CAPÍTULOS: [Prólogo] [1] [2] [3] [4]









Prólogo


Agora vemos como em espelho e de maneira confusa; mas depois veremos face a face. (1 Cor 13, 13)


Quando tínhamos doze anos nos conhecemos.
Não que eu já não tivesse visto os cabelos ruivos de Amélia antes ou os olhos azuis intensos de Anika. Nós sempre estivemos juntas, mesmo sem estarmos.
Amélia foi a primeira a fazer aproximação. Andava de forma decidida e confiante, nada poderia abalá-la, e eu não sabia o quanto estava certa.
- Preciso das questões 102 a 117 do exercício de Biologia. – Disse ao aproximar-se da minha carteira.
Eu a fitei incrédula, sem acreditar no que meus ouvidos tinham ouvido. Amélia Torn, a garota mais inteligente da sala estava me pedindo a resposta das questões do exercício? O mundo estava prestes a desmoronar.
- Você é surda ou se faz? – Tornou a falar me olhando de forma impaciente. Seus grandes olhos verdes rolavam enquanto torcia a boca. Tudo nela era grande; os olhos, boca, corpo, cabelos. Ela nunca tinha chegado tão perto.
- Por que quer a resposta? Tenho certeza que já as tem. – Respondi não me deixando vacilar pelo seu olhar superior. E olha que ela só tinha doze anos.
Bufou, soltando uma risada. Anos depois ela disse que riu porque tinha ficado sem resposta, ninguém havia lhe respondido assim tão na lata antes.
Me senti orgulhosa por ser a primeira.
- Quero conferir, apenas. – Ponderei suas palavras ainda sem entender o real motivo que a fez sair do seu lugar no início da fila até a parte de trás, que era onde eu costumava sentar. A sala fingia não prestar atenção em nós duas, mas eu podia sentir o silêncio entre sussurros e vários pares de olhares sendo desviados vez ou outra.
- Tanto faz. – Peguei meu caderno e abri na matéria de Biologia. Lá estavam as questões 102 a 117 todas respondidas com meu garrancho que chamo de letra. – Só não sei se vai entender.
- Eu dou meu jeito. – Deu de ombros pegando o caderno e retornando para sua carteira.
Usava uma saia florida um pouco curta demais e uma blusa de botões jeans. Era muito descolada para sua idade, era muito inteligente para sua idade, era muito esperta para ser amiga daquelas acéfalas que lhe rondavam fingindo ser leais, quando na verdade só queriam uma fatia do bolo de sua popularidade.
E naquele instante, a observando comparar nossas respostas de forma concentrada e até um pouco cética, eu quis ser sua amiga.
- Porque confiou tão rápido nela? – Uma voz ao meu lado fez meu pensamento “amigas para sempre” se dissipar como fumaça ao vento.
Virei a cabeça e encarei Anika Suen me fitando com olhos tão quanto os meus.
- Ela sabe ser convincente quando quer. – Sorri sendo retribuída logo em seguida.
- Anika. – Ela estendeu sua mão para mim. Seus dedos eram longos, assim como seu corpo. Ela tinha cabelos loiros que caiam escorridos por seu ombro e suas sobrancelhas grossas a faziam parecer bem mais velha.
- . – Não precisávamos de apresentação. Cada um ali sabia o nome de cada um. Mas era algo como se tornar mais íntimas. E eu havia gostado daquilo.
No fim da aula, Amélia me devolveu meu caderno e me convidou para tomar um sorvete. Aceitei achando tudo aquilo muito bizarro. Anika se auto convidou.
- Amo sorvete. Nos encontramos aonde? – Perguntou animada.
Amélia a fuzilou com o olhar e ao notar que não obteve o efeito que queria, relaxou a expressão.
- Na entrada da escola. Não se atrasem. – E virou-se seguindo até seu lugar.
- Você é muito cara de pau né?! – Anika deu de ombros, sorrindo de lado.
- Eu amo sorvete, e não podia perder a oportunidade de tomar um, com companhias tão agradáveis. – Seu sorriso aumentou. Pessoa mais irônica que ela estava para nascer.
Estranho como a partir dali o destino foi moldando as coisas, a ponto de nos tornarmos melhores amigas: Amélia, Anika e eu.
Nunca mais nos desgrudamos. Sabe aquela expressão de “como unha e carne? ”, éramos mais que isso. Éramos como irmãs.

Capítulo 01 | Festa


Anika dirigia em um nível moderado, nem muito rápido e nem lento demais. Naquela velocidade chegaríamos em no máximo 20 minutos a casa de Amélia. Essa que não parava de fazer meu celular vibrar dentro da bolsa.
- Pelo amor dos santos, atenda essa mulher. – Anika bufou acelerando um pouco.
- Calma, calma. – Peguei o aparelho que tocou mais alto ao sair do abafamento da bolsa.
- Oi Mélia.
- Até que enfim, né!? Aonde vocês estão? Ou melhor, do que estão vindo? Montadas no casco de uma tartaruga? Espremidas em um jegue? – Tinha posto o celular no alto-falante de modo de que Anika pudesse ouvir também.
- Estamos chegando, esfrie o facho. – Anika respondeu revirando os olhos. Ela odiava os escândalos exagerados da ruiva.
- Acho bom mesmo, as coisas estão ficando tediosas aqui sem vocês. – Pelo seu tom de voz melado sabia que já estava começando a ficar bêbada.
- Aguente aí que logo aparecemos. – Encerrei a chamada guardando o celular no bolso. Sorri me sentindo feliz.
- Por que o sorriso? Animada para limpar o vômito daquela cachaceira? – Soltei uma risada dando um soco de leve em seu braço.
- Acabou. Adeus professores irritantes e mal comidos, provas elaboradas pelo diabo e massa de alunos acéfalos que não sabem fazer mais nada além de olhar para o próprio umbigo. – Disse sentindo o sentimento de alívio se espalhar pelo meu corpo.
Hoje foi o último dia de aula e por esse grande feito, Amélia não poderia deixar de fazer uma festa. E ela mais do que nunca sabia como oferecer as melhores. Sua casa entupia de tanta gente e sabíamos que havia uma certa minoria que não pertencia ao High Olians School.
Anika assoviou.
– O quê? dando graças a Deus que o ensino médio acabou? Queria estar viva para dizer que estou morta.
E gargalhou me fazendo rir junto.
- Besta. Só estou dizendo o quanto é bom me ver livre da áurea pesada que é o ensino médio, com toda a sua cobrança e pressão.
- Entendo, você tem razão. É bom saber que segunda não preciso acordar cedo. – E soltou outra risada me fazendo bufar. Às vezes esse lado sátiro de Anika me aborrecia. Ela percebeu isso, pois logo emendou:
- Falando sério agora: é como se livrar de umas amarras que foram presas a você lá no jardim de infância. Estou feliz. – Estava concentrada na pista. A rua encontrava-se deserta, tanto por já ser 23hrs quanto por essa área não ser muito movimentada, já que Amélia morava em um bairro afastado da zona central da cidade. Era próximo as colinas, por essa razão havia uma grande parte de vegetação; a rua que levava até sua casa tinha mais de 20km de floresta de ambos os lados.
- Recebeu resposta de alguma Universidade? – Peguei minha bolsa, pois já estávamos chegando. Ao longe podia-se ouvir o som no último volume e luzes iluminando o lado esquerdo da pista.
- Claro que não, você sabe que minha vida como enclausurada da sociedade terminou hoje. A partir de agora sou livre. – Disse estacionando o carro e o desligando.
Essa vontade de Anika de simplesmente deixar o vento a levar me incomodava, não entendia como alguém poderia não ter objetivos, desejos, metas a cumprir. Ela era assim, como uma folha solta, deixando a brisa a levar para onde ela quisesse.
- Tem certeza disso? – A segurei pelo braço, antes dela abrir a porta.
Ela me fitou de forma intensa. Seus olhos tão azuis que brilhavam na pouca luminosidade que existia no carro. Ela usava um gorro negro, e seu cabelo loiro era exatamente igual de quando tinha 12 anos, quando realmente a conheci. Vestia uma camisa do The Clash, grande demais para seu corpo magro e uma calça preta toda rasgada. Anika era assim, um turbilhão de informações, tanto por fora, como por dentro.
- Essa é a única certeza desde que me entendo por gente. Não fui feita para seguir o sistema. – Sorriu me dando um tapinha de leve na testa. Sempre fazia isso quando eu começava a insistir em algo com ela. Deveria saber que discutir com Anika era uma batalha perdida antes de começar. Ela nunca dava o braço a torcer ou entrava na discussão.
- Agora podemos ir? Amélia realmente vai nos matar. – E falando isso saiu do carro.
Saí também e nos deparamos com uma casa arrebatada de gente.
Amélia tinha uma das casas mais lindas que eu já tinha visto. Toda de vidro, praticamente dentro da floresta. Suas luzes iluminavam tudo em um raio de 2km na parte da frente, depois só se via o breu, pois as copas das enormes árvores impediam que a luz da lua iluminasse algo.
- Até que enfim né, suas putas! – Ela gritou da sacada de seu quarto. Na mão tinha um copo vermelho, e pelo que eu conhecia dela, sabia que aquele já deveria ser o 5º ou mais.
- Sem mais choros, as estrelas da festa chegaram! – Anika gritou de volta.
Apenas ri dessas duas e me dirigi até a porta. Não precisei abri-la, a mesma já se encontrava escancarada.
A casa era bem ampla e tinha uma decoração moderna e em tons branco e vermelho. Não se podia ver muito mais da decoração, pois havia corpos de jovens em todos os lugares que se olhava. O alto volume da música tocando Katy Perry praticamente me fazia acreditar que ela estava dentro da minha cabeça. Olhei ao redor procurando pela Anika, mas ela já estava subindo a escada, com certeza indo até a Amélia. Me apressei para seguir seus passos, mas um corpo postou-se na minha frente impedindo que eu desse um passo sequer.
- Lindaaaaaaaa! – Dylan falou com a voz arrastada me abraçando pela cintura. Virei o pescoço para o lado, pois o cheiro de cerveja era forte e fez meu estômago dar um nó.
- Oi Dylan. – Tentei me soltar, mas mesmo bêbado ele era bem mais forte. Enfim desisti e o fitei, tentando ignorar aquele fedor.
Seus olhos castanhos estavam avermelhados e seus cabelos estavam bagunçados, apontando para todos os lados, pelos chupões em seu pescoço tinha certeza que tinha acabado de se pegar com alguma garota.
- Quando você vai me dar a famosa chance? – Perguntou tentando beijar meu pescoço, desvencilhei-me dele conseguido me soltar.
- Talvez no dia que você pare de pegar qualquer uma. – Dizendo isso segui até a escada, sem receber nenhuma nova investida.
Dylan Tori era meu tormento na terra. Sempre estudamos na mesma escola, tínhamos até algumas aulas juntas, mas ele nunca me notou. Para ele eu era invisível, e o sentimento era recíproco. Até o 1º ano, quando ele entrou no time de natação, ao qual eu participava, e me viu com outros olhos e desde então não saiu mais do meu pé. Dylan até que era bonito, tinha um belo corpo, um sorriso atraente e sabia como ter um bom papo, sem estar bêbado claro, mas eu não conseguia sentir atração por ele. Absolutamente nada. E ele não conseguia entender isso.
Enfim cheguei ao quarto de Amélia, dei dois toques na porta e entrei. Anika estava jogada na enorme cama de casal que ficava no lado oposto a porta. A decoração era toda lilás, deixando o ambiente bem claro. Adorava nossas festas do pijama na casa de Amélia. Às vezes a lua iluminava seu quarto totalmente, por causa das janelas de vidro, e quando isso acontecia nas noites em que estávamos ali, não fechávamos as cortinas e dormíamos banhadas pela luz da lua.
Amélia saiu do banheiro limpando a boca e cambaleante. Havia vomitado.
- Somos limpadoras oficiais de vômito da Torn. – Anika disse sem tirar os olhos do celular.
- Cala a boca. Não estou bêbada, não a ponto de vomitar. Foi apenas um mal-estar. – Defendeu-se Amélia. Ela vestia um vestido preto colado ao corpo que deixava suas pernas a mostra. Seus longos cabelos ruivos estavam soltos e mais brilhantes que nunca.
- Sim, nós sabemos Amélia. – Falei me jogando ao lado de Anika.
Rapidamente ela ativou o descanso de tela, fazendo a mesma se apagar. Não entendi esse fato, mas achei melhor não falar nada.
- Então? Vamos comemorar? – Disse levantando-se num pulo e puxando uma Amélia tonta e resmungona.
- Me larga, Nika! Preciso me recompor. Sage daqui a pouco chega. Não posso beijar meu namorado parecendo um zumbi. – E outro drama sem sentindo começava.
- Como queira, recomponha-se. Enquanto isso fazemos o esquenta com o que temos por aqui. – Anika se dirigiu até o frigobar perto da TV e o abriu, retirando duas latas de cerveja. Não era muito de beber, mas pelo visto não teria como escapar hoje.
- Nem vem, . Essa noite é nossa. – E me jogou uma latinha. A peguei no ar e abri, sorvendo um gole amargo da cerveja.
Amélia retirava o resto da maquiagem e começava uma nova, pelo jeito aquilo ia demorar. Enquanto isso Anika dançava, agora ao som de uma banda indie qualquer. As observando me senti meio fora do padrão, como se não fosse certo pertencer ao trio. Mesmo sendo diferentes, Amélia e Anika tinham algumas coisas em comum, mas já eu, não tinha absolutamente nada. Aquilo me deixou incomodada de certa maneira e terminei a cerveja, indo até o frigobar pegar outra.
- É assim que eu gosto. – Anika sorriu aprovando minha atitude. Brindamos e começamos a dançar juntas.
- Alguém sabe me dizer se viu a cachorra da Yanna por aí? – Amélia perguntou passando um batom cor de sangue.
Yanna Tori, o diabo em forma de gente. Irmã de Dylan. Aquela garota me causava certo desconforto.
- Não vi nenhuma vela perambulando lá embaixo, você viu ?
- Graças a Deus não. – Elas riram. Sabiam o quanto eu não gostava dela. Mas não era um não gostar gratuito, Yanna era má, e eu havia provado do seu veneno. Desde então preferia me manter longe.
- Você tem que parar com isso, ela só late, não morde. – Anika disse dando de ombros. Ela falava como se a conhecesse tão bem, mas a conhecia tanto quanto eu ou Amélia. Deixei isso passar, assim como o fato do celular minutos atrás.
- Segundo fontes ela está em férias na Finlândia, mas me mandaram uma mensagem dizendo que ela estava na cidade. Realmente estou confusa. – Assim que terminou de falar seu celular vibrou indicando uma nova mensagem.
- Sage chegou, vamos. A festa começa agora. – Ela agarrou nossas mãos e nos puxou porta afora.
A noite só estava começando.

***

Sage era um cara alto, com cabelos loiros, quase brancos, sua pele era bem clara e era um bonito contraste com seus olhos cor de âmbar. Ele namorava Amélia há sete anos, desde o ensino fundamental. A história dos dois era um pouco estranha, antes de namorar Sage, Amélia era ficante oficial de Dylan. Em um belo dia Sage chegou a nossa escola, virou melhor amigo de Dylan, ele lhe deu de presente Amélia e a amizade de ambos continua forte feito rocha até hoje. Vai entender a cabeça daquele maluco do Dylan.
Descemos as escadas praticamente aos tropeços, Amélia não havia soltado nossas mãos e nos puxava ignorando as pessoas que estavam na nossa frente. Anika parecia não se importar, bebia sua cerveja cantarolando a música que estourava no aparelho de som.
- AMOR! – Gritou enfim nos soltando. Sage a esperava no final da escada e tinha um sorriso largo no rosto. Ele era bem gente boa, um pouco discreto e esquisito às vezes. Tinha certa fixação com histórias sobrenaturais e conspirações. Dizia que Olians, era uma cidade esquecida nas entranhas de Manhattan e que escondia muitos segredos.
- Agora é só nós duas, . Ou você resolveu dar uma chance para o Tori? – Anika perguntou de forma maliciosa apontando para Dylan que dançava com os amigos no centro da sala.
- Nem nessa década e muito menos na próxima. – Ri lhe puxando pela mão.
Enquanto dançávamos reparei em Brian Cooper. Olhei de relance para Anika, mas ela ainda não o tinha visto. Eles eram namorados, mas haviam brigado sério há dois dias, desde então não se falaram mais.
Brian localizou Anika no meio da multidão e veio em nossa direção, tentei puxá-la para longe dele, mas já era tarde demais.
- Anika, precisamos conversar. – Ele disse segurando forte em seu braço.
Ela o fitou raivosa e tentou se soltar, mas ele não afrouxou o aperto.
- Me solta, não temos nada que conversar. Nosso assunto já está terminado.
- Por favor, só me ouve. Uma última vez. – Insistiu.
Permaneci calada e atenta a seus movimentos, qualquer ato mais brusco eu agiria. Brian tinha uma bela fama na cidade. Era ex presidiário e espancador de mulher. Sem contar os 12 anos de diferença entre os dois, mas isso era o de menos. Ele dizia que havia se redimido, que agora estava longe das drogas e que estava controlando seus ciúmes, mas pelo jeito não estava conseguindo.
Há duas noites tinha brigado feio com Anika, porque ela estava recebendo mensagens estranhas no celular, ela disse que não era nada, era coisa da cabeça dele. Que ele via cabelo em ovo. O fato de hoje com seu celular, me fez duvidar um pouco da sua versão.
- Tudo bem, mas que seja rápido. Não quero gastar minha noite brigando. – Ela bufou tentando se soltar. – Dá para me soltar?
Ele a olhou de forma afetada e a soltou.
- Volto já, não se divirta muito sem mim. – Disse me dando um beijo demorado na bochecha.
- Estarei bem aqui te esperando. – Sorri. Os observei se afastarem e senti um aperto estranho no peito, como se algo não tivesse certo, tentei mandar para longe esse sentimento pesado e me concentrei na música e na minha cerveja esquentando.
Logo ela voltaria e dançaríamos a noite toda.
Mas ela não voltou. Esperei dez minutos, terminei a cerveja, e esperei por mais cinco minutos. Olhava de maneira impaciente para a cozinha, que era para onde eles tinham ido. Mas nem sinal dos dois.
Decidida fui vencendo o mar de gente e cheguei até lá. O cômodo era adornado por móveis de madeira, com uma grande mesa de granito bem no centro, que agora estava sendo ocupada por vários traseiros.
Mas nenhum sinal de Brian e Anika.
- Estão aqui há muito tempo? – Perguntei as gêmeas. Todos a conheciam assim, seus cabelos negros e curtos cortados simetricamente na altura do queixo e os olhos cor de violeta as deixavam tão iguais quanto já eram.
- Pode-se se dizer que sim. – Alice, creio eu (nunca sabia diferenciá-las) era quase impossível, respondeu.
- Viram Anika? Ela veio para cá com o Brian. – Meu coração batia um pouco acelerado no peito. Estava tentando não ficar nervosa, mas era difícil.
As duas se entreolharam, como se pensando juntas. Conectando um cérebro ao outro. Tentei ignorar aquela esquisitice.
- Infelizmente não, . – Disse a outra, Bonnie, acredito. – Mas vi quando chegaram, conversaram perto da porta por um tempo, depois alguns amigos chegaram aqui e não prestei mais atenção.
Olhei em direção a porta. Talvez estivessem lá fora.
- Obrigada de qualquer maneira. Vou dar uma olhada do lado de fora. – Disse me afastando. Ouvi um “boa sorte” abafado, mas não me virei para agradecer.
Cheguei até a porta, a abrindo e recebendo uma rajada de vento gelado contra o rosto. O quintal era amplo e tinha alguns bancos espalhados, assim como alguns postes com luzes, que iluminavam de forma precária o ambiente.
Olhei ao redor e senti um frio diferente do que soprava contra meu rosto me atingir, era um frio de medo. Eu estava aterrorizada por não saber aonde Anika estava.
Voltei de forma apressada para dentro. Tinha que achar Amélia, não aguentava mais guardar essa angustia só para mim.
Fui até a sala e nada, procurei por todos os lados até encontrá-la encostada contra a porta do corredor que levava até o banheiro.
- Amélia. – Chamei ao me aproximar.
- Acredita que Sage está no banheiro há horas? Meu Deus, estou cansando de ficar esperando. – Disse e bufou cruzando os braços sobre o peito. Parecia um pouco mais sóbria que antes e isso me tranquilizou.
- Anika sumiu.
- O quê? Como assim? – Seus olhos assustados ficaram maiores do que já eram. Eu tinha sua atenção.
- Brian veio aqui, disse que queria conversar, eles foram para cozinha, estranhei por estarem demorando e fui ver. Eles não estão lá. – A cada palavra dita eu sentia uma bola se formar na boca do estômago. Meu medo parecia ganhar forma a cada segundo.
- Viu lá fora? – Assenti com a cabeça. – E lá em cima? Eles devem ter subido.
Não achei que fosse isso, eu estava na sala a esperando e teria visto se tivesse subido, mas não disse nada.
- Vou procurar lá em cima. Procura aqui embaixo? – Ela desviou os olhos para o fim do corredor onde ficava o banheiro e deu de ombros.
- Claro.
Dez minutos depois nos encontramos no andar de baixo. Sua expressão já não tão calma, me incomodou.
- Nada. – Falamos juntas.
- Estou preocupada. Vou procurar aos arredores. – Fui em direção a cozinha. Sabia que na última gaveta do armário, seu pai guardava algumas lanternas.
- Está dizendo na floresta? Não acho que Anika tenha ido para lá, é muito escuro e perigoso.
Meu olhar disse o que ela também estava pensando: Brian Cooper.
- Ok. Lá fora.
Seguimos para cozinha, não demorando a pegar as lanternas. Passei pelas gêmeas, pensei ter ouvido algo, mas não dei importância. Elas eram a fofoca em forma de gente, não precisavam de mais combustível do que já tinham.
- Você vai para direita e eu para a esquerda. – Instrui chegando ao lado de fora.
- Não acho uma boa ideia nos separar. – Percebi o quanto Amélia estava assustada. Se fosse em outra situação teria rido, mas não agora.
- Tudo bem, vamos juntas.
Seguimos em frente. Não havia cercas que separavam os limites do terreno de sua casa com a densa floresta que tomava conta de quase tudo. Seu pai disse, que assim parecia como se a terra tivesse emprestado um lugarzinho para eles.
- , olha. – Ela apontou com a lanterna para baixo. Um pacote de chicletes intocado, sabor tutti-frutti estava jogado no chão.
Abaixei-me o pegando, Anika amava aquela porcaria, não vivia sem um. Eu por outro lado começava a ter náuseas só de sentir o cheiro daquilo.
- É dela. – Respondi engolindo em seco.
- Com toda certeza. Aposto que está se pegando com o Brian em algum tronco de árvore. – Ambas sabíamos o quanto Anika era “fogosa”, sim ela poderia estar fazendo isso, como também não.
- Acho melhor irmos ver. Só para checar. – Apontei com a cabeça para a floresta a nossa frente. Ela iluminou o breu que se seguia a nossa frente.
- De jeito maneira, não quero ver partes íntimas de nenhum dos dois. Vamos voltar, logo eles terminam o que vieram fazer. – Amélia começou a se afastar. – Com tantos quartos, porque simplesmente não escolheram um?
Ela continuou a falar enquanto se afastava. Não consegui me mexer. Tudo que eu queria fazer era seguir em frente. Não me importava em encontrá-los nus. Só queria ter a certeza que ela estava bem.
- . – Amélia chamou ao lado da porta. – Não vem?
Olhei para ela e depois para a floresta a minha frente tomando minha decisão.
- Daqui a pouco. – E entrei na escuridão que me abraçou de forma fria e pegajosa.
- Que seja. – Ouvi sua voz ao longe e sabia que ela não me seguiria.
Guardei o chiclete no bolso traseiro e continuei seguindo. Fiquei na dúvida se gritava seu nome ou não. Por enquanto me mantive calada.
A luz da lanterna não iluminava muito longe, por isso tinha que dar passos curtos. Estranhei quando ao olhar para o chão de terra, notei um caminho feito de forma brusca.
Meu coração quase parou de bater ao notar que algo havia sido puxado. Logo em seguida percebi que o caminho seguia mais fundo na mata, em segundos ele voltou a bater mais rápido que antes.
Minha respiração saía irregular e pesada. O medo estava me fazendo arfar.
Segui o caminho tentando evitar os pedaços de madeira, não queria fazer barulho. Não sabia ao certo o porquê.
Era como se eu soubesse que algo estava chegando, podia sentir o ar ficar mais pesado, mais frio. Todos os pelos do meu corpo se arrepiaram, como se para provar isso. A bola no meu estômago o fazia pesar, me deixando em estado de extrema euforia.
“Estamos chegando” ouvi uma voz soar ao longe na minha cabeça. Estanquei.
Não, ela não tinha o direito de voltar do nada e justo agora. Respirei fundo tentando tirar a névoa que tomava conta dos meus pensamentos e retornei a andar.
E foi aí que tudo começou a desmoronar na minha frente.
Ao apontar para frente encontrei o gorro preto que Anika estava usando, jogado no chão, corri para pegá-lo e ao fazer isso iluminei seus tênis All Star vermelhos. Levantei a lanterna deparando-me com a pior cena que poderia imaginar.
Senti todos os meus membros paralisarem e tudo que consegui pensar foi: Anika estava morta.
Um grito ficou presa na garganta. Como se minha voz tivesse se extinguido, sido roubada. Ela estava amarrada no tronco de uma árvore, seu corpo todo ensanguentado e sua cabeça pendendo a frente. Não conseguia ver seu rosto, pois seu longo cabelo loiro dificultava minha visão.
Tentei me aproximar, mas sentia os pés pesados, como se todo o peso do meu corpo se concentrasse ali.
Num súbito senti a voz retornar e gritei a plenos pulmões:
- Socorro!
Ouvi passos atrás de mim, me virei tentando ver quem era, mas não havia ninguém. Novamente os passos surgiram, agora do outro lado. O som de algo cortando o ar veio do meu lado esquerdo, me fazendo gritar e começar a correr.
Incrível como o medo dá forças, nos fazendo agir sem pensar. Em um minuto não conseguia me mexer, no minuto seguinte estava correndo como uma maratonista. Os passos me seguiam, não conseguia olhar para trás, tudo que queria era escapar. De repente senti meu pé se enroscar em uma raiz e fui ao chão, batendo o rosto contra a terra úmida, a lanterna rolou caindo longe de meu alcance. Virei e tudo aconteceu muito rápido, senti uma forte dor no alto da cabeça, depois tudo foi escurecendo, até se tornar um breu sem fim.

Capítulo 02 | Suspeitos


Algumas vezes fugíamos para o parque central quando tínhamos treze anos.
Era divertido. Amélia adorava comer algodão doce, comprava pelo menos três enquanto estávamos lá. E comia tudo sozinha.
Anika levava sua câmera, que tinha ganhado no Natal de 2008, e tirávamos fotos aleatórias, das flores, das pessoas, e até da Amélia comendo como se não houvesse amanhã seu algodão doce colorido.
No fim da tarde, deitávamos na grama e ficávamos tentando descobrir as formas das nuvens. Ali, no meio das duas, eu me sentia querida, sentia que estava entre irmãs. Adorava aquela sensação.
Agora, podia senti-la, digo a sensação que sentia quando ficávamos apontando para as nuvens. Sentia uma alegria e um sentimento de conforto tomarem conta do meu corpo, como se estivessem me abraçando. Sentia tão forte que era como se estivesse vivendo aquele momento novamente, era tão bom, que meus músculos faciais sorriram.
Abri os olhos e tudo foi se dissipando, sumindo como uma névoa perdendo sua força, dando lugar a um céu negro encoberto por enormes árvores. Então comecei a sentir uma dor horrível no alto da cabeça.
O mundo ao meu redor girava como em um carrossel e esqueci-me por alguns minutos aonde estava. Sentei com certa dificuldade e tudo começou a se estabilizar, parando de girar vagarosamente.
Engoli em seco lembrando.
A floresta. Anika. Ai meu Deus.
Em um sobressalto estava de pé, fazendo tudo a minha volta rodopiar novamente. Segurando a cabeça com as mãos noto algo molhado sob elas: sangue.
Fui atingida por algo, e isso me fez desmaiar, conclui encostando a um tronco de árvore para estabilizar a tontura que insistia em não passar.
O assassino ainda podia estar em qualquer lugar. Olhei de um lado para o outro sentindo o coração acelerar e a dor na cabeça começar a pulsar.
Minha única saída era voltar, mas estava tudo tão escuro e havia perdido a lanterna quando caí no chão.
— Burra! – Exclamei tentando não soar tão alto. Estava machucada, tanto por dentro, como por fora e amedrontada sem saber como seguir. Sem saber o que fazer.
Se voltasse encontraria o corpo de Anika, com certeza iria querer ver seu rosto, isso significava chegar mais perto.
Dou-me conta de algo, fazendo meu sangue circular mais rápido.
E se não fosse Anika ali? Existiam tantas garotas loiras, de tênis All Star vermelho e gorro. Não precisava ser necessariamente ela, não quando eu não tinha visto seu rosto.
Endireitei meu corpo, deixando que os últimos resquícios da tonteira passassem e voltei. Era difícil saber para e por onde seguir, quando tudo que eu conseguia enxergar eram pequenos vislumbres do caminho, pois as árvores impediam que a luz da lua iluminasse mais fundo.
A dor pulsante não cessava e eu sentia o sangue escorrer pela têmpora. Se continuasse perdendo sangue assim, iria desmaiar de novo. Por isso apressei o passo.
Não demorei a achá-la. Estava do mesmo modo como há minutos atrás, ou teria sido horas? Sua cabeça pendendo em frente ao seu corpo, e ao me aproximar notei vários cortes profundos e de diversos tamanhos em seus braços e tronco, sua blusa estava totalmente retalhada e manchada de sangue.
Coloquei a mão contra a boca, tentando não vomitar. Era brutalidade demais, sadismo demais. A corda que a segurava contra o tronco da árvore dava várias voltas na altura de seu estômago, avistei os nós e eles pareciam ser bem dados. Como os nós de escoteiros, quase impossível de serem desfeitos.
Precisava levantar sua cabeça, era para isso que havia voltado, mas estava evitando. Sentia minhas mãos formigando, vários pontinhos coloridos surgiram em minha visão, sinal de que logo cairia desmaiada. Não poderia mais adiar o inevitável.
Então com certa relutância segurei em seus cabelos, sentindo-os como brasa em minha mão, mesmo que não estivessem quentes. Era só coisa da minha cabeça, eu sabia disso, mas mesmo assim não deixava de sentir um enorme desconforto ao senti-los contra meus dedos. Lentamente levantei o braço, puxando um punhado de fio que consequentemente erguia sua cabeça. Não havia notado que prendia a respiração até soltá-la como alguém que há muito tempo estava submerso em águas.
E lá estava o que minha mente relutava em acreditar, mas minha alma já sabia faz tempo.
Aquele corpo era mesmo de Anika. Dei um grito, mais de desespero do que de espanto, soltando seu cabelo. Seus olhos fechados davam a impressão de que apenas dormia, que logo acordaria e me diria o que merda eu estava pensando para amarrá-la contra uma árvore, quase pude ouvir sua voz repetindo essa frase. Mas o corte de um lado ao outro em sua garganta me provava que isso nunca aconteceria. O sangue já seco em algumas partes mostrava que já fazia algum tempo que ela estava ali. O canto de sua boca estava roxo e por entre seus lábios escorria um filete de sangue.
— Porquê? – Disse sem conseguir segurar o choro que vinha de forma rápida e desenfreada. Logo estava ao chão, socando a terra com força, e sentindo todo meu interior se rasgar.
Não soube dizer com exatidão por quanto tempo permaneci daquela forma, estava consciente, meus olhos abertos fitando o breu que tomava conta da mata, mas nada captavam. Estava perdida em pensamentos, vozes, fantasmas.

— Talvez o vermelho combine com você. – Falei fitando o batom vermelho na pia do banheiro. A minha frente um enorme espelho mostrava meu reflexo.
Cabelos , lisos e médios caiam por meus ombros. Olhos opacos me fitavam de volta, a pele um pouco pálida demais, tanto por falta de melanina, como por falta de sol.
Peguei o frasco de batom e o destampei, rodando a parte de baixo, fazendo com que um pequeno cilindro de cor vermelho escarlate fosse aparecendo aos poucos. Posicionei-o sobre o lábio inferior e comecei a passar, repeti o mesmo processo no superior, encostando os lábios para finalizar.
Realmente eu havia ficado bem melhor com aquele vermelho. O contraste entre minha pele e meus lábios, agora escarlate, eram notórios de longe. Sorri gostando do resultado.
— Era disso que eu estava falando. – Voltei a falar.
Mas não me reconhecia naquela voz, era mais como se estivesse dando som aos pensamentos que surgiam em minha mente. Estava acostumada com isso desde pequena. Nem sempre conseguia controlar a força desses pensamentos, eram mais fortes que minha vontade. Então derrotada eu só tinha que acatar como se fosse um robô. Presa dentro de mim mesma.
— Quando eu assumo sua vida fica melhor.

Brados ao longe me fizeram despertar do devaneio ao qual me encontrava.
! – Vozes femininas e masculinas se misturavam, cada vez chegando mais perto. – !
Queria gritar para que me localizassem logo, mas tinha medo da reação de Amélia quando descobrisse o que havia acontecido. Sabia que não podia adiar essa situação por muito tempo, logo me encontrariam. Logo encontrariam Anika.
— Aqui! – Gritei acabando logo com isso.
Luzes ziguezagueando se aproximavam e não demorou muito para me iluminarem como um farol.
— Isso dói. – Protestei em um muxoxo.
— Achamos! — Sage, creio eu, gritou para alguém.
— Puta que pariu. – Alguém xingou. Logo todas as luzes iluminavam o corpo de Anika.
— Meu Deus. – Sage se aproximou dela, assim como os outros. Não os reconheci, deveriam ser seus amigos do jornal. – Essa é ....
Seu olhar me fitou assustado, sem conseguir terminar a frase.
Assenti com a cabeça quando consegui me por de pé.
! – Amélia chegou aos tropeços, gritando e totalmente esbaforida. Passou seus braços ao redor do meu pescoço me abraçando forte. – Nunca mais faça isso de novo...
— Amélia. – Sage chamou, mas ela não lhe deu ouvidos.
— Você sumiu por mais de meia hora, tem ideia do que isso pode fazer comigo? Já não basta a Anika sumida. – Ela falava sem parar, gesticulando com os braços e deixando bem claro o quanto estava aborrecida.
Só conseguia lhe fitar, os olhos cheios de lágrimas. Era demais para mim.
— Amélia. – Sage chamou de novo.
— O quê? – Ela gritou virando para ele e consequentemente ficando de frente para o que todos olhavam abismados.
Sua boca se abriu em um perfeito O, suas pupilas mexiam-se sem parar. Foi afastando todos que estavam próximos. Sage tentou segurá-la, mas ela soltou-se de seu aperto leve.
E então, a centímetros de Anika, fez o mesmo que eu: levantou sua cabeça e gritou o mais alto que conseguiu.

***

O enterro de Anika aconteceu dois dias depois da festa na casa de Amélia. Aquela noite foi como um borrão em minha mente, não conseguia me lembrar dos fatos na sequência e de absolutamente nada com clareza, era apenas um desfoque e pequenas partes: Amélia dançando com Sage, depois os dois sumindo pela multidão. Lembrava do cheiro de bebida que emanava de Dylan, depois tudo se apagava. Lembrava dele indo em direção a cozinha, depois mais nada. Tudo muito difuso.
Após encontrada, tudo aconteceu muito rápido, Sage fez um enorme esforço para tirar Amélia de lá, pois tudo que ela queria era chorar e tentar acordar o corpo sem vida de Anika lhe balançando sem parar. Parecia histérica. Minutos depois estávamos ligando para a polícia. Sirenes para todos os lados. O pai de Amélia não demorou a chegar, sempre que tinha festa em sua casa, seu pai dormia fora, a maioria das vezes com a nova namorada. Ele era bem legal, sempre a deixando festejar, sempre permitindo tudo que ela quisesse. Era como se para não a fazer lembrar que tinha perdido a mãe. Depois do que aconteceu, ela estava proibida de fazer festas por tempo indeterminado, mas não era como se ela estivesse louca para festejar de qualquer maneira.
Amélia e eu queríamos homenagear Anika de alguma forma, então escolhemos uma peça de cor preta de seu guarda-roupa para usarmos no enterro. Seus pais não tinham se oposto.
Escolhi uma camiseta toda preta um pouco maior que meu corpo, tanto na largura, como no comprimento, com tachinhas coladas nas mangas. Obra sua, ela adorava enfeitar suas roupas, dizia que assim era mais original. Já Amélia, escolheu uma saia de pregas curta. Uma das peças favoritas de Anika.
Então fomos. Nossos braços unidos, uma passando força para a outra. Sob os olhares de todos, amigos, familiares, conhecidos, senti o peso do que tinha acontecido. Sabia que nem tão cedo esse crime seria esquecido, não da forma como tinha acontecido.
Não sei como, mas no dia seguinte à festa, a notícia já estava em todos os jornais, e após ler cada linha da matéria tive que correr para o banheiro e vomitar todo o alimento que estava em meu estômago.
Tudo indicava que Anika havia sido perseguida, como em um jogo sádico, em que o assassino brincava com sua vítima, a amedrontando. Depois, a amarrou na árvore, começando então a tortura física, já que a perseguição havia sido tortura mental. A matéria havia feito uma descrição minuciosa sobre como ela foi encontrada, desde os cortes pelo corpo, até o da garganta, que a matou.
Quem quer que tenha feito isso ou era muito doente da cabeça, ou estava com muita raiva de Anika. As investigações continuavam, na próxima semana a polícia começaria a ouvir os depoimentos de todos que estavam presentes na festa.
Eu sentia minhas mãos suarem e meu corpo gelar só de ter que me esforçar para lembrar daquela noite. Eu tentava a todo custo afastar as lembranças. Tive que ir ao pronto-socorro, o corte na minha cabeça precisava de pontos, levei três. Havia recebido uma forte pancada na parte superior do crânio, por isso desmaiei e segundo o médico, pode ser o motivo das lembranças estarem desfocadas ou embaralhadas. Ou talvez seja apenas minha mente tentando me proteger.
Sei que meus pais ficaram em estado de alerta com esse fato. Sofro de um transtorno de personalidade, quando pequena assumia a identidade de minha irmã gêmea que morreu no parto. Faz bastante tempo que não tenho crises, mas os médicos alertaram que minha mente era bastante frágil e eu deveria evitar qualquer tipo de situação que desencadeasse tudo novamente. Acho que eles se referiam a encontrar o corpo de minha melhor amiga desfalecido e totalmente mutilado.
— Para de vaguear. – A voz de Amélia me trouxe de volta a realidade. Estávamos no cemitério seguindo o cortejo. O pai e o tio de Anika, de Amélia e o meu levavam o caixão.
O sol estava dando o ar de sua graça, como se para mostrar que onde quer que Anika estivesse ela não queria chuva. O sol combinava mais com sua alma. Com seu jeito brilhante de levar a vida.
— Desculpe. – Foi tudo que disse. Na verdade, era impossível não pensar sobre tudo que vivemos, impossível não deixar a mente se perder em um momento como esse.
Senti uma mão encostar no fim da minha lombar, virei o rosto e Dylan estava lá, com óculos escuros e os lábios em linha reta, uma expressão dura, eu não precisava ver seus olhos para saber disso.
— Eu sinto muito. – Ele disse depositando um beijo casto no alto da minha cabeça. Ainda podia sentir o lugar dolorido.
— Obrigada. – Agradeci o carinho. Dessa vez não o afastei, era bom aquele agrado.
Sage ficou ao lado de Amélia, usava óculos escuro, assim como Dylan. Senti-me levemente estranha em sua presença. O motivo ainda era desconhecido.
Não demorou muito para chegarmos ao nosso destino, a enorme cova a sete palmos da terra estava feita. No epitáfio podia-se ler:

Anika Suen Grover
11/04/1997 + 04/09/2015
Amada filha e amiga
Shine in the sky

“Brilhe no céu” repeti a frase olhando para a imensidão azul que nos cobria. O padre começou a cerimônia, suas palavras doces e cheias de sentimento mostravam o quanto estava sentindo a morte da afilhada. Todos que ali estavam tinham uma ligação com Anika, qualquer que seja. Morar em cidade pequena era isso; todos estarem ligados por um fio invisível de algum modo.
Ver o caixão descer pelo enorme buraco, era tornar tudo real, era hora do adeus. De uma por uma as pessoas iam jogando uma rosa branca por cima do caixão. Aproximei-me quando chegou minha vez.
— Descanse em paz, amiga. – Disse beijando a rosa e jogando-a.
O resto passou de forma rápida. A terra sendo jogada, as pessoas se afastando para ir embora, tudo ficando calmo, como se nada tivesse ocorrido ali.
— Vamos, . – Amélia pousou a mão sobre meu ombro quando não me mexi. Meu olhar preso aquelas palavras na lápide de Anika.
— Daqui a pouco. – Não a olhei. Senti ela se afastar e então estava sozinha.
Um vento seco soprava, fazendo alguns fios de cabelo saírem do lugar, não me importei em arrumá-los. Sentei contra a terra recém colocada, sem me importar em sujar a calça que vestia. Passei os dedos contra as letras gravadas naquele pedaço de pedra e senti o peso de cada uma sob minha pele.
— Eu vou descobrir quem fez isso com você. – Minhas palavras carregadas pelo choro que eu lutava em segurar. – E ele vai pagar, eu juro que vai.
Um pingo de água me fez olhar para o céu, antes tão iluminado pelo sol, agora carregado com pesadas nuvens.
Entendi como um sinal. Um sinal de aprovação, de encorajamento. Agora mais do que tudo eu iria fazer justiça por Anika.

***

Os dias seguintes foram altamente regados por melancolia. Não conseguia fazer nada, não tinha ânimo. Amélia parecia estar na mesma situação. Falávamos por mensagem grande parte do dia.

Amélia: não aguento mais ficar em casa
: tbm não. Quer vim para cá?
Amélia: opa, levo a pipoca o/
: hahah, okay. Cuido das bebidas
Amélia: álcool pfv! Eu preciso de álcool
: vc sabe que isso vai ser um pouco impossível. Ande. Venha logo
Amélia: ok, ok. Estou indo mandona u.u<

Senti-me um pouco melhor, até feliz, arriscava dizer. Levantei-me da cama, indo em direção ao banheiro, precisava de um banho. No caminho pisei em algo no chão, abaixa-me para ver o que era e senti um aperto no peito.
Era o pacote de chiclete de Anika. O que eu havia encontrado perto da entrada da mata. Meus olhos arderam e pude sentir o fraco cheiro, que fluía por entre o plástico fechado, de tutti-frutti. Deixei aquela fragrância me envolver, fazendo-me lembrar de algo que antes passará despercebido por mim.
Abri os olhos no mesmo segundo, eu precisava contar isso para Amélia.
Ela não demorou a chegar, elétrica demais. Estava tentando mascarar seus sentimentos.
— Trouxe pipoca doce. Vamos ganhar alguns quilinhos hoje. – Tirou suas sapatilhas azuis, que combinavam perfeitamente com sua saia da mesma cor e uma regata branca.
Nas mãos segurava uma sacola repleta de pipocas. Pendurou sua bolsa no cabide e seguimos até a cozinha.
— Oba. – Bati palmas como uma foca, fingindo contentamento.
— Você está legal? Parece um pouco dispersa. – Amélia era bem perceptível quando queria.
Colocou 2min no micro-ondas e virou-se para me encarar esperando que eu começasse a falar.
— Me lembrei de algo importante. – Não sabia o motivo, mas estava nervosa.
— Sobre aquela noite? – Amélia parecia alerta agora. Seus olhos demonstravam total preocupação.
Umedeci os lábios – Sim.
O sinal sonoro de que a pipoca estava pronta quebrou a pequena tensão que se instalou na cozinha.
— Está esperando o que para contar? Vamos , fala!
— Calma. Vou contar – Peguei um bloco de notas e lápis que ficavam próximo a geladeira, a fim de anotar recados e avisos importantes.
Os olhos verdes e curiosos de Amélia seguiam-me com avidez. Puxei uma cadeira, sentando-me, e ela fez o mesmo ficando ao meu lado.
— Precisamos fazer uma lista. – Afirmei batucando o lápis contra a folha em branco do bloco.
— De quê?
— De suspeitos.
Sua expressão congelou, parecia cética ao que eu havia acabado de falar.
— A polícia já está investigando. Não precisamos e nem podemos nos meter nisso. – Seu nervosismo era palpável.
Brian Cooper era o principal suspeito, as evidências eram bem claras, ele foi a última pessoa a estar com Anika, e minutos depois ela apareceu morta. Mas de alguma forma as investigações continuavam, o que dizia que seu álibi havia sido convincente. Agora se fora verdadeiro era outra história.
— Sim, eu sei. Mas Anika era nossa amiga, não me conformo com isso. Quero ajudar de alguma maneira. E me lembrei de algo que não coloquei no meu depoimento, por motivos óbvios. – Escrevi “SUSPEITOS” com letra maiúscula no topo da folha. Enumerei de 1 a 3.
— Ok, não vou discutir isso com você. Mas agora, pode me contar o que lembrou?
— Quando entrei na cozinha de volta, depois de ter ido procurar Anika do lado de fora, mais alguém entrou logo atrás de mim. Mas na hora nem dei importância, já que era apenas... – Engoli em seco não conseguindo continuar.
— Apenas quem? – Amélia sacudiu meu braço para que eu continuasse.
— Apenas o Dylan.
Falar isso em voz alta fez tudo congelar. O olhar de Amélia sobre mim, minha respiração, o tempo, até o ar havia parado de soprar.
— Não falou com ele?
Suspirei sentindo o peso de suas perguntas.
— Eu estava nervosa, na hora nem me atentei a fazer nada, tudo que eu queria era encontrar Anika, ninguém além dela. – Nunca me senti tão culpada quanto agora.
— Você não está achando que ele...
Nada disse. Apenas escrevi o nome dele ao lado do número 2, o número 1 pertencia a Brian.
— Isso está muito louco. – Pousou a cabeça sobre as mãos em forma pensativa. Depois a levantou me encarando. – Quem é o terceiro suspeito?
Respirei fundo, sentindo o estômago pesar e sabendo que depois que eu falasse daria início a um furacão.
— Sage.

Capítulo 03 | Pistas


Uma risada alta tomou conta do lugar silencioso de minutos atrás.
Amélia chegou a lagrimar de tanto que ria. Esperei seu “ataque de riso” passar, para então falar:
— Qual a graça?
— Você, oras. – Ela limpava o canto dos olhos recuperando-se – Sage suspeito. Está ficando louca, é? Daqui a pouco me põe nessa lista também.
— Lógico que nunca te colocaria. – A fitei para que visse isso em meus olhos. – Mas pense comigo, Sage sumiu no momento que Anika também sumiu. Meio suspeito, não acha?
Lembro que fui atrás de Amélia para que ela me ajudasse a procurar Anika, ela havia reclamado que Sage estava demorando muito no banheiro. Na hora aquilo nem teve importância para mim, mas agora, depois de pensar em tudo com clareza, posso apostar que ele não estava naquele banheiro.
— Ele foi ao banheiro! Isso o torna culpado? – Ela esbravejou abrindo os abraços. Estava brava, não precisava lhe conhecer a fundo para saber disso.
— Não, Amélia, claro que não. – Expliquei tentando manter o nível de voz moderado. Não queria que minha mãe nos ouvisse. – Não estou dizendo que ele é culpado, apenas suspeito por seu sumiço repentino. Você mesma afirmou que ele estava demorando muito para sair de lá.
Então sua expressão mudou um pouco, foi de brava para complacente. Tinha chego em um ponto importante.
— Sim, ele estava demorando mesmo, mas isso não quer dizer nada. – Sua voz firme mostrava o quanto confiava nele. Mas notei um resquício de dúvida no fim.
— Não, não quer. Só estou tentando juntar as peças, eliminar suspeitos. Entende? Sei que Sage é inocente, mas só quero entender o que houve para ele demorar tanto.
Amélia respirou fundo coçando o alto da cabeça, depois me olhou como se estivesse escondendo algo.
— O que foi? Lembrou de algo? – Indaguei curiosa.
— Sim. – Ela cruzou as mãos sobre a mesa. – Depois que voltei para festa, quando você decidiu se embrenhar por aquela mata, fui até o banheiro. Não havia ninguém lá, pensei que Sage já tivesse saído. Então o vi descer as escadas, perguntei onde estava e ele respondeu que havia ido ao banheiro.
Seus olhos não me fitaram, estavam presos à mesa.
— Mas eu podia jurar que ele tinha ido na direção do banheiro que fica no térreo e não o do primeiro andar. Isso não quer dizer nada, né? – Disse por fim me fitando.
Por um segundo não soube o que responder, eram evidências contra demais. Mas era Sage, o garoto que conhecíamos há anos, o namorado da minha melhor amiga, nosso amigo também.
— Claro que não, você estava um pouco alta. Pode ter ouvido errado. – Consegui dizer, só esperei não ter demorado tempo demais. Ela não precisava saber que minha desconfiança tinha duplicado depois do que ela havia dito.
— Certo. – Ajeitou os cabelos atrás das orelhas e virou-se totalmente para mim. – O que faremos agora? Falo com o Sage?
— Não. – Neguei rapidamente. – Precisamos ir com calma, sinto que essa lista – apontei para o bloco – só irá aumentar. Precisamos investigar. — Ficou louca ? Se a polícia descobre podem suspeitar da gente. Ai meu Deus, não quero ser presa. – Esses dramas sem sentidos de Amélia me irritavam. Sempre que ficava acuada ou amedrontada fazia esse tipo de cena. Anika odiava levá-la quando saíamos da escola em horário de aula. Por muitas vezes quase éramos pegas, porque Amélia inventava de ser uma boa moça, justo na hora da fuga.
— Calma. – Segurei seu braço de maneira forte. Precisava fazer ela calar a boca. – É só manter a boca calada e ninguém saberá que estamos investigando, ou eu posso fazer isso sozinha, sem problema algum.
Talvez seria até melhor, já prévia o quanto Amélia seria mais um empecilho do que ajuda.
Ela puxou seu braço, passando a mão sobre o vermelhão que meu aperto causou. A pedi desculpa com o olhar.
— Você e Anika sempre acharam que sou uma bebê chorona, né? Mas fique sabendo que não sou! – Sua postura era firme, em nada parecia com a garota de olhos arregalados e voz estridente de segundos atrás. – Sou apenas precavida, você se joga de cabeça nas coisas, não analisa tudo antes, assim como era Anika. Já pensou nas consequências desse seu ato de “justiça com as próprias mãos”?
Agora era a vez da Amélia Responsável, por pouco não revirei os olhos.
— Estava esperando que você me iluminasse nessa parte – Forcei o sorriso propositalmente.
Soltou o ar deixando a pose decidida murchar um pouco – Estou falando sério .
— Sim, eu sei, vou tomar cuidado, prometo. Sei que as consequências são muitas e severas, mas não vou conseguir ficar parada. – Meu olhar era pesaroso. Não conseguia acreditar que ela não sentia essa mesma vontade que emanava do meu peito. Essa vontade de fazer justiça. Ainda mais quando a polícia estava dando passos de tartaruga nesse caso.
— Está comigo nessa ou não?
Ela olhou para o teto, franzindo os lábios e fazendo assim com que duas covinhas aparecessem em suas bochechas. Estava ponderando os prós e contra.
— Tudo bem, mas por favor, me diz que não iremos fazer nada perigoso. – Pediu juntando minhas mãos as suas.
— Prometo. – Levantei a mão direita em sinal de juramento.
— Tudo bem então. – Ela levantou-se indo em direção ao micro-ondas para pegar a pipoca. – E por onde começamos?
— Pelo quarto de Anika.

***


No dia seguinte lá estávamos, paradas em frente à porta da casa de Anika. Tínhamos uma desculpa pronta para seus pais: Queríamos pegar coisas que havíamos esquecido com Anika, e também matar um pouco da saudade que sentíamos por ela.
Não sabíamos se seus pais cairiam nessa, o jeito era arriscar e rezar para que sim.
Amélia tocou a campainha, estava nervosa, podia sentir isso pelo modo inquieto com que mexia no zíper de sua bolsa.
— Deixa que falo. – Informei tocando de leve em seu braço.
Ela apenas assentiu sorrindo fraco.
Não demorou muito para que uma mulher não tão velha e de cabelos loiros abrisse a porta, era mãe de Anika, dona Elizabeth, carinhosamente chamada por nós de tia Liza.
— Oi tia. – Eu e Amélia dissemos juntas. Ela esboçou um sorriso carinhoso e rapidamente nos abraçou forte.
Ficamos assim por algum tempo, nenhuma disse nada, não precisava dizer, as palavras estavam subentendidas naquele abraço.
— Entrem, entrem. – Liza chamou abrindo mais a porta para nos dar passagem.
A casa de Anika era grande, não como a de Amélia, mas era linda e aconchegante. Os móveis todos de madeira escura davam um ar envelhecido a casa. Anika costumava dizer que quando todos morressem sua casa seria tipo aqueles museus de casas antigas, mais vintage que aquilo não existia.
Nos sentamos no sofá em frente a lareira e aproveitamos um pouco do calor que emanava dela. O dia pretendia esfriar bastante até o fim da tarde.
— Querem chocolate quente? Biscoitos? Preparo rapidinho – Sempre tão prestativa e preocupada com todos, eu a admirava.
Eu e Amélia nos entreolhamos rápido, e tomei a decisão.
— Sim, sim. – Fiquei de pé e Amélia me acompanhou. — Enquanto a senhora prepara o chocolate será que podemos ir até o quarto de Anika pegar algumas coisas que deixamos com ela?
Eu tinha medo que ela recusasse, medo que achasse que era invasão demais, mesmo para amigas de infância. Se recusasse não iria me opor.
Ela nos fitou parecendo pensar por cerca de segundos e rapidamente respondeu:
— Claro. – Sorriu nervosa, pude notar seus olhos brilhando por causa das lágrimas que insistiam em chegar. — Ainda não tive coragem de ir lá, talvez hoje seja o momento. Mais tarde talvez. Mas podem ir, vou preparar o chocolate quente.
Então desapareceu por entre a porta da cozinha, que ficava de frente para a sala.
Era difícil para ela, eu entendia que sim, talvez de certa forma a ajudamos a atravessar esse obstáculo que uma hora ou outra ela teria que enfrentar.
— Vamos? – Perguntei a Amélia que fitava de forma compenetrada o porta-retratos da mesinha ao lado do sofá.
Era de Anika e sua família, sua mãe, seu pai Carl e sua irmã mais nova Anne, no último natal. Estavam todos sorridentes, deixando transparecer a alegria que sentiam.
— Sim.
Tínhamos que subir uma escada que dobrava a esquerda para chegar ao primeiro andar, onde ficava os quartos. O de Anika era o do canto direito. Pendurada a porta podia ser ler: Mantenham distância, sou perigosa!
Sorri ao lembrar de como ela tinha se inspirado em um livro que havia lido no verão para escrever a frase, quando estávamos no ensino fundamental, desde então jamais tinha tirado.
— Não sei se consigo, . – Amélia parecia bem abalada, e nem tínhamos chego perto do quarto ainda.
Segurei firme em sua mão, precisávamos fazer isso juntas, não por nós, mas por Anika.
— Consegue sim, estarei do seu lado. – Então seguimos.
Virei a maçaneta e empurrei a porta. O quarto estava do jeito que Anika sempre o deixava: bagunçado.
Roupas espalhadas pelo chão, a cama em uma desordem só, papeis, livros, revistas todos jogados sobre sua mesa de estudo. Sua mãe realmente não havia entrado ali depois de sua morte.
— Minha nossa, é como se a qualquer hora ela fosse chegar e nos xingar por estarmos invadindo sua privacidade sem permissão. – Amélia tinha razão. Nossa querida amiga odiava quando sua privacidade era invadida, mesmo por nós. Ela dizia que havia limites, e que eles não deviam ser ultrapassados, nunca, por ninguém.
Me pergunto agora se tivesse ultrapassado só um pouco esse limite, ela não estaria viva hoje. Afasto o pensamento da cabeça indo em direção sua escrivaninha.
— Vou começar por aqui, que tal olhar no guarda-roupa? – Sugeri a Amélia.
— Ok.
No dia do enterro quando entramos ali para pegar peças de suas roupas para usar, eu não tinha reparado em mais nada, meu único objetivo era entrar, pegar uma peça e sair. Sem nem ao mesmo me dar o luxo de captar mais nada ao meu redor. A dor estava pulsando, não que agora não doa, mas conseguia administrá-la melhor.
O computador e celular de Anika foram confiscados pela polícia, eles eram instrumentos importantes na investigação. Se houvesse qualquer indício que ela matinha contato com o assassino era por lá que iriam descobrir. Mas mesmo assim quis vir aqui, quem sabe não sobrou um fio solto? Algo que passou despercebido pelos olhos aguçados da polícia? Se houvesse, iríamos descobrir hoje.
Vinte minutos haviam passado e nada, não tínhamos achado nada que pudesse servir para algo, nenhuma pista se quer. Nossa falha me frustrou.
— Acho que aqui não vamos encontrar nada, Am. – Amélia afirmou sentando-se na beirada da cama. Parecia tão frustrada quanto eu.
Estava encostada contra a janela, olhava o quarto como um todo, tentando encontrar algo que só seria visto de longe, com o quadro completo.
E eis então que encontrei.
— O lixo. – Exclamei indo em direção a latinha verde que fica por baixo da mesa do computador.
Ele ainda continuava lá, intacto.
— O que podemos encontrar aí que pode ser relevante? – Amélia fez cara de nojo.
— É o que vamos descobrir. – Virei a pequena lata de lixo no chão.
Uma caneta, com certeza sem tinta, embrulhos de biscoitos, de chicletes, e papeis, era todo o seu conteúdo.
— Então? Abri os papeis que estavam amassados, eram no total de três. O primeiro era uma folha de papel sulfite, tinha uma pequena frase:

“O que eu era antes de você? O que me tornei depois? A primeira resposta eu tenho, mas a segunda só você possui”

— Anika estava apaixonada? – Amélia falou novamente, dessa vez, interessada.
Reli novamente a frase, dessa vez silenciosamente. Poderia ser qualquer coisa, uma frase de uma música, de um livro, um poema. Mas nada disso falava sobre paixão, amor.
— Não sei. Algum trabalho de Literatura? – Perguntei dobrando a folha. Aquilo com toda certeza merecia uma melhor atenção.
— Não que eu me lembre. Estávamos no último ano, e esse lixo não deve estar aí há muito tempo, não é?
— Não temos como saber. De qualquer maneira, isso é importante. Guarde. – Lhe entreguei a folha.
— Ok.
Fui para o próximo, não era tão grande, tinha o tamanho de um retângulo e era uma folha de caderno. Dentro havia um recado:

“Precisamos conversar, por favor, Anika! ”


— Está assinado?
Olhei frente e verso e nada encontrei.
— Não. – Fiquei fitando aquelas palavras, tentando decifrar de quem era aquela caligrafia, porque de uma coisa eu podia ter certeza, de Anika não era. – Reconhece?
Passei o papel para Amélia, ela o pegou relendo o recado, depois passou os dedos por cima, como para ajudar a lembrar, mas pela sua expressão frustrada deduzi que não.
— Não tenho a mínima ideia de quem seja. Mas é mais uma pista. – Ela disse colocando ele junto ao outro. – Agora vamos ao último.
Peguei o pedaço de papel, amassado assim como os outros dois, em seu interior havia um grande sinal de interrogação. Seu ponto não era um círculo, mas sim um coração.
— O que entende por isso? – Mostrei a Amélia.
— Não acredito que aquela piranha estava apaixonada e não nos contou.
— Você acha isso mesmo? – Eu ainda estava cética com esse fato de paixão.
— Está na cara , por favor, é só ligar 1 + 1. – Ela pegou o primeiro papel, que continha a frase. – Essas palavras são de alguém que mudou com a chegada de outra pessoa, geralmente isso acontece quando começamos a gostar de alguém. Já esse – Pegou o bilhete – é o bilhete da pessoa amada, mas pela súplica está claro que brigaram. E tudo isso bem de baixo dos nossos narizes.
Juntei todo o lixo e o joguei novamente na lixeira. Levantei-me ainda pensando sobre tudo que Amélia tinha dito, eram coisas óbvias, mas difíceis de entender, pelo menos para mim.
— E se não for nada disso? Eu creio que Anika teria nos dito se estivesse apaixonada. – Pelo menos eu achava que sim. Ela era tão cheia de limites, de esquisitices.
— Ou talvez quisesse manter tudo em segredo, como ela fez. Anika não nos considerava como achávamos. – Podia sentir pelo tom de sua voz que estava magoada, e bem no fundo eu também me sentia assim.
Amigas não dividem tudo? Não contam todos os seus segredos? Seus desejos? Amizade é confiar nas pessoas que você escolheu para ter ao seu lado. Se Anika nos escolheu porque nos excluir assim? E logo de algo tão importante?
— Pode ser o Brian. – Nem eu acreditava nisso.
— Com toda certeza – disse com ironia — você e eu sabemos que ali podia existir de tudo, menos amor.
Amélia saiu, permaneci mais um pouco, tentando encontrar mais alguma coisa, mas tudo já tinha sido visto e revisto. Respirei fundo e sai também. Eu a perdoava, eu a perdoei antes mesmo de saber disso. Era Anika acima de tudo, ela tinha seus segredos e tinha todo o direito de mantê-los. Da cozinha ouvi o tintilar de porcelana, encaminhei-me para lá.
, aqui seu chocolate quente. – Liza me passou uma caneca de porcelana branca. Encostei as mãos ao redor dela e deixei o calor do líquido escuro passar para elas.
— Obrigada.
Amélia e ela conversavam sobre algo, mas não prestei atenção. Tentava montar o quebra-cabeça, mas estava tudo tão difuso, ainda faltavam muitas peças. Onde Brian se encaixava nisso tudo? Desde o início do relacionamento dos dois, achamos aquilo bem estranho. Não por ele ser mais velho, mas por ser forçado demais, Anika odiava falar sobre ele ou até ser vista em sua companhia, do nada disse que estavam namorando e não havia passado nem uma semana que estavam saindo. Eu e Amélia tentamos argumentar, mas Anika mostrou-se irredutível, então paramos, deixamos de lado.
Agora era preciso decidir o próximo lugar que iríamos investigar, e eu já o tinha em mente: a casa de Amélia.

***


Era um ruído que não tinha fim. Como a estática de um rádio, que por mais que tentássemos arrumar, não ia embora. Depois o silêncio. A escuridão.
Então eu estava na mata de novo.
Corria sem saber para onde ir, havia alguém atrás de mim. Alguém que queria me matar.
Estava aterrorizada, a sensação de medo tomava conta do meu corpo, se infiltrava em minhas veias tornando tudo negro.
Não conseguia parar de correr, não conseguia olhar para trás. Meu objetivo era escapar e nada mais. Senti mãos agarrarem meu tornozelo e gritei indo ao chão.
— Te peguei. – Virei-me reconhecendo àquela voz.
— Anika? – Sussurrei. A voz era sua, mas a aparência era tão diferente. Seu rosto parecia envelhecido, sujo demais, ossos fora do lugar, pele demais, coisas se mexiam pelo seu cabelo, e sua mão tão pegajosa e ossuda.
Choraminguei tentando me livrar do seu aperto.
— Shii, hoje você será meu jantar. – Ela disse apertando mais forte meu tornozelo e puxando-me ao seu encontro.
Bem perto do seu rosto pude notar que no lugar de seus olhos existiam buracos negros sem fim.
Gritei ao acordar.
Liguei a luz do abajur e tentei regular a respiração que saia de forma esbaforida. Um pesadelo, fora apenas um pesadelo.
“Calma, repeti mentalmente tornando a deitar. Não desliguei a luz e permaneci de olhos abertos. A imagem de uma Anika zumbi ainda tomava conta dos meus pensamentos e toda vez que fechava os olhos era aterrorizada pelos buracos que tomavam conta de seus olhos.
Era normal ter pesadelos, certo? Passei por um evento traumático e pesadelos sempre são os primeiros sintomas. Mas porque sentia que não era isso? Que não era normal, e que nem fora um simples pesadelo?
Esfreguei o rosto com as mãos e fechei os olhos com força, ia esquecer isso e voltar a dormir. Era uma ordem!
Foi então que comecei a sentir um formigamento na ponta dos pés, que foi subindo lentamente, até eu abrir os olhos alarmada. Puxei o lençol e nada parecia diferente, o ruído de estática começou baixo e foi aumentando, até eu ter que tampar os ouvidos com as mãos.
Notei que o som vinha da janela, levantei indo em sua direção e estanquei no meio do caminho quando notei algo escrito no vidro, do lado contrário, mas fácil de ser decifrado mesmo do lado errado: Assassina.

Capítulo 04 | Descoberta


— Foi uma brincadeira de péssimo gosto. Acham que isso tem ligação com o homicídio? – Minha mãe falava com o delegado que investigava o caso de Anika.
Estava na cozinha comendo cereal e fingindo assistir TV. Não consegui esconder o acontecido da janela. Como? Se quem quer que estivesse passando na rua e olhasse para nossa casa conseguiria ler sem problemas aquela palavra tão acusatória?
Ela quase teve um ataque quando foi me acordar e encontrou aquilo ao abrir as cortinas. Rapidamente foi ligar para o Delegado Brown, queria explicações, mas quais ele daria? Só se fora ele mesmo que no meio da noite, escalou a parede de casa e escreveu aquilo em minha janela. Minha mãe é bem exagerada às vezes, como advogada acredita que todos são culpados, até se provar o contrário e não admite injustiça. Ela acha que estou sendo vítima de retaliação. Vai entender os motivos que a levaram a crer nisso.
Não acredito que o caso seja esse, quem poderia vir contra mim? Como se eu tivesse algo a ver com o assassinato de Anika. Eu apenas fui a primeira a encontrar seu corpo. Dra. Angelina, vulgo minha mãe, acreditava que foi o assassino, que ele/ela queria plantar pistas falsas, apontar falsos culpados. Uma conspiração sem fim. Sage amava minha mãe, os dois tinham uma mente bem insana e isso me causava arrepios.
— Tudo bem, estarei em casa às 15hs. Okay, bom dia. – Ela encerrou a chamada e logo se aproximou da cozinha.
— O delegado disse que irá mandar uma equipe para analisar a escrita no vidro. – Colocou café em uma xícara e sentou-se ao meu lado.
Coloquei uma colherada de cereal na boca e falei ao engolir:
— Conseguiu convencê-los de que aquilo é uma prova? Pode ter sido qualquer um, mãe.
Ela suspirou deixando a xícara sobre a mesa. Subia uma fumaça do café, avisando o quanto ele estava quente.
— Quem é que brinca desse jeito, ? Escreveram “assassina” na janela do seu quarto. Tiveram o trabalho de escalar até o primeiro andar e fazer isso, não creio que seja obra de qualquer um. – Ela parecia séria, decidida. Quem fez isso iria ser pego e não haveria misericórdia para ele. Dra. Angelina causava medo em quem quer que fosse. Tinha orgulho de minha mãe.
— Obrigada. – Sorri encostando a cabeça em seu ombro.
— Sempre estarei aqui para lhe defender. Sempre. – Beijou o topo da minha cabeça e pegou a xícara sorvendo vagarosamente seu café.
Terminei de comer e fui para pia lavar minha tigela.
— Vai para a casa do seu pai hoje? – Ela perguntou depositando a xícara ao meu lado na pia.
— Sim. – Meus pais eram separados há mais de cinco anos e desde então eu vivia para lá e para cá. De segunda a sexta com a minha mãe e de sexta à noite a domingo à tarde com meu pai.
— Não precisa ir se não quiser querida.
— Mãe, eu vou ficar bem, papai sabe me proteger também. – Para ela, ele era um avoado que não queria nada com nada, mas para mim, papai era apenas um artista que tinha a mente nas nuvens, mas os pés eram bem fixados ao chão, embora minha mãe nunca tenha notado isso.
— Tudo bem, só tome cuidado. – Ela foi para a sala e voltou com sua bolsa e pasta a mãos. Estava indo trabalhar. – Estou indo, às 15hs estarei em casa, tranque bem a porta.
Depositou um beijo carinhoso em minha testa e saiu pela porta da cozinha que dava na garagem.
Eu era boa em me esconder, mas tinha planos diferentes para hoje.

***

Para chegar até a casa de Amélia eu precisava de um carro ou qualquer outro meio de transporte. Bicicleta eu não tinha e nem sabia andar, carro muito menos. Então liguei para a última pessoa que eu queria, mas que seria a única a me ajudar de bom grado: Dylan.
Em 15 minutos ele estava em frente de casa buzinando. Peguei minha mochila e celular, e escrevi um aviso rápido a minha mãe de que tinha ido para casa de Amélia e de lá iria para casa de meu pai.
Ela teria um leve surto, mas nada que fosse lhe matar.
— Obrigada Dylan. – Agradeci ao entrar no carro.
— Sempre ao seu dispor. – Disse sorrindo e dando partida no carro.
Essa era minha chance, eu tinha que tentar descobrir o que Dylan estava fazendo do lado de fora naquela noite. Só esperava não levantar suspeitas.
— Se lembra de algo da festa? – Mantive a expressão neutra, fazendo a pergunta se tornar banal, sem segundas intenções.
— Não muito, porquê? – Ele não pareceu abalado ou preocupado. Ou ele estava falando a verdade, ou era um ótimo ator.
— Só queria saber se viu algo de diferente. Curiosidade apenas. – Achei melhor não fazer perguntas muito diretas, não podia levantar suspeita do que estava fazendo. Não com um dos suspeitos.
— Hm, okay. Só tome cuidado. – Sua frase ficou pairando no ar por alguns segundos até eu lembrar como se falava.
— Porquê? – De repente o carro se tornou tão pequeno. Apertado para nós dois.
Ele deu de ombros soltando um sorriso ladino. – Ah, sei lá, tem um assassino à solta né?! Não deve andar sozinha.
Mas que papo era esse? Ele havia mudado de assunto tão repentinamente que custei acreditar no que ele estava falando.
— Mas não estou andando sozinha, estou com você. – Sorri tentando esconder o nervosismo. Queria abrir as janelas, mas por causa do aquecedor não podia. Minha nuca começou a suar, assim com as palmas de minhas mãos.
— Você tem razão. Eu te protejo. – E fitou-me intensamente por alguns segundos antes de voltar a atenção para a pista.
— Você me protege. – Repeti suas palavras tentando encontrar onde estava o erro. Dei-me conta que era na ironia.
Tentei ficar calma, tentei manter os pensamentos ruins longe, de que a qualquer momento Dylan pegaria uma faca no porta-luvas e abriria minha garganta, assim como fizeram com Anika. Eu estava ficando paranoica, me perdendo em intuições bobas.
O olhei de maneira discreta, tentando observar seu rosto, mesmo de perfil. Seus cabelos escuros molhados, um pouco longos, seu maxilar grande, as pintinhas que lhe adornavam as bochechas, o nariz levemente pequeno. Eu conhecia Dylan, eu sabia quem ele era, sempre soube, ele não era um assassino.
— Seu destino. – Ele quebrou o silêncio parando o carro em frente à casa de Amélia. Era começo de tarde então a luminosidade mostrava o quão perigoso e bonito eram as paredes de vidro que cobriam praticamente toda residência.
— Mais uma vez, obrigada. – Permiti-me lhe dar um beijo rápido na bochecha, mas Dylan virou o rosto e acabei lhe dando um selinho.
— Dylan! – Protestei lhe dando um tapa de leve no braço. Aí estava de volta o velho Dylan Tori, sorri por isso.
Ele soltou uma gargalhada. – Sempre em alerta. Se quiser que eu te pegue.
Já fora do carro acenei para ele. – Não, obrigada. Tchau.
— Tchau, pequena .
Observei o carro se afastar e fui em direção a porta. Amélia já me esperava, na mão tinha uma maçã já pela metade.
— Esse daí não desiste nunca.
— O que posso fazer se sou irresistível?! – Ri dando de ombros.
Amélia apenas riu para mim abrindo a porta.
Mi casa, su casa.
Gracias.
— Não acho que teremos sucesso aqui, já olhei tudo. – Sentou-se no enorme sofá na sala, colocando os pés na mesinha de centro.
— Sim, imaginei isso, mas agora somos duas, lembre-se do que achamos no quarto de Anika, já revistado pela polícia. – A lembrei.
— Você tem razão. – Terminou sua maçã e pôs-se de pé. – E como faremos?
— Juntas dessa vez. Vamos começar pelo primeiro andar. – Indiquei com o dedo o andar superior.
— Ok.
Provavelmente passaríamos a tarde toda ali, sua casa era muito grande, com diversos cômodos e não sabíamos quais deles tinham tido acesso naquela noite. No começo senti vontade de desistir, estava em um quarto de visitas, o segundo já, e tudo parecia tão impecável pela limpeza feita pela faxineira que se algum deles tivesse alguma pista, essa já estaria longe uma hora dessa.
Mas no fim foi Amélia quem encontrou algo. Ela me chamou quando estávamos no térreo, eu fazia a busca na sala e ela na cozinha.
— O que foi?
— O faqueiro. – Ela abriu uma maleta preta com um tecido de veludo, dentro havia várias facas de todos os tamanhos. – Está faltando a maior. – Indicou o último lugar vazio.
Senti meu corpo todo enrijecer, era a faca que o assassino tinha usado, só podia ser.
— Como é que a polícia não encontrou isso? – Perguntei observando a variedade de facas contidas ali.
— Esse faqueiro é bem antigo, meu pai tem um ciúme enorme dele, você sabe disso. Lembro que ele omitiu sua existência dos olhos da busca.
— Tudo bem, isso não é importante agora. – Estava concentrada naquele desfalque. – A faca só pode estar de posse do assassino, ele já deve até ter destruído ela.
— É provável. Estou começando a ficar assustada. Usaram uma faca da minha casa para matar minha melhor amiga, isso é assustador demais. – Amélia começou a mexer-se sem parar, deixando transparecer seu nervosismo desenfreado.
— Ei, calma, de agora em diante as coisas só tendem a piorar, lembre-se de evitar chiliques. – Falei seria tirando o faqueiro de sua mão e o fechando para em seguida em guardar.
— Como consegue ser tão fria? É de Anika que estamos falando, já se esqueceu de que ela costumava ser nossa amiga? – Suas palavras eram acusatórias e me causaram uma raiva crescente.
— E você? Lembra-se de como a encontrei? De como a encontrou? Acha que devemos sentar e chorar pelo resto de nossas vidas? Anika está morta e nada que fizermos pode trazê-la de volta, mas há meios de buscarmos justiça por sua morte e é exatamente isso que estou tentando fazer, mas seria de grande ajuda se você não estragasse tudo no meio do caminho. – Desabafei fechando com força a porta do armário.
Não me virei. Permaneci de costas para ela, respirando de maneira rápida, por ter falado tudo de uma só vez sem deixar uma única lufada de ar sair.
Não sabia qual era sua expressão e nem se ainda continuava às minhas costas. Imagens de uma Amélia irritada, com os olhos em fúria com uma faca na mão me atacando nas costas apareciam sem meu consentimento em minha mente. Virei-me a fim de afastar tais pensamentos sem cabimentos. Eu precisava parar de imaginar meus amigos tentando me matar, isso já estava ficando paranoico.
Amélia me fitava de forma surpresa e até um pouco espantada. Seus braços estavam cruzados próximos ao peito, em uma postura defensiva.
— Desculpe – Falei depois de certos minutos em um enorme silêncio. Passei as mãos no rosto, com o intuito de aliviar a tensão. – Só estou nervosa e descontei em você.
Ela mordeu o canto da bochecha e soltou um longo suspiro depois, apoiando as mãos no balcão que estava encostada.
— Estou com medo de você pirar com essa história toda. – Declarou me deixando levemente surpresa. Achei que ela também pediria desculpas e que voltaríamos ao ponto inicial, mas pelo jeito as coisas não seriam assim.
— Pirar? Do que está falando. – Agora foi a minha vez de cruzar os braços e me manter na defensiva.
— Você sabe, seu... Problema. – Estava sem jeito, notei isso pela forma como seus olhos vagueavam pelo cômodo, mas nunca paravam para fitar os meus. – Olha, só não quero que tudo isso faça você entrar em uma crise. Só estou preocupada.
— Obrigada, Amélia, mas minha saúde mental vai muito bem. Acho melhor eu ir. – Segui em direção à sala, sentindo a raiva e a humilhação se infiltrar em minhas veias. Pelo jeito minha condição nunca seria esquecida, mesmo que eu não tivesse um “surto” há anos. Sempre seria a doente mental com problemas de dupla personalidade.
, por favor. – Ela vinha atrás de mim tentando se justificar, mas agora não adiantava mais, a merda já estava feita.
— Tchau. – Abri a porta e quase trombei com um ser de cabelos loiros, quase brancos intitulado Sage, namorado de Amélia.
— Olá, . Que rápida você. – Ele disse rindo. Revirei os olhos engolindo a resposta atrevida que tinha na ponta da língua.
— Amor. – Amélia foi ao seu encontro lhe dando um selinho rápido e voltando sua atenção para mim que tentava me esgueirar por trás do corpo robusto de Sage que ainda se encontrava em frente à saída. – Não vou deixar você sair assim, .
Senti sua mão puxando meu braço de leve e logo a porta foi fechada.
— O que foi gente? – O garoto de olhos cor de âmbar perguntou parecendo levemente confuso.
— Uma pequena discussão amor, mas que logo será resolvida. Me dá dois minutos? Já voltamos. – Ela o beijou novamente e rumou até a cozinha me puxando atrás de si.
Apenas me deixei ser guiada, a verdade era que eu não queria ficar brigada com Amélia, não nessa situação pela qual estávamos passando. Um simples pedido de desculpas já seria o suficiente para que eu passasse uma borracha em todas as palavras que ela proferiu e que me feriram de uma forma inimaginável.
— Não podemos continuar assim, não somos mais crianças, . – A voz de Amélia era forte e decidida. Me senti realmente uma criança ouvindo bronca da mãe.
Odiava quando ela se comportava como uma adulta que não era.
— Okay, tanto faz agora. Estou cansada, só quero ir embora. – Em parte era realmente verdade. Passamos a tarde todo revirando sua enorme casa e meu corpo pedia por um banho quente, enquanto minha cabeça só queria um travesseiro macio.
Ela suspirou abrindo os braços.
— Abraço de reconciliação? – Suas covinhas apareceram quando ela sorriu timidamente.
E então, apagando tudo com uma borracha invisível, lhe abracei.
E tudo pareceu certo novamente, como sempre foi.

***


— Oi filha – Ouço meu pai dizer assim que abro a porta. Depois de muito dizer que não precisava, Amélia conseguiu me convencer a deixar ela e Sage me trazerem.
No fim não foi tão estranho quanto achei que seria.
— Hey. – Ele estava sentado em sua poltrona marrom, próxima a janela com vista para o enorme lago que ficava no jardim, lendo um livro. Na mesinha a sua frente uma xícara soltava uma fumaça fraca. Chá, sua bebida preferida.
— Melhor ligar para sua mãe, ela já me ligou umas três vezes. – Disse sem tirar os olhos de seu livro.
Revirei os olhos bufando de leve, a superproteção de minha mãe às vezes me dava nos nervos.
— Sabe que ela só quer seu bem, né querida? Assim como eu. – Dessa vez ele me olhou, fechando o livro com um marcador de página. – Ligue para ela para podermos preparar nosso jantar.
— Tudo bem. – Falei sorrindo. Meu pai e eu sempre preparamos nosso jantar juntos, é uma espécie de tradição, e amo essa rotina.
E então minha noite passa como todas as outras, depois de ligar para minha mãe, ouvir seu blábláblá, tomei um banho rápido e fui ajudar meu pai. Fizemos um delicioso nhoque com molho de ervas. Por fim decidimos assistir um filme qualquer na TV. Mais tarde, deitada no escuro, não conseguia tirar os olhos da janela de meu quarto enquanto tentava pegar no sono.
A noite anterior passava como um filme em minha mente, todos os detalhes me fazendo encolher na cama. Às vezes podia jurar ver algo escrito na janela, mas depois tudo sumia, como uma obra do meu consciente querendo me amedrontar ainda mais.
Suspirei esfregando a palma das mãos no lençol, estavam molhadas, meu nervosismo era maior do que pensava.
Levantei decidida a pôr um fim nisso, aproximei-me da janela, pronta para fechar as cortinas, mas meu reflexo chamou minha atenção. Meus cabelos lisos caído nos ombros, meus olhos escurecidos por causa da pouca iluminação e um sorriso indecifrável no canto dos lábios.
— A noite está linda, talvez devêssemos dar uma caminhada. – Minha voz tomou um tom diferente do habitual, me fazendo sentir presa, incapaz de fazer algo para mudar isso.
Quando dei por mim, já estava indo em direção a porta do quarto, meus pés descalços reclamando do chão frio, mas não fiz menção de voltar ao quarto e calçar algo, apenas continuei seguindo até a porta dos fundos, que me levaria até o quintal da casa, onde um enorme lago circundava a propriedade.
Lá fora o frio era muito maior e agressivo, um silvo do vento me fez olhar ao redor, meus cabelos não paravam de dançar ao redor de meu rosto. Estava escuro e deserto, mas o medo não fazia parte de mim naquele momento, só conseguia sentir excitação e uma vontade enorme de nadar pelada no lago.
— Vai ser divertido. – Me ouço dizer tirando minha blusa e minha calça de moletom em seguida. Apenas de calcinha sinto meu corpo inteiro se arrepiar, meu subconsciente grita dizendo que isso era muito errado, que nadar em um rio onde a temperatura pode estar abaixo de 5º graus e nua não pode acabar bem.
Mas meu corpo não liga para esses alertas, tudo que meus músculos querem é nadar. Sentir a água batendo contra minha pele, fazendo-me sentir viva.
Uma risada ecoa pela noite e só então percebo que ela é minha. E isso não me amedronta, eu quero nadar, eu preciso nadar.
Chegando à margem do lago, retirei a última peça de roupa e mergulhei os pés na água congelante. Nada me fez parar, cada vez entrei mais, até estar totalmente submersa pelas águas negras. Meus pulmões ardiam por ar, assim como cada parte do meu corpo gritava por calor. Comecei a dar braçadas me afastando da margem, sem nunca voltar a superfície para tomar fôlego. Naquela noite queria ser um peixe, ou então uma sereia, e nenhum dos dois precisava tomar ar na superfície, logo eu não precisava também.
Não sei quanto tempo fiquei nadando, não sei como saí dali, não sei como estava viva, mas quando abri os olhos tudo que consegui sentir foram os braços de meu pai me abraçando forte, enquanto falava desesperado:
— Filha, o que você fez?!
Não conseguia responder, minha mandíbula não parava de tremer e sentia minha língua pesada demais para conseguir falar qualquer coisa. Ele me levantou, segurando meu corpo frágil e gelado junto ao seu, indo em direção a casa. Olhando para o rio, tudo que consegui pensar foi: “Como vim parar aqui? ”

Continua...



Nota da autora: (02/01/2016) Sem nota.




comments powered by Disqus




Qualquer erro nessa atualização são apenas meus, portanto para avisos e reclamações somente no aqui.



TODOS OS DIREITOS RESERVADOS AO SITE FANFIC OBSESSION.