Shadow, my shadow
Sorriu-se a sombra e as outras docemente;
E disse da alegria radiante,
O seu primeiro amor como quem sente.
(ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia.)
Prólogo - Qual o nome da minha luz?
— Por hoje é só. Sugiro que dediquem uma atenção especial ao capítulo sobre Prática Jurídica e nos vemos semana que vem. — o doutor Atkinson encerrou a aula, recolhendo os livros e procurando por mim e Wonwoo entre os alunos. — Senhor Kim, senhor Jeon, um minuto, por favor.
Descemos os degraus do auditório principal, provavelmente o local em que passávamos a maior parte do tempo. Aluno de Direito no último ano, a faculdade me tomava quase o dia inteiro e aquilo me impedia de arrumar um emprego em horários “normais” enquanto não terminava o curso. E eu tinha que trabalhar, porque o pouco dinheiro que minha família conseguia me mandar de Anyang mal dava para os livros e para manter meu carrinho modesto. Sem poder advogar ainda, só me restava pegar alguns trabalhos aqui e ali como manobrista, monitor de aulas particulares e até segurança de meio período. Wonwoo, meu melhor amigo de infância, tinha uma situação financeira mais confortável que a minha, mas felizmente essa diferença nunca se interpôs na nossa amizade e realizamos nosso sonho de criança: estudar na mesma universidade, a estadunidense Saint Peter, para a qual, graças a muito esforço, eu tinha uma bolsa integral.
Minha mãe não lidou muito bem quando eu, na época um moleque de 18 anos, resolvi aceitar a proposta de intercâmbio da Saint Peter e trocar a doçura do meu lar e do kyungdan dela por um dormitório e uma vaga para preencher cota. Uma aflição perfeitamente justificável, afinal de contas, apesar do meu histórico escolar impecável e das minhas habilidades extracurriculares com esportes, costura e cozinha, eu estava me mandando para o outro lado do mundo apenas com o básico do idioma e meu melhor amigo (cuja proficiência na língua era tão mediana quanto a minha). E independente da quantidade de barba na sua cara, isso é igual em todo o mundo: coração de mãe é um pouco como as ilhas Caraíbas. É um lugar de tumultos naturais, tempestades, ventos, e foi preciso mais de uma semana para acalmá-la e para explicar que, como a universidade oferecia um intensivo de dois anos de inglês, eu não ia parar nas ruas dos EUA como um indigente.
Alguns anos se passaram, meu inglês avançou (apesar do meu sotaque carregado e da minha língua presa) e eu podia dizer que estávamos indo bem. Não era fácil estudar de dia e trabalhar à noite, não ter tempo para um sono de qualidade ou qualquer vida social, mas o fato de o doutor James Atkinson nos tutelar era a maior prova de que eu estava no caminho certo.
— Cavalheiros. — o professor nos cumprimentou, estendendo dois envelopes endereçados ao Cravath, Swaine & Moore, o maior escritório de Nova York, a cidade em que morávamos. — Aqui estão suas cartas de recomendação de estágio. Vocês dois são meus melhores alunos, a grade curricular de vocês fala por si só. Tenho certeza de que vocês serão admitidos e efetivados.
— Obrigado, doutor Atkinson. — agradeci, enquanto Wonwoo se curvava rapidamente.
Apertei o envelope e me arrependi, porque quase amassei o documento mais importante do meu futuro. Troquei um olhar cúmplice com Wonwoo, procurando fingir calma enquanto eu era invadido por sentimentos conflitantes, uma mistura de euforia pela indicação e de medo da rejeição por conta da nacionalidade coreana. O estágio na CS&M poderia me lançar num mercado sólido ou no fracasso iminente, era tudo importante demais, grande demais, fazendo minhas palmas suarem demais, e eu…
Eu só queria o kyungdan da minha mãe agora.
— Mingyu! — Wonwoo me olhou espantado quando o professor se retirou e ficamos a sós. — Você sabe o peso dessa carta?
— Alguns gramas? — arrisquei, balançando o envelope.
— Você entendeu! — ele deslizou o dedo pela cartilagem, arrumando o par de óculos imaginário. — Com uma recomendação de James Atkinson - PHD, nós temos mais chances de entrar!
— Você acha?
— Você não? — ele rebateu e eu soube que ele estava com a mesma mistura de sentimentos que eu.
— Bom, eu espero que sim. Preciso muito desse emprego. — suspirei, esperançoso. Depois de várias tentativas recusadas, aquele escritório era nossa maior aposta para conseguir fazer carreira e continuar nos Estados Unidos. Observei meu amigo apertar os olhos e tentar focar a vista, não obtendo sucesso e buscando na bolsa a armação em estado deplorável de rachaduras e fita adesiva para colocar na cara. — Como vai a desastrada que fez isso aí no seu óculos? — mudei o rumo da conversa para me distrair da frustração e da ansiedade.
— A Marie Bee? — ele deixou um sorriso escapar quando pronunciou o nome da garota que havia lhe imprensado acidentalmente entre as prateleiras da biblioteca, causando perda total no óculos. — Ela é mesmo uma desastrada, não é? Mas é tão pequena e fofa. Acho que cabe no meu bolso.
— Nossa. — soprei, revirando os olhos nas órbitas. — Por que eu fui perguntar? E por que você não aceita logo que ela te compre um par novo? Afinal de contas, foi ela que quebrou. E ela é rica.
— Se eu aceitar, ela não vai ter mais motivo nenhum pra me procurar. — ele disse sem jeito, puxando as mangas do suéter. — Ela só está falando comigo porque se sente culpada de ter quebrado o óculos do cara pobre, é só isso.
— Ei, hyung! — passei o braço pelos ombros dele, esfregando o couro cabeludo com as juntas, meio carinho e meio agressão. — Aposto que ela está mesmo interessada em você. Você é um quatro olhos, mas é um gostoso. Dividimos o dormitório, eu já vi você só de cuequinha.
— Guarda a sua solidariedade masculina, por favor. — ele se afastou com o cabelo igual a um ninho de passarinho. — Você sabe muito bem por que eu evito me meter com as garotas daqui.
— Porque nós somos dois intercambistas que não combinam com essa universidade frequentada 80% por gente rica e 20% por nós, que precisamos estudar e trabalhar ao mesmo tempo?
— Bingo. — ele tocou a ponta do próprio nariz, sinalizando que eu tinha acertado. — Aliás, falando em trabalho, você ainda está procurando? A Marie tem uma amiga que pode te arrumar alguma coisa.
— Jura? — respondi, animado com a possibilidade. — Que tipo de trabalho?
— É que ela precisa de uma companhia masculina. — Wonwoo continuou e eu senti meu rosto em chamas.
— Jeon Wonwoo! — acertei um soco no braço dele. — Eu preciso de um emprego, mas eu não vou me prostituir! No máximo eu arriscaria um onlyfans, mas nem pra isso eu tenho coragem. — falei alto, quase gritando, e as pessoas ao redor do campus imediatamente começaram a nos encarar.
— Em primeiro lugar, obrigado por isso. — Wonwoo diminuiu com os olhares recebidos. — Em segundo lugar, não é esse tipo de companhia, seu pervertido! É segurança particular. Ela sai muito durante a noite e não dirige, o avô dela só quer alguém que a leve nos lugares que ela quer ir e fique de olho nela.
— Oh. — abri a boca. — Então é só acompanhar a riquinha na balada pra cima e pra baixo?
— Basicamente é isso. O pai da Marie Bee tem uma empresa de segurança, e como você já trabalhou com isso e esse é um emprego noturno, eu meio que dei certeza de você topar. — Wonwoo explicou enquanto caminhávamos.
— E durante o dia? — peguei um copo de café quando chegamos ao refeitório. — A madame não faz nada?
— Marie disse que ela cursa Literatura aqui. E que você não precisaria tomar conta dela no campus, só à noite. Quando ela estiver virando bicho pelas festas de Manhattan. — ele fechou os punhos e simulou uma dança de boate.
Tomei um gole grande e amargo, sentindo o corpo cansado despertar ao contato com a cafeína. Parecia até fácil ficar de vigia da garota em troca de um salário, além do mais, não atrapalharia os meus estudos.
— Ok. — assenti. — Acho que eu posso brincar de sombra. Qual o nome da minha luz que eu vou ter que seguir por aí?
— É .
Descemos os degraus do auditório principal, provavelmente o local em que passávamos a maior parte do tempo. Aluno de Direito no último ano, a faculdade me tomava quase o dia inteiro e aquilo me impedia de arrumar um emprego em horários “normais” enquanto não terminava o curso. E eu tinha que trabalhar, porque o pouco dinheiro que minha família conseguia me mandar de Anyang mal dava para os livros e para manter meu carrinho modesto. Sem poder advogar ainda, só me restava pegar alguns trabalhos aqui e ali como manobrista, monitor de aulas particulares e até segurança de meio período. Wonwoo, meu melhor amigo de infância, tinha uma situação financeira mais confortável que a minha, mas felizmente essa diferença nunca se interpôs na nossa amizade e realizamos nosso sonho de criança: estudar na mesma universidade, a estadunidense Saint Peter, para a qual, graças a muito esforço, eu tinha uma bolsa integral.
Minha mãe não lidou muito bem quando eu, na época um moleque de 18 anos, resolvi aceitar a proposta de intercâmbio da Saint Peter e trocar a doçura do meu lar e do kyungdan dela por um dormitório e uma vaga para preencher cota. Uma aflição perfeitamente justificável, afinal de contas, apesar do meu histórico escolar impecável e das minhas habilidades extracurriculares com esportes, costura e cozinha, eu estava me mandando para o outro lado do mundo apenas com o básico do idioma e meu melhor amigo (cuja proficiência na língua era tão mediana quanto a minha). E independente da quantidade de barba na sua cara, isso é igual em todo o mundo: coração de mãe é um pouco como as ilhas Caraíbas. É um lugar de tumultos naturais, tempestades, ventos, e foi preciso mais de uma semana para acalmá-la e para explicar que, como a universidade oferecia um intensivo de dois anos de inglês, eu não ia parar nas ruas dos EUA como um indigente.
Alguns anos se passaram, meu inglês avançou (apesar do meu sotaque carregado e da minha língua presa) e eu podia dizer que estávamos indo bem. Não era fácil estudar de dia e trabalhar à noite, não ter tempo para um sono de qualidade ou qualquer vida social, mas o fato de o doutor James Atkinson nos tutelar era a maior prova de que eu estava no caminho certo.
— Cavalheiros. — o professor nos cumprimentou, estendendo dois envelopes endereçados ao Cravath, Swaine & Moore, o maior escritório de Nova York, a cidade em que morávamos. — Aqui estão suas cartas de recomendação de estágio. Vocês dois são meus melhores alunos, a grade curricular de vocês fala por si só. Tenho certeza de que vocês serão admitidos e efetivados.
— Obrigado, doutor Atkinson. — agradeci, enquanto Wonwoo se curvava rapidamente.
Apertei o envelope e me arrependi, porque quase amassei o documento mais importante do meu futuro. Troquei um olhar cúmplice com Wonwoo, procurando fingir calma enquanto eu era invadido por sentimentos conflitantes, uma mistura de euforia pela indicação e de medo da rejeição por conta da nacionalidade coreana. O estágio na CS&M poderia me lançar num mercado sólido ou no fracasso iminente, era tudo importante demais, grande demais, fazendo minhas palmas suarem demais, e eu…
Eu só queria o kyungdan da minha mãe agora.
— Mingyu! — Wonwoo me olhou espantado quando o professor se retirou e ficamos a sós. — Você sabe o peso dessa carta?
— Alguns gramas? — arrisquei, balançando o envelope.
— Você entendeu! — ele deslizou o dedo pela cartilagem, arrumando o par de óculos imaginário. — Com uma recomendação de James Atkinson - PHD, nós temos mais chances de entrar!
— Você acha?
— Você não? — ele rebateu e eu soube que ele estava com a mesma mistura de sentimentos que eu.
— Bom, eu espero que sim. Preciso muito desse emprego. — suspirei, esperançoso. Depois de várias tentativas recusadas, aquele escritório era nossa maior aposta para conseguir fazer carreira e continuar nos Estados Unidos. Observei meu amigo apertar os olhos e tentar focar a vista, não obtendo sucesso e buscando na bolsa a armação em estado deplorável de rachaduras e fita adesiva para colocar na cara. — Como vai a desastrada que fez isso aí no seu óculos? — mudei o rumo da conversa para me distrair da frustração e da ansiedade.
— A Marie Bee? — ele deixou um sorriso escapar quando pronunciou o nome da garota que havia lhe imprensado acidentalmente entre as prateleiras da biblioteca, causando perda total no óculos. — Ela é mesmo uma desastrada, não é? Mas é tão pequena e fofa. Acho que cabe no meu bolso.
— Nossa. — soprei, revirando os olhos nas órbitas. — Por que eu fui perguntar? E por que você não aceita logo que ela te compre um par novo? Afinal de contas, foi ela que quebrou. E ela é rica.
— Se eu aceitar, ela não vai ter mais motivo nenhum pra me procurar. — ele disse sem jeito, puxando as mangas do suéter. — Ela só está falando comigo porque se sente culpada de ter quebrado o óculos do cara pobre, é só isso.
— Ei, hyung! — passei o braço pelos ombros dele, esfregando o couro cabeludo com as juntas, meio carinho e meio agressão. — Aposto que ela está mesmo interessada em você. Você é um quatro olhos, mas é um gostoso. Dividimos o dormitório, eu já vi você só de cuequinha.
— Guarda a sua solidariedade masculina, por favor. — ele se afastou com o cabelo igual a um ninho de passarinho. — Você sabe muito bem por que eu evito me meter com as garotas daqui.
— Porque nós somos dois intercambistas que não combinam com essa universidade frequentada 80% por gente rica e 20% por nós, que precisamos estudar e trabalhar ao mesmo tempo?
— Bingo. — ele tocou a ponta do próprio nariz, sinalizando que eu tinha acertado. — Aliás, falando em trabalho, você ainda está procurando? A Marie tem uma amiga que pode te arrumar alguma coisa.
— Jura? — respondi, animado com a possibilidade. — Que tipo de trabalho?
— É que ela precisa de uma companhia masculina. — Wonwoo continuou e eu senti meu rosto em chamas.
— Jeon Wonwoo! — acertei um soco no braço dele. — Eu preciso de um emprego, mas eu não vou me prostituir! No máximo eu arriscaria um onlyfans, mas nem pra isso eu tenho coragem. — falei alto, quase gritando, e as pessoas ao redor do campus imediatamente começaram a nos encarar.
— Em primeiro lugar, obrigado por isso. — Wonwoo diminuiu com os olhares recebidos. — Em segundo lugar, não é esse tipo de companhia, seu pervertido! É segurança particular. Ela sai muito durante a noite e não dirige, o avô dela só quer alguém que a leve nos lugares que ela quer ir e fique de olho nela.
— Oh. — abri a boca. — Então é só acompanhar a riquinha na balada pra cima e pra baixo?
— Basicamente é isso. O pai da Marie Bee tem uma empresa de segurança, e como você já trabalhou com isso e esse é um emprego noturno, eu meio que dei certeza de você topar. — Wonwoo explicou enquanto caminhávamos.
— E durante o dia? — peguei um copo de café quando chegamos ao refeitório. — A madame não faz nada?
— Marie disse que ela cursa Literatura aqui. E que você não precisaria tomar conta dela no campus, só à noite. Quando ela estiver virando bicho pelas festas de Manhattan. — ele fechou os punhos e simulou uma dança de boate.
Tomei um gole grande e amargo, sentindo o corpo cansado despertar ao contato com a cafeína. Parecia até fácil ficar de vigia da garota em troca de um salário, além do mais, não atrapalharia os meus estudos.
— Ok. — assenti. — Acho que eu posso brincar de sombra. Qual o nome da minha luz que eu vou ter que seguir por aí?
— É .
Capítulo 1 - A sobrevivente tatuada
Meu pescoço pinicava de tanto ajeitar o nó da gravata. O sol nem tinha nascido direito e eu já tinha comido e me enfiado num terno. Não era muito diferente de qualquer dia da minha vida, sendo um futuro advogado, estava acostumado a andar empacotado por aí, o que não significava que eu gostasse do figurino. Ainda mais num sábado. Às seis da manhã.
Deixei o dormitório bocejando, passando por um campo minado de alunos nas escadas, cada um num estado pior que o outro. Pelo cheiro de álcool e nicotina que impregnou os corredores, aquela galera tinha acabado de chegar de uma puta festa. Passei pelos sobreviventes e abri o celular na página de notícias da Saint Peter, administrada pelo estudante de Jornalismo Boo Seungkwan, para conferir o resumo da noite enquanto esperava o meu ônibus. Ser um nerd não significava que eu não gostava de saber das fofocas de gente que eu nem conhecia, e eu me dava, sim, ao prazer de uma leitura “fútil” entre um artigo de jurisdição civil norte-americana e outro. A matéria estava recheada de fotos que não deixavam dúvidas sobre o porte do evento, que contou com participações de DJs famosos e até um patrocínio da Chevalier Industries, a maior metalúrgica dos EUA.
Avistei meu ônibus de longe, vaguinho. Escolhi um lugar perto da janela e decidi continuar lendo no trajeto até o metrô. A festa era da fraternidade dos jogadores de futebol, uns caras que passavam por mim como quem passava por nada. Todos os intercambistas eram meio que “ninguém”, mas eu estava velho demais para fazer disso um drama, além do que, não me faltavam amigos no dormitório da Saint Peter para bater bola, tomar umas cervejas e falar sobre a temporada que os Jets estavam fazendo. O tempo anestesiou a indiferença e os olhares de soslaio da elite americana da universidade, e saber que o que eu buscava ali era muito maior que ser aceito por um grupo era algo bem forte na minha mente. Eu queria me qualificar para advogar no melhor escritório do país, nem que para isso eu tivesse que sacrificar meu descanso e bancar a babá no processo.
O caminho do meu novo emprego era no lado sul (e rico) da cidade. Eu precisava passar na empresa dos Bee antes para fazer ficha cadastral, acertar horários, salário e toda a parte administrativa da coisa. Só o prédio chique foi impacto suficiente para o meu cérebro ainda dormindo, a recepção toda em piso caro e com duas loiras de nariz em pé me fizeram perceber que aquele trabalho ia me jogar numa realidade oposta à minha. Quando me encaminharam até o castelo encantado da princesa por quem agora eu era responsável, tudo o que eu conseguia imaginar era em que caralhos o Wonwoo tinha me metido. Achava que eu só tinha que brincar de sombra, mas depois que eu cheguei à área externa da mansão gigantesca e ostensiva, quem me recebeu foi um cara de ponto no ouvido e um aparato que parecia ter saído de um filme de espionagem, apresentando-se como chefe da segurança:
— Kim Mingyu? — ele perguntou, ríspido, e eu confirmei. — Documento, rapaz.
Fui surpreendido por um flash fotográfico e uma espécie de crachá provisório enquanto o homenzarrão analisava minha identidade. O crachá dizia "Segurança Particular - Chevalier".
Chevalier?
Puta que pariu.
Engoli em seco e pensei em palavras que não podiam ser ditas em voz alta quando recebi o nome completo e juntei as peças. A moça da empresa dos Bee só se referiu à pelo primeiro nome ou como “a amiga da Marie”. E como a Marie só era vista na biblioteca, eu suspeitei por alguns segundos que “a amiga” poderia ser uma enciclopédia de Neuropsicologia. Mas não. Era uma garota. A garota mais famosinha da Saint Peter, anfitriã da festa sobre a qual eu vinha lendo horas atrás.
Como eu não me liguei disso? Como o Wonwoo me deu a volta daquele jeito?
— Pode entrar. — o chefe me liberou. — Boa sorte. Vai precisar. — ele murmurou a última parte.
Caminhei pelo jardim imenso, que deveria demandar pelo menos uns três jardineiros para cuidar e manter a grama rente e verdinha daquele jeito, o que me fez pensar que eu devia ter me candidatado a essa vaga. Daria muito menos trabalho que dar conta da mimada. O jardim não acabava de tão grande e me deu tempo de realizar uma rápida e furiosa ligação para o meu "amigo":
— Chevalier, Wonwoo? — despejei assim que ele atendeu.
— Eu te dei o nome e você não perguntou o resto. — ele respondeu, e eu sabia que estava rindo. — A culpa é sua.
— A culpa é sua que fica todo mole quando uma mulher sorri pra você! Você quis agradar a Marie e agora eu tô de chaveirinho da garota problema!
E eu estava convicto disso, de que eu seria tratado, sei lá, como se eu fosse a bolsa dela. Chevalier era totalmente diferente de mim: rica e superpopular. Era conhecida por ser neta de um dos magnatas da cidade, dono de um grande conglomerado industrial, e por dar as maiores e melhores festas, para as quais eu, obviamente, jamais fui convidado. O mais perto que eu chegava dela era quando eu lia o periódico do Seungkwan, que era meio fissurado na , uma espécie de celebridade de quem todos queriam notícias, boatos, qualquer coisa. Nunca trocamos palavras, mas eu sempre a via pelo campus rodeada de muita gente, inclusive do capitão do time de futebol, Dokyeom, que eu achava ser namorado dela ou coisa parecida.
— Você dá conta. não é tão ruim assim, ela só gosta de uma noitada. — Wonwoo tentou me consolar.
— Gosta tanto que só agora chegou em casa. — disse, quando avistei um carro se aproximando da entrada da mansão e descendo com os saltos na mão. — Eu tenho que ir. Mas você me paga. — avisei Wonwoo, desligando o telefone.
Depois que ela se enfiou casa a dentro meio trôpega, esperei cinco minutos e bati na porta grande e branca. Fui recebido pela governanta da casa, que me olhou de cima a baixo, procurando algum defeito e não encontrando, a julgar pelo sorriso que ela abriu:
— Você é tão bonito! — a simpática senhora me elogiou. — Eu sou Dorota, mas pode me chamar de Dory. Você toma café? — ela lançou em sequência, mal me dando tempo para responder, e eu fiz gestos de aquiescência com a cabeça. — Como que você gosta?
— Preto. E bem quente. — sorri mais relaxado com a ideia de um café, além do mais, a governanta era bem mais amigável que o chefe da segurança. Era reconfortante saber que havia uma pessoa naquele casarão que me deixava à vontade.
— Igualzinho à ! — ela juntou as mãos no peito. — Entra, o avô dela quer falar com você.
Seguimos até o escritório todo mobiliado em madeira cara e adornado de livros. Alfred Chevalier estava sentado analisando papéis e tomando chá quando percebeu a nossa entrada e, sem tirar os olhos da sua mesa, perguntou para Dory:
— E a ?
— Acabou de chegar. Está na cozinha comendo alguma coisa.
— Outra vez passando a noite em farra... — ele balançou a cabeça em reprovação e levantou os olhos para mim. — Bom dia, senhor Kim. Por favor, sente-se.
— É um prazer conhecê-lo, senhor Chevalier. — aceitei o convite.
— Alfred está bom. — ele sorriu curto. — Eu recebi boas recomendações sobre você. Pupila de James Atkinson, certo? Eu o conheço. Qualquer um que seja bom para o James, é bom para mim também. — ele abriu o sorriso, soando mais receptivo.
— Fico lisonjeado, senhor. — respondi, apertando os joelhos de nervosismo.
— Olha, garoto... — ele pôs os óculos em cima da papelada. — Minha neta é a pessoa mais importante do mundo para mim. Ela é tudo o que eu tenho desde que... Bom, você sabe. Todos nessa cidade sabem. Céus, saiu em todos os jornais.
Baixei a cabeça em condolência. A perda do senhor Chevalier era tão devastadora que sequer tinha nome. era órfã, mas ele havia perdido um filho. Que nome se dava a um pai que perdia o filho? O acidente fatal que ceifou as vidas de Henry e Cassie Chevalier, os pais de , repercutiu nacionalmente tanto pela gravidade do acontecido quanto pelo milagre que foi , na época ainda criança, ter sobrevivido.
De repente, o peso da minha responsabilidade triplicou e uma chave mental virou pesadamente. Eu pensei que tinha apenas que vigiar uma garotinha esnobe, mas aquela garotinha era a neta de alguém. Era o “tudo que eu tenho” de alguém.
— Então essa aí é minha sombra? — despertei com o som de uma suculenta maçã sendo mordida e a dita garotinha (que já era uma mulher) surgindo à porta do escritório.
— Esse é o seu segurança. — Alfred corrigiu, levantando-se. — Ele vai acompanhar você durante a noite.
— Ué. — espiou pela janela grande e apontou o sol. — Está de noite agora?
— Engraçadinha. — Alfred deu um beijo na testa da neta, que aceitou casta e graciosamente. — O senhor Kim concordou em vir hoje para se familiarizar com você e sua rotina maluca.
— E o senhor Kim fala ou alguém comeu a língua dele? — os pés descalços de vieram andando em minha direção e eu não tive outra reação a não ser levantar na presença dela.
A moça diminuiu na minha frente, ficando à altura do meu peito. A diferença gritante de tamanho não a intimidou e ela sustentou um olhar incisivo, me lendo e me decifrando. Eu já tinha visto diversas vezes, mas sempre longe, ao ponto de eu não conseguir distinguir os desenhos e as letras das tatuagens, que agora estavam perfeitamente legíveis no corpo coberto por um mínimo tubinho preto. Eram pedaços de poemas, rosas, borboletas, números e textos espalhados pelos braços, mãos e dedos, com alguns grandes espaços em branco entre a coxa e a panturrilha, sendo a perna esquerda o único local visível livre. era toda flor e verbos, e mesmo com a pele limpa de uma maquiagem que não resistiu à noite intensa, ela era bonita. Muito bonita.
— Min... — ela tentou ler meu crachá.
— Mingyu. — falei finalmente, com a voz falha. — Kim Mingyu.
— Você é alto e forte assim mesmo ou eu ainda estou vendo dobrado?
Ela me apalpou o peitoral sem cerimônia alguma e eu segurei o ar nos pulmões quando ela desceu pelos meus braços, apertando-os. Os olhos subiram um pouco, se perderam na minha boca por um momento e de repente aumentaram. Grandes, redondos e castanhos.
— Espera aí. — apertou meu rosto com uma mão doce do suco da maçã, virando meu perfil para ambos os lados. — Eu conheço você! Você é o nerd coreano!
Espremi os olhos e segurei a língua na boca, forçando um sorriso. Eu era, de fato, um nerd, mas ela fazia soar como um insulto. E eu também era, de fato, coreano, mas essa parte não foi carregada num tom de desprezo, ela devia curtir asiáticos, até porque vivia com o tal Dokyeom a tiracolo — e ainda não tinha tirado a mão livre do meu peito.
— Vovô! — reclamou. — Precisava ser alguém lá da universidade? O senhor não podia ter arranjado alguém velho e sem... — ela enfim percebeu que ainda estava tateando meus músculos e recolheu a mão, cochichando como se eu não pudesse mais ouvi-la. — Sem esse porte físico e essa... virilidade?
— Pra você vencer pelo cansaço e ele acabar cochilando em vez de proteger você? Você é ardilosa e escorregadia, Chevalier. Preciso de alguém vivo e inteligente no seu encalço. — o avô dela contra-argumentou.
— E o que eu faço com esse guarda-roupa grudado em mim? — voltou a bater no meu peitoral e eu tentei não reclamar.
— O guarda-roupa... — Alfred limpou a garganta. — O senhor Kim vai me deixar mais tranquilo. Não aguento mais virar as noites me perguntando se algo de ruim te aconteceu, . Não aguento mais receber trotes dizendo que pegaram você. Enquanto você está bebendo e se acabando em festas, eu fico aqui arrancando os cabelos que já quase não tenho. Saber que tem alguém tomando conta de você vai me devolver o sono.
— Nonno! — apelou, confirmando a origem italiana do sobrenome.
— Ele fica, piccolina. Ponto. — Alfred encerrou altivo, encaixando a mão na bochecha da neta, e deixou a sala. — Boa sorte, senhor Kim! — ouvi pela segunda vez no dia.
parou por um momento, avaliando a situação enquanto a maçã desaparecia na boca carnuda. Ela não parecia o tipo de mulher que se dobrava facilmente, tinha uma tenacidade própria de quem atravessou uma dor devastadora. No entanto, alguma brandura resistia, porque os olhos miraram Alfred diferente quando foi chamada pelo apelido na língua-mãe, analisando o semblante de preocupação dele e dando sinais de que cederia um tanto de sua liberdade para conceder paz ao avô.
— Ok, sombra. — ela assentiu para mim. — Eu vou tomar um banho e dormir um pouco. Não foi um convite, tá? — ela bateu na minha cabeça, leve e repetidamente. — Você pode ficar sentado e bonzinho aqui fora até eu acordar.
Meu orgulho espatifou quando me afagou como um cachorrinho de estimação. O fato de ela ter aceitado a minha proteção não era um cessar-fogo, as armas dela continuavam carregadas: ela só ajustou a mira. E o alvo era eu.
Por pior que aquele emprego já prometia ser, era temporário e era a essa cláusula que eu me prendia. Só até o final do semestre. Só até eu me formar e viver cercado de processos, escondido atrás de papéis e imerso nos meus casos. E aí nada mais de Chevalier e eu nunca mais pisaria ali — exceto pelo café da Dorota, que me parecia um ótimo pretexto para visitas ocasionais. Aquele era dos bons, fresco e forte, exatamente o que eu precisava para não cair de sono, vencido pelo enfado depois de perambular pela casa imensa procurando o que fazer. Sentei num dos bancos do jardim e puxei o celular do bolso, abrindo o bloco de documentos: ao menos o cochilo real da princesa me renderia tempo para rascunhar alguma coisa dos trabalhos da faculdade. Não muito depois, a voz da se fez ouvir novamente e eu percebi que estava bem embaixo da varanda dela.
Aquela garota não dormia?
— Você me arrumou uma babá, Marie Bee? — ouvi dizer claramente, concluindo que eu era o assunto.
— Seu avô pediu um segurança para o meu pai, eu tive que intervir. Era isso ou um dos brutamontes da empresa dele. — outra voz soou, pelo visto, da Marie. — Ele e o Wonwoo são amigos de infância, sabia?
Éramos. Aquele traidor.
— O pobre coitado que você quase esmagou e cegou? — perguntou referindo-se ao incidente das prateleiras na biblioteca, quando Marie quase matou Wonwoo imprensado.
— Foi um acidente, tá? — Marie se defendeu. — E eu estou ajudando ele a conseguir outro óculos.
— Eu sei bem o que você queria conseguir... — insinuou.
— Tá bom, tá bom. Eu queria pegar o telefone do Wonwoo e usei a situação como desculpa. — Marie confessou. — Você não ficou chateada comigo, né?
— Por você me usar descaradamente pra se aproximar desse míope que te deixou toda balançada? Não. Por você ter me acordado pra pedir opinião na roupa que vai usar para almoçar com ele? Sim. — reclamou com a amiga. Era mesmo uma abusadinha.
— Não quero ir muito simples. Mas também não quero ir too much, sabe? — Marie disse. — O que você vai fazer sobre o Mingyu?
— Vou levá-lo pra fazer compras comigo e ser bem insuportável. Eu faço ele desistir de mim em dois tempos.
Ri irônico.
não me conhecia o suficiente para saber o efeito que aquelas palavras me surtiram. Não conseguia afirmar categoricamente qualquer coisa sobre mim mesmo, a não ser que eu era resoluto. Saí de Anyang com um firme propósito, ralei para um caralho para me manter enquanto sustentava minhas notas acima da média, perdi sono, relacionamentos, abri mão de meio mundo… não seria um mero capricho dela que me derrotaria. Se havia algum sentimento de desistência em mim, ele sumiu tão rápido quanto o café da minha xícara quando dei o último gole.
Ok, Chevalier. Agora virou um desafio pessoal.
Deixei o dormitório bocejando, passando por um campo minado de alunos nas escadas, cada um num estado pior que o outro. Pelo cheiro de álcool e nicotina que impregnou os corredores, aquela galera tinha acabado de chegar de uma puta festa. Passei pelos sobreviventes e abri o celular na página de notícias da Saint Peter, administrada pelo estudante de Jornalismo Boo Seungkwan, para conferir o resumo da noite enquanto esperava o meu ônibus. Ser um nerd não significava que eu não gostava de saber das fofocas de gente que eu nem conhecia, e eu me dava, sim, ao prazer de uma leitura “fútil” entre um artigo de jurisdição civil norte-americana e outro. A matéria estava recheada de fotos que não deixavam dúvidas sobre o porte do evento, que contou com participações de DJs famosos e até um patrocínio da Chevalier Industries, a maior metalúrgica dos EUA.
Avistei meu ônibus de longe, vaguinho. Escolhi um lugar perto da janela e decidi continuar lendo no trajeto até o metrô. A festa era da fraternidade dos jogadores de futebol, uns caras que passavam por mim como quem passava por nada. Todos os intercambistas eram meio que “ninguém”, mas eu estava velho demais para fazer disso um drama, além do que, não me faltavam amigos no dormitório da Saint Peter para bater bola, tomar umas cervejas e falar sobre a temporada que os Jets estavam fazendo. O tempo anestesiou a indiferença e os olhares de soslaio da elite americana da universidade, e saber que o que eu buscava ali era muito maior que ser aceito por um grupo era algo bem forte na minha mente. Eu queria me qualificar para advogar no melhor escritório do país, nem que para isso eu tivesse que sacrificar meu descanso e bancar a babá no processo.
O caminho do meu novo emprego era no lado sul (e rico) da cidade. Eu precisava passar na empresa dos Bee antes para fazer ficha cadastral, acertar horários, salário e toda a parte administrativa da coisa. Só o prédio chique foi impacto suficiente para o meu cérebro ainda dormindo, a recepção toda em piso caro e com duas loiras de nariz em pé me fizeram perceber que aquele trabalho ia me jogar numa realidade oposta à minha. Quando me encaminharam até o castelo encantado da princesa por quem agora eu era responsável, tudo o que eu conseguia imaginar era em que caralhos o Wonwoo tinha me metido. Achava que eu só tinha que brincar de sombra, mas depois que eu cheguei à área externa da mansão gigantesca e ostensiva, quem me recebeu foi um cara de ponto no ouvido e um aparato que parecia ter saído de um filme de espionagem, apresentando-se como chefe da segurança:
— Kim Mingyu? — ele perguntou, ríspido, e eu confirmei. — Documento, rapaz.
Fui surpreendido por um flash fotográfico e uma espécie de crachá provisório enquanto o homenzarrão analisava minha identidade. O crachá dizia "Segurança Particular - Chevalier".
Chevalier?
Puta que pariu.
Engoli em seco e pensei em palavras que não podiam ser ditas em voz alta quando recebi o nome completo e juntei as peças. A moça da empresa dos Bee só se referiu à pelo primeiro nome ou como “a amiga da Marie”. E como a Marie só era vista na biblioteca, eu suspeitei por alguns segundos que “a amiga” poderia ser uma enciclopédia de Neuropsicologia. Mas não. Era uma garota. A garota mais famosinha da Saint Peter, anfitriã da festa sobre a qual eu vinha lendo horas atrás.
Como eu não me liguei disso? Como o Wonwoo me deu a volta daquele jeito?
— Pode entrar. — o chefe me liberou. — Boa sorte. Vai precisar. — ele murmurou a última parte.
Caminhei pelo jardim imenso, que deveria demandar pelo menos uns três jardineiros para cuidar e manter a grama rente e verdinha daquele jeito, o que me fez pensar que eu devia ter me candidatado a essa vaga. Daria muito menos trabalho que dar conta da mimada. O jardim não acabava de tão grande e me deu tempo de realizar uma rápida e furiosa ligação para o meu "amigo":
— Chevalier, Wonwoo? — despejei assim que ele atendeu.
— Eu te dei o nome e você não perguntou o resto. — ele respondeu, e eu sabia que estava rindo. — A culpa é sua.
— A culpa é sua que fica todo mole quando uma mulher sorri pra você! Você quis agradar a Marie e agora eu tô de chaveirinho da garota problema!
E eu estava convicto disso, de que eu seria tratado, sei lá, como se eu fosse a bolsa dela. Chevalier era totalmente diferente de mim: rica e superpopular. Era conhecida por ser neta de um dos magnatas da cidade, dono de um grande conglomerado industrial, e por dar as maiores e melhores festas, para as quais eu, obviamente, jamais fui convidado. O mais perto que eu chegava dela era quando eu lia o periódico do Seungkwan, que era meio fissurado na , uma espécie de celebridade de quem todos queriam notícias, boatos, qualquer coisa. Nunca trocamos palavras, mas eu sempre a via pelo campus rodeada de muita gente, inclusive do capitão do time de futebol, Dokyeom, que eu achava ser namorado dela ou coisa parecida.
— Você dá conta. não é tão ruim assim, ela só gosta de uma noitada. — Wonwoo tentou me consolar.
— Gosta tanto que só agora chegou em casa. — disse, quando avistei um carro se aproximando da entrada da mansão e descendo com os saltos na mão. — Eu tenho que ir. Mas você me paga. — avisei Wonwoo, desligando o telefone.
Depois que ela se enfiou casa a dentro meio trôpega, esperei cinco minutos e bati na porta grande e branca. Fui recebido pela governanta da casa, que me olhou de cima a baixo, procurando algum defeito e não encontrando, a julgar pelo sorriso que ela abriu:
— Você é tão bonito! — a simpática senhora me elogiou. — Eu sou Dorota, mas pode me chamar de Dory. Você toma café? — ela lançou em sequência, mal me dando tempo para responder, e eu fiz gestos de aquiescência com a cabeça. — Como que você gosta?
— Preto. E bem quente. — sorri mais relaxado com a ideia de um café, além do mais, a governanta era bem mais amigável que o chefe da segurança. Era reconfortante saber que havia uma pessoa naquele casarão que me deixava à vontade.
— Igualzinho à ! — ela juntou as mãos no peito. — Entra, o avô dela quer falar com você.
Seguimos até o escritório todo mobiliado em madeira cara e adornado de livros. Alfred Chevalier estava sentado analisando papéis e tomando chá quando percebeu a nossa entrada e, sem tirar os olhos da sua mesa, perguntou para Dory:
— E a ?
— Acabou de chegar. Está na cozinha comendo alguma coisa.
— Outra vez passando a noite em farra... — ele balançou a cabeça em reprovação e levantou os olhos para mim. — Bom dia, senhor Kim. Por favor, sente-se.
— É um prazer conhecê-lo, senhor Chevalier. — aceitei o convite.
— Alfred está bom. — ele sorriu curto. — Eu recebi boas recomendações sobre você. Pupila de James Atkinson, certo? Eu o conheço. Qualquer um que seja bom para o James, é bom para mim também. — ele abriu o sorriso, soando mais receptivo.
— Fico lisonjeado, senhor. — respondi, apertando os joelhos de nervosismo.
— Olha, garoto... — ele pôs os óculos em cima da papelada. — Minha neta é a pessoa mais importante do mundo para mim. Ela é tudo o que eu tenho desde que... Bom, você sabe. Todos nessa cidade sabem. Céus, saiu em todos os jornais.
Baixei a cabeça em condolência. A perda do senhor Chevalier era tão devastadora que sequer tinha nome. era órfã, mas ele havia perdido um filho. Que nome se dava a um pai que perdia o filho? O acidente fatal que ceifou as vidas de Henry e Cassie Chevalier, os pais de , repercutiu nacionalmente tanto pela gravidade do acontecido quanto pelo milagre que foi , na época ainda criança, ter sobrevivido.
De repente, o peso da minha responsabilidade triplicou e uma chave mental virou pesadamente. Eu pensei que tinha apenas que vigiar uma garotinha esnobe, mas aquela garotinha era a neta de alguém. Era o “tudo que eu tenho” de alguém.
— Então essa aí é minha sombra? — despertei com o som de uma suculenta maçã sendo mordida e a dita garotinha (que já era uma mulher) surgindo à porta do escritório.
— Esse é o seu segurança. — Alfred corrigiu, levantando-se. — Ele vai acompanhar você durante a noite.
— Ué. — espiou pela janela grande e apontou o sol. — Está de noite agora?
— Engraçadinha. — Alfred deu um beijo na testa da neta, que aceitou casta e graciosamente. — O senhor Kim concordou em vir hoje para se familiarizar com você e sua rotina maluca.
— E o senhor Kim fala ou alguém comeu a língua dele? — os pés descalços de vieram andando em minha direção e eu não tive outra reação a não ser levantar na presença dela.
A moça diminuiu na minha frente, ficando à altura do meu peito. A diferença gritante de tamanho não a intimidou e ela sustentou um olhar incisivo, me lendo e me decifrando. Eu já tinha visto diversas vezes, mas sempre longe, ao ponto de eu não conseguir distinguir os desenhos e as letras das tatuagens, que agora estavam perfeitamente legíveis no corpo coberto por um mínimo tubinho preto. Eram pedaços de poemas, rosas, borboletas, números e textos espalhados pelos braços, mãos e dedos, com alguns grandes espaços em branco entre a coxa e a panturrilha, sendo a perna esquerda o único local visível livre. era toda flor e verbos, e mesmo com a pele limpa de uma maquiagem que não resistiu à noite intensa, ela era bonita. Muito bonita.
— Min... — ela tentou ler meu crachá.
— Mingyu. — falei finalmente, com a voz falha. — Kim Mingyu.
— Você é alto e forte assim mesmo ou eu ainda estou vendo dobrado?
Ela me apalpou o peitoral sem cerimônia alguma e eu segurei o ar nos pulmões quando ela desceu pelos meus braços, apertando-os. Os olhos subiram um pouco, se perderam na minha boca por um momento e de repente aumentaram. Grandes, redondos e castanhos.
— Espera aí. — apertou meu rosto com uma mão doce do suco da maçã, virando meu perfil para ambos os lados. — Eu conheço você! Você é o nerd coreano!
Espremi os olhos e segurei a língua na boca, forçando um sorriso. Eu era, de fato, um nerd, mas ela fazia soar como um insulto. E eu também era, de fato, coreano, mas essa parte não foi carregada num tom de desprezo, ela devia curtir asiáticos, até porque vivia com o tal Dokyeom a tiracolo — e ainda não tinha tirado a mão livre do meu peito.
— Vovô! — reclamou. — Precisava ser alguém lá da universidade? O senhor não podia ter arranjado alguém velho e sem... — ela enfim percebeu que ainda estava tateando meus músculos e recolheu a mão, cochichando como se eu não pudesse mais ouvi-la. — Sem esse porte físico e essa... virilidade?
— Pra você vencer pelo cansaço e ele acabar cochilando em vez de proteger você? Você é ardilosa e escorregadia, Chevalier. Preciso de alguém vivo e inteligente no seu encalço. — o avô dela contra-argumentou.
— E o que eu faço com esse guarda-roupa grudado em mim? — voltou a bater no meu peitoral e eu tentei não reclamar.
— O guarda-roupa... — Alfred limpou a garganta. — O senhor Kim vai me deixar mais tranquilo. Não aguento mais virar as noites me perguntando se algo de ruim te aconteceu, . Não aguento mais receber trotes dizendo que pegaram você. Enquanto você está bebendo e se acabando em festas, eu fico aqui arrancando os cabelos que já quase não tenho. Saber que tem alguém tomando conta de você vai me devolver o sono.
— Nonno! — apelou, confirmando a origem italiana do sobrenome.
— Ele fica, piccolina. Ponto. — Alfred encerrou altivo, encaixando a mão na bochecha da neta, e deixou a sala. — Boa sorte, senhor Kim! — ouvi pela segunda vez no dia.
parou por um momento, avaliando a situação enquanto a maçã desaparecia na boca carnuda. Ela não parecia o tipo de mulher que se dobrava facilmente, tinha uma tenacidade própria de quem atravessou uma dor devastadora. No entanto, alguma brandura resistia, porque os olhos miraram Alfred diferente quando foi chamada pelo apelido na língua-mãe, analisando o semblante de preocupação dele e dando sinais de que cederia um tanto de sua liberdade para conceder paz ao avô.
— Ok, sombra. — ela assentiu para mim. — Eu vou tomar um banho e dormir um pouco. Não foi um convite, tá? — ela bateu na minha cabeça, leve e repetidamente. — Você pode ficar sentado e bonzinho aqui fora até eu acordar.
Meu orgulho espatifou quando me afagou como um cachorrinho de estimação. O fato de ela ter aceitado a minha proteção não era um cessar-fogo, as armas dela continuavam carregadas: ela só ajustou a mira. E o alvo era eu.
Por pior que aquele emprego já prometia ser, era temporário e era a essa cláusula que eu me prendia. Só até o final do semestre. Só até eu me formar e viver cercado de processos, escondido atrás de papéis e imerso nos meus casos. E aí nada mais de Chevalier e eu nunca mais pisaria ali — exceto pelo café da Dorota, que me parecia um ótimo pretexto para visitas ocasionais. Aquele era dos bons, fresco e forte, exatamente o que eu precisava para não cair de sono, vencido pelo enfado depois de perambular pela casa imensa procurando o que fazer. Sentei num dos bancos do jardim e puxei o celular do bolso, abrindo o bloco de documentos: ao menos o cochilo real da princesa me renderia tempo para rascunhar alguma coisa dos trabalhos da faculdade. Não muito depois, a voz da se fez ouvir novamente e eu percebi que estava bem embaixo da varanda dela.
Aquela garota não dormia?
— Você me arrumou uma babá, Marie Bee? — ouvi dizer claramente, concluindo que eu era o assunto.
— Seu avô pediu um segurança para o meu pai, eu tive que intervir. Era isso ou um dos brutamontes da empresa dele. — outra voz soou, pelo visto, da Marie. — Ele e o Wonwoo são amigos de infância, sabia?
Éramos. Aquele traidor.
— O pobre coitado que você quase esmagou e cegou? — perguntou referindo-se ao incidente das prateleiras na biblioteca, quando Marie quase matou Wonwoo imprensado.
— Foi um acidente, tá? — Marie se defendeu. — E eu estou ajudando ele a conseguir outro óculos.
— Eu sei bem o que você queria conseguir... — insinuou.
— Tá bom, tá bom. Eu queria pegar o telefone do Wonwoo e usei a situação como desculpa. — Marie confessou. — Você não ficou chateada comigo, né?
— Por você me usar descaradamente pra se aproximar desse míope que te deixou toda balançada? Não. Por você ter me acordado pra pedir opinião na roupa que vai usar para almoçar com ele? Sim. — reclamou com a amiga. Era mesmo uma abusadinha.
— Não quero ir muito simples. Mas também não quero ir too much, sabe? — Marie disse. — O que você vai fazer sobre o Mingyu?
— Vou levá-lo pra fazer compras comigo e ser bem insuportável. Eu faço ele desistir de mim em dois tempos.
Ri irônico.
não me conhecia o suficiente para saber o efeito que aquelas palavras me surtiram. Não conseguia afirmar categoricamente qualquer coisa sobre mim mesmo, a não ser que eu era resoluto. Saí de Anyang com um firme propósito, ralei para um caralho para me manter enquanto sustentava minhas notas acima da média, perdi sono, relacionamentos, abri mão de meio mundo… não seria um mero capricho dela que me derrotaria. Se havia algum sentimento de desistência em mim, ele sumiu tão rápido quanto o café da minha xícara quando dei o último gole.
Ok, Chevalier. Agora virou um desafio pessoal.
Capítulo 2 - A Sombra
A vendedora estava mais cansada do que eu. conseguiu a proeza de provar todos os sapatos da loja e não gostar de nenhum. Nem me atrevi a olhar as plaquinhas com os preços, porque quando me aventurei na primeira espiada, dei um soluço e quase soltei um palavrão. Não sabia que um par de sapatos podia custar mais de mil dólares. Não sabia que Jimmy Choo fazia sapatos. E também não sabia quem era Jimmy Choo.
— Afivela pra mim? — me estendeu o pé e um sorriso falso, ao contrário dos cristais do salto, que pareciam bem legítimos.
— Sim, sua alteza. — resmunguei em coreano e ajoelhei, puxando a tira e afivelando no primeiro furinho.
— Muito apertado, sombra. — ela ralhou, manhosa, e empurrou o pé no meu peito. — E se for reclamar de mim, eu prefiro que seja em inglês.
— Como sabe que eu estava reclamando? — segurei o tornozelo dela, colocando o pé de volta no chão.
— Não sabia. — ela se levantou e me empurrou levemente com o joelho. — Você que acabou de me dizer.
Conforme o plano de me fazer desistir dela, me fez andar a Bleecker Street inteira carregando sacolas de todas as lojas em que ela entrou, empenhando-se o máximo possível no papel de riquinha fútil para me atormentar e me afugentar. Teria dado certo se eu não estivesse tão obstinado a escoltá-la. Não perdi um passo sequer dela, onde quer que ela pisasse, era seguida por mim logo atrás. Até enquanto ela se olhava no espelho enorme e dourado, eu estava lá fazendo sombra, e o rosto dela se torcendo não mentia: eu estava começando a irritá-la, só não tanto quanto descobrir que eu tinha invertido o joguinho dela.
— Espaço, por favor. — ela suspirou quando recuou e me encontrou como parede mais uma vez. — Aliás, por que você não espera lá fora, hein?
— Não posso. — rebati. — E se alguma coisa acontecer com você?
— O máximo que pode acontecer é eu ser presa por te acertar esse salto agulha na testa. — descalçou um dos pés, apoiando-se nos meus ombros, e chamou a vendedora. — Eu quero esse. Em todas as cores que você tiver.
Esbarramos mais uma vez e , já vermelha de raiva de mim, descontava o estresse num cartão de crédito black que eu só conhecia pela televisão na propaganda do banco. Perdi as contas das viagens que fiz até o carro para guardar as compras dela, e mesmo o porta-mala gigantesco da SUV (o singelo carrinho da empresa) estava ficando sem espaço para tanta coisa. Entramos em mais uma loja e eu nem me importava mais de ler os nomes ou saber o que vendiam, entre bolsas, roupas e joias, eu não fazia ideia do que mais poderia comprar, até que ficou bem difícil de ignorar o teor dos produtos ofertados no local da vez:
— O que você acha, sombra? — estendeu a menor calcinha que eu já tinha visto na minha vida bem na minha frente.
Ok.
Lá estava eu, um homem de 1,87m, paralisado no meio da loja da Victoria’s Secret.
O único homem no meio da loja da Victoria’s Secret.
— Hã... Olha... Não acho que seja apropriado eu estar aqui. — respondi, me dando conta de que todas as mulheres da loja estavam me olhando e dando um passo para trás pela primeira vez no dia. — Posso esperar você lá fora.
— E se alguma coisa acontecer comigo, hein? — ela devolveu, sarcástica, e balançou a calcinha minúscula na minha cara. — Aliás, segura essa pra mim, eu gostei.
Àquela altura, já sabia que tinha virado o placar do nosso jogo velado e meu estado de pânico aparente me denunciou vencido. Cada vendedora que nos abordava aumentava o meu desconforto e fazia questão de dizer que “não precisa de sacola, moça, o sombra segura”. Ela sorria triunfante enquanto me usava como cabide para empilhar peças de renda e de tule cada vez menores e mais... complexas? O último sutiã que ela pendurou no meu ombro tinha tantas tiras que eu fiquei me perguntando como ela vestiria aquilo. Ou como alguém tiraria dela...
Eu provavelmente acabaria rasgando.
Me repreendi mentalmente. Estar numa loja de lingerie estava fazendo meu cérebro entediado visualizar dentro de todas aquelas roupas. E fora delas também. Evitei as tangas fio dental, as cinta-ligas, as discretas caixas pretas de gel de massagem (que eu disse a mim mesmo que eram apenas de perfume) e meus olhos estavam desesperados por um alvo mais seguro, até que chegamos a uma das alas da loja cheia de flores e peças cor-de-rosa. Não tinham nada a ver com as que tinha escolhido, eram mais delicadas, com um estilo mais…
— Romântico. Que gracinha, sombra. Achei que você fosse um cara tipo vermelho e de oncinha. — disparou quando percebeu que um conjunto rosa claro e bem bonito me chamou atenção.
— E eu achei que você conhecesse outras cores além de preto… — ergui meu antebraço cheio de calcinhas.
— Não curto muito rosa, mas esse até que está bonitinho. — pegou o sutiã que eu estava olhando, analisando-o. — Você deveria levar para a sua namorada.
— Eu não tenho namorada. — respondi imediatamente. Por algum motivo, queria muito que soubesse disso.
— Desculpe. Namorado. — ela piscou. — Mas se for o cara do óculos, acho que não vai ficar muito bem nele...
— Seu avô tem razão, você é uma engraçadinha. Mas não vai funcionar, ok?
— O quê?
— Esse seu planinho maléfico de me irritar.
— Sem graça. É por isso que você não tem namorada. — provocou, ainda segurando o sutiã rosa. Ela testou a transparência contra a pele e eu quis desviar o olhar. Não consegui. O contorno das tatuagens contrastou com o tecido claro e fino e minha mente alçou vôo na hora.
— Oi! — mais uma vendedora nos encontrou e eu aterrissei. — Fiquem à vontade, muitas moças vêm aqui e trazem os namorados para ajudar nas escolhas.
— Ele não é meu namorado. Ele é só meu acompanhante. — arqueou uma sobrancelha.
— Oh. A senhorita quer dizer acompanhante, acompanhante? Do tipo… — a moça baixou a voz.
— Você sabe de que tipo, olha só pra ele. — apontou para mim, que fiquei sem entender. — Aluguei numa agência. Os asiáticos estão fazendo o maior sucesso, sabia?
O quê?!
— Perfeitamente, senhorita Chevalier. — a vendedora riu e me mediu de cima a baixo. — Não se preocupe, a privacidade dos nossos clientes é muito importante para nós da Victoria’s Secret. Aliás, nós temos um cômodo mais ao fundo só com produtos eróticos, posso levá-los até lá… — ela me olhou mais uma vez e com menos discrição.
— Eh... eu... ah... — minha língua presa travou por completo. Fui pego tão de surpresa que sequer consegui articular uma defesa, apenas assisti congelado de medo me exibir como garoto de programa.
— Ele não fala inglês. — sussurrou. — Mas com um corpão desses, quem se importa com o que ele diga, não é?
Queria encolher dentro do terno e sumir quando alisou meu abdômen travado de nervosismo. Suei frio, a vendedora não parava de morder o lábio e eu juro que ela tentou pegar na minha bunda enquanto andávamos pelos expositores. A gota d’água foi quando ela me perguntou baixinho quanto eu cobrava por noite. gargalhou, me assistindo derreter feito um sorvete embaixo do sol da Califórnia, e ao se recuperar da risada, resolveu me libertar:
— Você pode esperar lá fora, bonitão. Se continuar aqui, vai acabar sendo comido vivo. — cochichou no meu ouvido. Ela tinha um cheiro bom de gente rica. Estava impregnado na minha roupa por causa dos nossos tropeços acidentais e, agora, na pele do meu pescoço por causa daquela aproximação intencional.
Deixei a loja e busquei um pouco de ar longe do tumulto de mulheres, do trauma recente e de todas as imagens que minha cabeça me sugeriu ali, fazendo a única coisa que eu conseguia fazer quando tinha alguns minutos livre: tentar escrever meus trabalhos. Achei um café mais cara de classe média, com uma placa dizendo que aceitavam vale-refeição, e pedi um expresso. Não surtiu tanto efeito, o cansaço acumulado embaralhou as letras no teclado do celular, não conseguia me concentrar e, entre uma frase e outra, uma visão insistente da provando tudo o que ela tinha escolhido me pegava no susto e me arrancava suspiros. Talvez eu devesse voltar a ser segurança de um bar ou de uma academia. De qualquer lugar que me deixasse responsável por um corpo menos tentador.
— Que textão, hein? — outro susto. surgiu com mais sacolas. — Você está digitando um monte. Quem vai receber a declaração de amor?
— James Atkinson. — larguei o celular com o documento aberto sobre o colo, esfregando os olhos. — Estou escrevendo uma tese super romântica sobre Direito Constitucional pra ele.
— Tutores são exigentes. Também tenho um relacionamento sério com a minha. — sentou-se ao meu lado e pediu uma água com gás.
— O que você estuda? — tentei encobrir um bocejo e me ajeitei na cadeira a fim de despertar.
— Gêneros literários e preparação de texto. É o que eu quero fazer quando eu crescer, trabalhar como editora. — espreguiçou-se e relaxou o tronco na poltrona.
— Eu bem que preciso de um editor agora. — voltei a afundar no assento, espelhando o movimento dela sem querer. — Não sei como resolver esse parágrafo.
— Posso ver? — pediu, me deixando notoriamente confuso. — É, essa é a parte que não publicam sobre a Chevalier. Eu também sou meio nerdola. Agora me dá aqui. — ela pegou o celular que eu empurrei na direção dela.
Confesso que fiquei surpreso. E meio chateado comigo por ter feito um juízo tão raso da . Claro que havia muito mais sobre ela do que as postagens de Boo Seungkwan, e agora que ela tinha tocado no assunto, eu lembrei de ter lido uma resenha que ela escreveu para um livro que eu estava afim de ler. E que eu fiquei muito mais afim de ler depois da crítica dela. Acontece que me aporrinhar e ser resistente ao álcool não eram os únicos talentos de Chevalier.
— Você precisa transformar esse período em dois. — foi o feedback do primeiro parágrafo. — Está muito extenso e as ideias não se ligam. E é melhor conceituar essa ementa antes de exemplificá-la.
— Você entende de Direito? — perguntei, impressionado.
— Não. Mas eu entendo de textualidade. O que me permite meter meu nariz em qualquer coisa. — o indicador dela deslizou a tela e ela seguiu com a leitura. — Isso está bom, é substancial. Mas digitar pelo telefone em intervalos de minutos enquanto faz outra coisa não é muito bom para o fluxo de escrita.
— Bom, eu não tenho outra escolha a não ser fazer assim. — mirei analítica com a nuca recostada no encosto. Os lábios dela se moviam discretamente durante a leitura silenciosa e as sobrancelhas franziam algumas vezes. Aproveitei o rosto dela de pertinho como uma recompensa individual.
— Você precisa de um tempo para se dedicar somente a isso, Mingyu. — mantinha os olhos no visor e eu quis ignorar o quanto gostei de ouvir meu nome da boca dela pela primeira vez. O rosto dela iluminou-se e os olhos voltaram a aumentar quando ela se virou para mim, me olhando maliciosa. — Eu te ajudo se você parar de me seguir, meu avô nem precisa ficar sabendo. Você garante o seu salário e, de quebra, tempo para escrever. Que tal?
Piada.
— O quê? Não. — neguei com a boca e com a cabeça, para ser mais enfático. — Não posso receber por um trabalho que não estou fazendo. Além disso, seu avô confiou em mim para cuidar do bem mais precioso dele. — sorriu pequeno para essa parte, tímida. — Não importa o que você faça, eu vou continuar bem aqui atrás de você.
E aí ela me mostrou a língua. Revirou os olhos e me devolveu o celular.
— Claro que de todos os seguranças do mundo meu avô contratou justamente um aluno do Direito, cheio de ética. Você tem caráter demais para ser corruptível. — ela deu um gole na garrafa de vidro. — Mas, olha só, eu fiquei sozinha por uma hora e estou inteirinha. Dá pra me dar um pouquinho só mais de espaço, então?
Ela apoiou os braços na mesa, sorrindo sincero, e eu entendi a dimensão do pedido. Querendo ou não, eu era um estranho na cola dela. Era assustador, no entanto, como me fazia entregar os pontos facilmente. Era o primeiro dia. Primeiro dia e eu já estava disposto a abdicar alguns metros.
— Acho que eu posso ficar de olho em você um pouco mais de longe. — juntei o indicador e o polegar. — Só um pouquinho.
tomou minha mão e ampliou o espaço entre os meus dedos, rindo. Por mais que ela tivesse me apertado o peito, os braços e a barriga, foi só naquele momento que eu me senti tocado por ela. Verdadeiramente tocado por ela.
— Assim. Obrigada, sombra.
O apelidinho, no entanto, ainda me irritava um pouco. não conseguia decidir entre “sombra” e “babá”, parecendo ter uma predileção pelo primeiro. Quando deixei a boneca em casa sã e salva, voltei para o dormitório depois de um dia exigente, sentindo as fibras das coxas latejarem por andar tanto e os músculos dos braços reclamarem do peso das sacolas. Como se não bastasse o meu cansaço físico, eu ainda tinha que lidar com um Wonwoo estúpido que, pelo sorriso idiota que não se apagou quando eu entrei no dormitório reclamando feito um velho, tinha saído com a Marie Bee mais uma vez.
— Ô seu puto! — vociferei um palavrão em coreano, atirando uma almofada na cara dele junto com o grito. — Eu tô há uns 5 minutos te perguntando o que tem pra jantar!
Wonwoo apertou a almofada contra o corpo descamisado com uma cara ainda mais ridícula. Estava aéreo e não parava de mostrar os dentes. Aquela felicidade toda estava sendo construída às custas do meu martírio e eu quis matá-lo por estar todo contente enquanto eu estava exausto.
— Ah… É que eu não escuto bem sem meu óculos. — ele ensaiou responder. — O que foi mesmo que você falou?
— Seu arrombad-!
Esqueci de completar o xingamento porque apanhei outra almofada e corri pelo quarto perseguindo meu amigo como se fôssemos cão e gato. Só sentiria aquela relação em perfeito equilíbrio depois que eu o sufocasse até ele desbotar e ver a luz branca.
— Tem ideia do que eu estava fazendo até essa hora? — bradei quando alcancei Wonwoo e ele ergueu as mãos à altura do rosto, pedindo clemência. — Eu passei o dia de bobo da corte da rainha ! Andei igual a um camelo, fui confundido com um garoto de programa e ela ainda tentou me subornar!
— E deu certo? Ai! — ele se encolheu quando acertei um soco no braço venoso. — Ok, ok, olha, se está tão ruim, não vá mais. Eu explico pra Marie e você arruma outra coisa, você sempre arruma!
— Como é? Não! Não mesmo! Quer dizer… não… não é pra tanto. — busquei argumentos, mas a naquela lingerie rosa apareceu e empurrou todos. E o perfume dela, que subiu de repente numa memória olfativa, me bagunçou as ideias na cabeça.
— Hm… Entendi. — Wonwoo me analisou. — Que cor é a coleira que a colocou em você, hein? — ele perguntou, batendo nas pernas. — Vem, garoto! Dá a patinha! Ou você só faz truques pra sua nova dona?
Fervi de raiva. Como se um homem feito eu, do meu tamanho, fosse se dobrar todo às vontades da riscadinha. Nem pensar.
— Eu vou consertar essa tua miopia no tapa! — ameacei Wonwoo e tornamos a correr em círculos em volta do quarto.
— Afivela pra mim? — me estendeu o pé e um sorriso falso, ao contrário dos cristais do salto, que pareciam bem legítimos.
— Sim, sua alteza. — resmunguei em coreano e ajoelhei, puxando a tira e afivelando no primeiro furinho.
— Muito apertado, sombra. — ela ralhou, manhosa, e empurrou o pé no meu peito. — E se for reclamar de mim, eu prefiro que seja em inglês.
— Como sabe que eu estava reclamando? — segurei o tornozelo dela, colocando o pé de volta no chão.
— Não sabia. — ela se levantou e me empurrou levemente com o joelho. — Você que acabou de me dizer.
Conforme o plano de me fazer desistir dela, me fez andar a Bleecker Street inteira carregando sacolas de todas as lojas em que ela entrou, empenhando-se o máximo possível no papel de riquinha fútil para me atormentar e me afugentar. Teria dado certo se eu não estivesse tão obstinado a escoltá-la. Não perdi um passo sequer dela, onde quer que ela pisasse, era seguida por mim logo atrás. Até enquanto ela se olhava no espelho enorme e dourado, eu estava lá fazendo sombra, e o rosto dela se torcendo não mentia: eu estava começando a irritá-la, só não tanto quanto descobrir que eu tinha invertido o joguinho dela.
— Espaço, por favor. — ela suspirou quando recuou e me encontrou como parede mais uma vez. — Aliás, por que você não espera lá fora, hein?
— Não posso. — rebati. — E se alguma coisa acontecer com você?
— O máximo que pode acontecer é eu ser presa por te acertar esse salto agulha na testa. — descalçou um dos pés, apoiando-se nos meus ombros, e chamou a vendedora. — Eu quero esse. Em todas as cores que você tiver.
Esbarramos mais uma vez e , já vermelha de raiva de mim, descontava o estresse num cartão de crédito black que eu só conhecia pela televisão na propaganda do banco. Perdi as contas das viagens que fiz até o carro para guardar as compras dela, e mesmo o porta-mala gigantesco da SUV (o singelo carrinho da empresa) estava ficando sem espaço para tanta coisa. Entramos em mais uma loja e eu nem me importava mais de ler os nomes ou saber o que vendiam, entre bolsas, roupas e joias, eu não fazia ideia do que mais poderia comprar, até que ficou bem difícil de ignorar o teor dos produtos ofertados no local da vez:
— O que você acha, sombra? — estendeu a menor calcinha que eu já tinha visto na minha vida bem na minha frente.
Ok.
Lá estava eu, um homem de 1,87m, paralisado no meio da loja da Victoria’s Secret.
O único homem no meio da loja da Victoria’s Secret.
— Hã... Olha... Não acho que seja apropriado eu estar aqui. — respondi, me dando conta de que todas as mulheres da loja estavam me olhando e dando um passo para trás pela primeira vez no dia. — Posso esperar você lá fora.
— E se alguma coisa acontecer comigo, hein? — ela devolveu, sarcástica, e balançou a calcinha minúscula na minha cara. — Aliás, segura essa pra mim, eu gostei.
Àquela altura, já sabia que tinha virado o placar do nosso jogo velado e meu estado de pânico aparente me denunciou vencido. Cada vendedora que nos abordava aumentava o meu desconforto e fazia questão de dizer que “não precisa de sacola, moça, o sombra segura”. Ela sorria triunfante enquanto me usava como cabide para empilhar peças de renda e de tule cada vez menores e mais... complexas? O último sutiã que ela pendurou no meu ombro tinha tantas tiras que eu fiquei me perguntando como ela vestiria aquilo. Ou como alguém tiraria dela...
Eu provavelmente acabaria rasgando.
Me repreendi mentalmente. Estar numa loja de lingerie estava fazendo meu cérebro entediado visualizar dentro de todas aquelas roupas. E fora delas também. Evitei as tangas fio dental, as cinta-ligas, as discretas caixas pretas de gel de massagem (que eu disse a mim mesmo que eram apenas de perfume) e meus olhos estavam desesperados por um alvo mais seguro, até que chegamos a uma das alas da loja cheia de flores e peças cor-de-rosa. Não tinham nada a ver com as que tinha escolhido, eram mais delicadas, com um estilo mais…
— Romântico. Que gracinha, sombra. Achei que você fosse um cara tipo vermelho e de oncinha. — disparou quando percebeu que um conjunto rosa claro e bem bonito me chamou atenção.
— E eu achei que você conhecesse outras cores além de preto… — ergui meu antebraço cheio de calcinhas.
— Não curto muito rosa, mas esse até que está bonitinho. — pegou o sutiã que eu estava olhando, analisando-o. — Você deveria levar para a sua namorada.
— Eu não tenho namorada. — respondi imediatamente. Por algum motivo, queria muito que soubesse disso.
— Desculpe. Namorado. — ela piscou. — Mas se for o cara do óculos, acho que não vai ficar muito bem nele...
— Seu avô tem razão, você é uma engraçadinha. Mas não vai funcionar, ok?
— O quê?
— Esse seu planinho maléfico de me irritar.
— Sem graça. É por isso que você não tem namorada. — provocou, ainda segurando o sutiã rosa. Ela testou a transparência contra a pele e eu quis desviar o olhar. Não consegui. O contorno das tatuagens contrastou com o tecido claro e fino e minha mente alçou vôo na hora.
— Oi! — mais uma vendedora nos encontrou e eu aterrissei. — Fiquem à vontade, muitas moças vêm aqui e trazem os namorados para ajudar nas escolhas.
— Ele não é meu namorado. Ele é só meu acompanhante. — arqueou uma sobrancelha.
— Oh. A senhorita quer dizer acompanhante, acompanhante? Do tipo… — a moça baixou a voz.
— Você sabe de que tipo, olha só pra ele. — apontou para mim, que fiquei sem entender. — Aluguei numa agência. Os asiáticos estão fazendo o maior sucesso, sabia?
O quê?!
— Perfeitamente, senhorita Chevalier. — a vendedora riu e me mediu de cima a baixo. — Não se preocupe, a privacidade dos nossos clientes é muito importante para nós da Victoria’s Secret. Aliás, nós temos um cômodo mais ao fundo só com produtos eróticos, posso levá-los até lá… — ela me olhou mais uma vez e com menos discrição.
— Eh... eu... ah... — minha língua presa travou por completo. Fui pego tão de surpresa que sequer consegui articular uma defesa, apenas assisti congelado de medo me exibir como garoto de programa.
— Ele não fala inglês. — sussurrou. — Mas com um corpão desses, quem se importa com o que ele diga, não é?
Queria encolher dentro do terno e sumir quando alisou meu abdômen travado de nervosismo. Suei frio, a vendedora não parava de morder o lábio e eu juro que ela tentou pegar na minha bunda enquanto andávamos pelos expositores. A gota d’água foi quando ela me perguntou baixinho quanto eu cobrava por noite. gargalhou, me assistindo derreter feito um sorvete embaixo do sol da Califórnia, e ao se recuperar da risada, resolveu me libertar:
— Você pode esperar lá fora, bonitão. Se continuar aqui, vai acabar sendo comido vivo. — cochichou no meu ouvido. Ela tinha um cheiro bom de gente rica. Estava impregnado na minha roupa por causa dos nossos tropeços acidentais e, agora, na pele do meu pescoço por causa daquela aproximação intencional.
Deixei a loja e busquei um pouco de ar longe do tumulto de mulheres, do trauma recente e de todas as imagens que minha cabeça me sugeriu ali, fazendo a única coisa que eu conseguia fazer quando tinha alguns minutos livre: tentar escrever meus trabalhos. Achei um café mais cara de classe média, com uma placa dizendo que aceitavam vale-refeição, e pedi um expresso. Não surtiu tanto efeito, o cansaço acumulado embaralhou as letras no teclado do celular, não conseguia me concentrar e, entre uma frase e outra, uma visão insistente da provando tudo o que ela tinha escolhido me pegava no susto e me arrancava suspiros. Talvez eu devesse voltar a ser segurança de um bar ou de uma academia. De qualquer lugar que me deixasse responsável por um corpo menos tentador.
— Que textão, hein? — outro susto. surgiu com mais sacolas. — Você está digitando um monte. Quem vai receber a declaração de amor?
— James Atkinson. — larguei o celular com o documento aberto sobre o colo, esfregando os olhos. — Estou escrevendo uma tese super romântica sobre Direito Constitucional pra ele.
— Tutores são exigentes. Também tenho um relacionamento sério com a minha. — sentou-se ao meu lado e pediu uma água com gás.
— O que você estuda? — tentei encobrir um bocejo e me ajeitei na cadeira a fim de despertar.
— Gêneros literários e preparação de texto. É o que eu quero fazer quando eu crescer, trabalhar como editora. — espreguiçou-se e relaxou o tronco na poltrona.
— Eu bem que preciso de um editor agora. — voltei a afundar no assento, espelhando o movimento dela sem querer. — Não sei como resolver esse parágrafo.
— Posso ver? — pediu, me deixando notoriamente confuso. — É, essa é a parte que não publicam sobre a Chevalier. Eu também sou meio nerdola. Agora me dá aqui. — ela pegou o celular que eu empurrei na direção dela.
Confesso que fiquei surpreso. E meio chateado comigo por ter feito um juízo tão raso da . Claro que havia muito mais sobre ela do que as postagens de Boo Seungkwan, e agora que ela tinha tocado no assunto, eu lembrei de ter lido uma resenha que ela escreveu para um livro que eu estava afim de ler. E que eu fiquei muito mais afim de ler depois da crítica dela. Acontece que me aporrinhar e ser resistente ao álcool não eram os únicos talentos de Chevalier.
— Você precisa transformar esse período em dois. — foi o feedback do primeiro parágrafo. — Está muito extenso e as ideias não se ligam. E é melhor conceituar essa ementa antes de exemplificá-la.
— Você entende de Direito? — perguntei, impressionado.
— Não. Mas eu entendo de textualidade. O que me permite meter meu nariz em qualquer coisa. — o indicador dela deslizou a tela e ela seguiu com a leitura. — Isso está bom, é substancial. Mas digitar pelo telefone em intervalos de minutos enquanto faz outra coisa não é muito bom para o fluxo de escrita.
— Bom, eu não tenho outra escolha a não ser fazer assim. — mirei analítica com a nuca recostada no encosto. Os lábios dela se moviam discretamente durante a leitura silenciosa e as sobrancelhas franziam algumas vezes. Aproveitei o rosto dela de pertinho como uma recompensa individual.
— Você precisa de um tempo para se dedicar somente a isso, Mingyu. — mantinha os olhos no visor e eu quis ignorar o quanto gostei de ouvir meu nome da boca dela pela primeira vez. O rosto dela iluminou-se e os olhos voltaram a aumentar quando ela se virou para mim, me olhando maliciosa. — Eu te ajudo se você parar de me seguir, meu avô nem precisa ficar sabendo. Você garante o seu salário e, de quebra, tempo para escrever. Que tal?
Piada.
— O quê? Não. — neguei com a boca e com a cabeça, para ser mais enfático. — Não posso receber por um trabalho que não estou fazendo. Além disso, seu avô confiou em mim para cuidar do bem mais precioso dele. — sorriu pequeno para essa parte, tímida. — Não importa o que você faça, eu vou continuar bem aqui atrás de você.
E aí ela me mostrou a língua. Revirou os olhos e me devolveu o celular.
— Claro que de todos os seguranças do mundo meu avô contratou justamente um aluno do Direito, cheio de ética. Você tem caráter demais para ser corruptível. — ela deu um gole na garrafa de vidro. — Mas, olha só, eu fiquei sozinha por uma hora e estou inteirinha. Dá pra me dar um pouquinho só mais de espaço, então?
Ela apoiou os braços na mesa, sorrindo sincero, e eu entendi a dimensão do pedido. Querendo ou não, eu era um estranho na cola dela. Era assustador, no entanto, como me fazia entregar os pontos facilmente. Era o primeiro dia. Primeiro dia e eu já estava disposto a abdicar alguns metros.
— Acho que eu posso ficar de olho em você um pouco mais de longe. — juntei o indicador e o polegar. — Só um pouquinho.
tomou minha mão e ampliou o espaço entre os meus dedos, rindo. Por mais que ela tivesse me apertado o peito, os braços e a barriga, foi só naquele momento que eu me senti tocado por ela. Verdadeiramente tocado por ela.
— Assim. Obrigada, sombra.
O apelidinho, no entanto, ainda me irritava um pouco. não conseguia decidir entre “sombra” e “babá”, parecendo ter uma predileção pelo primeiro. Quando deixei a boneca em casa sã e salva, voltei para o dormitório depois de um dia exigente, sentindo as fibras das coxas latejarem por andar tanto e os músculos dos braços reclamarem do peso das sacolas. Como se não bastasse o meu cansaço físico, eu ainda tinha que lidar com um Wonwoo estúpido que, pelo sorriso idiota que não se apagou quando eu entrei no dormitório reclamando feito um velho, tinha saído com a Marie Bee mais uma vez.
— Ô seu puto! — vociferei um palavrão em coreano, atirando uma almofada na cara dele junto com o grito. — Eu tô há uns 5 minutos te perguntando o que tem pra jantar!
Wonwoo apertou a almofada contra o corpo descamisado com uma cara ainda mais ridícula. Estava aéreo e não parava de mostrar os dentes. Aquela felicidade toda estava sendo construída às custas do meu martírio e eu quis matá-lo por estar todo contente enquanto eu estava exausto.
— Ah… É que eu não escuto bem sem meu óculos. — ele ensaiou responder. — O que foi mesmo que você falou?
— Seu arrombad-!
Esqueci de completar o xingamento porque apanhei outra almofada e corri pelo quarto perseguindo meu amigo como se fôssemos cão e gato. Só sentiria aquela relação em perfeito equilíbrio depois que eu o sufocasse até ele desbotar e ver a luz branca.
— Tem ideia do que eu estava fazendo até essa hora? — bradei quando alcancei Wonwoo e ele ergueu as mãos à altura do rosto, pedindo clemência. — Eu passei o dia de bobo da corte da rainha ! Andei igual a um camelo, fui confundido com um garoto de programa e ela ainda tentou me subornar!
— E deu certo? Ai! — ele se encolheu quando acertei um soco no braço venoso. — Ok, ok, olha, se está tão ruim, não vá mais. Eu explico pra Marie e você arruma outra coisa, você sempre arruma!
— Como é? Não! Não mesmo! Quer dizer… não… não é pra tanto. — busquei argumentos, mas a naquela lingerie rosa apareceu e empurrou todos. E o perfume dela, que subiu de repente numa memória olfativa, me bagunçou as ideias na cabeça.
— Hm… Entendi. — Wonwoo me analisou. — Que cor é a coleira que a colocou em você, hein? — ele perguntou, batendo nas pernas. — Vem, garoto! Dá a patinha! Ou você só faz truques pra sua nova dona?
Fervi de raiva. Como se um homem feito eu, do meu tamanho, fosse se dobrar todo às vontades da riscadinha. Nem pensar.
— Eu vou consertar essa tua miopia no tapa! — ameacei Wonwoo e tornamos a correr em círculos em volta do quarto.
Capítulo 3 - A Luz
Depois de um mês de trabalho, a constatação fatal era de que seguir Chevalier não era uma tarefa fácil: a menina tinha um pique inexplicável e uma admirável tolerância ao álcool. De todos os lugares que eu era forçado a frequentar por causa dela, os clubes noturnos eram, de longe, os meus menos favoritos. A música era sempre alta e pulsava num ritmo insuportável que me deixava zonzo, e eu não podia fazer outra coisa se não assisti-la virar copos e mais copos e dançar a noite inteira perto do Dokyeom. Sempre muito perto do Dokyeom.
E essa parte do trabalho, eu odiava admitir, era a que mais incomodava. O famoso capitão DK, com seu sorriso incansável, sua BMW do ano, seu império farmacêutico como herança e sua… ?
Não. A ele ainda não tinha. Pelo menos eu gostava de acreditar que não, só porque era satisfatório achar que ele não tinha tudo.
É óbvio que eu não sabia muita coisa sobre o status de relacionamento da . Com a agenda social agitada da minha protegida, não tinha havido tempo ou abertura para uma conversa sobre parceiros românticos. Sendo apenas a sombra dela, nossas interações se resumiam a trivialidades da Saint Peter, à ajuda que ela me ofereceu com o meu artigo e ao empenho dela em implicar comigo. E, naquela noite em particular, a um pequeno barraco de família: Alfred queria que deixasse a monitoria dela na universidade para se juntar a ele na Chevalier Industries, mas estava bem claro que não era isso que ela queria fazer.
Foi quando decidiu sair e descontar tudo na pista de dança, nas batidas de vodca e em mim. Ela sumiu da minha vista de propósito mais de uma vez, convenceu as amigas a me distrair dela e fez questão de interromper quando eu tentei trocar uma ou duas palavras com Dokyeom, pendurando-se no pescoço dele — o cara, obviamente, preferia ela a um marmanjo do meu tamanho amarrado num terno. Eu me sentia desconfortável quando ele estava por perto. E meio que inútil. Por que ela precisava de mim se tinha um atacante imenso grudado nela?
Porque sim, ele andava grudado nela. Eu tentando fazer meu trabalho era irritante, uma sombra, mas o DK roçando o maldito nariz perfeitamente afilado na nuca da não a incomodava nem um pouco.
— Algo doce para alguém doce. — Dokyeom encheu uma taça para assim que o espumante rosé que ele pediu chegou na mesa do camarote, beijando os dedos dela ao passar o vidro. — Servido, Kim? — ele me ofereceu em seguida.
— A sombra não bebe enquanto trabalha. — respondeu por mim. — Eu tenho um segurança incorruptível, Seo.
Seo? Ela chamava o DK de Seo?
— Então somos dois. Eu também não estou bebendo hoje. — Dokyeom avisou, tentando novamente conversar comigo.
— Promessa pro time ganhar? — arrisquei.
— Não preciso disso. — ele riu, alisando o joelho da . — Só estou de motorista, tenho que buscar uma encomenda no aeroporto logo mais.
— Verdade! — bebeu da taça. — Seus pais estão chegando da Coreia hoje, não é? Faz tanto tempo que eu não os vejo, Seo!
Respirei fundo, impaciente com o “nhe nhe nhe”. Seo pra cá, Seo pra lá… Que chatice.
— Eles vão adorar te ver. — DK passou o braço pelo encosto do estofado, puxando para mais perto. — Você pode vir comigo se quiser, aposto que o Mingyu está louco pra se livrar da gente e ir pra casa. — ele levantou os olhos para mim. — Não é, Mingyu?
Passei a língua pelos dentes, sem entender ao certo porque aquela sugestão tinha me irritado tanto. É claro que eu queria ir para casa, mas a ideia de deixar os dois sozinhos era incômoda. E suspeita. A história toda de ir buscar os pais poderia ser um pretexto para me dar a volta, me fazer chegar à mansão dos Chevalier sem a e ser demitido.
— O Mingyu está exausto, mas seus pais também devem estar depois de tantas horas de vôo. Eu vou visitá-los assim que eles se acomodarem de volta. — a própria dispensou a oferta, levantou-se e estendeu a mão para Dokyeom. — Dança a última comigo?
O dono do maldito nariz afilado atendeu prontamente, sendo guiado pela para fora do camarote e indo para o meio da pista de dança. Eu até que gostava daquela música, mas como o convite não foi para mim, me conformei com mais um suspiro e com meu dever de vigiá-la na área em que ela me delimitou, ali mesmo, da parte de cima da boate. A visão panorâmica facilitava, dava para ver o pontinho tatuado que a era no meio da pequena aglomeração, atraindo para si vários olhares, inclusive o de um cara estranho que a rondava desde que chegamos e só não tinha a abordado ainda por causa do atacante bloqueando o caminho. Ao menos para alguma coisa o DK servia, mas meu sexto sentido me avisou que deveria marcar a fisionomia do sujeito, só para garantir.
A música acabou e Dokyeom checou o relógio enorme, lamentando-se por ter que ir embora. apenas abriu os braços, pedindo por um abraço, e eu senti um calor estranho e a garganta fechar quando os lábios deles se tocaram minimamente no beijinho de despedida. O sortudo sorriu largo com o selinho acidental. Ele era todo sorrisos para ela, sempre.
Mas aquilo não era problema meu, certo?
Meu problema era garantir a integridade física da , independente das bocas que ela poderia ou não estar beijando. Eu tinha que mantê-la em segurança e levá-la de volta inteirinha, ainda que adormecida no banco de trás, o que acontecia quase todas as vezes. Já tinha até uma almofada e um cobertor guardados embaixo do banco da SUV, embora o cobertor fosse muito mais para mim do que para ela. Acontece que eu precisava embrulhar a igual a um bolinho de arroz antes de carregá-la nos braços por causa de um decote revelador demais ou de uma saia de um palmo de comprimento, coisas que ela gostava de usar e que dificultavam o meu trabalho, porque vários idiotas não sabiam diferenciar roupas curtas de consentimento.
Era o caso daquele idiota em particular que não parava de olhar para ela. Eu não podia impedir que olhassem para uma mulher bonita, mas eu podia (e devia) impedir que a importunassem. Travei a mandíbula, tenso, e resolvi descer do camarote para monitorar melhor a situação. estava um pouco mais distante do seu grupo de amigos, com o corpo quente remexendo dentro do jeans ao som de uma batida alucinante. Nas mãos, agora, um copo translúcido e suado de gelo e álcool, que ela bebia despreocupadamente e abandonava de vez em quando em cima do balcão do bar.
— Primeira regra, . — murmurei para mim mesmo, apertando os olhos por causa das luzes piscando e chegando mais perto. — Nunca tire os olhos do seu copo.
Parecia meio neurótico repetir e levar tão a sério o conselho que minha mãe me dava quando eu, na minha fase rebelde dos 15 anos, comecei a andar pelas festas de Itaewon, mas minha intuição estava certa. O babaca se esgueirou pelo balcão e despejou alguma coisa dentro do copo da , fazendo o líquido borbulhar por um instante e rapidamente voltar ao normal.
sequer se deu conta da efervescência da bebida porque ele não perdeu tempo em enrolá-la num papo mole. Meu sangue gelou quando a vi procurar pelo copo, fazendo menção de levá-lo à boca, e eu simplesmente arranquei, empurrando as pessoas para tirá-las do meu caminho. Evitei o gole bruscamente quando a alcancei, tomando o vidro das mãos dela e derramando mais da metade do conteúdo, movido puramente pelo instinto de defendê-la. O que quer que estivesse no copo, agora, cobria a camiseta decotada, que grudou no corpo dela.
— Mingyu! — me repreendeu, atônita e molhada.
— Que que é isso, cara? — o tarado teve a ousadia de se interpor entre nós, pegando pelo braço.
— Larga ela. — ordenei entre dentes, avançando um passo.
— Ou então o que, seu China? — ele olhou meu terno e deduziu que eu era o segurança dela. — Você vai me prender, é?
— Não. Mas se você encostar mais um dedo nela, eu é que vou preso por matar você. — ameacei, firme, enquanto os olhos da ficavam enormes. — Agora larga. — repeti, sentindo uma veia me saltar no pescoço.
O tarado colocou as mãos para cima e se retirou resmungando, disparando outras ofensas para as quais eu não dei ouvidos. Segui ele com o olhar até o guichê do caixa, onde ele pagou a comanda com pressa e cheio de desconfiança. Todas as páginas que eu estudei sobre réu primário me pularam à cabeça e eu julguei que era uma boa causa perdê-lo caso eu socasse aquele covarde até fazê-lo implorar pela mamãe, mas deixar uma dura denúncia com a segurança da boate, com riqueza de detalhes da cara do filho da puta, teria que ser suficiente.
— Que raios te deu, hein, sombra? Eu nunca te vi desse jeito! — reclamou meu acesso de raiva, apontando o tecido encharcado. — Isso tudo porque um cara me cantou?
— Isso tudo porque essa “cantada” poderia ter te custado uma noite no hospital. — cheirei o copo, tentando discernir alguma substância. — Ou coisa muito pior, se eu não estivesse aqui.
— Do que você está falando?
— Que aquele imbecil adulterou a sua bebida. — atirei o que sobrou para longe. — Quando você deixou seu copo no balcão, lembra?
engoliu em seco, olhando trepidante ao redor. Quis sustentar a pose de mulher indefensável, mas logo se deu conta da gravidade da situação, e não só se deu conta, como também pressionou as mãos trêmulas contra o estômago, nauseada e assustada. Os olhos castanhos se encheram de água, quase choraram, e naquele momento eu percebi que ver a derramar uma lágrima sequer poderia ser a minha maior fraqueza.
— Eu… Eu nem notei. Eu não notei nada! — ela confessou com a voz embargando. — Meu Deus, Mingyu! Se você não estivesse aqui…
— Mas eu tô. — cortei, sem deixar que a imaginação dela sugerisse alguma atrocidade, e apertei os ombros dela. — Eu tô aqui e eu não vou deixar nada de ruim acontecer com você.
Minha resposta foi um abraço. Forte, grato e sincero. agarrou minha cintura e levou uns bons minutos para me soltar do enlace que eu desejava que tivesse acontecido em outro contexto. Segurei a cabeça dela contra meu peito, resistindo ao impulso de beijar o topo (o topo cheirava a xampu de baunilha), e recorri a uma técnica infantil para acalmá-la:
— O que foi isso? — ela perguntou, mais calma e com vontade de rir quando eu comecei a deslizar o dedo mindinho pelo nariz dela.
— Minha mãe fazia isso comigo e com a minha irmã quando éramos bebês. — expliquei, aliviado por vê-la voltando a ter cor. — Ela dizia que curava o dodói. E que dava sono.
— Eu não sou um bebê. — protestou, me socando de leve.
— Mas funcionou, não funcionou? — encerramos o abraço. — Você quer ir pra casa agora?
— Não. — ela respirou fundo, encostando-se no bar para pedir uma garrafa de água e a conta. — Ainda não, por favor. Meu avô está chateado, eu não quero lidar com isso agora.
Havia muitas maneiras de gerir um conflito: enfrentamento, negação, mediação… gerenciava os dela com distrações e fuga. Analisando mais de perto, era fácil entender que as festas e todo o barulho dos quais ela se cercava eram um meio de silenciar a perda dos pais e os desencontros com o avô, que ainda resistia à escolha de carreira dela. Acontece que gente rica também tinha lá seus problemas e eu sentia uma certa empatia por esse ato de coragem que foi impor sua vontade a Alfred, afinal de contas, eu também precisei contrariar minha família para seguir meu sonho profissional.
Escoltar a num after party, no entanto, não fazia bem parte desse meu sonho profissional e eu arfei, implorando internamente por uma intervenção divina que fizesse o dia clarear o mais rápido possível. Mas se nem o susto da quase dopagem foi suficiente para fazê-la encerrar a noite, minhas preces certamente também não seriam.
— Você não quer voltar pra casa, ok. — aceitei a derrota. — Mas você não pode ficar assim, . Sabe-se lá o que aquele cara colocou no seu copo. — desgrudei a camiseta úmida da barriga dela e descobri mais uma tatuagem revelada pelo efeito do líquido. — Seja o que for, não deve ser bom que esteja em contato com a sua pele.
— Sendo bom ou não, eu não tenho outra roupa. — esfregou as têmporas e pegou alguns guardanapos para amenizar o estrago, sem sucesso.
— Eu tenho uma camisa no carro. — sugeri, lembrando da muda de roupa na minha mochila. — Sou bem mais alto que você, mas deve servir.
— Ótimo. — sorriu, já pronta para o próximo destino. — Minha última lembrança de hoje não vai ser esse incidente. Vamos.
Ela deixou várias notas altas dentro da carta da conta, sem conferir o preço ou esperar por troco, e começou a caminhar na frente. Segui os passos dela, cansado e, ao mesmo tempo, certo de que eu estava onde deveria estar. Era, de fato, a minha agridoce missão. me desafiava o tempo todo, mas estar com ela era estimulante. Me mantinha alerta e não me dava descanso aos olhos, tampouco aos outros sentidos. Ela era teimosa, atrevida, tinha uma resposta ácida para tudo que eu dizia e eu podia jurar que não aguentaria nem uma semana naquela furada em que Wonwoo tinha me metido, mas mesmo diante das constantes tentativas dela de fazer da minha vida um inferno, algo me impedia ficar longe dela. Ela estava certa, afinal. Eu era uma sombra.
Chegamos ao estacionamento e eu abri a mala do carro, já revirando minha mochila, aflito com a possibilidade de puxar a peça errada na muda de roupas socada lá dentro e acabar vendo as minhas cuecas. Por sorte, logo abaixo da necessaire com meu perfume e uma escova de dentes, lá estava uma camiseta de futebol limpinha e pronta para uso.
— Aqui, sua alteza. — joguei a camisa que pegou com uma careta.
— Você quer que eu passe o resto da noite numa camisa dos Giants? — ela me jogou a camisa de volta com desprezo.
— E que diferença isso faz? — apanhei a camisa no ar.
— Que diferença isso faz? — ela bufou indignada. — Eu torço pelos Jets! Eu e meu avô acompanhamos praticamente desde que eu nasci!
— Então você já viveu 22 anos e não deu tempo de perceber que os Jets são péssimos? — rebati um tanto surpreso. Achava que os únicos interesses da , além da literatura, eram farrear e me tirar do sério, agora com mais um item para a lista: torcer para o time rival.
— Você tem algum outro argumento além de "os Jets só têm um único título"? — ela respondeu com tédio na voz.
— Hã... sim, que tal eu começar com aquela linha de defesa patética? Até você conseguiria furar o bloqueio do seu time.
— Não se atreva! — me apontou o dedo na cara e o rosto começou a mudar de cor. Era divertido. — Vai pensando em outra coisa, porque eu prefiro ficar doce de vodca com limão a colocar isso no meu corpo.
Ok. Aquela era uma combinação de encher a boca: vodca, açúcar e... .
Levei um tempo para dissipar o pensamento intruso que crescia na minha mente e convencer meu cérebro — e minha língua formigando — que não iríamos prensar Chevalier no capô do carro e lambê-la de cima a baixo ali mesmo. O máximo que teríamos era o perfume dela impresso na camisa social de botões que eu estava usando e cogitando ceder para ela.
— Tá. — deixei vencer de novo. — Eu visto a dos Giants e você fica com essa aqui.
Comecei a tirar o paletó, aliviado por me livrar daquele excesso de pano, e esperei a reação de , que permaneceu imóvel. Quando ela enfim entendeu que eu não me trocaria na frente dela, ela perguntou, incrédula:
— Sério? Você quer que eu vire de costas?
— Claro, ué. — guardei o paletó no porta-malas. — Ou você prefere me ver pelado?
— Pelado. — ela repetiu com deboche. — É só uma camisa. Tira logo.
— Nossa, quanta pressa. — provoquei. — Ficou curiosa? — abri os dois primeiros botões e o sorriso, enquanto os olhos de vidraram e ela ganhava um rubor.
Dois botões e quase dava para ouvir o coração dela batendo de onde eu estava. Interessante.
— Eu tô esperando. — girei o indicador no ar, demonstrando o movimento.
— Você é tão tímido. É a sua primeira vez? — desdenhou e virou-se de costas.
— Só tô tentando não te deixar constrangida. — tirei os botões das casas habilmente e livrei meus braços da peça.
— Não se preocupe, já me explicaram que o corpo dos meninos é diferente do das meninas. — zombou e eu me aproximei dela, estendendo a camisa ainda morna de mim. — Não tem nada aí que eu já não tenha vis-
A frase ficou incompleta no ar porque não fez questão alguma de disfarçar o queixo caído quando se virou. Sustentei a distância mínima entre nós, admitindo vaidade ao vê-la atiçada pelo meu corpo seminu diante dela, mesmo sem encostá-la. Para alguém que estava sempre carregada com alfinetadas prontas, ela demorou a encontrar munição daquela vez, e eu dei uma pequena amaciada no meu ego ao me permitir ser admirado. Ao me permitir ser o motivo da confusão dela. Do atraso que ela deu na respiração. Da mordida sutil que ela deu no lábio inferior.
“Nada que eu já não tenha visto”, não é?
— Se você continuar me secando assim, eu vou te denunciar por assédio sexual. — cocei o peito para testar se ela acompanhava. E ela acompanhou.
— Por que você não tira uma folga, hein? — ela se sacudiu, acordando.
Ri fraco para a réplica abusada de costume e, tão rápido quanto as respostas malcriadas dela, meu coração veio parar na garganta quando simplesmente enganchou os dedos na barra da própria blusa e puxou tudo para cima sem qualquer pudor ou aviso.
E veio a constatação do inevitável: eu me sentia fatalmente atraído por ela.
— Ficou bom, não foi? — ela arrumou a alça de um familiar sutiã rosa e ajeitou o busto farto. — Lembra dele? Acabei comprando. Você tem ótimo gosto.
Cerrei os olhos com força, esperando que sumisse. Eu só podia estar sonhando. Sonhando ou enlouquecendo, porque aquilo tinha me concedido a ousadia de pensar que, se ela vestiu uma peça que sabia que eu tinha gostado, é porque queria que eu visse. Porque queria que eu soubesse. Ela não iria tão longe por uma mera provocação. Iria?
— Por Deus, . — virei de costas, me abraçando e apertando o ombro, apreensivo. Na calça social que eu estava vestido, não ia ter como esconder se meu amigo acordasse e resolvesse espreitar também. Aí era demissão por justa causa.
— Você quer parar de fazer um grande caso disso? — procurou a camisa na minha mão e eu me fechei num casulo. Qualquer toque seria perigoso demais. — Faz de conta que é um biquíni, puritano. Ou vai me dizer que você nunca viu as partes especiais de uma mulher antes? — sussurrou no meu ouvido num tom dramático, caçoando de mim e arranhando levemente as minhas costas expostas.
Pulei para frente e me enfiei na blusa dos Giants, tentando visualizar todos os jogadores grosseiros, cheios de hematomas horríveis e sujos de terra para impedir meu corpo de reagir àquele ataque afiado e gostoso. Passei o cabelo para trás repetidamente, ouvindo a risada de ecoar:
— Ah, Kim Mingyu. Você só tem tamanho. Pode descongelar agora, tá? Estou decente. — ela avisou enquanto dobrava os punhos da camisa no antebraço.
— Pra onde agora? — perguntei, aturdido.
— Você quem sabe. Qualquer lugar menos a minha casa. — ela suspirou.
— Você tá com fome? — uma ideia remexeu na minha cabeça. — Conheço um lugar aqui perto, não é cheio de frescuras como os locais que você frequenta, mas...
— Ah, claro. — me interrompeu. — Eu que sou cheia de frescuras. Disse o molenga que desmontou com um arranhão.
— Você entendeu. — minha espinha eriçou novamente só com a lembrança.
— Eu não ligo pra isso, palhaço. E só por causa desse seu comentário, eu vou te fazer pagar a conta. — ela resmungou, entrando no carro.
Não foi uma boa ideia deixar devorar um hambúrguer enorme, meter a mão nas minhas fritas e tomar o milk-shake gelado rápido demais, causando uma dor de cabeça de sorvete. Depois de comer, ela estava 100% recarregada e com uma injeção especial de ânimo por termos assistido acidentalmente a um jogo dos Giants na lanchonete em que estávamos. E os Giants terem perdido.
— Vamos dar uma caminhada no parque. — sugeri, deixando o dinheiro em cima da mesa. — Preciso cansar você pra ver se você dorme no carro e me dá um pouco de sossego.
— Infelizmente pra você, eu não estou com sono. Diferente do zagueiro do seu time, que dormiu em todas as defesas.
— Só vai andando que eu tô bem atrás de você, tá? — rebati, divertido.
No entanto, andamos lado a lado daquela vez, de forma que empurrava o corpo pequeno e riscado contra mim toda vez que eu falava algo que a irritava, mas me chamando pelo nome em vez de babá ou sombra. Mingyu. Ficava bonito da boca dela. Tudo ficava bonito da boca dela, até a risada por causa da minha língua presa. A noite caía amena e não teríamos notado as horas passando se o sol não desse os primeiros sinais de que nasceria, deitando um pouco de ouro no horizonte. quis parar para observar, sentando-se no chão e me convidando a fazer o mesmo. Obedeci, enquanto ela repousava a cabeça nos joelhos e batia os cílios devagarinho, ansiosa para a primeira brisa da manhã beijá-la.
— Aurora… — ela balbuciou e eu franzi as sobrancelhas. — Aurora é a primeira manifestação de qualquer coisa. O nascer do sol é uma aurora. É minha hora favorita do dia.
Recebi a confissão dela em silêncio, cuidando em guardar aquela informação como uma flor dentro de um livro, como um segredo num diário, tão íntima e especial foi a maneira como ela fez soar. Porém, minha resignação solene foi forçada a acabar grosseiramente quando um toque de chamada de vídeo ecoou.
— Desculpa. — pedi. — É a omma. Eu tenho que atender se não ela vem nadando até aqui. — riu e juntou o cenho, preguiçosa demais para perguntar da palavra em coreano. — Omma é como nós chamamos mãe. — expliquei e sorriu doce.
— Gyu! Você não me deu notícia ontem. — omma sequer esperou que eu ligasse a câmera quando atendi. — Tá tudo preto. Por que tá preto? Onde é que você tá?
riu para dentro, subindo os ombros e absorta em pensamentos. Arrumei o cabelo e tentei parecer menos sonolento antes de habilitar o vídeo.
— Annyeong, omma! — cumprimentei.
— Aí está você, meu docinho de mel! — os olhos da omma se apertaram atrás dos óculos grossos e eu lamentei que ela seguisse falando em inglês. Era ótimo que ela estivesse estudando e praticando, mas… Alguma chance de a não ter ouvido aquilo?
Nenhuma. A gargalhada veio em alto e bom — muito bom — som.
— Quem está aí com você? — omma quis saber, sempre curiosa.
— Olá, senhora Kim! — saltou por cima dos meus ombros e meteu-se no meio da câmera. O rosto da minha mãe brilhou e eu pedi a todos os nossos ancestrais que ela não dissesse nada constrangedor.
— Que moça mais linda! — omma soltou, radiante. — É a sua namoradinha?
Porra, mãe!
— Omma, eu estou trabalhando. Falo com a senhora depois, tá?
— Quando é que você vem aqui, hein? — omma ignorou, dirigindo-se à .
— Assim que o docinho de mel me convidar. — respondeu e omma riu ao ver que estava agarrada no meu braço. A sensação era... boa.
— Omma, eu te ligo mais tarde! — implorei e nos despedimos. não me soltou e ainda usou a mão livre para me apertar a bochecha.
— Docinho de mel?
— Kyungdan. — expliquei. — É um doce coreano recheado de mel ou açúcar. A omma faz com mel porque é da cor da minha pele. É adorável. Não me enche. — me adiantei, prevendo a zoação.
— De fato, é mesmo. — concordou e desviou os olhos para longe, num meio sorriso de nostalgia.
Não era difícil saber para onde o coração dela tinha ido. Era óbvio que ela sentia uma saudade que não passava, uma falta que não se preenchia. O luto não acaba, ele só vira uma companhia suportável, mas sempre persistente. A memória constante do vazio informe. era de uma força que não cabia nela e, por mais que certos assuntos fossem tão doloridos a ponto de serem evitados, era pior não falar nada e fingir que a dor dela não estava ali.
— Sinto muito pelos seus pais. — sussurrei, sentido.
— Eu ouço muito isso. — ela confessou, exausta. — Eu só queria lembrar mais deles. Não sei te dizer o gosto de algum doce que a minha mãe fazia. Ou se fazia algum. Meu avô me conta as histórias, mas não importa o quanto eu force, quase tudo que eu tenho deles se resume àquela noite, um grande borrão, com o estrondo dos trovões e das sirenes…
— Quantos anos você tinha? — tentei perguntar tão naturalmente quanto era possível. precisava falar. Era tangível, quase tátil, o quanto.
— 4, quase 5… Não sei dizer. Eu morri um pouco ali também.
levantou um lábio, descontente e sem vontade do sorriso, mas de guarda baixa. Estava lânguida e um tanto quanto confortável em compartilhar falas não filtradas. Embora tudo indicasse que aquela seria a nossa primeira conversa mais pessoal e mais profunda, senti um desconforto com o rumo que o assunto tomava, pressentindo que falaria algo que eu não queria ouvir.
— Pra dizer a verdade… — ela continuou, confirmando minha intuição. — Às vezes eu acho que seria melhor se eu também tivesse morrid-
Puxei pelo queixo e pressionei os lábios dela com o polegar, encaixando a palma da mão no rosto pequeno e delicado. Ela aumentou os olhos, surpreendida pelo meu toque e meu semblante de repreensão. A ideia de um mundo em que a não existisse me embrulhava as vísceras e eu rejeitava aquele pensamento a ponto de interrompê-la, literalmente, calando-lhe a boca. Era verdade que ela não existia para mim até bem pouco tempo, mas agora ela era uma realidade tão clara quanto um dia.
— Nunca. Mais. Repita. Isso. — enunciei pausadamente. — Você não faz ideia do valor da sua vida, . Você é uma luz.
Não sei exatamente o efeito que minhas palavras surtiram nela, mas gostei de pensar que serviram de alento, já que, mais uma vez, a resposta de foi apoiar a cabeça no meu ombro e descansar enquanto eu a abraçava. Um abraço confortável, de proteção e zelo, que me fez perceber que eu, que horas atrás estava rogando aos céus para que a noite acabasse, me via agora pedindo para que ela durasse mais um pouco.
Os céus me atenderam e a penumbra antes do amanhecer se prolongou. A falta de apoio nas costas já não importava tanto, porque tinha razão: sentar na grama era o melhor jeito de esperar pela aurora. Mas ela não sabia que eu conspirava para que a aurora se atrasasse e o sono começou a tomar conta dela.
— Se você arrastar o mindinho no meu nariz como a sua mãe fazia com você, eu vou acabar dormindo? — ela me perguntou depois de um tempo.
— Como um bebê. — garanti. — Você quer tentar?
balançou a cabeça afirmativamente e eu me vi novamente fazendo um carinho na cartilagem arrebitada, geladinha do frio da madrugada. Ela adormeceu pesado, e eu inspirei e expirei mais pesado ainda, aguardando o dia começar para o mundo (ou apenas para nós dois, já que parecia que éramos os únicos esperando). Peguei nos meus braços com facilidade e a levei até a SUV não muito longe dali, deitando-a no banco de trás e cobrindo-a. Ao chegar à mansão, Dorota me esperava em seu roupão e chinelos, sussurrando para não perturbar em nada a Bela Adormecida, e eu a carreguei escada acima para deixá-la na sua cama real.
— Mingyu… — ela me chamou sonolenta quando eu a arrumei no colchão enorme. — Você acha mesmo que eu sou uma luz?
Quente e brilhante, sim.
— Eu estou aqui seguindo você, não estou? — respondi.
sorriu. E finalmente o céu abriu todo e o sol saiu de trás das nuvens.
E essa parte do trabalho, eu odiava admitir, era a que mais incomodava. O famoso capitão DK, com seu sorriso incansável, sua BMW do ano, seu império farmacêutico como herança e sua… ?
Não. A ele ainda não tinha. Pelo menos eu gostava de acreditar que não, só porque era satisfatório achar que ele não tinha tudo.
É óbvio que eu não sabia muita coisa sobre o status de relacionamento da . Com a agenda social agitada da minha protegida, não tinha havido tempo ou abertura para uma conversa sobre parceiros românticos. Sendo apenas a sombra dela, nossas interações se resumiam a trivialidades da Saint Peter, à ajuda que ela me ofereceu com o meu artigo e ao empenho dela em implicar comigo. E, naquela noite em particular, a um pequeno barraco de família: Alfred queria que deixasse a monitoria dela na universidade para se juntar a ele na Chevalier Industries, mas estava bem claro que não era isso que ela queria fazer.
Foi quando decidiu sair e descontar tudo na pista de dança, nas batidas de vodca e em mim. Ela sumiu da minha vista de propósito mais de uma vez, convenceu as amigas a me distrair dela e fez questão de interromper quando eu tentei trocar uma ou duas palavras com Dokyeom, pendurando-se no pescoço dele — o cara, obviamente, preferia ela a um marmanjo do meu tamanho amarrado num terno. Eu me sentia desconfortável quando ele estava por perto. E meio que inútil. Por que ela precisava de mim se tinha um atacante imenso grudado nela?
Porque sim, ele andava grudado nela. Eu tentando fazer meu trabalho era irritante, uma sombra, mas o DK roçando o maldito nariz perfeitamente afilado na nuca da não a incomodava nem um pouco.
— Algo doce para alguém doce. — Dokyeom encheu uma taça para assim que o espumante rosé que ele pediu chegou na mesa do camarote, beijando os dedos dela ao passar o vidro. — Servido, Kim? — ele me ofereceu em seguida.
— A sombra não bebe enquanto trabalha. — respondeu por mim. — Eu tenho um segurança incorruptível, Seo.
Seo? Ela chamava o DK de Seo?
— Então somos dois. Eu também não estou bebendo hoje. — Dokyeom avisou, tentando novamente conversar comigo.
— Promessa pro time ganhar? — arrisquei.
— Não preciso disso. — ele riu, alisando o joelho da . — Só estou de motorista, tenho que buscar uma encomenda no aeroporto logo mais.
— Verdade! — bebeu da taça. — Seus pais estão chegando da Coreia hoje, não é? Faz tanto tempo que eu não os vejo, Seo!
Respirei fundo, impaciente com o “nhe nhe nhe”. Seo pra cá, Seo pra lá… Que chatice.
— Eles vão adorar te ver. — DK passou o braço pelo encosto do estofado, puxando para mais perto. — Você pode vir comigo se quiser, aposto que o Mingyu está louco pra se livrar da gente e ir pra casa. — ele levantou os olhos para mim. — Não é, Mingyu?
Passei a língua pelos dentes, sem entender ao certo porque aquela sugestão tinha me irritado tanto. É claro que eu queria ir para casa, mas a ideia de deixar os dois sozinhos era incômoda. E suspeita. A história toda de ir buscar os pais poderia ser um pretexto para me dar a volta, me fazer chegar à mansão dos Chevalier sem a e ser demitido.
— O Mingyu está exausto, mas seus pais também devem estar depois de tantas horas de vôo. Eu vou visitá-los assim que eles se acomodarem de volta. — a própria dispensou a oferta, levantou-se e estendeu a mão para Dokyeom. — Dança a última comigo?
O dono do maldito nariz afilado atendeu prontamente, sendo guiado pela para fora do camarote e indo para o meio da pista de dança. Eu até que gostava daquela música, mas como o convite não foi para mim, me conformei com mais um suspiro e com meu dever de vigiá-la na área em que ela me delimitou, ali mesmo, da parte de cima da boate. A visão panorâmica facilitava, dava para ver o pontinho tatuado que a era no meio da pequena aglomeração, atraindo para si vários olhares, inclusive o de um cara estranho que a rondava desde que chegamos e só não tinha a abordado ainda por causa do atacante bloqueando o caminho. Ao menos para alguma coisa o DK servia, mas meu sexto sentido me avisou que deveria marcar a fisionomia do sujeito, só para garantir.
A música acabou e Dokyeom checou o relógio enorme, lamentando-se por ter que ir embora. apenas abriu os braços, pedindo por um abraço, e eu senti um calor estranho e a garganta fechar quando os lábios deles se tocaram minimamente no beijinho de despedida. O sortudo sorriu largo com o selinho acidental. Ele era todo sorrisos para ela, sempre.
Mas aquilo não era problema meu, certo?
Meu problema era garantir a integridade física da , independente das bocas que ela poderia ou não estar beijando. Eu tinha que mantê-la em segurança e levá-la de volta inteirinha, ainda que adormecida no banco de trás, o que acontecia quase todas as vezes. Já tinha até uma almofada e um cobertor guardados embaixo do banco da SUV, embora o cobertor fosse muito mais para mim do que para ela. Acontece que eu precisava embrulhar a igual a um bolinho de arroz antes de carregá-la nos braços por causa de um decote revelador demais ou de uma saia de um palmo de comprimento, coisas que ela gostava de usar e que dificultavam o meu trabalho, porque vários idiotas não sabiam diferenciar roupas curtas de consentimento.
Era o caso daquele idiota em particular que não parava de olhar para ela. Eu não podia impedir que olhassem para uma mulher bonita, mas eu podia (e devia) impedir que a importunassem. Travei a mandíbula, tenso, e resolvi descer do camarote para monitorar melhor a situação. estava um pouco mais distante do seu grupo de amigos, com o corpo quente remexendo dentro do jeans ao som de uma batida alucinante. Nas mãos, agora, um copo translúcido e suado de gelo e álcool, que ela bebia despreocupadamente e abandonava de vez em quando em cima do balcão do bar.
— Primeira regra, . — murmurei para mim mesmo, apertando os olhos por causa das luzes piscando e chegando mais perto. — Nunca tire os olhos do seu copo.
Parecia meio neurótico repetir e levar tão a sério o conselho que minha mãe me dava quando eu, na minha fase rebelde dos 15 anos, comecei a andar pelas festas de Itaewon, mas minha intuição estava certa. O babaca se esgueirou pelo balcão e despejou alguma coisa dentro do copo da , fazendo o líquido borbulhar por um instante e rapidamente voltar ao normal.
sequer se deu conta da efervescência da bebida porque ele não perdeu tempo em enrolá-la num papo mole. Meu sangue gelou quando a vi procurar pelo copo, fazendo menção de levá-lo à boca, e eu simplesmente arranquei, empurrando as pessoas para tirá-las do meu caminho. Evitei o gole bruscamente quando a alcancei, tomando o vidro das mãos dela e derramando mais da metade do conteúdo, movido puramente pelo instinto de defendê-la. O que quer que estivesse no copo, agora, cobria a camiseta decotada, que grudou no corpo dela.
— Mingyu! — me repreendeu, atônita e molhada.
— Que que é isso, cara? — o tarado teve a ousadia de se interpor entre nós, pegando pelo braço.
— Larga ela. — ordenei entre dentes, avançando um passo.
— Ou então o que, seu China? — ele olhou meu terno e deduziu que eu era o segurança dela. — Você vai me prender, é?
— Não. Mas se você encostar mais um dedo nela, eu é que vou preso por matar você. — ameacei, firme, enquanto os olhos da ficavam enormes. — Agora larga. — repeti, sentindo uma veia me saltar no pescoço.
O tarado colocou as mãos para cima e se retirou resmungando, disparando outras ofensas para as quais eu não dei ouvidos. Segui ele com o olhar até o guichê do caixa, onde ele pagou a comanda com pressa e cheio de desconfiança. Todas as páginas que eu estudei sobre réu primário me pularam à cabeça e eu julguei que era uma boa causa perdê-lo caso eu socasse aquele covarde até fazê-lo implorar pela mamãe, mas deixar uma dura denúncia com a segurança da boate, com riqueza de detalhes da cara do filho da puta, teria que ser suficiente.
— Que raios te deu, hein, sombra? Eu nunca te vi desse jeito! — reclamou meu acesso de raiva, apontando o tecido encharcado. — Isso tudo porque um cara me cantou?
— Isso tudo porque essa “cantada” poderia ter te custado uma noite no hospital. — cheirei o copo, tentando discernir alguma substância. — Ou coisa muito pior, se eu não estivesse aqui.
— Do que você está falando?
— Que aquele imbecil adulterou a sua bebida. — atirei o que sobrou para longe. — Quando você deixou seu copo no balcão, lembra?
engoliu em seco, olhando trepidante ao redor. Quis sustentar a pose de mulher indefensável, mas logo se deu conta da gravidade da situação, e não só se deu conta, como também pressionou as mãos trêmulas contra o estômago, nauseada e assustada. Os olhos castanhos se encheram de água, quase choraram, e naquele momento eu percebi que ver a derramar uma lágrima sequer poderia ser a minha maior fraqueza.
— Eu… Eu nem notei. Eu não notei nada! — ela confessou com a voz embargando. — Meu Deus, Mingyu! Se você não estivesse aqui…
— Mas eu tô. — cortei, sem deixar que a imaginação dela sugerisse alguma atrocidade, e apertei os ombros dela. — Eu tô aqui e eu não vou deixar nada de ruim acontecer com você.
Minha resposta foi um abraço. Forte, grato e sincero. agarrou minha cintura e levou uns bons minutos para me soltar do enlace que eu desejava que tivesse acontecido em outro contexto. Segurei a cabeça dela contra meu peito, resistindo ao impulso de beijar o topo (o topo cheirava a xampu de baunilha), e recorri a uma técnica infantil para acalmá-la:
— O que foi isso? — ela perguntou, mais calma e com vontade de rir quando eu comecei a deslizar o dedo mindinho pelo nariz dela.
— Minha mãe fazia isso comigo e com a minha irmã quando éramos bebês. — expliquei, aliviado por vê-la voltando a ter cor. — Ela dizia que curava o dodói. E que dava sono.
— Eu não sou um bebê. — protestou, me socando de leve.
— Mas funcionou, não funcionou? — encerramos o abraço. — Você quer ir pra casa agora?
— Não. — ela respirou fundo, encostando-se no bar para pedir uma garrafa de água e a conta. — Ainda não, por favor. Meu avô está chateado, eu não quero lidar com isso agora.
Havia muitas maneiras de gerir um conflito: enfrentamento, negação, mediação… gerenciava os dela com distrações e fuga. Analisando mais de perto, era fácil entender que as festas e todo o barulho dos quais ela se cercava eram um meio de silenciar a perda dos pais e os desencontros com o avô, que ainda resistia à escolha de carreira dela. Acontece que gente rica também tinha lá seus problemas e eu sentia uma certa empatia por esse ato de coragem que foi impor sua vontade a Alfred, afinal de contas, eu também precisei contrariar minha família para seguir meu sonho profissional.
Escoltar a num after party, no entanto, não fazia bem parte desse meu sonho profissional e eu arfei, implorando internamente por uma intervenção divina que fizesse o dia clarear o mais rápido possível. Mas se nem o susto da quase dopagem foi suficiente para fazê-la encerrar a noite, minhas preces certamente também não seriam.
— Você não quer voltar pra casa, ok. — aceitei a derrota. — Mas você não pode ficar assim, . Sabe-se lá o que aquele cara colocou no seu copo. — desgrudei a camiseta úmida da barriga dela e descobri mais uma tatuagem revelada pelo efeito do líquido. — Seja o que for, não deve ser bom que esteja em contato com a sua pele.
— Sendo bom ou não, eu não tenho outra roupa. — esfregou as têmporas e pegou alguns guardanapos para amenizar o estrago, sem sucesso.
— Eu tenho uma camisa no carro. — sugeri, lembrando da muda de roupa na minha mochila. — Sou bem mais alto que você, mas deve servir.
— Ótimo. — sorriu, já pronta para o próximo destino. — Minha última lembrança de hoje não vai ser esse incidente. Vamos.
Ela deixou várias notas altas dentro da carta da conta, sem conferir o preço ou esperar por troco, e começou a caminhar na frente. Segui os passos dela, cansado e, ao mesmo tempo, certo de que eu estava onde deveria estar. Era, de fato, a minha agridoce missão. me desafiava o tempo todo, mas estar com ela era estimulante. Me mantinha alerta e não me dava descanso aos olhos, tampouco aos outros sentidos. Ela era teimosa, atrevida, tinha uma resposta ácida para tudo que eu dizia e eu podia jurar que não aguentaria nem uma semana naquela furada em que Wonwoo tinha me metido, mas mesmo diante das constantes tentativas dela de fazer da minha vida um inferno, algo me impedia ficar longe dela. Ela estava certa, afinal. Eu era uma sombra.
Chegamos ao estacionamento e eu abri a mala do carro, já revirando minha mochila, aflito com a possibilidade de puxar a peça errada na muda de roupas socada lá dentro e acabar vendo as minhas cuecas. Por sorte, logo abaixo da necessaire com meu perfume e uma escova de dentes, lá estava uma camiseta de futebol limpinha e pronta para uso.
— Aqui, sua alteza. — joguei a camisa que pegou com uma careta.
— Você quer que eu passe o resto da noite numa camisa dos Giants? — ela me jogou a camisa de volta com desprezo.
— E que diferença isso faz? — apanhei a camisa no ar.
— Que diferença isso faz? — ela bufou indignada. — Eu torço pelos Jets! Eu e meu avô acompanhamos praticamente desde que eu nasci!
— Então você já viveu 22 anos e não deu tempo de perceber que os Jets são péssimos? — rebati um tanto surpreso. Achava que os únicos interesses da , além da literatura, eram farrear e me tirar do sério, agora com mais um item para a lista: torcer para o time rival.
— Você tem algum outro argumento além de "os Jets só têm um único título"? — ela respondeu com tédio na voz.
— Hã... sim, que tal eu começar com aquela linha de defesa patética? Até você conseguiria furar o bloqueio do seu time.
— Não se atreva! — me apontou o dedo na cara e o rosto começou a mudar de cor. Era divertido. — Vai pensando em outra coisa, porque eu prefiro ficar doce de vodca com limão a colocar isso no meu corpo.
Ok. Aquela era uma combinação de encher a boca: vodca, açúcar e... .
Levei um tempo para dissipar o pensamento intruso que crescia na minha mente e convencer meu cérebro — e minha língua formigando — que não iríamos prensar Chevalier no capô do carro e lambê-la de cima a baixo ali mesmo. O máximo que teríamos era o perfume dela impresso na camisa social de botões que eu estava usando e cogitando ceder para ela.
— Tá. — deixei vencer de novo. — Eu visto a dos Giants e você fica com essa aqui.
Comecei a tirar o paletó, aliviado por me livrar daquele excesso de pano, e esperei a reação de , que permaneceu imóvel. Quando ela enfim entendeu que eu não me trocaria na frente dela, ela perguntou, incrédula:
— Sério? Você quer que eu vire de costas?
— Claro, ué. — guardei o paletó no porta-malas. — Ou você prefere me ver pelado?
— Pelado. — ela repetiu com deboche. — É só uma camisa. Tira logo.
— Nossa, quanta pressa. — provoquei. — Ficou curiosa? — abri os dois primeiros botões e o sorriso, enquanto os olhos de vidraram e ela ganhava um rubor.
Dois botões e quase dava para ouvir o coração dela batendo de onde eu estava. Interessante.
— Eu tô esperando. — girei o indicador no ar, demonstrando o movimento.
— Você é tão tímido. É a sua primeira vez? — desdenhou e virou-se de costas.
— Só tô tentando não te deixar constrangida. — tirei os botões das casas habilmente e livrei meus braços da peça.
— Não se preocupe, já me explicaram que o corpo dos meninos é diferente do das meninas. — zombou e eu me aproximei dela, estendendo a camisa ainda morna de mim. — Não tem nada aí que eu já não tenha vis-
A frase ficou incompleta no ar porque não fez questão alguma de disfarçar o queixo caído quando se virou. Sustentei a distância mínima entre nós, admitindo vaidade ao vê-la atiçada pelo meu corpo seminu diante dela, mesmo sem encostá-la. Para alguém que estava sempre carregada com alfinetadas prontas, ela demorou a encontrar munição daquela vez, e eu dei uma pequena amaciada no meu ego ao me permitir ser admirado. Ao me permitir ser o motivo da confusão dela. Do atraso que ela deu na respiração. Da mordida sutil que ela deu no lábio inferior.
“Nada que eu já não tenha visto”, não é?
— Se você continuar me secando assim, eu vou te denunciar por assédio sexual. — cocei o peito para testar se ela acompanhava. E ela acompanhou.
— Por que você não tira uma folga, hein? — ela se sacudiu, acordando.
Ri fraco para a réplica abusada de costume e, tão rápido quanto as respostas malcriadas dela, meu coração veio parar na garganta quando simplesmente enganchou os dedos na barra da própria blusa e puxou tudo para cima sem qualquer pudor ou aviso.
E veio a constatação do inevitável: eu me sentia fatalmente atraído por ela.
— Ficou bom, não foi? — ela arrumou a alça de um familiar sutiã rosa e ajeitou o busto farto. — Lembra dele? Acabei comprando. Você tem ótimo gosto.
Cerrei os olhos com força, esperando que sumisse. Eu só podia estar sonhando. Sonhando ou enlouquecendo, porque aquilo tinha me concedido a ousadia de pensar que, se ela vestiu uma peça que sabia que eu tinha gostado, é porque queria que eu visse. Porque queria que eu soubesse. Ela não iria tão longe por uma mera provocação. Iria?
— Por Deus, . — virei de costas, me abraçando e apertando o ombro, apreensivo. Na calça social que eu estava vestido, não ia ter como esconder se meu amigo acordasse e resolvesse espreitar também. Aí era demissão por justa causa.
— Você quer parar de fazer um grande caso disso? — procurou a camisa na minha mão e eu me fechei num casulo. Qualquer toque seria perigoso demais. — Faz de conta que é um biquíni, puritano. Ou vai me dizer que você nunca viu as partes especiais de uma mulher antes? — sussurrou no meu ouvido num tom dramático, caçoando de mim e arranhando levemente as minhas costas expostas.
Pulei para frente e me enfiei na blusa dos Giants, tentando visualizar todos os jogadores grosseiros, cheios de hematomas horríveis e sujos de terra para impedir meu corpo de reagir àquele ataque afiado e gostoso. Passei o cabelo para trás repetidamente, ouvindo a risada de ecoar:
— Ah, Kim Mingyu. Você só tem tamanho. Pode descongelar agora, tá? Estou decente. — ela avisou enquanto dobrava os punhos da camisa no antebraço.
— Pra onde agora? — perguntei, aturdido.
— Você quem sabe. Qualquer lugar menos a minha casa. — ela suspirou.
— Você tá com fome? — uma ideia remexeu na minha cabeça. — Conheço um lugar aqui perto, não é cheio de frescuras como os locais que você frequenta, mas...
— Ah, claro. — me interrompeu. — Eu que sou cheia de frescuras. Disse o molenga que desmontou com um arranhão.
— Você entendeu. — minha espinha eriçou novamente só com a lembrança.
— Eu não ligo pra isso, palhaço. E só por causa desse seu comentário, eu vou te fazer pagar a conta. — ela resmungou, entrando no carro.
Não foi uma boa ideia deixar devorar um hambúrguer enorme, meter a mão nas minhas fritas e tomar o milk-shake gelado rápido demais, causando uma dor de cabeça de sorvete. Depois de comer, ela estava 100% recarregada e com uma injeção especial de ânimo por termos assistido acidentalmente a um jogo dos Giants na lanchonete em que estávamos. E os Giants terem perdido.
— Vamos dar uma caminhada no parque. — sugeri, deixando o dinheiro em cima da mesa. — Preciso cansar você pra ver se você dorme no carro e me dá um pouco de sossego.
— Infelizmente pra você, eu não estou com sono. Diferente do zagueiro do seu time, que dormiu em todas as defesas.
— Só vai andando que eu tô bem atrás de você, tá? — rebati, divertido.
No entanto, andamos lado a lado daquela vez, de forma que empurrava o corpo pequeno e riscado contra mim toda vez que eu falava algo que a irritava, mas me chamando pelo nome em vez de babá ou sombra. Mingyu. Ficava bonito da boca dela. Tudo ficava bonito da boca dela, até a risada por causa da minha língua presa. A noite caía amena e não teríamos notado as horas passando se o sol não desse os primeiros sinais de que nasceria, deitando um pouco de ouro no horizonte. quis parar para observar, sentando-se no chão e me convidando a fazer o mesmo. Obedeci, enquanto ela repousava a cabeça nos joelhos e batia os cílios devagarinho, ansiosa para a primeira brisa da manhã beijá-la.
— Aurora… — ela balbuciou e eu franzi as sobrancelhas. — Aurora é a primeira manifestação de qualquer coisa. O nascer do sol é uma aurora. É minha hora favorita do dia.
Recebi a confissão dela em silêncio, cuidando em guardar aquela informação como uma flor dentro de um livro, como um segredo num diário, tão íntima e especial foi a maneira como ela fez soar. Porém, minha resignação solene foi forçada a acabar grosseiramente quando um toque de chamada de vídeo ecoou.
— Desculpa. — pedi. — É a omma. Eu tenho que atender se não ela vem nadando até aqui. — riu e juntou o cenho, preguiçosa demais para perguntar da palavra em coreano. — Omma é como nós chamamos mãe. — expliquei e sorriu doce.
— Gyu! Você não me deu notícia ontem. — omma sequer esperou que eu ligasse a câmera quando atendi. — Tá tudo preto. Por que tá preto? Onde é que você tá?
riu para dentro, subindo os ombros e absorta em pensamentos. Arrumei o cabelo e tentei parecer menos sonolento antes de habilitar o vídeo.
— Annyeong, omma! — cumprimentei.
— Aí está você, meu docinho de mel! — os olhos da omma se apertaram atrás dos óculos grossos e eu lamentei que ela seguisse falando em inglês. Era ótimo que ela estivesse estudando e praticando, mas… Alguma chance de a não ter ouvido aquilo?
Nenhuma. A gargalhada veio em alto e bom — muito bom — som.
— Quem está aí com você? — omma quis saber, sempre curiosa.
— Olá, senhora Kim! — saltou por cima dos meus ombros e meteu-se no meio da câmera. O rosto da minha mãe brilhou e eu pedi a todos os nossos ancestrais que ela não dissesse nada constrangedor.
— Que moça mais linda! — omma soltou, radiante. — É a sua namoradinha?
Porra, mãe!
— Omma, eu estou trabalhando. Falo com a senhora depois, tá?
— Quando é que você vem aqui, hein? — omma ignorou, dirigindo-se à .
— Assim que o docinho de mel me convidar. — respondeu e omma riu ao ver que estava agarrada no meu braço. A sensação era... boa.
— Omma, eu te ligo mais tarde! — implorei e nos despedimos. não me soltou e ainda usou a mão livre para me apertar a bochecha.
— Docinho de mel?
— Kyungdan. — expliquei. — É um doce coreano recheado de mel ou açúcar. A omma faz com mel porque é da cor da minha pele. É adorável. Não me enche. — me adiantei, prevendo a zoação.
— De fato, é mesmo. — concordou e desviou os olhos para longe, num meio sorriso de nostalgia.
Não era difícil saber para onde o coração dela tinha ido. Era óbvio que ela sentia uma saudade que não passava, uma falta que não se preenchia. O luto não acaba, ele só vira uma companhia suportável, mas sempre persistente. A memória constante do vazio informe. era de uma força que não cabia nela e, por mais que certos assuntos fossem tão doloridos a ponto de serem evitados, era pior não falar nada e fingir que a dor dela não estava ali.
— Sinto muito pelos seus pais. — sussurrei, sentido.
— Eu ouço muito isso. — ela confessou, exausta. — Eu só queria lembrar mais deles. Não sei te dizer o gosto de algum doce que a minha mãe fazia. Ou se fazia algum. Meu avô me conta as histórias, mas não importa o quanto eu force, quase tudo que eu tenho deles se resume àquela noite, um grande borrão, com o estrondo dos trovões e das sirenes…
— Quantos anos você tinha? — tentei perguntar tão naturalmente quanto era possível. precisava falar. Era tangível, quase tátil, o quanto.
— 4, quase 5… Não sei dizer. Eu morri um pouco ali também.
levantou um lábio, descontente e sem vontade do sorriso, mas de guarda baixa. Estava lânguida e um tanto quanto confortável em compartilhar falas não filtradas. Embora tudo indicasse que aquela seria a nossa primeira conversa mais pessoal e mais profunda, senti um desconforto com o rumo que o assunto tomava, pressentindo que falaria algo que eu não queria ouvir.
— Pra dizer a verdade… — ela continuou, confirmando minha intuição. — Às vezes eu acho que seria melhor se eu também tivesse morrid-
Puxei pelo queixo e pressionei os lábios dela com o polegar, encaixando a palma da mão no rosto pequeno e delicado. Ela aumentou os olhos, surpreendida pelo meu toque e meu semblante de repreensão. A ideia de um mundo em que a não existisse me embrulhava as vísceras e eu rejeitava aquele pensamento a ponto de interrompê-la, literalmente, calando-lhe a boca. Era verdade que ela não existia para mim até bem pouco tempo, mas agora ela era uma realidade tão clara quanto um dia.
— Nunca. Mais. Repita. Isso. — enunciei pausadamente. — Você não faz ideia do valor da sua vida, . Você é uma luz.
Não sei exatamente o efeito que minhas palavras surtiram nela, mas gostei de pensar que serviram de alento, já que, mais uma vez, a resposta de foi apoiar a cabeça no meu ombro e descansar enquanto eu a abraçava. Um abraço confortável, de proteção e zelo, que me fez perceber que eu, que horas atrás estava rogando aos céus para que a noite acabasse, me via agora pedindo para que ela durasse mais um pouco.
Os céus me atenderam e a penumbra antes do amanhecer se prolongou. A falta de apoio nas costas já não importava tanto, porque tinha razão: sentar na grama era o melhor jeito de esperar pela aurora. Mas ela não sabia que eu conspirava para que a aurora se atrasasse e o sono começou a tomar conta dela.
— Se você arrastar o mindinho no meu nariz como a sua mãe fazia com você, eu vou acabar dormindo? — ela me perguntou depois de um tempo.
— Como um bebê. — garanti. — Você quer tentar?
balançou a cabeça afirmativamente e eu me vi novamente fazendo um carinho na cartilagem arrebitada, geladinha do frio da madrugada. Ela adormeceu pesado, e eu inspirei e expirei mais pesado ainda, aguardando o dia começar para o mundo (ou apenas para nós dois, já que parecia que éramos os únicos esperando). Peguei nos meus braços com facilidade e a levei até a SUV não muito longe dali, deitando-a no banco de trás e cobrindo-a. Ao chegar à mansão, Dorota me esperava em seu roupão e chinelos, sussurrando para não perturbar em nada a Bela Adormecida, e eu a carreguei escada acima para deixá-la na sua cama real.
— Mingyu… — ela me chamou sonolenta quando eu a arrumei no colchão enorme. — Você acha mesmo que eu sou uma luz?
Quente e brilhante, sim.
— Eu estou aqui seguindo você, não estou? — respondi.
sorriu. E finalmente o céu abriu todo e o sol saiu de trás das nuvens.
Capítulo 4 - O pisca-pisca com defeito e os biscoitos de gengibre
O inverno avançou e o frio desencorajou a sair de casa com a mesma intensidade. As provas finais também estavam se aproximando e, por mais que ela tirasse sarro de mim, Wonwoo e Marie Bee por sermos o que ela chamava de “a tropa dos nerds”, enfiava a cara nos livros tanto quanto nós. A diferença é que ela era sociável e toque físico demais para se relacionar apenas com seus papéis e artigos acadêmicos. Ela gostava de gente, de contato, de pele. Eu entendia. Depois de passar o ano letivo inteiro longe da minha família em Anyang, como fazia desde que comecei o curso, estava carente do cafuné da minha mãe, do cheiro de loção pós-barba do meu pai, do barulho das tias na cozinha e das intromissões da minha irmã, Minseo.
No entanto, sempre que abria minha caixa de e-mails e via a passagem para a Coreia nas mensagens fixadas, meu coração abrandava um tanto. Iria vê-los em breve, a nossa viagem de férias para casa estava há algumas semanas de distância e eu e Wonwoo já tínhamos arrumado quase tudo. Fora da minha mala estavam apenas alguns itens de higiene, algumas roupas e o presente de Natal da , que eu pretendia entregar pessoalmente.
Dezembro embranqueceu as ruas com a neve e iluminou as janelas com as decorações de Natal que, aos pouquinhos, iam tomando de conta das casas e até mesmo do nosso dormitório de intercambistas. Wonwoo, que sempre reagia com preguiça à minha ideia de enfeitar o quarto, estava tão amolecido pelo romance que vinha engatando com Marie que sequer protestou, do contrário, se ofereceu para me ajudar. Não era muita coisa além de umas luzes pelas paredes, meias com nossos nomes e minhas fôrmas de biscoitos natalinos, mas serviu para me fazer entrar no clima.
— Tá torto. — Wonwoo denunciou, olhando o pisca-pisca que eu pendurei.
— Torto é você. — desci da escada e ajeitei a cabeça inclinada dele. — E agora?
— Não sei. — ele analisou novamente. — Vamos deixar o toc da Marie Bee decidir.
— Ela tem vindo muito aqui, não é? — dobrei a escada e guardei atrás da porta.
— É, mas não precisa se esconder dentro do armário toda vez que ela vier. — Wonwoo riu fraco. — Ela sabe que você é meu amante.
Fiz uma careta, mostrando a língua. Eu não tinha nada contra Marie, o pontinho loiro que resolveu se abrigar na cama do meu colega de quarto e que, indiretamente, me obrigava a dormir dentro do carro quando isso acontecia. Mas “isso” acontecia com tanta frequência que já não encontrava mais a amiga dela com a facilidade de antes, porque agora ela estava sempre com o meu amigo. E embora ela se mostrasse feliz por essa novidade que era a sua irmã de alma tímida e inacessível estar finalmente se abrindo, era óbvio que ela sentia saudades de quando eram apenas as duas contra o mundo.
— Eu me preocupo com a , é isso. — suspirei. — Ela sente falta da melhor amiga.
— Ah, claro. A . — Wonwoo sorriu em “v”, gracejando. — Eu já estava até estranhando você ter falado tantas palavras e nenhuma ser o nome dela.
Eu não falava muito da , eu reclamava muito da . Era bem diferente.
— Idiota. — joguei o controle remoto na mão dele. — Faça as honras.
Wonwoo pressionou o botão e gargalhou. Só uma dúzia de luzes acendeu.
— O que vale é a intenção. — ri, derrotado, procurando pelo meu casaco.
— Vai sair? — ele perguntou casualmente.
— Vou ver a . — e o nome dela, mais uma vez, desenrolou feito caramelo derretido na minha boca.
Wonwoo sequer fingiu surpresa, apenas me encarou como se tivesse acabado de provar um teorema.
— Pensei que ela tivesse te dispensado esse final de semana. — ele me lembrou.
— E dispensou. — fui até a pia da nossa copa e lavei as mãos. O cômodo era pequeno e conjugado, então Wonwoo não me perdeu de vista. — Mas eu já comprei o presente dela e quero entregar logo. Antes que eu fique sem tempo por causa das coisas da viagem.
— Você vai mesmo se deslocar até a casa dela nesse frio? — Wonwoo arrumou a cama, desconfiado.
— Eu nem sei se ela está realmente em casa. Se não estiver, eu deixo lá mesmo assim. — pensei alto e a lembrança de DK veio junto com o pensamento. tinha me dito que precisava estudar, mas quem poderia garantir? Certamente eu não. Balancei a cabeça, peguei o embrulho dela e uma caixa de papelão, forrando-a com papel manteiga. — Além disso, eu fiz uma fornada boa de biscoitos. — comecei a guardá-los cuidadosamente na caixa forrada. — Quero que a Dorota prove.
— É verdade, dessa vez você se superou.
— Wonwoo! — censurei meu amigo, observando os espaços vazios na bandeja que eu tinha deixado esfriando. — Não eram pra você, seu quatro olhos!
Ele estranhou o apelido, mas não tanto quanto eu. Wonwoo não sabia, mas era assim que se referia a ele. Acontece que de tanto ouvi-la resmungar, acabei assimilando.
— Não tenho problema nenhum em ser míope. — ele rebateu, orgulhoso, acomodando-se no travesseiro e se cobrindo. — Vê se não faz barulho quando chegar, tá?
As cobertas quentinhas em que ele se meteu pareciam uma ideia bem melhor do que o metrô gélido em que eu estava prestes a me enfiar, fato. Mas aquele meu passeio noturno e solitário até o Upper East Side também poderia ser bem proveitoso. Planejei um itinerário mental: ir até a casa dos Chevalier e depois passar na churrascaria brasileira da Avenida Leste para uma boa carne na brasa. Era sexta-feira e Seungcheol, nosso colega intercambista, tocava lá porque, assim como nós, precisava de um trabalho paralelo aos estudos. A parte boa era que ele nos conseguia um desconto nos pratos e às vezes até um jantar de graça.
A viagem durou menos que a minha playlist de andar de metrô, na qual eu vinha trabalhando há um tempo. Estava cheia de músicas melosas e fazia eu me sentir num videoclipe triste. Talvez a época do ano me deixasse melancólico, não sei. O que eu sabia era que, pela primeira vez, um mês inteiro fora de Nova York parecia tempo demais. Meu corpo, ao contrário da minha cabeça, implorava por esse descanso e bastou o longo trajeto até a mansão para me convencer que não seria tão difícil assim aproveitar os trinta dias da minha mãe me mimando e fazendo tudo por mim.
O que me lembrava que eu precisava apresentá-la a Dorota numa chamada de vídeo, eventualmente. As duas tinham a mesma mania de me agasalhar feito um explorador ártico.
— Menino! — Dorota me repreendeu assim que eu cheguei, arrumando meu cachecol e cobrindo minhas orelhas escapando do gorro. — Como que você me sai de casa nesse frio? Atravessar a cidade toda nesse gelo! Ah, não, você vai tomar um chocolate quente!
— Dory, não se preocupa… — pedi educadamente, aceitando o convite para entrar. — A está aí? — ergui o presente, cheio de adesivos de bengalinhas de açúcar que eu usei para tapar as partes que eu rasguei sem querer. — Eu queria entregar isso pra ela.
— Então entrega logo! — foi quem respondeu, surgindo no topo da escada, usando um blusão de lã bem leve, escolha permitida pela temperatura agradável do aquecedor central da mansão.
Um sorriso involuntário se formou nos meus lábios. Nenhum sinal do Seo.
— O que é? — pulou alguns degraus até a escada acabar e parou na minha frente, saltitante feito uma criança, tentando pegar o embrulho que eu escondia atrás de mim.
— Uma coisa que você me falou que queria muito.
— O Kevin do Backstreet Boys? — ela pôs a mão na boca. — Como você fez ele caber aí?
Estendi o pacote que foi rasgado com facilidade, já vinha quase abrindo no metrô, e o estado da embalagem me deixou receoso, assim como o valor do presente em si. não se importou com nada disso, apenas abriu um sorriso que foi se agigantando, tomando conta do rosto e diminuindo os olhos castanhos, que viraram dois risquinhos lindos. Ela abriu cuidadosamente o plástico transparente, olhando as informações da capa, passou o dedo pelo miolo e, por fim, folheou as páginas. Abraçou o volume contra o peito e ficou na pontinha dos pés:
— Um livro de poesias coreanas! — ela exclamou e deu mais alguns pulinhos de alegria. Não esperava que um livro que custou menos de vinte dólares fosse deixá-la tão feliz.
— Kim Chun Sun é um poeta muito famoso lá na Coreia. — expliquei. — Lembrei que você falou que queria ler, então procurei uma edição traduzida. É bem fiel ao original, eu acho que você vai gostar.
— Eu já gostei! — ela me surpreendeu com um abraço, alisando meus ombros, e eu congelei por um momento. Um momento ínfimo, porque logo eu retribuí, passando os braços pela cintura pequena. — Eu também tenho uma coisa pra você.
Tinha? me considerava parte da vida dela a ponto de colocar algo com meu nome embaixo da árvore de natal dos Chevalier?
Recebi dela uma caixinha pequena, ao contrário do meu presente, muito bem embalada, com direito a um laço brilhoso e uma etiqueta que dizia “para a minha sombra”. Manuscrito. A letra da era bonita igual a ela.
— Abre. — ela sugeriu, eufórica.
— Se isso aqui for um vale-presente, eu vou ficar muito chateado. — avisei com um beicinho que se formou sozinho quando balancei a caixa e percebi pelo barulho e gramatura que o conteúdo era de papel-cartão.
— É pra você passar na loja e comprar um senso de humor. — brincou. — Desmancha esse bico e abre logo.
Desfiz o laço e encontrei dois cartões foscos, impressos em azul, vermelho e branco em altíssima qualidade, com um emblema poroso do New York Giants acima do código de barras e da data do último jogo da temporada, que, por sorte, aconteceria antes da viagem.
— Ingressos pros Giants?! — exclamei, enchendo as bochechas de ar e enganchado na minha língua presa. — No setor com a melhor vista! ! Isso aqui custa uma fortun-
— Não começa. Você me paga me levando ao jogo. — ela me cortou, lembrando que eram dois tickets ali. — Faço questão de torcer contra.
O contraste no preço dos presentes perdeu um pouco da importância quando ela revelou que iria comigo. Se ela também estaria lá na área mais cara do estádio, eu poderia aceitar o presente sem tanto remorso. E pagar por todas as porcarias que ela quisesse comer durante o jogo para tentar compensar.
— … obrigado. — envolvi a cintura dela novamente, já acostumado ao encaixe perfeito dos nossos corpos tão diferentes em tamanho e massa.
— Feliz Natal, sombra. — ela sussurrou.
— Feliz Natal, luz. — devolvi.
— E aquela caixa? — notou o que eu tinha esquecido na mesa de centro.
— É pra Dory.
— Pra mim?! — Dorota exclamou, emocionada, trazendo o chocolate quente. — Ah, querido, não precisava!
— Então eu fico. — ameaçou pegar a caixa e Dorota apressou a reação, correndo para abri-la.
A recepção dos meus dotes culinários não poderia ter sido mais positiva. Dorota me intimou a passar a receita e não me deixou sair enquanto eu não anotei precisamente todos os ingredientes e o modo de preparo. , já entretida com o livro, também provou os biscoitos e elegeu seu favorito — o amanteigado com gotas de chocolate e gengibre —, e eu voltei da mansão satisfeito. Passei na churrascaria, ouvindo de longe o violão de Seungcheol, e acenei discretamente para ele ao entrar. Enquanto me sentava numa das mesas para esperar meu amigo (e os suculentos pedaços de carne que viriam com ele), admirei mais uma vez os ingressos, descobrindo um bilhetinho da dobrado no fundo da caixa.
“Sombra, minha sombra,
Agora eu sei que você também sou eu.”
No entanto, sempre que abria minha caixa de e-mails e via a passagem para a Coreia nas mensagens fixadas, meu coração abrandava um tanto. Iria vê-los em breve, a nossa viagem de férias para casa estava há algumas semanas de distância e eu e Wonwoo já tínhamos arrumado quase tudo. Fora da minha mala estavam apenas alguns itens de higiene, algumas roupas e o presente de Natal da , que eu pretendia entregar pessoalmente.
Dezembro embranqueceu as ruas com a neve e iluminou as janelas com as decorações de Natal que, aos pouquinhos, iam tomando de conta das casas e até mesmo do nosso dormitório de intercambistas. Wonwoo, que sempre reagia com preguiça à minha ideia de enfeitar o quarto, estava tão amolecido pelo romance que vinha engatando com Marie que sequer protestou, do contrário, se ofereceu para me ajudar. Não era muita coisa além de umas luzes pelas paredes, meias com nossos nomes e minhas fôrmas de biscoitos natalinos, mas serviu para me fazer entrar no clima.
— Tá torto. — Wonwoo denunciou, olhando o pisca-pisca que eu pendurei.
— Torto é você. — desci da escada e ajeitei a cabeça inclinada dele. — E agora?
— Não sei. — ele analisou novamente. — Vamos deixar o toc da Marie Bee decidir.
— Ela tem vindo muito aqui, não é? — dobrei a escada e guardei atrás da porta.
— É, mas não precisa se esconder dentro do armário toda vez que ela vier. — Wonwoo riu fraco. — Ela sabe que você é meu amante.
Fiz uma careta, mostrando a língua. Eu não tinha nada contra Marie, o pontinho loiro que resolveu se abrigar na cama do meu colega de quarto e que, indiretamente, me obrigava a dormir dentro do carro quando isso acontecia. Mas “isso” acontecia com tanta frequência que já não encontrava mais a amiga dela com a facilidade de antes, porque agora ela estava sempre com o meu amigo. E embora ela se mostrasse feliz por essa novidade que era a sua irmã de alma tímida e inacessível estar finalmente se abrindo, era óbvio que ela sentia saudades de quando eram apenas as duas contra o mundo.
— Eu me preocupo com a , é isso. — suspirei. — Ela sente falta da melhor amiga.
— Ah, claro. A . — Wonwoo sorriu em “v”, gracejando. — Eu já estava até estranhando você ter falado tantas palavras e nenhuma ser o nome dela.
Eu não falava muito da , eu reclamava muito da . Era bem diferente.
— Idiota. — joguei o controle remoto na mão dele. — Faça as honras.
Wonwoo pressionou o botão e gargalhou. Só uma dúzia de luzes acendeu.
— O que vale é a intenção. — ri, derrotado, procurando pelo meu casaco.
— Vai sair? — ele perguntou casualmente.
— Vou ver a . — e o nome dela, mais uma vez, desenrolou feito caramelo derretido na minha boca.
Wonwoo sequer fingiu surpresa, apenas me encarou como se tivesse acabado de provar um teorema.
— Pensei que ela tivesse te dispensado esse final de semana. — ele me lembrou.
— E dispensou. — fui até a pia da nossa copa e lavei as mãos. O cômodo era pequeno e conjugado, então Wonwoo não me perdeu de vista. — Mas eu já comprei o presente dela e quero entregar logo. Antes que eu fique sem tempo por causa das coisas da viagem.
— Você vai mesmo se deslocar até a casa dela nesse frio? — Wonwoo arrumou a cama, desconfiado.
— Eu nem sei se ela está realmente em casa. Se não estiver, eu deixo lá mesmo assim. — pensei alto e a lembrança de DK veio junto com o pensamento. tinha me dito que precisava estudar, mas quem poderia garantir? Certamente eu não. Balancei a cabeça, peguei o embrulho dela e uma caixa de papelão, forrando-a com papel manteiga. — Além disso, eu fiz uma fornada boa de biscoitos. — comecei a guardá-los cuidadosamente na caixa forrada. — Quero que a Dorota prove.
— É verdade, dessa vez você se superou.
— Wonwoo! — censurei meu amigo, observando os espaços vazios na bandeja que eu tinha deixado esfriando. — Não eram pra você, seu quatro olhos!
Ele estranhou o apelido, mas não tanto quanto eu. Wonwoo não sabia, mas era assim que se referia a ele. Acontece que de tanto ouvi-la resmungar, acabei assimilando.
— Não tenho problema nenhum em ser míope. — ele rebateu, orgulhoso, acomodando-se no travesseiro e se cobrindo. — Vê se não faz barulho quando chegar, tá?
As cobertas quentinhas em que ele se meteu pareciam uma ideia bem melhor do que o metrô gélido em que eu estava prestes a me enfiar, fato. Mas aquele meu passeio noturno e solitário até o Upper East Side também poderia ser bem proveitoso. Planejei um itinerário mental: ir até a casa dos Chevalier e depois passar na churrascaria brasileira da Avenida Leste para uma boa carne na brasa. Era sexta-feira e Seungcheol, nosso colega intercambista, tocava lá porque, assim como nós, precisava de um trabalho paralelo aos estudos. A parte boa era que ele nos conseguia um desconto nos pratos e às vezes até um jantar de graça.
A viagem durou menos que a minha playlist de andar de metrô, na qual eu vinha trabalhando há um tempo. Estava cheia de músicas melosas e fazia eu me sentir num videoclipe triste. Talvez a época do ano me deixasse melancólico, não sei. O que eu sabia era que, pela primeira vez, um mês inteiro fora de Nova York parecia tempo demais. Meu corpo, ao contrário da minha cabeça, implorava por esse descanso e bastou o longo trajeto até a mansão para me convencer que não seria tão difícil assim aproveitar os trinta dias da minha mãe me mimando e fazendo tudo por mim.
O que me lembrava que eu precisava apresentá-la a Dorota numa chamada de vídeo, eventualmente. As duas tinham a mesma mania de me agasalhar feito um explorador ártico.
— Menino! — Dorota me repreendeu assim que eu cheguei, arrumando meu cachecol e cobrindo minhas orelhas escapando do gorro. — Como que você me sai de casa nesse frio? Atravessar a cidade toda nesse gelo! Ah, não, você vai tomar um chocolate quente!
— Dory, não se preocupa… — pedi educadamente, aceitando o convite para entrar. — A está aí? — ergui o presente, cheio de adesivos de bengalinhas de açúcar que eu usei para tapar as partes que eu rasguei sem querer. — Eu queria entregar isso pra ela.
— Então entrega logo! — foi quem respondeu, surgindo no topo da escada, usando um blusão de lã bem leve, escolha permitida pela temperatura agradável do aquecedor central da mansão.
Um sorriso involuntário se formou nos meus lábios. Nenhum sinal do Seo.
— O que é? — pulou alguns degraus até a escada acabar e parou na minha frente, saltitante feito uma criança, tentando pegar o embrulho que eu escondia atrás de mim.
— Uma coisa que você me falou que queria muito.
— O Kevin do Backstreet Boys? — ela pôs a mão na boca. — Como você fez ele caber aí?
Estendi o pacote que foi rasgado com facilidade, já vinha quase abrindo no metrô, e o estado da embalagem me deixou receoso, assim como o valor do presente em si. não se importou com nada disso, apenas abriu um sorriso que foi se agigantando, tomando conta do rosto e diminuindo os olhos castanhos, que viraram dois risquinhos lindos. Ela abriu cuidadosamente o plástico transparente, olhando as informações da capa, passou o dedo pelo miolo e, por fim, folheou as páginas. Abraçou o volume contra o peito e ficou na pontinha dos pés:
— Um livro de poesias coreanas! — ela exclamou e deu mais alguns pulinhos de alegria. Não esperava que um livro que custou menos de vinte dólares fosse deixá-la tão feliz.
— Kim Chun Sun é um poeta muito famoso lá na Coreia. — expliquei. — Lembrei que você falou que queria ler, então procurei uma edição traduzida. É bem fiel ao original, eu acho que você vai gostar.
— Eu já gostei! — ela me surpreendeu com um abraço, alisando meus ombros, e eu congelei por um momento. Um momento ínfimo, porque logo eu retribuí, passando os braços pela cintura pequena. — Eu também tenho uma coisa pra você.
Tinha? me considerava parte da vida dela a ponto de colocar algo com meu nome embaixo da árvore de natal dos Chevalier?
Recebi dela uma caixinha pequena, ao contrário do meu presente, muito bem embalada, com direito a um laço brilhoso e uma etiqueta que dizia “para a minha sombra”. Manuscrito. A letra da era bonita igual a ela.
— Abre. — ela sugeriu, eufórica.
— Se isso aqui for um vale-presente, eu vou ficar muito chateado. — avisei com um beicinho que se formou sozinho quando balancei a caixa e percebi pelo barulho e gramatura que o conteúdo era de papel-cartão.
— É pra você passar na loja e comprar um senso de humor. — brincou. — Desmancha esse bico e abre logo.
Desfiz o laço e encontrei dois cartões foscos, impressos em azul, vermelho e branco em altíssima qualidade, com um emblema poroso do New York Giants acima do código de barras e da data do último jogo da temporada, que, por sorte, aconteceria antes da viagem.
— Ingressos pros Giants?! — exclamei, enchendo as bochechas de ar e enganchado na minha língua presa. — No setor com a melhor vista! ! Isso aqui custa uma fortun-
— Não começa. Você me paga me levando ao jogo. — ela me cortou, lembrando que eram dois tickets ali. — Faço questão de torcer contra.
O contraste no preço dos presentes perdeu um pouco da importância quando ela revelou que iria comigo. Se ela também estaria lá na área mais cara do estádio, eu poderia aceitar o presente sem tanto remorso. E pagar por todas as porcarias que ela quisesse comer durante o jogo para tentar compensar.
— … obrigado. — envolvi a cintura dela novamente, já acostumado ao encaixe perfeito dos nossos corpos tão diferentes em tamanho e massa.
— Feliz Natal, sombra. — ela sussurrou.
— Feliz Natal, luz. — devolvi.
— E aquela caixa? — notou o que eu tinha esquecido na mesa de centro.
— É pra Dory.
— Pra mim?! — Dorota exclamou, emocionada, trazendo o chocolate quente. — Ah, querido, não precisava!
— Então eu fico. — ameaçou pegar a caixa e Dorota apressou a reação, correndo para abri-la.
A recepção dos meus dotes culinários não poderia ter sido mais positiva. Dorota me intimou a passar a receita e não me deixou sair enquanto eu não anotei precisamente todos os ingredientes e o modo de preparo. , já entretida com o livro, também provou os biscoitos e elegeu seu favorito — o amanteigado com gotas de chocolate e gengibre —, e eu voltei da mansão satisfeito. Passei na churrascaria, ouvindo de longe o violão de Seungcheol, e acenei discretamente para ele ao entrar. Enquanto me sentava numa das mesas para esperar meu amigo (e os suculentos pedaços de carne que viriam com ele), admirei mais uma vez os ingressos, descobrindo um bilhetinho da dobrado no fundo da caixa.
Agora eu sei que você também sou eu.”
Capítulo 5 - O saleiro, o pimenteiro e a maldição do Mercúcio
Apliquei mais uma camada de pomada no cabelo, em vão. Os fios de trás não baixavam de jeito nenhum e eu parecia uma plantinha. Maldita estática.
— Que fofo! — Wonwoo disparou ao me ver brigando com o espelho. — Alguém vai ao seu primeiro encontro!
— Não é um encontro. — dei o toque final com duas gotas de perfume atrás das orelhas. — Eu só vou ver o jogo.
— Então por que você está tão preocupado com o seu cabelo?
— Se chama pentear, você deveria tentar qualquer dia desses. — passei por ele, assanhando o que já estava assanhado, e peguei meu boné.
— Olha lá, hein, Mingyu. Temos que estar no aeroporto de manhã bem cedo. — ele me advertiu.
— Não se preocupe, eu volto antes das nove, papai. — vesti o casaco, guardei a carteira no bolso e apanhei as chaves do meu Honda. Não era muita coisa, mas me levava aos lugares e estava limpinho, porque eu tinha mandado lavar e colocado aquelas essências penduradas no retrovisor, tudo pensando na pessoa que eu estava prestes a buscar.
me confirmou que estava pronta por mensagem e eu fui até o carro, sendo abordado no meio do caminho por uma moça sorridente que acenou para mim, simpática demais. O nome dela tinha escapado, eu só sabia que era alguma coisa como Vivian ou Violet, e que ela estava bloqueando meu carro.
— Desculpa, bonitão. — ela pediu quando me viu. — Eu já vou sair do seu caminho, só vim buscar uma amiga.
— Sem problemas. — sorri por causa do “bonitão”. — Festa da fraternidade?
— Dia de garotas, na verdade. — ela corrigiu a programação. — E você, Mingyu?
— Giants vs Patriots. — apontei o emblema na minha camisa, culpado por não lembrar o nome dela.
— Tô descendo, Vic! — a tal amiga gritou de uma das janelas do prédio estudantil e refrescou minha memória.
Victoria! Victoria Evans, da Psicologia. O nêmesis da Marie Bee.
— Bom, essa é minha deixa. — ela balançou as chaves e abriu a porta, de saída. — Divirta-se, bonitão!
Victoria me liberou e eu entrei no carro checando meu reflexo no retrovisor, cheio de vaidade pelo elogio duplo. Girei a chave na ignição e dei a partida sem prestar muita atenção no que eu estava fazendo, porque depois de repeti-lo com tanta frequência, o caminho para a mansão dos Chevalier na Madison Avenue se tornou automático. Não ter que pensar no trajeto, no entanto, abria espaço para pensar em outras coisas nas quais eu não pensava há algum tempo, por exemplo: Vic Evans parecia ótima e já faziam uns bons meses desde a última vez que eu tinha ficado com alguém. Se ela bloqueasse meu carro de novo, quem sabe, eu pudesse chamá-la para tomar um sorvete.
Só que eu não gostava tanto assim de sorvete. E também não gostava tanto assim da Vic.
Na verdade, eu não podia gostar tanto assim de ninguém. Não era o meu foco no momento. Se eu quisesse advogar num país estrangeiro, eu precisava ser extraordinário, acima da média, me esforçar o triplo a mais que qualquer outro para compensar o fato de ser sul-coreano. E eu queria muito aquilo. Tanto que não sobrava nenhum pedacinho de mim para dedicar a mais nada.
Exceto à .
Puxei o freio de mão ao parar no portão principal e, antes que eu ligasse para avisar da minha chegada, a avistei no meio do caminho. Precisei de alguns minutos quando ela surgiu, sem um vestido de tirar o fôlego, sem o salto e sem o batom vinho bem forte que ela gostava bastante. A ocasião não pedia uma superprodução, apenas uma calça boyfriend, um top branco que mostrava um pouquinho da barriga, uma jaqueta por cima de tudo e o seu bom e velho Converse Chuck Taylor 70s nos pés. Deve ter sido a vez em que eu vi a mais bonita, não pelas roupas em si, mas pelo que elas implicavam. Ela aparecer mais despojada me deu a impressão de uma camada a mais de intimidade, como se ela ficasse confortável comigo, como se estivesse à vontade ao meu lado…
E por mais que fosse coisa da minha cabeça, aquilo me valeu muito.
— Qual é a dessa presa aparecendo? — ela enfiou a cabeça pelo vidro aberto, apoiando a língua no canino numa tentativa de imitar meu sorriso pontiagudo. — Você tá bem feliz pra alguém cujo time vai levar uma surra.
— Você tá bem confiante pra alguém cujo time nem está na final. — quis descer do carro para abrir a porta, mas me lembrei que não era um encontro e apenas desbloqueei a trava.
— Eu aposto o que você quiser na derrota dos Giants. — entrou no carro e o perfume dela entrou junto. — Estou até disposta a te pagar um jantar de consolação.
— Já tenho planos para o jantar. — manobrei para arrancar novamente, passando a mão atrás do banco do passageiro para dar a ré.
— Comer no aeroporto? — olhou meu braço de canto de olho.
— Meu voo é só amanhã, você não vai se livrar de mim tão fácil. — ri. — Dá tempo de ir num lugar perto do estádio que dizem ter a melhor bolonhesa da cidade. — continuei dirigindo com uma única mão no volante. — Conhece alguma italiana esfomeada que eu possa levar lá e comprovar essa informação?
— A Dorota. — ela rebateu. — Mas ela está ocupada, então eu aceito.
— É uma pena, ela era minha primeira escolha. — dei um meio sorriso.
me xingou de sombra estúpida e chegamos ao entorno da arena, tomado pelas cores dos times, pelos torcedores e pelos vendedores ambulantes, uma atmosfera incrível de se respirar. Achamos uma vaga um pouco mais distante da entrada e, assim que nos misturamos à multidão, meu impulso foi pegar pela mão para não perdê-la de vista. Ela riu gostoso e aceitou minha escolta, apontando o caminho do nosso setor, onde eu nunca tinha estado, e eu me peguei tentando recordar qual foi a última vez em que eu tinha me dado ao luxo de me divertir de verdade.
O sol da tarde foi gentil, aquecendo sem incomodar, e finalmente encontramos nossos lugares privilegiados: as cadeiras ficavam quase dentro do campo, com a elevação perfeita para uma vista bem ampla da grama marcada por listras brancas. Os jogadores saíram pelo tubo praticamente do nosso lado e eu soltei grunhidos involuntários de empolgação quando Daniel Jones, o quaterback, passou por mim e fez um joinha.
— Olha só você a ponto de invadir o vestiário para conseguir um autógrafo. — tirou meu boné e arrumou meu cabelo. — Alguém tem um crush. — ela colocou o boné em si mesma.
— Esse é o cara que vai trazer o título. — dobrei levemente os joelhos e deixei arrumar minha franja. Eu gostava quando ela me tocava.
O jogo começou com os Giants dominando totalmente o placar nos primeiros dois quartos, levando embora a minha voz e a torcida contrária de , que não conseguiu disfarçar a comemoração pelo touchdown, um dos melhores lances da partida. No intervalo, a câmera do beijo começou a passear pelos espectadores, parando num adorável casal de velhinhos, e se derreteu toda no meu ombro quando os dois trocaram um beijo fofo.
— Tá, esse foi uma graça, mas no geral eu acho isso de beijo no telão bem brega. — ela confessou.
O monitor gigante seguiu projetando a plateia enquanto o narrador animava o público na busca por mais um beijo. Os rostos foram ficando familiares e eu fui tomado por um frio na espinha ao perceber que a câmera tinha focado numa moça tatuada e num cara bem maior que ela.
A câmera tinha focado em mim e na .
— Vamos, garoto, nos dê um pouco de açúcar! — o narrador pediu no alto-falante. — Beije a moça!
sobressaltou e eu retribuí com uma cara de susto. Toda a agitação do estádio ficou pequena perto do terremoto que estava acontecendo dentro de mim. Foi como se tudo ficasse em silêncio e eu só pudesse ouvir as batidas violentas do meu coração, pulsando fora de controle e me pedindo para aproveitar aquela chance de ouro. E eu aproveitaria, não fosse a confissão dela de que achava aquilo brega. O que ela não imaginava (e eu também não, porque estava acabando de descobrir) era que eu a beijaria diante de todos os telões, de todos os olhares, de todas as pessoas do mundo inteiro.
Mas, naquele momento, eu não sabia o que fazer. continuava paralisada e a pressão aumentava, então eu levantei um pouco a aba do meu boné na cabeça dela, segurando-a pelo queixo, e deslizei timidamente o nariz pela bochecha para deixar um beijo carimbado no rosto vermelho.
— Parece que alguém cortou os doces da dieta! — o narrador concluiu, desanimado. — Vamos continuar, estamos procurando por um beijo de verdade aqui!
suspirou forte perto do meu ouvido e eu me afastei, achando-a um pouco desapontada. Não pude ter certeza, porque ela logo desviou o olhar e baixou o boné novamente, escondendo qualquer expressão.
— Você está bem? — perguntei quando a câmera nos abandonou.
— Estou. — ela sorriu curto e se pôs de pé. — Eu vou pegar uma cerveja. Você quer?
Assenti e foi breve, alheia ao que tinha acabado de acontecer, voltando com duas garrafas trincando (nosso setor não só permitia, como vendia as long necks artesanais da casa). Ela me estendeu uma e teve dificuldade para abrir a outra, pedindo em silêncio por ajuda.
— Qual é a palavrinha mágica? — provoquei, cruzando os braços.
— Abre ou eu quebro na sua cabeça? — ela tentou.
— Você vai ficar com sede. — dei um gole na minha garrafa.
— Por favor, minha sombrinha querida. — pediu, sarcástica.
Removi a tampa num movimento rápido, devolvendo a garrafa junto com uma piscadinha que arrancou dela uma risada contida e relaxada. A partida recomeçou e os jogadores voltaram a se digladiar por mais trinta minutos, confirmando o resultado parcial e culminando na vitória dos Giants, que aceitou a contragosto.
Eu, por outro lado, me permiti vibrar. Não só pelo título ou pela emoção dos cantos entoados pela torcida, mas por uma alegria singela de um dia que simplesmente foi bom. Por não ser, por uma tarde que fosse, o Mingyu hiperfocado no seu objetivo, ferrado nos estudos e preocupado com as contas do final do mês. Ali eu era apenas um cara levando a garota mais bonita do mundo ao jogo. E para jantar.
O tumulto da saída ficou concentrado nos portões oeste, felizmente, no lado oposto à saída do nosso setor, e mesmo sem o mar de gente que enfrentamos na entrada, eu naturalmente tomei a mão da entre as minhas mais uma vez enquanto andávamos. Não encontrei resistência, em vez disso, ela agarrou meu braço e esfregou o meu casaco, e só aí eu notei a queda da temperatura que veio com o anoitecer. Meu corpo estava quente demais para notar o frio, tomado pelo calor interno familiar que acontecia sempre que eu estava perto dela.
— Deu uma esfriada. — preenchi o silêncio da caminhada até o carro.
— Contanto que não chova, por mim, tudo bem. — deu de ombros.
— Você não gosta de chuva? — dessa vez, eu abri a porta para ela e dei a volta para entrar.
— Não me traz lembranças muito boas. — ela continuou quando eu sentei, sem querer aprofundar o assunto. — Esse rádio funciona?
— Só quando ele quer. Fique à vontade para tentar.
O rádio me desmentiu, porque conectou-se ao bluetooth do celular da na primeira tentativa e ela rapidamente selecionou as músicas do trajeto até o restaurante. Deu tempo de ouvir as três primeiras do novo álbum do Fall Out Boy, vício mais recente dela, e chegamos à cantina com mesas cobertas por toalhinhas quadriculadas nas cores da bandeira italiana e flores com água.
O garçom sugeriu um pão focaccia para começar e ia pedir a cartela de vinhos, mas desistiu ao lembrar que eu não poderia me juntar a ela por estar dirigindo (o efeito da cerveja no estádio já tinha passado). Ficamos ambos com uma soda italiana para acompanhar o prato bem servido de massa à bolonhesa, que veio pelando e sumiu em questão de minutos.
— Eu não sei você, mas eu vou abrir o botão da minha calça. — avisou discretamente depois que matamos o prato e eu gargalhei.
— Não acredito! Chevalier? Você faz isso nos restaurantes finos que frequenta?
— Não, porque as porções são desse tamanhinho. — ela juntou as mãos na frente do guardanapo. — Aí eu chego em casa e como a comida da Dorota.
— Fico feliz de ter acertado. Achei que ia ser clichê te trazer aqui. — apoiei o rosto nas mãos.
— Claro que não. — deu o último gole na soda. — É senso comum que os italianos gostam de macarrão, de uvas e de Romeu e Julieta.
— Então você chora com romances trágicos? — inclinei o rosto e comecei a piscar devagarinho, como sempre fazia quando estava interessado. E eu estava interessado em qualquer coisa que tinha para dizer.
— O casal não me comoveu tanto. — ela cruzou as mãos embaixo do queixo. — Eu me compadeço muito mais por uma outra tragédia nessa história.
— Mais trágico que dois amantes morrendo juntos? — tropecei na minha língua presa. — Quem teve um final pior do que esse?
— Mercúcio, que morreu sozinho.
Fiz uma cara que perguntou: “quem raios é Mercúcio?”
— Olha. — alinhou o saleiro e o pimenteiro na frente do prato sujo de molho. — Essa é casa dos Capuleto e essa é a casa dos Montéquio. — ela ilustrou com os utensílios e buscou um terceiro, um palito de dente sozinho numa embalagem de papel. — Mercúcio era amigo de Romeu. — ela aproximou o palitinho do pimenteiro. — Mas também era primo do príncipe. — agora, o palitinho foi parar do lado do saleiro. — Assim, ele era o único personagem da história que podia transitar entre as duas famílias em guerra.
Fiquei hipnotizado pelo movimento dos dedos tatuados da , as unhas compridas riscando a explicação na mesa. Ela recebeu a atenção que eu estava investindo e continuou.
— Mercúcio era uma espécie de mensageiro de Romeu e Julieta, ele ajudava o casal a se encontrar e a se corresponder. Mas quando o romance proibido veio à tona, ele acabou sendo covardemente morto. — quebrou o palitinho no meio. — Teobaldo Capuleto apunhalou Mercúcio com um golpe fatal. — a voz dela assumiu um tom dramático, me envolvendo na contação da história feito uma criança de jardim de infância. — “Malditas sejam as duas famílias!”, foram as últimas palavras dele ao perceber a própria desgraça. E que desgraça! — ela se lamentou, atirando o palitinho partido na mesa. — O cara morreu pela briga dos outros, coadjuvante até do próprio fim. Isso passa um ensinamento importante.
— Que seria? — quis saber, encantado.
— Não se meta nos assuntos alheios, ou você pode acabar levando uma facada. — ela arqueou uma sobrancelha. — É a maldição do Mercúcio.
— Uau. — soprei, processando a explicação. — Você é boa.
— Por que o tom de surpresa? — ela riu, convencida.
— Não estou surpreso, estou admirado. — encostei as costas na cadeira. — Você foi feita para trabalhar com literatura.
— Eu sei. — cruzou os braços, satisfeita. — Por falar em trabalhar, não pense que eu esqueci do seu artigo, tá? Como está indo?
— Muito bem, na verdade. — constatei com alívio. — O Dr. James está gostando bastante, acho que vou submetê-lo à apresentação no simpósio do ano que vem.
— Mingyu, isso é ótimo! — apertou meu punho fechado sobre a mesa e uma corrente deliciosa passou por mim em resposta ao toque. — Você vai terminar a tempo?
— Sim, falta pouca coisa. — evitei me mexer. — Aquela última observação que você fez ajudou bastante.
— Sendo assim, aqui vai mais uma observação. — me soltou e apontou o indicador em riste. — Você está de férias, então não mexa nesse artigo. Não abra o documento, não releia, nem mesmo pense nele. Aproveite a sua família, seus amigos e, quando você voltar, nós finalizamos juntos.
— Por que você fica me dando ordens, hein? — ralhei, mas com um sorriso.
— Porque sombras obedecem. — ela bateu na mesa. — Agora me deixa em casa. Você tem que estar do outro lado do mundo em algumas horas.
deveria ter poderes telecinéticos ou coisa parecida, porque, surpreendentemente, no caminho de volta, o rádio também funcionou. Ela engatou mais um monólogo shakesperiano e, depois de várias metáforas e análises que eu ouvi sem reclamar, chegamos à casa dela. Ao descer do carro para acompanhá-la até a porta, eu recebi o abraço que eu só sentiria de novo dali a um mês.
— Boa viagem, Mingyu. — ela me deu um beijo demorado no rosto, depois deu outro nas minhas mãos. — Guarda esse pra sua mãe, tá?
sumiu casa adentro e eu fiz meu caminho de volta, me preparando para estar, como ela mesma disse, do outro lado do mundo em algumas horas.
Mas o outro lado do mundo era muito, muito longe. Então eu guardei o beijo para mim enquanto ele estava quentinho.
Capítulo 6 - A ligação intercontinental
Arrastei a tela para baixo pela milésima vez em busca de uma novidade, mas a última foto postada ainda era a mesma. Suspirei, dando a mim mesmo um atestado de ridículo. Bancar o stalker não era o meu estilo, por que eu estava sendo tão idiota?
— Tatuagens legais. — Minseo surgiu atrás de mim no sofá, me abraçando. — Ela é bonita demais pra você, como você tá dando conta?
— Eu não tô. — bloqueei a tela do celular. — Quer dizer, eu tô dando conta do meu trabalho, que é vigiá-la.
— Até daqui de Anyang? — minha irmã tomou o aparelho das minhas mãos e digitou minha senha. A tela abriu direto no perfil do Instagram que eu estava monitorando a cada cinco minutos.
O perfil da .
Faltavam algumas horas para a entrada do ano novo e tanto o Instagram dela como a conta que funcionava como periódico de fofocas do Seungkwan estavam recebendo várias atualizações da maior festa de virada de Nova York, onde ela estava naquela noite. E onde eu achava que também deveria estar. Minha família estava cuidando das suas coisas, movimentando a casa com suas conversas e seus afazeres, ocupando-se do cotidiano doméstico que eu tanto sentia falta quando estava lá no meu pequeno dormitório na Saint Peter, mas tudo o que eu conseguia fazer era ficar atualizando o maldito feed. Havia alguns rostos conhecidos: Marie Bee, Hoshi (com quem eu e Wonwoo batíamos bola de vez em quando) e uma amiga da que eu não lembrava o nome, mas parecia estar suprindo a “ausência” de Marie ultimamente.
E é claro, ela. Metida num vestido prata minúsculo, com uma fenda drapeada nas costas e o infeliz do Dokyeom de acessório.
— Uau! — Minseo assobiou. — Esse cara tem o perfil mais lindo e afiado que eu já vi na vida, acho até que cortei meu dedo.
Não respondi. Apenas senti um oco dolorido no peito e a feição se repuxar sozinha.
— Dane-se. Eu aposto que ele é um otário. — ela complementou ao perceber minha careta involuntária.
— Eu queria que ele fosse, seria mais fácil odiá-lo. — ri sem graça. — Mas, infelizmente, ele é um cara bem legal.
— Você também é, Gyu. — Minseo bagunçou meu cabelo. — Por que não fala com ela em vez de ficar aí com essa cara de cachorro sem dono?
— Porque ela com certeza não está pensando em mim agora.
— Vamos descobrir. — ela clicou no ícone do bate-papo e começou a digitar uma mensagem para . — “Querida , eu estou maluquinho por você…”
— MINSEO! — tentei tomar o celular de volta.
— “Por favor, vamos dar uns beijos quando eu voltar para Nova York…” — ela prosseguiu e eu tinha um pequeno derrame a cada som que o teclado fazia.
— Omma! — apelei para a suprema corte. — Faz a Minseo parar!
— Eu não enviei, chorão! — ela se defendeu.
Minha irmã devolveu o celular rindo da minha cara e, depois que os pontinhos pretos se dissiparam da minha vista, eu vi que a conversa com a estava exatamente no ponto em que eu tinha deixado: uma mensagem perguntando sobre o livro que eu dei a ela no Natal. Foi um presente estratégico, eu contava com a curiosidade literária dela para me perguntar sobre alguma palavra ou termo coreano, na esperança de que ela usasse o livro como desculpa para manter contato durante as férias, no entanto, quase um dia inteiro depois, ela ainda não tinha me respondido.
— Já se resolveram ou eu vou ter que deixar os dois sem sobremesa? — minha mãe se aproximou.
— Achei que só tinha kyungdan pro Mingyu. — Minseo reclamou, com ciúme.
— Seu irmão mora em outro país, querida, enquanto ele estiver nos visitando, é sempre a vez dele. — ela decretou e Minseo me mostrou a língua.
Minha mãe sentou-se ao meu lado e a vontade de subir para o meu quarto e ficar a sós com meu humor destemperado sumiu quando ela passou o bracinho por mim, me abraçando pequeno e imenso ao mesmo tempo. Havia alguma coisa sobre mães, sobre a fibra da qual elas eram feitas. A minha parecia feita de algodão, era quentinha e confortável, e sabia como ninguém o que se passava na minha cabeça.
E no meu coração.
— O nome disso é saudade. — omma afagou meu cabelo. — É um sentimento bem amargo, por isso eu fiz a sobremesa com mel só pra você.
Sorri, consolado pelo tom reconfortante e macio. Depois de tanto tempo cuidando da , eu cheguei a esquecer que também precisava ser protegido e acalentado, e descansar naquele amparo materno era o refúgio do qual eu necessitava.
— Sou muito grande pra deitar no seu colo? — perguntei, já recolhendo os pés do chão e me arrumando no sofá.
— Aish! — omma exasperou. — Você sempre vai ser o meu bebê.
— Omma… — repousei a cabeça nas pernas dela. — Como eu sei que alguém gosta de mim?
— Convide-a para ver cerejeiras. — ela fez um carinho nas minhas costas. — Deu certo para o seu pai.
Eu nem sabia se tinham cerejeiras em Nova York, nem se seriam tão lindas quanto as do parque de Anyang, muito menos se saberia o significado de um convite para vê-las, já que aquele era o típico encontro romântico e clichê dos casais coreanos. O que eu sabia era que já tinha várias rosas e borboletas em si mesma e, mais do que quaisquer outras, aquelas eram as flores que eu queria ver.
— Ela é um jardim inteirinho, omma. — assenti, sonolento, pensando no corpo que eu tinha deixado há um oceano de distância.
***
Remexi na cama algumas horas depois, meio em jet lag, sem saber onde tinha acordado. Lembrava de ter desejado “feliz ano novo” para todo mundo, ido para a cama e vestido o pijama, mas não me lembrava de ter me cobrido com o edredom, o que provavelmente foi ação da minha mãe e sua obsessão em me manter aquecido. A barriga cheia, o aconchego familiar de casa e as roupas de cama cheirando a amaciante poderiam embalar meu sono por mais algumas horas, mas por algum motivo, eu acordei.
O motivo era o toque do meu celular. Busquei o aparelho entre os lençóis já nervoso, porque o som vedado por um dos cobertores me entregou quem era antes que eu olhasse o display: tinha escolhido uma música chamada Shadow para ser o toque dela.
— , eu estou oficialmente de férias, viu? — atendi, fingindo estar incomodado, mas ansioso por ouvi-la.
— Quantas sílabas tem a palavra “flor” em coreano? — a voz dela colada ao meu ouvido me esquentou mais que o cobertor. Pus o celular entre o travesseiro e meu rosto e me aninhei na cama enquanto ela continuava sem pausa. — O livro que você me deu tem os caracteres coreanos abaixo da tradução em inglês, mas eu não sei quantas sílabas tem “flor”. Nem qual deles é a “flor”.
— Bom, flor não tem sílaba, flor só tem um símbolo. — respondi de olhos fechados, sorrindo involuntariamente. Quem além de Chevalier me ligaria àquela hora com uma pergunta sobre o hangul, o alfabeto coreano?
— Me mostra. Eu vou te ligar por vídeo.
— Agora? — arregalei os olhos e não vi muita diferença, uma vez que o meu quarto estava todo escuro. — Mas eu estou deitado. — e num pijama de desenho animado, mas ela não precisava saber.
— Você dorme pelado por acaso? — ela zombou. — Eu só queria ver a sua cara.
Houve um breve silêncio. “Eu só queria ver a sua cara” era o jeito dela de dizer que estava com saudade?
— Estou curiosa sobre o processo de rimas que esse autor usa, por isso eu preciso saber a quantidade de sílabas das palavras. — emendou, preenchendo o mudo. — Me ajuda, meu cérebro está com coceirinha.
— Seu cérebro não sabe que aqui na Coreia são quatro da manhã?
— Não, esse fuso de vocês não me entra na cabeça. E para de fazer charme, você sempre faz tudo que eu quero, estou mal acostumada.
Me virei e apoiei o celular no peito depois de acender a luz do abajur e me certificar de que a coberta esconderia minha camiseta de mascote infantil. A tela expandiu e apareceu pelo visor usando um óculos, um suéter bege que cobria as mãos e deixava apenas as pontinhas das unhas à mostra, brancas, decisão temática para o réveillon. Ela tagarelou sobre a leitura e eu, hipnotizado pelo pingente de pérola que, ora ela colocava na boca, ora ela arrastava de um lado para o outro na corrente, esqueci de prestar atenção. O sono também não estava ajudando, meu corpo inteiro estava afundando na cama, não com dormência ou peso, mas com uma leveza que eu atribuí ao simples fato de olhar para sendo ela mesma e, de alguma forma, me mantendo por perto. Cerrei os olhos por um instante, demorando para tornar a abri-los, e parecia que ela tinha feito uma pergunta. Fui salvo por Dorota, que surgiu na tela acenando energicamente e despejando um monte de informações que eu também não entendi.
— Desliga, ! — Dory exclamou. — O coitado já está piscando devagarinho de tanto sono.
— , não! — chamei, despertando num espasmo que não durou muito tempo. — Não desliga agora.
— O que foi? — ela perguntou e eu notei que Dorota tinha sumido.
— Eu gosto de te ouvir falar… — confessei embolado. — Lê pra mim?
sorriu fino e apoiou o celular lateralmente em alguma coisa, ampliando meu campo de visão e confirmando que ela estava no quarto dela, sentada na cama com as pernas cobertas por uma calça de malha justa e meias de bolinhas. Ela pôs o livro no colo e eu fiquei olhando o blusão se mover conforme ela respirava, o perfil mostrando os piercings na orelha, que segurava o cabelo na altura do ombro, e a boca esboçando sorrisos a cada verso.
— “Antes de eu chamar pelo seu nome, ela não era nada além de um gesto.” — declamou baixinho, só pra mim. — “Quando eu chamei pelo seu nome, ela veio até mim, e em uma flor se transformou…”
A voz de enunciando aquelas estrofes me amoleceu completamente, misturando-se à observação que minha mãe fez mais cedo, uma palavra específica que pulsava por todo lugar da minha mente adormecida.
Saudade.
Eu acho que vou sonhar com você, …
— Tatuagens legais. — Minseo surgiu atrás de mim no sofá, me abraçando. — Ela é bonita demais pra você, como você tá dando conta?
— Eu não tô. — bloqueei a tela do celular. — Quer dizer, eu tô dando conta do meu trabalho, que é vigiá-la.
— Até daqui de Anyang? — minha irmã tomou o aparelho das minhas mãos e digitou minha senha. A tela abriu direto no perfil do Instagram que eu estava monitorando a cada cinco minutos.
O perfil da .
Faltavam algumas horas para a entrada do ano novo e tanto o Instagram dela como a conta que funcionava como periódico de fofocas do Seungkwan estavam recebendo várias atualizações da maior festa de virada de Nova York, onde ela estava naquela noite. E onde eu achava que também deveria estar. Minha família estava cuidando das suas coisas, movimentando a casa com suas conversas e seus afazeres, ocupando-se do cotidiano doméstico que eu tanto sentia falta quando estava lá no meu pequeno dormitório na Saint Peter, mas tudo o que eu conseguia fazer era ficar atualizando o maldito feed. Havia alguns rostos conhecidos: Marie Bee, Hoshi (com quem eu e Wonwoo batíamos bola de vez em quando) e uma amiga da que eu não lembrava o nome, mas parecia estar suprindo a “ausência” de Marie ultimamente.
E é claro, ela. Metida num vestido prata minúsculo, com uma fenda drapeada nas costas e o infeliz do Dokyeom de acessório.
— Uau! — Minseo assobiou. — Esse cara tem o perfil mais lindo e afiado que eu já vi na vida, acho até que cortei meu dedo.
Não respondi. Apenas senti um oco dolorido no peito e a feição se repuxar sozinha.
— Dane-se. Eu aposto que ele é um otário. — ela complementou ao perceber minha careta involuntária.
— Eu queria que ele fosse, seria mais fácil odiá-lo. — ri sem graça. — Mas, infelizmente, ele é um cara bem legal.
— Você também é, Gyu. — Minseo bagunçou meu cabelo. — Por que não fala com ela em vez de ficar aí com essa cara de cachorro sem dono?
— Porque ela com certeza não está pensando em mim agora.
— Vamos descobrir. — ela clicou no ícone do bate-papo e começou a digitar uma mensagem para . — “Querida , eu estou maluquinho por você…”
— MINSEO! — tentei tomar o celular de volta.
— “Por favor, vamos dar uns beijos quando eu voltar para Nova York…” — ela prosseguiu e eu tinha um pequeno derrame a cada som que o teclado fazia.
— Omma! — apelei para a suprema corte. — Faz a Minseo parar!
— Eu não enviei, chorão! — ela se defendeu.
Minha irmã devolveu o celular rindo da minha cara e, depois que os pontinhos pretos se dissiparam da minha vista, eu vi que a conversa com a estava exatamente no ponto em que eu tinha deixado: uma mensagem perguntando sobre o livro que eu dei a ela no Natal. Foi um presente estratégico, eu contava com a curiosidade literária dela para me perguntar sobre alguma palavra ou termo coreano, na esperança de que ela usasse o livro como desculpa para manter contato durante as férias, no entanto, quase um dia inteiro depois, ela ainda não tinha me respondido.
— Já se resolveram ou eu vou ter que deixar os dois sem sobremesa? — minha mãe se aproximou.
— Achei que só tinha kyungdan pro Mingyu. — Minseo reclamou, com ciúme.
— Seu irmão mora em outro país, querida, enquanto ele estiver nos visitando, é sempre a vez dele. — ela decretou e Minseo me mostrou a língua.
Minha mãe sentou-se ao meu lado e a vontade de subir para o meu quarto e ficar a sós com meu humor destemperado sumiu quando ela passou o bracinho por mim, me abraçando pequeno e imenso ao mesmo tempo. Havia alguma coisa sobre mães, sobre a fibra da qual elas eram feitas. A minha parecia feita de algodão, era quentinha e confortável, e sabia como ninguém o que se passava na minha cabeça.
E no meu coração.
— O nome disso é saudade. — omma afagou meu cabelo. — É um sentimento bem amargo, por isso eu fiz a sobremesa com mel só pra você.
Sorri, consolado pelo tom reconfortante e macio. Depois de tanto tempo cuidando da , eu cheguei a esquecer que também precisava ser protegido e acalentado, e descansar naquele amparo materno era o refúgio do qual eu necessitava.
— Sou muito grande pra deitar no seu colo? — perguntei, já recolhendo os pés do chão e me arrumando no sofá.
— Aish! — omma exasperou. — Você sempre vai ser o meu bebê.
— Omma… — repousei a cabeça nas pernas dela. — Como eu sei que alguém gosta de mim?
— Convide-a para ver cerejeiras. — ela fez um carinho nas minhas costas. — Deu certo para o seu pai.
Eu nem sabia se tinham cerejeiras em Nova York, nem se seriam tão lindas quanto as do parque de Anyang, muito menos se saberia o significado de um convite para vê-las, já que aquele era o típico encontro romântico e clichê dos casais coreanos. O que eu sabia era que já tinha várias rosas e borboletas em si mesma e, mais do que quaisquer outras, aquelas eram as flores que eu queria ver.
— Ela é um jardim inteirinho, omma. — assenti, sonolento, pensando no corpo que eu tinha deixado há um oceano de distância.
Remexi na cama algumas horas depois, meio em jet lag, sem saber onde tinha acordado. Lembrava de ter desejado “feliz ano novo” para todo mundo, ido para a cama e vestido o pijama, mas não me lembrava de ter me cobrido com o edredom, o que provavelmente foi ação da minha mãe e sua obsessão em me manter aquecido. A barriga cheia, o aconchego familiar de casa e as roupas de cama cheirando a amaciante poderiam embalar meu sono por mais algumas horas, mas por algum motivo, eu acordei.
O motivo era o toque do meu celular. Busquei o aparelho entre os lençóis já nervoso, porque o som vedado por um dos cobertores me entregou quem era antes que eu olhasse o display: tinha escolhido uma música chamada Shadow para ser o toque dela.
— , eu estou oficialmente de férias, viu? — atendi, fingindo estar incomodado, mas ansioso por ouvi-la.
— Quantas sílabas tem a palavra “flor” em coreano? — a voz dela colada ao meu ouvido me esquentou mais que o cobertor. Pus o celular entre o travesseiro e meu rosto e me aninhei na cama enquanto ela continuava sem pausa. — O livro que você me deu tem os caracteres coreanos abaixo da tradução em inglês, mas eu não sei quantas sílabas tem “flor”. Nem qual deles é a “flor”.
— Bom, flor não tem sílaba, flor só tem um símbolo. — respondi de olhos fechados, sorrindo involuntariamente. Quem além de Chevalier me ligaria àquela hora com uma pergunta sobre o hangul, o alfabeto coreano?
— Me mostra. Eu vou te ligar por vídeo.
— Agora? — arregalei os olhos e não vi muita diferença, uma vez que o meu quarto estava todo escuro. — Mas eu estou deitado. — e num pijama de desenho animado, mas ela não precisava saber.
— Você dorme pelado por acaso? — ela zombou. — Eu só queria ver a sua cara.
Houve um breve silêncio. “Eu só queria ver a sua cara” era o jeito dela de dizer que estava com saudade?
— Estou curiosa sobre o processo de rimas que esse autor usa, por isso eu preciso saber a quantidade de sílabas das palavras. — emendou, preenchendo o mudo. — Me ajuda, meu cérebro está com coceirinha.
— Seu cérebro não sabe que aqui na Coreia são quatro da manhã?
— Não, esse fuso de vocês não me entra na cabeça. E para de fazer charme, você sempre faz tudo que eu quero, estou mal acostumada.
Me virei e apoiei o celular no peito depois de acender a luz do abajur e me certificar de que a coberta esconderia minha camiseta de mascote infantil. A tela expandiu e apareceu pelo visor usando um óculos, um suéter bege que cobria as mãos e deixava apenas as pontinhas das unhas à mostra, brancas, decisão temática para o réveillon. Ela tagarelou sobre a leitura e eu, hipnotizado pelo pingente de pérola que, ora ela colocava na boca, ora ela arrastava de um lado para o outro na corrente, esqueci de prestar atenção. O sono também não estava ajudando, meu corpo inteiro estava afundando na cama, não com dormência ou peso, mas com uma leveza que eu atribuí ao simples fato de olhar para sendo ela mesma e, de alguma forma, me mantendo por perto. Cerrei os olhos por um instante, demorando para tornar a abri-los, e parecia que ela tinha feito uma pergunta. Fui salvo por Dorota, que surgiu na tela acenando energicamente e despejando um monte de informações que eu também não entendi.
— Desliga, ! — Dory exclamou. — O coitado já está piscando devagarinho de tanto sono.
— , não! — chamei, despertando num espasmo que não durou muito tempo. — Não desliga agora.
— O que foi? — ela perguntou e eu notei que Dorota tinha sumido.
— Eu gosto de te ouvir falar… — confessei embolado. — Lê pra mim?
sorriu fino e apoiou o celular lateralmente em alguma coisa, ampliando meu campo de visão e confirmando que ela estava no quarto dela, sentada na cama com as pernas cobertas por uma calça de malha justa e meias de bolinhas. Ela pôs o livro no colo e eu fiquei olhando o blusão se mover conforme ela respirava, o perfil mostrando os piercings na orelha, que segurava o cabelo na altura do ombro, e a boca esboçando sorrisos a cada verso.
— “Antes de eu chamar pelo seu nome, ela não era nada além de um gesto.” — declamou baixinho, só pra mim. — “Quando eu chamei pelo seu nome, ela veio até mim, e em uma flor se transformou…”
A voz de enunciando aquelas estrofes me amoleceu completamente, misturando-se à observação que minha mãe fez mais cedo, uma palavra específica que pulsava por todo lugar da minha mente adormecida.
Saudade.
Eu acho que vou sonhar com você, …
Capítulo 7 - O primeiro em tudo e o que dizem sobre os caras altos
De volta a Nova York, o verão dava os primeiros sinais de que chegaria: os dias esticaram, as noites foram ficando mais curtas e esquentou o suficiente para eu desenterrar as bermudas e as camisas mais leves do armário embutido do dormitório. Era um pequeno apartamento bem dividido, havia um quarto, um banheiro e uma saleta, já a copa para realizarmos as refeições ficava alguns andares abaixo. Não era tão espaçoso quanto uma casa de verdade, mas servia bem para mim, Wonwoo e, mais recentemente, Marie Bee, que gostava de passar tempo lá com o seu neném. Por causa das provas do último período, da preparação para o estágio e da monitoria que recebíamos do dr. Atinkson, meu melhor amigo e Marie não encontravam tanto tempo livre quanto gostariam para curtir o namoro recente, então eu tentava ajudá-los deixando-os sozinhos no quarto compartilhado sempre que possível. Depois de tirar muito sarro da cara de Wonwoo por ser chamado de neném, é claro. E de fazer com que ele lavasse a minha roupa.
Dormir no meu Honda feito uma sardinha numa lata, no entanto, era um sacrifício que merecia um pagamento maior do que fazer Wonwoo frequentar a lavanderia mais vezes. Mesmo depois de improvisar uma cama no banco traseiro, esconder as fivelas dos cintos de segurança e me ajeitar num travesseiro e num cobertor que eu arrastei do dormitório, meu pescoço amanheceu travado. Eu certamente pensaria em como vingar a noite mal dormida assim que meu espírito retornasse ao meu corpo depois de uma ducha, uma troca de roupa e um bom café da manhã.
Estalei as costas ao sair do carro para me espreguiçar, fez mais barulho que meu pescoço rígido irradiando dor quando tentei movê-lo. Entrei no prédio e abri a porta do apartamento cuidadosamente, tentando fazer o mínimo de ruído para não acordar o casal que ainda dormia o sono dos apaixonados. Sentia uma pontinha de inveja branca, era preciso admitir. Alguma coisa mudou desde que eu tinha voltado de Anyang e, depois de muito tempo sem sequer cogitar isso, eu voltei a querer acordar com alguém. Alguém que coubesse certinho no meu abraço, que se empolgasse falando de literatura, mesmo que eu não entendesse quase nada. Alguém para ser a minha primeira visão do dia, para curtir aqueles momentos matutinos bobos de “briga” por mais cinco minutinhos que virariam chamego antes de levantar e morning sex. Alguém que era louca por doce e para quem eu faria as melhores panquecas de chocolate do mundo.
Suspirei longo.
Você quer muita coisa, Mingyu.
E, no momento, tudo o que eu tinha era um banho gelado e rápido e meu reflexo cansado no espelho ao escovar os dentes. Suspirei outra vez, nocauteado pela realidade. Vesti roupas leves e um pouco de perfume e abandonei o quarto com o mesmo passo sorrateiro que usei para entrar. Fui até a cozinha e, por ser absurdamente cedo, não encontrei ninguém, o fogão e os utensílios estavam livres para mim e meu estômago cantante, que, saudoso do gosto coreano, pediu sopa (vantagens de estar sozinho, não ter que encarar outros estudantes apavorados com o fato de comermos macarrão e carne na primeira refeição do dia) e as panquecas que pensei antes. Depois de comer, coloquei a assadeira para esquentar enquanto preparava a massa em quantidade maior que o normal. Queria fazer um agrado para , afinal, era um sábado de manhã e ela estava se dispondo a vir para a universidade me ajudar com a minha tese.
Já fazia algum tempo que ela vinha me dedicando uma espécie de consultoria particular e nos encontrávamos sempre que possível em janelas entre as aulas para trabalhar no meu texto. Como pagamento, eu oferecia copos de café acompanhados de algum doce que eu preparava para ela — o que me lembrava de pesquisar uma receita de um mil folhas possível para minha cozinha limitada. Talvez Dorota pudesse me ajudar. A governanta dos Chevalier tinha um carinho maternal pela , uma mão cheia e um faro aguçado. Ela sacou bem antes de mim que, dados o tempo e a convivência, não era mais só a necessidade de um salário que me mantinha perto da .
Ela sacou bem antes de mim que a era o meu alguém.
Despejei a massa ainda meio preso em devaneio, esperando tomar forma e encorpar o necessário para virar. As primeiras saíram queimadas: seriam do Wonwoo. Analisei as mais redondas e fofinhas, guardando-as para num pote de vidro, depois piquei uma barra de chocolate e derreti em banho maria, adicionando leite aos pouquinhos para deixar a cobertura com a textura perfeita. A calda esfriou e eu ainda fiquei com o saldo de uma hora para matar antes que chegasse. Na falta de um lugar para ir, desci novamente até o carro, estacionado na sombra do carvalho frondoso bem na frente do prédio estudantil, e deitei novamente no projeto de cama. Apesar do meu sofrido pescoço padecendo, meus olhos quiseram fechar e eu cochilei de boca aberta, ainda mais torto e atravessado dessa vez.
— Você se mudou, foi? — acordei assustado com a batendo no vidro, juntando as mãos no rosto escurecido pelo fumê. — Não sabia que você estava desabrigado.
— Não sabia que você andava por esse lado do campus. — respondi arrastado, ainda meio dormente. O parque onde estudávamos ficava do sentido oposto ao dos dormitórios dos intercambistas, na outra ponta da universidade. — O que você está fazendo aqui no núcleo pobre?
— Minha melhor amiga não atende as minhas ligações e eu sei que o seu míope tem tudo a ver com isso. — abri a porta e encostou-se no tronco da árvore.
— É uma acusação grave, Chevalier. — brinquei e agradeci internamente pela temperatura elevada que fez prender o cabelo bem alto e deixar a tatuagem de coração atrás da orelha à mostra. — Você tem provas ou testemunhas?
— A Veronica bem ali. — apontou o carro branco de Marie Bee parado há alguns metros do meu, cheio de enfeites cor de rosa e com direito a nome de mulher.
— Hum… Então foi por isso que você veio aqui? Para espionar sua melhor amiga? — coloquei as pernas para fora do carro e reparou no meu short. — Sabia que o código criminal abrange a perseguição agora? Inciso número dois mil trezent-
— Nem começa, advogado do diabo. — meteu metade do corpo no carro, grudando o joelho na minha coxa exposta e na sobra estreita do banco, me obrigando a recuar. — Quem faz as perguntas aqui sou eu e eu vou perguntar só uma vez: desde quando a Marie Bee e o Wonwoo dormem juntos?
— Eu sei lá! — afastei o pensamento nauseante de Wonwoo praticando um ato sexual. — Eu tô fodendo com meu pescoço pra evitar saber qualquer coisa sobre isso!
— Mingyu… — agarrou minha camisa, impaciente, o olhar me penetrando. — Responde ou eu faço essa tua língua presa cantar.
— , não é grande coisa, eles dois estão juntos agora. — tentei mudar o foco da conversa para não ter que me concentrar no decote dela.
— É uma grande coisa. É a maior coisa de todas! A Marie nunca teve segredos comigo! — franziu o cenho, se indignando e se lamentando ao mesmo tempo.
— Sério? Ela nunca te escondeu nada?
meneou a cabeça.
— Eu conheço a Marie Bee desde que a senhorita Abbott sorteou nossos nomes na jarra e nós tivemos que fazer o projeto de ciências juntas. Isso foi na quarta série. Quarta série, Mingyu! — se inclinou feito uma fera antes do ataque e puxou meu colarinho, descobrindo mais pele. Ela estava zangada com a situação e, por falta de opção, canalizando a raiva em mim. — Nenhuma vez durante esse tempo todo eu vi a Marie Bee se interessar remotamente por outro ser humano e, quando finalmente acontece, ela me deixa de fora? Por quê?
— Acho que não era pra mim que você deveria perguntar isso. Conversa com ela. — sugeri, assustado, e fui cortado por vias físicas. — Ai! — ela afundou o dedo no meu peito.
— “Conversa com ela”. — ela me imitou, torcendo a boca. — Não é assim que funciona com a Marie Bee. Ela é um livro fechado. Ela nunca deixou ninguém passar da página 10 e de repente o seu amigo quatro olhos aí está ganhando um capítulo inteirinho só pra ele. — se enfiou ainda mais dentro do carro, segurou meu queixo e sussurrou. — Eu preciso saber detalhes desses dois, Kim Mingyu, e você vai usar sua vantagem de colega de quarto para me contar tudo.
— … — chamei apesar do bico que ela me obrigou a fazer, sendo apertado com mais força — Eu sei que você tá preocupada com a sua amiga, mas você se importa em parar de amassar a minha cara?
— Não muda de assunto, sombra. — sacudiu meu rosto e o pescoço travado latejou. — Desembucha.
De repente, antes que eu pudesse responder ou reclamar mais, testas e narizes colados. me empurrou deitado no banco traseiro e eu bati a cabeça na alça da porta, pronto para soltar um gemido que foi suprimido por dois dedos gentis carimbando meus lábios e um corpinho pequeno se jogando em cima do meu. A manobra me obrigou a fazer uma careta e tirou a mão da minha boca, usando as duas para deslizar pelo meu rosto e pelas laterais da minha nuca numa tentativa de suavizar minha expressão de dor.
— Me desculpa. — ela pediu baixinho, ofegando quente e gostoso no meu rosto com o hálito cheirando a pasta de dente de menta. — Acabei de ver o casal feliz saindo do dormitório. Não quero que a Marie me flagre.
— E a maldição do Mercúcio, hein? — sussurrei vitorioso para a debruçada em mim. — Lembra o que aconteceu com ele por se meter na vida dos outros? Não tem medo de ser apunhalada por um Teobaldo?
— Mentira! — ela sorriu, os dentes feito pérolas. — Você citando Shakespeare!
— Ao contrário do que você pensa, eu presto atenção no que você diz. — respirei bem fundo o cheiro dela, torcendo para que ficasse na minha roupa. — Você fica bonita falando das coisas que gosta.
— Se você presta tanta atenção em mim, saberia que eu tenho uma coisa que o Mercúcio não tinha. — cutucou o sinal no meu nariz.
— O quê?
— Você, sombra. — ela beijou minha bochecha, bem perto da boca. Uma ondinha de eletricidade boa quando nossas linhas se encostaram me fez sentir envolvido por uma chama morna.
— Eu não levaria um facada por você, não está no meu contrato. — ri baixinho, entorpecido, e me acompanhou.
— Cala a boca, eu quero tentar ver alguma coisa.
Fui praticamente mergulhado nos seios da quando ela semiergueu o tronco, colocando cada vez mais a cabeça acima do vidro e arriscando se revelar. Puxei-a de volta, passando os braços pela cintura nua, resultado da bagunça que éramos e que fez a camisa fina dela subir, e a guardei no meu peito.
— Assim eles vão te pegar. — censurei no ouvido dela. — Você é muito enxerida!
— E você é um péssimo fofoqueiro! — ela devolveu no mesmo lugar e mudou de assunto. — Que doce você trouxe pra mim hoje?
— Panquecas de chocolate. Estão em cima do painel. — mantive o tom abaixado, aproveitando aquela proximidade.
soltou ar quente ao sorrir, agitando-se um pouco. Ela recebia meus pratos com uma empolgação adorável, pulinhos e palminhas, mas como estávamos espremidos um contra o outro num espaço confinado, tudo que ela conseguiu foi se mexer abruptamente contra uma área que Deus fez para ser tratada com carinho. Eu a impulsionei para cima ao tentar salvar meus futuros filhos de serem esmagados, e arranquei dela um gritinho agudo de susto que fez ambos darem risada.
— Tem noção do quão errado isso vai parecer se alguém pegar a gente assim? — perguntei, risonho.
— É verdade. Me deixa sair daqui antes que você fique feliz demais. — brincou e me avançou um selar melado de protetor labial de morango na pontinha do nariz, que ela apertou em seguida para tirar a marca rosada.
— Ora, ora, ora.
Uma voz atravessou a janela e eu reconheci o timbre debochado de Boo Seungkwan. torceu os lábios num sorriso forçado e levantou-se, ainda com uma das pernas à minha volta, quase escorregando. Segurei a cintura dela para evitar a queda, sem perceber que aquilo comprometia ainda mais o cenário e deixava nossa posição consideravelmente mais sugestiva para nosso atento observador, o mais curioso estudante de Jornalismo da Saint Peter. Seungkwan assinava a coluna no jornal interno que foi, durante muito tempo, minha única e distante fonte de notícias sobre a . A mesma que tinha escolhido não usar sutiã naquela manhã e que agora estava montada bem em cima do meu estômago.
— O que temos aqui, Chevalier? — Seungkwan disparou com ironia. — Será que eu devo chamar o segurança do campus? Oh, espera. Já tem um bem embaixo de você.
— Bom dia, jornaleiro! — semicerrou os olhos. — Alguma coisa interessante na sua vida além de mim?
— Não é jornaleiro, é jornalista. — ele corrigiu. — Você gosta mesmo de um intercâmbio cultural, hã? Primeiro Dokyeom, agora Kim Mingyu… Versátil. Do jogador de futebol popular ao nerd do Direito.
irritou-se com o comentário e ajeitou-se no meu abdômen, indo perigosamente para trás.
— Ai, ! Cuidado! — apertei a cintura com mais força. — Tem uma carga preciosa aí atrás.
— Você não tem outra pessoa para atazanar? — me ignorou e continuou sua troca de farpas com Seungkwan. — Marie Bee acabou de sair daqui. Acompanhada. Vai lá saber por quem.
— Eu já sei. Essa notícia está desatualizada. — Seungkwan revelou com prepotência. — Tem pessoas torcendo pelo casal Jeon-Bee, já até batizaram de MariWoo. Está lá no meu periódico.
— Desculpe a minha alienação, é que eu não leio a sua coluna. — rolou os olhos, completamente esquecida da confusão dos nossos corpos tentando caber no carro apertado.
— Nesse caso, eu te aconselho a não perder a próxima edição. Vai ser tudo sobre você. — Seungkwan deu a cartada final com uma nota inofensiva de arrogância.
— E quando não é? Agora faz alguma coisa realmente útil e me ajuda a sair daqui. — bateu a cabeça no teto do carro e Seungkwan estendeu a mão para ela. Desci em seguida, arrumando minha roupa e meio aturdido.
— Parabéns, senhor Kim. — Seungkwan me cumprimentou. — Está prestes a sair do anonimato. Vejo vocês em Long Island.
— Desculpa por isso. — pediu novamente quando Seungkwan sumiu da nossa vista. — Andar comigo atrai uma atenção que você provavelmente não quer, não é?
— Eu posso lidar com os seus holofotes. Eu não posso é com você se jogando em mim daquele jeito. — rebati.
— Eu aposto que você pode. — ela piscou e eu peguei meu material de estudo, caminhando em busca de uma mesa no parque da universidade.
Era difícil saber até que ponto flertava comigo para se divertir ou se ela realmente me olhava e me queria de outra forma. O que havia de segurança nela, faltava em mim. Irônico, eu sei. O segurança inseguro. Mas eu tinha minhas razões: além da óbvia diferença social entre nós, eu era um cara quieto, discreto no jeito e nas falas, e era solar, pura luminescência. Ela era a única razão para eu ser lembrado nos programas sem fins acadêmicos da Saint Peter, como a ida à praia de Long Island na manhã seguinte, planejada por um grupo com alunos de vários cursos, amigos em comum. E o convite veio a calhar, considerando o nível de estresse que o artigo me causou, eu precisava de um bom banho de mar e um dia inteiro batendo bola.
— É isso? — olhei para o notebook, salvando as últimas alterações. — Eu terminei o artigo?
— Você? — quase engasgou com a panqueca que ela devorava enquanto eu lia as últimas linhas. — Você terminou o artigo?
— Nós. — corrigi, feliz com a ideia de conjunto. — Nós terminamos o artigo. — rodei os ombros e apoiei os cotovelos na mesa, puxando o ar entre os dentes.
— Ainda está doendo, não é? — perguntou, observando meu movimento.
— Eu me viraria para olhar pra você, mas meu pescoço travou. — ri da minha desgraça e afundei o rosto nas mãos, sentindo a junção do início das costas reclamar. — Céus. Eu estou tão exausto que esse torcicolo é o menor dos meus problemas. — falei e bocejei.
— E qual seria o seu maior problema? — limpou as mãos num guardanapo e colocou-se de pé atrás de mim, que continuei sentado e praticamente imóvel.
— Você. Bem no topo da lista. — brinquei e ela me beliscou, colando a barriga nas minhas costas.
— Você não merece nada do que eu faço por você, Kim Mingyu. Deita a cabeça pra trás e relaxa, tá? — ela deslizou pelos meus ombros e braços expostos pela camisa preta de manga curta.
— … tudo bem. — resisti ao carinho com medo de amolecer demais na frente dela. Eu tinha que manter a pose de forte, afinal.
— Re-la-xa. — ela ordenou, espalmando a minha testa e me empurrando para trás para apoiar minha cabeça no seu estômago. — Eu não vou te morder, ok?
Que pena.
Sem descolar de mim, mexeu na bolsa, achando um frasco pequeno de um hidratante chique. Colocou um pingo no dorso da mão, usando o local como tela para umedecer os dedos e começou a aplicar uma leve e gostosa pressão nas laterais do meu pescoço, deslizando pelos ombros, um pouco por baixo da camisa, com a pequena quantidade de loção na ponta dos dígitos.
— Assim está bom? — ela perguntou.
— Hmmmm. — gemi, rendido.
— Vou entender como um sim. — ela disse e me conduziu a inclinar a cabeça bem devagar para a esquerda, depois para a direita. Empurrou um pouco para frente e massageou a minha nuca, quase me reiniciando.
— Você é boa nisso. — balbuciei.
— E você está travado feito uma rocha, sombra. — ela respondeu com um tom preocupado e seguiu me alongando. — Você é bem grande, mas não é dois, viu? Precisa parar um pouco.
— Não tenho tempo para parar. — suspirei.
— E se eu arrumar pra você? — ela maneirou a força das mãos e começou a circular as vértebras com a falange dos dedos. — Esse final de semana eu vou ficar quietinha em casa e você vai poder fazer uma coisa bem legal na sua folga. Se chama dormir.
— Considerando que eu tenha onde fazer isso, seria ótimo. Ah! — gemi outra vez quando ela apertou a tensão do meu trapézio. — Mas não precisa.
— Precisa sim. Ou você prefere me assistir fazendo nada em casa a ter seu merecido sono da beleza? — ela fez um cafuné no meu cabelo e eu quase ronronei.
A verdade era que eu preferia qualquer coisa que me deixasse perto da , mas quando o celular dela vibrou em cima da mesa, eu percebi que ela poderia estar me dispensando por outro motivo. Um motivo bem desagradável: a notificação explícita que surgiu mostrava em miniatura um tanquinho de marmanjo enviado por um contato salvo com “D” e um emoji de coração.
Minha boca secou. Dokyeom estava (ânsia de vômito) mandando nudes para ?
— Uau! — exclamou e abriu a mensagem. — Se a entrada é boa assim, imagina a festa…— ela se inclinou um pouco sobre mim, meio que me abraçando, pinçou o celular e deu zoom nos gomos.
— , eu com certeza não tô afim de ver o abs do Dokyeom. — rangi os dentes e trinquei a mandíbula.
— Eu já vi. São ótimos. — me provocou com a bochecha colada na minha e os braços em minha volta. — Mas esses aqui não são os do Seo.
— Seo? — repeti com desgosto.
— Lee Seokmin. O nome do DK na verdade é-
— Eu sei. — interrompi. — É só que eu não vejo mais ninguém chamando ele assim.
— Ele não aceita muito bem se não vier de mim. — recebeu mais fotos, abrindo todas na minha frente.
— O que é isso, hein, ? — fechei os olhos, ainda preso no abraço. — Você assina o only fans desse cara aí ou quê?
— Eu assinaria, mas felizmente não preciso. Minha amiga Denise está numa praia na Tailândia e me manda essas belas fotos de graça.
Denise. Isso explicava o D e o coração. Desde que Marie Bee se isolou no “nenémverso”, era Denise quem estava mais próxima de , provando, pela quantidade de fotos e vídeos que, além do gosto para festas, as duas tinham o mesmo gosto para homens. Um tailandês aleatório era menos desconfortável que o capitão do time fazendo um ensaio sensual para , fato, mas pensar nas situações em que ela teve a oportunidade de ver o DK pelado me deixou amargo. E curioso.
— Sabe o que o Seungkwan disse mais cedo? Sobre o Seo-... Dokyeom…
— O que tem? — me soltou e bloqueou a tela, sentando-se e voltando sua atenção em morder a última fatia de panqueca esquecida na vasilha.
— Ele é tipo seu namorado? Ficante? Esquema? — soltei, despudorado.
— Ele é meu amigo. Por que a pergunta? — ela respondeu com o canto da boca melado de açúcar de confeiteiro. — Você tá afim dele?
A gracinha teria me deixado emburrado se eu não estivesse tão estranhamente alegre em saber que se referia a ele apenas como amigo. Não que eu fosse fazer alguma coisa além de esticar o dedo e limpar a boca dela (quando queria fazê-lo usando a minha), mas saber que não havia uma relação oficial ali me aliviou um pouco o ciúme.
— Eu só queria saber. — fiz um bico. — E ele não faz o meu tipo, ok?
— Ele faz o tipo de todo mundo, Mingyu. — debruçou-se sobre a mesa sorrindo, esticando os braços e deitando em cima deles. — Seokmin foi meu primeiro beijo. Aliás, ele foi meu… primeiro. Em tudo. — ela remexeu no banco, largando um riso tímido. — No último ano da escola, no baile, éramos os únicos que não tinham feito aquilo ainda. Queríamos que fosse com alguém especial. Foi bem fofo.
— Desde então, vocês… — disse, sem coragem de terminar a frase. Era melhor que eu não soubesse.
— Vááárias vezes, mas sem compromisso. — deu de ombros e eu fiquei carrancudo por causa do “várias vezes” que ela prolongou demais. — Somos amigos com benefícios, eu acho. — ela batucou os dedos na madeira.
— Você acha? — senti uma pontada de queimação no estômago.
— É que faz tempo desde que… — ela se pausou com embaraço. — Quer saber? Eu já falei demais. Agora é a parte em que você me conta de você.
— Eu? — aumentei o bico. — O que tem eu?
— Oh, não. — empertigou-se, fazendo uma cara de susto sarcástica. — Você ainda é virgem?
— Eu tinha 16 anos, tá? — cortei, escutando a risada dela ecoar. — Foi bem desajeitado. Mas acho que a primeira vez é assim pra todo mundo.
— A felizarda sobreviveu? Quer dizer, olha só o seu tamanho, coitada… — apertou meu bíceps. — Sabe o que dizem sobre caras altos, né?
— Vai ter um dia que eu vou parar de falar com você, Chevalier. — ameacei e segurei a mão dela, exibindo as unhas compridas e pintadas de preto. — Isso aqui é uma arma branca, sabia? Você arranha que é uma beleza.
— Você ainda não viu nada, gatinho. — ela se levantou, apanhando a bolsa. — E não esquece de ir me buscar amanhã para irmos à Long Island.
Como se eu conseguisse, . Como se eu conseguisse esquecer você.
Dormir no meu Honda feito uma sardinha numa lata, no entanto, era um sacrifício que merecia um pagamento maior do que fazer Wonwoo frequentar a lavanderia mais vezes. Mesmo depois de improvisar uma cama no banco traseiro, esconder as fivelas dos cintos de segurança e me ajeitar num travesseiro e num cobertor que eu arrastei do dormitório, meu pescoço amanheceu travado. Eu certamente pensaria em como vingar a noite mal dormida assim que meu espírito retornasse ao meu corpo depois de uma ducha, uma troca de roupa e um bom café da manhã.
Estalei as costas ao sair do carro para me espreguiçar, fez mais barulho que meu pescoço rígido irradiando dor quando tentei movê-lo. Entrei no prédio e abri a porta do apartamento cuidadosamente, tentando fazer o mínimo de ruído para não acordar o casal que ainda dormia o sono dos apaixonados. Sentia uma pontinha de inveja branca, era preciso admitir. Alguma coisa mudou desde que eu tinha voltado de Anyang e, depois de muito tempo sem sequer cogitar isso, eu voltei a querer acordar com alguém. Alguém que coubesse certinho no meu abraço, que se empolgasse falando de literatura, mesmo que eu não entendesse quase nada. Alguém para ser a minha primeira visão do dia, para curtir aqueles momentos matutinos bobos de “briga” por mais cinco minutinhos que virariam chamego antes de levantar e morning sex. Alguém que era louca por doce e para quem eu faria as melhores panquecas de chocolate do mundo.
Suspirei longo.
Você quer muita coisa, Mingyu.
E, no momento, tudo o que eu tinha era um banho gelado e rápido e meu reflexo cansado no espelho ao escovar os dentes. Suspirei outra vez, nocauteado pela realidade. Vesti roupas leves e um pouco de perfume e abandonei o quarto com o mesmo passo sorrateiro que usei para entrar. Fui até a cozinha e, por ser absurdamente cedo, não encontrei ninguém, o fogão e os utensílios estavam livres para mim e meu estômago cantante, que, saudoso do gosto coreano, pediu sopa (vantagens de estar sozinho, não ter que encarar outros estudantes apavorados com o fato de comermos macarrão e carne na primeira refeição do dia) e as panquecas que pensei antes. Depois de comer, coloquei a assadeira para esquentar enquanto preparava a massa em quantidade maior que o normal. Queria fazer um agrado para , afinal, era um sábado de manhã e ela estava se dispondo a vir para a universidade me ajudar com a minha tese.
Já fazia algum tempo que ela vinha me dedicando uma espécie de consultoria particular e nos encontrávamos sempre que possível em janelas entre as aulas para trabalhar no meu texto. Como pagamento, eu oferecia copos de café acompanhados de algum doce que eu preparava para ela — o que me lembrava de pesquisar uma receita de um mil folhas possível para minha cozinha limitada. Talvez Dorota pudesse me ajudar. A governanta dos Chevalier tinha um carinho maternal pela , uma mão cheia e um faro aguçado. Ela sacou bem antes de mim que, dados o tempo e a convivência, não era mais só a necessidade de um salário que me mantinha perto da .
Ela sacou bem antes de mim que a era o meu alguém.
Despejei a massa ainda meio preso em devaneio, esperando tomar forma e encorpar o necessário para virar. As primeiras saíram queimadas: seriam do Wonwoo. Analisei as mais redondas e fofinhas, guardando-as para num pote de vidro, depois piquei uma barra de chocolate e derreti em banho maria, adicionando leite aos pouquinhos para deixar a cobertura com a textura perfeita. A calda esfriou e eu ainda fiquei com o saldo de uma hora para matar antes que chegasse. Na falta de um lugar para ir, desci novamente até o carro, estacionado na sombra do carvalho frondoso bem na frente do prédio estudantil, e deitei novamente no projeto de cama. Apesar do meu sofrido pescoço padecendo, meus olhos quiseram fechar e eu cochilei de boca aberta, ainda mais torto e atravessado dessa vez.
— Você se mudou, foi? — acordei assustado com a batendo no vidro, juntando as mãos no rosto escurecido pelo fumê. — Não sabia que você estava desabrigado.
— Não sabia que você andava por esse lado do campus. — respondi arrastado, ainda meio dormente. O parque onde estudávamos ficava do sentido oposto ao dos dormitórios dos intercambistas, na outra ponta da universidade. — O que você está fazendo aqui no núcleo pobre?
— Minha melhor amiga não atende as minhas ligações e eu sei que o seu míope tem tudo a ver com isso. — abri a porta e encostou-se no tronco da árvore.
— É uma acusação grave, Chevalier. — brinquei e agradeci internamente pela temperatura elevada que fez prender o cabelo bem alto e deixar a tatuagem de coração atrás da orelha à mostra. — Você tem provas ou testemunhas?
— A Veronica bem ali. — apontou o carro branco de Marie Bee parado há alguns metros do meu, cheio de enfeites cor de rosa e com direito a nome de mulher.
— Hum… Então foi por isso que você veio aqui? Para espionar sua melhor amiga? — coloquei as pernas para fora do carro e reparou no meu short. — Sabia que o código criminal abrange a perseguição agora? Inciso número dois mil trezent-
— Nem começa, advogado do diabo. — meteu metade do corpo no carro, grudando o joelho na minha coxa exposta e na sobra estreita do banco, me obrigando a recuar. — Quem faz as perguntas aqui sou eu e eu vou perguntar só uma vez: desde quando a Marie Bee e o Wonwoo dormem juntos?
— Eu sei lá! — afastei o pensamento nauseante de Wonwoo praticando um ato sexual. — Eu tô fodendo com meu pescoço pra evitar saber qualquer coisa sobre isso!
— Mingyu… — agarrou minha camisa, impaciente, o olhar me penetrando. — Responde ou eu faço essa tua língua presa cantar.
— , não é grande coisa, eles dois estão juntos agora. — tentei mudar o foco da conversa para não ter que me concentrar no decote dela.
— É uma grande coisa. É a maior coisa de todas! A Marie nunca teve segredos comigo! — franziu o cenho, se indignando e se lamentando ao mesmo tempo.
— Sério? Ela nunca te escondeu nada?
meneou a cabeça.
— Eu conheço a Marie Bee desde que a senhorita Abbott sorteou nossos nomes na jarra e nós tivemos que fazer o projeto de ciências juntas. Isso foi na quarta série. Quarta série, Mingyu! — se inclinou feito uma fera antes do ataque e puxou meu colarinho, descobrindo mais pele. Ela estava zangada com a situação e, por falta de opção, canalizando a raiva em mim. — Nenhuma vez durante esse tempo todo eu vi a Marie Bee se interessar remotamente por outro ser humano e, quando finalmente acontece, ela me deixa de fora? Por quê?
— Acho que não era pra mim que você deveria perguntar isso. Conversa com ela. — sugeri, assustado, e fui cortado por vias físicas. — Ai! — ela afundou o dedo no meu peito.
— “Conversa com ela”. — ela me imitou, torcendo a boca. — Não é assim que funciona com a Marie Bee. Ela é um livro fechado. Ela nunca deixou ninguém passar da página 10 e de repente o seu amigo quatro olhos aí está ganhando um capítulo inteirinho só pra ele. — se enfiou ainda mais dentro do carro, segurou meu queixo e sussurrou. — Eu preciso saber detalhes desses dois, Kim Mingyu, e você vai usar sua vantagem de colega de quarto para me contar tudo.
— … — chamei apesar do bico que ela me obrigou a fazer, sendo apertado com mais força — Eu sei que você tá preocupada com a sua amiga, mas você se importa em parar de amassar a minha cara?
— Não muda de assunto, sombra. — sacudiu meu rosto e o pescoço travado latejou. — Desembucha.
De repente, antes que eu pudesse responder ou reclamar mais, testas e narizes colados. me empurrou deitado no banco traseiro e eu bati a cabeça na alça da porta, pronto para soltar um gemido que foi suprimido por dois dedos gentis carimbando meus lábios e um corpinho pequeno se jogando em cima do meu. A manobra me obrigou a fazer uma careta e tirou a mão da minha boca, usando as duas para deslizar pelo meu rosto e pelas laterais da minha nuca numa tentativa de suavizar minha expressão de dor.
— Me desculpa. — ela pediu baixinho, ofegando quente e gostoso no meu rosto com o hálito cheirando a pasta de dente de menta. — Acabei de ver o casal feliz saindo do dormitório. Não quero que a Marie me flagre.
— E a maldição do Mercúcio, hein? — sussurrei vitorioso para a debruçada em mim. — Lembra o que aconteceu com ele por se meter na vida dos outros? Não tem medo de ser apunhalada por um Teobaldo?
— Mentira! — ela sorriu, os dentes feito pérolas. — Você citando Shakespeare!
— Ao contrário do que você pensa, eu presto atenção no que você diz. — respirei bem fundo o cheiro dela, torcendo para que ficasse na minha roupa. — Você fica bonita falando das coisas que gosta.
— Se você presta tanta atenção em mim, saberia que eu tenho uma coisa que o Mercúcio não tinha. — cutucou o sinal no meu nariz.
— O quê?
— Você, sombra. — ela beijou minha bochecha, bem perto da boca. Uma ondinha de eletricidade boa quando nossas linhas se encostaram me fez sentir envolvido por uma chama morna.
— Eu não levaria um facada por você, não está no meu contrato. — ri baixinho, entorpecido, e me acompanhou.
— Cala a boca, eu quero tentar ver alguma coisa.
Fui praticamente mergulhado nos seios da quando ela semiergueu o tronco, colocando cada vez mais a cabeça acima do vidro e arriscando se revelar. Puxei-a de volta, passando os braços pela cintura nua, resultado da bagunça que éramos e que fez a camisa fina dela subir, e a guardei no meu peito.
— Assim eles vão te pegar. — censurei no ouvido dela. — Você é muito enxerida!
— E você é um péssimo fofoqueiro! — ela devolveu no mesmo lugar e mudou de assunto. — Que doce você trouxe pra mim hoje?
— Panquecas de chocolate. Estão em cima do painel. — mantive o tom abaixado, aproveitando aquela proximidade.
soltou ar quente ao sorrir, agitando-se um pouco. Ela recebia meus pratos com uma empolgação adorável, pulinhos e palminhas, mas como estávamos espremidos um contra o outro num espaço confinado, tudo que ela conseguiu foi se mexer abruptamente contra uma área que Deus fez para ser tratada com carinho. Eu a impulsionei para cima ao tentar salvar meus futuros filhos de serem esmagados, e arranquei dela um gritinho agudo de susto que fez ambos darem risada.
— Tem noção do quão errado isso vai parecer se alguém pegar a gente assim? — perguntei, risonho.
— É verdade. Me deixa sair daqui antes que você fique feliz demais. — brincou e me avançou um selar melado de protetor labial de morango na pontinha do nariz, que ela apertou em seguida para tirar a marca rosada.
— Ora, ora, ora.
Uma voz atravessou a janela e eu reconheci o timbre debochado de Boo Seungkwan. torceu os lábios num sorriso forçado e levantou-se, ainda com uma das pernas à minha volta, quase escorregando. Segurei a cintura dela para evitar a queda, sem perceber que aquilo comprometia ainda mais o cenário e deixava nossa posição consideravelmente mais sugestiva para nosso atento observador, o mais curioso estudante de Jornalismo da Saint Peter. Seungkwan assinava a coluna no jornal interno que foi, durante muito tempo, minha única e distante fonte de notícias sobre a . A mesma que tinha escolhido não usar sutiã naquela manhã e que agora estava montada bem em cima do meu estômago.
— O que temos aqui, Chevalier? — Seungkwan disparou com ironia. — Será que eu devo chamar o segurança do campus? Oh, espera. Já tem um bem embaixo de você.
— Bom dia, jornaleiro! — semicerrou os olhos. — Alguma coisa interessante na sua vida além de mim?
— Não é jornaleiro, é jornalista. — ele corrigiu. — Você gosta mesmo de um intercâmbio cultural, hã? Primeiro Dokyeom, agora Kim Mingyu… Versátil. Do jogador de futebol popular ao nerd do Direito.
irritou-se com o comentário e ajeitou-se no meu abdômen, indo perigosamente para trás.
— Ai, ! Cuidado! — apertei a cintura com mais força. — Tem uma carga preciosa aí atrás.
— Você não tem outra pessoa para atazanar? — me ignorou e continuou sua troca de farpas com Seungkwan. — Marie Bee acabou de sair daqui. Acompanhada. Vai lá saber por quem.
— Eu já sei. Essa notícia está desatualizada. — Seungkwan revelou com prepotência. — Tem pessoas torcendo pelo casal Jeon-Bee, já até batizaram de MariWoo. Está lá no meu periódico.
— Desculpe a minha alienação, é que eu não leio a sua coluna. — rolou os olhos, completamente esquecida da confusão dos nossos corpos tentando caber no carro apertado.
— Nesse caso, eu te aconselho a não perder a próxima edição. Vai ser tudo sobre você. — Seungkwan deu a cartada final com uma nota inofensiva de arrogância.
— E quando não é? Agora faz alguma coisa realmente útil e me ajuda a sair daqui. — bateu a cabeça no teto do carro e Seungkwan estendeu a mão para ela. Desci em seguida, arrumando minha roupa e meio aturdido.
— Parabéns, senhor Kim. — Seungkwan me cumprimentou. — Está prestes a sair do anonimato. Vejo vocês em Long Island.
— Desculpa por isso. — pediu novamente quando Seungkwan sumiu da nossa vista. — Andar comigo atrai uma atenção que você provavelmente não quer, não é?
— Eu posso lidar com os seus holofotes. Eu não posso é com você se jogando em mim daquele jeito. — rebati.
— Eu aposto que você pode. — ela piscou e eu peguei meu material de estudo, caminhando em busca de uma mesa no parque da universidade.
Era difícil saber até que ponto flertava comigo para se divertir ou se ela realmente me olhava e me queria de outra forma. O que havia de segurança nela, faltava em mim. Irônico, eu sei. O segurança inseguro. Mas eu tinha minhas razões: além da óbvia diferença social entre nós, eu era um cara quieto, discreto no jeito e nas falas, e era solar, pura luminescência. Ela era a única razão para eu ser lembrado nos programas sem fins acadêmicos da Saint Peter, como a ida à praia de Long Island na manhã seguinte, planejada por um grupo com alunos de vários cursos, amigos em comum. E o convite veio a calhar, considerando o nível de estresse que o artigo me causou, eu precisava de um bom banho de mar e um dia inteiro batendo bola.
— É isso? — olhei para o notebook, salvando as últimas alterações. — Eu terminei o artigo?
— Você? — quase engasgou com a panqueca que ela devorava enquanto eu lia as últimas linhas. — Você terminou o artigo?
— Nós. — corrigi, feliz com a ideia de conjunto. — Nós terminamos o artigo. — rodei os ombros e apoiei os cotovelos na mesa, puxando o ar entre os dentes.
— Ainda está doendo, não é? — perguntou, observando meu movimento.
— Eu me viraria para olhar pra você, mas meu pescoço travou. — ri da minha desgraça e afundei o rosto nas mãos, sentindo a junção do início das costas reclamar. — Céus. Eu estou tão exausto que esse torcicolo é o menor dos meus problemas. — falei e bocejei.
— E qual seria o seu maior problema? — limpou as mãos num guardanapo e colocou-se de pé atrás de mim, que continuei sentado e praticamente imóvel.
— Você. Bem no topo da lista. — brinquei e ela me beliscou, colando a barriga nas minhas costas.
— Você não merece nada do que eu faço por você, Kim Mingyu. Deita a cabeça pra trás e relaxa, tá? — ela deslizou pelos meus ombros e braços expostos pela camisa preta de manga curta.
— … tudo bem. — resisti ao carinho com medo de amolecer demais na frente dela. Eu tinha que manter a pose de forte, afinal.
— Re-la-xa. — ela ordenou, espalmando a minha testa e me empurrando para trás para apoiar minha cabeça no seu estômago. — Eu não vou te morder, ok?
Que pena.
Sem descolar de mim, mexeu na bolsa, achando um frasco pequeno de um hidratante chique. Colocou um pingo no dorso da mão, usando o local como tela para umedecer os dedos e começou a aplicar uma leve e gostosa pressão nas laterais do meu pescoço, deslizando pelos ombros, um pouco por baixo da camisa, com a pequena quantidade de loção na ponta dos dígitos.
— Assim está bom? — ela perguntou.
— Hmmmm. — gemi, rendido.
— Vou entender como um sim. — ela disse e me conduziu a inclinar a cabeça bem devagar para a esquerda, depois para a direita. Empurrou um pouco para frente e massageou a minha nuca, quase me reiniciando.
— Você é boa nisso. — balbuciei.
— E você está travado feito uma rocha, sombra. — ela respondeu com um tom preocupado e seguiu me alongando. — Você é bem grande, mas não é dois, viu? Precisa parar um pouco.
— Não tenho tempo para parar. — suspirei.
— E se eu arrumar pra você? — ela maneirou a força das mãos e começou a circular as vértebras com a falange dos dedos. — Esse final de semana eu vou ficar quietinha em casa e você vai poder fazer uma coisa bem legal na sua folga. Se chama dormir.
— Considerando que eu tenha onde fazer isso, seria ótimo. Ah! — gemi outra vez quando ela apertou a tensão do meu trapézio. — Mas não precisa.
— Precisa sim. Ou você prefere me assistir fazendo nada em casa a ter seu merecido sono da beleza? — ela fez um cafuné no meu cabelo e eu quase ronronei.
A verdade era que eu preferia qualquer coisa que me deixasse perto da , mas quando o celular dela vibrou em cima da mesa, eu percebi que ela poderia estar me dispensando por outro motivo. Um motivo bem desagradável: a notificação explícita que surgiu mostrava em miniatura um tanquinho de marmanjo enviado por um contato salvo com “D” e um emoji de coração.
Minha boca secou. Dokyeom estava (ânsia de vômito) mandando nudes para ?
— Uau! — exclamou e abriu a mensagem. — Se a entrada é boa assim, imagina a festa…— ela se inclinou um pouco sobre mim, meio que me abraçando, pinçou o celular e deu zoom nos gomos.
— , eu com certeza não tô afim de ver o abs do Dokyeom. — rangi os dentes e trinquei a mandíbula.
— Eu já vi. São ótimos. — me provocou com a bochecha colada na minha e os braços em minha volta. — Mas esses aqui não são os do Seo.
— Seo? — repeti com desgosto.
— Lee Seokmin. O nome do DK na verdade é-
— Eu sei. — interrompi. — É só que eu não vejo mais ninguém chamando ele assim.
— Ele não aceita muito bem se não vier de mim. — recebeu mais fotos, abrindo todas na minha frente.
— O que é isso, hein, ? — fechei os olhos, ainda preso no abraço. — Você assina o only fans desse cara aí ou quê?
— Eu assinaria, mas felizmente não preciso. Minha amiga Denise está numa praia na Tailândia e me manda essas belas fotos de graça.
Denise. Isso explicava o D e o coração. Desde que Marie Bee se isolou no “nenémverso”, era Denise quem estava mais próxima de , provando, pela quantidade de fotos e vídeos que, além do gosto para festas, as duas tinham o mesmo gosto para homens. Um tailandês aleatório era menos desconfortável que o capitão do time fazendo um ensaio sensual para , fato, mas pensar nas situações em que ela teve a oportunidade de ver o DK pelado me deixou amargo. E curioso.
— Sabe o que o Seungkwan disse mais cedo? Sobre o Seo-... Dokyeom…
— O que tem? — me soltou e bloqueou a tela, sentando-se e voltando sua atenção em morder a última fatia de panqueca esquecida na vasilha.
— Ele é tipo seu namorado? Ficante? Esquema? — soltei, despudorado.
— Ele é meu amigo. Por que a pergunta? — ela respondeu com o canto da boca melado de açúcar de confeiteiro. — Você tá afim dele?
A gracinha teria me deixado emburrado se eu não estivesse tão estranhamente alegre em saber que se referia a ele apenas como amigo. Não que eu fosse fazer alguma coisa além de esticar o dedo e limpar a boca dela (quando queria fazê-lo usando a minha), mas saber que não havia uma relação oficial ali me aliviou um pouco o ciúme.
— Eu só queria saber. — fiz um bico. — E ele não faz o meu tipo, ok?
— Ele faz o tipo de todo mundo, Mingyu. — debruçou-se sobre a mesa sorrindo, esticando os braços e deitando em cima deles. — Seokmin foi meu primeiro beijo. Aliás, ele foi meu… primeiro. Em tudo. — ela remexeu no banco, largando um riso tímido. — No último ano da escola, no baile, éramos os únicos que não tinham feito aquilo ainda. Queríamos que fosse com alguém especial. Foi bem fofo.
— Desde então, vocês… — disse, sem coragem de terminar a frase. Era melhor que eu não soubesse.
— Vááárias vezes, mas sem compromisso. — deu de ombros e eu fiquei carrancudo por causa do “várias vezes” que ela prolongou demais. — Somos amigos com benefícios, eu acho. — ela batucou os dedos na madeira.
— Você acha? — senti uma pontada de queimação no estômago.
— É que faz tempo desde que… — ela se pausou com embaraço. — Quer saber? Eu já falei demais. Agora é a parte em que você me conta de você.
— Eu? — aumentei o bico. — O que tem eu?
— Oh, não. — empertigou-se, fazendo uma cara de susto sarcástica. — Você ainda é virgem?
— Eu tinha 16 anos, tá? — cortei, escutando a risada dela ecoar. — Foi bem desajeitado. Mas acho que a primeira vez é assim pra todo mundo.
— A felizarda sobreviveu? Quer dizer, olha só o seu tamanho, coitada… — apertou meu bíceps. — Sabe o que dizem sobre caras altos, né?
— Vai ter um dia que eu vou parar de falar com você, Chevalier. — ameacei e segurei a mão dela, exibindo as unhas compridas e pintadas de preto. — Isso aqui é uma arma branca, sabia? Você arranha que é uma beleza.
— Você ainda não viu nada, gatinho. — ela se levantou, apanhando a bolsa. — E não esquece de ir me buscar amanhã para irmos à Long Island.
Como se eu conseguisse, . Como se eu conseguisse esquecer você.
Capítulo 8 - A faísca
Combinei de buscar para irmos juntos à praia de Long Island. Poderíamos ter aceitado a carona de Wonwoo e Marie, mas, além de não estarmos propensos a aturar a cantoria do casal radiante, eles levariam Seungkwan, o “desafeto” de , com quem ela implicava puramente por passatempo: adorava ser assunto e Seungkwan, apesar de intrometido, tinha um código de ética e de conduta, nunca publicando nada que não fosse autorizado — deixando de lado, inclusive, a cena da em cima de mim na véspera, depois que lhe explicamos o mal-entendido. Em troca, é claro, pediu uma selfie da e uma menção num story, que eu vi que havia sido postado minutos antes de eu chegar ao portão de ferro da mansão Chevalier.
Larguei o celular quando ela surgiu ao longe, no início do jardim, e conforme caminhava até meu carro, pude distinguir perfeitamente, debaixo da camiseta oversized de futebol, o biquíni preto denunciado pela luz do sol contra o tactel. era do tipo de pessoa “pronta pra ir” e não trazia nada além de uma mala pequena e uma bolsa que, pelo formato, comportava uma toalha, uma necessaire e uma muda de roupa.
— Eu pensei que você torcia para os Jets. — confrontei quando desci do carro para guardar a mala dela e eu vi o escudo do Kentucky estampado na camisa que ela usava.
— E torço. Mas essa camisa aqui foi usada pelo homem da minha vida. — me cumprimentou com um rápido beijo no rosto. — Kevin Scott Richardson, dos Backstreet Boys. Ele atirou na plateia num show.
— Você gosta de boybands, é? — entramos no carro e eu comecei a dirigir, depois de passar o celular para com o aplicativo de música aberto, para que ela escolhesse a playlist da viagem.
— Por que não? — ela aceitou o aparelho e ficou confortável depois de afivelar o cinto. — Você bem que poderia ter feito parte de algum grupo de Kpop. Já pensou nisso?
— Cantar e dançar com outros 12 caras? Não, obrigado. Prefiro me descabelar tentando manter uma certa riscadinha em segurança. — sorri para ela, esticando os olhos para as tatuagens.
— Pode perguntar, vai. — reparou onde minha vista estava. — Qual delas está te deixando curioso?
— Todas. — voltei a atenção para a pista e apertei o volante que eu segurava com uma única mão. — Mas acho que os algarismos romanos…
— Hm… — procurou em si mesma, achando os dedos destros com anéis de prata bem finos, marcados com os números. — XVII. Meu canto favorito do meu livro favorito. A Divina Comédia, de Dante Alighieri.
Raspei a garganta. Não sabia como dizer a uma estudante de literatura brilhante que nunca tinha lido uma linha sequer dos clássicos, talvez por estar tão engessado nos livros escritos em língua morta do Direito, carregados de termos em latim e vazios de poesia. Mas a … tudo nela tinha uma história, uma rima. Ela era um romance.
— Sobre o que é? — perguntei, enfim, prevendo mais uma das nossas conversas sobre literatura.
— Sobre todos nós, Mingyu. Um homem enfrentando inferno e purgatório em busca de seu paraíso. Não é isso que fazemos todos os dias? Buscar a felicidade, o paraíso? — ela relaxou a postura no banco, recostando-se e perdendo-se na janela. Reclinou mais a cabeça e virou o rosto para o meu, demorando nele. — Você já achou o seu paraíso?
Encarei rapidamente, não conseguindo conter um sorriso que logo se desfez pelo frio no meu estômago.
— Talvez o paraíso não seja para todos.
— Talvez seja para os corajosos. — ela sussurrou.
A tensão que preencheu o carro era tangível. tocou meu braço descansando no câmbio da marcha, me dando um tapinha que terminou com uma carícia. Não pude aproveitar o toque, porque ela mesma se encarregou de mudar a atmosfera densa ao interromper o carinho e quebrar minha mudez.
— De qualquer forma, eu te empresto o livro. Você tem que se educar em literatura. — ela me repreendeu. — Quem sabe você encontra a sua Beatriz.
— Beatriz? — contemplei minha cara de ponto de interrogação quando olhei pelo retrovisor.
— A musa inspiradora do poeta. — respondeu simplista. — O paraíso de Dante era uma mulher.
O meu também, Dante. O meu também…
***
— Como é que é?
A voz da , sempre numa toada tão mansa, ecoou pelo vão da recepção do charmoso hotel. Era um pé na areia muito bem arrumado, dispunha de elevador, hidromassagem, serviço de quarto e uns atendentes educados que falavam um pouco baixo demais, fazendo a reclamação da soar mais alto e atrair alguns olhares confusos, principalmente o dela mesma.
— Sinto muito, senhorita Chevalier. — a recepcionista uniu as sobrancelhas. — A suíte para duas pessoas da senhorita Bee já está ocupada por ela e pelo…
— Quatro olhos.
— Senhor Jeon. — a moça corrigiu .
balançou a cabeça, incrédula, respirando pesadamente. Notei que o rosto tinha ganhado um rubor e ela não fazia ideia de como reagir, murmurando qualquer coisa entre os lábios carnudos e semicerrados, com as ideias visivelmente embaralhadas. Ela foi pega de surpresa ao saber que não ficaria no mesmo quarto que a amiga, mas já que os dois estavam namorando (ou quase isso), era uma conta simples.
— … — toquei o braço dela, apoiado no balcão. — A Marie Bee e o Wonwoo são um casal agora… Meio que faz sentido eles ficarem no mesmo quarto.
— Eu sei, mas… — ela estalou a língua, frustrada. — A gente vem aqui há anos. A gente sempre fica nesse quarto do primeiro andar porque a maluca acha que, se acontecer qualquer coisa, vai ser mais fácil de sair… E agora ela… — tentava terminar as frases. — Sem nem me avisar?
Encaixei a mão na dela, circulando as juntas na tentativa de oferecer algum consolo. Era nítido o quanto estava empolgada por ver Marie Bee, a pérola que ela sempre quis tirar da concha, finalmente vivendo o mundo ao seu redor, mas isso também representava uma “ameaça” de estar “perdendo” mais uma pessoa importante na vida dela. nunca me disse isso, é óbvio. Não com palavras. Eu é que conseguia ver tudo nos seus olhos assustados e cinza, carentes de um pouco do brilho tão característico dela, daquela faísca intensa que fazia a ser tão… a .
— Bom, eu sabia. Eu deveria ter comentado isso com você, não é? — suspirei.
— Relaxa. Não é de você que eu tô com raiva. — levantou a vista e localizou uma figura deslocada que se aproximava ao longe, fazendo careta.
— Mingyu! — Wonwoo me cumprimentou apertando os olhos. Batemos os ombros e ele percebeu que estava atrás de mim. — Oi, ! — ele cumprimentou sem fazer a menor ideia de que a vida dele estava em risco.
— Oi, Jeon. — ela respondeu sem descruzar os braços, com notas pesadas de ironia. — Como foi a noite? Está gostando do seu quarto e da Marie Bee?
Wonwoo de repente assumiu um aspecto de chaleira fervendo e me olhou como um pedido de socorro, tremendo o lábio que não sabia se sorria ou se respondia . Ela podia ser bem intimidadora quando queria, eu sabia bem. Me mantive impassível e assisti meu melhor amigo cozinhar feito um ovo, sem entender porque estava sendo recebido tão rispidamente, até uma nova silhueta surgir de dentes acesos. Sempre de dentes acesos.
— Bom dia, senhores! — Dokyeom se dirigiu a nós no hall de entrada com uma regata ridiculamente cavada que me fez rolar os olhos. — E senhorita…
Ele deslizou para trás de , ainda escorada no balcão, e passou um dos braços nus pelos ombros dela numa “chave de braço” e o outro pela cintura, beijando-lhe o rosto. Era só um abraço por trás, mas eu não gostava de como DK tocava nela. Na verdade, eu detestava. Não tinha nada de inapropriado, mas não resistia à aproximação dele, ao nariz afilado que se enfiava sempre no cabelo ou no pescoço, e parecia à vontade com o conforto dos corpos que já se conheciam. Talvez por isso eu sentisse tamanho asco. Era coisa de quem já se sabia há anos.
— Oi, linda! — ele soltou baixinho. — Quando você chegou? Eu podia ter te dado uma carona.
— Eu vim com o Mingyu. — respondeu, ainda fitando Wonwoo.
— Ah, é verdade. — DK liberou os ombros de , mas se manteve na cintura. — Às vezes eu esqueço que você tem um segurança.
— Mas ela tem. — interrompi rápido demais para lembrar de disfarçar meu incômodo e a voz saiu mais grave do que eu esperava. — Bom, não hoje, eu estou de folga. — tentei amenizar.
— Então eu posso cuidar dela pra você. — Dokyeom piscou e eu suei frio, travando a mandíbula involuntariamente. — E você vai poder jogar com a gente. Futevôlei, vamos? — ele convidou, finalmente soltando a e eu, o queixo trincado.
— Vamos! — quem respondeu foi Wonwoo, embora eu tivesse certeza de que ele não conseguiria enxergar a bola com aquelas lentes às quais ele não estava se adaptando, mas entendi que ele aceitaria qualquer coisa para se desviar da fúria de .
— Eu desço logo mais. — assenti em seguida.
— Bom jogo! — gritou quando Dokyeom moveu-se para levar Wonwoo dali. — Espero que não entre areia no seu olho! — ela acompanhou os dois com o olhar fulminante e depois me fez uma confissão entre dentes. — É mentira. Eu espero que a lente escorregue e vá parar no crânio dele.
— Você sabe que vão ter que se dar bem, não é? — ri da situação.
— Ele já está se dando bem! Você viu o tamanho da marca no pescoço dele? Esse safado tá transand-
— Lalalala! — tapei os ouvidos e afastei o pensamento com força.
— Deixa de ser bobo! — me deu um tapa no peito. — Pelo menos o seu amigo te conta as coisas importantes! Eu não acredito que a Marie não me disse que enfim ajoelhou e não foi para rezar…
— Sabe aquele filtro entre pensar e dizer? — toquei a testa dela com o indicador. — Às vezes você esquece de usar o seu.
— Temos um espaço disponível na cobertura, senhorita Chevalier. — a atendente voltou a intervir, apontando a tela do monitor. — Acomoda perfeitamente você e o seu…
Silêncio embaraçoso de ambas as partes. Mas a faísca nos olhos da tinha voltado quando ela me encarou.
Mordi a parte interna das bochechas, reprisando a frase inconclusa. “O seu…” O seu o quê? O que eu era da ? Segurança? Amigo? Sombra? Eu não fazia ideia, mas gostava de ser sempre associado a ela. Talvez fosse um daqueles casos de orações com nomes complicados que não precisam de complemento que ela insistia em enfiar na minha cabeça quando o assunto era gramática. O verbo “ser” que assume sentido em si, sozinho. “Eu sou” e pronto. E eu só meio que era… dela.
No entanto, só na minha cabeça. Na minha estúpida, racional e covarde cabeça.
— Eu já tenho um quarto. — respondi sem acreditar no que eu estava falando. Chevalier numa cobertura ou um bando de macho intercambista cheirando à insolação e cachorro molhado dividindo um cômodo com duas beliches? Óbvio que fui burro o suficiente para fazer a escolha responsável. — Mas ela aceita. ?
— Ok, tanto faz. — ela esticou a perna e desgrudou-se da fachada de vidro.
— Onde você vai?
— Encurralar aquela pecadora da Marie Bee e fazê-la me contar tudo. — girou nos calcanhares e apoiou as duas mãos no meu ombro, brincando com a minha orelha. — Você pode levar as minhas coisas?
— Claro. — sorri pequenininho. — 9º andar, certo?
— Certo. Ah, a propósito, o elevador está quebrado. — me deu um beijo atrás da orelha. — Te vejo na praia, sombra!
Nove andares. Com escada em L, os lances dobravam, viravam dezoito. E triplicaram, em dado momento, porque na primeira viagem meu cérebro de mingau esqueceu o cartão da porta em cima do balcão e eu precisei voltar. Depois de acomodar as coisas da , passei no meu quarto, guardei a mala e coloquei a mochila nas costas, ansiando que a câimbra passasse para poder desfrutar de um bom mergulho.
Parei para respirar no meio do hall e usei a toalha do meu ombro para enxugar a testa. Minha mochila não tinha mais que uma muda de roupa, o filtro solar e um livro leve, mas pesava feito pedras depois de subir e descer tantos degraus. Apoiei a mão no metal do elevador e, a princípio, estranhei não ver qualquer cartaz sinalizando que estava quebrado ou em manutenção. Estranhei bem mais quando a luz acendeu, indicando que o cubo estava descendo. Parei de estranhar e tive certeza que tinha sido feito de palhaço quando as portas se abriram e eu vi , Marie Bee e Victoria Evans, exatamente nessa ordem, tentando abafar o riso.
— Você viu isso? Consertaram o elevador! — disparou sarcasticamente, enquanto as outras duas gargalhavam. — Sobe e desce que é uma beleza agora.
— Cuidado pra não descer demais e ir parar no inferno. — me empertiguei, estreitando os olhos, e elas saíram uma atrás da outra, por último.
— Se eu for parar lá, é você quem vai ter que me seguir. — parou na minha frente e eu bati as costas no metal, tenso quando ela sussurrou sem me tocar, arrepiando todos os pelos do meu corpo. — Sombra.
Lá estava. A faísca.
Estávamos numa linha fora da área do sensor de movimento e as portas automáticas dispararam para fechar, quase nos pegando de raspão. Puxei pela cintura e meu braço úmido aderiu ao tecido da camisa dela, levantando-a um pouco e revelando a poupa da bunda.
— Não se preocupe, Mingyu, você com certeza vai para o céu. — Marie assegurou, enterrando o clima. — Tem um lugar com o seu nome bem do ladinho de Deus, depois de aturar essa daqui. — ela apontou e Victoria não tirava os olhos de mim.
— E que tal se eu mandar vocês dois pra lá, hein, seus ingratos? — reclamou e enganchou um braço no meu e o outro no de Marie, nos forçando a caminhar e deixando a terceira um pouco para trás. — Vamos logo, deixamos o míope sozinho, ele deve estar com a cabeça enfiada na areia procurando as lentes.
Passamos pelo quiosque no início do calçadão e ficou por lá com Marie e outras amigas que encontraram, conversando eufóricas sobre os eventos da manhã agitada: reunir núcleos de vários cursos num só lugar rendia muito assunto e socialização, coisas para as quais eu não estava muito inclinado. Queria um banho de mar, bater um racha e terminar meu livro, uma programação com fim quase exclusivo de me manter alheio às investidas de Dokyeom na . Embora, parando para pensar sobre, fosse curioso o fato de que ela tenha preferido ir de carona no meu Honda a ir na Benz dele. Ou que tenha pedido para que eu estendesse a toalha dela ao lado da minha na praia. Parecia que ela queria ficar perto de mim.
— Oi, bonitão! — Victoria brotou quando eu terminei de enterrar as pontinhas do tecido na areia.
— Oi! — despertei do devaneio. — Não está bloqueando meu carro hoje, está, Victoria?
— Não, bobo. E você pode me chamar de Vic. — ela balançou o cabelo loiro.
— E você pode me chamar de Mingyu. Pro caso de a ter dito que meu nome é “sombra”. — sorri sem jeito por causa da risada exagerada que ela largou quando eu terminei de falar.
— Você é uma graça, Mingyu! — ela tocou meu braço e jogou o cabelo outra vez. — E então… A formatura da sua turma está chegando, não é? Como você está se sentindo? — Vic insistiu em achar assunto.
— Estou animado, eu acho? — cocei a nuca. — Na verdade, tem tanta coisa pra fazer que-
A nuca que antes coçava, agora, ardia, porque fui subitamente atingido por uma bolada muito forte. Me virei pronto para soltar um palavrão em coreano contra o atirador, mas quando segui a bola rolando pela areia de volta para quem a lançou, ela foi parada por um pé familiar com uma serpente tatuada no peito e subindo pela canela, envolvendo o tornozelo.
— Desculpa! — apanhou a bola, segurando-a na altura do quadril. — Esqueci de gritar pra você pegar. — ela chegou mais perto. — O míope está chamando você, falta um no time. — os olhos dela caíram no meu peito descoberto e ela empurrou a bola contra meu abdômen, me fazendo resmungar pelo atrito com a areia. — Você é do time com camisa. Coloca uma. Agora.
Qualquer que fosse a motivação da ordem, eu apenas obedeci. Wonwoo e outros rapazes, entre eles DK, Seungkwan, Hoshi e Seungcheol, puxaram o coro do meu nome e eu apanhei a regata da mochila para entrar na área demarcada para o futevôlei. A baderna do racha durou até quase o início da tarde, quando, exaustos, resolvemos parar num restaurante à beira-mar para um almoço e um suco de abacaxi com hortelã estupidamente gelado que não tinha sido o suficiente: eu ainda precisava de um mergulho para amenizar o calor.
Sacudi o copo, encontrando apenas gelo, paguei minha parte da conta e me despedi dos garotos, que não quiseram se juntar a mim na minha corrida para o mar. Azar o deles. A água estava uma delícia, as ondas quebravam espalhando espuma branca e encontravam a areia quentinha. Depois de me refrescar, voltei ao meu lugar perto de algumas pedras e palmeiras. Estiquei os braços e as costas doloridas por ter dirigido, jogado e subido as malditas escadas, me perguntando por onde andava a engraçadinha responsável pelo último, e peguei meu livro, deixando-o na toalha estendida. Quando terminei de enxugar o rosto, a visão que havia na minha frente era da fazendo menção de se despir, o que me travou onde eu estava. Sabendo-se observada, ela subiu a blusa, que passava um pouco mais de um palmo das coxas, e revelou a parte de baixo do biquíni preto minúsculo.
— Como está a água? — ela perguntou, com a camisa já na altura da barriga. E subindo. Subindo rápido demais para a minha imaginação fértil.
— Gostosa. — lambi o sal dos meus lábios. — Muito gostosa.
riu da minha ambiguidade descarada.
— Não olha pra minha bunda. — ganhei uma camiseta voando na cara depois do aviso dela. saiu andando em direção ao oceano e, óbvio, eu olhei. Eu era de carne e a bunda era linda.
O corpo tinha mais tatuagens do que eu supunha e eu descobri algumas que eu não sabia da existência. voltou do mergulho brilhando da água e do sol e eu a desejei daquele jeito mesmo, salgada e com cheiro de mar. Deitou-se na toalha e espreguiçou-se, aproveitando a luz e o calor, e eu decorei todos os desenhos da pele dela. Apertou os olhos, levando preguiçosamente uma das mãos à testa, e apontou para mim:
— Você pode ficar de pé bem ali, sombra? Com o seu tamanho, vai bloquear o sol do meu rosto.
— Eu sou seu guarda-costas, Chevalier. Não seu guarda-sol. Além disso, você me deu folga, lembra? Dois dias sem te seguir.
— No entanto, aqui está você. — baixou os óculos escuros para piscar para mim, aproveitando o banho de sol que nos aquecia brando, como um abraço.
Me ajeitei ao lado de , apoiando as costas na palmeira, assistindo o corpo dela secar naturalmente, gotinha por gotinha sumindo com o calor da maresia. Sem abrir os olhos, deitou de bruços e passeou pela própria nuca, desatando o nó do minibiquíni. Liberou o pescoço e, não satisfeita, puxou para trás a ponta que segurava a peça nas costas. O cordão preto esticou e voltou rapidamente a bater na pele nua depois de desfeitos o laço e o meu autocontrole. Me torci todo dentro de mim quando ela chegou aos quadris. Por fim, ela só correu por dentro do elástico e desistiu de desatar as amarrações dali. Agradeci em silêncio. Cada fio puxado era uma parcela de lucidez que ela me subtraía e eu temia não sobrar mais nada.
— Nerd. — ela desdenhou ao virar o rosto e me encontrar com um livro aberto há horas na mesma página. A única coisa que eu queria ler era a frase que tinha abaixo do seio esquerdo, começando na costela e terminando na parte enterrada pela toalha no chão.
— Eu vou falar no simpósio interdisciplinar da universidade semana que vem. — agitei o livro e os pensamentos torpes. — Eu e o pateta apaixonado ali. — indiquei Wonwoo e Marie atirando água um no outro. — Vamos apresentar nosso artigo, os figurões do escritório que estamos tentando vão a convite do James.
— Eles vão porque é num hotel bacana fora da cidade e gente rica adora beber de graça e ser paparicada. — brincou. — Eu e Marie também vamos, queremos aumentar nossos créditos como ouvintes e nossas tutoras são palestrantes.
— Então vocês estão bem?
— Sim. Conversamos e a Marie me contou tudo. Do jeito dela… — riu gostoso, feliz pela amiga. — Vocês três podem ir na frente, eu encontro vocês no segundo dia do simpósio.
— Por que você não vem com a gente no primeiro dia? É a abertura, vai ser legal. — perguntei com marasmo, sem querer me mover.
— Eu sei. Mas também é o dia do jantar de aniversário do meu avô, eu quero estar em casa. E mesmo que não fosse, não tô afim de ouvir o míope e a Barbie cantando as músicas da playlist do casal a viagem toda. Sabia que o bluetooth da Veronica agora se chama MariWoo?
— Então eu te espero, . A apresentação é no segundo dia mesmo, se sairmos na noite anterior, dá pra chegar lá com folga.
— Tem certeza?
— Tenho. Não me faz passar por isso. Eles se chamam de neném o tempo todo, com quinze minutos dessa babação eu jogo o Wonwoo ribanceira a baixo com o carro em movimento. — espremi o tubo do protetor solar, espalhando o conteúdo pelos braços à mostra. — Além do mais, eu não vou deixar você ir sozinha.
— Eu não dirijo, lembra, vampirinho? — arqueou o lábio superior e mostrou as presas, referindo-se ao mais recente apelido que ela achou pra mim por causa do meu sorriso pontiagudo. — O motorista vai estar lá também.
— Mas ele não é a sua sombra, eu é que sou. — lambuzei o nariz dela com o que me sobrou de protetor solar no dedo. — Usa isso. Você é muito branquinha.
— Você não consegue evitar, não é? — sorriu convencida, com o nariz branco e as sardas aparecendo.
— O quê?
— Cuidar de mim.
É, . Acho que eu aprendi tão bem a ser sua sombra que, agora, eu não sei mais para onde ir além de você.
Larguei o celular quando ela surgiu ao longe, no início do jardim, e conforme caminhava até meu carro, pude distinguir perfeitamente, debaixo da camiseta oversized de futebol, o biquíni preto denunciado pela luz do sol contra o tactel. era do tipo de pessoa “pronta pra ir” e não trazia nada além de uma mala pequena e uma bolsa que, pelo formato, comportava uma toalha, uma necessaire e uma muda de roupa.
— Eu pensei que você torcia para os Jets. — confrontei quando desci do carro para guardar a mala dela e eu vi o escudo do Kentucky estampado na camisa que ela usava.
— E torço. Mas essa camisa aqui foi usada pelo homem da minha vida. — me cumprimentou com um rápido beijo no rosto. — Kevin Scott Richardson, dos Backstreet Boys. Ele atirou na plateia num show.
— Você gosta de boybands, é? — entramos no carro e eu comecei a dirigir, depois de passar o celular para com o aplicativo de música aberto, para que ela escolhesse a playlist da viagem.
— Por que não? — ela aceitou o aparelho e ficou confortável depois de afivelar o cinto. — Você bem que poderia ter feito parte de algum grupo de Kpop. Já pensou nisso?
— Cantar e dançar com outros 12 caras? Não, obrigado. Prefiro me descabelar tentando manter uma certa riscadinha em segurança. — sorri para ela, esticando os olhos para as tatuagens.
— Pode perguntar, vai. — reparou onde minha vista estava. — Qual delas está te deixando curioso?
— Todas. — voltei a atenção para a pista e apertei o volante que eu segurava com uma única mão. — Mas acho que os algarismos romanos…
— Hm… — procurou em si mesma, achando os dedos destros com anéis de prata bem finos, marcados com os números. — XVII. Meu canto favorito do meu livro favorito. A Divina Comédia, de Dante Alighieri.
Raspei a garganta. Não sabia como dizer a uma estudante de literatura brilhante que nunca tinha lido uma linha sequer dos clássicos, talvez por estar tão engessado nos livros escritos em língua morta do Direito, carregados de termos em latim e vazios de poesia. Mas a … tudo nela tinha uma história, uma rima. Ela era um romance.
— Sobre o que é? — perguntei, enfim, prevendo mais uma das nossas conversas sobre literatura.
— Sobre todos nós, Mingyu. Um homem enfrentando inferno e purgatório em busca de seu paraíso. Não é isso que fazemos todos os dias? Buscar a felicidade, o paraíso? — ela relaxou a postura no banco, recostando-se e perdendo-se na janela. Reclinou mais a cabeça e virou o rosto para o meu, demorando nele. — Você já achou o seu paraíso?
Encarei rapidamente, não conseguindo conter um sorriso que logo se desfez pelo frio no meu estômago.
— Talvez o paraíso não seja para todos.
— Talvez seja para os corajosos. — ela sussurrou.
A tensão que preencheu o carro era tangível. tocou meu braço descansando no câmbio da marcha, me dando um tapinha que terminou com uma carícia. Não pude aproveitar o toque, porque ela mesma se encarregou de mudar a atmosfera densa ao interromper o carinho e quebrar minha mudez.
— De qualquer forma, eu te empresto o livro. Você tem que se educar em literatura. — ela me repreendeu. — Quem sabe você encontra a sua Beatriz.
— Beatriz? — contemplei minha cara de ponto de interrogação quando olhei pelo retrovisor.
— A musa inspiradora do poeta. — respondeu simplista. — O paraíso de Dante era uma mulher.
O meu também, Dante. O meu também…
— Como é que é?
A voz da , sempre numa toada tão mansa, ecoou pelo vão da recepção do charmoso hotel. Era um pé na areia muito bem arrumado, dispunha de elevador, hidromassagem, serviço de quarto e uns atendentes educados que falavam um pouco baixo demais, fazendo a reclamação da soar mais alto e atrair alguns olhares confusos, principalmente o dela mesma.
— Sinto muito, senhorita Chevalier. — a recepcionista uniu as sobrancelhas. — A suíte para duas pessoas da senhorita Bee já está ocupada por ela e pelo…
— Quatro olhos.
— Senhor Jeon. — a moça corrigiu .
balançou a cabeça, incrédula, respirando pesadamente. Notei que o rosto tinha ganhado um rubor e ela não fazia ideia de como reagir, murmurando qualquer coisa entre os lábios carnudos e semicerrados, com as ideias visivelmente embaralhadas. Ela foi pega de surpresa ao saber que não ficaria no mesmo quarto que a amiga, mas já que os dois estavam namorando (ou quase isso), era uma conta simples.
— … — toquei o braço dela, apoiado no balcão. — A Marie Bee e o Wonwoo são um casal agora… Meio que faz sentido eles ficarem no mesmo quarto.
— Eu sei, mas… — ela estalou a língua, frustrada. — A gente vem aqui há anos. A gente sempre fica nesse quarto do primeiro andar porque a maluca acha que, se acontecer qualquer coisa, vai ser mais fácil de sair… E agora ela… — tentava terminar as frases. — Sem nem me avisar?
Encaixei a mão na dela, circulando as juntas na tentativa de oferecer algum consolo. Era nítido o quanto estava empolgada por ver Marie Bee, a pérola que ela sempre quis tirar da concha, finalmente vivendo o mundo ao seu redor, mas isso também representava uma “ameaça” de estar “perdendo” mais uma pessoa importante na vida dela. nunca me disse isso, é óbvio. Não com palavras. Eu é que conseguia ver tudo nos seus olhos assustados e cinza, carentes de um pouco do brilho tão característico dela, daquela faísca intensa que fazia a ser tão… a .
— Bom, eu sabia. Eu deveria ter comentado isso com você, não é? — suspirei.
— Relaxa. Não é de você que eu tô com raiva. — levantou a vista e localizou uma figura deslocada que se aproximava ao longe, fazendo careta.
— Mingyu! — Wonwoo me cumprimentou apertando os olhos. Batemos os ombros e ele percebeu que estava atrás de mim. — Oi, ! — ele cumprimentou sem fazer a menor ideia de que a vida dele estava em risco.
— Oi, Jeon. — ela respondeu sem descruzar os braços, com notas pesadas de ironia. — Como foi a noite? Está gostando do seu quarto e da Marie Bee?
Wonwoo de repente assumiu um aspecto de chaleira fervendo e me olhou como um pedido de socorro, tremendo o lábio que não sabia se sorria ou se respondia . Ela podia ser bem intimidadora quando queria, eu sabia bem. Me mantive impassível e assisti meu melhor amigo cozinhar feito um ovo, sem entender porque estava sendo recebido tão rispidamente, até uma nova silhueta surgir de dentes acesos. Sempre de dentes acesos.
— Bom dia, senhores! — Dokyeom se dirigiu a nós no hall de entrada com uma regata ridiculamente cavada que me fez rolar os olhos. — E senhorita…
Ele deslizou para trás de , ainda escorada no balcão, e passou um dos braços nus pelos ombros dela numa “chave de braço” e o outro pela cintura, beijando-lhe o rosto. Era só um abraço por trás, mas eu não gostava de como DK tocava nela. Na verdade, eu detestava. Não tinha nada de inapropriado, mas não resistia à aproximação dele, ao nariz afilado que se enfiava sempre no cabelo ou no pescoço, e parecia à vontade com o conforto dos corpos que já se conheciam. Talvez por isso eu sentisse tamanho asco. Era coisa de quem já se sabia há anos.
— Oi, linda! — ele soltou baixinho. — Quando você chegou? Eu podia ter te dado uma carona.
— Eu vim com o Mingyu. — respondeu, ainda fitando Wonwoo.
— Ah, é verdade. — DK liberou os ombros de , mas se manteve na cintura. — Às vezes eu esqueço que você tem um segurança.
— Mas ela tem. — interrompi rápido demais para lembrar de disfarçar meu incômodo e a voz saiu mais grave do que eu esperava. — Bom, não hoje, eu estou de folga. — tentei amenizar.
— Então eu posso cuidar dela pra você. — Dokyeom piscou e eu suei frio, travando a mandíbula involuntariamente. — E você vai poder jogar com a gente. Futevôlei, vamos? — ele convidou, finalmente soltando a e eu, o queixo trincado.
— Vamos! — quem respondeu foi Wonwoo, embora eu tivesse certeza de que ele não conseguiria enxergar a bola com aquelas lentes às quais ele não estava se adaptando, mas entendi que ele aceitaria qualquer coisa para se desviar da fúria de .
— Eu desço logo mais. — assenti em seguida.
— Bom jogo! — gritou quando Dokyeom moveu-se para levar Wonwoo dali. — Espero que não entre areia no seu olho! — ela acompanhou os dois com o olhar fulminante e depois me fez uma confissão entre dentes. — É mentira. Eu espero que a lente escorregue e vá parar no crânio dele.
— Você sabe que vão ter que se dar bem, não é? — ri da situação.
— Ele já está se dando bem! Você viu o tamanho da marca no pescoço dele? Esse safado tá transand-
— Lalalala! — tapei os ouvidos e afastei o pensamento com força.
— Deixa de ser bobo! — me deu um tapa no peito. — Pelo menos o seu amigo te conta as coisas importantes! Eu não acredito que a Marie não me disse que enfim ajoelhou e não foi para rezar…
— Sabe aquele filtro entre pensar e dizer? — toquei a testa dela com o indicador. — Às vezes você esquece de usar o seu.
— Temos um espaço disponível na cobertura, senhorita Chevalier. — a atendente voltou a intervir, apontando a tela do monitor. — Acomoda perfeitamente você e o seu…
Silêncio embaraçoso de ambas as partes. Mas a faísca nos olhos da tinha voltado quando ela me encarou.
Mordi a parte interna das bochechas, reprisando a frase inconclusa. “O seu…” O seu o quê? O que eu era da ? Segurança? Amigo? Sombra? Eu não fazia ideia, mas gostava de ser sempre associado a ela. Talvez fosse um daqueles casos de orações com nomes complicados que não precisam de complemento que ela insistia em enfiar na minha cabeça quando o assunto era gramática. O verbo “ser” que assume sentido em si, sozinho. “Eu sou” e pronto. E eu só meio que era… dela.
No entanto, só na minha cabeça. Na minha estúpida, racional e covarde cabeça.
— Eu já tenho um quarto. — respondi sem acreditar no que eu estava falando. Chevalier numa cobertura ou um bando de macho intercambista cheirando à insolação e cachorro molhado dividindo um cômodo com duas beliches? Óbvio que fui burro o suficiente para fazer a escolha responsável. — Mas ela aceita. ?
— Ok, tanto faz. — ela esticou a perna e desgrudou-se da fachada de vidro.
— Onde você vai?
— Encurralar aquela pecadora da Marie Bee e fazê-la me contar tudo. — girou nos calcanhares e apoiou as duas mãos no meu ombro, brincando com a minha orelha. — Você pode levar as minhas coisas?
— Claro. — sorri pequenininho. — 9º andar, certo?
— Certo. Ah, a propósito, o elevador está quebrado. — me deu um beijo atrás da orelha. — Te vejo na praia, sombra!
Nove andares. Com escada em L, os lances dobravam, viravam dezoito. E triplicaram, em dado momento, porque na primeira viagem meu cérebro de mingau esqueceu o cartão da porta em cima do balcão e eu precisei voltar. Depois de acomodar as coisas da , passei no meu quarto, guardei a mala e coloquei a mochila nas costas, ansiando que a câimbra passasse para poder desfrutar de um bom mergulho.
Parei para respirar no meio do hall e usei a toalha do meu ombro para enxugar a testa. Minha mochila não tinha mais que uma muda de roupa, o filtro solar e um livro leve, mas pesava feito pedras depois de subir e descer tantos degraus. Apoiei a mão no metal do elevador e, a princípio, estranhei não ver qualquer cartaz sinalizando que estava quebrado ou em manutenção. Estranhei bem mais quando a luz acendeu, indicando que o cubo estava descendo. Parei de estranhar e tive certeza que tinha sido feito de palhaço quando as portas se abriram e eu vi , Marie Bee e Victoria Evans, exatamente nessa ordem, tentando abafar o riso.
— Você viu isso? Consertaram o elevador! — disparou sarcasticamente, enquanto as outras duas gargalhavam. — Sobe e desce que é uma beleza agora.
— Cuidado pra não descer demais e ir parar no inferno. — me empertiguei, estreitando os olhos, e elas saíram uma atrás da outra, por último.
— Se eu for parar lá, é você quem vai ter que me seguir. — parou na minha frente e eu bati as costas no metal, tenso quando ela sussurrou sem me tocar, arrepiando todos os pelos do meu corpo. — Sombra.
Lá estava. A faísca.
Estávamos numa linha fora da área do sensor de movimento e as portas automáticas dispararam para fechar, quase nos pegando de raspão. Puxei pela cintura e meu braço úmido aderiu ao tecido da camisa dela, levantando-a um pouco e revelando a poupa da bunda.
— Não se preocupe, Mingyu, você com certeza vai para o céu. — Marie assegurou, enterrando o clima. — Tem um lugar com o seu nome bem do ladinho de Deus, depois de aturar essa daqui. — ela apontou e Victoria não tirava os olhos de mim.
— E que tal se eu mandar vocês dois pra lá, hein, seus ingratos? — reclamou e enganchou um braço no meu e o outro no de Marie, nos forçando a caminhar e deixando a terceira um pouco para trás. — Vamos logo, deixamos o míope sozinho, ele deve estar com a cabeça enfiada na areia procurando as lentes.
Passamos pelo quiosque no início do calçadão e ficou por lá com Marie e outras amigas que encontraram, conversando eufóricas sobre os eventos da manhã agitada: reunir núcleos de vários cursos num só lugar rendia muito assunto e socialização, coisas para as quais eu não estava muito inclinado. Queria um banho de mar, bater um racha e terminar meu livro, uma programação com fim quase exclusivo de me manter alheio às investidas de Dokyeom na . Embora, parando para pensar sobre, fosse curioso o fato de que ela tenha preferido ir de carona no meu Honda a ir na Benz dele. Ou que tenha pedido para que eu estendesse a toalha dela ao lado da minha na praia. Parecia que ela queria ficar perto de mim.
— Oi, bonitão! — Victoria brotou quando eu terminei de enterrar as pontinhas do tecido na areia.
— Oi! — despertei do devaneio. — Não está bloqueando meu carro hoje, está, Victoria?
— Não, bobo. E você pode me chamar de Vic. — ela balançou o cabelo loiro.
— E você pode me chamar de Mingyu. Pro caso de a ter dito que meu nome é “sombra”. — sorri sem jeito por causa da risada exagerada que ela largou quando eu terminei de falar.
— Você é uma graça, Mingyu! — ela tocou meu braço e jogou o cabelo outra vez. — E então… A formatura da sua turma está chegando, não é? Como você está se sentindo? — Vic insistiu em achar assunto.
— Estou animado, eu acho? — cocei a nuca. — Na verdade, tem tanta coisa pra fazer que-
A nuca que antes coçava, agora, ardia, porque fui subitamente atingido por uma bolada muito forte. Me virei pronto para soltar um palavrão em coreano contra o atirador, mas quando segui a bola rolando pela areia de volta para quem a lançou, ela foi parada por um pé familiar com uma serpente tatuada no peito e subindo pela canela, envolvendo o tornozelo.
— Desculpa! — apanhou a bola, segurando-a na altura do quadril. — Esqueci de gritar pra você pegar. — ela chegou mais perto. — O míope está chamando você, falta um no time. — os olhos dela caíram no meu peito descoberto e ela empurrou a bola contra meu abdômen, me fazendo resmungar pelo atrito com a areia. — Você é do time com camisa. Coloca uma. Agora.
Qualquer que fosse a motivação da ordem, eu apenas obedeci. Wonwoo e outros rapazes, entre eles DK, Seungkwan, Hoshi e Seungcheol, puxaram o coro do meu nome e eu apanhei a regata da mochila para entrar na área demarcada para o futevôlei. A baderna do racha durou até quase o início da tarde, quando, exaustos, resolvemos parar num restaurante à beira-mar para um almoço e um suco de abacaxi com hortelã estupidamente gelado que não tinha sido o suficiente: eu ainda precisava de um mergulho para amenizar o calor.
Sacudi o copo, encontrando apenas gelo, paguei minha parte da conta e me despedi dos garotos, que não quiseram se juntar a mim na minha corrida para o mar. Azar o deles. A água estava uma delícia, as ondas quebravam espalhando espuma branca e encontravam a areia quentinha. Depois de me refrescar, voltei ao meu lugar perto de algumas pedras e palmeiras. Estiquei os braços e as costas doloridas por ter dirigido, jogado e subido as malditas escadas, me perguntando por onde andava a engraçadinha responsável pelo último, e peguei meu livro, deixando-o na toalha estendida. Quando terminei de enxugar o rosto, a visão que havia na minha frente era da fazendo menção de se despir, o que me travou onde eu estava. Sabendo-se observada, ela subiu a blusa, que passava um pouco mais de um palmo das coxas, e revelou a parte de baixo do biquíni preto minúsculo.
— Como está a água? — ela perguntou, com a camisa já na altura da barriga. E subindo. Subindo rápido demais para a minha imaginação fértil.
— Gostosa. — lambi o sal dos meus lábios. — Muito gostosa.
riu da minha ambiguidade descarada.
— Não olha pra minha bunda. — ganhei uma camiseta voando na cara depois do aviso dela. saiu andando em direção ao oceano e, óbvio, eu olhei. Eu era de carne e a bunda era linda.
O corpo tinha mais tatuagens do que eu supunha e eu descobri algumas que eu não sabia da existência. voltou do mergulho brilhando da água e do sol e eu a desejei daquele jeito mesmo, salgada e com cheiro de mar. Deitou-se na toalha e espreguiçou-se, aproveitando a luz e o calor, e eu decorei todos os desenhos da pele dela. Apertou os olhos, levando preguiçosamente uma das mãos à testa, e apontou para mim:
— Você pode ficar de pé bem ali, sombra? Com o seu tamanho, vai bloquear o sol do meu rosto.
— Eu sou seu guarda-costas, Chevalier. Não seu guarda-sol. Além disso, você me deu folga, lembra? Dois dias sem te seguir.
— No entanto, aqui está você. — baixou os óculos escuros para piscar para mim, aproveitando o banho de sol que nos aquecia brando, como um abraço.
Me ajeitei ao lado de , apoiando as costas na palmeira, assistindo o corpo dela secar naturalmente, gotinha por gotinha sumindo com o calor da maresia. Sem abrir os olhos, deitou de bruços e passeou pela própria nuca, desatando o nó do minibiquíni. Liberou o pescoço e, não satisfeita, puxou para trás a ponta que segurava a peça nas costas. O cordão preto esticou e voltou rapidamente a bater na pele nua depois de desfeitos o laço e o meu autocontrole. Me torci todo dentro de mim quando ela chegou aos quadris. Por fim, ela só correu por dentro do elástico e desistiu de desatar as amarrações dali. Agradeci em silêncio. Cada fio puxado era uma parcela de lucidez que ela me subtraía e eu temia não sobrar mais nada.
— Nerd. — ela desdenhou ao virar o rosto e me encontrar com um livro aberto há horas na mesma página. A única coisa que eu queria ler era a frase que tinha abaixo do seio esquerdo, começando na costela e terminando na parte enterrada pela toalha no chão.
— Eu vou falar no simpósio interdisciplinar da universidade semana que vem. — agitei o livro e os pensamentos torpes. — Eu e o pateta apaixonado ali. — indiquei Wonwoo e Marie atirando água um no outro. — Vamos apresentar nosso artigo, os figurões do escritório que estamos tentando vão a convite do James.
— Eles vão porque é num hotel bacana fora da cidade e gente rica adora beber de graça e ser paparicada. — brincou. — Eu e Marie também vamos, queremos aumentar nossos créditos como ouvintes e nossas tutoras são palestrantes.
— Então vocês estão bem?
— Sim. Conversamos e a Marie me contou tudo. Do jeito dela… — riu gostoso, feliz pela amiga. — Vocês três podem ir na frente, eu encontro vocês no segundo dia do simpósio.
— Por que você não vem com a gente no primeiro dia? É a abertura, vai ser legal. — perguntei com marasmo, sem querer me mover.
— Eu sei. Mas também é o dia do jantar de aniversário do meu avô, eu quero estar em casa. E mesmo que não fosse, não tô afim de ouvir o míope e a Barbie cantando as músicas da playlist do casal a viagem toda. Sabia que o bluetooth da Veronica agora se chama MariWoo?
— Então eu te espero, . A apresentação é no segundo dia mesmo, se sairmos na noite anterior, dá pra chegar lá com folga.
— Tem certeza?
— Tenho. Não me faz passar por isso. Eles se chamam de neném o tempo todo, com quinze minutos dessa babação eu jogo o Wonwoo ribanceira a baixo com o carro em movimento. — espremi o tubo do protetor solar, espalhando o conteúdo pelos braços à mostra. — Além do mais, eu não vou deixar você ir sozinha.
— Eu não dirijo, lembra, vampirinho? — arqueou o lábio superior e mostrou as presas, referindo-se ao mais recente apelido que ela achou pra mim por causa do meu sorriso pontiagudo. — O motorista vai estar lá também.
— Mas ele não é a sua sombra, eu é que sou. — lambuzei o nariz dela com o que me sobrou de protetor solar no dedo. — Usa isso. Você é muito branquinha.
— Você não consegue evitar, não é? — sorriu convencida, com o nariz branco e as sardas aparecendo.
— O quê?
— Cuidar de mim.
É, . Acho que eu aprendi tão bem a ser sua sombra que, agora, eu não sei mais para onde ir além de você.
Capítulo 9 - O xarope, a carta e o livro riscado
Tomei o xarope direto do vidrinho, dispensando o dosador. Depois do fim de semana na praia, um temporal inexplicável me pegou de surpresa enquanto eu saía da biblioteca e me presenteou com um resfriado que já durava três dias. O remédio deixou tudo com gosto de tutti-frutti e não melhorou nada da garganta dolorida, da tosse seca e da sensação de ter tido o corpo pisoteado, mas era quinta-feira à noite e como “quinta é quase sexta”, já estava pronta para abrir mais um final de semana de balada e eu precisava trabalhar. Ou pelo menos vê-la. Olhar para ela e me livrar daquela sensação insistente de que havia algo errado. Desde que voltamos de Long Island, me parecia meio triste. Nublada. Como se estivesse chovendo para dentro.
E a ideia de nuvens carregadas bloqueando aquele sol era ainda pior do que estar doente às vésperas da minha apresentação no simpósio.
— Eu tenho um Vick VapoRub. — Wonwoo surgiu na porta do banheiro segurando um potinho enquanto eu procurava uma gravata e tossia ao mesmo tempo. — Mas eu não vou passar no seu peito.
— Nem eu. — dispensei a oferta. — Já vesti a camisa e o paletó, não vou tirar tudo de novo pra ficar grudento de expectorante.
— Por que você não fica em casa? O que não falta na mansão dos Chevalier é segurança, colocam outro no seu lugar até você se sentir melhor.
Eu não me sentia melhor, mas decidi pôr a gravata e sair mesmo assim. Minha intuição gritava, alguma coisa me dizendo para não deixar a sozinha naquela noite em específico, mesmo sabendo que Wonwoo estava certo: além do forte esquema de rastreamento da SUV, com certeza acionariam outro segurança, alguém da ronda externa da casa para acompanhá-la.
Mas o outro segurança não era eu. E eu gostava de pensar que só eu sabia cuidar dela.
— É melhor eu ir. — tossi. — Está chovendo e a não-
— A não gosta da chuva. A isso, a aquilo… — Wonwoo me cortou com um sorriso manso. — Você já percebeu que não para de falar dela? Até dormindo…
— Quê?
— Você chama pela quando dorme, Min. — o apelido veio num tom doce de irmão mais velho. — Tipo, toda noite.
— Isso não é nada, eu… — apanhei as chaves, trêmulo. — Eu falo dormindo.
— É, e eu escuto dormindo. — ele tomou as chaves de mim, me impedindo de sair. — Conta logo pra ela.
— Contar o quê? “Oi, , eu gosto de você, o que você acha de sair comigo pra comer um hambúrguer com fritas quando o salário cair no 5º dia útil?” — ri desgostoso.
— Ela já fez isso uma vez e não se incomodou.
— Exatamente. Uma vez. Imagina ela ter que encarar um programa baixa renda toda vez que sair comigo?
— Eu entendo que você se sinta assim, Mingyu. Eu vim do mesmo lugar que você. Mas eu me dei uma chance e-
— É diferente, hyung. — balancei a cabeça, prevendo onde ele queria chegar. — Eu fico feliz que você e a Marie estejam dando certo, mas ela não foi podre de rica a vida inteira. A sim. A única realidade que ela conhece é uma que eu não posso dar pra ela.
Wonwoo arrumou o óculos, com sua serenidade inalterável. Mesmo parado feito um boneco do The Sims esperando comando como ele estava, ele irradiava uma energia branda que me fez continuar falando sem freio.
— Eu não posso agir sobre o que eu sinto pela enquanto o emprego na CS&M não mudar minha vida, Wonwoo. Ela merece alguém que já chegou lá e eu… Eu não cheguei lá ainda. Eu não tô nem perto!
A última declaração saiu num sussurro porque era vergonhoso para mim admitir uma derrota. Eu odiava depender de tantas condicionais, de tantos “se”. Se a apresentação no simpósio for bem, se eu for contratado, se eu passar do período de experiência, se o meu salário inicial for bem melhor do que o que eu ganho agora… As variáveis que me distanciavam da eram muito maiores do que as que nos aproximavam e era agonizante para mim estar tão perto de alguém que me era tão inacessível.
— Você é a pessoa inteligente mais burra que eu conheço. — Wonwoo sentenciou.
— E você está apaixonado e é correspondido. — um espirro interrompeu a frase. — É por isso que está vendo tudo assim, cor-de-rosa.
— Melhor que enxergar tudo tão preto e branco como você vem fazendo. — ele franziu o cenho. — Você é um cara prático e centrado, mas dessa vez, você tá perdendo tempo.
— Por que você tá insistindo tanto nisso? A Marie te falou alguma coisa?
— E precisa? — ele arregalou os olhos. — Você fica aí com essa conversa de que a merece alguém que já chegou lá, mas quando foi a última vez que você viu ela sair de uma festa com o DK? Você não acha que se ela quisesse o cara rico e bonito ela já não estaria com ele agora?
Tossi mais um pouco, mais pela indignação do que pelo resfriado.
— Obrigado por me chamar de feio e de pobre. — ralhei.
— E de burro. Não esquece do burro. — Wonwoo reforçou. — Você vai pensar no que eu te falei?
Dei de ombros. Eu não queria pensar, até porque minha cabeça doía. Pensar me daria esperanças infundadas, me faria acreditar que era possível que gostasse de mim de volta, e eu não podia gastar meus últimos neurônios funcionais com mais um “se”. Eu tinha que me manter realista e me concentrar em duas coisas: trabalhar e reler os tópicos da apresentação mais importante da minha vida no caminho. Tomei mais um gole do xarope e guardei o vidrinho de volta no bolso, ao passo que Wonwoo, suspirando feito um pai preocupado, insistiu para que eu fosse de táxi, com medo de que eu desmaiasse no metrô ou coisa parecida.
Segui o conselho, torcendo para que o motorista não cobrasse bandeira dois por conta da chuva que, apesar de fraca, era suficiente para engarrafar as avenidas. Não cobrou, tampouco houve engarrafamento, e eu poderia dizer que estava tudo dando certo se meu corpo não estivesse amolecendo durante o trajeto e se eu não estivesse batendo o queixo de frio. Desisti da leitura, motivada por pura ansiedade: eu já sabia exatamente o que eu precisava falar, Wonwoo e eu tínhamos repassado o texto até a exaustão. Estávamos prontos, mas eu continuava preocupado. Mais que isso, agitado, aflito. E quando eu finalmente cheguei à mansão dos Chevalier e encontrei esperando por mim, eu entendi o motivo.
A maquiagem não escondeu o nariz vermelho, o mesmo vermelho que pintava discretamente a linha da água nos olhos, pesados feito pedras. tinha chorado. Muito.
— Oi, sombra. — ela forçou um sorriso quando me viu, desanimada.
— Ei… — fui ao encontro dela com o instinto de abraçá-la, mas desisti quando percebi que tinha tomado um banho de chuva ao descer do táxi e, encharcado, abracei a mim mesmo no lugar. — Tá tudo bem?
— Comigo está, mas o que houve com você? — ela ensaiou outro sorriso, mais sincero. — Tá parecendo um filhote de cachorro que caiu do caminhão da mudança.
Rolei os olhos automaticamente, embora eu estivesse mais feliz que ofendido. Ser recebido com um insulto de leve indicava que estava voltando a ser ela mesma, que as nuvens pesadas começavam a dissipar. O sol natural que ela era, no entanto, adormecia o meu lado racional. Tudo o que eu tinha confidenciado ao Wonwoo minutos atrás continuava sendo verdade, mas até as minhas verdades perdiam força quando eu colocava os olhos nela, encantadora por si mesma, e eu só queria beijar-lhe os olhos para consolar o choro do qual eu não sabia o motivo.
Guardei a reação a contragosto e contei os pontinhos brilhantes no vestido dela, imóvel. se levantou, mudando o semblante, e ao ver que os pontinhos sumiam e voltavam conforme eu piscava, logo concluí que eles não existiam de fato e eram apenas fruto da minha dor de cabeça. Meio zonzo, minha boca tremeu e eu insisti na pergunta, alheio ao meu estado.
— Você andou chorando, ? — toquei a bochecha morninha quando ela se aproximou, me analisando com uma feição aflita. — Quem fez isso com você?
— Mingyu, você não parece nada bem. — ela ignorou, segurando meu pulso. — Você tá sentindo alguma coisa?
Uma sequência de espirros foi a minha resposta. Três foram suficientes para que ela movesse a mão já espalmada, espalhando-a pela minha testa e descendo pelo meu pescoço.
— Tá queimando! E ainda pegou essa chuva! — ela constatou, mais vermelha. — Mingyu! O que você veio fazer aqui desse jeito? Você é maluco?
— Não, eu sou a sua sombra. — balbuciei. Até as frases mais simples pareciam esforço demais.
— Não quando você tá doente! — voltou ao meu rosto. — Me diz que você pelo menos tomou alguma coisa pra esse resfriado.
— Xarope de tutti frutti. — descansei nas mãos dela, manhoso. — É bom. É docinho.
— É, as crianças acham isso também. — começou a tirar meu paletó molhado e me conduziu até o sofá. — Não parece, mas você é um homenzinho. Vamos tentar um remédio pra gente grande, tá?
Uma onda de suor frio me fez cruzar os braços sobre o peito para tentar me aquecer e eu sentei no sofá meio sem jeito, com medo de molhar o estofado. esfregou meus braços, notando que eu sentia falta de um agasalho, e chamou por Dorota, que veio no seu passo firme e apressado.
— Mingyu? — ela se assustou ao me ver desfalecendo no meio da sala. — O que aconteceu?
— Eu tomei o xarope todo. Parece chiclete, eu gosto. — foi tudo que eu consegui dizer.
— Esse tonto tá ardendo em febre e veio trabalhar com overdose de tutti frutti. — respondeu por mim. — Faz aquele seu chá de mel e limão pra ele, Dory. E traz aquela dipirona forte que o vovô sempre toma também. — ela pediu.
— Não precisa não, Dorota, eu ainda tenho o meu xarope. — tateei pelo bolso e puxei o frasco vazio. — Ah, não! Acabou! — choraminguei com um beicinho.
riu, incrédula, e ainda que meu cérebro estivesse operando com a capacidade mínima, foi um verdadeiro alívio ouvir aquele som.
— Você é maluco. — ela repetiu e me deu um peteleco no lóbulo da orelha. — Por que você veio?
— Porque você ia ficar com saudade. — brinquei e reclamei com atraso. — Ai!
Mais uma risada contida dela me fez respirar melhor, especialmente porque ela soprou o riso perto do meu ouvido e recostou a cabeça no meu peito em seguida. Dorota voltou com um comprimido branco, um copo d’água e um cobertor, e eu assumi que o item que eu mais precisava era o último, me enrolando nele e me inclinando para deitar no sofá, mas nenhuma das duas permitiu o movimento.
— Na-na-não. — Dory me puxou pelo braço com a ajuda de . — Primeiro o remédio e o chá, depois você deita.
Obedeci (Dorota soava maternal demais para não fazê-lo), mas depois da aspirina e da xícara bem cheia com pitadas de própolis, estava ficando difícil manter os olhos abertos ou mesmo sustentar meu corpo pesado, que começou a pender para o borrão lindo e tatuado ao meu lado.
Resisti, me sacudindo e apertando o cobertor, até que uma mãozinha delicada passou pelas minhas costas e me agarrou pelos ombros. me guiou gentilmente e me ofereceu o próprio colo, macio e cheirando a hidratante, para que eu deitasse.
— Tudo bem, Mingyu. — ela me ajeitou nas pernas expostas pelo vestido. — Descansa, tá?
— Eu vou ficar bom num instante. Assim que o remédio fizer efeito, a gente sai, viu? — a pele quente dela se arrepiava sob meus lábios conforme eu falava. — Eu só vou fechar os olhos aqui cinco minutinhos…
— Claro, claro. — ela começou um carinho tímido no meu cabelo, as unhas riscando levemente a minha nuca. — Daqui a cinco minutos eu te acordo, não se preocupa.
***
Passaram-se bem mais de cinco minutos.
Rocei os pés um no outro, deslizando facilmente por causa da meia social, e me encontrei embaixo de um edredom grosso e branco, sem sinal da camisa. Bati nas coxas, confirmando a presença da calça, e abri os olhos vagarosamente, seguindo a meia-luz que entrava por uma pequena fresta da cortina enorme. Mexi a cabeça no travesseiro de penas de ganso: a cabeça não doía mais. Testei o colchão: era muito macio para ser o meu. Olhei a hora no celular em cima da cômoda: eram seis horas da manhã do dia seguinte.
Puta que pariu.
Levantei num pulo, os sintomas do resfriado pareciam ter sumido, assim como todo o sangue do meu rosto. Pálido e em pânico, procurei pela minha camisa e sapatos e engatei mentalmente um discurso de defesa para justificar o injustificável: o fato de eu ter dormido no meu horário de trabalho.
Foi justamente essa palavra, trabalho, que serviu de gatilho e me obrigou a sentar novamente na cama. Se eu tinha apagado por causa do chá e do remédio, quem tinha feito o meu trabalho por mim? Quem tinha escoltado a naquela noite, logo a noite em que ela não estava tão bem?
— Bom dia, flor do dia.
Graças a Deus. A sã e salva, num pijama de calça xadrez e blusa com um ursinho estampado no meio.
O cheiro da cafeína invadiu o quarto, misturado ao dela, um perfume suave de lavanda e loção relaxante. deixou a xícara apoiada num dos móveis e eu puxei a pontinha do edredom para me cobrir, enrubescendo de vergonha não só da minha nudez parcial, como de toda aquela situação constrangedora. Cair no sono na casa da era indesculpável. Ela era responsabilidade minha, não o contrário.
— Se sente melhor? — ela sentou-se ao meu lado e verificou minha temperatura apalpando minha testa. E meu peito descamisado.
Me encolhi, vexado. A ponta do edredom não tinha sido suficiente.
— Em que mundo você vive, hein? — puxou o edredom. — Qual é, deixa eu limpar a vista.
Suspirei, aproveitando o toque aveludado. De vez em quando eu me permitia alguns luxos, ser admirado pela certamente era um.
— , sobre ontem… Isso não vai se repetir, eu juro.
— Mingyu, fica tranquilo. — ela alisou meu peitoral. — Você praticamente desmaiou, eu tinha que cuidar de você. Pra variar.
— Eu agradeço, mas isso não está certo. — achei os sapatos, calçando um. — O que o seu avô vai pensar?
— Eu não sei. Mas sei que ele não vai gostar de saber que você dormiu seminu no quarto dele.
— Você me colocou na cama do seu avô!? — saltei feito um coelho, com um pé descalço.
— Você tem sei lá quantos quilos de músculo! — levantou-se e andou pelo cômodo à procura da xícara. — Os seguranças lá de fora tiveram que te desovar onde era mais fácil, tadinhos.
— O quarto do seu avô, ! — puxei os cabelos das laterais. — Você entende que ele é meu chefe?
— Ele pode assinar o cheque, mas eu mando em você mais do que ele. — ela deu um gole no café.
— E você… — engoli em seco. — Você tirou minha blusa?
— Você adoraria, não é? — um meio sorriso atrás da xícara. — Mas isso aí foi você. Acordou no meio da madrugada, resmungou em coreano e tirou. Achei que fosse delírio de febre, quase chamei a carrocinha.
Escondi o corpo, me sentindo ainda mais exposto por ter vigiado meu sono.
E se Wonwoo estivesse certo? E se eu tivesse chamado o nome dela?
— Você ficou aqui a noite toda? — quis saber.
— Claro, e se você morresse em horário de trabalho? O míope do Wonwoo me processaria por te negar socorro. Ou por maltratar os animais, já que você é mais Golden Retriever que humano.
Abri um sorriso involuntário, mostrando as presas com as quais tanto implicava.
— Você ficou preocupada comigo! — inferi, vitorioso. — Tão preocupada que nem saiu de casa!
— Cala a boca. — ela estalou a língua. — E vai guardar esse peito todo antes que você fique resfriado de novo.
— Achei que você queria limpar a vista. — flexionei o braço de propósito.
— Já limpei. — abriu um armário cheio de roupas de cama e tirou de lá a minha camisa, pendurada num cabide. — A Dorota lavou e colocou na secadora ontem mesmo, toma.
Peguei a peça, muito bem engomada, atestado do capricho que Dorota imprimia a tudo que fazia, e a vesti rapidamente, com alguma dificuldade para abotoar as casas. veio em minha ajuda, arrumando também o colarinho, e depois empurrou a barra da camisa por dentro do cós da minha calça, guardando ali o excesso de tecido.
— Ei! — repreendi, mais branco que a roupa alvejada de amaciante caro. — Pelo menos me corteja um pouco, diz que eu sou bonito, não chega assim metendo a mão.
— Não temos tempo para preliminares. — ela me deu dois tapinhas no peito depois de terminar o ajuste. — Meu avô já acordou e quer conversar com você.
Congelei. A conversa. O famoso “obrigado pelos seus serviços, eles não serão mais necessários”, um aperto de mão e um papel com instruções para a rescisão e o exame demissional, que acusaria no mínimo alterações de pressão e de frequência cardíaca. A ideia de uma dispensa inaugurando o primeiríssimo mês do ano colocou meu coração na garganta e eu precisava empurrá-lo de volta ou ele seria cuspido e ficaria pulando feito um peixe se debatendo no chão.
— Me empresta isso aqui, é questão de vida ou morte. — peguei a xícara que tomava. Em vez de ter aproveitado o café com o gosto dela, o que desceu foi o gelado do nervosismo.
— Relaxa, Bela Adormecida. — ela tentou me tranquilizar. — Não é porque o nonno tem as cabeças dos animais que ele caçou enfeitando o escritório que ele vai querer a sua. Aliás, por falar em emprestar…
parou por um momento, apanhando um livro de capa marfim da poltrona ao lado da cama. O marcador que ela removeu indicava que ela estava lendo, ou melhor, relendo, a julgar pelo volume que as páginas formavam, sinal de que tinham sido passadas muitas vezes. Prendeu o livro contra o peito antes de me estendê-lo, provando o apego que tinha pelo objeto, e inspirou o ar com mais força, retendo-o por alguns segundos.
— Não paro de pensar que você nunca leu Dante. — ela soltou o ar num longo suspiro. — Conheça seu novo melhor amigo.
— A Divina Comédia? — recebi das mãos dela.
— A primeira versão que eu comprei, lá em Florença. — confessou e eu folheei as páginas, cheias de marcações a lápis. — Ah, é, eu risquei o livro todo. Meu pai fazia isso também, puxei dele.
A voz falhou quando ela disse “pai”.
E eu entendi que as lágrimas da véspera podiam ter sido para ele.
— Posso te emprestar outro, se você preferir. Eu tenho várias edições. — ela se recompôs.
— Não. Essa está perfeita. — fechei o livro com todo o cuidado que ele requeria. — Assim eu posso ler como você leu.
Sorrimos um para o outro, cúmplices. A maioria das pessoas condenaria esse hábito, mas não eu. Não depois de saber que aquela simples mania era um traço que ela dividia com o pai, que o aproximava dele. Era uma memória intocável da qual ela me deixava fazer parte. Eu não leria apenas as palavras de um poeta, eu leria a própria .
E, ao que tudo indicava, a letra dela nas margens das páginas era a lembrança mais palpável que eu teria depois da lambança do xarope.
— Você acha que seu avô vai me demitir? — perguntei baixinho.
— Se ele demitir, eu mando buscar você de volta. — garantiu, abrindo a porta.
— Jura?
— É óbvio. Você está com o meu livro. — ela piscou.
Deixei o quarto com uma careta e desci as escadas pulando os degraus para chegar o mais rápido possível ao escritório e às vias de fato. Eu já tinha sido despedido antes e, pelas minhas experiências prévias, puxar o curativo de uma vez era menos doloroso que a tortura dos rodeios e de muita falação.
— Bom dia, senhor Kim. — Alfred e seu cabelo grisalho me atenderam depois de três batidas na porta. — Soube que teve uma noite difícil ontem. Está melhor? — ele indicou a cadeira em frente à mesa.
— Sim, senhor. — respondi com um olho nele e o outro nas cabeças penduradas, prêmios da caça esportiva, imaginando onde ele encaixaria a minha.
— Ótimo, então já pode me explicar por que saiu do outro lado da cidade para delirar de febre na minha sala.
— A disse que ia sair de casa. — explanei, objetivo.
— E?
— É meu dever estar onde ela estiver, não importa o que aconteça.
— Se dê o direito de adoecer, garoto. — a expressão dele era impassível. — Temos outros seguranças que poderiam escoltá-la.
— Com todo respeito, senhor. — juntei os joelhos. — Não confio neles para cuidar da .
A manobra seguinte, imprevisível, me pegou de surpresa. Em vez de me expulsar a pontapés, Alfred se dispôs a analisar calmamente o seu armário de bebidas, de onde tirou um licor encorpado, cujo odor por si só já era capaz de embriagar. O copo ainda melado da dose pela metade, decantando em cima da mesa, junto com duas garrafas vazias atrás dele indicavam que ele não estava apenas começando a beber, ele estava continuando a beber. Sem atraso na fala ou nos gestos, sem apresentar sinal algum de ebriedade, ele passou os dedos pela barba bem-feita, fiel à elegância italiana, e perguntou categórico:
— Você sabe que dia foi ontem?
O dia antes de você me demitir por eu ter dito que sua equipe de segurança altamente treinada e cara é incapaz de cuidar da sua neta?
— 14 de janeiro, senhor. — respondi no lugar.
— Então ninguém te contou. — ele despejou o líquido em outro copo. — Você veio mesmo sem saber.
— Saber o quê?
— Ontem foi aniversário de morte do meu filho e da esposa dele. — Alfred virou tudo de uma vez e bateu o vidro na mesa, seco. — Eu sei. É estranho falar assim com tanta naturalidade. Sou um velho, estou endurecido. Mas a , ela… Bom, obviamente ela não lida muito bem com a data. E pra piorar, ainda chove nesse dia. Todo maldito ano. Como choveu no dia do acidente.
Alfred respirou tão pesado que doeu até em mim. A ferida aberta. Exposta. E o motivo de a não gostar da chuva.
— Você já conhece a o bastante para perceber que ela se anestesia. Eu também faço isso. Todos nós temos que fazer isso, ou não sobrevivemos. Festas, barulho, bebida… Argh, cazzo! — Alfred sacudiu a garrafa e disparou o que parecia um palavrão. — Eu nem posso culpá-la pelo último, minha neta herdou minha veia alcóolica. Você aceita?
Recusei a oferta em silêncio.
— Enfim, o que eu estou tentando dizer é que essas atividades podem colocá-la em perigo. — ele bebeu o licor que eu dispensei. — É aí que você entra.
— Senhor Alfred… — tentei começar.
— Eu falei sério quando disse que ela é tudo o que eu tenho. — Alfred cerrou os olhos e prosseguiu, indiferente à minha defesa. — Tudo que eu tenho do meu Henri, tudo o que eu tenho na vida. E só de pensar que ontem, em específico, ela teria bebido demais, passado da conta, se machucado, eu não sei... Ontem, mais do que nunca, eu não queria que ela saísse. E o fato de você ter conseguido isso mesmo sem querer é a maior prova de que fiz bem em confiar a a você.
Pisquei várias vezes, zonzo. A declaração de Alfred me fez duvidar da minha sobriedade. Eu esperava ser mandado embora friamente e, em vez disso, eu estava diante da alma despedaçada do maior magnata da cidade, ouvindo-o confessar seus piores medos sem titubear. Como apenas um homem de fibra seria capaz de fazer, afinal.
— Eu só quero protegê-la, senhor. — foi a confidência mais sincera que saiu da minha boca em tempos.
— Eu sei. Você faz isso intuitivamente. — ele deu dois soquinhos na madeira e abriu uma das gavetas, tirando de lá um isqueiro, um charuto e um envelope. — É por isso que eu vou sentir sua falta quando você for trabalhar na CS&M. A propósito, como vai isso?
— Eu e meu amigo vamos apresentar um artigo no simpósio amanhã, isso pode nos colocar no programa de estágio. — falei enquanto Alfred acendia o fumo e aproveitava o fogo para esquentar um sinete de metal.
— Um bom começo. — ele assinou um papel com uma caneta cara. — O que mais?
— O dr. Atkinson escreveu uma carta de recomendação.
— Então com certeza está bem melhor do que essa, mas toda ajuda é bem-vinda, certo? — Alfred colocou o papel no envelope e selou a aba com a rubrica de cera na ponta do sinete. — Eu também estou recomendando você, senhor Kim. Fiz questão de frisar sua diligência, sua pontualidade e sua conduta exemplar.
— Senhor?
Um sinal com a mão demonstrou a impaciência com o vocativo e com a minha cara de assustado.
— Apenas aceite. — ele deslizou o envelope na minha direção. — Você teve um impacto muito positivo sobre a minha neta, eu estou impressionado. Embora eu não quisesse escrever nada disso, porque significa que eu vou perder você.
— Não perdeu ainda, senhor. — peguei a carta marcada com o brasão da família Chevalier.
— Eu tenho faro bom para negócios, como você pode ver. E você é um bom negócio. Eles vão aceitar você. — Alfred tragou o charuto longamente. — Vejo você hoje à noite?
— Perfeitamente, senhor. Estarei onde a estiver.
— Bom, ela vai estar aqui. É meu jantar de aniversário.
A lembrança despertou no fundo da minha mente lenta, desabituada a dormir tanto e tão bem. havia comentado que era por isso que ela não iria para a abertura do simpósio e eu tinha me comprometido a levá-la no dia seguinte à festa do avô, para a qual, pelo visto, eu estava sendo convidado.
— É duro ter que comemorar minha vida tão perto do dia em que eu perdi meu filho. — Alfred levantou, reclamando das costas. — Mas, depois de um tempo, percebemos que precisávamos mais de festa do que de luto. E por incrível que pareça, meu aniversário é um dia feliz e importante. Eu celebro o que eu ainda tenho. — ele parou na frente de um porta-retratos que exibia uma foto da . — Gostaria que você viesse.
— Obrigado, senhor Alfred. — cedi ao costume de me curvar em noventa graus. — Eu quero aproveitar a oportunidade para me desculpar por ter passado a noite aqui de um modo tão inconveniente.
— Inconveniente nenhum, rapaz. É pra isso que serve o quarto de hóspedes.
— Quarto de hóspedes? — travei. — Aquele não era o seu quarto?
— Não. — ele estranhou. — Quem te disse isso?
Mordi a parte interna das bochechas e Alfred Chevalier freou o riso, espremendo a boca e mexendo o bigode.
— A .
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E a ideia de nuvens carregadas bloqueando aquele sol era ainda pior do que estar doente às vésperas da minha apresentação no simpósio.
— Eu tenho um Vick VapoRub. — Wonwoo surgiu na porta do banheiro segurando um potinho enquanto eu procurava uma gravata e tossia ao mesmo tempo. — Mas eu não vou passar no seu peito.
— Nem eu. — dispensei a oferta. — Já vesti a camisa e o paletó, não vou tirar tudo de novo pra ficar grudento de expectorante.
— Por que você não fica em casa? O que não falta na mansão dos Chevalier é segurança, colocam outro no seu lugar até você se sentir melhor.
Eu não me sentia melhor, mas decidi pôr a gravata e sair mesmo assim. Minha intuição gritava, alguma coisa me dizendo para não deixar a sozinha naquela noite em específico, mesmo sabendo que Wonwoo estava certo: além do forte esquema de rastreamento da SUV, com certeza acionariam outro segurança, alguém da ronda externa da casa para acompanhá-la.
Mas o outro segurança não era eu. E eu gostava de pensar que só eu sabia cuidar dela.
— É melhor eu ir. — tossi. — Está chovendo e a não-
— A não gosta da chuva. A isso, a aquilo… — Wonwoo me cortou com um sorriso manso. — Você já percebeu que não para de falar dela? Até dormindo…
— Quê?
— Você chama pela quando dorme, Min. — o apelido veio num tom doce de irmão mais velho. — Tipo, toda noite.
— Isso não é nada, eu… — apanhei as chaves, trêmulo. — Eu falo dormindo.
— É, e eu escuto dormindo. — ele tomou as chaves de mim, me impedindo de sair. — Conta logo pra ela.
— Contar o quê? “Oi, , eu gosto de você, o que você acha de sair comigo pra comer um hambúrguer com fritas quando o salário cair no 5º dia útil?” — ri desgostoso.
— Ela já fez isso uma vez e não se incomodou.
— Exatamente. Uma vez. Imagina ela ter que encarar um programa baixa renda toda vez que sair comigo?
— Eu entendo que você se sinta assim, Mingyu. Eu vim do mesmo lugar que você. Mas eu me dei uma chance e-
— É diferente, hyung. — balancei a cabeça, prevendo onde ele queria chegar. — Eu fico feliz que você e a Marie estejam dando certo, mas ela não foi podre de rica a vida inteira. A sim. A única realidade que ela conhece é uma que eu não posso dar pra ela.
Wonwoo arrumou o óculos, com sua serenidade inalterável. Mesmo parado feito um boneco do The Sims esperando comando como ele estava, ele irradiava uma energia branda que me fez continuar falando sem freio.
— Eu não posso agir sobre o que eu sinto pela enquanto o emprego na CS&M não mudar minha vida, Wonwoo. Ela merece alguém que já chegou lá e eu… Eu não cheguei lá ainda. Eu não tô nem perto!
A última declaração saiu num sussurro porque era vergonhoso para mim admitir uma derrota. Eu odiava depender de tantas condicionais, de tantos “se”. Se a apresentação no simpósio for bem, se eu for contratado, se eu passar do período de experiência, se o meu salário inicial for bem melhor do que o que eu ganho agora… As variáveis que me distanciavam da eram muito maiores do que as que nos aproximavam e era agonizante para mim estar tão perto de alguém que me era tão inacessível.
— Você é a pessoa inteligente mais burra que eu conheço. — Wonwoo sentenciou.
— E você está apaixonado e é correspondido. — um espirro interrompeu a frase. — É por isso que está vendo tudo assim, cor-de-rosa.
— Melhor que enxergar tudo tão preto e branco como você vem fazendo. — ele franziu o cenho. — Você é um cara prático e centrado, mas dessa vez, você tá perdendo tempo.
— Por que você tá insistindo tanto nisso? A Marie te falou alguma coisa?
— E precisa? — ele arregalou os olhos. — Você fica aí com essa conversa de que a merece alguém que já chegou lá, mas quando foi a última vez que você viu ela sair de uma festa com o DK? Você não acha que se ela quisesse o cara rico e bonito ela já não estaria com ele agora?
Tossi mais um pouco, mais pela indignação do que pelo resfriado.
— Obrigado por me chamar de feio e de pobre. — ralhei.
— E de burro. Não esquece do burro. — Wonwoo reforçou. — Você vai pensar no que eu te falei?
Dei de ombros. Eu não queria pensar, até porque minha cabeça doía. Pensar me daria esperanças infundadas, me faria acreditar que era possível que gostasse de mim de volta, e eu não podia gastar meus últimos neurônios funcionais com mais um “se”. Eu tinha que me manter realista e me concentrar em duas coisas: trabalhar e reler os tópicos da apresentação mais importante da minha vida no caminho. Tomei mais um gole do xarope e guardei o vidrinho de volta no bolso, ao passo que Wonwoo, suspirando feito um pai preocupado, insistiu para que eu fosse de táxi, com medo de que eu desmaiasse no metrô ou coisa parecida.
Segui o conselho, torcendo para que o motorista não cobrasse bandeira dois por conta da chuva que, apesar de fraca, era suficiente para engarrafar as avenidas. Não cobrou, tampouco houve engarrafamento, e eu poderia dizer que estava tudo dando certo se meu corpo não estivesse amolecendo durante o trajeto e se eu não estivesse batendo o queixo de frio. Desisti da leitura, motivada por pura ansiedade: eu já sabia exatamente o que eu precisava falar, Wonwoo e eu tínhamos repassado o texto até a exaustão. Estávamos prontos, mas eu continuava preocupado. Mais que isso, agitado, aflito. E quando eu finalmente cheguei à mansão dos Chevalier e encontrei esperando por mim, eu entendi o motivo.
A maquiagem não escondeu o nariz vermelho, o mesmo vermelho que pintava discretamente a linha da água nos olhos, pesados feito pedras. tinha chorado. Muito.
— Oi, sombra. — ela forçou um sorriso quando me viu, desanimada.
— Ei… — fui ao encontro dela com o instinto de abraçá-la, mas desisti quando percebi que tinha tomado um banho de chuva ao descer do táxi e, encharcado, abracei a mim mesmo no lugar. — Tá tudo bem?
— Comigo está, mas o que houve com você? — ela ensaiou outro sorriso, mais sincero. — Tá parecendo um filhote de cachorro que caiu do caminhão da mudança.
Rolei os olhos automaticamente, embora eu estivesse mais feliz que ofendido. Ser recebido com um insulto de leve indicava que estava voltando a ser ela mesma, que as nuvens pesadas começavam a dissipar. O sol natural que ela era, no entanto, adormecia o meu lado racional. Tudo o que eu tinha confidenciado ao Wonwoo minutos atrás continuava sendo verdade, mas até as minhas verdades perdiam força quando eu colocava os olhos nela, encantadora por si mesma, e eu só queria beijar-lhe os olhos para consolar o choro do qual eu não sabia o motivo.
Guardei a reação a contragosto e contei os pontinhos brilhantes no vestido dela, imóvel. se levantou, mudando o semblante, e ao ver que os pontinhos sumiam e voltavam conforme eu piscava, logo concluí que eles não existiam de fato e eram apenas fruto da minha dor de cabeça. Meio zonzo, minha boca tremeu e eu insisti na pergunta, alheio ao meu estado.
— Você andou chorando, ? — toquei a bochecha morninha quando ela se aproximou, me analisando com uma feição aflita. — Quem fez isso com você?
— Mingyu, você não parece nada bem. — ela ignorou, segurando meu pulso. — Você tá sentindo alguma coisa?
Uma sequência de espirros foi a minha resposta. Três foram suficientes para que ela movesse a mão já espalmada, espalhando-a pela minha testa e descendo pelo meu pescoço.
— Tá queimando! E ainda pegou essa chuva! — ela constatou, mais vermelha. — Mingyu! O que você veio fazer aqui desse jeito? Você é maluco?
— Não, eu sou a sua sombra. — balbuciei. Até as frases mais simples pareciam esforço demais.
— Não quando você tá doente! — voltou ao meu rosto. — Me diz que você pelo menos tomou alguma coisa pra esse resfriado.
— Xarope de tutti frutti. — descansei nas mãos dela, manhoso. — É bom. É docinho.
— É, as crianças acham isso também. — começou a tirar meu paletó molhado e me conduziu até o sofá. — Não parece, mas você é um homenzinho. Vamos tentar um remédio pra gente grande, tá?
Uma onda de suor frio me fez cruzar os braços sobre o peito para tentar me aquecer e eu sentei no sofá meio sem jeito, com medo de molhar o estofado. esfregou meus braços, notando que eu sentia falta de um agasalho, e chamou por Dorota, que veio no seu passo firme e apressado.
— Mingyu? — ela se assustou ao me ver desfalecendo no meio da sala. — O que aconteceu?
— Eu tomei o xarope todo. Parece chiclete, eu gosto. — foi tudo que eu consegui dizer.
— Esse tonto tá ardendo em febre e veio trabalhar com overdose de tutti frutti. — respondeu por mim. — Faz aquele seu chá de mel e limão pra ele, Dory. E traz aquela dipirona forte que o vovô sempre toma também. — ela pediu.
— Não precisa não, Dorota, eu ainda tenho o meu xarope. — tateei pelo bolso e puxei o frasco vazio. — Ah, não! Acabou! — choraminguei com um beicinho.
riu, incrédula, e ainda que meu cérebro estivesse operando com a capacidade mínima, foi um verdadeiro alívio ouvir aquele som.
— Você é maluco. — ela repetiu e me deu um peteleco no lóbulo da orelha. — Por que você veio?
— Porque você ia ficar com saudade. — brinquei e reclamei com atraso. — Ai!
Mais uma risada contida dela me fez respirar melhor, especialmente porque ela soprou o riso perto do meu ouvido e recostou a cabeça no meu peito em seguida. Dorota voltou com um comprimido branco, um copo d’água e um cobertor, e eu assumi que o item que eu mais precisava era o último, me enrolando nele e me inclinando para deitar no sofá, mas nenhuma das duas permitiu o movimento.
— Na-na-não. — Dory me puxou pelo braço com a ajuda de . — Primeiro o remédio e o chá, depois você deita.
Obedeci (Dorota soava maternal demais para não fazê-lo), mas depois da aspirina e da xícara bem cheia com pitadas de própolis, estava ficando difícil manter os olhos abertos ou mesmo sustentar meu corpo pesado, que começou a pender para o borrão lindo e tatuado ao meu lado.
Resisti, me sacudindo e apertando o cobertor, até que uma mãozinha delicada passou pelas minhas costas e me agarrou pelos ombros. me guiou gentilmente e me ofereceu o próprio colo, macio e cheirando a hidratante, para que eu deitasse.
— Tudo bem, Mingyu. — ela me ajeitou nas pernas expostas pelo vestido. — Descansa, tá?
— Eu vou ficar bom num instante. Assim que o remédio fizer efeito, a gente sai, viu? — a pele quente dela se arrepiava sob meus lábios conforme eu falava. — Eu só vou fechar os olhos aqui cinco minutinhos…
— Claro, claro. — ela começou um carinho tímido no meu cabelo, as unhas riscando levemente a minha nuca. — Daqui a cinco minutos eu te acordo, não se preocupa.
Passaram-se bem mais de cinco minutos.
Rocei os pés um no outro, deslizando facilmente por causa da meia social, e me encontrei embaixo de um edredom grosso e branco, sem sinal da camisa. Bati nas coxas, confirmando a presença da calça, e abri os olhos vagarosamente, seguindo a meia-luz que entrava por uma pequena fresta da cortina enorme. Mexi a cabeça no travesseiro de penas de ganso: a cabeça não doía mais. Testei o colchão: era muito macio para ser o meu. Olhei a hora no celular em cima da cômoda: eram seis horas da manhã do dia seguinte.
Puta que pariu.
Levantei num pulo, os sintomas do resfriado pareciam ter sumido, assim como todo o sangue do meu rosto. Pálido e em pânico, procurei pela minha camisa e sapatos e engatei mentalmente um discurso de defesa para justificar o injustificável: o fato de eu ter dormido no meu horário de trabalho.
Foi justamente essa palavra, trabalho, que serviu de gatilho e me obrigou a sentar novamente na cama. Se eu tinha apagado por causa do chá e do remédio, quem tinha feito o meu trabalho por mim? Quem tinha escoltado a naquela noite, logo a noite em que ela não estava tão bem?
— Bom dia, flor do dia.
Graças a Deus. A sã e salva, num pijama de calça xadrez e blusa com um ursinho estampado no meio.
O cheiro da cafeína invadiu o quarto, misturado ao dela, um perfume suave de lavanda e loção relaxante. deixou a xícara apoiada num dos móveis e eu puxei a pontinha do edredom para me cobrir, enrubescendo de vergonha não só da minha nudez parcial, como de toda aquela situação constrangedora. Cair no sono na casa da era indesculpável. Ela era responsabilidade minha, não o contrário.
— Se sente melhor? — ela sentou-se ao meu lado e verificou minha temperatura apalpando minha testa. E meu peito descamisado.
Me encolhi, vexado. A ponta do edredom não tinha sido suficiente.
— Em que mundo você vive, hein? — puxou o edredom. — Qual é, deixa eu limpar a vista.
Suspirei, aproveitando o toque aveludado. De vez em quando eu me permitia alguns luxos, ser admirado pela certamente era um.
— , sobre ontem… Isso não vai se repetir, eu juro.
— Mingyu, fica tranquilo. — ela alisou meu peitoral. — Você praticamente desmaiou, eu tinha que cuidar de você. Pra variar.
— Eu agradeço, mas isso não está certo. — achei os sapatos, calçando um. — O que o seu avô vai pensar?
— Eu não sei. Mas sei que ele não vai gostar de saber que você dormiu seminu no quarto dele.
— Você me colocou na cama do seu avô!? — saltei feito um coelho, com um pé descalço.
— Você tem sei lá quantos quilos de músculo! — levantou-se e andou pelo cômodo à procura da xícara. — Os seguranças lá de fora tiveram que te desovar onde era mais fácil, tadinhos.
— O quarto do seu avô, ! — puxei os cabelos das laterais. — Você entende que ele é meu chefe?
— Ele pode assinar o cheque, mas eu mando em você mais do que ele. — ela deu um gole no café.
— E você… — engoli em seco. — Você tirou minha blusa?
— Você adoraria, não é? — um meio sorriso atrás da xícara. — Mas isso aí foi você. Acordou no meio da madrugada, resmungou em coreano e tirou. Achei que fosse delírio de febre, quase chamei a carrocinha.
Escondi o corpo, me sentindo ainda mais exposto por ter vigiado meu sono.
E se Wonwoo estivesse certo? E se eu tivesse chamado o nome dela?
— Você ficou aqui a noite toda? — quis saber.
— Claro, e se você morresse em horário de trabalho? O míope do Wonwoo me processaria por te negar socorro. Ou por maltratar os animais, já que você é mais Golden Retriever que humano.
Abri um sorriso involuntário, mostrando as presas com as quais tanto implicava.
— Você ficou preocupada comigo! — inferi, vitorioso. — Tão preocupada que nem saiu de casa!
— Cala a boca. — ela estalou a língua. — E vai guardar esse peito todo antes que você fique resfriado de novo.
— Achei que você queria limpar a vista. — flexionei o braço de propósito.
— Já limpei. — abriu um armário cheio de roupas de cama e tirou de lá a minha camisa, pendurada num cabide. — A Dorota lavou e colocou na secadora ontem mesmo, toma.
Peguei a peça, muito bem engomada, atestado do capricho que Dorota imprimia a tudo que fazia, e a vesti rapidamente, com alguma dificuldade para abotoar as casas. veio em minha ajuda, arrumando também o colarinho, e depois empurrou a barra da camisa por dentro do cós da minha calça, guardando ali o excesso de tecido.
— Ei! — repreendi, mais branco que a roupa alvejada de amaciante caro. — Pelo menos me corteja um pouco, diz que eu sou bonito, não chega assim metendo a mão.
— Não temos tempo para preliminares. — ela me deu dois tapinhas no peito depois de terminar o ajuste. — Meu avô já acordou e quer conversar com você.
Congelei. A conversa. O famoso “obrigado pelos seus serviços, eles não serão mais necessários”, um aperto de mão e um papel com instruções para a rescisão e o exame demissional, que acusaria no mínimo alterações de pressão e de frequência cardíaca. A ideia de uma dispensa inaugurando o primeiríssimo mês do ano colocou meu coração na garganta e eu precisava empurrá-lo de volta ou ele seria cuspido e ficaria pulando feito um peixe se debatendo no chão.
— Me empresta isso aqui, é questão de vida ou morte. — peguei a xícara que tomava. Em vez de ter aproveitado o café com o gosto dela, o que desceu foi o gelado do nervosismo.
— Relaxa, Bela Adormecida. — ela tentou me tranquilizar. — Não é porque o nonno tem as cabeças dos animais que ele caçou enfeitando o escritório que ele vai querer a sua. Aliás, por falar em emprestar…
parou por um momento, apanhando um livro de capa marfim da poltrona ao lado da cama. O marcador que ela removeu indicava que ela estava lendo, ou melhor, relendo, a julgar pelo volume que as páginas formavam, sinal de que tinham sido passadas muitas vezes. Prendeu o livro contra o peito antes de me estendê-lo, provando o apego que tinha pelo objeto, e inspirou o ar com mais força, retendo-o por alguns segundos.
— Não paro de pensar que você nunca leu Dante. — ela soltou o ar num longo suspiro. — Conheça seu novo melhor amigo.
— A Divina Comédia? — recebi das mãos dela.
— A primeira versão que eu comprei, lá em Florença. — confessou e eu folheei as páginas, cheias de marcações a lápis. — Ah, é, eu risquei o livro todo. Meu pai fazia isso também, puxei dele.
A voz falhou quando ela disse “pai”.
E eu entendi que as lágrimas da véspera podiam ter sido para ele.
— Posso te emprestar outro, se você preferir. Eu tenho várias edições. — ela se recompôs.
— Não. Essa está perfeita. — fechei o livro com todo o cuidado que ele requeria. — Assim eu posso ler como você leu.
Sorrimos um para o outro, cúmplices. A maioria das pessoas condenaria esse hábito, mas não eu. Não depois de saber que aquela simples mania era um traço que ela dividia com o pai, que o aproximava dele. Era uma memória intocável da qual ela me deixava fazer parte. Eu não leria apenas as palavras de um poeta, eu leria a própria .
E, ao que tudo indicava, a letra dela nas margens das páginas era a lembrança mais palpável que eu teria depois da lambança do xarope.
— Você acha que seu avô vai me demitir? — perguntei baixinho.
— Se ele demitir, eu mando buscar você de volta. — garantiu, abrindo a porta.
— Jura?
— É óbvio. Você está com o meu livro. — ela piscou.
Deixei o quarto com uma careta e desci as escadas pulando os degraus para chegar o mais rápido possível ao escritório e às vias de fato. Eu já tinha sido despedido antes e, pelas minhas experiências prévias, puxar o curativo de uma vez era menos doloroso que a tortura dos rodeios e de muita falação.
— Bom dia, senhor Kim. — Alfred e seu cabelo grisalho me atenderam depois de três batidas na porta. — Soube que teve uma noite difícil ontem. Está melhor? — ele indicou a cadeira em frente à mesa.
— Sim, senhor. — respondi com um olho nele e o outro nas cabeças penduradas, prêmios da caça esportiva, imaginando onde ele encaixaria a minha.
— Ótimo, então já pode me explicar por que saiu do outro lado da cidade para delirar de febre na minha sala.
— A disse que ia sair de casa. — explanei, objetivo.
— E?
— É meu dever estar onde ela estiver, não importa o que aconteça.
— Se dê o direito de adoecer, garoto. — a expressão dele era impassível. — Temos outros seguranças que poderiam escoltá-la.
— Com todo respeito, senhor. — juntei os joelhos. — Não confio neles para cuidar da .
A manobra seguinte, imprevisível, me pegou de surpresa. Em vez de me expulsar a pontapés, Alfred se dispôs a analisar calmamente o seu armário de bebidas, de onde tirou um licor encorpado, cujo odor por si só já era capaz de embriagar. O copo ainda melado da dose pela metade, decantando em cima da mesa, junto com duas garrafas vazias atrás dele indicavam que ele não estava apenas começando a beber, ele estava continuando a beber. Sem atraso na fala ou nos gestos, sem apresentar sinal algum de ebriedade, ele passou os dedos pela barba bem-feita, fiel à elegância italiana, e perguntou categórico:
— Você sabe que dia foi ontem?
O dia antes de você me demitir por eu ter dito que sua equipe de segurança altamente treinada e cara é incapaz de cuidar da sua neta?
— 14 de janeiro, senhor. — respondi no lugar.
— Então ninguém te contou. — ele despejou o líquido em outro copo. — Você veio mesmo sem saber.
— Saber o quê?
— Ontem foi aniversário de morte do meu filho e da esposa dele. — Alfred virou tudo de uma vez e bateu o vidro na mesa, seco. — Eu sei. É estranho falar assim com tanta naturalidade. Sou um velho, estou endurecido. Mas a , ela… Bom, obviamente ela não lida muito bem com a data. E pra piorar, ainda chove nesse dia. Todo maldito ano. Como choveu no dia do acidente.
Alfred respirou tão pesado que doeu até em mim. A ferida aberta. Exposta. E o motivo de a não gostar da chuva.
— Você já conhece a o bastante para perceber que ela se anestesia. Eu também faço isso. Todos nós temos que fazer isso, ou não sobrevivemos. Festas, barulho, bebida… Argh, cazzo! — Alfred sacudiu a garrafa e disparou o que parecia um palavrão. — Eu nem posso culpá-la pelo último, minha neta herdou minha veia alcóolica. Você aceita?
Recusei a oferta em silêncio.
— Enfim, o que eu estou tentando dizer é que essas atividades podem colocá-la em perigo. — ele bebeu o licor que eu dispensei. — É aí que você entra.
— Senhor Alfred… — tentei começar.
— Eu falei sério quando disse que ela é tudo o que eu tenho. — Alfred cerrou os olhos e prosseguiu, indiferente à minha defesa. — Tudo que eu tenho do meu Henri, tudo o que eu tenho na vida. E só de pensar que ontem, em específico, ela teria bebido demais, passado da conta, se machucado, eu não sei... Ontem, mais do que nunca, eu não queria que ela saísse. E o fato de você ter conseguido isso mesmo sem querer é a maior prova de que fiz bem em confiar a a você.
Pisquei várias vezes, zonzo. A declaração de Alfred me fez duvidar da minha sobriedade. Eu esperava ser mandado embora friamente e, em vez disso, eu estava diante da alma despedaçada do maior magnata da cidade, ouvindo-o confessar seus piores medos sem titubear. Como apenas um homem de fibra seria capaz de fazer, afinal.
— Eu só quero protegê-la, senhor. — foi a confidência mais sincera que saiu da minha boca em tempos.
— Eu sei. Você faz isso intuitivamente. — ele deu dois soquinhos na madeira e abriu uma das gavetas, tirando de lá um isqueiro, um charuto e um envelope. — É por isso que eu vou sentir sua falta quando você for trabalhar na CS&M. A propósito, como vai isso?
— Eu e meu amigo vamos apresentar um artigo no simpósio amanhã, isso pode nos colocar no programa de estágio. — falei enquanto Alfred acendia o fumo e aproveitava o fogo para esquentar um sinete de metal.
— Um bom começo. — ele assinou um papel com uma caneta cara. — O que mais?
— O dr. Atkinson escreveu uma carta de recomendação.
— Então com certeza está bem melhor do que essa, mas toda ajuda é bem-vinda, certo? — Alfred colocou o papel no envelope e selou a aba com a rubrica de cera na ponta do sinete. — Eu também estou recomendando você, senhor Kim. Fiz questão de frisar sua diligência, sua pontualidade e sua conduta exemplar.
— Senhor?
Um sinal com a mão demonstrou a impaciência com o vocativo e com a minha cara de assustado.
— Apenas aceite. — ele deslizou o envelope na minha direção. — Você teve um impacto muito positivo sobre a minha neta, eu estou impressionado. Embora eu não quisesse escrever nada disso, porque significa que eu vou perder você.
— Não perdeu ainda, senhor. — peguei a carta marcada com o brasão da família Chevalier.
— Eu tenho faro bom para negócios, como você pode ver. E você é um bom negócio. Eles vão aceitar você. — Alfred tragou o charuto longamente. — Vejo você hoje à noite?
— Perfeitamente, senhor. Estarei onde a estiver.
— Bom, ela vai estar aqui. É meu jantar de aniversário.
A lembrança despertou no fundo da minha mente lenta, desabituada a dormir tanto e tão bem. havia comentado que era por isso que ela não iria para a abertura do simpósio e eu tinha me comprometido a levá-la no dia seguinte à festa do avô, para a qual, pelo visto, eu estava sendo convidado.
— É duro ter que comemorar minha vida tão perto do dia em que eu perdi meu filho. — Alfred levantou, reclamando das costas. — Mas, depois de um tempo, percebemos que precisávamos mais de festa do que de luto. E por incrível que pareça, meu aniversário é um dia feliz e importante. Eu celebro o que eu ainda tenho. — ele parou na frente de um porta-retratos que exibia uma foto da . — Gostaria que você viesse.
— Obrigado, senhor Alfred. — cedi ao costume de me curvar em noventa graus. — Eu quero aproveitar a oportunidade para me desculpar por ter passado a noite aqui de um modo tão inconveniente.
— Inconveniente nenhum, rapaz. É pra isso que serve o quarto de hóspedes.
— Quarto de hóspedes? — travei. — Aquele não era o seu quarto?
— Não. — ele estranhou. — Quem te disse isso?
Mordi a parte interna das bochechas e Alfred Chevalier freou o riso, espremendo a boca e mexendo o bigode.
— A .
Capítulo 10 - O inferno
Estar de volta à mansão Chevalier após o surto do tutti-frutti tinha sua graça — para algumas pessoas da casa, pelo menos. Para os meus colegas vigias externos, que tiveram que me carregar feito uma princesa enquanto eu delirava, era quase uma afronta que eu, um simples funcionário, estivesse ali passando por eles na maior cara de pau, na condição de convidado.
Pessoalmente convidado. Por ninguém menos que o dono da casa e do evento, Alfred Mattia Chevalier.
O barulho italiano inconfundível enchia o lugar que eu conhecia tão bem. A música ao vivo, o tilintar das taças, o som dos abraços apertados e um cheiro bom de uva e molho de tomate tomavam conta da grande sala de estar, que precisou de uma nova configuração para acomodar familiares, amigos e músicos. Dei falta de alguns móveis enquanto passava pelas pessoas, procurando um rosto conhecido, e descobri porque foi preciso abrir tanto espaço: havia dança. Uma dança alegre e contagiante, com movimentos vibrantes e enérgicos. Uma dança que sobrepujava a dor perene do luto, não como uma provocação, muito menos como um desrespeito à memória dos que se foram, mas como uma prova de que havia vida após a dor.
E apesar dela.
— Boa noite, senhor xarope. — uma Dorota risonha foi a primeira pessoa a me receber na festa. — Como está se sentindo?
— Totalmente recuperado. — abri os braços. — Milagrosamente recuperado, aliás. O que tinha naquele seu chá, hein, Dory?
Dorota espalmou as mãos gordinhas para cima e espremeu os lábios, selando o segredo da receita. Andou em minha volta, analisando em silêncio a minha camisa e a calça sociais pretas, que eu tinha engomado com rigor quase militar apenas para a avaliação dela. Ela tinha um olhar que punha à prova qualquer pessoa, nada passava despercebido pelo crivo exigente daquela que era bem mais que uma simples governanta, mas potencialmente a maior figura materna da .
— Você está bem apanhado. — ela me aprovou, satisfeita. — Embora eu não entenda essa mania que vocês jovens têm de só usar preto! A , por exemplo, bonita daquele jeito e só anda feito um breu.
— Nem todas são como você que combinam com qualquer cor, Dorota. — elogiei o vestido dela. — Belas pernas, aliás.
— Menino! — ela puxou a barra para baixo, ruborizada, mas envaidecida. — Anda, vai lá em cima e faz a descer. Ela já está atrasada.
Subi as escadas e o barulho foi ficando atrás de mim conforme eu avançava pelo corredor em direção ao único quarto com a porta aberta e a luz acesa. Diminuí o passo, pensando em como me anunciar sem provocar um susto, quando surgiu no cômodo.
Finquei os pés no chão, paralisado. O vestido alinhado que marcava sutilmente o busto farto não estava totalmente colocado ainda, as alças finas pendiam nos ombros e o zíper traseiro, aberto, a obrigava a sustentar a parte da frente com o antebraço. Lutei inutilmente contra os meus olhos, que se negavam a se fechar. Eu não deveria estar ali, espiando enquanto ela terminava de se vestir, mas eu continuei imóvel porque sorria leve, me prometendo tudo quanto eu queria naquele se deixar olhar.
— Você vai me ajudar a fechar o vestido ou vai ficar aí parado feito um relógio quebrado? — ela falou finalmente.
Adentrei o quarto tremendo feito uma vara verde. me deixou chegar perto o suficiente e virou-se, arqueando as costas e livrando-as dos cabelos arrumados num penteado semipreso. Apoiei uma das mãos na cintura dela e comecei o caminho inverso ao que eu realmente queria fazer, puxando o zíper para cima e prendendo o ar involuntariamente por todo o percurso. Demorei mais do que era preciso. Fechar a porra de um zíper não era uma tarefa difícil, o difícil era fingir indiferença ao começo da renda da calcinha aparecendo, aquele mínimo pedaço de pano que era capaz de sugerir tanto, de me fazer sentir a febre voltando, e dessa vez não uma febre debilitante que buscava expulsar algo do meu corpo, mas uma febre atrativa que me fazia arder por ela.
Arder contido, numa combustão interna cada vez mais difícil de controlar.
— Prontinho. — enfim voltei a respirar.
agradeceu baixinho e atravessou o quarto, linda. Mexeu na caixa de joias na penteadeira e escolheu uma pulseira prata para vestir o pulso tatuado com o verbo “lembrar”, numa tipografia fina que dialogava com a linha das folhas e das rosas espalhadas pelo braço. Assisti entorpecido o movimento das mãos delicadas escolhendo os adornos, que, apesar de bonitos, pareciam dispensáveis. Ela já me exercia fascínio apenas em pele e tinta.
— Então quer dizer que em vez de um pé na bunda, você caiu nas graças do meu avô? — comentou casualmente, sem a menor ideia de todos os cenários que minha mente me sugeria.
— E ainda ganhei uma carta de recomendação. Aquele xarope me deu sorte, vou tomar um vidro inteiro amanhã antes da apresentação.
— Você está nervoso? — ela se aproximou de mim, me entregando um colar que também precisava da minha ajuda para fechar no pescoço alvo.
— Estou preocupado em ter que dizer “Constituição” tantas vezes e as pessoas perceberem que eu tenho a língua presa. — passei a corrente pela frente dela.
— Eu acho fofo. Você parece o Patolino.
— E você tem cada vez mais apelidos pra mim. — fechei o colar.
— Preciso usar meus insultos carinhosos enquanto ainda posso. — ela deu uma última olhada no espelho. — Em algumas horas, estaremos na sala de conferência do Hamptons e os engravatados da CS&M vão tirar você de mim. — começou a sair do quarto e eu a segui. — O que é uma pena, porque eu tenho certeza que eles não são tão divertidos quanto eu.
— Você não vai se livrar de mim tão fácil. — passei na frente dela, oferecendo a mão para ajudá-la a descer as escadas. — O estágio é de meio período, se seu avô renovar meu contrato, ainda vou ser a sua sombra nos finais de semana.
— Acho que meus dias de festa estão contados. — tentou falar por cima do burburinho que a presença dela causou. Todos os olhares se voltaram para ela no minuto em que ela apareceu na sala. — O New York Times selecionou alguns alunos da Saint Peter para vagas temporárias de três meses. Adivinha quem estava na lista?
— ! — exclamei junto com um abraço apertado que a fez pular os dois últimos degraus. — É claro que você foi chamada! Parabéns!
— Vejo que a boa notícia já se espalhou. — Alfred surgiu e uma súbita visão das armas de caça no escritório dele me fizeram soltar a e guardar um passo de distância dela. — Minha piccolina está crescendo!
— Já faz um tempo, nonno. — ganhou um beijo na testa e aceitou o braço do avô.
— Vamos jantar? Dorota já mandou servir. — Alfred mostrou o caminho. — Sente-se conosco, senhor Kim. E por favor, não se assuste, jantares italianos são sempre barulhentos assim. Vai ficar pior depois que comerem.
Alfred tinha toda razão, mas a comida (e a companhia) estava tão deliciosa que eu esqueci dos gritos. sentou ao meu lado e não parava de rir, porque o lugar vago do outro lado foi ocupado por uma excêntrica tia, que me cumprimentou com dois beijos estalados em cada bochecha e gostou tanto de mim que estava quase sentando no meu colo.
— Não ligue para a tia Ludovica. — me tranquilizou quando a senhora pediu licença e foi ao banheiro, não sem antes me premiar com mais beijos. — Ela ficou assanhada assim desde que começou a fazer reposição hormonal.
— Ela é casada? — perguntei enquanto tentava tirar a marca do batom com o dedo. — Acho que ter uma sugar mommy vai me pagar melhor que o estágio e meu emprego de segurança juntos.
— Você vai me trocar pela tia Ludovica? — riu, ultrajada.
— Ela deve dar menos trabalho que você. — ajeitei a alça do vestido, que teimava em cair.
As horas passaram rapidamente, regadas a vinho e licores, e às dez em ponto meu relógio disparou o primeiro alarme. As bagagens, que não eram tantas para um só final de semana, já estavam no meu carro, e como o Hamptons ficava a duas horas e meia de Manhattan e a apresentação era às onze da manhã do dia seguinte, podíamos ficar para a sobremesa e mais algumas músicas. A banda engatou uma melodia frenética, puxada por um bandolim, pandeiros e outros instrumentos de corda e percussão, e formou-se um círculo coreografado onde os casais trocavam de pares rapidamente, acompanhando o sentido anti-horário da roda de dança.
— Tarantela! — gritou quando a música tocou, tirando os sapatos.
— Uma tarântula? — me levantei, em completo desespero, achando que tinha uma aranha andando pelo meu corpo. — Onde? Tira! Tira!
— Ta-ran-te-la, tonto. — ela corrigiu entre gargalhadas, segurando os saltos. — É uma dança típica da Apúlia, cidade natal do meu avô. Tem em todo aniversário dele. — ela guardou os sapatos embaixo da mesa e começou a prender o cabelo. — Vem! — ela me puxou pelas mãos. — Você vai amar!
— … — hesitei, me agarrando à cadeira, e a força que exercia era insuficiente para me mover. — Eu não sei dançar isso…
— Mas você sabe bater palma, certo? Vem, Mingyu! Por favor. — já se mexia no ritmo e sorriu. O sorriso, esse sim, me convenceria a ir para qualquer lugar.
Me deixei ser arrastado para o centro do círculo e pinçou os dois lados do vestido, levantando-o e pulando graciosamente de um lado para o outro, apoiada nas pontas dos pés. Estudei o tempo e observei os outros homens com suas parceiras, que, de fato, apenas batiam palmas e dançavam em volta delas. Comecei a imitá-los, me rendendo ao som envolvente e assistindo girar, sempre sorrindo.
Encantadora.
O ritmo vital e sem trégua dos acordes regiam os quadris dela e houve uma quebra no compasso da música, atrasando-a. ergueu o braço em 90 graus e eu entrelacei os dedos na mão dela com o braço oposto, estabelecendo ali um elo entre nós e um eixo para o giro. Demos uma volta completa, sem tirar os olhos um do outro, e repetimos o passo até eu me sentir tonto e arrancar dela mais uma bela risada. Foi quando a música voltou a crescer e ela me avisou:
— Não fica sozinho, tá? — agarrou meus braços. — Diz a lenda que dançar a tarantela sozinho dá azar.
— Dançar sozinho? — embranqueci. — Onde você vai?
Um coro gritou “ei!” e a música acelerou novamente, sinalizando que os casais deveriam trocar de par. Foi Alfred quem tirou de mim, e a ilustre tia Ludovica assumiu o lugar dela. Entrei em pânico, tentando acompanhar os movimentos estabanados da senhora na menopausa, que rodopiava errado e pisava no meu pé, atirando-se em mim de propósito. Procurei em desespero pela na roda, meus olhos treinados foram direto na boca vermelha, escancarada e rindo de mim tão descaradamente que me irritaria se não fosse tão linda. Não esperei pelo comando do mestre para trocar de casal, cordialmente cutuquei o ombro de um homem ao meu lado e pedi a parceira dele, que de cara entendeu o meu plano.
— Você quer a de volta, não é? — Dorota disparou quando foi trocada, dançando comigo.
— Me ajuda? — pedi.
— Sempre. — ela apertou minha bochecha. — Segura firme!
Dorota apertou meus ombros e percorreu o círculo por dentro, me levando junto para o olho do furacão italiano. Fomos nos aproximando entre saltos e giros e, quando o mestre anunciou mais uma troca, eu interceptei no meio do caminho, puxando-a pela cintura.
— Sentiu minha falta? — ela caiu nos meus braços, amparando-se no meu peito respirando quente contra o meu rosto.
— Você não imagina o quanto. — sussurrei, ofegante.
A agitação da dança fez o perfume dela subir e o calor do corpo dela aumentar, construindo uma atmosfera inebriante. O suor que escorria discretamente pelo pescoço e se acumulava no decote me despertava os instintos mais primitivos e eu apertei o quadril dela com mais força para conter o formigamento das mãos, que queriam passear por ela. Ficamos naquela tensão clichê de um contato intenso e olhares que não se partiam, como nos filmes melosos que eu nunca entendi porque as pessoas gostavam tanto, e alguma parte do meu cérebro disparou: “beija ela, seu burro!”
A música cessou naquele exato momento. O timing perfeito.
Até ele aparecer.
— Aí está você, !
Um gosto amargo se espalhou pela minha boca e eu, que até pouco tempo estava na altura do céu, despenquei violentamente em queda livre.
Lee Fudido Seokmin. Diretamente da casa do caralho.
— Seo! — soltou-se de mim para abraçá-lo. — Achei que você não viria!
— Eu não perderia isso por nada. — ele soprou o pescoço suado dela, desgrudando os fios de cabelo, e deixou os olhos caírem nos seios dela. — Não acredito que você escolheu esse vestido. Você lembra o que fizemos quando você usou ele…
— Seo! Isso foi há milhões de anos!
Dokyeom sorriu malicioso, exibindo os dentes que eu queria quebrar.
— Se importa se eu roubá-la um pouquinho, Mingyu? — ele me cumprimentou estendendo a mão.
Se eu apertar tua mão, eu vou acabar guardando ela no meu bolso.
— Já roubou. — ralhei entre dentes.
— Não vai demorar, é só uma dança. — ele recolheu a mão que eu deixei no vácuo e voltou a sorrir para . — Você guardou uma dança pra mim, certo?
— Eu vou ficar te devendo. Mingyu e eu temos que pegar a estrada logo mais, e eu ainda preciso tomar um banho e trocar de roupa. — respondeu.
— Quer ajuda? — Seokmin sugeriu, como se eu fosse invisível.
E era exatamente como eu me sentia. Invisível, diminuído, castrado. E puto.
— Não, obrigada. — se desvencilhou dele. — Mingyu, saímos em meia hora, tudo bem?
— Se você quiser ficar mais um pouco, eu posso te levar. — DK interrompeu minha resposta. — Assim você dá um pouco de descanso ao seu segurança.
O tom do comentário abriu um buraco no meu castelinho de ilusões e colocou alguns tijolos de lucidez lá. Proposital ou não, o fato era que Dokyeom me reduzia ao meu contrato, ao cheque assinado no fim do mês, ao nome na folha de pagamento, como se eu não fosse ameaça o bastante para ganhar o status de rival. Ou de igual, ao menos.
— Mingyu não está trabalhando. — se abanou. — Ele vai apresentar o artigo dele com o míope.
— Míope? — DK repetiu.
— Wonwoo. — esclareceu e pegou uma taça de água de um dos garçons que passavam. — Óculos redondo, cabelo de nerd e a Marie Bee pendurada, sabe?
DK assentiu, coçando o nariz fino de peixe-espada, e um silêncio constrangedor se formou enquanto matava a sede. Enfiei as mãos nos bolsos, deslocado, e como Dokyeom era incapaz de ficar calado por mais de cinco segundos, ele mesmo se encarregou de quebrar o gelo.
— Bom, sendo assim, a gente se fala quando você voltar, . — ele deixou um beijo perto da orelha dela antes de sair. — Jantamos no Píer?
Fiz as contas rapidamente e entendi porque Dokyeom não me via como igual. Eu vinha encarando o emprego na Cravath, Swaine & Moore como meu bilhete dourado no mundo da , como a solidificação do meu lugar nele, mas aquilo me garantia alguma coisa? Eu poderia levar a no Píer casualmente e deixar uma fortuna lá? Mesmo que eu fosse contratado pelo maior escritório do país, no final do dia, ele tinha um ponto. Eu era sempre o segurança. Eu era sempre o que não pertencia.
— Claro. Ligo pra Ashley e peço pra ela separar a nossa mesa.
— E o vinho que você gosta. — mais um beijo, no dorso da mão. — Boa sorte, Mingyu.
— Obrigado.
se ofereceu para acompanhar DK até a saída e eu engoli meu desgosto com a ajuda de alguma bebida que passou por mim. Era água com gás. Muito apropriado, a propósito, um líquido ácido para combinar com meu estado de espírito. Aquela breve interação tinha sido o suficiente para azedar a minha noite e para plantar uma ideia chata e persistente de inferioridade na minha cabeça dura.
Contei a meia hora que me pediu e me despedi de Alfred e Dorota, deixando com ela o recado de que esperaria no carro. Arrisquei uma olhada para cima quando caminhei até a vaga e o que eu vi parecia um presságio: um céu de chumbo prometia desabar em muita chuva a qualquer momento.
— Tempo fechado aqui fora e aqui dentro. — falei para mim mesmo.
— Falando sozinho, sombra? — apareceu pronta para ir. E cheirando a banho recém-tomado.
— Com as vozes na minha cabeça. — dei de ombros.
— Elas são legais? — ela parou em frente à porta do passageiro.
— Não mesmo. — destravei o alarme.
— Então não dê ouvidos a elas. — recomendou, simplista, e entrou no carro.
— Bem que eu queria. — entrei em seguida. — Bem que eu queria…
***
— E então… — gerou expectativa, apertando mais uma vez o botão do som no painel. — É. O rádio não está gostando de mim hoje, eu desisto.
Passei a marcha sem vontade, como eu vinha fazendo há aproximadamente uma hora, desde que deixamos a mansão em direção ao Hamptons. O ciúme, a ansiedade e o medo que eu estava sentindo formaram uma combinação amarga e perigosa que me colocou na defensiva. E quando isso acontecia, eu ficava calado, introspectivo, refém dos meus próprios pensamentos. Pensamentos que, no momento, não eram nada agradáveis.
— Você está tão quieto. — ela observou, recostando-se no banco. — O que houve?
— Nada.
— Tem certeza? — olhou o celular, checando o aplicativo do mapa. — Porque já estamos na metade do caminho e você quase não soltou uma palavra.
— Talvez você devesse ter aceitado a carona do DK, o rádio dele funciona e ele fala feito uma maritaca. — disparei sem filtro.
franziu o cenho, estranhando o ataque de mau-humor repentino e descobrindo um lado meu que eu também não gostava: quando eu estava mal, eu acabava dizendo as coisas erradas.
O dom da má palavra, como Wonwoo costumava dizer.
— Se eu quisesse ir com o Seokmin, eu teria ido. — ela rebateu, mantendo a expressão de incredulidade.
— Ainda dá tempo de voltar se você preferir ir na Mercedes dele. — minha língua foi mais rápida que meu cérebro, que apitava um sinal de perigo e me mandava calar a boca.
— É sério? — endireitou-se, tensa. — Qual o seu problema com Seokmin, hein, Mingyu?
Todos. Principalmente o que ele fez com você naquele vestido.
— Nenhum. A não ser o fato de ele me lembrar o tempo todo que você é meu trabalho.
As nuvens se adensaram à nossa frente e no olhar dela.
— Desde quando eu sou só um trabalho pra você? — ela perguntou num fio de voz.
Ela não era.
Ela nunca foi.
Ela nunca foi só um trabalho, ela nunca foi “só” coisa nenhuma. “Só” era uma palavra muito limitante para a imensidão que a era para mim.
— Não foi isso que eu disse, é que-
Um solavanco no motor e o carro morreu. A cereja no topo do bolo.
Inferno.
— O que foi isso agora?
— Acho que a bateria arriou. — girei a chave na ignição mais algumas vezes, em vão. — Porra!
inspirou pesado, retornando ao celular e ligando para alguém em busca de ajuda. O rosto voltado para o vidro e os braços cruzados eram um agravante a mais.
— , não fica assim, eu- — tentei.
— A Marie Bee não atende. — ela escolheu não ouvir, tirando o aparelho do ouvido e começou a procurar outro número. — Vou tentar o míope.
Meu peito apertou e faltou ar. Travar aquela batalha seria desperdiçar uma energia que eu não tinha, então me conformei em assistir o para-brisa úmido se encher de manchas redondas do sereno fino encorpando e dificultando as ligações que tentava fazer. Farto do meu destempero e estressado com a minha própria inércia, desci para abrir o capô e ver se havia algo que eu pudesse fazer.
Não havia. A chuva engrossou nas minhas costas e eu entrei de volta no carro, molhado feito um cão arrependido.
— Como está o seu sinal? — movia o celular dela de um lado para o outro.
— Fraco. — peguei o aparelho e analisei as barras no canto superior da tela. — E agora inexistente.
— O meu também.
Apertei o couro do volante, buzinando com a testa. O peso de um futuro inteiro caiu de uma vez sobre os meus ombros exaustos e um filme passou pela minha cabeça. Um filme de terror, no caso. Em todas as cenas eu perdia o estágio e, o que era ainda mais assustador, a .
— O simpósio é amanhã de manhã, eu não posso perder essa chance. — falei amargo, com frustração. — Eu deveria ter vindo antes.
Não era o que eu queria dizer, mas foi o que eu disse.
O dom da má palavra ataca novamente.
— É, deveria mesmo. — confirmou e eu levantei a cabeça quando ouvi a porta dela destravando.
— Tá maluca? — impedi o movimento, e mesmo o toque acidental foi bom. — Onde você pensa que vai?
— Procurar alguma ajuda enquanto você choraminga. — ela tirou a mão da minha. — Tem um hotel de beira de estrada a alguns metros, eu tô vendo o letreiro piscar daqui.
— , está um breu e chovendo. — argumentei o óbvio.
— Você é de açúcar, por acaso? — perguntou já com o corpo do lado de fora e bateu a porta.
Mas que caralhos, Chevalier. Qual é o plano? Vagar por aí carregando nossas bolsas até sermos assaltados ou atropelados?
— Inferno! — praguejei mais uma vez.
Peguei as coisas no banco de trás e também bati a porta antes de trancá-la manualmente, decidido a segui-la. É claro que eu iria segui-la. Nem todos os círculos do inferno bastavam para me deixar longe da .
arrancou na frente pelo acostamento enquanto eu murmurava, deixando meu lado ranzinza rodar em segundo plano. Ela acordou o único funcionário do local ao abrir a porta. O recepcionista arreganhou a boca e coçou os olhos e a barriga, quase em letargia:
— Reboque, lindinha? — peguei a conversa pela metade quando ele indagou , sonolento. — Nenhum a essa hora. Menos ainda nesse pau-d'água. Pra onde você está indo sozinha?
— Hamptons. — respondi, colocando as coisas no chão. — E ela não está sozinha.
— Não é tão longe. — ele bocejou. — O melhor que eu posso fazer por vocês é chamar um mecânico amanhã cedinho e conseguir um quarto.
— Dois. — pediu, seca, quando me viu escorar no balcão ao lado dela.
— Lamento, docinho. — o recepcionista frisou o vocativo. — Só temos um espaço e só tem uma cama. — ele balançou a única chave disponível.
Pressionei as veias saltadas na testa e aceitou as chaves com alguma violência, a mesma que ela usou para desemperrar a porta do pequeno quarto, simples, mas ajeitado e aconchegante. O que havia de inóspito ali era somente a feição dela, que se agravou quando eu repeti no automático:
— Eu não posso perder essa apresentação.
— Eu não pedi pra você esperar por mim, ok? — ela finalmente falou comigo, áspera. — Eu sei andar sem sombra.
— Eu sei que você sabe, eu só estou dizendo que-
— Eu já ouvi. — pegou a bolsa dela apenas para jogá-la num canto. — O emprego, o escritório, a apresentação… É só isso que te move, Mingyu. É só isso que você vê! Você nem percebeu que eu… — ela precisava atirar mais alguma coisa, mas o travesseiro que ela pegou não tinha o mesmo efeito e ela desistiu. — Quer saber, esquece. Não importa.
— Não importa? — foi a minha vez de amassar o travesseiro que ela deixou em cima da cama. — Tudo o que eu venho fazendo é por você, ! Isso não importa?
Ela cerrou os lábios e eu me senti prestes a quebrar.
— Ok, obrigada por tudo que você fez até aqui! Obrigada por se esforçar tanto por mim! — o tom irônico me deixou em estilhaços. — Mas não se preocupe, a partir de amanhã, você está livre.
Livre?!
Livre?
Livre como, se você me tem desde o dia que eu te conheci?
— Você ainda não entendeu, não é, ? — avancei alguns passos, vencendo a distância bélica entre nós. — Você ainda não entendeu por que eu estou aqui?
— Porque você ganha um salário pra isso?
O abate veio. Cortante, duro, atroz.
As palavras dela não ecoaram bem nos meus ouvidos e reverberaram em cada fibra do meu corpo, me estremecendo de cima a baixo. Tirei o relógio do pulso molhado, notando as veias em fúria do sangue inquieto que corria errado, assim como tudo o que tinha acontecido naquele breve intervalo de tempo, e busquei ar.
A sensação era de sufocamento.
— É isso que você pensa de mim? Porque se for, você não me conhece, . Você não me conhece nem um pouquinho.
— Eu bem que tentei, mas você não me deixa. — ela me olhava atônita. — Tudo o que eu sei sobre você aponta para o seu futuro. Quem você quer ser. Onde você quer chegar. Você só olha pra frente, Mingyu. Se você virasse esse seu pescoço travado para os lados só por um instante…
— Eu não tenho escolha a não ser olhar pra frente, . — juntei as mãos no meu próprio peito dolorido. — Tudo que eu quero está lá, inclusive você! Principalmente você!
— O quê?
— Você não percebeu que esse estágio triplicou de importância pra mim porque quando eu estiver bem empregado, eu vou poder te levar nos encontros que você merece? Namorar você? Planejar um futuro?
guardou silêncio.
— Se você acha que existe uma renda mínima exigida para estar comigo, então é você quem não me conhece. Você não me conhece nem um pouquinho.
— , me entende. — implorei.
— Boa noite, Mingyu.
Pessoalmente convidado. Por ninguém menos que o dono da casa e do evento, Alfred Mattia Chevalier.
O barulho italiano inconfundível enchia o lugar que eu conhecia tão bem. A música ao vivo, o tilintar das taças, o som dos abraços apertados e um cheiro bom de uva e molho de tomate tomavam conta da grande sala de estar, que precisou de uma nova configuração para acomodar familiares, amigos e músicos. Dei falta de alguns móveis enquanto passava pelas pessoas, procurando um rosto conhecido, e descobri porque foi preciso abrir tanto espaço: havia dança. Uma dança alegre e contagiante, com movimentos vibrantes e enérgicos. Uma dança que sobrepujava a dor perene do luto, não como uma provocação, muito menos como um desrespeito à memória dos que se foram, mas como uma prova de que havia vida após a dor.
E apesar dela.
— Boa noite, senhor xarope. — uma Dorota risonha foi a primeira pessoa a me receber na festa. — Como está se sentindo?
— Totalmente recuperado. — abri os braços. — Milagrosamente recuperado, aliás. O que tinha naquele seu chá, hein, Dory?
Dorota espalmou as mãos gordinhas para cima e espremeu os lábios, selando o segredo da receita. Andou em minha volta, analisando em silêncio a minha camisa e a calça sociais pretas, que eu tinha engomado com rigor quase militar apenas para a avaliação dela. Ela tinha um olhar que punha à prova qualquer pessoa, nada passava despercebido pelo crivo exigente daquela que era bem mais que uma simples governanta, mas potencialmente a maior figura materna da .
— Você está bem apanhado. — ela me aprovou, satisfeita. — Embora eu não entenda essa mania que vocês jovens têm de só usar preto! A , por exemplo, bonita daquele jeito e só anda feito um breu.
— Nem todas são como você que combinam com qualquer cor, Dorota. — elogiei o vestido dela. — Belas pernas, aliás.
— Menino! — ela puxou a barra para baixo, ruborizada, mas envaidecida. — Anda, vai lá em cima e faz a descer. Ela já está atrasada.
Subi as escadas e o barulho foi ficando atrás de mim conforme eu avançava pelo corredor em direção ao único quarto com a porta aberta e a luz acesa. Diminuí o passo, pensando em como me anunciar sem provocar um susto, quando surgiu no cômodo.
Finquei os pés no chão, paralisado. O vestido alinhado que marcava sutilmente o busto farto não estava totalmente colocado ainda, as alças finas pendiam nos ombros e o zíper traseiro, aberto, a obrigava a sustentar a parte da frente com o antebraço. Lutei inutilmente contra os meus olhos, que se negavam a se fechar. Eu não deveria estar ali, espiando enquanto ela terminava de se vestir, mas eu continuei imóvel porque sorria leve, me prometendo tudo quanto eu queria naquele se deixar olhar.
— Você vai me ajudar a fechar o vestido ou vai ficar aí parado feito um relógio quebrado? — ela falou finalmente.
Adentrei o quarto tremendo feito uma vara verde. me deixou chegar perto o suficiente e virou-se, arqueando as costas e livrando-as dos cabelos arrumados num penteado semipreso. Apoiei uma das mãos na cintura dela e comecei o caminho inverso ao que eu realmente queria fazer, puxando o zíper para cima e prendendo o ar involuntariamente por todo o percurso. Demorei mais do que era preciso. Fechar a porra de um zíper não era uma tarefa difícil, o difícil era fingir indiferença ao começo da renda da calcinha aparecendo, aquele mínimo pedaço de pano que era capaz de sugerir tanto, de me fazer sentir a febre voltando, e dessa vez não uma febre debilitante que buscava expulsar algo do meu corpo, mas uma febre atrativa que me fazia arder por ela.
Arder contido, numa combustão interna cada vez mais difícil de controlar.
— Prontinho. — enfim voltei a respirar.
agradeceu baixinho e atravessou o quarto, linda. Mexeu na caixa de joias na penteadeira e escolheu uma pulseira prata para vestir o pulso tatuado com o verbo “lembrar”, numa tipografia fina que dialogava com a linha das folhas e das rosas espalhadas pelo braço. Assisti entorpecido o movimento das mãos delicadas escolhendo os adornos, que, apesar de bonitos, pareciam dispensáveis. Ela já me exercia fascínio apenas em pele e tinta.
— Então quer dizer que em vez de um pé na bunda, você caiu nas graças do meu avô? — comentou casualmente, sem a menor ideia de todos os cenários que minha mente me sugeria.
— E ainda ganhei uma carta de recomendação. Aquele xarope me deu sorte, vou tomar um vidro inteiro amanhã antes da apresentação.
— Você está nervoso? — ela se aproximou de mim, me entregando um colar que também precisava da minha ajuda para fechar no pescoço alvo.
— Estou preocupado em ter que dizer “Constituição” tantas vezes e as pessoas perceberem que eu tenho a língua presa. — passei a corrente pela frente dela.
— Eu acho fofo. Você parece o Patolino.
— E você tem cada vez mais apelidos pra mim. — fechei o colar.
— Preciso usar meus insultos carinhosos enquanto ainda posso. — ela deu uma última olhada no espelho. — Em algumas horas, estaremos na sala de conferência do Hamptons e os engravatados da CS&M vão tirar você de mim. — começou a sair do quarto e eu a segui. — O que é uma pena, porque eu tenho certeza que eles não são tão divertidos quanto eu.
— Você não vai se livrar de mim tão fácil. — passei na frente dela, oferecendo a mão para ajudá-la a descer as escadas. — O estágio é de meio período, se seu avô renovar meu contrato, ainda vou ser a sua sombra nos finais de semana.
— Acho que meus dias de festa estão contados. — tentou falar por cima do burburinho que a presença dela causou. Todos os olhares se voltaram para ela no minuto em que ela apareceu na sala. — O New York Times selecionou alguns alunos da Saint Peter para vagas temporárias de três meses. Adivinha quem estava na lista?
— ! — exclamei junto com um abraço apertado que a fez pular os dois últimos degraus. — É claro que você foi chamada! Parabéns!
— Vejo que a boa notícia já se espalhou. — Alfred surgiu e uma súbita visão das armas de caça no escritório dele me fizeram soltar a e guardar um passo de distância dela. — Minha piccolina está crescendo!
— Já faz um tempo, nonno. — ganhou um beijo na testa e aceitou o braço do avô.
— Vamos jantar? Dorota já mandou servir. — Alfred mostrou o caminho. — Sente-se conosco, senhor Kim. E por favor, não se assuste, jantares italianos são sempre barulhentos assim. Vai ficar pior depois que comerem.
Alfred tinha toda razão, mas a comida (e a companhia) estava tão deliciosa que eu esqueci dos gritos. sentou ao meu lado e não parava de rir, porque o lugar vago do outro lado foi ocupado por uma excêntrica tia, que me cumprimentou com dois beijos estalados em cada bochecha e gostou tanto de mim que estava quase sentando no meu colo.
— Não ligue para a tia Ludovica. — me tranquilizou quando a senhora pediu licença e foi ao banheiro, não sem antes me premiar com mais beijos. — Ela ficou assanhada assim desde que começou a fazer reposição hormonal.
— Ela é casada? — perguntei enquanto tentava tirar a marca do batom com o dedo. — Acho que ter uma sugar mommy vai me pagar melhor que o estágio e meu emprego de segurança juntos.
— Você vai me trocar pela tia Ludovica? — riu, ultrajada.
— Ela deve dar menos trabalho que você. — ajeitei a alça do vestido, que teimava em cair.
As horas passaram rapidamente, regadas a vinho e licores, e às dez em ponto meu relógio disparou o primeiro alarme. As bagagens, que não eram tantas para um só final de semana, já estavam no meu carro, e como o Hamptons ficava a duas horas e meia de Manhattan e a apresentação era às onze da manhã do dia seguinte, podíamos ficar para a sobremesa e mais algumas músicas. A banda engatou uma melodia frenética, puxada por um bandolim, pandeiros e outros instrumentos de corda e percussão, e formou-se um círculo coreografado onde os casais trocavam de pares rapidamente, acompanhando o sentido anti-horário da roda de dança.
— Tarantela! — gritou quando a música tocou, tirando os sapatos.
— Uma tarântula? — me levantei, em completo desespero, achando que tinha uma aranha andando pelo meu corpo. — Onde? Tira! Tira!
— Ta-ran-te-la, tonto. — ela corrigiu entre gargalhadas, segurando os saltos. — É uma dança típica da Apúlia, cidade natal do meu avô. Tem em todo aniversário dele. — ela guardou os sapatos embaixo da mesa e começou a prender o cabelo. — Vem! — ela me puxou pelas mãos. — Você vai amar!
— … — hesitei, me agarrando à cadeira, e a força que exercia era insuficiente para me mover. — Eu não sei dançar isso…
— Mas você sabe bater palma, certo? Vem, Mingyu! Por favor. — já se mexia no ritmo e sorriu. O sorriso, esse sim, me convenceria a ir para qualquer lugar.
Me deixei ser arrastado para o centro do círculo e pinçou os dois lados do vestido, levantando-o e pulando graciosamente de um lado para o outro, apoiada nas pontas dos pés. Estudei o tempo e observei os outros homens com suas parceiras, que, de fato, apenas batiam palmas e dançavam em volta delas. Comecei a imitá-los, me rendendo ao som envolvente e assistindo girar, sempre sorrindo.
Encantadora.
O ritmo vital e sem trégua dos acordes regiam os quadris dela e houve uma quebra no compasso da música, atrasando-a. ergueu o braço em 90 graus e eu entrelacei os dedos na mão dela com o braço oposto, estabelecendo ali um elo entre nós e um eixo para o giro. Demos uma volta completa, sem tirar os olhos um do outro, e repetimos o passo até eu me sentir tonto e arrancar dela mais uma bela risada. Foi quando a música voltou a crescer e ela me avisou:
— Não fica sozinho, tá? — agarrou meus braços. — Diz a lenda que dançar a tarantela sozinho dá azar.
— Dançar sozinho? — embranqueci. — Onde você vai?
Um coro gritou “ei!” e a música acelerou novamente, sinalizando que os casais deveriam trocar de par. Foi Alfred quem tirou de mim, e a ilustre tia Ludovica assumiu o lugar dela. Entrei em pânico, tentando acompanhar os movimentos estabanados da senhora na menopausa, que rodopiava errado e pisava no meu pé, atirando-se em mim de propósito. Procurei em desespero pela na roda, meus olhos treinados foram direto na boca vermelha, escancarada e rindo de mim tão descaradamente que me irritaria se não fosse tão linda. Não esperei pelo comando do mestre para trocar de casal, cordialmente cutuquei o ombro de um homem ao meu lado e pedi a parceira dele, que de cara entendeu o meu plano.
— Você quer a de volta, não é? — Dorota disparou quando foi trocada, dançando comigo.
— Me ajuda? — pedi.
— Sempre. — ela apertou minha bochecha. — Segura firme!
Dorota apertou meus ombros e percorreu o círculo por dentro, me levando junto para o olho do furacão italiano. Fomos nos aproximando entre saltos e giros e, quando o mestre anunciou mais uma troca, eu interceptei no meio do caminho, puxando-a pela cintura.
— Sentiu minha falta? — ela caiu nos meus braços, amparando-se no meu peito respirando quente contra o meu rosto.
— Você não imagina o quanto. — sussurrei, ofegante.
A agitação da dança fez o perfume dela subir e o calor do corpo dela aumentar, construindo uma atmosfera inebriante. O suor que escorria discretamente pelo pescoço e se acumulava no decote me despertava os instintos mais primitivos e eu apertei o quadril dela com mais força para conter o formigamento das mãos, que queriam passear por ela. Ficamos naquela tensão clichê de um contato intenso e olhares que não se partiam, como nos filmes melosos que eu nunca entendi porque as pessoas gostavam tanto, e alguma parte do meu cérebro disparou: “beija ela, seu burro!”
A música cessou naquele exato momento. O timing perfeito.
Até ele aparecer.
— Aí está você, !
Um gosto amargo se espalhou pela minha boca e eu, que até pouco tempo estava na altura do céu, despenquei violentamente em queda livre.
Lee Fudido Seokmin. Diretamente da casa do caralho.
— Seo! — soltou-se de mim para abraçá-lo. — Achei que você não viria!
— Eu não perderia isso por nada. — ele soprou o pescoço suado dela, desgrudando os fios de cabelo, e deixou os olhos caírem nos seios dela. — Não acredito que você escolheu esse vestido. Você lembra o que fizemos quando você usou ele…
— Seo! Isso foi há milhões de anos!
Dokyeom sorriu malicioso, exibindo os dentes que eu queria quebrar.
— Se importa se eu roubá-la um pouquinho, Mingyu? — ele me cumprimentou estendendo a mão.
Se eu apertar tua mão, eu vou acabar guardando ela no meu bolso.
— Já roubou. — ralhei entre dentes.
— Não vai demorar, é só uma dança. — ele recolheu a mão que eu deixei no vácuo e voltou a sorrir para . — Você guardou uma dança pra mim, certo?
— Eu vou ficar te devendo. Mingyu e eu temos que pegar a estrada logo mais, e eu ainda preciso tomar um banho e trocar de roupa. — respondeu.
— Quer ajuda? — Seokmin sugeriu, como se eu fosse invisível.
E era exatamente como eu me sentia. Invisível, diminuído, castrado. E puto.
— Não, obrigada. — se desvencilhou dele. — Mingyu, saímos em meia hora, tudo bem?
— Se você quiser ficar mais um pouco, eu posso te levar. — DK interrompeu minha resposta. — Assim você dá um pouco de descanso ao seu segurança.
O tom do comentário abriu um buraco no meu castelinho de ilusões e colocou alguns tijolos de lucidez lá. Proposital ou não, o fato era que Dokyeom me reduzia ao meu contrato, ao cheque assinado no fim do mês, ao nome na folha de pagamento, como se eu não fosse ameaça o bastante para ganhar o status de rival. Ou de igual, ao menos.
— Mingyu não está trabalhando. — se abanou. — Ele vai apresentar o artigo dele com o míope.
— Míope? — DK repetiu.
— Wonwoo. — esclareceu e pegou uma taça de água de um dos garçons que passavam. — Óculos redondo, cabelo de nerd e a Marie Bee pendurada, sabe?
DK assentiu, coçando o nariz fino de peixe-espada, e um silêncio constrangedor se formou enquanto matava a sede. Enfiei as mãos nos bolsos, deslocado, e como Dokyeom era incapaz de ficar calado por mais de cinco segundos, ele mesmo se encarregou de quebrar o gelo.
— Bom, sendo assim, a gente se fala quando você voltar, . — ele deixou um beijo perto da orelha dela antes de sair. — Jantamos no Píer?
Fiz as contas rapidamente e entendi porque Dokyeom não me via como igual. Eu vinha encarando o emprego na Cravath, Swaine & Moore como meu bilhete dourado no mundo da , como a solidificação do meu lugar nele, mas aquilo me garantia alguma coisa? Eu poderia levar a no Píer casualmente e deixar uma fortuna lá? Mesmo que eu fosse contratado pelo maior escritório do país, no final do dia, ele tinha um ponto. Eu era sempre o segurança. Eu era sempre o que não pertencia.
— Claro. Ligo pra Ashley e peço pra ela separar a nossa mesa.
— E o vinho que você gosta. — mais um beijo, no dorso da mão. — Boa sorte, Mingyu.
— Obrigado.
se ofereceu para acompanhar DK até a saída e eu engoli meu desgosto com a ajuda de alguma bebida que passou por mim. Era água com gás. Muito apropriado, a propósito, um líquido ácido para combinar com meu estado de espírito. Aquela breve interação tinha sido o suficiente para azedar a minha noite e para plantar uma ideia chata e persistente de inferioridade na minha cabeça dura.
Contei a meia hora que me pediu e me despedi de Alfred e Dorota, deixando com ela o recado de que esperaria no carro. Arrisquei uma olhada para cima quando caminhei até a vaga e o que eu vi parecia um presságio: um céu de chumbo prometia desabar em muita chuva a qualquer momento.
— Tempo fechado aqui fora e aqui dentro. — falei para mim mesmo.
— Falando sozinho, sombra? — apareceu pronta para ir. E cheirando a banho recém-tomado.
— Com as vozes na minha cabeça. — dei de ombros.
— Elas são legais? — ela parou em frente à porta do passageiro.
— Não mesmo. — destravei o alarme.
— Então não dê ouvidos a elas. — recomendou, simplista, e entrou no carro.
— Bem que eu queria. — entrei em seguida. — Bem que eu queria…
— E então… — gerou expectativa, apertando mais uma vez o botão do som no painel. — É. O rádio não está gostando de mim hoje, eu desisto.
Passei a marcha sem vontade, como eu vinha fazendo há aproximadamente uma hora, desde que deixamos a mansão em direção ao Hamptons. O ciúme, a ansiedade e o medo que eu estava sentindo formaram uma combinação amarga e perigosa que me colocou na defensiva. E quando isso acontecia, eu ficava calado, introspectivo, refém dos meus próprios pensamentos. Pensamentos que, no momento, não eram nada agradáveis.
— Você está tão quieto. — ela observou, recostando-se no banco. — O que houve?
— Nada.
— Tem certeza? — olhou o celular, checando o aplicativo do mapa. — Porque já estamos na metade do caminho e você quase não soltou uma palavra.
— Talvez você devesse ter aceitado a carona do DK, o rádio dele funciona e ele fala feito uma maritaca. — disparei sem filtro.
franziu o cenho, estranhando o ataque de mau-humor repentino e descobrindo um lado meu que eu também não gostava: quando eu estava mal, eu acabava dizendo as coisas erradas.
O dom da má palavra, como Wonwoo costumava dizer.
— Se eu quisesse ir com o Seokmin, eu teria ido. — ela rebateu, mantendo a expressão de incredulidade.
— Ainda dá tempo de voltar se você preferir ir na Mercedes dele. — minha língua foi mais rápida que meu cérebro, que apitava um sinal de perigo e me mandava calar a boca.
— É sério? — endireitou-se, tensa. — Qual o seu problema com Seokmin, hein, Mingyu?
Todos. Principalmente o que ele fez com você naquele vestido.
— Nenhum. A não ser o fato de ele me lembrar o tempo todo que você é meu trabalho.
As nuvens se adensaram à nossa frente e no olhar dela.
— Desde quando eu sou só um trabalho pra você? — ela perguntou num fio de voz.
Ela não era.
Ela nunca foi.
Ela nunca foi só um trabalho, ela nunca foi “só” coisa nenhuma. “Só” era uma palavra muito limitante para a imensidão que a era para mim.
— Não foi isso que eu disse, é que-
Um solavanco no motor e o carro morreu. A cereja no topo do bolo.
Inferno.
— O que foi isso agora?
— Acho que a bateria arriou. — girei a chave na ignição mais algumas vezes, em vão. — Porra!
inspirou pesado, retornando ao celular e ligando para alguém em busca de ajuda. O rosto voltado para o vidro e os braços cruzados eram um agravante a mais.
— , não fica assim, eu- — tentei.
— A Marie Bee não atende. — ela escolheu não ouvir, tirando o aparelho do ouvido e começou a procurar outro número. — Vou tentar o míope.
Meu peito apertou e faltou ar. Travar aquela batalha seria desperdiçar uma energia que eu não tinha, então me conformei em assistir o para-brisa úmido se encher de manchas redondas do sereno fino encorpando e dificultando as ligações que tentava fazer. Farto do meu destempero e estressado com a minha própria inércia, desci para abrir o capô e ver se havia algo que eu pudesse fazer.
Não havia. A chuva engrossou nas minhas costas e eu entrei de volta no carro, molhado feito um cão arrependido.
— Como está o seu sinal? — movia o celular dela de um lado para o outro.
— Fraco. — peguei o aparelho e analisei as barras no canto superior da tela. — E agora inexistente.
— O meu também.
Apertei o couro do volante, buzinando com a testa. O peso de um futuro inteiro caiu de uma vez sobre os meus ombros exaustos e um filme passou pela minha cabeça. Um filme de terror, no caso. Em todas as cenas eu perdia o estágio e, o que era ainda mais assustador, a .
— O simpósio é amanhã de manhã, eu não posso perder essa chance. — falei amargo, com frustração. — Eu deveria ter vindo antes.
Não era o que eu queria dizer, mas foi o que eu disse.
O dom da má palavra ataca novamente.
— É, deveria mesmo. — confirmou e eu levantei a cabeça quando ouvi a porta dela destravando.
— Tá maluca? — impedi o movimento, e mesmo o toque acidental foi bom. — Onde você pensa que vai?
— Procurar alguma ajuda enquanto você choraminga. — ela tirou a mão da minha. — Tem um hotel de beira de estrada a alguns metros, eu tô vendo o letreiro piscar daqui.
— , está um breu e chovendo. — argumentei o óbvio.
— Você é de açúcar, por acaso? — perguntou já com o corpo do lado de fora e bateu a porta.
Mas que caralhos, Chevalier. Qual é o plano? Vagar por aí carregando nossas bolsas até sermos assaltados ou atropelados?
— Inferno! — praguejei mais uma vez.
Peguei as coisas no banco de trás e também bati a porta antes de trancá-la manualmente, decidido a segui-la. É claro que eu iria segui-la. Nem todos os círculos do inferno bastavam para me deixar longe da .
arrancou na frente pelo acostamento enquanto eu murmurava, deixando meu lado ranzinza rodar em segundo plano. Ela acordou o único funcionário do local ao abrir a porta. O recepcionista arreganhou a boca e coçou os olhos e a barriga, quase em letargia:
— Reboque, lindinha? — peguei a conversa pela metade quando ele indagou , sonolento. — Nenhum a essa hora. Menos ainda nesse pau-d'água. Pra onde você está indo sozinha?
— Hamptons. — respondi, colocando as coisas no chão. — E ela não está sozinha.
— Não é tão longe. — ele bocejou. — O melhor que eu posso fazer por vocês é chamar um mecânico amanhã cedinho e conseguir um quarto.
— Dois. — pediu, seca, quando me viu escorar no balcão ao lado dela.
— Lamento, docinho. — o recepcionista frisou o vocativo. — Só temos um espaço e só tem uma cama. — ele balançou a única chave disponível.
Pressionei as veias saltadas na testa e aceitou as chaves com alguma violência, a mesma que ela usou para desemperrar a porta do pequeno quarto, simples, mas ajeitado e aconchegante. O que havia de inóspito ali era somente a feição dela, que se agravou quando eu repeti no automático:
— Eu não posso perder essa apresentação.
— Eu não pedi pra você esperar por mim, ok? — ela finalmente falou comigo, áspera. — Eu sei andar sem sombra.
— Eu sei que você sabe, eu só estou dizendo que-
— Eu já ouvi. — pegou a bolsa dela apenas para jogá-la num canto. — O emprego, o escritório, a apresentação… É só isso que te move, Mingyu. É só isso que você vê! Você nem percebeu que eu… — ela precisava atirar mais alguma coisa, mas o travesseiro que ela pegou não tinha o mesmo efeito e ela desistiu. — Quer saber, esquece. Não importa.
— Não importa? — foi a minha vez de amassar o travesseiro que ela deixou em cima da cama. — Tudo o que eu venho fazendo é por você, ! Isso não importa?
Ela cerrou os lábios e eu me senti prestes a quebrar.
— Ok, obrigada por tudo que você fez até aqui! Obrigada por se esforçar tanto por mim! — o tom irônico me deixou em estilhaços. — Mas não se preocupe, a partir de amanhã, você está livre.
Livre?!
Livre?
Livre como, se você me tem desde o dia que eu te conheci?
— Você ainda não entendeu, não é, ? — avancei alguns passos, vencendo a distância bélica entre nós. — Você ainda não entendeu por que eu estou aqui?
— Porque você ganha um salário pra isso?
O abate veio. Cortante, duro, atroz.
As palavras dela não ecoaram bem nos meus ouvidos e reverberaram em cada fibra do meu corpo, me estremecendo de cima a baixo. Tirei o relógio do pulso molhado, notando as veias em fúria do sangue inquieto que corria errado, assim como tudo o que tinha acontecido naquele breve intervalo de tempo, e busquei ar.
A sensação era de sufocamento.
— É isso que você pensa de mim? Porque se for, você não me conhece, . Você não me conhece nem um pouquinho.
— Eu bem que tentei, mas você não me deixa. — ela me olhava atônita. — Tudo o que eu sei sobre você aponta para o seu futuro. Quem você quer ser. Onde você quer chegar. Você só olha pra frente, Mingyu. Se você virasse esse seu pescoço travado para os lados só por um instante…
— Eu não tenho escolha a não ser olhar pra frente, . — juntei as mãos no meu próprio peito dolorido. — Tudo que eu quero está lá, inclusive você! Principalmente você!
— O quê?
— Você não percebeu que esse estágio triplicou de importância pra mim porque quando eu estiver bem empregado, eu vou poder te levar nos encontros que você merece? Namorar você? Planejar um futuro?
guardou silêncio.
— Se você acha que existe uma renda mínima exigida para estar comigo, então é você quem não me conhece. Você não me conhece nem um pouquinho.
— , me entende. — implorei.
— Boa noite, Mingyu.
Capítulo 11 - O paraíso
Suspirei com o peito carregado e rolei inquieto no chão frio. ficou com a única cama do quarto e eu, com um cobertor dobrado duas vezes e meu braço como travesseiro. Insone, minha única alternativa para esquecer aquela discussão (e o fato de a mulher por quem eu era apaixonado estar dormindo bem pertinho de mim num babydoll de seda minúsculo) era pegar o livro que ela tinha me emprestado e abrir numa folha aleatória, aproveitando a luz dos relâmpagos para tentar ler e me distrair.
Não ironicamente, enquanto eu atravessava meu inferno particular, a página sorteada contava a chegada de Dante ao paraíso. Dante parecia comigo, aliás. Ele não se achava digno de toda aquela bem-aventurança. Eu entendia. Como alguém que teve que lutar muito por qualquer coisa, que nunca teve nada fácil ou sem esforço, parecia impossível que assim, de repente, as portas do paraíso pudessem se abrir. Atravessar o limbo, o purgatório e até mesmo o inferno era familiar para mim, era a parte da jornada que eu conhecia. Mas o paraíso? O paraíso eu nunca vivi.
Pelo menos não até a .
Eu sempre custei a acreditar quanto coisas boas aconteciam comigo. Para quem está acostumado a viver na sombra, a luz pode cegar.
Talvez tenha sido esse o meu caso. Um bom emprego e a mulher dos meus sonhos parecia ambicioso demais. Eu me sentia quase na obrigação de perder um deles.
Entretanto, chegar ao Hamptons ou mesmo apresentar o tal artigo eram as minhas menores preocupações no momento. O atraso na viagem era um imprevisto contornável, o tempo que me atormentava era o que eu tinha perdido com a . O tempo que eu poderia ter gastado aproveitando a companhia dela, mas que inconscientemente eu preferi gastar dando ouvidos à minha insegurança.
Insegurança. A piada infame que me sabotava e me perseguia.
A madrugada seguia impiedosa e o chão cada vez mais frio parecia feito de pregos. Quando um clarão iluminou todo o cômodo e o som do trovão ecoou segundos depois, balançando a frágil estrutura do quarto, eu desisti do livro e levantei de imediato. Trovejava muito mais dentro da minha cabeça e só havia uma pessoa capaz de me fazer enfrentar aquela tempestade interna.
Conforme eu suspeitava, acordou com um susto por causa do estrondo, abraçando os próprios joelhos e encolhendo-se na cama que acomodaria perfeitamente nós dois. Era óbvio. Para alguém que não gostava da chuva, era de se esperar que ela também tivesse medo dos trovões.
E ao vê-la ali, apertando os olhos e os punhos, o que tinha sido dito no calor de uma briga não importava mais.
Nada importava mais.
— Mingyu… — ela chamou, incerta.
— Eu sei, eu sei. — sussurrei, pronto para cuidar dela. — Eu tô aqui.
Sem dizer mais nada, engatinhei até a cama e ajeitei no meu colo, abraçando o corpo pequeno. Apertei gentilmente o rosto dela contra o meu peito e fiz um carinho no cabelo curto, sentindo exalar da pele acetinada o cheiro de hidratante de lavanda que eu já conhecia. aceitou o carinho sem qualquer resistência e encaixou-se na curva do meu pescoço, me permitindo perceber a respiração normalizando conforme ela se acalmava. Me dediquei a lhe oferecer consolo e passamos um bom tempo enroscados um no outro, até a discussão que tivemos se resumir a nada. Até aquele afago nos envolver numa atmosfera só nossa. Até eu perceber que tê-la nos meus braços fazia eu me sentir inteiro.
Porque quando a estava no meu peito, eu sabia o homem que eu queria ser.
Repousei na cabeceira, escondendo-a perto do meu coração acelerado. Outro trovão ecoou pelas paredes, um dos grandes, e me apertou mais.
— Shhh… — meus dedos massagearam a nuca dela. — Não fica com medo. Eu tô aqui. — repeti.
— É tão alto. — ela, ainda trêmula, puxava minha camiseta de dormir. — Por que precisa ser tão alto?
— Porque é o barulho da saudade. — sibilei, como se contasse uma história de ninar. — Sabia que um trovão são só duas nuvenzinhas se abraçando?
— Você tá inventando isso agora! — ela ergueu o rosto e ralhou baixinho.
— Mas você tá rindo, então tá funcionando. — desenhei o sorriso, contornando os lábios dela com os dedos.
— Está. Isso ajuda bastante. — me prendeu no olhar dela. — Mas não me solta ainda, tá?
— Eu não estava pensando nisso.
Abracei a cintura dela e afundei o nariz no cabelo bagunçado, tentando acreditar naquele perfume, naquele calor, naquele toque aveludado apertando meu braço. Me apeguei a todos os elementos possíveis para me convencer de que aquilo era real, de que aquela cena, que era meu último pensamento antes de dormir, não era mais uma fantasia intangível.
Eu estava, de fato, no paraíso.
— Me desculpa pelo que eu falei. — ela pediu.
— Me desculpa por ter sido um completo idiota.
— Você não foi um completo idiota. — a voz dela eriçou o meu pescoço. — Só meio.
Ri, arrepiado.
— Eu estou aqui por vontade. — confessei. — Você sabe disso, não sabe?
contornou meu maxilar, mapeando os sinais do meu rosto, suave. O céu ficou em silêncio e ela sorriu brando:
— Eu sei agora.
Meus dedos percorreram a face macia e afilada, perfeita em todos os traços e curvas, desde a boca até os olhos, que agora estavam quase fechando, relaxados. Passei alguns minutos decorando-a, me perdendo e me achando nela, e aninhou-se ainda mais, recusando-se a adormecer.
— Posso te perguntar uma coisa?
— Qualquer coisa. — assenti com medo de me mover e perdê-la.
— Por que você fala meu nome enquanto dorme?
Meu coração respondeu antes de mim, acelerando violentamente bem embaixo do rosto da . Ela aparou meu peito com a mãozinha pequena, sentindo as batidas e, ciente delas, manteve inquebrável o contato visual.
— Porque eu vou dormir pensando em você. E aí eu sonho com você. — admiti, simplesmente. — Todas as noites.
se moveu minimamente e mais uma vez eu me vi cativo no olhar castanho. Beijei a testa dela e deixei meus lábios demorarem ali, até que eles desceram sozinhos pela tez branca e levantou o rosto ao encontro deles.
— O que você sonha?
Nossos lábios se provocavam, raspando um no outro. Respiramos ali o mesmo ar.
— Ah, … — intercedi. — Eu estou cansado só de sonhar. Eu quero viver. Eu quero te viver.
Segurei o rosto dela, mirando o alvo. Mirando a boca, com a sede de um homem que vagou por um deserto. Com a avidez de quem espera há muito tempo. separou os lábios delicadamente, convidativa, tão perto de mim que compartilhamos o mesmo fôlego. Era a iminência de um beijo, não havia dúvidas. Aquele lapso de paraíso, em que os olhos vão fechando e a boca vai abrindo, ansiosa por encontro e saciedade, até o ponto de junção finalmente acontecer.
Nos chocamos gentilmente numa sincronia que parecia ensaiada. Pressionamos os lábios, extravasando todo o desejo acumulado, deixando as línguas se provocarem e se saciarem juntas, como se dançassem sozinhas e por vontade própria. Eu sentia sorrir, satisfeita a cada encostar dos nossos lábios, interrompidos somente quando um de nós precisava buscar ar. Mas o ar não parecia tão importante, tão necessário, tão vital, então nos beijamos de novo. E de novo. Com demora, com delicadeza, com vontade e com todos os predicados que tínhamos direito. era carnuda e macia, um descanso na boca, uma dormência deliciosa, uma sensação quente e arrebatadora.
E doce. Doce feito uma fruta.
Não havia mais para onde fugir ou canto escuro onde eu pudesse me esconder. Já estávamos sugestionando movimentos enquanto nos beijávamos. Estava para acontecer. Tinha passado da iminência e beirado o irremediável, sem jeito.
— ... — supliquei. — Você não quer fazer isso assim, num lugar feito esse-
— Não fale por mim, Kim Mingyu. Você não sabe o que eu quero, eu é que sei. — ela trilhou a linha da minha barba com beijos lentos, enquanto as unhas brincavam pelo meu abdômen por baixo da camisa. — E eu quero você. Já faz muito tempo.
— F-faz muito tempo?
— Como você não percebeu? Eu fiz você me chamar pra sair. Por que você acha que eram dois ingressos no seu presente de Natal? — ela me selou o queixo. — Eu te emprestei meu livro favorito e marquei os versos que eu mais gosto pra você. — outro selar, no canto dos lábios. — Eu continuei encontrando você para trabalhar num texto que já estava bom. — mais um, agora no arco do cupido, e as mãos por dentro da camisa alisavam meu peito. — Eu te toco o tempo inteiro, Mingyu. — um sussurro lascivo e, agora, unhas. — Entendeu agora por que eu explodi com você? Porque você é péssimo em ler as entrelinhas!
Quebrei por dentro. me deu os sinais e eu duvidei de todos.
Eu sempre custei a acreditar quando coisas boas aconteciam comigo.
— Me ensina a ler você, . — roguei, entorpecido pelo ar denso, acariciando o rosto dela. — Todos os desenhos, todas as letras, todos os caminhos dessa tua pele quente e perfumada.
Nos entregamos em mais um beijo. Exploramos a boca um do outro, desbravando cantos, mordendo lábios, testando limites. me instigou com uma investida mais quente e mais cheia de língua que me fez acelerar o pulso e sentá-la nas minhas coxas. Ela se arrastou pelas minhas pernas fazendo o short enrolar, e apoiou as mãos na minha nuca buscando algum atrito entre nossas intimidades separadas por moletom e seda. Uma fisgada interior me avisou que eu estava crescendo e um tiro de adrenalina fez meu coração bombear mais sangue conforme se insinuava em cima de mim, disposta a se satisfazer. Qualquer resquício de racionalidade sumiu quando chupou meu pescoço e soprou um gemido contra a minha pele arrepiada.
— Me demita. — pedi ofegante. — Me demita agora.
— O quê? — ela parou por um momento, confusa.
— Eu não vou ter você como a sua sombra. — salivei de vontade e urgência. — Eu quero ter você como eu mesmo.
— Você já me tem.
A camisa começou a pesar no meu corpo febril e eu me livrei dela em desespero. beijou meu peito e derrapou pela minha barriga, sensível dos arranhões, e eu desaprendi a respirar quando ela continuou aquela descida tentadora, arrastando o rosto e a língua por mim sem perder nenhum músculo, nenhum gomo, nenhum pedaço do meu tronco escapou de ser aderido pela língua promíscua e pelos dentes inquietos, que só encontraram descanso quando bateram no cós da calça do meu pijama. sorriu abafado no tecido, afundando a cara na área irrigada e latente e acariciando o comprimento clamante por liberdade. Afastei o suficiente para o membro saltar e bater no rosto dela, e correu pelas minhas coxas antes de me apertar gentilmente com as duas mãos.
Flertei com o delírio quando ela me tocou ali.
Trinquei o queixo, soprando o ar entre os dentes, quando ela encostou os lábios na ponta inchada e puxou a pele para cima e para baixo. Me assisti alucinado dentro da boca da , a cabeça subindo e descendo num ritmo torturante que me fazia transitar entre enlevo quando ela me guardava e aflição quando ela me descobria. Vim na borda, limiar da loucura, duro e gotejando, mas tirei forças das entranhas para impedi-la.
— Não sem você, . — segurei o rosto dela, tonto.
O beijo que ela me deu ao sentar de volta no meu colo me permitiu sentir meu gosto direto da boca dela. Os seios acenderam e ficaram marcados na blusa caindo pelos ombros, o short agora estava enfiado na bunda e a quantidade de roupa nela, ainda que escassa, me deixou impaciente. A despi da parte de cima e quase entrei em colapso quando massageei o par farto, firme e lindo.
— Vem logo, por favor. — mordeu o lábio, dançando na minha ereção antes de sair de cima dela. — Eu estou pronta.
Pus a mão para fora da cama e tateei minha mochila no chão, com fé inabalável na lembrança de que tinha guardado algum preservativo ali. Minha memória não me traiu e eu rapidamente tirei a calça e vesti o membro, beijando até enfraquecê-la e convencê-la com facilidade a se deitar e me deixar cobrir o corpo gostoso dela com o meu. Ela não parava de me provocar com as unhas e, por mais que houvesse uma sensação diferente e satisfatória naquela ardência ao ser rasgado, eu prendi as mãos dela acima da cabeça, segurando os pulsos.
— Eu tenho uma apresentação importante amanhã, lembra? Não posso aparecer com marcas no meu corpo.
— Você vai ter que me amarrar. — soltou, tão simples quanto respirar. — Eu não garanto nada.
Senti meu pau tremer com aquele pedido.
Era impossível raciocinar com o cérebro e o corpo mergulhado em libido como eu estava, e a minha gravata estendida bem ao meu alcance fez minha cabeça dar um giro. No entanto, era perigosa a ideia de abster do movimento das mãos quando eu estava tomado de tanto desejo que poderia, sem querer, machucá-la. Eu era indiscutivelmente maior que ela, conseguia fechar-lhe a cintura com facilidade. Movido por instinto e cego pela carne dela eu a deixaria, para ser eufêmico, roxa.
— Isso pode ser perigoso. — minhas têmporas incharam. Eu queria aquilo. Eu queria muito aquilo. — Já faz muito tempo pra mim, . Eu tenho te esperado há meses.
— E quanto tempo você acha que faz pra mim? — ela afundou os dedos no meu cabelo e me fez um cafuné, me obrigando a olhar para ela. — Eu confio em você.
— Não é de hoje que você me maltrata, Chevalier. Eu tô com muito tesão acumulado. Tudo em você. Só em você. — confessei enquanto ela arrumava os fios da minha franja. — Você tem certeza?
arqueou o braço e puxou a gravata, estirada numa cadeira bem perto da cama, dada a metragem do quartinho. Esfregou rosto e lábios no acessório, testando se a textura era do seu agrado, depois repetiu o movimento no meu rosto, me acariciando com o pano. Fechei os olhos, inebriado.
— Eu tenho. — ela me entregou a gravata e a si mesma.
Beijei os punhos antes de atá-los, como um pedido de licença. Estiquei um pedaço do tecido, segurando a ponta dobrada, e passei a extremidade livre através do laço em torno dos pulsos de , amarrando o que sobrou no arame que enfeitava a cabeceira da cama.
— Me fala, tá? — olhei fundo nos olhos dela, buscando confirmação visual do seu consenso e conforto.
— Assim está bom. — puxou as mãos presas, certificando-se de que o nó não se desfaria ou a apertaria em exagero. — Só não demora, por favor. — ela fechou as pernas nos meus quadris e se contorceu um pouco, irrequieta. — Eu quero muito você dentro de mim.
Caí de boca nos seios dela em resposta, usando a mão oposta à que me apoiava no colchão para encaixar os montes na minha língua afoita. ergueu os quadris conforme eu resvalava por suas letras e desenhos gravados, sugando tudo. Choramingou quando eu desci os dedos pela barriga e umbigo, prevendo onde eu chegaria e o que eu faria lá.
Puxei o short e a calcinha para baixo, sem nem reparar na cor, alisando e beijando as pernas dela enquanto a libertava das últimas peças de roupa. Contornei a saliência úmida do sexo alheio, procurando com paciência o botão inchado, guiado pela intensidade dos gemidos que deixava fugir. Circulei a área ao encontrá-la, estimulando-a a me receber, e finalmente a adentrei com dois dedos. Contemplei a cena com calma, saboreando aquele espetáculo visual que era se torcendo indefesa presa à cama, refém do meu domínio sobre o prazer dela, que ela me concedeu tão deliciosamente molhado.
— Mingyu… — me chamou, sôfrega. — Eu estou vindo.
Subi a língua pelo pescoço e raspei os dentes no lóbulo da orelha dela, brincando com o brinco de pérola:
— Vem. — pedi calmamente e chegou, desmanchando na minha mão encharcada.
Não esperei que ela terminasse o último arquejar do meu nome e penetrei o caminho estreito, fazendo-a gritar por mim dessa vez. Sorri fraco. As paredes do hotel eram bem finas e certamente os outros hóspedes ouviram implorar por mim. O que era por si só excitante pra um caralho.
Me esforcei invadindo-a, tão apertado, tão gostoso e tão certo que nos fizemos uma só carne. Até a respiração soava igual, éramos sombra e luz se confundindo. Ficamos naquele entra e sai apressado, forte, urgentes de nos sentirmos em tudo, indiferentes ao barulho do ferro rangendo e batendo contra a parede. Que quebrasse a cama, que caísse o quarto. Éramos um do outro e isso era tudo o que importava.
— Eu te quero há tanto tempo, … — enterrei mais fundo. — Só hoje eu já ardi por ti tantas vezes… — jurei no ouvido dela, incansável.
soltou um gritinho agudo para anunciar seu segundo orgasmo da noite, grunhindo manhosa na minha boca e me fazendo escorrer e fincar os dentes na primeira extensão de pele que encontrei. A doce vertigem do gozo me dominou e eu relaxei dentro dela, concentrado apenas em não esmagá-la com os músculos dormentes do meu corpo saciado.
— Eu vou ficar dolorida de você uma semana. — ela riu melódico, apertando as pernas em volta da minha cintura.
— Eu solto você todinha numa massagem, prometo. — deslizei pela coxa de e dei um tapinha na nádega esquerda.
Saí de dentro dela e comecei a me mover para libertá-la da amarra, fazendo um carinho nos braços e aplicando uma leve pressão para aliviá-los do peso por terem passado muito tempo suspensos. Os pulsos tinham manchinhas vermelhas bem discretas, mas ainda assim, minha reação a elas foi de preocupação.
— Ei. — segurou meu queixo, alisando meu maxilar. — Relaxa. Você só me deu prazer.
— E você me deu a melhor noite da minha vida. — beijei , sem querer que acabasse.
— Conseguimos evitar marcas visíveis em você, hã? — dedilhou meu tronco amornado de um cansaço gostoso. — Mas você vai ter que se apresentar com a gravata amassada.
— Eu te perdôo. — formei um biquinho. — Mas só se você tomar um banho comigo.
— Não sobrou muita água quente, eu não tenho escolha. — riu e foi parando o carinho. — Aliás, já vai amanhecer, é melhor a gente ir.
— Espera. — pedi, beijando a tatuagem de coração atrás da orelha com a qual eu namorava em segredo. — A gente pode ficar aqui assim só mais um pouquinho?
— Quanto é o pouquinho? — ela se arrepiou, manhosa, virando o pescoço e pedindo por um beijo do outro lado. — Você ainda tem que conquistar o mundo, lembra?
— Meu mundo é você, .
sorriu, e os versos que eu tinha lido há pouco saltaram na minha memória:
“Nos olhos seus ardia um tal sorriso,
Que, encarando-a, cuidei tocar o fundo
De ventura no eterno Paraíso…”
Não ironicamente, enquanto eu atravessava meu inferno particular, a página sorteada contava a chegada de Dante ao paraíso. Dante parecia comigo, aliás. Ele não se achava digno de toda aquela bem-aventurança. Eu entendia. Como alguém que teve que lutar muito por qualquer coisa, que nunca teve nada fácil ou sem esforço, parecia impossível que assim, de repente, as portas do paraíso pudessem se abrir. Atravessar o limbo, o purgatório e até mesmo o inferno era familiar para mim, era a parte da jornada que eu conhecia. Mas o paraíso? O paraíso eu nunca vivi.
Pelo menos não até a .
Eu sempre custei a acreditar quanto coisas boas aconteciam comigo. Para quem está acostumado a viver na sombra, a luz pode cegar.
Talvez tenha sido esse o meu caso. Um bom emprego e a mulher dos meus sonhos parecia ambicioso demais. Eu me sentia quase na obrigação de perder um deles.
Entretanto, chegar ao Hamptons ou mesmo apresentar o tal artigo eram as minhas menores preocupações no momento. O atraso na viagem era um imprevisto contornável, o tempo que me atormentava era o que eu tinha perdido com a . O tempo que eu poderia ter gastado aproveitando a companhia dela, mas que inconscientemente eu preferi gastar dando ouvidos à minha insegurança.
Insegurança. A piada infame que me sabotava e me perseguia.
A madrugada seguia impiedosa e o chão cada vez mais frio parecia feito de pregos. Quando um clarão iluminou todo o cômodo e o som do trovão ecoou segundos depois, balançando a frágil estrutura do quarto, eu desisti do livro e levantei de imediato. Trovejava muito mais dentro da minha cabeça e só havia uma pessoa capaz de me fazer enfrentar aquela tempestade interna.
Conforme eu suspeitava, acordou com um susto por causa do estrondo, abraçando os próprios joelhos e encolhendo-se na cama que acomodaria perfeitamente nós dois. Era óbvio. Para alguém que não gostava da chuva, era de se esperar que ela também tivesse medo dos trovões.
E ao vê-la ali, apertando os olhos e os punhos, o que tinha sido dito no calor de uma briga não importava mais.
Nada importava mais.
— Mingyu… — ela chamou, incerta.
— Eu sei, eu sei. — sussurrei, pronto para cuidar dela. — Eu tô aqui.
Sem dizer mais nada, engatinhei até a cama e ajeitei no meu colo, abraçando o corpo pequeno. Apertei gentilmente o rosto dela contra o meu peito e fiz um carinho no cabelo curto, sentindo exalar da pele acetinada o cheiro de hidratante de lavanda que eu já conhecia. aceitou o carinho sem qualquer resistência e encaixou-se na curva do meu pescoço, me permitindo perceber a respiração normalizando conforme ela se acalmava. Me dediquei a lhe oferecer consolo e passamos um bom tempo enroscados um no outro, até a discussão que tivemos se resumir a nada. Até aquele afago nos envolver numa atmosfera só nossa. Até eu perceber que tê-la nos meus braços fazia eu me sentir inteiro.
Porque quando a estava no meu peito, eu sabia o homem que eu queria ser.
Repousei na cabeceira, escondendo-a perto do meu coração acelerado. Outro trovão ecoou pelas paredes, um dos grandes, e me apertou mais.
— Shhh… — meus dedos massagearam a nuca dela. — Não fica com medo. Eu tô aqui. — repeti.
— É tão alto. — ela, ainda trêmula, puxava minha camiseta de dormir. — Por que precisa ser tão alto?
— Porque é o barulho da saudade. — sibilei, como se contasse uma história de ninar. — Sabia que um trovão são só duas nuvenzinhas se abraçando?
— Você tá inventando isso agora! — ela ergueu o rosto e ralhou baixinho.
— Mas você tá rindo, então tá funcionando. — desenhei o sorriso, contornando os lábios dela com os dedos.
— Está. Isso ajuda bastante. — me prendeu no olhar dela. — Mas não me solta ainda, tá?
— Eu não estava pensando nisso.
Abracei a cintura dela e afundei o nariz no cabelo bagunçado, tentando acreditar naquele perfume, naquele calor, naquele toque aveludado apertando meu braço. Me apeguei a todos os elementos possíveis para me convencer de que aquilo era real, de que aquela cena, que era meu último pensamento antes de dormir, não era mais uma fantasia intangível.
Eu estava, de fato, no paraíso.
— Me desculpa pelo que eu falei. — ela pediu.
— Me desculpa por ter sido um completo idiota.
— Você não foi um completo idiota. — a voz dela eriçou o meu pescoço. — Só meio.
Ri, arrepiado.
— Eu estou aqui por vontade. — confessei. — Você sabe disso, não sabe?
contornou meu maxilar, mapeando os sinais do meu rosto, suave. O céu ficou em silêncio e ela sorriu brando:
— Eu sei agora.
Meus dedos percorreram a face macia e afilada, perfeita em todos os traços e curvas, desde a boca até os olhos, que agora estavam quase fechando, relaxados. Passei alguns minutos decorando-a, me perdendo e me achando nela, e aninhou-se ainda mais, recusando-se a adormecer.
— Posso te perguntar uma coisa?
— Qualquer coisa. — assenti com medo de me mover e perdê-la.
— Por que você fala meu nome enquanto dorme?
Meu coração respondeu antes de mim, acelerando violentamente bem embaixo do rosto da . Ela aparou meu peito com a mãozinha pequena, sentindo as batidas e, ciente delas, manteve inquebrável o contato visual.
— Porque eu vou dormir pensando em você. E aí eu sonho com você. — admiti, simplesmente. — Todas as noites.
se moveu minimamente e mais uma vez eu me vi cativo no olhar castanho. Beijei a testa dela e deixei meus lábios demorarem ali, até que eles desceram sozinhos pela tez branca e levantou o rosto ao encontro deles.
— O que você sonha?
Nossos lábios se provocavam, raspando um no outro. Respiramos ali o mesmo ar.
— Ah, … — intercedi. — Eu estou cansado só de sonhar. Eu quero viver. Eu quero te viver.
Segurei o rosto dela, mirando o alvo. Mirando a boca, com a sede de um homem que vagou por um deserto. Com a avidez de quem espera há muito tempo. separou os lábios delicadamente, convidativa, tão perto de mim que compartilhamos o mesmo fôlego. Era a iminência de um beijo, não havia dúvidas. Aquele lapso de paraíso, em que os olhos vão fechando e a boca vai abrindo, ansiosa por encontro e saciedade, até o ponto de junção finalmente acontecer.
Nos chocamos gentilmente numa sincronia que parecia ensaiada. Pressionamos os lábios, extravasando todo o desejo acumulado, deixando as línguas se provocarem e se saciarem juntas, como se dançassem sozinhas e por vontade própria. Eu sentia sorrir, satisfeita a cada encostar dos nossos lábios, interrompidos somente quando um de nós precisava buscar ar. Mas o ar não parecia tão importante, tão necessário, tão vital, então nos beijamos de novo. E de novo. Com demora, com delicadeza, com vontade e com todos os predicados que tínhamos direito. era carnuda e macia, um descanso na boca, uma dormência deliciosa, uma sensação quente e arrebatadora.
E doce. Doce feito uma fruta.
Não havia mais para onde fugir ou canto escuro onde eu pudesse me esconder. Já estávamos sugestionando movimentos enquanto nos beijávamos. Estava para acontecer. Tinha passado da iminência e beirado o irremediável, sem jeito.
— ... — supliquei. — Você não quer fazer isso assim, num lugar feito esse-
— Não fale por mim, Kim Mingyu. Você não sabe o que eu quero, eu é que sei. — ela trilhou a linha da minha barba com beijos lentos, enquanto as unhas brincavam pelo meu abdômen por baixo da camisa. — E eu quero você. Já faz muito tempo.
— F-faz muito tempo?
— Como você não percebeu? Eu fiz você me chamar pra sair. Por que você acha que eram dois ingressos no seu presente de Natal? — ela me selou o queixo. — Eu te emprestei meu livro favorito e marquei os versos que eu mais gosto pra você. — outro selar, no canto dos lábios. — Eu continuei encontrando você para trabalhar num texto que já estava bom. — mais um, agora no arco do cupido, e as mãos por dentro da camisa alisavam meu peito. — Eu te toco o tempo inteiro, Mingyu. — um sussurro lascivo e, agora, unhas. — Entendeu agora por que eu explodi com você? Porque você é péssimo em ler as entrelinhas!
Quebrei por dentro. me deu os sinais e eu duvidei de todos.
Eu sempre custei a acreditar quando coisas boas aconteciam comigo.
— Me ensina a ler você, . — roguei, entorpecido pelo ar denso, acariciando o rosto dela. — Todos os desenhos, todas as letras, todos os caminhos dessa tua pele quente e perfumada.
Nos entregamos em mais um beijo. Exploramos a boca um do outro, desbravando cantos, mordendo lábios, testando limites. me instigou com uma investida mais quente e mais cheia de língua que me fez acelerar o pulso e sentá-la nas minhas coxas. Ela se arrastou pelas minhas pernas fazendo o short enrolar, e apoiou as mãos na minha nuca buscando algum atrito entre nossas intimidades separadas por moletom e seda. Uma fisgada interior me avisou que eu estava crescendo e um tiro de adrenalina fez meu coração bombear mais sangue conforme se insinuava em cima de mim, disposta a se satisfazer. Qualquer resquício de racionalidade sumiu quando chupou meu pescoço e soprou um gemido contra a minha pele arrepiada.
— Me demita. — pedi ofegante. — Me demita agora.
— O quê? — ela parou por um momento, confusa.
— Eu não vou ter você como a sua sombra. — salivei de vontade e urgência. — Eu quero ter você como eu mesmo.
— Você já me tem.
A camisa começou a pesar no meu corpo febril e eu me livrei dela em desespero. beijou meu peito e derrapou pela minha barriga, sensível dos arranhões, e eu desaprendi a respirar quando ela continuou aquela descida tentadora, arrastando o rosto e a língua por mim sem perder nenhum músculo, nenhum gomo, nenhum pedaço do meu tronco escapou de ser aderido pela língua promíscua e pelos dentes inquietos, que só encontraram descanso quando bateram no cós da calça do meu pijama. sorriu abafado no tecido, afundando a cara na área irrigada e latente e acariciando o comprimento clamante por liberdade. Afastei o suficiente para o membro saltar e bater no rosto dela, e correu pelas minhas coxas antes de me apertar gentilmente com as duas mãos.
Flertei com o delírio quando ela me tocou ali.
Trinquei o queixo, soprando o ar entre os dentes, quando ela encostou os lábios na ponta inchada e puxou a pele para cima e para baixo. Me assisti alucinado dentro da boca da , a cabeça subindo e descendo num ritmo torturante que me fazia transitar entre enlevo quando ela me guardava e aflição quando ela me descobria. Vim na borda, limiar da loucura, duro e gotejando, mas tirei forças das entranhas para impedi-la.
— Não sem você, . — segurei o rosto dela, tonto.
O beijo que ela me deu ao sentar de volta no meu colo me permitiu sentir meu gosto direto da boca dela. Os seios acenderam e ficaram marcados na blusa caindo pelos ombros, o short agora estava enfiado na bunda e a quantidade de roupa nela, ainda que escassa, me deixou impaciente. A despi da parte de cima e quase entrei em colapso quando massageei o par farto, firme e lindo.
— Vem logo, por favor. — mordeu o lábio, dançando na minha ereção antes de sair de cima dela. — Eu estou pronta.
Pus a mão para fora da cama e tateei minha mochila no chão, com fé inabalável na lembrança de que tinha guardado algum preservativo ali. Minha memória não me traiu e eu rapidamente tirei a calça e vesti o membro, beijando até enfraquecê-la e convencê-la com facilidade a se deitar e me deixar cobrir o corpo gostoso dela com o meu. Ela não parava de me provocar com as unhas e, por mais que houvesse uma sensação diferente e satisfatória naquela ardência ao ser rasgado, eu prendi as mãos dela acima da cabeça, segurando os pulsos.
— Eu tenho uma apresentação importante amanhã, lembra? Não posso aparecer com marcas no meu corpo.
— Você vai ter que me amarrar. — soltou, tão simples quanto respirar. — Eu não garanto nada.
Senti meu pau tremer com aquele pedido.
Era impossível raciocinar com o cérebro e o corpo mergulhado em libido como eu estava, e a minha gravata estendida bem ao meu alcance fez minha cabeça dar um giro. No entanto, era perigosa a ideia de abster do movimento das mãos quando eu estava tomado de tanto desejo que poderia, sem querer, machucá-la. Eu era indiscutivelmente maior que ela, conseguia fechar-lhe a cintura com facilidade. Movido por instinto e cego pela carne dela eu a deixaria, para ser eufêmico, roxa.
— Isso pode ser perigoso. — minhas têmporas incharam. Eu queria aquilo. Eu queria muito aquilo. — Já faz muito tempo pra mim, . Eu tenho te esperado há meses.
— E quanto tempo você acha que faz pra mim? — ela afundou os dedos no meu cabelo e me fez um cafuné, me obrigando a olhar para ela. — Eu confio em você.
— Não é de hoje que você me maltrata, Chevalier. Eu tô com muito tesão acumulado. Tudo em você. Só em você. — confessei enquanto ela arrumava os fios da minha franja. — Você tem certeza?
arqueou o braço e puxou a gravata, estirada numa cadeira bem perto da cama, dada a metragem do quartinho. Esfregou rosto e lábios no acessório, testando se a textura era do seu agrado, depois repetiu o movimento no meu rosto, me acariciando com o pano. Fechei os olhos, inebriado.
— Eu tenho. — ela me entregou a gravata e a si mesma.
Beijei os punhos antes de atá-los, como um pedido de licença. Estiquei um pedaço do tecido, segurando a ponta dobrada, e passei a extremidade livre através do laço em torno dos pulsos de , amarrando o que sobrou no arame que enfeitava a cabeceira da cama.
— Me fala, tá? — olhei fundo nos olhos dela, buscando confirmação visual do seu consenso e conforto.
— Assim está bom. — puxou as mãos presas, certificando-se de que o nó não se desfaria ou a apertaria em exagero. — Só não demora, por favor. — ela fechou as pernas nos meus quadris e se contorceu um pouco, irrequieta. — Eu quero muito você dentro de mim.
Caí de boca nos seios dela em resposta, usando a mão oposta à que me apoiava no colchão para encaixar os montes na minha língua afoita. ergueu os quadris conforme eu resvalava por suas letras e desenhos gravados, sugando tudo. Choramingou quando eu desci os dedos pela barriga e umbigo, prevendo onde eu chegaria e o que eu faria lá.
Puxei o short e a calcinha para baixo, sem nem reparar na cor, alisando e beijando as pernas dela enquanto a libertava das últimas peças de roupa. Contornei a saliência úmida do sexo alheio, procurando com paciência o botão inchado, guiado pela intensidade dos gemidos que deixava fugir. Circulei a área ao encontrá-la, estimulando-a a me receber, e finalmente a adentrei com dois dedos. Contemplei a cena com calma, saboreando aquele espetáculo visual que era se torcendo indefesa presa à cama, refém do meu domínio sobre o prazer dela, que ela me concedeu tão deliciosamente molhado.
— Mingyu… — me chamou, sôfrega. — Eu estou vindo.
Subi a língua pelo pescoço e raspei os dentes no lóbulo da orelha dela, brincando com o brinco de pérola:
— Vem. — pedi calmamente e chegou, desmanchando na minha mão encharcada.
Não esperei que ela terminasse o último arquejar do meu nome e penetrei o caminho estreito, fazendo-a gritar por mim dessa vez. Sorri fraco. As paredes do hotel eram bem finas e certamente os outros hóspedes ouviram implorar por mim. O que era por si só excitante pra um caralho.
Me esforcei invadindo-a, tão apertado, tão gostoso e tão certo que nos fizemos uma só carne. Até a respiração soava igual, éramos sombra e luz se confundindo. Ficamos naquele entra e sai apressado, forte, urgentes de nos sentirmos em tudo, indiferentes ao barulho do ferro rangendo e batendo contra a parede. Que quebrasse a cama, que caísse o quarto. Éramos um do outro e isso era tudo o que importava.
— Eu te quero há tanto tempo, … — enterrei mais fundo. — Só hoje eu já ardi por ti tantas vezes… — jurei no ouvido dela, incansável.
soltou um gritinho agudo para anunciar seu segundo orgasmo da noite, grunhindo manhosa na minha boca e me fazendo escorrer e fincar os dentes na primeira extensão de pele que encontrei. A doce vertigem do gozo me dominou e eu relaxei dentro dela, concentrado apenas em não esmagá-la com os músculos dormentes do meu corpo saciado.
— Eu vou ficar dolorida de você uma semana. — ela riu melódico, apertando as pernas em volta da minha cintura.
— Eu solto você todinha numa massagem, prometo. — deslizei pela coxa de e dei um tapinha na nádega esquerda.
Saí de dentro dela e comecei a me mover para libertá-la da amarra, fazendo um carinho nos braços e aplicando uma leve pressão para aliviá-los do peso por terem passado muito tempo suspensos. Os pulsos tinham manchinhas vermelhas bem discretas, mas ainda assim, minha reação a elas foi de preocupação.
— Ei. — segurou meu queixo, alisando meu maxilar. — Relaxa. Você só me deu prazer.
— E você me deu a melhor noite da minha vida. — beijei , sem querer que acabasse.
— Conseguimos evitar marcas visíveis em você, hã? — dedilhou meu tronco amornado de um cansaço gostoso. — Mas você vai ter que se apresentar com a gravata amassada.
— Eu te perdôo. — formei um biquinho. — Mas só se você tomar um banho comigo.
— Não sobrou muita água quente, eu não tenho escolha. — riu e foi parando o carinho. — Aliás, já vai amanhecer, é melhor a gente ir.
— Espera. — pedi, beijando a tatuagem de coração atrás da orelha com a qual eu namorava em segredo. — A gente pode ficar aqui assim só mais um pouquinho?
— Quanto é o pouquinho? — ela se arrepiou, manhosa, virando o pescoço e pedindo por um beijo do outro lado. — Você ainda tem que conquistar o mundo, lembra?
— Meu mundo é você, .
sorriu, e os versos que eu tinha lido há pouco saltaram na minha memória:
Que, encarando-a, cuidei tocar o fundo
De ventura no eterno Paraíso…”
Capítulo 12 - O caminho, o devaneio e o guardanapo
Passados a visita do mecânico, o restante da viagem e os procedimentos de check-in no Hamptons, sobraram alguns minutos para aproveitar o café da manhã do hotel luxuoso, o completo oposto de onde dormimos na noite anterior. “Dormir” é um modo educado de dizer, é claro. Eu estive dentro da . Depois de um acontecimento como esse, eu não ia conseguir dormir nunca mais. Só a lembrança me deixava energizado, eufórico e, mais do que tudo, com saudade.
Algumas coisas eram viciantes depois de uma única exposição. Chevalier era uma delas.
— Toma. — ela me entregou um copo de isopor quentinho depois que eu bocejei. — Você tá precisando de um café.
— Eu tô precisando é de um beijo. — sussurrei.
espalmou as mãos no meu peito e arrumou minha gravata, mordendo os lábios ao lembrar o que fizemos com ela. Na ponta dos pés, ela me plantou um beijo tranquilo e doce, e eu tive que dobrar um pouco os joelhos para que ela me selasse a testa logo depois. Eu estava surpreendentemente calmo para alguém que, dali a exatos vinte minutos, falaria para uma plateia que incluía o doutor James Atkinson e meus possíveis futuros chefes. Aquele era exatamente o tipo de situação que, em condições normais, me deixaria inquieto feito um siri numa lata.
Mas eu não estava em condições normais. Eu estava com a . E o fato de ela estar me entregando todos os beijos que eu pedia era o melhor calmante do mundo.
— Eu sei que você vai se sair melhor do que qualquer um aqui. — ela prensou meu lábio e demorou os olhos nos meus, me carregando de confiança. — Como você está se sentindo?
— Se eu disser que estou apavorado, eu ganho outro beijo? — perguntei, já formando um biquinho.
— Se eu te beijar de novo, eu vou acabar te tirando daqui e te levando pro meu quarto.
— Eu topo. — peguei a mão dela e ameacei correr.
— Fugindo do trabalho? — a boca da formou um círculo perfeito. — Quem é você e o que você fez com Kim Mingyu?
— Ele não é mais o mesmo desde que uma certa moça tatuada apareceu na vida dele.
Deixei um selinho na e respirei bem fundo, meio em transe, sem acreditar. Aquele evento havia guiado meus passos desde que eu saí de Anyang e eu encarei o dia do simpósio como o norte numa bússola, crente de que era o meu destino final. No entanto, me fez “virar meu pescoço travado para os lados” e perceber que, na verdade, aquele era apenas o começo, o ponto de partida para uma vida que eu queria construir, tijolinho por tijolinho, fase por fase, com os olhos não só no prêmio, mas na jornada. O estágio na CS&M era apenas uma linha de chegada e o mais importante estava pelo caminho.
O mais importante era o sol que eu vi nascer com a nos meus braços.
E o quanto ela estava incrivelmente linda no jogo dos Giants a que assistimos.
O mais importante era a risada que ela deu quando eu a girei no ar, dançando a tarantela.
E todas as coisas sobre literatura que ela falava durante o jantar.
O mais importante eram os beijos que trocamos, que eu esperava que fossem os primeiros de muitos.
Que eu esperava que fossem os primeiros de todos.
— Ouvindo as vozes na sua cabeça de novo? — me despertou do devaneio com um carinho atrás da orelha.
— Só confabulando. — sorri. — Sonhando acordado.
— Achei que você estivesse cansado de sonhar.
— Está tudo começando a virar realidade. — alisei o perfil dela e acabei o café num só gole. — Marie te respondeu?
— Se atrasaram um pouco, mas já estão descendo. — checou o celular e limpou meu bigode. — Houve um acidente e o míope precisou trocar de roupa.
— Que tipo de acidente?
— Do tipo “a tarada da minha amiga deixou uma marca de chupão no pescoço do namorado dela”.
O café quase voltou quando imaginei a cena.
— Eles não se chamam de namorado. — joguei o copo e o pensamento fora. — Eles se chamam de “neném”.
fez uma careta e riu logo em seguida. E foi bem ali que eu voltei a devanear e comecei a pensar em oficializar as coisas. Eu não era o namorado ainda, mas eu queria ser. Eu queria chamar a de minha.
— E lá vem o feliz casal. — ela apontou a entrada com a cabeça, acenando para os dois.
Wonwoo se aproximou, mais míope do que nunca, e Marie olhou para a amiga de cima a baixo, fazendo uma análise completa do estado dela. A pele da estava com um viço “inexplicável” para alguém que passou a noite em claro e eu sorri cheio de mim, me sentindo responsável pelo brilho, efeito do orgasmo duplo.
— Bom dia, e sua sombra. — Marie cumprimentou desconfiada, cruzando os braços. — Você está adorável hoje, . Como foi a viagem?
— Nas suas palavras, adorável. — sorriu para mim e fez Marie descruzar os braços, enroscando-se na amiga. — Vem, vamos pegar mais café. E uma Coca-Cola pra você.
— Você me deixando tomar Coca-Cola a essa hora da manhã? — Marie aceitou o convite. — Alguém está mesmo de bom humor.
As duas se afastaram, cheias de segredos e risadas, falando e gesticulando muito no idioma secreto das melhores amigas. Eu queria ser uma mosquinha para poder ouvir a conversa, contudo, Wonwoo me lembrou porque estávamos ali.
— Você quer repassar alguma coisa? — ele abriu uma pasta com a cópia do artigo. — Talvez a parte em que você exemplifica a averbação…
— Dando ênfase à aplicação dela no código. — completei, pegando a pasta dele. — Estou bem confiante nessa parte, eu só queria dar uma olhada em… — folheei as páginas, lembrando de cada frase escrita ali. — Nada, na verdade. Nós já ensaiamos isso umas oitocentas vezes, tanto eu como você sabemos esse texto de trás pra frente.
— A te relaxou mesmo, hein? — Wonwoo desdenhou. — Por que vocês não dormiram juntos antes? Você ia ficar bem mais fácil de conviver.
— Quem te contou sobre a ? — meu estômago esfriou. — A Marie não sabe ainda. — dei mais uma espiada nas duas. — Aliás, elas estão fazendo isso agora.
— A Marie conhece a tão bem quanto eu conheço você. Ela diz que a é o Mingyu dela. — Wonwoo tomou a pasta de mim. — E eu conheço a sua cara de quem transou, ok? É um evento raro, mas acontece. — ele alfinetou tediosamente. — Tô feliz por você, blá blá blá e etcetera, mas agora a gente precisa se concentrar.
— Que nem você se concentrou nesse chupão aqui? — puxei a ponta da gola alta dele.
— Para com isso! — ele se desvencilhou, perdendo a cor quando e Marie terminaram as bebidas e começaram a andar na nossa direção. — Não faz essas brincadeiras perto da Marie, ok? — ele resmungou baixando o volume da voz.
— Você tá com medo que eu te deixe com vergonha na frente da sua namorada, neném?
Plaft! Uma mãozinha bem pequena, mas bem zangada, estalou na minha nuca. Não percebi que a distância entre nós e as garotas tinha diminuído tanto até Marie me acertar com o pescotapa.
— Deixa o neném em paz, ouviu? — Marie me repreendeu e correu em meu socorro, soprando o local atingido.
Não doeu tanto, mas eu exagerei na reação para garantir ser mais mimado. Wonwoo e Marie entreteram-se um do outro e eu descansei no ombro da , aproveitando o carinho na nuca e reclamando apenas quando ela me soltou para cumprimentar uma mulher que surgiu entre nós.
— Não acredito! — gritou e deu pulinhos no lugar antes de dar um abraço apertado na moça que chegou com um belo bronzeado e uma cara de quem não queria estar ali. E de quem não gostava de abraços. — Denise!
Hm. Denise. A amiga que compartilha fotos de tanquinhos.
— Mingyu, essa é minha amiga e futura bióloga marinha, Denise Andrews. — nos apresentou. — Você já conhece a Marie e o Wonwoo.
— O nerd e a crente. Ou melhor, ex-crente. — Denise piscou para Marie e ela fingiu coçar o nariz para mostrar o dedo do meio em resposta. Pelo visto, era assim que as duas se comunicavam, já que nenhuma era fã de contato físico.
— O que você tá fazendo aqui tão cedo? — entregou mais um abraço e Denise se encolheu toda. — Suas temporadas na Tailândia duram no mínimo um mês, achei que você ia ficar mais tempo fora.
— Eu também achei, mas infelizmente tive que voltar pra dar aula de monitoria para um carinha aí. — ela revirou os olhos. — A professora Linn, minha orientadora, me ligou no meio de um luau. É mole? Eu estava rodeada de asiáticos belíssimos e agora eu tô aqui. — ela lembrou que eu e Wonwoo estávamos presentes. — Sem ofensa.
— Nesse caso, vamos torcer para que o seu aluno também seja um asiático belíssimo. — deu risada do infortúnio da amiga.
— O que eu sei com certeza é que ele está tão ferrado nas notas que mais nenhum monitor quis assumir a bronca, sobrou pra mim. — Denise apontou o próprio rosto, impaciente. — Agora olha pra mim, . Vê se eu tenho cara de centro de reabilitação de macho?!
— Pelo visto, a sua orientadora acha que sim. Ela está por aqui, eu te ajudo a encontrá-la. — se ofereceu.
— Primeiro precisamos encontrar nossos lugares. — Marie verificou o relógio. — Está na hora do show dos dois aqui.
De repente, um rápido arrepio que eu não deixei durar muito tempo percorreu minha espinha. Eu estava pronto. Um pouco ansioso, mas pronto.
— Eu vou estar bem ali torcendo por você. — apontou uma cadeira vazia na primeira fila e voltou a me beijar rapidamente. — Agora vai lá e acaba com eles. — ela olhou para os lados antes de apertar minha bunda.
Assustei e ri ao mesmo tempo. Havia mais algumas pessoas na antessala, todas tão nervosas quanto nós, estudantes cuja vida profissional e acadêmica dependia daquela apresentação, mas, felizmente, ninguém notou a cena. Exceto pela Denise, que acompanhou tudo e encrespou a boca num sorriso que pediu, sem que ela dissesse nada, que a atualizasse da nossa situação depois.
Tomamos nosso lugar no palco e o auditório foi enchendo. Wonwoo não parava de ajustar os óculos e eu comecei a respirar entrecortado, parecendo uma mulher em trabalho de parto e irritando meu melhor amigo.
— Você vai se apresentar com o útero, é?
— Boa sorte, hyung. — desejei, ignorando o comentário, e demos nosso aperto de mão super-maneiro-e-descolado que inventamos quando éramos crianças.
— E então, Padawans? Podemos começar? — o Dr. James chegou por trás de nós, nos entregando os microfones.
— Aí uma coisa que eu não esperava ouvir hoje. — Wonwoo riu, mais solto. — Nosso orientador fazendo referências a Star Wars.
— Eu sou como vocês. Um nerd.
— Ou nesse caso, nosso Obi-wan. — completei, colocando o equipamento.
— Que a força esteja com vocês. — ele desejou e deu início à apresentação.
Assim que nosso artigo foi projetado na tela, procurei pela no público, achando graça da rapidez com que eu conseguia encontrá-la: meus olhos já estavam condicionados a achá-la em qualquer multidão. Acenei timidamente quando a vi, igual a uma criança de jardim de infância prestes a entrar numa peça escolar, e ela me desejou um “boa sorte” mudo, sorrindo para mim tal qual Beatriz sorria para Dante em sua Divina Comédia, ajudando o poeta a enfrentar as próprias sombras.
Se Beatriz era a musa, era a minha luz.
O que veio depois disso virou um grande borrão na minha cabeça, recortes da adrenalina tomando conta, eu engatando as falas no automático e James Atkinson balançando a cabeça positivamente durante toda a palestra. Reconheci os slides com os últimos tópicos, aliviado por estar chegando ao fim e por Wonwoo não ter desmaiado ainda, e meu amigo encerrou a apresentação sendo encoberto pelo som das palmas da plateia. Afastei o microfone da boca para que o meu suspiro não fosse reproduzido pela caixa de som e, tão logo nos olhamos e fizemos um balanço rápido da palestra, começamos a rir um para o outro. Puxei Wonwoo para um abraço rápido de “fim da linha”, mas tive que soltá-lo porque, no instante em que o público começou a dispersar, James se interpôs novamente entre nós, batendo nas nossas costas.
— Esplêndido! Meus parabéns! — o Dr. Atkinson elogiou e Wonwoo sinalizou com um discreto toque no meu braço que os dois senhores que o acompanhavam eram os chefes de admissão do escritório. — Se importam se eu exibir vocês dois para os senhores da Cravath, Swaine & Moore?
Os dois engravatados sorriram e estenderam as mãos ao mesmo tempo. Foi uma pequena confusão de cumprimentos e eu acabei apertando a mão do Wonwoo. Mais de uma vez.
— Senhor Jeon, senhor Kim. Excelente premissa a do artigo de vocês. — um deles disse. — Vamos conversar na cobertura.
Busquei no meio da aglomeração outra vez, testando nosso contato visual e nossa comunicação à distância. Ela arregalou os olhos para mim, curiosa, e eu apontei para cima para indicar para onde estávamos indo. Um joinha e um beijinho jogado no ar foram os sinais de que ela tinha entendido a mensagem e subimos na frente.
Na cobertura, as luzes quentes e baixas e o som abafado daquelas músicas que tocam em lounges embalaram uma produtiva conversa com James e os donos da firma, que terminou com data e hora marcadas para uma entrevista. Eu me agitava tanto debaixo da mesa que o tampo tremia discretamente, balançando as bebidas chiques, e eu quase derrubei tudo quando eles nos propuseram frequentar o escritório previamente, para nos inteirarmos da logística do local.
Fingi naturalidade durante a reunião toda, mas quando Wonwoo e eu fomos deixados a sós, eu estava a ponto de explodir:
— A gente conseguiu! — gritei, segurando a cabeça do meu amigo e apertando as bochechas dele. — Wonwoo, a gente conseguiu!
— Cuidado! Meu óculos! — ele respondeu, espremido.
— Que teu óculos, me abraça! — intimei, abrindo os braços.
— Carente. — ele reclamou, mas me atendeu. — Onde estão as meninas?
— Eu avisei a . — senti meu coração palpitando. — Devem estar no elevador.
— Devagar demais para a Marie Bee. — Wonwoo constatou. — Vou encontrá-la nas escadas.
Wonwoo saiu disparado e eu sentei no banco alto perto do bar, me sentindo um pouco tonto e trêmulo. Comprei uma água, transbordando de alegria por ter meu pedido de estágio aceito, mas pensando em outro pedido, mais importante e ainda pendente, que fazia as palmas das minhas mãos suarem. Eu precisava achar a e fazer a pergunta que eu queria ter feito ontem, quando ela estava enroscada no meu peito, mas fiquei com medo de a minha língua presa me atrapalhar na hora e me fazer parecer ridículo, então tive uma ideia quase infantil.
Peguei um dos guardanapos em cima do balcão e rabisquei um “quer namorar comigo?” apressado.
Soou fofo e romântico na minha cabeça.
— Com licença, é você o mais novo contratado da Cravath, Swaine & More? — apareceu e pulou no meu abraço, me beijando o rosto várias vezes. — Ah, Mingyu! Eu tô tão feliz por você!
— Eu também tô muito feliz por mim. — ri, manchado de batom.
Afundei no pescoço dela, achando meu lugar entre o ombro florido e a clavícula alta. Deslizei o nariz por aquela pele cheirosa e fiquei ali, me embriagando daquele abraço, me permitindo assimilar todos os acontecimentos do dia e da noite anterior, principalmente. me apertava macio, alisando os músculos do meu braço e das minhas costas. Não tínhamos pressa e ela também não deu indícios de que me soltaria tão cedo, mas segurei a cintura dela e me afastei minimamente, segurando o guardanapo dobrado entre os dedos.
— Eu preciso te dizer uma coisa, . — segurei o queixo dela. — Eu não sei o que você quer daqui pra frente, eu não sei o que a noite de ontem significou pra você, mas pra mim ela foi… o paraíso. Você é meu paraíso.
— Você não sabe mesmo ou só está fazendo charme? — me deu um selar longo, acompanhado das mãos entrando pelo meu cabelo e me afagando a nuca entre os fios. — Sorte sua que eu posso repetir quantas vezes você quiser, seu dengoso. — ela continuou, raspando os lábios pelo meu perfil. — Eu quero você.
— Você disse isso ontem, mas… — respondi manhoso, enfraquecido pelo passeio que fazia pelo meu rosto, prometendo me arrebatar num beijo a qualquer momento. — Como eu vou saber que não foi só conversa de cama, hum?
enfim cessou a provocação e me respondeu com uma língua dançante. O nosso ponto de junção era perfeito, e agora que eu estava mais baixo que ela por estar sentado numa banqueta, pude descobrir a nova e maravilhosa sensação de beijá-la com meu rosto arrastando pelo começo do decote alheio. Rocei pela corrente aura que ela usava, resvalando a língua para brincar com o pingente, e baixei mais a cabeça, beijando o busto dela para marcar seu coração. me segurou contra o peito antes de me pegar pelo queixo e erguer meu rosto, buscando meus olhos.
— Eu ainda quero você, Kim Mingyu. Com a sua língua presa que bate nos dentes, com a sua gracinha de sinal na bochecha e até com seu time de futebol que é terrível. — ela espalhou a mão pela minha mandíbula e me apertou. — Não deu pra entender quando eu gemi seu nome enquanto você cravava esse canino lindo e pontudo no meu pescoço? — tive o rosto sacudido. — Para de se autossabotar nos círculos do inferno e entra nesse paraíso logo, porque você também é o meu!
Fechei o cerco na cintura dela, me enterrando novamente no lugar secreto que fiz para mim naquele corpo. Meti a mão no bolso lateral e abri a mão de para entregar o guardanapo dobrado, marcado pela minha caligrafia peculiar e um desenho que eu arrisquei.
— Eu preciso dar nome às coisas. — expliquei. — Deixar tudo oficial.
— Você vai me fazer assinar um contrato? — brincou e leu o pedido. — Não assino nada sem a presença do meu advogado.
— Você só precisa responder à pergunta.
— Adorei a flor. — ela apontou o desenho, risonha. — E isso aqui…
— O guardanapo não ajudou, mas era pra ser um coração. Porque coração representa amor, né? — confessei e tive um mini-infarto. Eu tinha falado a famosa “palavra com a”.
— Mingyu… — ela quase cantou, iluminando-se. — Quer dizer que você…
— Sim. Eu te amo, Chevalier.
— Eu também te amo.
— Então por que você ainda não marcou sua resposta? — sorri destreinado. — Eu quero fazer uma caixa de lembranças com esse papel!
puxou a caneta do bolso da minha camisa e virou-se para abrir o guardanapo no balcão. Abracei-a por trás, colando nossas bochechas, e pude ler minha letra, canhota e questionável, mas que julgava divertida. As opções eram “sim”, com um coração (ou qualquer coisa perto disso) e “não” com uma carinha triste.
— O mesmo cara que me virou do avesso ontem à noite agora me pede em namoro por bilhetinho. — ela devolveu o guardanapo com o “sim” marcado. — O que eu faço com você, Kim Mingyu?
— O que você quiser. Eu sou todinho seu. — virei para mim, mantendo-a contra o balcão.
— A partir de hoje, você não pode brincar de sombra com mais ninguém, ouviu? — ela decretou e eu passei meu nariz pelo dela antes de beijá-la novamente.
— Mais ninguém. — murmurei no meio do beijo. — Só você. Só a minha luz.
Algumas coisas eram viciantes depois de uma única exposição. Chevalier era uma delas.
— Toma. — ela me entregou um copo de isopor quentinho depois que eu bocejei. — Você tá precisando de um café.
— Eu tô precisando é de um beijo. — sussurrei.
espalmou as mãos no meu peito e arrumou minha gravata, mordendo os lábios ao lembrar o que fizemos com ela. Na ponta dos pés, ela me plantou um beijo tranquilo e doce, e eu tive que dobrar um pouco os joelhos para que ela me selasse a testa logo depois. Eu estava surpreendentemente calmo para alguém que, dali a exatos vinte minutos, falaria para uma plateia que incluía o doutor James Atkinson e meus possíveis futuros chefes. Aquele era exatamente o tipo de situação que, em condições normais, me deixaria inquieto feito um siri numa lata.
Mas eu não estava em condições normais. Eu estava com a . E o fato de ela estar me entregando todos os beijos que eu pedia era o melhor calmante do mundo.
— Eu sei que você vai se sair melhor do que qualquer um aqui. — ela prensou meu lábio e demorou os olhos nos meus, me carregando de confiança. — Como você está se sentindo?
— Se eu disser que estou apavorado, eu ganho outro beijo? — perguntei, já formando um biquinho.
— Se eu te beijar de novo, eu vou acabar te tirando daqui e te levando pro meu quarto.
— Eu topo. — peguei a mão dela e ameacei correr.
— Fugindo do trabalho? — a boca da formou um círculo perfeito. — Quem é você e o que você fez com Kim Mingyu?
— Ele não é mais o mesmo desde que uma certa moça tatuada apareceu na vida dele.
Deixei um selinho na e respirei bem fundo, meio em transe, sem acreditar. Aquele evento havia guiado meus passos desde que eu saí de Anyang e eu encarei o dia do simpósio como o norte numa bússola, crente de que era o meu destino final. No entanto, me fez “virar meu pescoço travado para os lados” e perceber que, na verdade, aquele era apenas o começo, o ponto de partida para uma vida que eu queria construir, tijolinho por tijolinho, fase por fase, com os olhos não só no prêmio, mas na jornada. O estágio na CS&M era apenas uma linha de chegada e o mais importante estava pelo caminho.
O mais importante era o sol que eu vi nascer com a nos meus braços.
E o quanto ela estava incrivelmente linda no jogo dos Giants a que assistimos.
O mais importante era a risada que ela deu quando eu a girei no ar, dançando a tarantela.
E todas as coisas sobre literatura que ela falava durante o jantar.
O mais importante eram os beijos que trocamos, que eu esperava que fossem os primeiros de muitos.
Que eu esperava que fossem os primeiros de todos.
— Ouvindo as vozes na sua cabeça de novo? — me despertou do devaneio com um carinho atrás da orelha.
— Só confabulando. — sorri. — Sonhando acordado.
— Achei que você estivesse cansado de sonhar.
— Está tudo começando a virar realidade. — alisei o perfil dela e acabei o café num só gole. — Marie te respondeu?
— Se atrasaram um pouco, mas já estão descendo. — checou o celular e limpou meu bigode. — Houve um acidente e o míope precisou trocar de roupa.
— Que tipo de acidente?
— Do tipo “a tarada da minha amiga deixou uma marca de chupão no pescoço do namorado dela”.
O café quase voltou quando imaginei a cena.
— Eles não se chamam de namorado. — joguei o copo e o pensamento fora. — Eles se chamam de “neném”.
fez uma careta e riu logo em seguida. E foi bem ali que eu voltei a devanear e comecei a pensar em oficializar as coisas. Eu não era o namorado ainda, mas eu queria ser. Eu queria chamar a de minha.
— E lá vem o feliz casal. — ela apontou a entrada com a cabeça, acenando para os dois.
Wonwoo se aproximou, mais míope do que nunca, e Marie olhou para a amiga de cima a baixo, fazendo uma análise completa do estado dela. A pele da estava com um viço “inexplicável” para alguém que passou a noite em claro e eu sorri cheio de mim, me sentindo responsável pelo brilho, efeito do orgasmo duplo.
— Bom dia, e sua sombra. — Marie cumprimentou desconfiada, cruzando os braços. — Você está adorável hoje, . Como foi a viagem?
— Nas suas palavras, adorável. — sorriu para mim e fez Marie descruzar os braços, enroscando-se na amiga. — Vem, vamos pegar mais café. E uma Coca-Cola pra você.
— Você me deixando tomar Coca-Cola a essa hora da manhã? — Marie aceitou o convite. — Alguém está mesmo de bom humor.
As duas se afastaram, cheias de segredos e risadas, falando e gesticulando muito no idioma secreto das melhores amigas. Eu queria ser uma mosquinha para poder ouvir a conversa, contudo, Wonwoo me lembrou porque estávamos ali.
— Você quer repassar alguma coisa? — ele abriu uma pasta com a cópia do artigo. — Talvez a parte em que você exemplifica a averbação…
— Dando ênfase à aplicação dela no código. — completei, pegando a pasta dele. — Estou bem confiante nessa parte, eu só queria dar uma olhada em… — folheei as páginas, lembrando de cada frase escrita ali. — Nada, na verdade. Nós já ensaiamos isso umas oitocentas vezes, tanto eu como você sabemos esse texto de trás pra frente.
— A te relaxou mesmo, hein? — Wonwoo desdenhou. — Por que vocês não dormiram juntos antes? Você ia ficar bem mais fácil de conviver.
— Quem te contou sobre a ? — meu estômago esfriou. — A Marie não sabe ainda. — dei mais uma espiada nas duas. — Aliás, elas estão fazendo isso agora.
— A Marie conhece a tão bem quanto eu conheço você. Ela diz que a é o Mingyu dela. — Wonwoo tomou a pasta de mim. — E eu conheço a sua cara de quem transou, ok? É um evento raro, mas acontece. — ele alfinetou tediosamente. — Tô feliz por você, blá blá blá e etcetera, mas agora a gente precisa se concentrar.
— Que nem você se concentrou nesse chupão aqui? — puxei a ponta da gola alta dele.
— Para com isso! — ele se desvencilhou, perdendo a cor quando e Marie terminaram as bebidas e começaram a andar na nossa direção. — Não faz essas brincadeiras perto da Marie, ok? — ele resmungou baixando o volume da voz.
— Você tá com medo que eu te deixe com vergonha na frente da sua namorada, neném?
Plaft! Uma mãozinha bem pequena, mas bem zangada, estalou na minha nuca. Não percebi que a distância entre nós e as garotas tinha diminuído tanto até Marie me acertar com o pescotapa.
— Deixa o neném em paz, ouviu? — Marie me repreendeu e correu em meu socorro, soprando o local atingido.
Não doeu tanto, mas eu exagerei na reação para garantir ser mais mimado. Wonwoo e Marie entreteram-se um do outro e eu descansei no ombro da , aproveitando o carinho na nuca e reclamando apenas quando ela me soltou para cumprimentar uma mulher que surgiu entre nós.
— Não acredito! — gritou e deu pulinhos no lugar antes de dar um abraço apertado na moça que chegou com um belo bronzeado e uma cara de quem não queria estar ali. E de quem não gostava de abraços. — Denise!
Hm. Denise. A amiga que compartilha fotos de tanquinhos.
— Mingyu, essa é minha amiga e futura bióloga marinha, Denise Andrews. — nos apresentou. — Você já conhece a Marie e o Wonwoo.
— O nerd e a crente. Ou melhor, ex-crente. — Denise piscou para Marie e ela fingiu coçar o nariz para mostrar o dedo do meio em resposta. Pelo visto, era assim que as duas se comunicavam, já que nenhuma era fã de contato físico.
— O que você tá fazendo aqui tão cedo? — entregou mais um abraço e Denise se encolheu toda. — Suas temporadas na Tailândia duram no mínimo um mês, achei que você ia ficar mais tempo fora.
— Eu também achei, mas infelizmente tive que voltar pra dar aula de monitoria para um carinha aí. — ela revirou os olhos. — A professora Linn, minha orientadora, me ligou no meio de um luau. É mole? Eu estava rodeada de asiáticos belíssimos e agora eu tô aqui. — ela lembrou que eu e Wonwoo estávamos presentes. — Sem ofensa.
— Nesse caso, vamos torcer para que o seu aluno também seja um asiático belíssimo. — deu risada do infortúnio da amiga.
— O que eu sei com certeza é que ele está tão ferrado nas notas que mais nenhum monitor quis assumir a bronca, sobrou pra mim. — Denise apontou o próprio rosto, impaciente. — Agora olha pra mim, . Vê se eu tenho cara de centro de reabilitação de macho?!
— Pelo visto, a sua orientadora acha que sim. Ela está por aqui, eu te ajudo a encontrá-la. — se ofereceu.
— Primeiro precisamos encontrar nossos lugares. — Marie verificou o relógio. — Está na hora do show dos dois aqui.
De repente, um rápido arrepio que eu não deixei durar muito tempo percorreu minha espinha. Eu estava pronto. Um pouco ansioso, mas pronto.
— Eu vou estar bem ali torcendo por você. — apontou uma cadeira vazia na primeira fila e voltou a me beijar rapidamente. — Agora vai lá e acaba com eles. — ela olhou para os lados antes de apertar minha bunda.
Assustei e ri ao mesmo tempo. Havia mais algumas pessoas na antessala, todas tão nervosas quanto nós, estudantes cuja vida profissional e acadêmica dependia daquela apresentação, mas, felizmente, ninguém notou a cena. Exceto pela Denise, que acompanhou tudo e encrespou a boca num sorriso que pediu, sem que ela dissesse nada, que a atualizasse da nossa situação depois.
Tomamos nosso lugar no palco e o auditório foi enchendo. Wonwoo não parava de ajustar os óculos e eu comecei a respirar entrecortado, parecendo uma mulher em trabalho de parto e irritando meu melhor amigo.
— Você vai se apresentar com o útero, é?
— Boa sorte, hyung. — desejei, ignorando o comentário, e demos nosso aperto de mão super-maneiro-e-descolado que inventamos quando éramos crianças.
— E então, Padawans? Podemos começar? — o Dr. James chegou por trás de nós, nos entregando os microfones.
— Aí uma coisa que eu não esperava ouvir hoje. — Wonwoo riu, mais solto. — Nosso orientador fazendo referências a Star Wars.
— Eu sou como vocês. Um nerd.
— Ou nesse caso, nosso Obi-wan. — completei, colocando o equipamento.
— Que a força esteja com vocês. — ele desejou e deu início à apresentação.
Assim que nosso artigo foi projetado na tela, procurei pela no público, achando graça da rapidez com que eu conseguia encontrá-la: meus olhos já estavam condicionados a achá-la em qualquer multidão. Acenei timidamente quando a vi, igual a uma criança de jardim de infância prestes a entrar numa peça escolar, e ela me desejou um “boa sorte” mudo, sorrindo para mim tal qual Beatriz sorria para Dante em sua Divina Comédia, ajudando o poeta a enfrentar as próprias sombras.
Se Beatriz era a musa, era a minha luz.
O que veio depois disso virou um grande borrão na minha cabeça, recortes da adrenalina tomando conta, eu engatando as falas no automático e James Atkinson balançando a cabeça positivamente durante toda a palestra. Reconheci os slides com os últimos tópicos, aliviado por estar chegando ao fim e por Wonwoo não ter desmaiado ainda, e meu amigo encerrou a apresentação sendo encoberto pelo som das palmas da plateia. Afastei o microfone da boca para que o meu suspiro não fosse reproduzido pela caixa de som e, tão logo nos olhamos e fizemos um balanço rápido da palestra, começamos a rir um para o outro. Puxei Wonwoo para um abraço rápido de “fim da linha”, mas tive que soltá-lo porque, no instante em que o público começou a dispersar, James se interpôs novamente entre nós, batendo nas nossas costas.
— Esplêndido! Meus parabéns! — o Dr. Atkinson elogiou e Wonwoo sinalizou com um discreto toque no meu braço que os dois senhores que o acompanhavam eram os chefes de admissão do escritório. — Se importam se eu exibir vocês dois para os senhores da Cravath, Swaine & Moore?
Os dois engravatados sorriram e estenderam as mãos ao mesmo tempo. Foi uma pequena confusão de cumprimentos e eu acabei apertando a mão do Wonwoo. Mais de uma vez.
— Senhor Jeon, senhor Kim. Excelente premissa a do artigo de vocês. — um deles disse. — Vamos conversar na cobertura.
Busquei no meio da aglomeração outra vez, testando nosso contato visual e nossa comunicação à distância. Ela arregalou os olhos para mim, curiosa, e eu apontei para cima para indicar para onde estávamos indo. Um joinha e um beijinho jogado no ar foram os sinais de que ela tinha entendido a mensagem e subimos na frente.
Na cobertura, as luzes quentes e baixas e o som abafado daquelas músicas que tocam em lounges embalaram uma produtiva conversa com James e os donos da firma, que terminou com data e hora marcadas para uma entrevista. Eu me agitava tanto debaixo da mesa que o tampo tremia discretamente, balançando as bebidas chiques, e eu quase derrubei tudo quando eles nos propuseram frequentar o escritório previamente, para nos inteirarmos da logística do local.
Fingi naturalidade durante a reunião toda, mas quando Wonwoo e eu fomos deixados a sós, eu estava a ponto de explodir:
— A gente conseguiu! — gritei, segurando a cabeça do meu amigo e apertando as bochechas dele. — Wonwoo, a gente conseguiu!
— Cuidado! Meu óculos! — ele respondeu, espremido.
— Que teu óculos, me abraça! — intimei, abrindo os braços.
— Carente. — ele reclamou, mas me atendeu. — Onde estão as meninas?
— Eu avisei a . — senti meu coração palpitando. — Devem estar no elevador.
— Devagar demais para a Marie Bee. — Wonwoo constatou. — Vou encontrá-la nas escadas.
Wonwoo saiu disparado e eu sentei no banco alto perto do bar, me sentindo um pouco tonto e trêmulo. Comprei uma água, transbordando de alegria por ter meu pedido de estágio aceito, mas pensando em outro pedido, mais importante e ainda pendente, que fazia as palmas das minhas mãos suarem. Eu precisava achar a e fazer a pergunta que eu queria ter feito ontem, quando ela estava enroscada no meu peito, mas fiquei com medo de a minha língua presa me atrapalhar na hora e me fazer parecer ridículo, então tive uma ideia quase infantil.
Peguei um dos guardanapos em cima do balcão e rabisquei um “quer namorar comigo?” apressado.
Soou fofo e romântico na minha cabeça.
— Com licença, é você o mais novo contratado da Cravath, Swaine & More? — apareceu e pulou no meu abraço, me beijando o rosto várias vezes. — Ah, Mingyu! Eu tô tão feliz por você!
— Eu também tô muito feliz por mim. — ri, manchado de batom.
Afundei no pescoço dela, achando meu lugar entre o ombro florido e a clavícula alta. Deslizei o nariz por aquela pele cheirosa e fiquei ali, me embriagando daquele abraço, me permitindo assimilar todos os acontecimentos do dia e da noite anterior, principalmente. me apertava macio, alisando os músculos do meu braço e das minhas costas. Não tínhamos pressa e ela também não deu indícios de que me soltaria tão cedo, mas segurei a cintura dela e me afastei minimamente, segurando o guardanapo dobrado entre os dedos.
— Eu preciso te dizer uma coisa, . — segurei o queixo dela. — Eu não sei o que você quer daqui pra frente, eu não sei o que a noite de ontem significou pra você, mas pra mim ela foi… o paraíso. Você é meu paraíso.
— Você não sabe mesmo ou só está fazendo charme? — me deu um selar longo, acompanhado das mãos entrando pelo meu cabelo e me afagando a nuca entre os fios. — Sorte sua que eu posso repetir quantas vezes você quiser, seu dengoso. — ela continuou, raspando os lábios pelo meu perfil. — Eu quero você.
— Você disse isso ontem, mas… — respondi manhoso, enfraquecido pelo passeio que fazia pelo meu rosto, prometendo me arrebatar num beijo a qualquer momento. — Como eu vou saber que não foi só conversa de cama, hum?
enfim cessou a provocação e me respondeu com uma língua dançante. O nosso ponto de junção era perfeito, e agora que eu estava mais baixo que ela por estar sentado numa banqueta, pude descobrir a nova e maravilhosa sensação de beijá-la com meu rosto arrastando pelo começo do decote alheio. Rocei pela corrente aura que ela usava, resvalando a língua para brincar com o pingente, e baixei mais a cabeça, beijando o busto dela para marcar seu coração. me segurou contra o peito antes de me pegar pelo queixo e erguer meu rosto, buscando meus olhos.
— Eu ainda quero você, Kim Mingyu. Com a sua língua presa que bate nos dentes, com a sua gracinha de sinal na bochecha e até com seu time de futebol que é terrível. — ela espalhou a mão pela minha mandíbula e me apertou. — Não deu pra entender quando eu gemi seu nome enquanto você cravava esse canino lindo e pontudo no meu pescoço? — tive o rosto sacudido. — Para de se autossabotar nos círculos do inferno e entra nesse paraíso logo, porque você também é o meu!
Fechei o cerco na cintura dela, me enterrando novamente no lugar secreto que fiz para mim naquele corpo. Meti a mão no bolso lateral e abri a mão de para entregar o guardanapo dobrado, marcado pela minha caligrafia peculiar e um desenho que eu arrisquei.
— Eu preciso dar nome às coisas. — expliquei. — Deixar tudo oficial.
— Você vai me fazer assinar um contrato? — brincou e leu o pedido. — Não assino nada sem a presença do meu advogado.
— Você só precisa responder à pergunta.
— Adorei a flor. — ela apontou o desenho, risonha. — E isso aqui…
— O guardanapo não ajudou, mas era pra ser um coração. Porque coração representa amor, né? — confessei e tive um mini-infarto. Eu tinha falado a famosa “palavra com a”.
— Mingyu… — ela quase cantou, iluminando-se. — Quer dizer que você…
— Sim. Eu te amo, Chevalier.
— Eu também te amo.
— Então por que você ainda não marcou sua resposta? — sorri destreinado. — Eu quero fazer uma caixa de lembranças com esse papel!
puxou a caneta do bolso da minha camisa e virou-se para abrir o guardanapo no balcão. Abracei-a por trás, colando nossas bochechas, e pude ler minha letra, canhota e questionável, mas que julgava divertida. As opções eram “sim”, com um coração (ou qualquer coisa perto disso) e “não” com uma carinha triste.
— O mesmo cara que me virou do avesso ontem à noite agora me pede em namoro por bilhetinho. — ela devolveu o guardanapo com o “sim” marcado. — O que eu faço com você, Kim Mingyu?
— O que você quiser. Eu sou todinho seu. — virei para mim, mantendo-a contra o balcão.
— A partir de hoje, você não pode brincar de sombra com mais ninguém, ouviu? — ela decretou e eu passei meu nariz pelo dela antes de beijá-la novamente.
— Mais ninguém. — murmurei no meio do beijo. — Só você. Só a minha luz.
Epílogo - O cobertor fofinho e a notificação do síndico
Coloquei a última flor na água, verificando pela milésima vez a posição dos vasos espalhados pelo apartamento. As velas eletrônicas estavam com pilhas novas, os travesseiros no chão e as pétalas de rosas deram um toque especial. Ficou bem bonito. Quase não dava pra ver as caixas empilhadas no cantinho da sala, a pintura estava pronta, sem o cheiro desagradável da tinta, e o janelão imenso que se estendia da base do piso até o teto tinha os vidros mais transparentes da cidade depois que eu passei horas subindo e descendo da escada para alcançar todos os cantinhos. Eu tinha até baixado um aplicativo de meteorologia para conferir as fases da lua e, de acordo com ele, teríamos uma belíssima lua cheia iluminando o cômodo através dos vidros que eu limpei tão bem.
Depois da formatura, dos trâmites de legalização do visto e de ser efetivado no escritório, eu iniciei a busca por um apartamento que me agradasse e coubesse confortavelmente no meu orçamento. Encontrei o que eu queria num charmoso bairro residencial, pertinho do centro, do trabalho e do metrô. Um prédio simpático de apenas seis andares, com vista para um jardim e uma padaria em frente, que fazia um mil folhas aprovado pela . A cozinha estava equipada e eu já tinha quase tudo o que eu precisava.
Quase tudo. Faltava ela.
Queria esperar até que estivesse tudo pronto, todos os móveis montados e no seu devido lugar, mas não consegui. Por mais que eu gostasse do apartamento novo, ele seria só um monte de tijolos sem ela comigo e eu não via a hora de dormir e acordar com a minha .
Minha … Ainda era inacreditável (e gostoso) dizer isso.
A vaga temporária que ela tinha conseguido no The New York Times virou uma vaga efetiva pouco antes de ela se formar, quando ela passou pelo processo de seleção brilhantemente. Alfred, Dorota e eu comemoramos cada fase avançada com um bolo confeitado e, na maioria das vezes, Dory e eu chegamos a divergir sobre a cor da cobertura e dos granulados. A disputa me rendeu uma ordem de restrição à cozinha da governanta — e alguns beliscões —, mas nenhum dos puxões de orelha de Dorota me machucou tanto quanto as lágrimas que eu a vi derramar quando enfim tive coragem de revelar meu plano de “lhe tirar” a .
A parte mais difícil não era consolar a Dory, nem mesmo enfrentar o olhar severo de Alfred me sabatinando quanto ao futuro que eu planejava para a neta dele, ou as cabeças de animais expostas no escritório. O mais difícil e o que me deixava realmente nervoso era o que eu estava prestes a fazer.
Busquei no jornal e, assim que ela entrou no carro, tudo o que ela sabia era que estávamos indo conhecer meu novo apartamento. Exceto que ele não era só meu.
demorou um pouco a entender quando eu destranquei a porta e demos de cara com a iluminação e decoração românticas (ou tão românticas quanto eu consegui). A risada dela reverberou pelo vão e ela me abraçou apertado, feliz pela conquista, e iniciamos um delicioso jantar no cenário que eu havia montado na sala. Ela comeu e me inteirou do seu dia no trabalho, tecendo, como de costume, inúmeras reclamações ao seu colega de sala: ninguém menos que o agora jornalista formado, Boo Seungkwan, contratado pelo The Times como redator. A função de era, basicamente, revisar (e contestar) o que ele escrevia.
Por mais que eu me divertisse com as trocas de insultos e com a insistência da em esconder o grampeador e outros artigos da mesa de Seungkwan, eu estava apreensivo demais para me concentrar nas peripécias dos dois “arqui-inimigos” tendo que trabalhar juntos. Eu estava mais concentrado em ficar o tempo inteiro olhando a embalagem escondida atrás de mim de relance, como se ela fosse sumir dali se eu não a checasse a cada cinco minutos.
Ainda sem notar a minha surpresa, levantou-se para se servir de mais vinho na sua xícara (eu ainda não tinha taças ou vidraçarias finas) e procurar uma colher para comermos o brownie com cobertura direto da travessa, já que eu havia preparado com a ajuda de Dory e esquecido de desenformar. Foi quando ela se deu conta de que havia algo suspeito.
— Tudo bem, amor? — ela quis saber, e eu ainda tinha borboletas com o apelido. — Você mal comeu.
— Estou ansioso pela sobremesa.
— A sobremesa sou eu? — ela piscou, sentando-se novamente no tapete e dando a primeira colherada modesta.
— Sempre. — sorri. — Mas dessa vez também tem isso. — finalmente entreguei a caixa de presente.
— É doce? — ela largou a colher e eu dei uma risada mais relaxada.
— Eu espero que seja. Figurativamente.
engatinhou até mim, ajoelhando-se ao meu lado para abrir o embrulho. Quando ela enfim o fez, os olhos vidraram no rosto lindo e lágrimas grossas queriam cair.
— Mingyu… — ela sussurrou. — Você quer que eu tenha uma chave do seu apartamento?
— Não. Eu quero que você tenha uma chave do nosso apartamento. — expliquei, enfim, colocando a cópia na mãozinha dela. — Vem morar comigo, . — fechei o punho dela e o beijei.
Ela demorou a esboçar reação e eu me agitei no meu lugar, sentindo comichão por dentro e um formigamento intenso de cima a baixo. Me pus de pé, trazendo junto, e a puxei pela mão até o meio da sala, me apressando em pegar o cobertor embolado numa das caixas, parte do meu arsenal de argumentação. Eu tinha ensaiado um puta discurso para convidá-la para morar comigo e, na hora h, ele se evaporou completamente da minha memória. Em vez disso, tudo o que eu consegui foi:
— Eu comprei esse cobertor bem fofinho pra você, olha. — ergui o rolo macio e o apertei nervosamente. — E eu até já lavei, tá limpinho e cheiroso. Ah, eu escolhi esse apê com o quarto virado para o poente porque eu sei que você ama ver o sol. E tem essa janela bem grande, eu acho que vai ser um bom lugar pra você ler. É. Um cantinho da leitura, só pra você. — continuei tagarelando, assistindo o sorriso de abrir lentamente enquanto tentava me lembrar da lista que eu tinha feito para impressioná-la. — A cama deve chegar essa semana, eu encomendei pela internet, as avaliações eram muito boas… — senti meu estômago gelar de ansiedade e a língua presa desenrolar sozinha. — Mas eu posso trocar se você não gostar, viu? Eu posso deixar essa casa do jeito que você quiser, , você pode mudar tudo de lugar que eu…
grudou o peito no meu e tocou meus lábios, me silenciando. Respirei fundo, ouvindo meu próprio pulso acelerado e me recuperando do monólogo gigante. Ela me beijou demorado, assentindo, e me fazendo um cafuné que me acalmava (quando era isso que ela queria). fazia o que bem entendia de mim e ela sabia.
— Você pensou mesmo nisso tudo pra mim?
— Sim. Sempre.
— Eu amei. Eu amei muito! — ela me beijou o rosto várias vezes. — Mas você esqueceu o principal...
— O que é? — arregalei os olhos. — Eu sei que não chega nem perto do tamanho da sua casa, mas me diz o que falta, eu arrumo.
— Mingyu… — prensou meus lábios novamente. — O principal é você.
— Então você vem? — sorri com os caninos que ela tanto gostava.
— Eu já estou aqui. — roçamos os narizes. — Isso é tudo que eu sempre quis.
— Um cantinho da leitura? — amoleci com o carinho.
— Uma casa. Intimidade. — ela explicou mansinho. — Eu quero acordar às duas da manhã, fazer amor com você e voltar a dormir. Eu quero sentir o seu cheiro nos lençóis e nas roupas que eu vestir. Eu quero passar a noite inteira assistindo você sonhar.
— Desculpa, eu não ouvi mais nada depois que você falou em fazer amor. — confessei.
Rimos juntos, concordando em inaugurar o apartamento e dormir a nossa primeira noite ali, debaixo da janela, sob a luz da lua. Depois de arrastar o colchão até o local escolhido (e de separar o cobertor fofinho), , já totalmente à vontade, simplesmente se despiu do vestido e das roupas íntimas, deixando-as espalhadas pela sala e se jogando na cama improvisada no chão. Entendi o convite e, enquanto tirava a blusa, uma fina chuva começou a cair, desenhando padrões de gotinhas no vidro que se repetiam na pele nua dela.
— Mingyu… — ela me chamou quando eu me deitei delicadamente sobre o corpo tatuado. — Quando eu tô com você, eu gosto até da chuva.
Não tive outro ímpeto, não havia nada que eu quisesse mais no momento, meu ser inteiro pulsou de urgência e meus lábios pediram pelos da , chocando-se sutilmente contra os dela num beijo que nos arrancou o ar.
A chuva e a lua viram a primeira vez que nos amamos na nossa casa.
***
Pus a bolsa a tiracolo ajustando a alça no ombro, pronto para sair para trabalhar, quando um envelope embaixo da porta me chamou a vista. Tinha o timbre do edifício, algo até bem elaborado, dada a simplicidade do condomínio de apartamentos. Abri, incrédulo do conteúdo, e ri para dentro, apertando os olhos. Aquele papel definitivamente iria para a nossa caixa de lembranças. Uma lembrança com um quê de vaidade minha, mas, ainda assim, uma lembrança válida. Válida e divertida.
— Fiz seu café, amor. — surgiu no fim da cozinha, início da sala, com o meu copo térmico. Ela vestia o meu moletom da Saint Peter.
Minha namorada usando minhas roupas. Um detalhe delicioso.
— O que é isso na sua mão?
— Nada. — encolhi os lábios e o papel, tentando segurar o riso. — Não é nada.
— Mingyu! Me fala! — ela insistiu, esquecendo o copo no balcão americano e aproximando-se.
— Uma notificação do síndico, mas nada com o que se preocupar. — procurei despistar minha namorada fofoqueira, sendo derrotado pela minha própria boca se torcendo em espasmos de riso.
— E o que tem de tão engraçado nela? Me deixa ver! — ficou na ponta dos pés quando eu levantei o braço e a carta, impossibilitando o acesso.
— Ok, ok. — usei a mão livre para segurar a cintura dela, ainda mantendo o papel no alto. — Não surta, tá? É só uma reclamação por barulho excessivo.
— Barulho excessivo? Quando foi que nós fizemos barulho excessivo? — o rosto dela desbotou.
— Ontem à noite, quando você derramou calda de chocolate em mim e lambeu o meu-
— Ai, meu Deus! — ela gritou, depois fechou os punhos e bateu os dois no meu peito, vermelha de vergonha e de raiva de mim. — Eu sei o que foi que eu fiz! Cala a boca, Mingyu!
— Tarde demais, a gente deveria ter calado a boca ontem, às duas da manhã… — ri, lendo as especificações da nossa “violação à lei do silêncio” no papel.
— Não tem graça! — apanhei outra vez. — A gente acabou de se mudar! O que vão pensar de mim agora?
— Vão pensar que você tem um namorado que te ama e que arde de vontade de você. — larguei a notificação num canto, segurando o rosto de e selando-lhe a testa. — E que o eco no nosso apartamento é muito grande, talvez porque ainda não tenha muitos móveis… — completei, abraçando-a.
— Não faz piada, Kim! — aceitou o abraço, abafando a raiva no meu peito. — Como eu vou colocar a cara fora do apartamento sabendo que o resto do prédio me ouviu gemer?
— Nos ouviu gemer, amor. — corrigi, descendo as mãos para a bunda dela e mudando o tom. — Você também trabalhou muito bem. Como sempre.
— Mingyu, por favor! — ela grunhiu.
— É… foi isso mesmo que você gemeu ontem. — lembrei da cara de prazer da e do corpo doce de chocolate, achando graça feito um canalha.
se soltou de mim fazendo um bico, buscando o papel que eu joguei para ler as letrinhas miúdas. Encaixei o queixo entre o ombro e o pescoço dela, abaixando um pouco para igualar a altura, e a envolvi novamente num abraço por trás, sussurrando:
— Se alguém falar qualquer coisa pra você, chame o seu segurança. Eu te protejo. — beijei a bochecha quente dela. — Sou a sua sombra, lembra?
— Não mais. — suspirou longo, também largando a notificação. — Você é o meu namorado. Que me obriga a fazer barulho excessivo. — ela riu contido. — Talvez eu precise de um advogado.
— Ao seu dispor, minha luz. — virei para mim e a beijei.
FIM?
Depois da formatura, dos trâmites de legalização do visto e de ser efetivado no escritório, eu iniciei a busca por um apartamento que me agradasse e coubesse confortavelmente no meu orçamento. Encontrei o que eu queria num charmoso bairro residencial, pertinho do centro, do trabalho e do metrô. Um prédio simpático de apenas seis andares, com vista para um jardim e uma padaria em frente, que fazia um mil folhas aprovado pela . A cozinha estava equipada e eu já tinha quase tudo o que eu precisava.
Quase tudo. Faltava ela.
Queria esperar até que estivesse tudo pronto, todos os móveis montados e no seu devido lugar, mas não consegui. Por mais que eu gostasse do apartamento novo, ele seria só um monte de tijolos sem ela comigo e eu não via a hora de dormir e acordar com a minha .
Minha … Ainda era inacreditável (e gostoso) dizer isso.
A vaga temporária que ela tinha conseguido no The New York Times virou uma vaga efetiva pouco antes de ela se formar, quando ela passou pelo processo de seleção brilhantemente. Alfred, Dorota e eu comemoramos cada fase avançada com um bolo confeitado e, na maioria das vezes, Dory e eu chegamos a divergir sobre a cor da cobertura e dos granulados. A disputa me rendeu uma ordem de restrição à cozinha da governanta — e alguns beliscões —, mas nenhum dos puxões de orelha de Dorota me machucou tanto quanto as lágrimas que eu a vi derramar quando enfim tive coragem de revelar meu plano de “lhe tirar” a .
A parte mais difícil não era consolar a Dory, nem mesmo enfrentar o olhar severo de Alfred me sabatinando quanto ao futuro que eu planejava para a neta dele, ou as cabeças de animais expostas no escritório. O mais difícil e o que me deixava realmente nervoso era o que eu estava prestes a fazer.
Busquei no jornal e, assim que ela entrou no carro, tudo o que ela sabia era que estávamos indo conhecer meu novo apartamento. Exceto que ele não era só meu.
demorou um pouco a entender quando eu destranquei a porta e demos de cara com a iluminação e decoração românticas (ou tão românticas quanto eu consegui). A risada dela reverberou pelo vão e ela me abraçou apertado, feliz pela conquista, e iniciamos um delicioso jantar no cenário que eu havia montado na sala. Ela comeu e me inteirou do seu dia no trabalho, tecendo, como de costume, inúmeras reclamações ao seu colega de sala: ninguém menos que o agora jornalista formado, Boo Seungkwan, contratado pelo The Times como redator. A função de era, basicamente, revisar (e contestar) o que ele escrevia.
Por mais que eu me divertisse com as trocas de insultos e com a insistência da em esconder o grampeador e outros artigos da mesa de Seungkwan, eu estava apreensivo demais para me concentrar nas peripécias dos dois “arqui-inimigos” tendo que trabalhar juntos. Eu estava mais concentrado em ficar o tempo inteiro olhando a embalagem escondida atrás de mim de relance, como se ela fosse sumir dali se eu não a checasse a cada cinco minutos.
Ainda sem notar a minha surpresa, levantou-se para se servir de mais vinho na sua xícara (eu ainda não tinha taças ou vidraçarias finas) e procurar uma colher para comermos o brownie com cobertura direto da travessa, já que eu havia preparado com a ajuda de Dory e esquecido de desenformar. Foi quando ela se deu conta de que havia algo suspeito.
— Tudo bem, amor? — ela quis saber, e eu ainda tinha borboletas com o apelido. — Você mal comeu.
— Estou ansioso pela sobremesa.
— A sobremesa sou eu? — ela piscou, sentando-se novamente no tapete e dando a primeira colherada modesta.
— Sempre. — sorri. — Mas dessa vez também tem isso. — finalmente entreguei a caixa de presente.
— É doce? — ela largou a colher e eu dei uma risada mais relaxada.
— Eu espero que seja. Figurativamente.
engatinhou até mim, ajoelhando-se ao meu lado para abrir o embrulho. Quando ela enfim o fez, os olhos vidraram no rosto lindo e lágrimas grossas queriam cair.
— Mingyu… — ela sussurrou. — Você quer que eu tenha uma chave do seu apartamento?
— Não. Eu quero que você tenha uma chave do nosso apartamento. — expliquei, enfim, colocando a cópia na mãozinha dela. — Vem morar comigo, . — fechei o punho dela e o beijei.
Ela demorou a esboçar reação e eu me agitei no meu lugar, sentindo comichão por dentro e um formigamento intenso de cima a baixo. Me pus de pé, trazendo junto, e a puxei pela mão até o meio da sala, me apressando em pegar o cobertor embolado numa das caixas, parte do meu arsenal de argumentação. Eu tinha ensaiado um puta discurso para convidá-la para morar comigo e, na hora h, ele se evaporou completamente da minha memória. Em vez disso, tudo o que eu consegui foi:
— Eu comprei esse cobertor bem fofinho pra você, olha. — ergui o rolo macio e o apertei nervosamente. — E eu até já lavei, tá limpinho e cheiroso. Ah, eu escolhi esse apê com o quarto virado para o poente porque eu sei que você ama ver o sol. E tem essa janela bem grande, eu acho que vai ser um bom lugar pra você ler. É. Um cantinho da leitura, só pra você. — continuei tagarelando, assistindo o sorriso de abrir lentamente enquanto tentava me lembrar da lista que eu tinha feito para impressioná-la. — A cama deve chegar essa semana, eu encomendei pela internet, as avaliações eram muito boas… — senti meu estômago gelar de ansiedade e a língua presa desenrolar sozinha. — Mas eu posso trocar se você não gostar, viu? Eu posso deixar essa casa do jeito que você quiser, , você pode mudar tudo de lugar que eu…
grudou o peito no meu e tocou meus lábios, me silenciando. Respirei fundo, ouvindo meu próprio pulso acelerado e me recuperando do monólogo gigante. Ela me beijou demorado, assentindo, e me fazendo um cafuné que me acalmava (quando era isso que ela queria). fazia o que bem entendia de mim e ela sabia.
— Você pensou mesmo nisso tudo pra mim?
— Sim. Sempre.
— Eu amei. Eu amei muito! — ela me beijou o rosto várias vezes. — Mas você esqueceu o principal...
— O que é? — arregalei os olhos. — Eu sei que não chega nem perto do tamanho da sua casa, mas me diz o que falta, eu arrumo.
— Mingyu… — prensou meus lábios novamente. — O principal é você.
— Então você vem? — sorri com os caninos que ela tanto gostava.
— Eu já estou aqui. — roçamos os narizes. — Isso é tudo que eu sempre quis.
— Um cantinho da leitura? — amoleci com o carinho.
— Uma casa. Intimidade. — ela explicou mansinho. — Eu quero acordar às duas da manhã, fazer amor com você e voltar a dormir. Eu quero sentir o seu cheiro nos lençóis e nas roupas que eu vestir. Eu quero passar a noite inteira assistindo você sonhar.
— Desculpa, eu não ouvi mais nada depois que você falou em fazer amor. — confessei.
Rimos juntos, concordando em inaugurar o apartamento e dormir a nossa primeira noite ali, debaixo da janela, sob a luz da lua. Depois de arrastar o colchão até o local escolhido (e de separar o cobertor fofinho), , já totalmente à vontade, simplesmente se despiu do vestido e das roupas íntimas, deixando-as espalhadas pela sala e se jogando na cama improvisada no chão. Entendi o convite e, enquanto tirava a blusa, uma fina chuva começou a cair, desenhando padrões de gotinhas no vidro que se repetiam na pele nua dela.
— Mingyu… — ela me chamou quando eu me deitei delicadamente sobre o corpo tatuado. — Quando eu tô com você, eu gosto até da chuva.
Não tive outro ímpeto, não havia nada que eu quisesse mais no momento, meu ser inteiro pulsou de urgência e meus lábios pediram pelos da , chocando-se sutilmente contra os dela num beijo que nos arrancou o ar.
A chuva e a lua viram a primeira vez que nos amamos na nossa casa.
Pus a bolsa a tiracolo ajustando a alça no ombro, pronto para sair para trabalhar, quando um envelope embaixo da porta me chamou a vista. Tinha o timbre do edifício, algo até bem elaborado, dada a simplicidade do condomínio de apartamentos. Abri, incrédulo do conteúdo, e ri para dentro, apertando os olhos. Aquele papel definitivamente iria para a nossa caixa de lembranças. Uma lembrança com um quê de vaidade minha, mas, ainda assim, uma lembrança válida. Válida e divertida.
— Fiz seu café, amor. — surgiu no fim da cozinha, início da sala, com o meu copo térmico. Ela vestia o meu moletom da Saint Peter.
Minha namorada usando minhas roupas. Um detalhe delicioso.
— O que é isso na sua mão?
— Nada. — encolhi os lábios e o papel, tentando segurar o riso. — Não é nada.
— Mingyu! Me fala! — ela insistiu, esquecendo o copo no balcão americano e aproximando-se.
— Uma notificação do síndico, mas nada com o que se preocupar. — procurei despistar minha namorada fofoqueira, sendo derrotado pela minha própria boca se torcendo em espasmos de riso.
— E o que tem de tão engraçado nela? Me deixa ver! — ficou na ponta dos pés quando eu levantei o braço e a carta, impossibilitando o acesso.
— Ok, ok. — usei a mão livre para segurar a cintura dela, ainda mantendo o papel no alto. — Não surta, tá? É só uma reclamação por barulho excessivo.
— Barulho excessivo? Quando foi que nós fizemos barulho excessivo? — o rosto dela desbotou.
— Ontem à noite, quando você derramou calda de chocolate em mim e lambeu o meu-
— Ai, meu Deus! — ela gritou, depois fechou os punhos e bateu os dois no meu peito, vermelha de vergonha e de raiva de mim. — Eu sei o que foi que eu fiz! Cala a boca, Mingyu!
— Tarde demais, a gente deveria ter calado a boca ontem, às duas da manhã… — ri, lendo as especificações da nossa “violação à lei do silêncio” no papel.
— Não tem graça! — apanhei outra vez. — A gente acabou de se mudar! O que vão pensar de mim agora?
— Vão pensar que você tem um namorado que te ama e que arde de vontade de você. — larguei a notificação num canto, segurando o rosto de e selando-lhe a testa. — E que o eco no nosso apartamento é muito grande, talvez porque ainda não tenha muitos móveis… — completei, abraçando-a.
— Não faz piada, Kim! — aceitou o abraço, abafando a raiva no meu peito. — Como eu vou colocar a cara fora do apartamento sabendo que o resto do prédio me ouviu gemer?
— Nos ouviu gemer, amor. — corrigi, descendo as mãos para a bunda dela e mudando o tom. — Você também trabalhou muito bem. Como sempre.
— Mingyu, por favor! — ela grunhiu.
— É… foi isso mesmo que você gemeu ontem. — lembrei da cara de prazer da e do corpo doce de chocolate, achando graça feito um canalha.
se soltou de mim fazendo um bico, buscando o papel que eu joguei para ler as letrinhas miúdas. Encaixei o queixo entre o ombro e o pescoço dela, abaixando um pouco para igualar a altura, e a envolvi novamente num abraço por trás, sussurrando:
— Se alguém falar qualquer coisa pra você, chame o seu segurança. Eu te protejo. — beijei a bochecha quente dela. — Sou a sua sombra, lembra?
— Não mais. — suspirou longo, também largando a notificação. — Você é o meu namorado. Que me obriga a fazer barulho excessivo. — ela riu contido. — Talvez eu precise de um advogado.
— Ao seu dispor, minha luz. — virei para mim e a beijei.
CENA BÔNUS 1 - O troca-letras (POV )
— Não está quente aqui? — Seungkwan me perguntou, com a cara de bolacha toda vermelha.
— Temperatura ambiente. — respondi sem tirar os olhos do computador.
Um urro baixo de frustração. Seungkwan abriu e fechou gavetas, vasculhou armários, andou em círculos e, por fim, ficou parado no meio do cubículo que dividíamos. Admitidos no The New York Times no meio de uma massiva reforma no prédio, o único lugar disponível para nós era uma sala pequena demais para nossas personalidades incompatíveis. O destino havia me pregado uma peça ao me dar o emprego dos meus sonhos, acompanhado de um desafeto da faculdade: o jornalista Boo Seungkwan, que passou anos escrevendo sobre a minha vida no jornal do campus, era agora o redator responsável por escrever os textos que eu revisava.
— Onde está, ? — ele perguntou, impaciente.
— Não sei do que você está falando, troca-letras. — escondi a risada levando a xícara de café à boca.
— Você não pode esconder o controle do ar-condicionado. — o rosto dele avermelhou mais.
— E você não pode me acusar sem provas. — rebati. — Meu advogado me disse isso.
— Seu advogado é o seu namorado e ele seria capaz de acobertar qualquer crime seu. — Seungkwan fez uma careta. — Mingyu te livraria até de um homicídio culposo.
— Então não me irrita. — voltei a bater no teclado. — Eu posso te matar e sair impune.
Seungkwan bufou mais uma vez e se deu por vencido, voltando ao seu lugar e se livrando do cardigã, enquanto o tal controle escondido me obrigava a remexer na cadeira para mantê-lo assim. O rosto consternado do troca-letras fazia o leve desconforto na base das minhas costas valer a pena e eu concluí que deveria castigá-lo mais um pouco, puramente pela diversão de vê-lo enfadado com o calor. Era uma guerrinha engraçada. Mesmo que as oito horas diárias de trabalho fossem recheadas de reclamações e ameaças de atentar contra a vida um do outro, a nossa produção era impecável e ele acabava acolhendo as minhas sugestões. Não sem antes contestá-las até me levar ao cansaço extremo e só se dar por satisfeito quando eu, munida de gramáticas e dicionários, esfregava na cara dele o quanto ele estava errado. Literalmente, algumas vezes.
O telefone interrompeu o silêncio e Seungkwan avançou sobre a madeira, mais rápido que eu, atendendo o único aparelho da mesa dividida. Como ainda não haviam nos realocado por causa da reforma, o ramal era compartilhado e quem quisesse falar com qualquer um de nós precisava discar o mesmo número — mais uma coisa que nos fazia disputar a posse verdadeira do local e marcar território a cada chamada recebida.
— Escritório do Boo Seungkwan, redator. — ele se apresentou na linha.
— Me dá isso aqui! — dei um tapa de leve na mão dele e tomei o fone para colocar no meu ouvido. — Escritório da Chevalier, editora.
Corrigi com certa rispidez, mas quem me respondeu foi uma voz doce pedindo pelo troca-letras. Uma voz de mulher.
— Oh, sim, é claro, senhora Boo. — derreti na minha cadeira. — Eu passo para o seu filho. — estendi o aparelho com desgosto e com vontade de fazê-lo engolir todos os dentes que o sorriso estava mostrando.
— Oi, mãe. — ele mudou o tom e aumentou o sorriso. — Desculpe por isso, era só a minha secretária.
Engoli o desaforo, possessa, e saquei o controle de trás de mim feito uma arma prestes a disparar o tiro de misericórdia. Aumentei a temperatura, assistindo a carranca sisuda de Boo se agravar, e voltei a escondê-lo, dessa vez dentro da blusa.
— Omma, nos falamos depois, eu te ligo de volta… — ele cerrou os olhos para mim. — Agora eu preciso ir ao RH registrar uma queixa.
— Ai, que medo! — agitei as mãos quando ele colocou o telefone no gancho. — Você vai chorar pra mamãe e pro Recursos Humanos?
— Você tem sorte que ela está na Coreia, ou ela vinha aqui bater em você.
— Quando você estiver a caminho do seu pití no RH, aproveita e traz mais café. O que servem lá é melhor.
— Pelo menos nós concordamos em alguma coisa. — ele resmungou e bateu a porta de vidro.
— Troca-letras. — murmurei.
E aproveitei a ausência dele para esconder também o grampeador.
— Temperatura ambiente. — respondi sem tirar os olhos do computador.
Um urro baixo de frustração. Seungkwan abriu e fechou gavetas, vasculhou armários, andou em círculos e, por fim, ficou parado no meio do cubículo que dividíamos. Admitidos no The New York Times no meio de uma massiva reforma no prédio, o único lugar disponível para nós era uma sala pequena demais para nossas personalidades incompatíveis. O destino havia me pregado uma peça ao me dar o emprego dos meus sonhos, acompanhado de um desafeto da faculdade: o jornalista Boo Seungkwan, que passou anos escrevendo sobre a minha vida no jornal do campus, era agora o redator responsável por escrever os textos que eu revisava.
— Onde está, ? — ele perguntou, impaciente.
— Não sei do que você está falando, troca-letras. — escondi a risada levando a xícara de café à boca.
— Você não pode esconder o controle do ar-condicionado. — o rosto dele avermelhou mais.
— E você não pode me acusar sem provas. — rebati. — Meu advogado me disse isso.
— Seu advogado é o seu namorado e ele seria capaz de acobertar qualquer crime seu. — Seungkwan fez uma careta. — Mingyu te livraria até de um homicídio culposo.
— Então não me irrita. — voltei a bater no teclado. — Eu posso te matar e sair impune.
Seungkwan bufou mais uma vez e se deu por vencido, voltando ao seu lugar e se livrando do cardigã, enquanto o tal controle escondido me obrigava a remexer na cadeira para mantê-lo assim. O rosto consternado do troca-letras fazia o leve desconforto na base das minhas costas valer a pena e eu concluí que deveria castigá-lo mais um pouco, puramente pela diversão de vê-lo enfadado com o calor. Era uma guerrinha engraçada. Mesmo que as oito horas diárias de trabalho fossem recheadas de reclamações e ameaças de atentar contra a vida um do outro, a nossa produção era impecável e ele acabava acolhendo as minhas sugestões. Não sem antes contestá-las até me levar ao cansaço extremo e só se dar por satisfeito quando eu, munida de gramáticas e dicionários, esfregava na cara dele o quanto ele estava errado. Literalmente, algumas vezes.
O telefone interrompeu o silêncio e Seungkwan avançou sobre a madeira, mais rápido que eu, atendendo o único aparelho da mesa dividida. Como ainda não haviam nos realocado por causa da reforma, o ramal era compartilhado e quem quisesse falar com qualquer um de nós precisava discar o mesmo número — mais uma coisa que nos fazia disputar a posse verdadeira do local e marcar território a cada chamada recebida.
— Escritório do Boo Seungkwan, redator. — ele se apresentou na linha.
— Me dá isso aqui! — dei um tapa de leve na mão dele e tomei o fone para colocar no meu ouvido. — Escritório da Chevalier, editora.
Corrigi com certa rispidez, mas quem me respondeu foi uma voz doce pedindo pelo troca-letras. Uma voz de mulher.
— Oh, sim, é claro, senhora Boo. — derreti na minha cadeira. — Eu passo para o seu filho. — estendi o aparelho com desgosto e com vontade de fazê-lo engolir todos os dentes que o sorriso estava mostrando.
— Oi, mãe. — ele mudou o tom e aumentou o sorriso. — Desculpe por isso, era só a minha secretária.
Engoli o desaforo, possessa, e saquei o controle de trás de mim feito uma arma prestes a disparar o tiro de misericórdia. Aumentei a temperatura, assistindo a carranca sisuda de Boo se agravar, e voltei a escondê-lo, dessa vez dentro da blusa.
— Omma, nos falamos depois, eu te ligo de volta… — ele cerrou os olhos para mim. — Agora eu preciso ir ao RH registrar uma queixa.
— Ai, que medo! — agitei as mãos quando ele colocou o telefone no gancho. — Você vai chorar pra mamãe e pro Recursos Humanos?
— Você tem sorte que ela está na Coreia, ou ela vinha aqui bater em você.
— Quando você estiver a caminho do seu pití no RH, aproveita e traz mais café. O que servem lá é melhor.
— Pelo menos nós concordamos em alguma coisa. — ele resmungou e bateu a porta de vidro.
— Troca-letras. — murmurei.
E aproveitei a ausência dele para esconder também o grampeador.
CENA BÔNUS 2 (POV Mingyu)
Seungcheol dedilhou no violão e afinou as cordas, arrumando seu equipamento para mais uma apresentação na churrascaria que virou ponto de encontro entre nós, Wonwoo e o melhor amigo de Cheol, um rapaz mais quieto, mas tão gente boa quanto, chamado Hansol.
Que estava atrasado, por sinal. De acordo com a mensagem, ele tinha se distraído em mais uma de suas frequentes visitas ao New York Aquarium, o aquário da cidade, e perdido a noção do tempo.
— Ele vai toda semana. — Seungcheol explicou, desenrolando os cabos. — Fizeram até uma carteirinha de VIP pra ele.
— O que ele tanto faz no aquário? — ajudei a mover uma caixa de som pesada que Seungcheol apontou. — Achei que você que era o estudante de Biologia Marinha.
— Ele diz que gosta de olhar os peixes. — deu de ombros. — E quanto a mim, eu preciso mesmo dar uma melhorada nas minhas notas se quiser continuar o curso. Vou até pegar monitoria.
Liguei os pontos e pensei na amiga da , também aluna de Biologia Marinha e recém-chegada da Tailândia. Pelo visto, Seungcheol era o culpado pelo retorno precoce, mas eu achei melhor guardar a informação para mim e deixar ele sofrer sozinho a raiva de Denise por ter tido as férias interrompidas.
— Uau. — Wonwoo enfim chegou ao restaurante, que já estava bem cheio. — Esse povo todo tá aqui só pra ver o Seungcheol tocar?
— E encher a cara de carne e cachaça. — ele completou, colocando-se diante do microfone, e eu e Wonwoo nos dirigimos à nossa mesa cativa, mais nos fundos.
— A gente pede logo alguma coisa ou espera o Hansol? — perguntei quando nos sentamos.
— Já, já. — Wonwoo suspirou e espalmou as mãos sobre a mesa, nervoso. — Eu tenho que te dizer uma coisa muito importante, Min.
Wonwoo arrumou o óculos que não estava escorregando, mais uma evidência indiscutível do seu nervosismo. As mãos estavam trêmulas e suadas, segurando com toda a força do mundo um pequeno envelope.
— Meu Deus. — ameacei um escândalo. — Você vai me pedir em casamento, Jeon Wonwoo? Aqui? Numa churrascaria?
— Não. — ele se descontraiu por um breve momento. — Você sabe que se eu fosse fazer isso eu te levaria no parquinho onde a gente se conheceu.
Lembrei da cena com nostalgia. Wonwoo, um pingo de gente com quem ninguém queria brincar, sentado sozinho no balanço com suas perninhas curtas e seus óculos fundo de garrafa. Eu disse que poderia empurrá-lo se ele fizesse o mesmo por mim depois e ele aceitou. Desde então, nunca nos separamos.
E desde então, nunca chegou minha vez no balanço e o folgado nunca me empurrou de volta.
— O que você tem aí, então? — indiquei o envelope amassado.
— Um convite. — Wonwoo me entregou o volume.
— Pra aquele musical na Broadway que você está me devendo? — me agitei na cadeira antes de abrir, empolgado. — Aquele que era pra você ter me levado, mas preferiu levar a Marie Bee?
— Porque ela fica melhor que você de vestido.
— Você não sabe disso, eu tô fazendo as séries direitinho na academia. — inflei o peito. — Eu tô gordo, por acaso?
Meu melhor amigo arfou tão pesado que embaçou as lentes. Lá na frente, no palco, Cheol começou a cantar uma versão acústica de Baby, do Justin Bieber. Tinha bastante Justin Bieber no repertório dele, aliás.
— Nós não moramos mais juntos, então eu esqueci o quanto você fica sensível quando está no seu período menstrual. — Wonwoo zombou. — Abre logo.
Rasguei a ponta do envelope cor-de-rosa, obra que eu atribuí a Marie Bee. Havia, de fato, um papel que parecia um ingresso, mas além dele, havia também uma polaroide. A foto era uma imagem em escalas de cinza, toda borrada, e eu não consegui identificar o que era.
Até eu ler o texto do “ingresso”.
—B-... — balbuciei, lendo em voz alta. — “Bebê a caminho?”
Wonwoo sorriu para mim com os olhos cheios de lágrimas, ampliadas pelo grau do óculos, fungando.
— Lê do outro lado. — ele pediu e as íris ficaram inundadas.
— “Aceita ser o padrinho?” — repeti o que estava escrito e peguei a polaroide com o ultrassom, prestes a chorar também.
Encarei Wonwoo, encantado. Aquele mesmo cara, que sempre foi míope, que sempre cuidou de mim, que sempre usou minhas coisas sem pedir permissão, que sempre foi meu irmão de outra mãe, ia ser… pai.
Pai! Papai! Appa!
— Responde logo, porra! — ele bateu na mesa de leve. — Eu tô quase parindo aqui.
— Eu aceito! — me levantei e gritei, atraindo a atenção dos clientes e de Seungcheol, que esticou a cabeça, espiando de longe.
— Aceita? — Wonwoo levantou junto.
— Aceito! Eu aceito!
As pessoas imediatamente começaram a aplaudir, achando que se tratava de um noivado. Nem tinha como culpá-las. Dois marmanjos se abraçando e chorando, era exatamente o que parecia. Ainda assim, Wonwoo encarou nosso público, querendo articular uma explicação para o mal-entendido.
— Obrigado, mas não é nada disso, é que-
— Ei! — Seungcheol interrompeu, falando no microfone. — O que está acontecendo aí?
— A gente vai ter um bebê! — respondi aos berros, apontando para mim e Wonwoo.
— A gente? — Wonwoo entrou em pânico e as pessoas ao nosso redor celebraram ainda mais o “casal”.
— Ah, não, não, não! — Seungcheol parou o show. Removeu a corda do violão de si e colocou o instrumento no chão, indignado, andando até nós. — Vocês não vão ter um bebê sem mim, eu quero fazer parte disso.
Wonwoo desistiu de fazer seus esclarecimentos e, quando Cheol nos alcançou, apenas aceitou o abraço triplo. Quando nos soltamos, além de clientes muito confusos (com o que agora parecia um “trisal”), encontramos também o Hansol, parado igual a um boneco do The Sims, sem a menor ideia do que estava acontecendo:
— Eu acho melhor eu começar a fingir que não conheço vocês…
Que estava atrasado, por sinal. De acordo com a mensagem, ele tinha se distraído em mais uma de suas frequentes visitas ao New York Aquarium, o aquário da cidade, e perdido a noção do tempo.
— Ele vai toda semana. — Seungcheol explicou, desenrolando os cabos. — Fizeram até uma carteirinha de VIP pra ele.
— O que ele tanto faz no aquário? — ajudei a mover uma caixa de som pesada que Seungcheol apontou. — Achei que você que era o estudante de Biologia Marinha.
— Ele diz que gosta de olhar os peixes. — deu de ombros. — E quanto a mim, eu preciso mesmo dar uma melhorada nas minhas notas se quiser continuar o curso. Vou até pegar monitoria.
Liguei os pontos e pensei na amiga da , também aluna de Biologia Marinha e recém-chegada da Tailândia. Pelo visto, Seungcheol era o culpado pelo retorno precoce, mas eu achei melhor guardar a informação para mim e deixar ele sofrer sozinho a raiva de Denise por ter tido as férias interrompidas.
— Uau. — Wonwoo enfim chegou ao restaurante, que já estava bem cheio. — Esse povo todo tá aqui só pra ver o Seungcheol tocar?
— E encher a cara de carne e cachaça. — ele completou, colocando-se diante do microfone, e eu e Wonwoo nos dirigimos à nossa mesa cativa, mais nos fundos.
— A gente pede logo alguma coisa ou espera o Hansol? — perguntei quando nos sentamos.
— Já, já. — Wonwoo suspirou e espalmou as mãos sobre a mesa, nervoso. — Eu tenho que te dizer uma coisa muito importante, Min.
Wonwoo arrumou o óculos que não estava escorregando, mais uma evidência indiscutível do seu nervosismo. As mãos estavam trêmulas e suadas, segurando com toda a força do mundo um pequeno envelope.
— Meu Deus. — ameacei um escândalo. — Você vai me pedir em casamento, Jeon Wonwoo? Aqui? Numa churrascaria?
— Não. — ele se descontraiu por um breve momento. — Você sabe que se eu fosse fazer isso eu te levaria no parquinho onde a gente se conheceu.
Lembrei da cena com nostalgia. Wonwoo, um pingo de gente com quem ninguém queria brincar, sentado sozinho no balanço com suas perninhas curtas e seus óculos fundo de garrafa. Eu disse que poderia empurrá-lo se ele fizesse o mesmo por mim depois e ele aceitou. Desde então, nunca nos separamos.
E desde então, nunca chegou minha vez no balanço e o folgado nunca me empurrou de volta.
— O que você tem aí, então? — indiquei o envelope amassado.
— Um convite. — Wonwoo me entregou o volume.
— Pra aquele musical na Broadway que você está me devendo? — me agitei na cadeira antes de abrir, empolgado. — Aquele que era pra você ter me levado, mas preferiu levar a Marie Bee?
— Porque ela fica melhor que você de vestido.
— Você não sabe disso, eu tô fazendo as séries direitinho na academia. — inflei o peito. — Eu tô gordo, por acaso?
Meu melhor amigo arfou tão pesado que embaçou as lentes. Lá na frente, no palco, Cheol começou a cantar uma versão acústica de Baby, do Justin Bieber. Tinha bastante Justin Bieber no repertório dele, aliás.
— Nós não moramos mais juntos, então eu esqueci o quanto você fica sensível quando está no seu período menstrual. — Wonwoo zombou. — Abre logo.
Rasguei a ponta do envelope cor-de-rosa, obra que eu atribuí a Marie Bee. Havia, de fato, um papel que parecia um ingresso, mas além dele, havia também uma polaroide. A foto era uma imagem em escalas de cinza, toda borrada, e eu não consegui identificar o que era.
Até eu ler o texto do “ingresso”.
—B-... — balbuciei, lendo em voz alta. — “Bebê a caminho?”
Wonwoo sorriu para mim com os olhos cheios de lágrimas, ampliadas pelo grau do óculos, fungando.
— Lê do outro lado. — ele pediu e as íris ficaram inundadas.
— “Aceita ser o padrinho?” — repeti o que estava escrito e peguei a polaroide com o ultrassom, prestes a chorar também.
Encarei Wonwoo, encantado. Aquele mesmo cara, que sempre foi míope, que sempre cuidou de mim, que sempre usou minhas coisas sem pedir permissão, que sempre foi meu irmão de outra mãe, ia ser… pai.
Pai! Papai! Appa!
— Responde logo, porra! — ele bateu na mesa de leve. — Eu tô quase parindo aqui.
— Eu aceito! — me levantei e gritei, atraindo a atenção dos clientes e de Seungcheol, que esticou a cabeça, espiando de longe.
— Aceita? — Wonwoo levantou junto.
— Aceito! Eu aceito!
As pessoas imediatamente começaram a aplaudir, achando que se tratava de um noivado. Nem tinha como culpá-las. Dois marmanjos se abraçando e chorando, era exatamente o que parecia. Ainda assim, Wonwoo encarou nosso público, querendo articular uma explicação para o mal-entendido.
— Obrigado, mas não é nada disso, é que-
— Ei! — Seungcheol interrompeu, falando no microfone. — O que está acontecendo aí?
— A gente vai ter um bebê! — respondi aos berros, apontando para mim e Wonwoo.
— A gente? — Wonwoo entrou em pânico e as pessoas ao nosso redor celebraram ainda mais o “casal”.
— Ah, não, não, não! — Seungcheol parou o show. Removeu a corda do violão de si e colocou o instrumento no chão, indignado, andando até nós. — Vocês não vão ter um bebê sem mim, eu quero fazer parte disso.
Wonwoo desistiu de fazer seus esclarecimentos e, quando Cheol nos alcançou, apenas aceitou o abraço triplo. Quando nos soltamos, além de clientes muito confusos (com o que agora parecia um “trisal”), encontramos também o Hansol, parado igual a um boneco do The Sims, sem a menor ideia do que estava acontecendo:
— Eu acho melhor eu começar a fingir que não conheço vocês…
Fim.
Nota da autora:Essa história faz parte do S-VERSO, um universo compartilhado por três escritoras dividindo o mesmo neurônio e protagonizadas pelos membros da Hip Hop Unit do grupo SEVENTEEN. Embarque nesse surto! Aqui vai a lista das fics de cada membro e suas respectivas malucas, digo, autoras.
Sight, my Sight (WONWOO, M-Hobi)
Shadow, my Shadow (MINGYU, Ilane CS)
Sea, my Sea (SEUNGCHEOL, Daphne M)
Secret, my Secret (HANSOL, Daphne M)
Nos vemos por aí!
Outras Fanfics:
First, my First
See Me With Your Hands
K-Hot Chilli Peppers
Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.
Sight, my Sight (WONWOO, M-Hobi)
Shadow, my Shadow (MINGYU, Ilane CS)
Sea, my Sea (SEUNGCHEOL, Daphne M)
Secret, my Secret (HANSOL, Daphne M)
Nos vemos por aí!
Outras Fanfics:
First, my First
See Me With Your Hands
K-Hot Chilli Peppers
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