tudo parecia envolver nós dois, mesmo quando não tinha nada a ver um com o outro. Estávamos sempre sabendo do que houve e assim conseguíamos nos consolar ou desabafar. Eu ainda não sabia ao certo se aquilo poderia ser considerado algo bom ou ruim – só sabia que já quase não tínhamos segredos.
— Isso é estranho, não? — comentei. me olhou, esperando que eu continuasse. — Parece que viramos gêmeos siameses que dividem o mesmo neurônio.
Aquilo tudo era para dizer que eu estava estranhando não ter mais minha individualidade.
— Claramente não é o seu que usamos — bati em seu braço, recebendo um selinho de volta. — Eu brinquei hoje cedo sobre nosso casamento, mas agora que você falou, é verdade… Não há nada em minha vida que não envolve você de alguma forma.
Fiquei pensativa por um tempo, procurando algo, porém não encontrei nada que não tivesse o dedo dele também.
— Vamos ter que ralar para enfrentar essa segunda-feira — aceitando nosso destino como dupla pelos próximos oito meses que viriam, decidi juntar minha maior preocupação atual com a dele. Pelo menos, sofreremos juntos. — Não quero nem ver a cara do Sr. Williams amanhã…
— Quer que eu vá até lá com você?
Sorri ao olhar seu rosto sério. Ele pareceria um pai levando a filha para defendê-la. Beijei seus lábios devagar, sentindo-o apertar minha cintura.
— Não, acho que preciso fazer isso sozinha — respondi. Eu já era uma mulher adulta, mãe, e poderia muito bem tratar com meu chefe com maturidade. E também, não poderia viver fugindo dela, né? — E você com seu pai? Como estão indo as coisas?
tombou a cabeça em meu peito, atraindo meus dedos até seus cabelos macios, onde fiz uma breve carícia, tendo-o se acomodando sobre mim.
— Por incrível que pareça, ele é o menor dos meus problemas essa semana. Jordyn me contou que ele a pediu para comprar sua passagem, então amanhã mesmo ele voltará para casa.
— Um problema a menos — murmurei, suspirando. levantou a cabeça e me deu um olhar cúmplice. Ele não precisou dizer nada, tínhamos pensado a mesma coisa através do nosso neurônio compartilhado.
(...)
Mal consegui disfarçar minha cara de pavor quando cruzei a porta da lanchonete, encontrando Fanny e Anne já à postos e me esperando. Ambas me relembraram que o Sr. Williams só retornaria mais tarde, o que por si só já conseguiu aliviar minha dor de barriga de nervoso. tentou me acalmar no carro, mas nem seus beijos mais quentes ou suas mão habilidosas conseguiriam me tirar da tensão que eu estava sentindo.
Não compartilhei com ele nem com ninguém, mas eu estava com um mal pressentimento. já disse ser cético com essas coisas, certeza que ele diria que era bobagem minha. E eu esperava muito que fosse; esperei com todas as minhas forças durante as horas que passamos trabalhando no estabelecimento. Quando estava chegando a hora de ir embora, Sr. Williams chegou já me chamando para conversar na área restrita para funcionários.
Quando sentei-me naquela mesa, lembrei-me do dia em que estivemos daquele mesmo jeito, frente a frente no meu primeiro dia ali, fazendo minha entrevista para entrar. Eu estava nervosa, era meu primeiro emprego formal. Era engraçado olhar para trás e ver que tudo mudou tão rápido, visto que não fazia tanto tempo que cheguei em Londres apenas com minhas roupas ao lado de Grace, que já carregava no ventre.
Hoje eu já parecia outra: estava casada e era mãe. Sentia como se tivessem se passado anos.
— Olha, , vou ser bem sincero. Eu não queria fazer isso — ele ajeitou o bigode com os dedos e respirou fundo. — Sabe o quanto eu gosto de você e das meninas. Você era a que menos me dava trabalho aqui.
Ri junto dele, já prevendo o que viria a seguir. Meu estômago se revirou e eu senti minhas mãos começarem a tremer; as recolhi de cima da mesa e escondi meu nervosismo debaixo dela ao descansá-las em meu colo. O pressentimento que tive não era apenas uma sensação, era real, estava acontecendo naquele exato momento.
— Porém, desde que se casou, você tem dado alguns deslizes por aqui. Já é sua segunda falta, tirou sua licença após o casamento e também teve todas as vezes que saiu mais cedo por conta da sua bebê… São seus direitos, eu entendo, mas não consigo mais deixar as outras sobrecarregadas por conta da sua ausência.
— Eu já entendi onde quer chegar — abaixei a cabeça, sentindo o choro vir à tona.
Tudo bem que eu não sonhava em trabalhar ali para sempre, mas até que gostava. Trabalhava ao lado das minhas melhores amigas, tinha meu próprio dinheiro e ajudava um pouco a minha mãe com o que ganhava. Ter que ir embora tão de repente me pegou de surpresa. Eu não sentia que era a hora de ir, não estava pronta.
Tinha feito tantas coisas na vida sem estar pronta, talvez aquela fosse mais uma delas que daria bons frutos futuramente.
— Sabe, , fico muito feliz que está casada, com uma vida boa. Me lembro do dia em que você veio interessada na placa que coloquei lá fora. Vinha de uma cidade pequena, afastada, sem família, sozinha.
Assenti, secando meu rosto em vão. As lágrimas se renovavam e logo voltavam a molhar tudo de novo.
Eles tinham se tornado minha família. Na falta da biológica, cada um deles, junto de Grace, ocuparam lugares especiais em meu coração. Eu não me senti mais sozinha desde que eles entraram em minha vida.
— Agora está bem, não precisa mais trabalhar. Estou te demitindo para que você possa ficar com sua filha, se cuidar. Acho que você não está mais conseguindo conciliar.
Em algum ponto eu já previa que aquele dia chegaria, só não imaginava que seria tão cedo. Eu tinha sido pega totalmente de surpresa. Estava pensando desde sábado sobre uma bronca apenas; porém, após ouvir o que ele tinha a dizer, entendi e até concordava sobre ser bom ter aquele tempo para dedicá-lo a .
Porém, ainda doía muito em mim saber que aquele emprego era a última coisa que tinha me restado da minha antiga vida, que, apesar de não ter nela, eu admitia que às vezes me pegava sentindo falta daquela época. Quando eu via as meninas comentando que saíram juntas numa noite, eu parava e imaginava o quão divertido devia ter sido e desejava estar com elas.
Mesmo eu amando mais que tudo nesse mundo, mesmo ela sendo minha pessoa favorita no mundo todo, não poderia mentir para mim mesma e dizer que às vezes me pegava pensando nos sacrifícios que vinha fazendo para tê-la. Não, não era arrependimento. Eu jamais sentiria aquilo em relação ao que fizemos por ela, mas agora desempregada… Tive medo daquilo tudo crescer dentro de mim.
Eu não queria viver dentro de casa, limpando, cozinhando e esperando chegar. Mesmo que o Sr. Williams tivesse razão ao dizer que eu não precisaria trabalhar, eu não conseguia me imaginar naquela situação.
Enquanto meu chefe ia até lá fora para buscar as meninas, sequei minhas lágrimas e tentei me recompor. Prometi para mim mesma que procuraria outro trabalho o quanto antes. Por mais que eu amasse , eu não conseguiria viver aquela vida, ainda mais ao lado de um homem que não me amava e nem teria obrigação alguma de me manter.
— O que houve? — Fanny apareceu primeiro e foi seguida por Anne, que fechou a porta atrás de si, igualmente confusa. Encarei-as segurando minhas lágrimas, mas fui falha ao perceber que era minha última vez ali, uniformizada ao lado delas.
— Sei que vamos nos ver sempre, mas… — solucei, assistindo ambas se aproximarem. — Eu só queria dizer tchau.
— Não — a morena choramingou, abraçando-me forte. Liberei minhas lágrimas ao ser esmagada por ambas, já que Anne me abraçou por trás, fazendo um sanduíche comigo.
— O que faremos sem você aqui?
— Eu não sei. Eu realmente não sei quem vai colocar ordem em vocês — ri em meio ao choro, contagiando as duas. — Mas as portas da minha casa sempre estarão abertas, inclusive para o seu aniversário — me afastei de Tiffany, vendo-a assentir sem conseguir falar uma palavra sequer.
Tínhamos aquele combinado: comemoramos o aniversário de Anne no ano passado, e agora chegou a vez de Fanny. Sempre fazíamos um jantar tranquilo, só entre nós três; bebíamos um vinho e fazíamos uma noite das meninas. ficaria de fora. Já estava tudo programado para que dormíssemos as três no quarto de hóspedes que tinha lá embaixo.
O Sr. Williams apareceu na porta, fazendo-as me abraçarem mais uma vez. Era a hora de voltar para atender os clientes que estavam esperando. Me despedi dele e o ouvi me desejar boa sorte, além de me falar para beijar e abraçar muito a bebê que eu tinha em casa. Prometi que faria tudo aquilo e que me cuidaria. Deixei a lanchonete e andei pela calçada sem olhar para trás, sabia que choraria caso o fizesse.
Olhei em minha bolsa e acabei por ver que não tinha levado dinheiro para um táxi. Lembrei-me de que a empresa de ficava próxima dali, então joguei o nome no Google e consegui achar o caminho, que poderia ser percorrido a pé sem problema algum.
Enquanto andava, aproveitava para disfarçar meu rosto inchado de tanto que já tinha chorado. Não queria chegar na empresa e deixar na cara que havia algo errado. Vai que eu esbarro em algum amigo de por puro azar!
Assim que avistei o grandioso prédio mais à frente, resolvi guardar o celular na bolsa ao ir pela calçada extensa até a faixa de pedestres que tinha ali. Senti o aparelho vibrar e, quando vi o nome de piscar na tela, o atendi de imediato, levando o aparelho ao ouvido. Dei passos incertos para trás, mesmo que o sinal estivesse vermelho e eu pudesse atravessar.
— ? Está tudo bem, está chorando?
Franzi o cenho, realmente começando a acreditar na brincadeira que fiz sobre dividirmos o mesmo neurônio.
— Como…
— Olhe para trás.
Encarei o grande vidro que mostrava o interior da cafeteria granfina e vi do lado de dentro, também segurando o celular no ouvido.
— O que houve?
Abaixei o celular, finalizando a chamada ao assisti-lo deixar a mesa que dividia com Chace e sair quase que correndo para a porta do estabelecimento. O loiro lá dentro encarava-me com pesar, mesmo sem entender direito o que estava acontecendo. Minha cara devia estar mesmo péssima.
— Eu fui demitida — murmurei, sentindo meus olhos se encherem de lágrimas.
— Sinto muito, — ele me abraçou forte. Deitei minha cabeça em seu ombro ao ter suas mãos me afagando as costas suavemente. — Venha, vamos entrar um pouco — pegou-me pela mão, me guiando para dentro da cafeteria.
Assim que pisei os pés no local muitíssimo bem decorado com móveis claros, estofados escuros e pessoas endinheiradas sentadas neles, senti que era observada ao longe por uma funcionária. Não a encarei de volta; eu tinha certeza que ela devia estar com pena de mim por estar chorando, ou estranhando alguém com um uniforme daqueles frequentando aquele lugar.
me colocou sentada no estofado tão fofinho quanto parecia. Ao olhar de longe, me abraçou de lado e deixou-me mais uma vez descansar minha cabeça em seu ombro. Escondi o rosto na curva de seu pescoço, sentindo seu cheiro e tentando me concentrar nele para me distrair da melancolia que me tomava. Eu tinha que me controlar. Deixaria para chorar em casa, longe de todos aqueles olhares.
Me afastei ainda fungando, então sequei o rosto com rapidez ao me endireitar, sentada.
— Qual foi a justificativa dele? — sua mão alcançou meus cabelos recém-bagunçados, colocando-os delicadamente atrás da minha orelha. Olhei em seus olhos e não disse nada. entendeu mesmo assim. — Que droga, — ele deu um suspiro pesaroso. — Sei o quanto isso era importante pra você.
Sua boca beijou a minha devagarinho, deixando apenas selinhos castos em meus lábios trêmulos. sabia, tanto que usava meu emprego para me irritar quando vivíamos brigando pelos cantos. Nada que pudesse ofender – eu fazia pior com meu arsenal de piadas sobre nepotismo na época.
— O que houve? — não olhei, porém ouvi Chace sussurrar para do outro lado da mesa. Tinha até me esquecido de sua presença ali.
— foi demitida.
Estiquei-me para apanhar um guardanapo, passando-o debaixo dos olhos a fim de tentar amenizar a desgraça que a maquiagem borrada devia estar.
— Sinto muito — encarei-o sorrindo fraco, observando parada sua mão alcançar a minha sobre a mesa. — Sei que logo arranjará outro emprego. Tenho certeza que vão querer contratar alguém tão inteligente e incrível como você — ele afagou o dorso, deixando-me tão tímida que senti meu rosto esquentar.
Apesar da minha queda por Chace, com toda a situação em que estávamos inseridos e nossa pouca convivência em Tulum, acreditava que não conseguiria achar normal se ficássemos algum dia. Era uma pena, mas eu torcia muito por ele. Chace era amável, gentil, lindo e faria qualquer mulher que estivesse ao seu lado a mais feliz do mundo.
se remexeu desconfortável ao meu lado, com seus olhos verdes queimando sobre nossas mãos juntas. Quando fiz menção de tirar a minha de baixo, o garçom se aproximou da mesa em que estávamos segurando sua bandeja.
— Com licença, a gerente oferece para a senhorita — com a voz amena, o homem de estatura mediana e uniforme engomado deixou uma xícara de chá diante de mim, sorrindo caridoso em minha direção. — É por conta da casa.
— Muito obrigada.
Eu realmente precisava de um chá para me acalmar. Precisava pensar direito, não podia tomar decisões estando naquele estado, à flor da pele.
Deixar e ir trabalhar ou ficar com ela e não fazer meu próprio dinheiro? Se a deixasse, quais seriam as consequências a longo prazo? Era realmente aquilo que eu queria? E se me arrependesse de não tê-la aproveitado mais quando ela crescesse? O tempo não voltava, e eu tinha a sensação de que ele corria cada dia mais depressa…
Levei a xícara à minha boca. É, um chá faria bem. Levantei o olhar para espiar o rosto da tal gerente. Queria tentar lhe dar ao menos um sorriso ao longe de agradecimento. Ao focar meus olhos na direção em que o garçom indicou com o queixo, avistei a morena de olhos claros parada à postos.
A mesma que não tirou os olhos de mim quando entrei na cafeteria ao lado de …
Não tirou os olhos de , na verdade. Ao terminar de inspeciona-lá, pude ver de longe o nome que estampava sua identificação presa no uniforme.
Dafne.
Aquela era a amante do meu marido.
Não tive meus pais fazendo metade das coisas que e eu fazíamos com . Minha mãe sempre contratou babás, e meu pai provavelmente me pegou no colo pouquíssimas vezes enquanto eu era bebê. Eu me perguntava como deveria ser falar aos quatro ventos que era um pai ou uma mãe sem ter vivido a experiência completa.
Lembro que quase cheguei a entrar no centro cirúrgico para o parto de Grace quando ela deu à luz. Hoje em dia sinto que foi melhor não ter ido mesmo, eu não iria suportar vê-la partir. Não conseguia imaginar minha reação ao ver tudo dando errado após ter minha primeira visão da minha sobrinha vindo ao mundo.
Mas, no futuro, era algo que eu gostaria de presenciar.
Na minha conversa com , não falamos de mim. Acho que ela presumia que eu não iria querer ter outros filhos depois de tudo o que passamos com , ou vai ver minha vida de antes a influenciou naquele achismo sobre mim.
Nunca tinha pensado em ser pai. Eu era muito jovem para me preocupar com esse detalhe. Acho que, no fundo, acreditava no que minha mãe sempre me dizia – algo sobre algum dia eu encontrar uma esposa e aí sim formar uma família. A ordem dos fatores se bagunçou em meio à perda de Grace, mas não alterou o resultado final de qualquer forma. Acho que, depois de ser pai pela primeira vez, eu me via sim com vontade de ter outros filhos, me descobri apaixonado pela paternidade e todo o amor que um simples bebê me fazia sentir ao apenas existir.
É claro que encontrar uma parceira para aquilo não seria uma tarefa fácil. Eu me conhecia e minha mãe também, por isso ela sempre previa meu casamento para quando estivesse bem mais velho por conta do meu problema em permanecer com alguém por no máximo dois anos. Talvez a falta de maturidade tivesse influenciado isso.
Eu não conseguia prolongar sentimentos. Em alguns relacionamentos que tive, nem sei dizer até hoje se eles existiram. Gostava muito do início, quando existiam descobertas, os defeitos eram mascarados, era tudo envolto de muito sexo e desejo… Mas depois as coisas esfriavam, alguns defeitos eram incompatíveis, o tesão acabava, não sei… Acho que nunca cheguei a amar alguém, na verdade.
Aos meus vinte e quatro anos, eu ainda encarava o amor como uma lenda urbana, daquelas sobre sereias e seres mitológicos. Aquelas que são tão absurdas que só se víssemos com nossos próprios olhos acreditaríamos na existência, sabe? Meus pais sempre foram tão frios, e os casais apaixonados dos filmes sempre me passaram uma imagem falsa, justamente por nunca ter sentido tal coisa ou presenciado todo aquele afeto dentro de casa.
Apesar da minha descrença, eu me via curioso em saber se o amor entre um casal realmente existia, se era tão forte como diziam ser, se suportava mesmo a tudo e fazia com que o os anos de vida se parecessem poucos para viver ao lado de alguém. Se existisse mesmo, eu queria senti-lo. Sabia que tinha uma parcela de culpa por nenhum dos meus relacionamentos terem sido duradouros; porém, eu tinha esperança de descobrir o tal do amor. Achava que talvez ele fosse a solução de todos os meus problemas e, por que não, o motivo para que eu um dia me casasse e formasse uma família junto de ?
E de , é claro, afinal ela seria… minha ex-mulher.
Estranho pensar naquela nomenclatura, visto que, até um tempo atrás, nem amigos nós éramos. O fato era que jamais esqueceríamos o que estávamos vivendo e o que ainda viveríamos até aquele casamento se findar. Nós três éramos uma família. Não existia ex-família, mesmo que eu me casasse algum dia e também fizesse o mesmo – ainda continuaríamos sendo uma família.
O choro estridente se fez presente, invadindo minha cabeça e bagunçando minha linha de raciocínio. E que não tinha tanta importância, já que eu estava apenas matutando coisas que estavam longe de acontecer e que não tinha como prever se realmente aconteceriam daquela forma.
— Aqui, boa sorte para cuidar da estressadinha — me estendeu a bebê chorona, fazendo-me franzir a testa ao envolvê-la em meus braços e observar pegar uma toalha na gaveta para si.
— O que houve? — olhei para , tentando me balançar para acalmá-la.
— Não faço ideia. Acho que ela não queria tomar banho, ficou irritada quando a coloquei na água.
Ri, negando com a cabeça. Como pode uma bebê de três meses querer algo? Já vi que puxaria a mãe no quesito estresse, e no caso eu falo tanto de quanto de Grace.
Desci para a sala com o choro já me irritando o ouvido. Fiz de tudo, brinquei de aviãozinho com ela, verifiquei sua temperatura no caso de ainda não ter feito, massageei sua barriguinha para caso ela estivesse com cólica ou gases. Quando desisti, apelei para algo que e eu tínhamos acordado que não faríamos: liguei a TV e me sentei no sofá com ela em meu colo.
Bom, se era mesmo prejudicial a ela, eu não sabia, mas foi o único jeito que encontrei para ela ficar quieta. Lógico, depois de um tempinho eu desligaria para evitar uma bronca de . Era engraçado temer aquilo, nem da minha mãe eu tinha medo quando era mais novo.
Assim eu fiz. Quando ouvi seus passos no andar de cima, peguei o controle e desliguei, disfarçando com a bebê quando ela chegou nos degraus da escada. A espiei se aproximar, vestindo sua camisola sem graça que mais parecia roubada de sua avó.
— Eu ouvi a televisão — passou reto, indo para a cozinha. Comprimi os lábios antes de me levantar e ir atrás dela. — Só não vou brigar porque estou cansada demais pra fazer isso — riu, apoiando-se na pia.
— Te disse que a bicicleta não seria uma boa ideia.
— Não disse, não. Estava era preocupado com minha calcinha à mostra.
Tombei a cabeça para o lado, ponderando. É, aquilo também.
— Mas valeu a pena. Eu estava morta de saudades de pedalar por aí, mesmo que minhas pernas já estejam doendo hoje e, provavelmente, vão piorar amanhã. Fora que a gente passou um dia inteiro com essa coisinha linda — ela se aproximou, pegou a mãozinha da bebê e a beijou repetidamente.
— É, foi um bom dia — concluí, pensativo. — Sobre o que aconteceu no carro…
— Está tudo bem. Vamos tentar de novo outro dia, mas me avise antes pra eu fugir se não estiver preparada, sim? — riu sozinha, e eu apenas esbocei um sorriso fraco. Não consegui me eximir da culpa do estado que ela ficara. — Falando nesse trato, vamos jantar o seu macarrão de mais cedo?
Assenti, vendo-a ajeitar tudo para esquentar a comida. Eu não me importava nem um pouco e também achava que não seria justo fazê-la preparar outra coisa, cansada do jeito que estava. Mesmo tendo dormido até às duas, ainda suspeitava que não tinha sido o suficiente para que ela recarregasse as energias gastas dos últimos dias. Se eu, que não tinha vivido tudo aquilo na mesma intensidade que ainda estava cansado, imagine ela.
Tive uma ideia e fui até a dispensa, na parte em que armazenávamos algumas bebidas; entre elas, espumantes e alguns vinhos. Apanhei uma das garrafas enquanto equilibrava num braço só. Assim que cheguei na cozinha, a vi arquear as sobrancelhas e cruzar os braços, rindo ao negar com a cabeça.
— O que foi? É sábado à noite e é a única coisa que podemos fazer para nos divertir nessa casa.
— Ei! Nós duas somos super divertidas e não precisamos de álcool pra isso, ok? — se justificou, ofendida. Eu discordava; ficava ainda mais interessante quando estava sob influência do álcool.
— Não estou dizendo que não são, só que um bom vinho vai nos ajudar a relaxar um pouco — depositei um selinho em seus lábios antes de ir até o armário e apanhar duas taças.
Estendi a dela já cheia, vendo-a tomar um pouco enquanto voltava a se empenhar no que fazia antes. Apenas me sentei numa das cadeiras em volta da mesa e brinquei com , assistindo vez ou outra se movimentar pela cozinha enquanto bebericava seu vinho em mãos. Logo nos servimos e, após colocar a bebê no carrinho, passamos a jantar tranquilamente, conversando sobre bobagens, coisas monótonas e dando algumas risadas. era muito idiota, engraçada quando se soltava e, convenhamos, já estava muito mais solta diante de mim e vice-versa. com certeza discordaria e diria que eu era quem era o bobão.
Toda certeza de que nos odiávamos desde cedo talvez tenha nos atrapalhado na vida, porque, ao conviver com naqueles meses e dias, eu até poderia dizer que tínhamos pelo menos o senso de humor parecido. Minha esposa tinha razão: tanto ela quanto Olivia eram divertidas. Depois que passei a ter uma família de verdade, soube diferenciar e apreciar os momentos divertidos. A noite que passamos em Tulum naquele restaurante com música, bebidas e dançando sem preocupações foi divertidíssima, mas estar ali, ouvindo tagarelar sobre coisas que passou num transporte público ou na faculdade que fazia também era divertido – de um jeito diferente, mas não deixava de ser.
Havia um aconchego diferente em apenas fazer coisas cotidianas naquela casa, até mesmo Elisabeta parecia estar conosco há mais tempo que estava. Era tão tranquilo que nem vimos aqueles três meses passarem! já começava a dar gargalhadas sonoras. terminou seu prato e passou a conversar com a bebê no carrinho enquanto eu preparava a mamadeira. Aparentemente, também achava a mãe engraçada, já que riu gostosamente com as baboseiras que a loira lhe contava.
— Que vontade de gravar essa gargalhada pra ouvir o dia inteiro quando estiver longe! — exclamou ainda risonha quando fui até o carrinho já com a mamadeira em mãos. — Tem dia que eu tenho vontade de levar ela escondida pro trabalho, de tanta saudade que eu sinto dela — entreguei-lhe a mamadeira, vendo-a pegar a menina do carrinho e aconchegá-la em seu colo. — Às vezes eu queria poder dar de mamar a ela. Já ouvi muito falar da conexão que isso gera com o bebê.
— Eu estava pensando isso agora há pouco.
franziu o cenho, estranhando minha fala.
— Oh, não sobre você dar o peito a ela — justifiquei quando me dei conta. Realmente nunca tinha pensando naquilo, até porque teria que dividi-los comigo. — Sobre ter a experiência completa — respondi, tentando conter o riso que o meu pensamento anterior me causou. — Estava pensando sobre não ter assistido o parto, era para eu tê-la acompanhado. Porém, não me deixaram entrar, porque dei a entrada por Grace como irmão dela, não como o pai da criança.
Não estive presente nem mesmo quando Grace descobriu sua gravidez. Lembrava-me claramente do dia que ela me ligou para contar, já temerosa, prevendo tudo o que minha mãe faria e fez com ela quando descobrisse. Era estranho pensar que consegui passar tanto tempo longe da minha irmã, desde que fui para a faculdade e logo depois mudei-me para Londres para assumir a empresa. Se ela não tivesse ficado grávida, provavelmente ainda continuaríamos longe um do outro.
Que bom que consegui aproveitar sua presença em seu melhor momento da vida. Grace vivia por sem nem ao menos saber o nome dela. Estava radiante apesar de todas as turbulências que passou enquanto esteve grávida.
— Sim, mas isso não diminui o amor que sentimos por ela.
Concordei com a cabeça, sorrindo ao assisti-la beijar o topo da cabeça da neném, que tinha um dos bracinhos pendurados nas costas da mãe enquanto o outro se mexia devagar sobre a pele descoberta do braço de . Os olhinhos pequeninos estavam cerrados, quase se fechando, enquanto respirava serena e sugava o bico da mamadeira. Ela quase pegava no sono ao mesmo tempo em que queria a todo custo olhar para o rosto da mãe.
Me perguntei o que Grace diria se estivesse ali. Com certeza ela mesma estaria dando de mamar para a filha, ou senão teria colocado para lhe dar mamadeira como ela sempre dizia que faria quando desse à luz. Grace sempre brincou que os padrinhos não só dariam presentes e seriam figuras simbólicas na vida do bebê que esperava; ela colocaria nós dois para trocar fraldas e ninar.
Hoje eu via que, mesmo brincando, minha irmã tinha um dom de adivinhar as coisas. Queria que ela tivesse adivinhado que partiria logo, assim poderia me ensinar em vida como eu seguiria sem ela. O que antes eram apenas alguns quilômetros nos separando, agora era um vazio, uma eternidade de distância entre nós.
não terminou a mamadeira, seu sono não a deixou fazê-lo. Após esperá-la arrotar e subir com ela nos braços para trocar sua fralda, a deitei em seu berço para me certificar que sua janela estava travada por dentro. Acendi seu abajur de nuvem no canto da parede e fechei a porta devagar, vendo-a suspirar, deitada ao lado do jacaré de pelúcia que lhe dei de Natal.
Desci e encontrei debruçada sobre a pia, lavando a louça distraída. Cheguei por trás, envolvendo seus quadris. A camisola era broxante, mesmo assim eu tinha viva em minha memória a forma de seu corpo e a textura de sua pele macia. Então, naquele momento, era apenas um pedaço de pano que logo eu me livraria.
— Deixe isso aí — sussurrei ao pé de seu ouvido, fazendo-a encolher os ombros e rir fraco.
— Não. Vou lavar hoje pra não deixar para amanhã, se não, acumula tudo! — teimou, abrindo a torneira para enxaguar os copos.
— Deixe isso, … — passei o braço sobre o dela, tentando fechar a torneira por cima de sua mão.
continuou a segurar pelo prazer da implicância, porque ao mesmo tempo gargalhava junto de mim. A água caía enquanto cada um forçava a torneira para um lado. Até que, num movimento rápido, um de nós soltou enquanto o outro continuou teimando, resultando na parte de cima da torneira saindo e jorrando água pra todo lado.
se protegeu com as mãos como se pudesse parar a água, enquanto eu alcancei o que restou da peça de alumínio e fechei o registro, parando o fluxo.
— Olhe o que você fez, — apontou para si, fingindo-se de brava enquanto lutava consigo mesma para não explodir em risadas.
Não resisti quando a avaliei e vi metade de sua camisola encharcada, colada ao corpo. Mordi o lábio inferior ao notar a transparência do tecido.
— Isso a gente resolve amanhã — larguei a peça da torneira dentro da pia, antes de me aproximar sorrateiramente dela. A loira me olhava risonha ao entender quais seriam meus próximos passos. — Agora nisso aqui — apontei para sua roupa molhada —, damos um jeito agora mesmo.
Envolvi o primeiro botão da camisola clara com meus dedos, não encontrando dificuldade em abri-lo. Seu olhar estava concentrado em minhas mãos enquanto apenas se deixou ser despida. Beijei seu pescoço, descendo ao arrastar os lábios recém-umedecidos por sua pele macia, parando em sua clavícula proeminente para depositar outro beijo. respirou mais fundo quando voltei minhas atenções ao próximo botão, ansiosa para que eu parasse de torturá-la com minha lentidão.
Mal sabia ela que era um péssimo negócio demonstrar ansiedade justo para mim, que adorava deixá-la louca, vê-la ansiar por mim. Ao mesmo tempo que queria apressar as coisas, pular toda aquela premissa e ir logo direto ao ponto, eu não conseguia abrir mão de todo aquele processo que envolvia dar o máximo de atenção possível a cada centímetro de pele dela, beijar, morder, apertar, acariciar…
Era exatamente aquilo que eu estava fazendo naquele exato momento. A cada botão que abria, eu depositava um beijo no local recém-descoberto. Já estava no terceiro, meus lábios tocaram o meio de seus seios, que ainda eram cobertos pela camisola. Sorri ao sentir seus batimentos acelerados. Saber que eu a deixava naquele estado febril, com o coração saindo pela boca, acariciava meu ego como poucas coisas nessa vida.
— Estava mesmo na hora da nossa reunião que combinamos mais cedo — falei, e soltou uma risadinha ao alcançar meus cabelos e emaranhar os dedos finos ali. Ela me assistia descer com os botões abertos e os beijos pelo seu tronco, que a cada minuto ficava mais despido.
— E qual seria o assunto da pauta? — indagou de sobrancelhas arqueadas, fazendo-me espiar seu rosto após me colocar de joelhos diante dela. A loira sorria satisfeita diante de minha submissão. Quando abri outro botão, já tinha perdido as contas de quantos já tinham sido abertos.
— Esse corpo — beijei seu umbigo, vendo sua barriga subir e descer rapidamente quando ofegou antes de morder o lábio. Deslizei meus dedos por baixo do restante da camisola que ainda estava fechada e alcancei sua calcinha, puxando-a por ambas as laterais até tê-la descendo por suas pernas e indo parar no chão. — E tudo o que vou fazer com ele… — abri outro botão, repetindo o ritual do começo e deixando um beijo abaixo de sua barriga.
respirou com dificuldade e voltou a me pegar pelos cabelos, daquela vez nada gentil. Cheguei a sentir alguns fios sendo puxados, mas não me importei – até que a dor naquele contexto era satisfatória. Estava tão inebriado com seu corpo, a textura de sua pele e o cheiro de seu hidratante fresco que emanava dela, que tudo além daquilo virava um mero detalhe para mim.
Eu só tinha olhos para seu abdômen denunciando seus suspiros, para seus pelos eriçados, os lábios sendo mordidos para abafar suas reações e para aquele par de pupilas dilatadas.
— Qualquer coisa — ela disse, e daquela vez quem ofegou fui eu.
A urgência em sua voz deixou meu pau instantaneamente duro, pronto como nunca para fodê-la de todas as maneiras possíveis e imagináveis. Abri dois dos três últimos botões com rapidez, sentindo-me contagiar com a ansiedade dela no início.
— O quê? — sorri malicioso, querendo ter certeza do que me foi dito, mas já me antecipando e ficando completamente louco de tesão só de pensar em ter ouvido certo.
— Você pode fazer qualquer coisa com ele.
Abri o último.
Encarei sua intimidade bem próxima do meu rosto. Ali, de joelhos diante dela, umedeci meu lábios e avancei com o rosto em sua direção. Minha língua deslizou sobre seu clitóris, que já estava molhado, fazendo-me sentir seu gosto direto da fonte. Vi que suas pernas bambearam quando me afastei minimamente para espiá-la, antes de depositar o último dos beijos do meu ritual de apreciar seu corpo enquanto o despia.
Subi novamente, já agarrando-a com possessividade enquanto ainda lambia os lábios e a tinha ofegando em meus braços. Encostei nossas testas e olhei para baixo, tendo a visão de seu corpo exposto pela camisola aberta. Quase revirei os olhos ao ver e sentir seus mamilos rijos tão colados em meu peito coberto pela camiseta que usava.
— Não me provoca assim — voltei a encarar seus olhos. sorriu maliciosa ao notar minha voz falhar, tamanho era o meu desejo. — Você não sabe o quanto eu te quero, não imagina o que eu seria capaz de fazer… — agarrei sua mandíbula, ainda com seu rosto colado no meu.
— Faça — sussurrou e assentiu com a cabeça. Seus olhos azuis estavam escuros, flamejantes. A luxúria estampada neles era explícita. — Não importa o que seja.
Fechei os olhos tentando controlar minha respiração, sentindo meu pau latejar dentro da cueca. realmente não sabia o tamanho da minha saudade. Eu queria descontar todos aqueles dias que ficamos sem transar naquela noite apenas. Foder como se não houvesse amanhã, suar em cima dela, fazê-la desfalecer e ainda assim continuar a invadi-la com toda a força que eu tinha. estava assumindo a responsabilidade de aguentar e participar comigo das loucuras que minha cabeça estava projetando sem parar naquele momento.
Não pensei mais, apenas icei seu corpo para cima, fazendo-a entrelaçar as pernas em meu quadril, e a levei para o primeiro lugar que vi em minha frente.
— Na mesa? — riu, apoiando o corpo em ambas as mãos.
— Já fizemos num banheiro de avião, o que teria de anormal na mesa da cozinha? — inclinei-me sobre ela e beijei seu pescoço, arrepiando-a dos pés a cabeça ao sugar sua pele devagar. Sabia que se ficasse a marca, me mataria no dia seguinte, mas pelo menos eu morreria feliz. — Além do mais, você é minha sobremesa de hoje.
— ! — desferiu um tapa em meu peito e riu gostosamente, jogando a cabeça para trás e deixando todo o pescoço à mostra, onde voltei a atacá-la. Em seguida, deitei-a na mesa e senti me prender em suas pernas.
Eu amava sua gargalhada, amava ainda mais quando eu a fazia rir daquele jeito.
— O quê que tem? Eu também serei a sua hoje — lhe dei um selinho casto, ainda curvado sobre ela.
— Então tira essa camisa, vai? Está muito vestido.
Ergui meu tronco e fiz o que me foi mandado, me livrando da camiseta branca e vendo-a me secar descaradamente.
— Gostoso.
Senti um frio na barriga. Sorri malicioso ao contemplar a safadeza estampada no rosto dela.
— Você acha? — forcei meu bíceps teatralmente, vendo-a rir novamente.
— Sim, eu acho. Muito, muito gostoso — ergueu o tronco e tocou meu peito com suas mãos macias, sentindo meus batimentos, fazendo-me arrepiar com suas unhas curtas raspando em meu abdômen.
desceu até minha calça, desfez o laço do meu moletom e, com a minha ajuda, puxou a peça que eu vestia para baixo. Minha cueca estava estufada, com meu pau já não aguentado mais ficar preso ali dentro de tão duro que estava. Pronto para ela. encarou a região sem pudor algum, levou a mão até o volume e o delineou por cima do tecido que os separava.
— Olha como você me deixa — seus olhos azuis brilharam, alternando-se entre ele e meu rosto sôfrego. — Sempre consegue me deixar assim — murmurei, contemplando seu deleite.
me deixava de coração acelerado, morto de vontade de beijar aquela boca e nunca mais parar. Me deixava completamente viciado em seu gosto, corpo, jeito de rir e até mesmo suas expressões duras quando ela ficava bravinha e brigávamos por bobeiras. Sei que devia me preocupar com todas aquelas sensações, principalmente quando estava percebendo a que ponto elas estavam chegando.
A ponto de… não conseguir me satisfazer com nenhuma outra, porque o que cada célula do meu corpo almejava eu só encontrava no dela.
E apesar de às vezes me bater a tal preocupação, eu sempre ligava o foda-se. Tudo o que me proporcionava era bom pra caralho para eu ficar tentando procurar problemas naquilo.
— Até quando não está por perto, quando penso em você no trabalho, preso no trânsito ou no elevador da empresa… Você é o meu tesão diário, — a olhei intensamente, vendo-a suspirar diante de mim.
— Você pensa em mim? — seu rosto ganhou uma seriedade surpreendente.
Ambas as mãos dela foram de encontro à camisola que ainda vestia seu corpo. se despiu devagar, atraindo meu olhar em cada gesto que realizava ao deslizar a peça pelos ombros e deixá-la cair sobre os braços. Levei uma das mãos ao seu quadril desnudo, acariciando a região enquanto inspecionava cada centímetro de pele diante de mim.
E tinha como não pensar?
era deliciosa, e estava completamente nua e aberta para mim. Depois de me revelar seu maior segredo e se mostrar em seu pior momento, tê-la daquele jeito diante de mim só me fazia achá-la ainda mais gostosa. era uma mulher incrível, forte, incansável. Fazia o babaca do Tom parecer um otário ao lado dela.
Na verdade, poderia ser qualquer homem, inclusive eu. Mas eu nunca admitiria aquilo para ela.
— Mais do que gostaria — murmurei, pegando um de seus seios medianos. A loira mordeu o lábio quando me viu aproximar a boca de seu mamilo rijo, e gemeu manhosa. Chupei a região, passando a língua em volta de sua auréola quando larguei um para ir direto para o outro. — Às vezes, no tédio de alguma reunião, você me vem à cabeça e eu desejo por alguns instantes estar em qualquer outro lugar fazendo com você o que estamos fazendo agora.
Minha esposa nem ao menos percebeu minha outra mão se aproximar do meio de suas pernas. Gemeu gostoso quando acariciei seu clitóris, se abrindo ainda mais para mim.
— Penso nesse corpo quente... — seu abdômen se contraía, demonstrando o quão alterada sua respiração estava. passou a rebolar contra a minha mão. — Penso no seu interior, que me acolhe tão bem que faz o ato de estar dentro de você ser a melhor sensação do mundo…
— Eu amo ter você dentro de mim, me fodendo, me tratando como uma deusa… Às vezes me pego lembrando também. Quando vou ver, estou molhada, desejando ter seu corpo grande cobrindo o meu novamente e me matando de prazer como você sempre faz.
Toquei sua entrada de leve, torturando-a. ofegou imediatamente.
— Coloque… — sussurrou, imensa em tesão. Fiz o que me pediu, introduzindo um dedo, assistindo-a jogar a cabeça para trás e gemer. — Outro… — implorou, ofegante.
— Assim? — Arquei a sobrancelha, introduzindo mais um. — Seus olhos se reviraram. Mordi o lábio, constatando que aquela era uma das cenas mais sexys que já vi na vida.
Fiz um vai e vem lento, apenas sendo um mero telespectador de , que se desfazia de prazer apenas com meus dedos. Esperava que ela estivesse pronta para a noite que teríamos pela frente, e que aquele era apenas um aperitivo do que viria.
— Merda, — xingou, fazendo-me rir. — M-Mais rápido…
Tirei os dedos, vendo-a protestar na mesma hora. Neguei com a cabeça, sabendo que a tinha em mãos, desesperada para que eu continuasse a lhe dar prazer. Era o momento perfeito para ouvi-la me dizer o que eu tanto queria escutar.
— Por que parou? — indagou, indignada ao sentar-se sobre a mesa.
— Diga que é minha — desafiei, aproximando meu rosto do dela.
— Você só pode estar de brincadeira com a minha cara… — riu de nervoso, fazendo menção de se desvencilhar de mim e descer da mesa.
— É sério, — a prendi ali, apoiando ambas as mãos ao lado de suas coxas. — Diga — beijei seu queixo, rumando para sua mandíbula. — Prometo que te chupo todinha — sussurrei ao pé do ouvido antes de mordiscar sua orelha.
Ela respirou fundo, afastando-se minimamente de meu rosto para poder me encarar de frente. Passou a língua nos lábios, umidificando-os antes de revirar os olhos em implicância.
— Tá bom — focou seu olhar no meu, desmanchando o deboche em sua expressão e apenas mantendo o contato visual ao se aproximar e deixar um selinho bobo em minha boca. — Eu sou sua.
Tomei seus lábios devagar, deslizando minha língua pela sua num beijo sedento.
— Toda minha — desci pelo seu pescoço e barriga, aproveitando que deitava-se de volta na mesa. Passeei com minha língua pelo caminho que trilhei até o calor entre suas pernas.
se contorceu assim que dei a primeira pincelada com minha língua, superficialmente, apenas para dar uma provocada. Afastei seus lábios, chupando seu clitóris, sentindo-a ofegar cada vez mais. Quando espiei seu rosto, ainda com a boca ocupada, pude vê-la apertar os próprios seios enquanto tinha os lábios entreabertos gemendo baixinho. Acariciei sua bunda, sentindo-a envolver minha cabeça com suas pernas.
Ouvi-la me xingar enquanto agarrava meus cabelos e rebolava contra minha língua tinha sido o ponto alto da minha semana. Eu nunca tinha me sentido daquele jeito na cama com nenhuma outra; seu prazer me dava tanto prazer que parecia que era eu quem estava sendo chupado. Tê-la me pedindo em meio a murmúrios e soluços para não parar, cara, eu não queria parar nunca. Sentir seus pés me tocando as costas, como se ela desse pequenos passos sobre minhas escápulas a cada vez que se contorcia, e logo depois tê-la gozando num orgasmo de tirar o fôlego, me fazendo relembrar o quão gostoso seu gosto era… Eu não queria parar nunca.
— Vamos lá pra cima — peguei-a nos braços, tendo os dela envolvendo meus ombros.
mais uma vez entrelaçou as pernas em meus quadris, daquela vez sentindo meu pau coberto apenas pela cueca. Me beijou a boca, levemente descabelada e muito, mas muito sorridente.
O que um orgasmo não faz, não é mesmo?
— Espera — ela pediu, então parei próximo da saída da cozinha. — Preciso de um copo de água.
Coloquei-a no chão e vi aquela bunda passear pela cozinha até o armário e encher o copo na maior naturalidade do universo.
— Já cansou? — indaguei ao notar alguns fios grudados em sua testa suada.
— Não, só estou me preparando pro próximo round — murmurou ofegante, terminando de beber o líquido transparente.
Observei-a de longe soltando uma risadinha. Intimidade era mesmo uma coisa louca, não? Com quantas pessoas ela já havia estado na mesma situação? Eu poderia responder por mim – fora os banhos que já tomei acompanhado, dificilmente tive uma ex minha transitando nua pela casa diante de meus olhos.
— Vamos — interrompeu meu raciocínio, pegando minha mão e andando na frente. Encarei nossas mãos entrelaçadas, confuso, subindo degraus acima junto dela.
Logo entrávamos no quarto aos beijos. já tinha seus dedos largos puxando a barra da minha cueca para baixo; já eu lhe apertava a bunda, colando nossos quadris enquanto íamos aos tropeços e às cegas pelo quarto. Joguei-a contra a cama, pronto para finalmente libertar meu membro e ir atrás de um preservativo. já me esperava deitada, se tocando diante de mim, com aquela cara de malícia que eu reconheceria a quilômetros de distância e que me deixava completamente louco.
Até que…
— Acho que alguém acordou — minha esposa encarou a porta fechada, fazendo-me imitá-la e suspirar derrotado.
— Estava torcendo pra ser uma alucinação — meus ombros caíram junto do meu amiguinho, que desanimou assim que o choro ficou mais audível do outro lado da porta.
Olhei para em silêncio, já prevendo que sobraria para mim.
— Você está mais vestido — ela encolheu os ombros, se justificando.
Não disse?
Fui até o closet e peguei um moletom qualquer, vestindo-o às pressas. Quando voltei à área da cama, a loira continuava deitada, com a cabeça apoiada no cotovelo e esperando-me sair.
— Não se mexa, fique aí — me aproximei da cama; suspirou, assentindo. — Continue do jeito que está, não vista nadinha. Eu já volto pra continuarmos de onde paramos — lhe dei um selinho e saí porta afora, entrando no quarto da bebê chorona.
Acendi sua luz e a vi se esgoelar em choro. Apesar de odiar vê-la daquele jeito, não podia negar que achava extremamente adorável o biquinho que todos os bebês faziam quando choravam.
— O que foi, amor?
O som diminuiu. Seus olhinhos verdes me encontraram na ponta do berço, e moveu os bracinhos quando envolvi seu corpinho para trazê-la para o meu peito.
Descobri sozinho o que era após checar sua fraldinha e ver que estava suja – bem suja, na verdade. Retorci meu rosto em nojo ao limpá-la até que estivesse tudo certo para poder colocar outra fralda. Se não estivesse tão tarde, lhe daria até um banho; porém, além do horário, eu ainda estava com pressa.
Deitei em meu colo, esperando-a magicamente fechar os olhinhos e cair no sono como a neném bonitinha e tranquila que ela era. Porém, não foi o que aconteceu, e aquilo me frustrou um pouco. Depois de uns quinze minutos me balançando que nem um idiota com ela em meus braços, aquele pouco se tornou muito. E depois de meia hora – sim, eu estava contando o tempo – eu estava muito mais do que só frustrado.
Apesar dos pesares, não conseguia sentir raiva ao encarar seu rostinho e vê-la me olhando curiosa ao tentar se comunicar por meio de sons incompreensíveis. Eu a amava tanto que até quando ela empatava a minha foda conseguia ser adorável sem ao menos se esforçar.
— Dorme, neném, que o bicho-papão vem pegar… — franzi a testa, me perguntando se estava cantando certo. — Mamãe está esperando o papai para brincar… — me permiti ter uma licença poética e adaptei a canção de ninar para a situação atual. Quem sabe assim poderia ter dimensão da minha urgência em ir… brincar com a mãe dela. — Filha, por favor… — me senti um otário ao implorar algo pra uma criança de três meses. Bem que dizem que figuras femininas geralmente são as que mandam, mas estava levando aquilo muito a sério, muito cedo. — Olha, fazem muitos dias que mamãe e eu não… brincamos juntos. Dorme, bebê, por favor.
Passou-se mais dez minutos depois do meu clamor, implorando misericórdia de . Quase cheguei a prometer pegar leve com seus pretendentes quando ela crescesse. Ainda bem que não cheguei a aquele extremo.
A bebê se entregou ao soninho que veio devagarinho, primeiro fazendo-a piscar os olhinhos; depois tirando sua força dos braços, obrigando a pequena a largá-los caídos nas laterais. Logo sua barriguinha se movimentava lentamente, indicando que ela tinha enfim se entregado.
Coloquei-a de volta no berço num cuidado quase cirúrgico, cobrindo-a com seu cobertorzinho com tanta lentidão que eu parecia estar desarmando uma bomba. Quando me virei para deixar o quarto, vi seus olhinhos sonolentos se abrirem novamente.
— Tudo bem, você dorme com a gente hoje — sussurrei, já sabendo que não tinha mais clima nenhum pra sexo. — Mas é só hoje.
Levei-a comigo para o quarto, encontrando desmaiada no décimo quinto sono, ainda nua, me esperando como eu disse para ela ficar antes de sair. Olhei para e voltei a olhar para Meester, cutucando-lhe o braço.
— ... …
— Eu não dormi, não… eu… — ela se sentou num pulo, estranhando a presença do pequeno ser no recinto. — O que ela está fazendo aqui? — puxou os travesseiros, tentando se cobrir.
Suspirei ao assisti-la fazer aquilo. Se soubesse, teria agilizado as coisas lá embaixo mesmo, sem todas aquelas preliminares. Devia vir num manual de pais de primeira viagem:
Regra número 1: se tiver oportunidade de transar, transe logo. Não sonhe com preliminares, o bebê irá acordar antes mesmo de chegar na penetração.
— Se vista, ela vai dormir com a gente.
— Mas, no berço…
— Tente colocá-la no berço e veja o que acontece — ri sem humor, vendo ir até o closet e voltar com uma camiseta qualquer minha.
— anda muito mimada pro meu gosto.
Arqueei as sobrancelhas. falava como se ela não fosse a maior culpada. podia ser novinha, mas com certeza já devia ter percebido que, se chorasse, conseguiria o que quisesse de nós.
A loira se enfiou debaixo das cobertas e me deixou sem ação.
— Sem calcinha, ? — quase chorei ao entregar a bebê nos braços dela.
Quando a mandei se vestir, era porque sabia que não conseguiria dormir na mesma cama que ela nua sem fazer nada. Com na cama, então, eu nem sequer pensaria em sexo. Porém, eu não era de ferro, né?
— Vamos dormir logo, — virou-se para a bebê, colocando sua chupeta na boca e acariciando seus cabelos lisos, vendo-a voltar a fechar os olhinhos.
Deitei-me após apagar as luzes, encaixando meu corpo atrás do da minha esposa, sentindo-a segurar minha mão por cima de sua cintura. suspirou, virou a cabeça e beijou minha boca. Assim que desgrudei nossos lábios, depositei alguns beijos em sua nuca e pescoço.
— Eu amo esse barulhinho que ela faz — sussurrou em meio a escuridão. O som em questão era de com sua chupeta. Sorri ao enterrar meu rosto na curva de seu pescoço. — Boa noite, .
— Boa noite… minha — a ouvi segurar o riso para não acordar a menina.
— Vai se foder, .
's point of view.
Abri os olhos após me remexer devagar antes de fazê-lo. Lembrava-me de ter tido aquela preocupação mesmo que inconsciente durante grande parte da noite, por saber que estava na cama conosco. Eu sabia o quanto me mexia enquanto dormia; já perdi as contas de quantas vezes acordei de madrugada com movendo um braço ou perna minha que foi jogada sobre ele. Então, meu medo em relação a bebê tão frágil estar adormecida, tão pertinho de meu corpo, era compreensível até demais.
Por sorte, meu instinto materno tinha me mantido milagrosamente na linha aquela noite. Bom, ele e o braço de , que ainda estava descansado em minha cintura, provavelmente para me impor limites caso eu me esquecesse de e quisesse rolar sobre o colchão.
Era engraçado falar sobre instinto materno sem ter parido ninguém. Sempre achei que fosse algo biológico, que se cultivasse durante a gestação e que tivesse a ver com o laço da mãe com o bebê, que dividiram o mesmo espaço por nove meses. Mas não, eu também sentia aquele instinto de proteger . Tinha adquirido aquela crença de ter superpoderes quando pensava que algo pudesse machucá-la. Eu me sentia forte, indestrutível e capaz de tudo para defendê-la.
Jamais imaginei que a adoção fosse me fazer sentir as mesmas coisas que uma mãe biológica sente; aliás, eu jamais imaginei qualquer coisa sobre adoção na vida.
suspirou atrás de mim, chamando minha atenção e me tirando da grande viagem que eu tinha embarcado ao encarar ressonando tranquila ao nosso lado. Me remexi e fiquei de barriga para cima, virando meu rosto para espiá-lo ao achar que ele tivesse acordado.
Encarei , vendo-o de olhos fechados; sua mão continuava sobre meu corpo. Após minha movimentação, parou sobre meu umbigo e ali ficou, já que ele não moveu um músculo sequer. Ri pelo nariz ao reparar na semelhança física que e tinham se olhássemos para ambos com atenção.
A boca era idêntica. Olhei para a bebê e reparei no narizinho também, não precisando ter nenhum dos dois acordados para saber que a cor verde dos olhos também era algo em comum entre tio e sobrinha. Imaginei o que Grace diria se tivesse vivido o bastante para vê-lo com a filha nos braços. realmente parecia o pai dela, mas claro, ele e Grace também eram super parecidos. não se parecia nada com Miguel, e aquilo me intrigava quanto à resistência dos pais de em reconhecê-la como neta. Não existia nenhum traço daquele traste na bebê. Ela se parecia tanto com a mãe!
Nunca entraria na minha cabeça o motivo de renegarem tanto a menina! Ela poderia ser um ótimo remédio para curar a dor da perda de Grace, que eu sei que eles sentiam. foi a nossa cura. Com ela, sabíamos que teríamos a essência de Grace conosco para sempre. Com ela, a ausência de Grace era preenchida por completo, dia após dia.
— Está me observando dormir?
Ofeguei assustada, tendo rindo da minha cara já de olhos abertos e com a cara amassada.
— Não! Você me assustou, seu idiota — resmunguei, sentindo-o me apertar em seus braços. desferiu alguns beijos pelo meu rosto, fazendo-me encolher enquanto ria baixinho para não acordar a bebê ao nosso lado. — Não me beije, nem escovamos os dentes ainda.
Ele me ignorou, pegando meu queixo e beijando minha boca demoradamente. Cedi quando o senti pedir passagem com a língua, e suspirei contra seus lábios quando relaxei meu corpo; o dele cobriu o meu devagar.
— Isso é casamento, querida — me desferiu um selinho enquanto eu fingia não me arrepiar com o tom rouco de sua voz, tinha soado tão sexy. — Bom dia, aliás.
Peguei-o pela nuca, enroscando mais uma vez minha língua com a sua.
— Bom dia — lhe sorri contida, encarando-o tão de pertinho sobre mim, apoiado no colchão ao meu lado.
Aquilo com certeza também fazia parte do casamento como tinha acabado de brincar: dormir e acordar ao lado da mesma pessoa todos os dias. Era estranho o quanto nós dois tínhamos entrado naquela rotina sem nos darmos conta. As circunstâncias nos fizeram dividir a mesma casa e também a mesma cama – o quão louco seria imaginar tudo aquilo anos atrás? Como a vida poderia ser irônica… Colocar justo para ser meu marido.
Mesmo que fosse de mentira.
Pertinho de seu olho havia um cílio caído, que provavelmente tinha se soltado dos demais quando ele coçou os olhos há pouco. Estiquei minha mão em direção ao seu rosto, pegando-o delicadamente em meu dedo. me olhou confuso antes de ver o que eu tinha no dedo indicador.
— Vai, faz um pedido — lhe estendi a mão.
olhou para o lado e viu ainda dormindo, respirando tranquilamente de barriguinha para cima e chupeta na boca. Logo depois, me encarou por um tempo. Franzi a testa diante da sua lerdeza ao fazer algo tão simples! Devia estar lento por ter acabado de acordar. Arqueei as sobrancelhas, apressando-o, fazendo com que ele saísse do seu mundo particular. negou com a cabeça em silêncio, soprando o pequeno fio com um desdém enorme.
— Isso é bobagem — saiu de cima, deixando a cama e dando-me a visão de seu peito descoberto por ele ter dormido apenas de calça.
— Você é um chato — lhe dei a língua, arrancando-lhe uma risada fraca no caminho do banheiro.
— Não vai me dizer que acredita no Papai Noel e no coelho da Páscoa também! — sua voz debochou lá de dentro. Ri, baixo sentando-me na cama.
— Nunca acreditei. Nunca mentiram pra mim sobre isso — refleti, pensando na primeira vez que contei para Lisa, uma amiga do jardim de infância, que não existia Papai Noel e que aquele velho era só um homem qualquer fantasiado.
Levei uma bronca enorme da professora por fazer a menininha chorar e, quando cheguei em casa, levei outra de minha mãe, que me fez prometer não falar mais nada sobre aquilo com nenhuma outra criança. Era como se fosse um segredo de Estado.
— Então você também fingia que acreditava para Grace? — ele voltou para o quarto com a escova de dentes na boca.
Assenti, lembrando-me dos tantos Natais, Páscoas e de todas as estrelas cadentes e dentes-de-leão que já encontramos quando estávamos juntas. Estávamos sempre juntas. No fundo, eu não acreditava tanto assim naquela coisa de assoprar para dar sorte; porém, tinha esperanças de que a fé de Grace em todas aquelas superstições e crenças fosse capaz de fazer os meus desejos se realizarem também.
— Eu fingia até quando ela me dizia que ia parar de beber — levei a mão ao rosto, abafando minha risada. Já correu de volta para o banheiro depois de quase cuspir a pasta de dentes. Ouvi sua gargalhada sonora lá de dentro.
Grace nunca foi muito controlada com bebida, sempre saía mais louca que o Batman de todas as festas que íamos juntas. Por isso eu era fraca para álcool, geralmente não bebia muito para poder cuidar dela. A única vez que me descuidei foi justamente na noite em que ela me deu um perdido e saiu da festa que estávamos acompanhada de Miguel.
Lembrava-me do pânico que senti quando liguei diversas vezes e não obtive respostas. Cheguei a ligar para em Londres para que ele me ajudasse a procurá-la – aquela foi a nossa pior briga de todas. Ele me disse para me afastar da irmã dele, me acusou de tê-la largado sozinha! Quando Grace descobriu a gravidez, eu fui a primeira culpada por ele, que manteve aquela opinião até dias depois do nosso casamento.
Se continuava com a mesma opinião, eu já não sabia. Parecia que não; porém, não valia a pena retomar aquele assunto, visto que tínhamos combinado não fazê-lo por .
Falando nela, a bebê abriu o berreiro, despertando de seu sono pesado. Peguei-a nos braços e tentei acalmá-la, quando saiu da porta lateral do quarto já de rosto lavado.
— Aí, o resultado do álcool em excesso — brincou, pegando a neném para si quando lhe estendi, já que era minha vez de fazer minha higiene matinal.
Se estava fazendo piada com aquilo, era porque tinha superado. A cada dia que passava, eu via ficando cada vez mais distante a nossa fase de ódio mútuo. Depois de tê-lo me pedindo perdão por tudo o que já me fez na infância, sentia que estávamos entrando de vez naquela amizade que prometia durar anos por conta do laço que tínhamos com .
A manhã tinha se passado tranquila. Era um domingo normal, um dia de preguiça para a chegada da segunda-feira. Eu tinha conseguido deixar a tensão do dia de amanhã pra lá, quando me distraiu desde a manhã de ontem; porém, quando não o tive mais ao meu lado na cozinha de casa, a preocupação me tomou.
também pareceu ter sido tirado da paz que estávamos dentro de casa ao receber uma série de emails de Beatrice. Eu o conhecia bem o bastante para saber que estava furioso com a novata querendo mandar nele e na empresa que comandou como desejava nos últimos anos.
Sabia que se fecharia naquele escritório, se esquivar emocionalmente e fisicamente da minha presença e de como já havia começado a fazer, quando ouvi a porta batendo no fim do corredor ao lado da cozinha. Eu lhe daria espaço; ele sabia que, se precisasse, eu estaria ali para conversar como fiz da última vez, e também não arriscaria tentar me aproximar e ser afastada como já aconteceu anteriormente.
Contrariando-me por completo, horas depois, quando chegou o almoço, me vi sentada à mesa sozinha e resolvi fazer um prato para ele, que estava lá, trancafiado desde cedo. Aproveitei que estava dormindo e fui quase nas pontas dos pés até o escritório.
— Entra — ouvi sua voz abafada e abri a porta, empurrando-a devagar, com medo de derrubar o que eu tinha em mãos. A própria vergonha da profissão: uma garçonete que não conseguia equilibrar um prato e abrir uma porta ao mesmo tempo. — O que foi? — ele levou a mão ao queixo, olhando-me com sua carranca.
— Não é óbvio? — indiquei o prato. fez menção de negar, mas intervi no mesmo instante. — Não venha com essa! Vai ficar o dia sem comer? — me senti a própria mãe dele, ou pior, eu tinha feito uma piada sobre Elisabeta estar mimando ele não tinha muitos dias. E lá estava eu, pagando minha língua.
— , eu não estou com fome. Leva isso prá lá antes que derrube e suje o chão — ele pediu, mas continuei parada onde estava, vendo-o passar a mão pelos cabelos bagunçando-o. — Eu estou ocupado, ok? Não vou comer agora — murmurou, ainda impaciente.
— Não é nada que você não possa desviar os olhos ao menos cinco minutos, — avancei em direção à sua mesa, na cara e na coragem, pegando os papéis espalhados por ali e empilhando-os após deixar o prato diante dele, que assistia todos os meus movimentos sem ação. — Não vou deixar que você me afaste de novo só porque está estressado, ok? — apoiei minha mão na mesa, atraindo seu olhar cansado para meu rosto. não esboçou nenhuma reação. — Da primeira vez eu perdoei, não vou fazer o mesmo duas vezes.
Diante de sua aparente indiferença, suspirei e lhe dei as costas, preparando-me para deixar o escritório e não falar com ele pelo resto do dia inteiro. não gostava de ficar em silêncio? Pois então era o que ele teria de mim.
— Espera… — pegou meu braço, impedindo-me de tomar distância. Então, hesitou um pouco antes de me puxar de volta, afastando sua cadeira de rodinhas da mesa. — Eu não quero falar sobre isso com você porque sei sua opinião sobre o que eu penso em relação a Beatrice. E também não quero alimentar ódio por alguém que mal conheço, mas ela está dificultando as coisas sendo uma tremenda filha de uma put… — arqueei as sobrancelhas, fazendo-o se dar conta do que falava. — Está vendo? Não quero falar sobre isso.
Segurei muito o meu riso naquele momento. Ele estava realmente bravo.
— Não precisa me contar o que ela fez, ou o que tanto faz nessa droga de computador, só… Não me empurre pra longe com sua grosseria, senão vai me obrigar a te tratar com igualdade e vamos começar a brigar de novo. É isso o que você quer?
— Não — ele negou com a cabeça, respirando fundo. puxou-me pela mão, fazendo-me sentar em suas coxas. Acomodei-me em seu peito, sentindo seu abraço me envolver. — Me desculpe, já entendi que não dá pra separar tudo entre nós.
Peguei seu rosto com delicadeza, beijando sua bochecha e migrando para o canto de seus lábios rosados.
Mais uma coisa que não sabíamos, mas devia fazer parte da vida de casados, era o que tinha acabado de verbalizar: não existiam mais divisões em nossas vidas. Imaginei que não devia nem contar com o que trabalhava para suas ex-namoradas ou ficantes, logo, aquilo lhe dava a chance de se distrair dos problemas da empresa quando estava com elas, já que nenhuma nunca fazia ideia do que estava acontecendo.
Mas, casados, a coisa mudava de figura. Tudo, absolutamente tudo parecia envolver nós dois, mesmo quando não tinha nada a ver um com o outro. Estávamos sempre sabendo do que houve e assim conseguíamos nos consolar ou desabafar. Eu ainda não sabia ao certo se aquilo poderia ser considerado algo bom ou ruim – só sabia que já quase não tínhamos segredos.
— Isso é estranho, não? — comentei. me olhou, esperando que eu continuasse. — Parece que viramos gêmeos siameses que dividem o mesmo neurônio.
Aquilo tudo era para dizer que eu estava estranhando não ter mais minha individualidade.
— Claramente não é o seu que usamos — bati em seu braço, recebendo um selinho de volta. — Eu brinquei hoje cedo sobre nosso casamento, mas agora que você falou, é verdade… Não há nada em minha vida que não envolve você de alguma forma.
Fiquei pensativa por um tempo, procurando algo, porém não encontrei nada que não tivesse o dedo dele também.
— Vamos ter que ralar para enfrentar essa segunda-feira — aceitando nosso destino como dupla pelos próximos oito meses que viriam, decidi juntar minha maior preocupação atual com a dele. Pelo menos, sofreremos juntos. — Não quero nem ver a cara do Sr. Williams amanhã…
— Quer que eu vá até lá com você?
Sorri ao olhar seu rosto sério. Ele pareceria um pai levando a filha para defendê-la. Beijei seus lábios devagar, sentindo-o apertar minha cintura.
— Não, acho que preciso fazer isso sozinha — respondi. Eu já era uma mulher adulta, mãe, e poderia muito bem tratar com meu chefe com maturidade. E também, não poderia viver fugindo dela, né? — E você com seu pai? Como estão indo as coisas?
tombou a cabeça em meu peito, atraindo meus dedos até seus cabelos macios, onde fiz uma breve carícia, tendo-o se acomodando sobre mim.
— Por incrível que pareça, ele é o menor dos meus problemas essa semana. Jordyn me contou que ele a pediu para comprar sua passagem, então amanhã mesmo ele voltará para casa.
— Um problema a menos — murmurei, suspirando. levantou a cabeça e me deu um olhar cúmplice. Ele não precisou dizer nada, tínhamos pensado a mesma coisa através do nosso neurônio compartilhado.
Mal consegui disfarçar minha cara de pavor quando cruzei a porta da lanchonete, encontrando Fanny e Anne já à postos e me esperando. Ambas me relembraram que o Sr. Williams só retornaria mais tarde, o que por si só já conseguiu aliviar minha dor de barriga de nervoso. tentou me acalmar no carro, mas nem seus beijos mais quentes ou suas mão habilidosas conseguiriam me tirar da tensão que eu estava sentindo.
Não compartilhei com ele nem com ninguém, mas eu estava com um mal pressentimento. já disse ser cético com essas coisas, certeza que ele diria que era bobagem minha. E eu esperava muito que fosse; esperei com todas as minhas forças durante as horas que passamos trabalhando no estabelecimento. Quando estava chegando a hora de ir embora, Sr. Williams chegou já me chamando para conversar na área restrita para funcionários.
Quando sentei-me naquela mesa, lembrei-me do dia em que estivemos daquele mesmo jeito, frente a frente no meu primeiro dia ali, fazendo minha entrevista para entrar. Eu estava nervosa, era meu primeiro emprego formal. Era engraçado olhar para trás e ver que tudo mudou tão rápido, visto que não fazia tanto tempo que cheguei em Londres apenas com minhas roupas ao lado de Grace, que já carregava no ventre.
Hoje eu já parecia outra: estava casada e era mãe. Sentia como se tivessem se passado anos.
— Olha, , vou ser bem sincero. Eu não queria fazer isso — ele ajeitou o bigode com os dedos e respirou fundo. — Sabe o quanto eu gosto de você e das meninas. Você era a que menos me dava trabalho aqui.
Ri junto dele, já prevendo o que viria a seguir. Meu estômago se revirou e eu senti minhas mãos começarem a tremer; as recolhi de cima da mesa e escondi meu nervosismo debaixo dela ao descansá-las em meu colo. O pressentimento que tive não era apenas uma sensação, era real, estava acontecendo naquele exato momento.
— Porém, desde que se casou, você tem dado alguns deslizes por aqui. Já é sua segunda falta, tirou sua licença após o casamento e também teve todas as vezes que saiu mais cedo por conta da sua bebê… São seus direitos, eu entendo, mas não consigo mais deixar as outras sobrecarregadas por conta da sua ausência.
— Eu já entendi onde quer chegar — abaixei a cabeça, sentindo o choro vir à tona.
Tudo bem que eu não sonhava em trabalhar ali para sempre, mas até que gostava. Trabalhava ao lado das minhas melhores amigas, tinha meu próprio dinheiro e ajudava um pouco a minha mãe com o que ganhava. Ter que ir embora tão de repente me pegou de surpresa. Eu não sentia que era a hora de ir, não estava pronta.
Tinha feito tantas coisas na vida sem estar pronta, talvez aquela fosse mais uma delas que daria bons frutos futuramente.
— Sabe, , fico muito feliz que está casada, com uma vida boa. Me lembro do dia em que você veio interessada na placa que coloquei lá fora. Vinha de uma cidade pequena, afastada, sem família, sozinha.
Assenti, secando meu rosto em vão. As lágrimas se renovavam e logo voltavam a molhar tudo de novo.
Eles tinham se tornado minha família. Na falta da biológica, cada um deles, junto de Grace, ocuparam lugares especiais em meu coração. Eu não me senti mais sozinha desde que eles entraram em minha vida.
— Agora está bem, não precisa mais trabalhar. Estou te demitindo para que você possa ficar com sua filha, se cuidar. Acho que você não está mais conseguindo conciliar.
Em algum ponto eu já previa que aquele dia chegaria, só não imaginava que seria tão cedo. Eu tinha sido pega totalmente de surpresa. Estava pensando desde sábado sobre uma bronca apenas; porém, após ouvir o que ele tinha a dizer, entendi e até concordava sobre ser bom ter aquele tempo para dedicá-lo a .
Porém, ainda doía muito em mim saber que aquele emprego era a última coisa que tinha me restado da minha antiga vida, que, apesar de não ter nela, eu admitia que às vezes me pegava sentindo falta daquela época. Quando eu via as meninas comentando que saíram juntas numa noite, eu parava e imaginava o quão divertido devia ter sido e desejava estar com elas.
Mesmo eu amando mais que tudo nesse mundo, mesmo ela sendo minha pessoa favorita no mundo todo, não poderia mentir para mim mesma e dizer que às vezes me pegava pensando nos sacrifícios que vinha fazendo para tê-la. Não, não era arrependimento. Eu jamais sentiria aquilo em relação ao que fizemos por ela, mas agora desempregada… Tive medo daquilo tudo crescer dentro de mim.
Eu não queria viver dentro de casa, limpando, cozinhando e esperando chegar. Mesmo que o Sr. Williams tivesse razão ao dizer que eu não precisaria trabalhar, eu não conseguia me imaginar naquela situação.
Enquanto meu chefe ia até lá fora para buscar as meninas, sequei minhas lágrimas e tentei me recompor. Prometi para mim mesma que procuraria outro trabalho o quanto antes. Por mais que eu amasse , eu não conseguiria viver aquela vida, ainda mais ao lado de um homem que não me amava e nem teria obrigação alguma de me manter.
— O que houve? — Fanny apareceu primeiro e foi seguida por Anne, que fechou a porta atrás de si, igualmente confusa. Encarei-as segurando minhas lágrimas, mas fui falha ao perceber que era minha última vez ali, uniformizada ao lado delas.
— Sei que vamos nos ver sempre, mas… — solucei, assistindo ambas se aproximarem. — Eu só queria dizer tchau.
— Não — a morena choramingou, abraçando-me forte. Liberei minhas lágrimas ao ser esmagada por ambas, já que Anne me abraçou por trás, fazendo um sanduíche comigo.
— O que faremos sem você aqui?
— Eu não sei. Eu realmente não sei quem vai colocar ordem em vocês — ri em meio ao choro, contagiando as duas. — Mas as portas da minha casa sempre estarão abertas, inclusive para o seu aniversário — me afastei de Tiffany, vendo-a assentir sem conseguir falar uma palavra sequer.
Tínhamos aquele combinado: comemoramos o aniversário de Anne no ano passado, e agora chegou a vez de Fanny. Sempre fazíamos um jantar tranquilo, só entre nós três; bebíamos um vinho e fazíamos uma noite das meninas. ficaria de fora. Já estava tudo programado para que dormíssemos as três no quarto de hóspedes que tinha lá embaixo.
O Sr. Williams apareceu na porta, fazendo-as me abraçarem mais uma vez. Era a hora de voltar para atender os clientes que estavam esperando. Me despedi dele e o ouvi me desejar boa sorte, além de me falar para beijar e abraçar muito a bebê que eu tinha em casa. Prometi que faria tudo aquilo e que me cuidaria. Deixei a lanchonete e andei pela calçada sem olhar para trás, sabia que choraria caso o fizesse.
Olhei em minha bolsa e acabei por ver que não tinha levado dinheiro para um táxi. Lembrei-me de que a empresa de ficava próxima dali, então joguei o nome no Google e consegui achar o caminho, que poderia ser percorrido a pé sem problema algum.
Enquanto andava, aproveitava para disfarçar meu rosto inchado de tanto que já tinha chorado. Não queria chegar na empresa e deixar na cara que havia algo errado. Vai que eu esbarro em algum amigo de por puro azar!
Assim que avistei o grandioso prédio mais à frente, resolvi guardar o celular na bolsa ao ir pela calçada extensa até a faixa de pedestres que tinha ali. Senti o aparelho vibrar e, quando vi o nome de piscar na tela, o atendi de imediato, levando o aparelho ao ouvido. Dei passos incertos para trás, mesmo que o sinal estivesse vermelho e eu pudesse atravessar.
— ? Está tudo bem, está chorando?
Franzi o cenho, realmente começando a acreditar na brincadeira que fiz sobre dividirmos o mesmo neurônio.
— Como…
— Olhe para trás.
Encarei o grande vidro que mostrava o interior da cafeteria granfina e vi do lado de dentro, também segurando o celular no ouvido.
— O que houve?
Abaixei o celular, finalizando a chamada ao assisti-lo deixar a mesa que dividia com Chace e sair quase que correndo para a porta do estabelecimento. O loiro lá dentro encarava-me com pesar, mesmo sem entender direito o que estava acontecendo. Minha cara devia estar mesmo péssima.
— Eu fui demitida — murmurei, sentindo meus olhos se encherem de lágrimas.
— Sinto muito, — ele me abraçou forte. Deitei minha cabeça em seu ombro ao ter suas mãos me afagando as costas suavemente. — Venha, vamos entrar um pouco — pegou-me pela mão, me guiando para dentro da cafeteria.
Assim que pisei os pés no local muitíssimo bem decorado com móveis claros, estofados escuros e pessoas endinheiradas sentadas neles, senti que era observada ao longe por uma funcionária. Não a encarei de volta; eu tinha certeza que ela devia estar com pena de mim por estar chorando, ou estranhando alguém com um uniforme daqueles frequentando aquele lugar.
me colocou sentada no estofado tão fofinho quanto parecia. Ao olhar de longe, me abraçou de lado e deixou-me mais uma vez descansar minha cabeça em seu ombro. Escondi o rosto na curva de seu pescoço, sentindo seu cheiro e tentando me concentrar nele para me distrair da melancolia que me tomava. Eu tinha que me controlar. Deixaria para chorar em casa, longe de todos aqueles olhares.
Me afastei ainda fungando, então sequei o rosto com rapidez ao me endireitar, sentada.
— Qual foi a justificativa dele? — sua mão alcançou meus cabelos recém-bagunçados, colocando-os delicadamente atrás da minha orelha. Olhei em seus olhos e não disse nada. entendeu mesmo assim. — Que droga, — ele deu um suspiro pesaroso. — Sei o quanto isso era importante pra você.
Sua boca beijou a minha devagarinho, deixando apenas selinhos castos em meus lábios trêmulos. sabia, tanto que usava meu emprego para me irritar quando vivíamos brigando pelos cantos. Nada que pudesse ofender – eu fazia pior com meu arsenal de piadas sobre nepotismo na época.
— O que houve? — não olhei, porém ouvi Chace sussurrar para do outro lado da mesa. Tinha até me esquecido de sua presença ali.
— foi demitida.
Estiquei-me para apanhar um guardanapo, passando-o debaixo dos olhos a fim de tentar amenizar a desgraça que a maquiagem borrada devia estar.
— Sinto muito — encarei-o sorrindo fraco, observando parada sua mão alcançar a minha sobre a mesa. — Sei que logo arranjará outro emprego. Tenho certeza que vão querer contratar alguém tão inteligente e incrível como você — ele afagou o dorso, deixando-me tão tímida que senti meu rosto esquentar.
Apesar da minha queda por Chace, com toda a situação em que estávamos inseridos e nossa pouca convivência em Tulum, acreditava que não conseguiria achar normal se ficássemos algum dia. Era uma pena, mas eu torcia muito por ele. Chace era amável, gentil, lindo e faria qualquer mulher que estivesse ao seu lado a mais feliz do mundo.
se remexeu desconfortável ao meu lado, com seus olhos verdes queimando sobre nossas mãos juntas. Quando fiz menção de tirar a minha de baixo, o garçom se aproximou da mesa em que estávamos segurando sua bandeja.
— Com licença, a gerente oferece para a senhorita — com a voz amena, o homem de estatura mediana e uniforme engomado deixou uma xícara de chá diante de mim, sorrindo caridoso em minha direção. — É por conta da casa.
— Muito obrigada.
Eu realmente precisava de um chá para me acalmar. Precisava pensar direito, não podia tomar decisões estando naquele estado, à flor da pele.
Deixar e ir trabalhar ou ficar com ela e não fazer meu próprio dinheiro? Se a deixasse, quais seriam as consequências a longo prazo? Era realmente aquilo que eu queria? E se me arrependesse de não tê-la aproveitado mais quando ela crescesse? O tempo não voltava, e eu tinha a sensação de que ele corria cada dia mais depressa…
Levei a xícara à minha boca. É, um chá faria bem. Levantei o olhar para espiar o rosto da tal gerente. Queria tentar lhe dar ao menos um sorriso ao longe de agradecimento. Ao focar meus olhos na direção em que o garçom indicou com o queixo, avistei a morena de olhos claros parada à postos.
A mesma que não tirou os olhos de mim quando entrei na cafeteria ao lado de …
Não tirou os olhos de , na verdade. Ao terminar de inspeciona-lá, pude ver de longe o nome que estampava sua identificação presa no uniforme.
Dafne.
Aquela era a amante do meu marido.
Continue lendo...
Nota da autora: Me digam o que acharaam desse final! A pp finalmente vai conhecer a namorada do marido dela hahaha.
Outras Fanfics:
• It's a Match!
• The Enemy
CAIXINHA DE COMENTÁRIOS: Se o Disqus não aparecer, deixe a autora feliz com um comentário clicando AQUI.
Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.
• It's a Match!
• The Enemy
CAIXINHA DE COMENTÁRIOS: Se o Disqus não aparecer, deixe a autora feliz com um comentário clicando AQUI.
Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.