O que você faria se tivesse a chance de mudar o passado? Se fosse o escolhido entre vários para ter uma segunda chance de viver sua história de amor? Se tivesse o destino das milhares de pessoas ao seu redor na palma da mão? Cuidado, pois você tem apenas seis chances para fazer a escolha certa.
Aquela garota era o amor da sua vida, mas uma ultrapassagem indevida a levou embora em um trágico acidente de carro. Cético, o rapaz nunca acreditou em presentes do destino – até que um deles bateu à sua porta. Agora, ele tem a chance de reverter o que fora feito ao seu coração: tudo que ele precisa fazer é escolher outra pessoa para morrer em seu lugar. Mas não é nada fácil destruir a vida das pessoas quando se descobre quem elas são realmente. Assim como não é fácil desistir de tudo quando é a vida da pessoa que você mais ama que está em jogo. O que você faria? Até onde iria? Pense rápido, pois você só tem seis chances.
Acredito que o maior mistério da vida, e ao mesmo tempo o que mais traz encanto a ela, é que você nunca sabe quando ou como vai morrer.
Pode ser daqui a cinquenta anos, ou hoje mesmo. Pode ser agora neste segundo. Pode ser que um meteoro atinja a Terra no instante em que você chegar à próxima linha, ou talvez não. E a incerteza de nunca saber quando a morte irá chegar é justamente o que faz da vida algo tão imprevisível, misterioso, precioso e mágico como ela é. Afinal, qual seria a graça de saber quando, como e onde iremos morrer? Qual seria a expectativa, a adrenalina de nunca saber quando a morte pode chegar? A verdade é que deve ser desse jeito. Ela precisa vir de surpresa, num momento em que você menos espera. Num dos imprevistos da vida, entre um caminho e outro, no meio de uma frase, no meio de uma história.
Foi um destes imprevistos da vida que tirou de mim uma pessoa que eu amava muito. A morte a levou de um jeito totalmente inesperado, casual e trágico. Mas no final das contas, aconteceu como tinha que ser, e foi melhor assim. E logo você vai entender o porquê.
Esta não é uma história de amor com um final feliz. Se é isso que você está procurando ao começar a lê-la, então pode ir embora. Não se engane quando digo que tudo aconteceu da melhor forma, pois nem sempre o que é melhor é fácil ou agradável de encarar. Mudanças podem ser um grande chute no saco, mesmo que sejam em prol de um bem maior.
Mas a história que vou contar não começa com todo esse clima reflexivo, melancólico e pesado. Na verdade, ela começa com um dos melhores e mais felizes momentos da vida de qualquer pessoa.
- Sim, eu aceito!
Um pedido de casamento.
- Meu Deus, eu te amo! Não estou acreditando nisso!
- Te peguei de surpresa, não foi?!
. Este era o nome dela. A garota mais bonita e incrível que eu já conheci. A única que conseguia me fazer sorrir a qualquer momento e em qualquer circunstância. A única capaz de me consolar quando eu estava triste, e de me transbordar quando já estava feliz. A garota que me completava, que me fazia ser melhor, que me fazia um bem que ninguém jamais fez. Eu era apaixonado por ela desde o dia em que nos vimos pela primeira vez, e depois disso nunca mais tive olhos para outra garota a não ser minha . Eu era louco por ela, e a queria comigo para sempre. Por este motivo, decidi pedi-la em casamento.
Nós namorávamos há cinco anos, e para pedir a mão dela levei-a até o Central Park em Manhattan, no mesmo lugar em que eu a pedi em namoro: debaixo de uma árvore de cerejeira bem próxima ao lago. Era uma quinta-feira, o dia estava ensolarado, levemente quente e com uma brisa cortando a cidade, formando um dia típico de verão. A paisagem estava linda – assim como o Central Park sempre é – com os cisnes nadando no lago, as crianças brincando no parque, os cães correndo de um lado para o outro e as flores da cerejeira formando um enorme tapete que enfeitava o gramado. Eu estava tremendo por dentro, pois não fazia ideia de como dar um discurso bom o suficiente para fazer um pedido de casamento digno. Simplesmente falei tudo o que sentia pra ela, ajoelhei-me entre as pétalas de cerejeira e tirei do meu bolso a caixinha de veludo vermelho com o anel dentro.
- Meu Deus, , não acredito! Realmente me pegou desprevenida! – Ela disse, me dando mais um selinho. – É maravilhoso.
- Que bom que deu tudo certo. – Eu disse dando um sorriso satisfeito. – Fiquei com medo que você descobrisse antes da hora. Semana passada, quando comprei o anel, a caixinha caiu do meu bolso por acidente no sofá da sua casa enquanto conversávamos, mas você não percebeu.
- Eu vi que você ficou nervoso de repente... Achei que era por que eu falei sobre assistirmos aquele filme de terror. – disse lembrando-se do ocorrido, e em seguida riu. – Temos que contar a todos sobre a novidade. Precisamos comemorar isso, você não acha?
- Pois é. Acontece que como eu sou um namorado-noivo-quase-marido muito dedicado, eu já cuidei dessa parte também. – Disse cheio de mim ao ver a expressão de surpresa dela. – Hoje à noite faremos um jantar para os nossos amigos e parentes no meu apartamento para comemorar. Eles já foram avisados.
- Mas como assim? Todos já estavam sabendo do pedido, menos eu? – disse fingindo indignação.
- Estavam, sim.
- E como você tinha tanta certeza de que eu aceitaria? – Ela ergueu a sobrancelha, divertida.
- Decidi correr esse risco. – Dei de ombros. – Afinal de contas, eu sou muito irresistível. Você me ama demais e estava louquinha pra que eu te pedisse pra casar comigo, que eu sei. – Dei uma piscadela e ri, divertindo-me.
- Você é mesmo um idiota convencido, sabia disso? – disse dando um tapa em meu ombro, rindo também.
e eu não podíamos estar mais felizes. Finalmente daríamos mais um passo adiante no nosso relacionamento, agora caminhando para uma vida inteira juntos.
O nosso dia se tornou completo mais tarde durante o jantar que falei, onde comemoramos com nossos amigos, familiares e pessoas importantes a nossa união, que agora seria eterna. Estavam todos muito felizes e empolgados, e a todo momento chegava mais alguém pela porta para fazer a festa do novo casal ainda maior. Houve música, comida, champanhe, risadas e muita alegria durante a noite toda.
Quando era por volta das três da manhã, todos já tinham ido embora, restando apenas e eu no apartamento, limpando tudo enquanto ouvíamos algum sucesso do Elvis Presley no home teather.
- Você me faz a mulher mais feliz do mundo, sabia disso? – disse pra mim com um sorriso apaixonado assim que terminamos de arrumar as coisas. Sentamos um ao lado do outro no sofá da sala. – Honestamente, eu não poderia pedir pra ser melhor.
- Fiz tudo que pude pra tornar isso o mais especial possível. – Sorri, encontrando meus olhos com os dela. – E então, se divertiu?
- Pra caramba. Só espero do fundo do coração que a sua prima Esther esteja bem, porque com a quantidade de champanhe que ela tomou eu não teria tanta certeza... – Ela disse e demos risada. – Mas, sem brincadeira, foi incrível. O dia como um todo foi muito especial, graças a você. Não tenho como te agradecer por isso, foi a maior surpresa e eu não poderia pedir por um cara melhor que você pra casar comigo. Essa foi sem dúvida a melhor noite que eu já tive.
- A primeira noite do resto de nossas vidas. – Falei e ela sorriu, e em seguida nos beijamos.
Então o dia terminou, numa calmaria tão grande que seria quase impossível prever o que viria depois. É difícil que, depois de um momento tão feliz como esse, você esteja esperando por algo ruim logo em seguida. Mas é mais ou menos assim que essas coisas acontecem. O destino gosta de nos pegar desprevenidos, no momento mais improvável, de uma hora pra outra, quando você menos espera, e então... puf.
O dia seguinte se iniciou como outro qualquer, com um beijo carinhoso de bom dia e um café da manhã apressado antes do trabalho. saiu de casa às oito da manhã como sempre fazia, rumo ao grande prédio da A.S. Enterprise onde trabalhava como publicitária. Antes de ir para o escritório, parou para visitar alguns clientes e entregar portfólios de novas campanhas, como de costume.
Eram por volta de nove e meia quando ela saiu de um edifício na 5ª Avenida, e tomou um táxi na calçada para atravessar a ponte. O trânsito era frenético e caótico como sempre e o movimento de carros estava intenso, do jeito que Nova York deve ser. Um engarrafamento se formou mais a frente, deixando tudo parado. E então, para escapar do bloqueio, um caminhão que estava próximo decidiu ultrapassar na pista contrária, saindo em alta velocidade.
Poderia ser qualquer um ali, sentado no banco de trás daquele táxi. Poderia ser qualquer outro táxi dentre os milhares que circulam por Nova York todos os dias. Mas não. Foi aquele táxi, aquele momento, aquele lugar, aquela garota. Houve uma freada, uma tentativa de desvio, e então, a colisão.
Ninguém sabe explicar ao certo porque coisas assim acontecem. Ou porque, dentre tantas outras pessoas, acontecem justamente com aquelas que mais amamos. Alguns culpam o destino, outros a falta de sorte. É como uma roleta russa, que infelizmente deve explodir em alguém. O acaso escolheu para ser sua vítima, e nem sequer perguntou a ela se aceitava. Simplesmente jogou um enorme caminhão contra o táxi dela, lançando-a contra o para-brisa do veículo que capotou em seguida, parando do outro lado da ponte.
Posso não conhecer a vida de todas as pessoas que vivem em Nova York, mas sei que fui eu quem recebeu a pior notícia por telefonema naquela manhã. Foi o meu mundo que desabou ao ouvir aquelas palavras pronunciadas pela enfermeira do hospital, e ao saber da escolha aleatória e cruel do destino: sofrera um acidente de carro. Após uma rápida e torturante conversa no telefone eu saí correndo do trabalho imediatamente, dirigindo rápido e com o coração na mão pelas ruas rumo ao Hospital Lenox Hill, onde ela estava.
- Cadê ela? Para onde a levaram? – Eu repetia sem fôlego para a recepcionista do hospital. Estava totalmente desnorteado, tudo parecia girar. – Pelo amor de Deus, eu preciso saber se ela está bem!
- Qual o nome da paciente que procura, senhor?
- . Eu recebi uma ligação de vocês, não sei muito bem o que houve com ela, mas me falaram sobre um acidente de carro e eu não sei como ela está... – Eu disse com a respiração pesada e a voz trêmula. – Por favor, me diga que está tudo bem!
- Eu vou checar a lista de emergências.
E enquanto a recepcionista fazia isso, eu a vi passar. Deitada numa maca, inconsciente, com diversos hematomas pelo rosto e um respiradouro colado à boca. Os enfermeiros empurravam o carrinho com rapidez pelo corredor, e repetiam coisas uns para os outros que para mim eram incompreensíveis. Tudo que eu conseguia era olhar para seu rosto pálido e inchado, suas roupas sujas e ensanguentadas, e sua mão gélida e fraca pousada sobre o tórax, de onde brilhava em seu dedo a minha aliança.
Assim que a vi, comecei inconscientemente a andar apressado na direção dela. Duas enfermeiras vieram até mim pedindo que ficasse calmo, me segurando pelos ombros e dizendo repetidamente que tudo iria ficar bem e que eu deveria me sentar. Eu ignorei-as totalmente, e saí correndo em direção à porta do centro cirúrgico por onde havia sido levada segundos antes. Os vidros da porta estavam vedados e eu não conseguia ver nada, apenas chamar pelo nome dela. Não demorou para que dois seguranças se aproximassem para me tirar dali, e com muita relutância me forçaram sentar na sala de espera e aguardar por respostas.
Naquele momento eu perdi qualquer noção de tempo e espaço, tudo que eu queria era ouvir que minha estava bem. Logo os familiares e amigos dela chegaram ao hospital, todos igualmente preocupados e perplexos, e se juntaram a mim na angústia que era ficar naquela sala de espera aguardando notícias. Eu andava de um lado para o outro da sala, inquieto, evitando conversar com as pessoas. Minha cabeça estava girando, eu não conseguia pensar em nada além dela.
Eu não desejaria aquela situação nem ao meu pior inimigo. Eu não fazia ideia de qual era o estado de , se ela estava sofrendo, se ficaria bem ou se precisava de mim. Tudo que eu sabia era que um caminhão havia colidido com o táxi dela e que o motorista havia morrido no local. Os pensamentos na minha cabeça eram um pior que o outro, e os sentimentos de angústia e preocupação que me corroíam eram insuportáveis. Tudo que eu queria era acordar daquele pesadelo horrível e tê-la ao meu lado sã e salva.
Eu a amava demais para perdê-la. Queria invadir aquela sala de cirurgia para saber como ela estava, queria ajudar, queria fazer qualquer coisa menos ficar ali parado naquela sala sofrendo e me sentindo inútil. Olhar para os rostos preocupados de todos os entes queridos de naquela sala só me deixava ainda pior, eu queria que aquilo tudo acabasse o mais rápido possível.
Não sei dizer quanto tempo levou até que um médico de avental e máscara viesse à recepção falar conosco, mas acredito que não mais do que trinta minutos. Minutos que, ao meu ver, pareceram séculos.
- ? – Disse o doutor com uma prancheta na mão. Levantei da poltrona imediatamente, e o homem se dirigiu a mim. – O senhor é parente dela?
- Sim, sou o noivo. – Falei com a voz trêmula.
O sujeito me lançou um olhar de compaixão. Aquele típico olhar que todo médico tem quando está prestes a te dar uma péssima notícia. Como se tivesse pena de mim por ter que ouvir o que ele tinha a me dizer, como se por um momento compartilhasse da mesma dor que eu.
- Eu sinto muito, senhor. Ela não resistiu aos ferimentos. Fizemos todo o possível.
Foi como se o chão tivesse sido tirado dos meus pés. Eu não sabia como reagir, pois pra mim parecia mentira. De repente tudo ficou mais escuro, triste e sombrio, como se a felicidade decidisse tirar férias e ir embora junto com , pra sempre.
- Não... não pode ser...
Dei alguns passos a frente até cair de joelhos no chão do corredor. Minha respiração começou a falhar, minha visão ficou turva, minha mente apagou. As lágrimas começaram a escorrer, e eu coloquei o rosto entre as mãos. Não era possível, minha não podia ter morrido!
Comecei a gritar o nome dela várias vezes, na tentativa inútil de trazê-la de volta. Mas eu sabia que era impossível. Fiquei ali no chão paralisado por alguns minutos, tentando processar. Eu queria poder impedir, mas era tarde. O destino havia feito a sua escolha, e a levara para longe de mim pra sempre.
Olhei para trás e vi a sala de espera há alguns metros, onde os amigos e familiares de também tentavam digerir a notícia. Seus pais estavam inconsoláveis abraçados um ao outro, sua melhor amiga recebendo um copo d’água de uma enfermeira para tentar se acalmar. O mesmo sofrimento estava estampado nos olhos de todos, e devia estar nos meus também. Colorindo as lágrimas com uma tristeza transparente que, se fosse visível, seria o mais do mais triste e pálido cinza.
Sai para caminhar pelos corredores do hospital e sentei em uma cadeira tentando me acalmar e entender o que aconteceu. Fiquei lá por várias horas até conseguir aceitar os fatos. A informação demorou para entrar na minha cabeça, e quando entrou parecia que algo havia sido arrancado de mim. O mundo não tinha mais nele, e isso era horrível.
Insuficiência respiratória. Foi isso que a matou, segundo os enfermeiros. Eles disseram que devido ao impacto do acidente, as costelas dela esmagaram seus pulmões e a impediram de respirar. Os mesmos entraram em falência e a levaram rápido demais para que os médicos conseguissem impedir.
Não deve ter sido uma morte agradável. Pensar que sofreu antes de morrer me fazia ainda mais mal, pois eu odiava vê-la aflita. Me pergunto se ela sentiu dor, ou se estava desacordada demais para notar. Se ela sentiu medo ao ver o caminhão se aproximando, ou se nem notou a batida. Se ao menos ela sabe o que aconteceu com ela, ou morrer foi uma surpresa inesperada. Se ela sentiu a morte se aproximar ou ainda tinha esperanças de viver e ser salva. Queria saber se ela me viu naquela hora, parado no corredor do hospital. Se ela pensou em mim antes de partir, e quais foram as últimas coisas que passaram por sua cabeça antes que sua mente se desligasse para sempre.
Naquela hora, tudo que eu queria era sumir. Estava torcendo para que aquilo fosse só um pesadelo e que a qualquer momento eu acordasse com o olhar curioso dela sobre mim, perguntando se eu estava bem. Mas aquilo não ia acontecer. se foi, e eu nunca mais vou acordar ao lado dela outra vez, e nunca mais vou tê-la ao meu lado para me acalmar depois de um sonho ruim.
Pensar nisso me matava. Acho que nós nunca damos tanto valor a uma pessoa até que a percamos. Não fazia nem três horas desde que tudo acontecera, mas eu já sentia saudades dela como se tivessem passado séculos sem que eu a visse. A única coisa que eu conseguia pensar era na imagem dela sendo levada na maca por aqueles paramédicos, pálida e machucada, com a luz prestes a deixá-la.
Eu queria ter tido a chance de impedir tudo isso. De dizer a ela para não ir trabalhar, para não entrar naquele táxi. De impedir aquele maldito caminhão de ultrapassar na pista contrária, e levar de mim a coisa mais importante da minha vida. Agora se foi, e eu estou sozinho aqui segurando em mãos a minha aliança que agora já não tinha mais dona, tentando imaginar como vai ser minha vida sem ela.
Eu queria ao menos ter a chance de me despedir dela. De vê-la uma última vez, poder tocá-la, e dizer o quanto eu a amo. Pois, por mais que fizesse isso todos os dias, parece que nunca é o suficiente. O tempo que tivemos juntos não foi o bastante. Nós dois estávamos prestes a construir uma vida juntos, eu tinha acabado de pedi-la em casamento. Tínhamos um futuro pela frente, que foi brutalmente interrompido por uma brincadeira de mal gosto do destino.
Aquilo ainda não parecia real. Parecia que ela ia entrar por aquela porta a qualquer momento e perguntar por que eu estava chorando, parecia que ela ainda estava viva por aí em algum lugar. Só Deus sabe o quanto eu queria que ela estivesse. Naquele momento a única coisa que eu desejava era que tivesse uma segunda chance.
Enquanto eu me lamentava em meus próprios pensamentos, alguém sentou-se na cadeira ao meu lado sem que eu percebesse, e tocou meu ombro.
Algumas pessoas dizem que em locais de grande tristeza e dor como hospitais ou cemitérios, há sempre alguém que ouve nossas preces sinceras de sofrimento. Hoje em dia, gosto de pensar que isso é verdade.
- A morte é uma das fases mais difíceis da vida, não? – Disse a pessoa misteriosa sentada ao meu lado. – Uma pena o que aconteceu com a garota.
Tirei o rosto das mãos e o virei lentamente para encarar a figura ao meu lado. Era um homem, não muito mais velho que eu, de cabelos morenos e lisos, usando um sorriso de compaixão no rosto e roupas brancas de seda.
- Também acho que ela merecia uma segunda chance. – O homem continuou a falar, como se tivesse lido meus pensamentos alguns segundos atrás. – Muito prazer, meu nome é Samuel.
- Obrigado... – Eu disse, sem muita vontade de conversar. – Sou .
- Eu sei disso. – Samuel sorriu. – Estou aqui para ajudar você.
Antes que o homem pudesse continuar, Sarah, a melhor amiga de , passou no corredor.
- Oi, . – Ela disse parando a minha frente, parecendo ignorar completamente a presença de Samuel. – O senhor e a senhora estão procurando por você, querem falar sobre o enterro da e a cerimônia.
- Ok, já estou indo.
- Eles estão te esperando lá na recepção. - Sarah deu um meio sorriso, visivelmente carregado de tristeza. – A propósito, com quem você estava falando?
Fiquei em silêncio alguns segundos, sem entender a pergunta. Não era óbvio com quem eu estava conversando? Olhei para o lado e encarei Samuel, que agora possuía um sorriso divertido no rosto. Ele parecia não estar nem um pouco surpreso com o fato de Sarah não perceber que ele estava ali, e aquilo só me deixou mais confuso.
- Ah, com ninguém... – Respondi, temendo estar ficando louco. – Eu chego lá num minuto, pode ir na frente.
Assim que Sarah se retirou, voltei a encarar o homem ao meu lado, que ainda divertia-se. Minha cabeça estava confusa, será que só eu podia vê-lo? Ou será que era tudo invenção da minha mente? Só posso estar maluco, deve ser o excesso de emoções me afetando.
- Não fique preocupado, , você não está louco. É natural que nem todas as pessoas consigam me ver. – Samuel sorriu, me deixando mais perdido ainda. – Bom, não há forma de fazer isso parecer menos estranho, então lá vai. Pode soar como maluquice pra você, mas eu não sou humano. Sou um anjo.
Meu coração perdeu uma batida. Como assim, ele não é humano?! Que história é essa de anjo, de só eu enxergar pessoas? Eu só posso ter perdido a cabeça!
- Bom... se você é mesmo um anjo, então onde estão suas asas? – Falei com a voz trêmula, tentando conter meu espanto.
- Estão guardadas, não preciso delas agora. Pensei que se chegasse aqui com dois montes de pena nas costas eu só te deixaria ainda mais assustado. – Samuel respondeu. – Ouça, eu estou aqui pra te ajudar. A você, e a mulher que você ama. Eu posso fazer com que vocês dois fiquem juntos outra vez.
Dei um pulo para trás imediatamente. Aquela história ficava mais estranha a cada segundo, e eu estava prestes a sair correndo dali e me internar num manicômio.
- Como é que é?! – Eu quase gritei, o que fez com que duas enfermeiras que estavam passando pelo corredor me encarassem assustadas.
- , se você quer mesmo evitar parecer um louco, está fazendo tudo errado. – O ser a minha frente disse, novamente como se tivesse lido meus pensamentos. – Fique calmo, ok? Eu estou aqui pra ajudar.
- Fique longe de mim... – Eu disse sem fôlego, levantando do banco e saindo apressado pelos corredores na tentativa de fugir daquilo. Samuel ainda não sabia direito como fazer aquela coisa toda. Mas conseguia compreender completamente a surpresa do rapaz, pois há pouco tempo passara por uma situação parecida.
Aquilo não podia estar acontecendo. Quem era aquele cara, o que ele queria de mim? Aquela era sem dúvida uma brincadeira de péssimo gosto. Onde já se viu fazer isso com alguém que acabou de perder uma pessoa importante?!
Saí andando rápido pelos corredores do hospital até chegar ao lado de fora do prédio. Precisava tomar um pouco de ar, colocar a cabeça no lugar. Aquela maluquice toda de anjo estava me deixando tonto. Aquele cara não passava de um impostor, eu sabia. Mas por que Sarah não conseguiu vê-lo? Ela simplesmente passou por ele como se não existisse, e pensou que eu estava falando sozinho.
Aquelas dúvidas todas estavam entorpecendo minha mente, até que ouvi uma buzina há poucos metros de mim que me tirou de meus devaneios. Eu estava caminhando no meio da rua e mal tinha percebido. Virei para o lado e dei de cara com um carro vindo em minha direção, perto demais para conseguir frear.
Sem conseguir ter qualquer reação, apenas fechei os olhos esperando por uma colisão. Ouvi a freada brusca do veículo, os pneus cantando no asfalto. Porém, por incrível que pareça, não ouve batida. Abri meus olhos e vi o carro parado a centímetros do meu corpo, com o motorista perplexo dentro dele.
Ao virar para o lado vi o tal Samuel, com grandes asas brancas abertas atrás das costas, segurando o capô do carro com as duas mãos. A lataria estava toda amassada, no entanto, eu continuava intacto. Ele havia empurrado o carro, e me salvado de uma muito provável morte horrorosa.
- E então? Acredita em mim agora? – O anjo disse um tanto sem fôlego, mas com um sorriso brincalhão no rosto.
Eu estava totalmente sem reação. Logo, as pessoas da calçada e do próprio hospital se aproximaram, me perguntando o que tinha acontecido e se eu estava bem. O motorista desceu do carro imediatamente, pedindo mil desculpas pelo incidente, uma preocupação sem medida. O único sinal que se via do meu salvamento heroico de minutos atrás, eram as marcas de duas mãos impressas na lataria do veículo.
A confusão durou mais cerca de meia hora. Não demorou muito para que a família e os amigos de que estavam no hospital aparecessem, preocupados comigo. Mas eu estava bem. Só não conseguia entender muito bem como tudo aquilo tinha acontecido. O motorista pediu mil desculpas novamente e saiu dali direto para a oficina consertar as duas marcas misteriosas no capô do seu carro. Os enfermeiros do hospital atenderam-me com primeiros socorros, apesar de eu não estar nem um pouco machucado. Tudo graças a um ser que, sendo possível ou não, impediu aquele acidente de acontecer. Todos achavam que aquelas marcas de mão eram minhas, mas eu sabia muito bem que não eram.
Assim que tudo se acalmou e a situação foi resolvida perto das duas da tarde, tive um tempo para pensar em tudo que aconteceu. Eu nunca acreditei muito em Deus, e sempre duvidei da existência de anjos ou coisa parecida. No início – e honestamente, até agora – essa história toda me pareceu loucura. Eu estava muito triste por e confuso com essa aparição misteriosa e sobrenatural, mas contra fatos não existem argumentos. Sim, agora eu acreditava nele. Não sabia se aquilo era mesmo lógico ou possível, só sabia que aquele anjo tinha salvo a minha vida. E eu estava com uma vontade enorme de perguntar a ele como e porquê.
- Porque, como eu disse, eu estou aqui pra te ajudar. E isso vai muito além de salvar o seu traseiro de ser atropelado no meio da avenida. – Eu ouvi a voz conhecida logo atrás de mim, e quando virei-me dei de cara com o próprio Samuel encostado na parede do corredor do hospital.
- Eu...
- Cara, não precisa me agradecer. Vamos poupar tempo aqui, ok? – O anjo me interrompeu, depois riu. Eu agradeci internamente por isso, afinal não sabia muito bem como agradecer uma criatura sobrenatural por me salvar da morte de um jeito fisicamente impossível. – Podemos conversar um instante?
Samuel e eu nos dirigimos até um corredor sem muita movimentação, e sentamos em um dos bancos para conversar. Eu ainda não tinha digerido completamente aquela história toda, mas queria ouvir o que ele tinha a dizer. Aliás, precisava. Anteriormente ele tinha falado algo sobre , e embora eu não estivesse entendendo nada, queria saber.
- Tudo bem, pode me explicar agora.
- Bom, , é o seguinte. Nós anjos temos como missão ajudar as pessoas que precisam. Eu estava andando pelos corredores do hospital quando ouvi seus pensamentos de angústia e sofrimento, e fui enviado para te ajudar. A sua dor é sincera e o seu sentimento é verdadeiro, e mais importante, seu coração é bom. Por isso, você terá a chance de impedir tudo isso. Você poderá pôr um fim na sua tristeza e na de todos que estão naquela sala de espera agora pelo mesmo motivo que você, poderá ter a sua amada outra vez, poderá interferir naquele acidente. Eu vou te dar a chance de impedir a morte da . – Meu coração acelerou imediatamente, quase saindo pela boca. Como seria possível?! – Mas isso não será tão fácil. Para salvá-la, você terá que escolher outra pessoa para morrer no lugar dela. Funcionará assim: todo dia de manhã quando acordar, você estará no dia do acidente. Vai ter que ir até o lugar onde tudo aconteceu e escolher dentre as pessoas que estavam lá naquele momento, quem entrará no táxi ao invés da . Para fazer esta escolha, você poderá vasculhar o passado das pessoas. Saber quem elas são, o que fazem, quem conhecem, quem amam, quem odeiam, seus erros, acertos, tudo. Depois de selecionar alguém de acordo com seus critérios, você terá que dar um jeito de colocar esta pessoa dentro do táxi. Depois que o acidente acontecer, você verá quais foram os resultados dele na vida daquele indivíduo e no que isso impactou, para ter certeza da sua decisão. Ao todo, você terá seis chances para escolher a pessoa certa. Se você quiser mudar sua escolha, basta dormir novamente e o dia se reiniciará, até que se completem seis vezes e assim seja definitivo. Caso já tenha tomado sua decisão antes desses seis dias, basta não voltar a dormir antes da meia noite. Isso vai impedir que tudo se reinicie na sua cabeça e que o dia comece de novo.
Aquilo era muita informação para processar. Minha cabeça estava a mil e meu coração pulava dentro do meu peito. Só a ideia de ter outra vez já me causava arrepios. Como aquilo era possível?! Afinal, não dá pra salvar alguém que já morreu, certo? Isso vai contra todas as leis da natureza, do espaço e do tempo.
Assim como conversar com pessoas que só você vê e ser salvo de um acidente de carro por um anjo.
Bom, eu só tinha uma certeza: ou eu estava ficando louco, ou era um cara de muita sorte. Ou talvez as duas coisas juntas.
Eu faria qualquer coisa para salvar . Tê-la de volta era tudo que eu mais queria no mundo, e embora eu não fizesse ideia de onde estava me metendo e soubesse que ia ser difícil, eu não tinha nada a perder. Por mais que fosse loucura e completamente fora da realidade, aquele anjo salvou a minha vida. Eu não sei como, mas ele salvou. E isso já era suficiente para me fazer confiar nele – afinal eu não tinha muitas opções para escolher. Precisava de um tempo para entender a situação, mas eu aceitaria qualquer proposta que me fizessem, se fosse garantido que voltaria para mim, sã e salva. Correria qualquer tipo de risco se fosse por ela, até mesmo o risco de perder a cabeça.
- E então, o que você acha? – Samuel disse, me tirando dos pensamentos em que estava imerso há não sei quanto tempo.
- Eu aceito. – Respondi, tentando afastar ao máximo todas as minhas incertezas.
- Ótimo. – O anjo sorriu. – Lembre-se de que você terá apenas seis chances, nenhuma a mais. Procure escolher a pessoa certa, ou então vai causar mais problemas do que solucionar.
Assenti com a cabeça, o medo começando a aparecer. E se por acaso eu me enganasse? E se escolhesse a pessoa errada para morrer? Como eu saberia que estou no caminho certo, como eu faria tudo aquilo que o anjo me disse? Não tive tempo de fazer nenhuma dessas perguntas a Samuel, pois quando me dei conta, ele já tinha sumido.
Fui embora para casa pensando no dia louco que tive hoje. Minha noiva morreu, eu quase fui atropelado e recebi a visita de um anjo. Eu estava triste, assustado, com medo e muito, muito cansado. Ao deitar na cama virei para o outro lado, e constatei que ele estava vazio. Eu dormiria sozinho naquela noite. Perceber aquilo me causou uma enorme sensação de vazio, e fez com que eu derramasse uma lágrima.
No entanto, pelo que parece, ainda havia uma chance. Aquele anjo misterioso com quem conversei disse que eu conseguiria ter de volta, e que amanhã eu acordarei no mesmo dia de hoje para poder impedir que tudo isso aconteça. Falar isso em voz alta fazia com que soasse ainda mais estranho e impossível, mas conseguir evitar a morte dela é tão impossível quanto ser salvo de um atropelamento por uma criatura sobrenatural – e eu fui.
Decidi deixar minhas dúvidas, tristezas e mágoas de lado e ir dormir. Amanhã a verdade virá à tona, e eu descobrirei se eu sou uma mesmo pessoa abençoada com um prêmio do destino ou se é tudo coisa da minha cabeça.
No dia seguinte quando acordei, estava deitado em minha cama no meu apartamento, com a luz da manhã invadindo meu quarto pelas janelas. Peguei meu celular no criado mudo e constatei que eram oito e meia da manhã. O calendário marcava sexta-feira, dia 28 de março – o mesmo dia do acidente. acabara de sair de casa, suas roupas estavam no cabide e a coberta bagunçada do seu lado da cama. Será que tudo havia sido um sonho? Ou será que Samuel estava certo?
Levantei-me e fui sonolento até a cozinha, e notei que havia um bilhete em cima do balcão. Peguei-o e li, dizia:
“Hoje é seu primeiro dia, . Vá até o local do acidente, estude as pessoas e coloque alguém dentro do táxi 237 antes que a entre. Não se preocupe, você vai saber o que fazer. E não esqueça, você só tem seis chances.
Samuel.”
Suspirei em resposta. Então nada daquilo era um sonho. O medo e a incerteza voltaram a me atingir. No entanto, juntamente com eles, veio a esperança de conseguir trazer de volta.
Ainda não tinha entendido muito bem como fui parar no passado, mas essa era uma pergunta para fazer a Samuel posteriormente, se é que vou vê-lo de novo. Agora, tudo que eu precisava fazer era ir até aquela avenida e me concentrar em encontrar outra pessoa para entrar naquele maldito táxi. Embora eu não saiba como.
Troquei de roupa rapidamente e fui até a 5ª Avenida para começar a minha pesquisa. Não fazia ideia de como tudo aquilo iria funcionar, mas estava disposto a tentar e fazer de tudo para aquela maluquice dar certo, pois eu queria de volta a todo custo, e ia conseguir.
Chegando lá, me deparei com a típica movimentação frenética de Nova York já pela manhã. Centenas de pessoas caminhando apressadas pelas ruas, falando em seus celulares ou dirigindo seus carros rapidamente. Seria apenas um dia normal se não fosse pelo fato de estar acontecendo duas vezes, no intuito de mudar o que aconteceu no passado.
Um tanto confuso, comecei a vasculhar a multidão de pessoas a procura de alguém para reparar o erro que o destino cometeu anteriormente. O problema é que eu não fazia ideia de como iria “investigar a mente delas” como Samuel me disse pra fazer. Infelizmente, telepatia não estava entre os meus talentos. O anjo me disse, no entanto, que quando chegasse a hora eu saberia o que fazer – e eu estava esperando isso acontecer.
Enquanto esperava por instruções divinas, fiquei passando os olhos distraidamente pela calçada. De repente, avistei um homem alto e forte correndo entre as pessoas, e isso me chamou a atenção. Olhei mais de perto, e vi que ele acabara de assaltar uma mulher que caminhava por ali, e estava levando a bolsa dela. Ela gritava desesperada enquanto o homem corria em minha direção. Foquei meu olhar sobre ele por alguns instantes.
Uma sensação estranha me percorreu. Algo começou a invadir meus pensamentos e mudar minha visão. Comecei a ouvir vozes estranhas e ver clarões ofuscantes, como flashes de câmeras. E então, não sei como, a vida do homem começou a passar como um filme em minha cabeça.
Eu via um prédio escuro e sujo, cheio de outros homens vestindo laranja sendo guardados por outros homens armados. Seu nome era David Kingman, preso oito vezes por cometer furtos e roubos a bancos. Tinha acabado de ser liberado de sua última condicional, com pena de três anos por roubar um carregamento de joias.
Ainda não sabia direito como tinha chego ali ou como estava vendo tudo aquilo. Parecia que eu realmente estava presente naquele momento, vendo o homem ser liberado da prisão. Eu olhava a minha volta e via tudo acontecer, como se estivesse assistindo a um filme com um 3D extremamente realista.
Depois de vê-lo sendo liberado da condicional, fui mais a fundo em seu passado. Presenciei de todos os roubos anteriores dele, senti-os na minha pele. O vi assaltando um supermercado, como se fosse seu comparsa, participei de um assalto uma loja de roupas de grife e muito mais.
Também o vi abordar um homem indefeso no meio da madrugada. David Kingsman encurralou-o num beco escuro e pediu sua carteira, mas ele reagiu ao assalto e acabou sendo assassinado pelo ladrão a sangue frio. Aquele fora seu primeiro crime, que o levou para a cadeia pela primeira vez há quinze anos atrás. Eu conseguia sentir tudo aquilo e via em seus pensamentos que David não hesitaria em matar de novo se fosse para conseguir o que queria, e para continuar fazendo o que sempre fazia: pegar o que não era seu.
Saí daquela espécie de visão em segundos, mas que em minha cabeça pareceram horas, ou melhor, uma vida inteira. O homem ainda corria apressado em minha direção, segurando a bolsa roubada em suas mãos. Eu continuava meio atordoado com o que acabara de experimentar, mas recuperei o foco rapidamente. Não me restava a menor dúvida, aquele cara seria o eleito. Mas como eu faria isso?
E então, como se meus pensamentos fossem materializados, David entrou no táxi de número 237 para fugir da cena do crime sem ser pego.
Aquilo foi um tanto curioso, pois eu nunca disse que o escolhera em voz alta. Mas pensei, o que parece já ter sido o suficiente para que o destino, que agora estava assustadoramente nas minhas mãos, se fizesse por si mesmo e colocasse David Kingman no táxi. Eu estava impressionado com tudo aquilo, era muita novidade e ao mesmo tempo muito controle nas mãos de uma pessoa só.
Minutos depois, assim como deveria acontecer, o veículo em que o ladrão entrou colidiu-se tragicamente com o caminhão que ultrapassou na pista contrária.
As luzes piscando, a sirene da ambulância, a aglomeração, a fumaça. Provavelmente tudo estava acontecendo exatamente como aconteceu com da primeira vez. Aquilo me causou um arrepio tremendo. Era um pouco estranho, mas eu não estava sentindo remorso por ter colocado o ladrão dentro daquele táxi. Acho que, no fim das contas, ele recebeu o destino que merecia.
Pensei que seria difícil escolher alguém para morrer no lugar de , mas até que foi moleza. Selecionei alguém logo na primeira tentativa, sem maiores esforços. Por que o destino sozinho não escolheu David e poupou o mundo de mais um marginal aterrorizando as ruas? Seria melhor levar alguém mau e perigoso do que uma pessoa boa, pensei comigo.
De repente, o som das sirenes foi ficando mais baixo e minha visão foi ficando embaçada. Todas aquelas sensações ainda eram muito novas para mim, mas, lembrando-me das palavras de Samuel, acho que sabia o que vinha a seguir.
Na minha mente, eu estava sendo levado para outro devaneio, muito parecido com o anterior. Mas desta vez, era uma visão futurística, que me mostraria as consequências daquele acidente na vida do meu escolhido.
Agora eu me encontrava em uma casa humilde, localizada num bairro carente de Nova York, onde uma mulher chorava à porta enquanto conversava com alguns policiais. Aquela era a mulher de Kingsman. Eu não sei como sabia disso, mas sabia. Ela estava recebendo a notícia do acidente de David.
Consegui sentir a tristeza dela pela perda do amado marido como se fosse minha própria dor. As lágrimas dela escorriam sem parar, enquanto lançava um olhar triste para seus filhos, Joseph, Anne e Sarah, que agora não teriam mais um pai – e não me pergunte como eu sabia sobre esses nomes. Eles estavam meio órfãos, assim como o bebezinho que a esposa esperava, e que nem sequer chegaria a conhecer David.
Kingsman não era um homem tão mau como pensei. Cometeu todos os crimes que cometeu por uma razão, muito mais nobre do que se poderia imaginar: amor. Roubava apenas para sustentar sua família, que era carente como poucas eram. Nem sequer tinham dinheiro para comer, deviam horrores ao banco e estavam prestes a terem as crianças levadas pelo conselho tutelar por não terem condições de criá-las.
Sim, David prejudicou muitas pessoas e até assassinou um homem, mas não por perversidade como pensei. Com o nervosismo da inexperiência em crimes e da consciência gritando a ele que fazia algo errado, a arma escorregou da sua mão e ele acidentalmente puxou o gatilho. Analisando novamente a cena que se repetia na visão, eu vi que nada na vida o deixara mais arrependido que aquela noite fatal em que matou o homem. Foi neste momento que comecei a acreditar na frase “as coisas nem sempre são aquilo que parecem ser”.
Grávida e desempregada, a mulher de David não conseguia enxergar uma saída para a sua vida e de seus filhos sem o marido. Sentir o desespero dela na minha pele foi uma das piores coisas que experimentei durante toda a minha vida. Meu transe me levou até mais fundo no futuro, me mostrando mais. Não demoraria muito para que o banco tomasse a casa da família e o conselho tutelar levasse os filhos para um orfanato. Nenhum deles conseguiria ser adotado, pela avançada idade e talvez pela cor de sua pele. Seus futuros tornaram-se ainda piores, pois sem educação e sem dinheiro, as crianças levariam vidas cheias de tristeza e desesperança.
Ver tudo aquilo causou uma confusão na minha cabeça. No entanto, ainda não havia acabado: o devaneio tinha uma segunda parte. Agora, eu veria o futuro oposto, o que aconteceria se eu não tivesse escolhido David para o acidente.
Caso Kingsman não entrasse no táxi, a realidade daquela família seria bem diferente. Aquela bolsa que ele tomou na 5ª Avenida seria seu último furto, para sempre. Em breve David conseguiria arrumar um emprego digno, que seria oferecido justamente pela mulher que ele assaltou, a fim de ajudá-lo a melhorar sua vida. Ele receberia a proposta para trabalhar como pedreiro, e deixaria de roubar para bancar a vida dos filhos.
Finalmente alguém enxergaria nele mais do que apenas um marginal. Ele teria uma oportunidade, que não o deixaria rico, mas seria suficiente para que sustentasse sua família e pagasse pela educação de seus filhos – inclusive o que chegaria em breve. Eles se mudariam para uma casa melhor, teriam comida na mesa todos os dias e chegariam até a comprar uma televisão.
Tudo iria começar a dar certo. A família Kingsman sairia da miséria e da pobreza para se tornar feliz e, mais importante ainda, honesta.
E então aquela estranha viagem no tempo acabou, enquanto eu ainda conseguia ouvir o choro daquela mulher desolada no fundo da minha mente.
Aquilo mexeu comigo de uma forma que jamais pensei que algo pudesse fazer. Eu estava me sentindo mal, tudo estava girando. Era uma sensação horrível ter o sangue daquele homem tão miserável nas minhas mãos, me sentindo responsável por toda a desgraça que aquele acidente traria para sua família. Parei para pensar em , e pude imaginar o quão decepcionada ela ficaria se soubesse o que eu fiz. Eu recorreria da decisão, não havia coisa mais óbvia no mundo. Eu não seria capaz de fazer aquilo e conviver com a culpa.
Segundo Samuel, caso eu me arrependesse da minha escolha, tudo que eu tinha que fazer era dormir antes da meia noite e assim o dia se reiniciaria. E era isso que eu faria, numa noite que não demorou muito a chegar.
O dia passou rapidamente e eu não consegui tirar aquela imagem horrível da mulher chorando na minha cabeça. Já eram quase dez horas quando tomei banho e decidi me aprontar para dormir, ainda ouvindo os soluços no fundo da minha consciência.
Eu vi o sofrimento em seus olhos, a desesperança total de conseguir tocar a vida sozinha, como se dependesse de David para existir. E eu me identifiquei com ela, pelo fato de ter perdido e sentido o mesmo exato vazio dentro do meu peito. Ao presenciar tudo aquilo – o que era extremamente novo pra mim – eu pude sentir o quanto o amor entre os dois era verdadeiro. Ao enxergar isso, eu soube que não poderia acabar sua história de amor para reviver a minha. Afinal de contas, todos nós temos o mesmo valor e esse é um dos meus mais fortes princípios.
Durante meu devaneio esquisito, lembro-me de ver a mulher segurando a todo tempo um colar com um pingente de chave nas mãos. Eu sabia que aquele era o colar que David havia dado sua mulher no primeiro encontro deles, pois a lembrança me deu essa informação que contribuiu ainda mais para que eu desistisse de matar Kingsman.
A história de amor dos dois me parecia muito bonita – afinal, eles não tiveram uma vida nada fácil. E aguentar tudo aquilo pelo que eles passaram sem perder o sentimento pela pessoa querida é muito difícil, o que me fez admirar os dois e me orgulhar da desistência da decisão.
Lembrar da visão da mulher segurando o colar me fez recordar meu primeiro encontro com . Nós dois nos conhecemos na faculdade, ela cursava Jornalismo e eu Arquitetura Universidade da Califórnia.
Eu e ela estávamos prestes a nos formar, e confesso que desde o primeiro dia naquela faculdade eu sempre a achei bonita, mas nunca tive oportunidade para puxar conversa. Nos falamos pela primeira vez quando ela me entrevistou sobre a poluição nas praias para fazer a reportagem do seu TCC, e desde então viramos amigos. Eu a convidei para ir ao Pacific Park no Píer de Santa Monica numa noite, duas semanas antes das férias de fim de ano.
Nós jantamos cachorro-quente e algodão-doce em alguns food trucks do parque, depois fomos à roda gigante, às montanhas-russas, ao carrossel e a praticamente todos os brinquedos de lá. não tinha medo de nenhuma atração e até gostava dos brinquedos radicais, o que me deixou impressionado, pois não era uma característica muito comum em garotas. Tivemos ótimas conversas, falamos sobre nossos cursos, sobre nossas personalidades, interesses, nossa cidade natal – que curiosamente era a mesma, Nova York – e uma série de coisas.
A conversa com fluía naturalmente. Ela conseguia falar sobre literalmente qualquer assunto e deixá-lo interessante, e nenhum de nós ficou entediado nem por um segundo. Ela também era muito engraçada, me fazendo rir na maior parte do tempo e, nossa, como era bonita. Eu fiquei hipnotizado pelo jeito como ela sorria, pelos seus cabelos voando devido à brisa do mar, pelo som da sua risada e da sua voz.
- O que está olhando tanto? – Ela perguntou sem graça depois que eu a observei por alguns instantes.
- Nada. Só gosto de olhar pra você. – Sorri.
- É por esse mesmo motivo que fica me vendo estudar toda terça-feira lá do cantinho da biblioteca? – Ela arqueou a sobrancelha, divertida.
- O quê? Eu nunca fiz isso. – Eu fiz sim. Várias vezes. sabia disso, e por esse motivo não consegui conter o meu riso e ela também.
- Bom, sabe por que eu sei? – Ela perguntou, e eu indiquei para que ela explicasse. – Eu também fico observando você. – sorriu.
Não demorou muito para que um lampejo de coragem me atingisse e eu a beijasse em frente à roda gigante. Um beijo bom e calmo, que causou em mim algo que nenhuma garota tinha causado até agora. Eu já havia saído com muitas meninas durante os quatro anos de faculdade, mas nenhuma delas me fascinou tanto quanto . Nenhuma delas era tão bonita quanto ela, mas mais importante ainda, nenhuma era tão sensível, tão misteriosa, tão inteligente e tão encantadora quanto . E eu soube disso desde a primeira vez que nossos lábios se tocaram.
- Isso pode parecer estranho – Eu disse assim que separamos o beijo. – Mas eu tenho a sensação de que minha vida vai virar do avesso por sua causa.
- Eu espero que sim. – disse, ainda com os olhos fechados, e então riu.
O resto da noite foi cheio de risos, beijos e conversas. Um pouco antes de irmos embora, e eu fomos a uma barraquinha de tiro ao alvo, e ela me desafiou a ganhar para ela a pelúcia do urso panda, que era o maior prêmio. Eu sabia que não ia conseguir, mas não dei o braço a torcer e atirei as bolinhas nas latinhas. Derrubei apenas uma. Enquanto ria, acho que o funcionário da barraquinha teve pena de mim por estar pagando mico na frente de uma garota e me deu um prêmio de consolação: um chaveiro do Batman.
começou a rir ainda mais quando viu o prêmio, e nunca me deixou esquecer daquela humilhação. Dei a ela o chaveiro de presente, e ela o guardou por um bom tempo. Até hoje o Batman está pendurado na chave do diário dela, e ela nunca o trocou. É, meu presente não era um lindo colar como o que Kingsman deu à sua mulher, mas ainda sim, tinha um significado muito grande.
Decidi abrir a gaveta do meu criado-mudo para ver se a chave continuava lá, já que boa parte dos pertences de ficavam na minha casa. E eu não estava enganado, pois lá estava o bendito Batman pendurado no molho de chaves.
Ver aquilo me deixou triste. Eu sentia muita falta dela, embora soubesse que estava fazendo tudo aquilo para tentar trazê-la de volta. Não tinha nenhuma garantia de que aquilo funcionaria ou que eu era capaz de conseguir, mas eu precisava tentar, certo? Afinal, eu não queria que minha história de amor com virasse apenas um capítulo no seu diário, guardado numa velha gaveta de lembranças.
Acordei no dia seguinte perto das oito e meia, com o sol invadindo meu quarto pelas frestas da cortina. Olhei a data no visor do meu celular, e constatei que estava novamente no fatídico dia do acidente, o que indicava que eu ainda estava metido naquela maluquice toda.
Colado em cima do despertador no meu criado-mudo, estava um bilhete. Peguei-o para ler e constatei que era de Samuel, e dizia:
“Uma pena você não ter conseguido escolher a pessoa certa ontem. Mas não desista, continue tentando e logo você vai conseguir, com certeza. Está no caminho certo, .
Samuel.”
Pois é Samuel, espero que você esteja certo, e que esse tal caminho não demore muito a terminar. Eu pretendo finalizar essa minha missão muito antes de expirar minhas seis chances, o que significa que eu devo levantar logo da cama para cumprir o meu dever e acabar logo com isso. E se o universo cooperar comigo, amanhã eu acordarei nesta mesma cama ao lado da minha tão amada outra vez, sã e salva de tudo isso. Pois, afinal de contas, era pra isso que eu estava aqui, e era nisso que irei me concentrar.
Tomei um rápido café da manhã e me dirigi à 5ª Avenida novamente, a procura do meu substituto e involuntário salvador da minha noiva. Inúmeras pessoas caminhavam apressadas por ali, cada uma com sua história prestes a ser avaliada por mim. Comecei a vasculhar a calçada com meu olhar, tentando entender como conseguiria repetir o que fiz no dia anterior para entrar na mente de um desconhecido.
Consegui sem ter que pensar muito, quando foquei meu olhar em numa mulher de aproximadamente trinta anos que usava um lenço na cabeça, e aquela estranha sensação de congelamento me atingiu novamente. Tudo ao meu redor pareceu desacelerar e, então, antes que eu pudesse me dar conta, eu já estava navegando pelo passado e pela história de Aimee Fanning.
Nascida em Washington e filha de dois franceses, Aimee era uma mulher dedicada e batalhadora. Saiu de casa cedo para tentar a vida em Nova York, e trabalhava como bióloga em uma das universidades mais reconhecidas de Manhattan. Até aí, nada de muito incomum.
Exceto por um infeliz diagnóstico médico. Aimee é portadora de um câncer no pulmão, e descobriu a doença há três anos atrás. O turbante que vi na cabeça dela enquanto andava pela calçada servia para esconder a ausência de seu cabelo loiro e ondulado, que caiu devido ao tratamento de quimioterapia.
O câncer de Aimee vem se alastrando rapidamente nos últimos dez meses, o que tem a debilitado muito. Foi afastada do trabalho por não ter condições de continuar suas pesquisas e não faz muito além de ler livros, ver filmes e cuidar de seu cãozinho Lucky. Ela vem sofrendo muito com falta de ar e crises de tosse, o que não é nada perto dos efeitos colaterais do tratamento de um paciente oncológico: desmaios, náusea, vômitos, fraqueza, mudança total no metabolismo e em todo o resto do seu corpo.
Sair de casa hoje foi uma adversidade que acontece pouquíssimas vezes devido ao estado dela. O motivo foi a consulta com seu médico, para avaliar o seu quadro de saúde atual. As notícias não eram nada boas: Aimee não possui mais do que alguns meses de vida. O diagnóstico não a surpreendeu, afinal de contas a situação em que se encontrava nos últimos tempos fez com que a estimativa dos médicos só confirmasse aquilo que ela já suspeitava: estava morrendo.
Sua situação era horrível. Acabara de deixar o consultório de seu médico para ser transferida para o hospital, onde seria internada e provavelmente passaria seus últimos dias de vida trancada num quarto, sofrendo ligada a diversos aparelhos. Sua irmã, que a acompanhava, ofereceu-se para ir com ela buscar alguns pertences em sua casa, mas Aimee preferiu ir sozinha e desfrutar de seus últimos momentos de autonomia, antes de seu triste fim.
Saí de sua mente um tanto atordoado. Afinal não seria pra menos, já que senti, ainda que por pouco tempo, todas as dores e sensações de ser um paciente com um câncer terminal pelas lembranças dela. Aquilo tudo ainda era muito novo para mim, sentir as coisas como se fosse outra pessoa. Tanto a parte psicológica quanto a física ficam muito debilitadas devido à doença. A queda da imunidade, a fraqueza corporal, a queda de cabelo, as dores musculares, o mal estar constante, o efeito de dezenas de remédios e comprimidos no corpo... a saudade de estar saudável, o medo de deixar toda a rotina para trás, a tristeza por encontrar-se naquela situação, o pensamento constante de que a morte está cada vez mais próxima. É muito horrível.
Precisei de alguns instantes para tomar fôlego depois de passar por tudo aquilo na minha cabeça. Respirei fundo, e então recuperei a consciência. De volta para a minha missão.
Pensei alguns minutos sobre se deveria selecionar Aimee ou não. Escolhê-la seria quase como fazer um favor a ela, e acabar com seu sofrimento antes mesmo que seu prazo de alguns meses expirasse. Ao menos toda a situação na qual ela esteve durante esses três anos de tratamento resultariam em algo bom, certo? Já que sua vida iria acabar, pelo menos acabaria para salvar a de outra pessoa. Não era a mais fácil das decisões, mas eu senti que, se soubesse o que estava fazendo, Aimee iria ficar feliz em poder ajudar.
E então, concretizando minha escolha mental, a mulher tomou o táxi 237, para ir até sua casa buscar suas coisas antes de ser internada no hospital.
Qualquer um que visse aquela cena de fora pensaria que fora apenas uma coincidência do destino o acidente que aconteceu logo a seguir, mas eu sabia que estava longe disso. O táxi de Aimee chocou-se contra o caminhão como deveria, e como apenas eu sabia que iria acontecer. As sirenes, as luzes da ambulância, a fumaça da colisão. Tudo acontecendo novamente. E pensar que, dias atrás, ao invés de Aimee, a mulher que estava sentada no banco de trás daquele táxi era .
E então, da mesma forma que no dia anterior, eu me senti sendo levado para um lugar longe dali, mas que na verdade não saía da minha própria mente. Era outro devaneio, mas dessa vez para o futuro.
Quando disse que Aimee era uma mulher dedicada e altruísta, e que iria se sentir feliz em morrer para ajudar outra pessoa, eu estava certo. A mulher era dona de uma instituição de caridade que cuidava de animais abandonados, tanto domésticos quanto silvestres que haviam sido contrabandeados ou encontrados a beira de estradas e praias. Ela presidia a associação desde que se mudara para Nova York, e fundou-a quase sem nenhuma ajuda, puramente por amor. Help 2 Animalz era o nome da instituição, que atendia mais de trezentos animais em uma fazenda nos arredores da cidade. Inclusive, um dos primeiros pacientes atendidos pela fundação foi Lucky, seu cãozinho, de quem falei anteriormente. Foi assim que Aimee o adotou.
Os animais domésticos, como cães e gatos, eram tratados e cuidados até que encontrassem um novo lar na feirinha de adoção que acontecia aos finais de semana. Já os animais silvestres contavam com os cuidados de veterinários voluntários para serem medicados e supervisionados, já que a maioria chegava à instituição muito debilitada devido ao contrabando ou ao ambiente hostil. Depois de serem devidamente tratados, os animais eram re-socializados e então retornavam à natureza. O trabalho realizado por Aimee era incrível e muito bonito, e ao longo de toda a sua jornada já havia atendido mais de sete mil animais das mais variadas espécies.
Trabalho este que foi interrompido depois de um trágico acidente de carro na 5ª Avenida. Com a morte de sua fundadora, a instituição iria encontrar muitas dificuldades e se afogaria em dívidas por falta de colaboração e de doações. O banco iria tomar a fazenda e todos os duzentos animais seriam transferidos para zoológicos de segunda mão ou seriam simplesmente soltos em qualquer lugar por agentes do governo totalmente despreparados. A maioria deles iria acabar morrendo, ou de fome ou devido ao comércio. Sem dúvidas seria um fim muito triste ao lugar que um dia proporcionou tanta esperança.
Mas, como eu disse, os pulmões de Aimee foram brutalmente atacados por um câncer no meio do processo de administração da Help 2 Animalz. Ela continuou mantendo as coisas funcionando mesmo doente, mas segundo o diagnóstico ela acabaria indo embora depois de alguns meses e tudo daria errado do mesmo jeito, certo? Errado.
Contrariando as expectativas dos médicos, Aimee conseguiria sobreviver durante muito mais tempo do que o esperado. Por um milagre, conseguiria se curar do câncer e voltar a respirar sem a ajuda de aparelhos. Poderia voltar a trabalhar em suas pesquisas na universidade, e mais importante, continuar a trabalhar cuidando dos seus animais abandonados.
Alegre e cheia de saúde, a moça viveria por tempo suficiente para que a sua instituição florescesse e ganhasse patrocínios para bancar as despesas com os medicamentos e o estabelecimento, se tornando uma das maiores instituições de caridade do país. Ela conseguiria ajuda de muitos voluntários para tocar o negócio, que só cresceria com o passar dos anos. A Help 2 Animalz ajudaria milhares e milhares de animais indefesos ao longo do tempo, mesmo depois que Aimee falecesse já com uma idade avançada – e, mais importante, livre de qualquer sinal de câncer em seu corpo.
Eu posso não ser o cara mais emotivo do mundo e posso não chorar assistindo a Marley & Eu, mas eu jamais seria capaz de acabar com uma organização beneficente tão importante quanto a de Aimee. Não sou tão frio a ponto de conseguir viver com o sangue de tantos animais inocentes e indefesos em minhas mãos, não mesmo.
São poucas as pessoas no mundo hoje em dia que estão dispostas a doar seu tempo e dinheiro para cuidar de algo que não sejam elas mesmas. São ainda menores as porcentagens delas que dão atenção especificamente para animais, que tecnicamente são inferiores e inteiramente dependentes de nós humanos. Ainda mais aqueles bichos que estão abandonados e traumatizados devido a maus tratos e abandono. Esses sim, ninguém dá a mínima mesmo.
Aimee é uma das poucas almas boas que realmente se preocupa com essa causa e faz algo para mudar essa realidade. E eu jamais colocaria alguém como ela dentro daquele táxi, pois tenho o mínimo de senso de justiça. Até porque, o motivo real pelo qual eu a escolheria nem sequer é mais válido – o câncer não a mataria, afinal de contas. Se não fosse pelo acidente, Aimee ficaria viva por muito tempo e levaria alegria e inspiração para muitas pessoas e animais também.
Então a decisão era essa, eu recorreria. Vou precisar tentar de novo amanhã e continuar a busca pela pessoa certa para sacrificar pela vida da . Se é que existe mesmo alguém certo pra isso.
O resto do dia passou rapidamente e quando era perto das sete horas da noite eu já estava em casa. Tomei um belo banho e comi qualquer coisa que estava na geladeira, e então era hora de dormir. Eu teria outro dia cheio amanhã, continuando a minha caçada pela pessoa ideal para cumprir a missão de salvar a vida da minha noiva.
Ah sim, . Eu sentia tanta falta dela. Mais do que qualquer um poderia imaginar, mais do que eu mesmo pensei que sentiria no momento em que soube que ela partira. É incrível a falta que uma pessoa querida faz em nossa vida quando se vai, e essa é a maior prova de que não podemos viver uns sem os outros.
É um pouco estranho, mas Aimee me lembrou um pouco ela. Era doce, gentil, se preocupava com os outros e nunca se deixava abater por nada. E, aliás, era muito bonita também. Tinha olhos meigos e um sorriso brilhante, assim como os de .
Abri a gaveta do meu criado mudo e avistei o diário de lá dentro. Nunca fui um namorado invasivo, mas, agora que ela se foi, uma curiosidade imensa me atingiu para saber o que ela escrevia lá dentro. O que será que ela pensava? Será que desabafava nessas páginas? Será que escreveu algo sobre mim? Lembrei-me da noite anterior e do flashback que tive, então peguei o molho de chaves com o chaveiro do Batman e abri o cadeado do pequeno livro.
Deitei-me na cama e comecei a ler. Iniciei numa página aleatória, com a data de 26 de Julho de cinco anos atrás. “Querido Diário,
e eu fomos passear de barco na praia de Santa Barbara hoje, durante as nossas férias de verão. Só eu, ele, as ondas, a brisa do mar, um dia lindo com o sol se exibindo e um céu totalmente azul. Passamos a tarde toda em alto mar conversando sobre nossas vidas e rindo de coisas sem sentido, como sempre fazemos. Trouxemos alguns aparelhos de mergulho que alugamos no hotel e mergulhamos para ver os peixes e corais na água cristalina do mar. Que coisa linda! Mergulhar é um dos meus hobbies favoritos, e esse foi de longe um dos melhores mergulhos que fiz. Vimos diversas espécies de peixes, crustáceos, e até mesmo uma tartaruga marinha com seus filhotes. O mar é realmente incrível. Foi um dia maravilhoso, na companhia do cara mais maravilhoso que já passou pela minha vida.
Ficamos lá até entardecer e assistimos ao pôr do sol sentados na beirada do barco, abraçados. Você devia ter visto o quanto ele fica lindo com a luz alaranjada do entardecer iluminando seus cachinhos e ressaltando seus olhos verdes. Começo a pensar que é a melhor coisa que já me aconteceu, pois nunca um cara foi tão bom pra mim como ele é, e eu nunca me senti tão amada. Queria que este dia nunca acabasse, pra que eu pudesse ficar pra sempre naquela cena, observando-o. Só eu e ele, e mais ninguém no mundo. Isso seria perfeito.”
Terminei de ler aquilo com lágrimas nos olhos. Sim, , eu também gostaria de poder viver naquele momento para sempre, pra que o tempo nunca passasse e você nunca tivesse que se afastar de mim desse jeito. Mas, infelizmente, o tempo não espera por ninguém.
Eu me lembrava perfeitamente daquele dia. Foi a primeira viagem que nós dois fizemos juntos, e realmente foi muito divertido. Vimos diversos peixes, conversamos e rimos bastante, comemos deliciosos sanduíches que compramos numa lanchonete na beira da praia, e passamos um ótimo tempo juntos. E aquele pôr do sol no final veio apenas para fechar o dia com chave de ouro.
Era curioso ver aquele momento pela perspectiva dela. Ainda mais com tudo que ela escreveu sobre mim. Ler que ela queria congelar o tempo e que nunca se sentira tão amada na vida me deixou lisonjeado, mas ao mesmo tempo, me deu uma tristeza enorme. Eu queria tudo aquilo de volta.
Sempre soube que era um homem de sorte por ter ao meu lado, mas eu acho que nunca dei tanto valor ao fato de tê-la comigo como dou agora. Aquelas palavras só serviram para me motivar ainda mais a encontrar a pessoa certa para o acidente, pois eu daria qualquer coisa para poder levar à praia outra vez, para poder assistir a outro pôr do sol com ela e para preencher mais páginas e páginas deste diário com as nossas histórias.
Li mais algumas páginas aleatoriamente, em que falava sobre seu trabalho, sua família e suas amigas. Ela era uma garota feliz, alegre, e eram raras as páginas daquele diário em que ela falava sobre alguma coisa que a deixara triste. Ela realmente amava viver, e isso sempre foi algo que eu admirei nela.
. Eu não teria outra definição para ela a não ser um anjo que decidiu vir a Terra apenas para iluminar o mundo de quem quer que a conheça. Uma garota incrível, linda por dentro e por fora de uma maneira que poucas são. Nunca conheci alguém como ela em toda a minha vida.
Ela era totalmente fascinante. Era uma junção de diversos opostos, e você nunca sabia o que esperar dela. Era impossível ficar entediado ao seu redor, pois ela estava sempre surpreendendo. Por fora, parecia uma garota normal, mas escondia dentro de si uma grande reunião de paradoxos e características só dela. Tinha vários lados, um mais incrível que o outro. Nunca pude conhecê-la por completo, e acredito que nem ela mesma o fez.
era um enigma gigantesco, e acho que às vezes nem ela se entendia. Era misteriosa e ao mesmo tempo incrível. Era imprevisível, e talvez fosse isso que a tornasse tão encantadora. Apesar de ser sempre aberta e transparente, era muito enigmática. Por mais que não tivesse nada a esconder, havia nela algo que despertava a curiosidade, que te fazia querer conhecê-la. E aceitar isso, meu amigo, era como mergulhar num profundo e maravilhoso oceano de charadas.
Era muito inteligente, sempre tirava as melhores notas no colégio e na faculdade. O estudo para ela, ao contrário do que é para muitas pessoas, representava um tipo de conexão com o mundo, e ela amava estudar. Fosse história ou matemática, geografia ou filosofia, ela queria saber mais e mais. Segundo ela, estudar é a melhor forma de conhecer e perceber o universo à sua volta.
Sempre foi curiosa, desde criança segundo sua mãe. Sempre investigando tudo, percebendo os mínimos detalhes de todas as situações, nunca deixando escapar nada. Era esperta, perspicaz, tinha resposta para tudo. Costumava sempre notar os pormenores, aqueles que ninguém dá importância. Era difícil mentir para ela. Sempre que alguém tentava enganá-la, ela percebia. sempre estava um passo a frente, e sabia disso. Tinha raciocínio rápido, e solucionava todos os problemas que lhe apareciam. Era uma perfeita sabe-tudo, daquelas que chega a dar raiva de tanto que sabe.
Ela também adorava ler. Sempre tinha um livro dentro da bolsa, e o levava para onde fosse. Leria até no chuveiro, se isso não molhasse as páginas dos seus preciosos livros. Ela adorava conversar comigo sobre eles, me contava as histórias como se fossem as coisas mais fantásticas do mundo. E, ouvindo pelas palavras dela, eram mesmo. fazia tudo parecer interessante, pois pra ela aquele universo era único e fantástico. Ela era muito criativa, e parecia até uma criança falando sobre suas histórias. Lia os mais diversos temas, desde sagas e romances até filósofos da Grécia Antiga. Na casa dela há uma prateleira imensa com todos os títulos que já leu, e ela não trocaria aqueles livros nem por todo o dinheiro do mundo.
Ela também amava música. Ouvia o tempo todo e em todo o lugar, e aquilo era um tipo de escapatória do mundo pra ela. Gostava de ouvir bandas e cantores de rock antigos que acabaram ou morreram antes mesmo de ela nascer. Mas também curtia pop, e costumava assistir aos clipes da MTV e dançar pela casa ao som de qualquer sucesso atual. Sabia cantar, tocar violão e piano. Tinha uma voz doce e melodiosa, e eu adorava ouvi-la cantando ou tocando. Sabia desde pequena, e era muito talentosa. Nas palavras dela, a música era um tipo de tratamento que curava tudo o que a medicina não conseguia curar, e trazia alegria para a vida.
Qualquer tipo de arte a encantava, pois apesar de ser muito intelectual, a sua parte criativa era muito viva. Gostava de fotografia, andava sempre com sua câmera na bolsa. Costumava fotografar desconhecidos ou qualquer objeto que achasse interessante, alegando que a poesia da vida encontrava-se nos lugares mais inusitados do ambiente. Ela também gostava muito de teatro, fazia aulas na época da escola e sempre que alguma peça legal estava na cidade ela me convidava para ver. Simplesmente adorava assistir aos atores se expressando por meio dos personagens, achava tudo muito mágico, e era praticamente dona de uma cadeira no anfiteatro da Broadway, pois via todos os espetáculos. também escrevia muito bem, e acho que esse era um de seus maiores talentos. Ela era muito habilidosa com as palavras, às vezes acordava no meio da noite e a abria seu notebook só para escrever seus textos ou poesias. Se utilizava dos mais variados temas, escrevia sobre o que quer que tivesse na cabeça. E que cabeça maravilhosa ela tinha, refletida em suas palavras. Sempre quis que ela escrevesse um livro ou coisa parecida, mas ela nunca me deu ouvidos.
sempre foi muito fofa e chamava a atenção com sua doçura e gentileza. Possuía um sorriso angelical, que se parecia com o conforto de um lar para quem tivesse o prazer de recebê-lo. Tinha esse lado adorável dentro de si, como se fosse uma princesa. Mas ela sabia como virar o jogo e ser exatamente o oposto quando queria. Seu sorriso meigo rapidamente se transformava em um olhar fatal. Podia ser extremamente sexy e provocar a qualquer um, pois era uma mulher bonita, e era difícil resistir a ela quando lançava esses olhares.
tinha um jeito fofo e delicado, mas quando alguém a irritava, Deus, era melhor sair de perto. Uma garota de um metro e sessenta pode não parecer muito ameaçadora, mas não quando se trata de . Às vezes, podia ser muito teimosa e cabeça dura, e não aceitava não como resposta. Ela era explosiva, costumava perder a paciência muito fácil, às vezes por coisas bobas. Tinha pavio curto, e puxara isso do seu pai segundo ela. Era barraqueira assumida e adorava se meter em uma boa discussão, às vezes só para se divertir.
Era uma mulher muito decidida e confiante, sempre sabia o que queria. Era forte, corajosa e independente, e gostava de ser assim, dona do próprio nariz e do próprio destino. Mas detestava ter que fazer grandes escolhas por medo das consequências, pois de vez em quando uma pequena falta de confiança a atingia. Não gostava de sentir a pressão nem de se sentir julgada por ninguém. Era uma mulher muito forte, mas bastava tocar em seu ponto fraco para vê-la desmoronar. Como um castelo de cartas, muito bem equilibrado até que uma única carta fora do lugar baste para abalar toda a sua estrutura. Embora nunca caísse realmente.
também era muito sociável e simpática, se entrosava fácil a onde quer que fosse e era muito extrovertida. Adorava conversar e rir, era sempre atenciosa com todos, e tinha um carisma inconfundível. Porém, era um pouco tímida por dentro. Conquistar a amizade sincera dela era difícil, e poucas eram as pessoas em sua vida que mereciam o título de amigos. Se dava bem com todo mundo, mas sabia muito bem em quem podia confiar. E a sua confiança era algo precioso, pois era muito difícil de ser conseguido, e se perdido era difícil de se recuperar.
Com tanto estudo e leitura, era muito visionária. Às vezes, eu e ela tínhamos debates no meio da madrugada sobre temas atuais como a fome na África ou política, e ela adorava falar sobre isso. Era muito inteligente. Tinha uma opinião forte, e seu poder de convencimento era enorme. Aprendi muito com ela durante essas madrugadas, pois a visão de mundo dela era incrível. Tinha resposta para tudo, sempre muito racional. Poucas mulheres hoje em dia são assim, e se interessava muito por tudo que era atual e gerava debates. Ela não era rasa. Possuía muito conteúdo e sempre surpreendia a todos quando dava suas opiniões, pois não parecia ter a idade que tinha quando começava a falar. Era muito madura.
Mas, apesar disso, ainda tinha um espírito de criança. Nunca negava ir a um parque de diversões ou tomar sorvete na beira da praia. Adorava assistir a filmes infantis com finais felizes, brincava com seus primos e sobrinhos mais novos e sempre arrumava algum jeito de aprontar. Saía correndo no meio do shopping lotado, ouvia música alta e dançava como se ninguém estivesse olhando, sempre fazia piadinhas e brincadeiras com todo mundo que conhecia e adorava nos fazer pagar mico. Mas, principalmente, estava sempre alegre.
Foram raras as vezes em que vi chorar. Exceto por quando ela assistia filmes como Marley & Eu ou Um Amor Para Recordar, que mexiam com seu coração de manteiga derretida. sempre foi muito da emoção, em todos os seus sentidos. Levava-se facilmente pela situação, pois seu coração às vezes falava mais alto do que o seu cérebro. Nunca se privou de sentir nada, principalmente alegria. Acho que essa era a característica mais marcante dela, e consequentemente a que eu mais sentia falta.
era uma garota feliz, e isso qualquer um podia ver. Possuía a habilidade de trazer todo mundo pra cima sem fazer o menor esforço. Ela era como um raio de sol quando chegava nos lugares, e sua simpatia e seu jeito meigo sempre chamavam a atenção de todos, sem que ela quisesse ou percebesse. Se havia algo ruim na atmosfera da sala, ia embora no minuto em que ela entrava.
Ela possuía alegria na voz, que exalava a cada “bom dia” animado pela manhã. Os colegas de trabalho dela diziam isso o tempo todo, e era verdade. Ela fazia questão de conversar sempre com todo mundo. Cumprimentava desde o dono da empresa até as funcionárias da limpeza. Sendo desse jeito, tinha a oportunidade de conhecer um pouco sobre cada um que passava por ela, e saber das mais diversas histórias. O olhar sincero dela de encontro com o seu passava confiança, serenidade. Sempre prestava atenção a cada detalhe do que a pessoa estava dizendo, e era uma ótima ouvinte. Tinha um quê de psicóloga, adorava dar conselhos e cuidar de todos a sua volta.
Talvez a razão para ser tão alegre fosse o enorme coração dela. era incapaz de prejudicar quem quer que fosse, pois tinha uma alma pura. Acreditava no bem das pessoas, sempre as via com a maior compaixão do mundo, até mesmo se fosse um assassino. Adorava ajudar os outros, e fazia isso sempre que podia. Sempre teve a habilidade de ver as coisas pelo lado bom, procurar uma perspectiva diferente, tentar tirar boas lições de tudo que lhe acontecia. E além disso, nunca perdia a esperança. Era a última a desistir de algo ou alguém, e sempre acreditou em mudanças para melhor. Eu ficava impressionado com o tamanho da sua inocência, e como isso ao mesmo tempo a fazia extremamente sábia.
Estar com trazia uma paz inexplicável a quem quer que estivesse com ela. Ela tinha um olhar de criança, e um sorriso que poderia iluminar o mundo. Era carregada de boas energias, estava sempre de alto astral, rindo, cantando e sorrindo, e fazia com que todos ao seu redor se sentissem da mesma forma. Possuía uma luz única dentro de si, e acho que foi isso que sempre me encantou nela. O poder que ela tinha de sempre fazer tudo ficar bem e de nunca desanimar. A felicidade vivia em . Não importava a situação, ela sempre conseguia fazer qualquer um sorrir.
Ela era o complexo de muitas personalidades juntas. Era meiga e explosiva, inteligente e inocente, fofa e sensual, confiante e indecisa, delicada e agressiva, sincera e misteriosa, criança e madura, confusa e encantadora. Ela era o céu e o inferno, o frio e o quente, o doce e o salgado, o preto e o branco, o bem e o mal, tudo reunido numa única pessoa só. sempre soube desses seus dois lados de tudo, e usava isso a seu favor. Escolhia qual lado seu iria mostrar, e essa era uma de suas maiores habilidades. Mas, ao mesmo tempo em que tirava proveito disso e tornar-se misteriosa, era ainda melhor quando fazia isso sem perceber. Pois mesmo que fosse muito boa em lidar com emoções, quem a conhecia de verdade da maneira como eu fazia, sabia muito bem o que se passava na cabeça dela, mesmo que ela tentasse esconder. Mesmo sendo tão paradoxal, ainda sim era possível reconhecer a sua personalidade naturalmente boa e sensível. E isso, no fundo, ela nunca fez questão de esconder. Sempre foi o que era, uma bagunça enorme de sentimentos e características que eram confusas e incríveis ao mesmo tempo. E era isso que a tornava tão única e especial.
E era isso que me fazia sentir tanto a falta dela. Pensar sobre só fazia aumentar em mim aquela sensação de que eu jamais serei feliz outra vez sem ela. Ela iluminava meu mundo, fazia minha vida mais feliz e divertida, mas mais ainda, fazia com que tudo valesse a pena. Sem tê-la aqui, o mundo parecia mais triste, cinza. A casa estava vazia, e parecia grande demais só pra mim. Eu sentia falta de ouvir sua risada ecoando pelas paredes, de sentir o cheiro da sua comida na cozinha, de sentar perto dela para assistir televisão, de ter o corpo dela deitado ao lado do meu na cama. Eu não podia negar, minha vida não era a mesma sem .
Pensar sobre tudo isso me faz questionar por que o destino escolhera alguém tão maravilhosa como ela para ter um fim tão terrível. Mas, ao mesmo tempo, estando nessa experiência tão confusa pela qual estou passando, em que tenho que brincar de destino, também penso: se não for ela, então quem?
Eu não faço a mínima ideia, mas quero descobrir. Aliás, preciso descobrir. Pois essa é a única maneira de trazer minha de volta, e eu juro por Deus que vou fazer isso, custe o que custar.
Acordei no dia seguinte (na verdade era no mesmo dia, mas... é confuso) com o sol entrando pelas brechas das cortinas como sempre. Hora de continuar minha missão. Levantei-me sonolento e fui até o banheiro, onde havia um recado escrito no espelho usando o vapor.
“Terceiro dia, amigão.
Sei que isso deve ser exaustivo pra você, , mas continue tentando. Uma hora vai conseguir.
A propósito, achei muito fofo o modo como falou da e daquele passeio de barco que fizeram. Vocês são uma gracinha juntos.
Samuel.”
Achei aquela menção à noite passada muito esquisita. Será que Samuel me observa enquanto estou cumprindo a minha missão? Ou será que consegue ouvir meus pensamentos? Seja lá como for, é muito curioso que ele saiba da minha reflexão de ontem. E é igualmente curioso o fato de ele poder me observar, e até um pouco intimidador.
Bom, não importa muito. Tudo que importa agora é achar outra pessoa para colocar naquele táxi e, com sorte, a escolha de hoje será a certa.
Tomei um rápido café da manhã e peguei meu rumo para o conhecido destino da 5ª Avenida. Lotada e caótica como sempre, e, portanto, perfeita para reiniciar a minha busca.
Comecei a vasculhar a multidão com o olhar a procura de alguém que despertasse meu interesse. A primeira pessoa que analisei foi um cara mais ou menos da minha idade, chamado Jesse Nickelson. Enfermeiro, recém-casado, vivia num bairro de classe média de Nova York... totalmente comum. Não parecia ter motivos suficientes para que eu decidisse matá-lo. Pois, afinal, era isso que eu tinha que fazer, no fim das contas. Isso soava muito mais cruel admitindo em voz alta, mas era a verdade – eu estava procurando alguém para assassinar.
Alguns minutos mais se passaram, e quando pensei que não iria encontrar ninguém, meu olhar cruzou-se com Monica Ross. Fisioterapeuta, 34 anos, e um belo coração partido. Ela chamou minha atenção por estar chorando, então decidi investigá-la e descobrir a razão para suas lágrimas.
Não demorei muito para entrar na mente conturbada da mulher. Monica era uma boa pessoa, nunca fizera nada de errado, pagava suas contas em dia e vivia de acordo com as leis. No entanto, havia alguém em sua vida que não dava muito valor para a boa pessoa que ela era. Seu marido, Josh Peterson, havia a traído e largado recentemente. Foi um divórcio muito difícil, e Monica acabara de sair do tribunal para assinar os papéis.
Josh trocou-a por uma mulher mais jovem e mais bela chamava Vanessa, uma colega de trabalho dele que não entende muito bem o conceito de homem casado. O casamento de Monica e Josh já não andava bem há tempos, e ele a largou sem mais nem menos assim que ela descobriu da traição ao ler as mensagens no celular dele. Isso a deixou arrasada. Vivia a vida em função do marido, e agora que ele se fora, não tinha mais sentido para sua existência.
Eu conseguia sentir sua dor escorrendo pelo rosto na forma de lágrimas. Perder alguém que se ama tanto é horrível, e posso dizer isso por experiência própria. Monica voltou a morar na casa de sua mãe, perdeu o emprego e a casa onde morava, que ficou para o marido e sua nova namorada. O problema que estava nas mãos de Monica era grande demais para que ela conseguisse lidar com ele. Ela entrou em depressão, e viveu os últimos meses a base de remédios para controlar a ansiedade e suas crises de choro. Seus amigos se afastaram, sua família era muito ausente e ela não tinha ninguém para dar-lhe apoio. A vida de Monica perdeu o rumo, e ela já não tinha mais nenhuma esperança de recuperá-lo.
O que a levou a tomar uma decisão de puro desespero e falta de esperança: se suicidar. Aliás, era isso que ela estava indo fazer neste momento. Ia voltar para casa e aumentar a dose de seus remédios para dormir, para que entrasse então num profundo e eterno sono, com esperança de que isso abafasse sua dor.
Presenciar tudo aquilo me trouxe um enorme sentimento de pena. Antes de conhecer eu sempre gostei de sair com garotas, mas tinha um sério problema em partir seus corações. Sempre evitei ao máximo magoá-las, pois não acho certo fazer isso. Ver uma mulher chorar era a pior coisa do mundo pra mim, e saber que um cara babaca como Josh desprezou tanto assim uma mulher como Monica me revoltou. Ver que ela estava tão desesperada a ponto de se matar por um cara como ele me deixou muito mal, especialmente pelo fato de ela não merecer nada disso.
Mas eu jamais poderia impedir que ela fizesse isso. Não posso trazer o marido dela de volta. Sa[i da mente dela alguns minutos depois, refletindo sobre tudo que vi.
Monica não desistiria de se suicidar. E, já que ela pretende morrer de qualquer jeito, por que então não morrer para salvar a vida de outra pessoa? Aquela me pareceu uma boa alternativa. Pelo menos a morte dela valeria a pena e seria por uma causa nobre, certo? Não vejo razão para não escolhê-la, a não ser pelo fato de que seria melhor que ela não tivesse que morrer – mas a decisão foi dela.
Então essa foi a minha escolha. Prendi meu olhar a ela e visualizei-a entrando no táxi na minha mente, e então tudo se concretizou. Monica entrou no táxi 237 para ir até a sua casa, onde iria tomar a atitude à procura do seu fim. E de fato ele viria, mas não da forma como ela esperava.
Não demorou muito para que o táxi colidisse com o caminhão, gerando fogo, barulho, impacto e um trânsito extremamente engarrafado – ainda mais do que o normal. E lá estava eu, assistindo novamente aquela cena toda.
Estar na presença daquele acontecimento todos os dias me causava arrepios, talvez pelo fato de eu saber que era o responsável por tudo aquilo. E enquanto eu pensava sobre isso, uma escuridão tomou conta da minha mente e veio me levar para um devaneio diferente: as Consequências.
Eu estava em um prédio alto com vidraças que iam do chão até o teto, vendo um homem de terno sentado em sua mesa e encarando a paisagem do centro da cidade. Ele parecia pensativo, confuso, como se travasse uma batalha interna consigo mesmo. Aquele era Josh Peterson, o ex-marido de Monica.
Me aproximei um pouco mais do homem confuso sentado à mesa, e então pude ouvir o que estava pensando. Ele pensava nela. Monica. Passava a cena de hoje mais cedo de novo e de novo em sua cabeça, quando a vira sair correndo e chorando do tribunal após assinar os papéis do divórcio. Aquilo realmente mexeu com ele.
Sim, a sua atual, Vanessa, era muito bonita. Era sete anos mais jovem que ele, tinha um corpo escultural, era loira com 1,70 de altura, e ele invejava a todos os seus colegas de trabalho por estar com ela. Mas ela era... vazia. Só pensava em festas, viagens, fazer compras e ir ao cabeleireiro e à manicure. Ele nem sequer sabia se ela realmente o amava, pois ela nunca tinha dito e ele também nunca perguntou. E, pra ser honesto, nem sabia se ele próprio a amava, pois nunca perguntara a si mesmo como se sentia.
A relação com Vanessa era puramente carnal. Se fosse para colocar tudo em uma balança, era bem provável que uma mulher jovem, alta e bonita como ela só estivesse com um homem rico como Josh por dinheiro. A chance de isso ser verdade era grande, e essa ideia o assustou assim que surgiu em sua mente.
A verdade é que Josh não a amava de verdade. A pessoa que realmente tinha seu coração e sempre teve era a mesma que ele fez chorar hoje mais cedo, e ele nunca se sentira tão arrependido. Monica era seu verdadeiro amor. E por que não seria, afinal? Era simplesmente a mulher mais incrível do mundo, muito honesta, gentil, inteligente, fiel... E daí que ela não tinha longos cabelos dourados ou uma barriga lisinha? Era ela quem ele queria, no fim das contas.
Mas como convencê-la de que ele finalmente percebera isso depois de tudo que fez? Confesso que eu também não acreditaria que ele mudou de ideia, se não estivesse ouvindo esses pensamentos por mim mesmo, e sentido a veracidade deles. O tamanho do arrependimento de Josh era imenso, tão grande que não caberia naquele prédio inteiro. Mas junto com esse momento de clareza, veio a tristeza por imaginar que Monica jamais o perdoaria por isso.
Mas valeria a pena tentar, certo? Afinal, era o amor dela que estava em jogo, e ele acabara de descobrir que faria qualquer coisa para tê-lo de volta.
Josh tirou o dia de folga do trabalho. Saiu do escritório e ligou para Vanessa para dizer que os dois tinham acabado, então correu até a floricultura para comprar um buquê de flores. Ia até a casa de Monica para se desculpar e tentar consegui-la de volta, embora aquilo não fosse fácil. Josh não era do tipo que dava o braço a torcer, e por ela seria capaz de tudo, ainda mais agora. Estava correndo pela calçada das ruas para chegar até a casa dela, quando recebeu uma ligação.
Era do hospital, dizendo que Monica tinha morrido em um acidente de carro. Ele ainda era o primeiro número na lista de contatos dela, e por isso ligaram pra ele. Não havia mais nada que ele pudesse fazer.
Aquilo simplesmente acabou com ele. Josh realmente tinha esperança de conseguir resgatar o amor que desperdiçara, mas agora ele morrera com Monica. Ele desligou o telefone com lágrimas nos olhos, e jogou o buquê de flores que carregava no lixo.
Aquilo foi duro de assistir. Vi nos olhos dele aquele sentimento familiar a mim, de que nunca mais conseguiria ser feliz outra vez sem ter a mulher de sua vida ao seu lado. Josh nunca se sentira tão arrependido em sua vida. Não só por nunca mais poder vê-la outra vez, mas por ela ter morrido sem que ele pudesse dizer o quanto sentia muito e o quanto a amava de verdade.
Então minha visão ficou turva novamente, enquanto eu o observava caminhar cabisbaixo pela calçada. Eu fui levado para a outra opção do futuro, a que aconteceria caso o acidente não ocorresse. E que, sem dúvidas, tinha um final mais feliz que esse.
Caso Monica não tivesse entrado naquele táxi, iria para casa para tentar suicídio, mas não conseguiria. Teria uma crise de choro enorme novamente e ficaria encarando os comprimidos o dia todo. Isso daria a Josh tempo suficiente para pensar bem sobre suas escolhas e perceber que Monica era realmente a mulher certa pra ele. Ele compraria flores e terminaria com a namorada assim como vi nas consequências, e iria até a casa dela.
Chegaria momentos antes de ela engolir o último punhado de comprimidos de Rivotril que tinha nas mãos. Ele a impediria de se suicidar, tomando os comprimidos da mão dela e a levando ao hospital. Monica já tinha ingerido uma grande quantidade de remédios, mas ainda poderia ser salva. E foi isso que aconteceu, graças a Josh. Dentro de algumas horas ela já estava bem. Então, os dois tiveram bastante tempo para conversar e falar sobre o que sentiam. Josh entregou-lhe as flores e a pediu de volta, sendo o mais sincero que já foi em toda a sua vida.
Monica estava muito ferida e magoada, mas ainda o amava. Sentia que ele não estava mentindo, e que estava mesmo arrependido por ter a deixado. Embora ele ainda precisasse reconquistar a sua confiança, ela decidiu dar a ele uma segunda chance. Afinal, ele tinha salvo sua vida.
E foi isso que aconteceu. Depois daquele dia, Josh e Monica voltaram a estar juntos e cancelaram os papéis do divórcio. Com tudo que aconteceu, a relação dos dois só cresceu, e o amor que há muito tempo estava escondido se reascendeu. Josh tornou-se mais dedicado e honesto com sua esposa, e Monica por sua vez aprendeu a amá-lo, mas sem depender dele para viver. Ela voltou a trabalhar, conseguiu seu emprego de volta e se reaproximou dos amigos, tornando-se uma mulher independente. Já Vanessa, a amante, sumiu do mapa e provavelmente se mandou com outro cara rico e mais velho. Mas isso pouco importava para eles dois. Agora, eles estavam esperando um bebê! Uma linda menina chamada Laura, que os ajudaria a construir uma família linda e feliz.
Uma família da qual o destino estava em minhas mãos.
Eu não seria capaz de destruir uma família como aquela. No final da visão, eu vi o quanto Josh e Monica estavam felizes por estarem juntos e construindo uma vida a dois. Sem falar que, se Monica morresse, Laura jamais nasceria. E com isso eu também não conseguiria lidar. A única razão pela qual escolhi Monica era o fato de ela querer morrer, mas se soubesse o futuro lindo que a espera talvez ela mudasse de ideia. Coisa que eu também fiz. Não há o que discutir, vou ter que recorrer da decisão novamente.
Ao mesmo tempo em que recorrer da decisão era frustrante, também era uma sensação de alívio. Primeiro porque, querendo ou não, isso me impedia de tomar a decisão errada – algo de que eu tinha muito medo. E segundo, que me livrava da certeza da decisão e de dar a alguém o terrível destino de morrer em um acidente de carro. Pois no fundo, eu tinha medo de errar, me arrepender ou sentir remorso.
Não era fácil para mim saber que teria que matar um inocente, mesmo que fosse para salvar o amor da minha vida. Mas isso não me impediria de fazê-lo, de qualquer forma. não receberia esta chance se não merecesse viver, certo? E eu sou o responsável por fazer isso acontecer.
Cheguei em casa exausto depois de mais um dia de caçada e decepção. Embora eu estivesse feliz por saber que, no fim das contas, tudo acabaria bem na vida de Monica, Josh e da pequena Laura. E que o amor venceria no final.
É basicamente o que eu espero para o final da minha história. A cada dia que passa, parecem que se foram séculos desde que vi pela última vez. A saudade dela apertava mais a cada instante, e a ansiedade por vê-la novamente também. E por reascender o nosso amor, assim como Monica e Josh fizeram com o deles.
Pelo pouco tempo que convivi com os dois em seus subconscientes, pude ver que, apesar do relacionamento temporariamente conturbado, o amor entre eles era verdadeiro. Desde o primeiro instante em que se viram, desde o primeiro beijo, tudo aquilo fora real. E eu me identifiquei muito com isso, pois sentia a mesma coisa a respeito de mim e de .
Nosso amor era incomparável. Não havia palavras para descrever o sentimento que nos conectava, e eu tenho certeza de que sentia a mesma coisa a respeito disso. Estar ao lado dela era incrível, não só por ter a oportunidade de conviver com uma pessoa maravilhosa como ela, mas por ter o seu carinho também de forma física.
Joguei-me na cama, esgotado. Enfiei a cara nos lençóis e permaneci ali por alguns instantes, tentando encontrar um pouco de paz. Até que notei algo estranho. Eu não estava do meu lado da cama. Estava do lado dela. E bem ali, impregnado no tecido das cobertas e nos travesseiros, estava o tímido, porém inconfundível cheiro do seu perfume.
Sentir aquele cheiro novamente me trouxe uma mistura de sentimentos indescritíveis. Uma junção de alegria e tristeza, saudade e proximidade, satisfação e inquietude. Mas, acima de tudo, de aconchego. Se pudesse escolher apenas um cheiro para sentir pelo resto da minha vida, seria o daquele perfume. Era como tê-la perto de mim outra vez, enquanto me agarrava àqueles lençóis. E isso só me fez perceber o quão longe de mim ela verdadeiramente estava.
O toque das suas mãos macias, o cafuné que ela fazia no meu cabelo quando eu dormia em seu colo, o gosto do seu beijo e a sensação do toque dos seus lábios nos meus. Deus, eu sentia falta disso, e muito. Sentia falta de me deitar nessa cama ao lado dela e abraçá-la, correr meus dedos pela sua pele macia e tê-la só para mim.
Nunca amei tanto uma mulher como amo . Nunca desejei tanto outra que não fosse ela, e não apenas fisicamente, mas para tê-la ao meu lado para sempre. Queria poder sentir o calor do seu corpo contra o meu novamente, sentir o toque das suas mãos novamente. Tê-la só para mim durante uma noite inteira.
Mas sem dúvidas, a coisa de que eu mais sentia falta era o seu beijo. Sempre suave, doce, calmo, bom. Desde o primeiro até o último beijo que demos foi assim. Ela colocava suas mãos por cima dos meus ombros e subia na ponta dos pés para alcançar o meu rosto. Então, me olhava no fundo dos olhos e tocava seus lábios nos meus. O mundo parava pra mim toda vez que isso acontecia. Como se tudo naquele momento dependesse do beijo dela, e fosse só ele que importasse, e mantê-la em meus braços fosse minha única preocupação. Algo que, no caso, eu não pude fazer por muito tempo.
Virei-me na cama para encarar o teto, frustrado. Aquela saudade acabava comigo. E mesmo sabendo que eu só estava ali porque tinha uma chance de consegui-la de volta, algo ainda me deixava inseguro. Eu tinha medo de estragar tudo, de não conseguir completar a tarefa, de não ser bom o suficiente e de dar tudo errado. Pois nada no mundo pra mim era mais precioso do que ter Langton ao meu lado, e ter essa responsabilidade sob os meus ombros era um fardo grande demais para carregar. Um passo em falso e tudo estaria perdido, e eu nunca mais a veria de novo. Nunca sentiria esse cheiro doce e suave nos meus lençóis outra vez. E então, não passaria de uma lembrança antiga do meu passado.
Eu precisava impedir isso. Não é possível que dentre as oito milhões de pessoas que vivem em Nova York, nenhuma fosse a certa. Nenhum destino fosse digno de acabar ali naquele taxi. Tinha que haver alguém. Tinha que haver. E eu irei achar essa pessoa, não importa quantas mentes tenha que revirar. Mas amanhã. Por ora, tudo que eu posso fazer é ficar deitado aqui e descansar, a espera de uma nova chance de manhã. E foi isso que eu fiz. Embrenhado nos lençóis perfumados por ela, eu adormeci.
Acordei no dia seguinte do mesmo jeito que de costume, com a claridade do sol iluminando timidamente o quarto e um bilhete de incentivo de Samuel em cima da mesa. Fiz tudo que pude para encontrar o mínimo de disposição necessário e então saí de casa, pronto para recomeçar a minha busca na 5ª Avenida.
Fiquei cerca de meia hora vasculhando mentes, mas não encontrei ninguém que pudesse ser meu escolhido. Estava começando a ficar preocupado, pois havia um horário específico em que eu deveria ter uma vítima selecionada, para que ela pudesse entrar no taxi certo e então fazer parte do acidente. Encontrei médicos, professores e aposentados, mães, amigos, filhos e tios... mas ninguém com o perfil que eu desejava.
Até que encontrei um homem andando cabisbaixo pela calçada, passando do meu lado. Sua expressão de tristeza me interessou, e logo me concentrei nele para poder vasculhar um pouco da sua personalidade.
Era um prédio sujo e escuro, cheio de homens vestidos de fardas do exército e guerreiros mascarados, lutando uns com os outros. Seu nome era Owen Smith, um soldado das tropas americanas, que estavam invadindo um território tomado por traficantes na cena em que cheguei. Os tiros e gritos que vinham do lado de fora eram audíveis, embora a situação de dentro do prédio de distribuição de drogas onde estávamos também não fosse das melhores. Havia homens lutando por toda parte, e no meio disso tudo, Owen se encontrava também. Ele estava na companhia de seu parceiro Luke, amigo de infância e também colega de turma durante o treinamento para o exército. Os dois estavam cercando um dos traficantes mascarados que abriu fogo contra os soldados, impedindo que ele chegasse à porta.
A situação havia saído do controle de ambos os grupos, tanto traficantes como militares. Eu sentia o medo que pairava no ar e a adrenalina de participar de uma guerrilha, além do terror da comunidade ao redor e da dor dos feridos e mortos no confronto. O homem encurralado pelos dois soldados parecia sem saída. Olhou em volta, como se estivesse tentando tomar uma decisão, e então agiu segundos depois. Logo após atirar na perna esquerda do soldado Luke, o traficante ativou uma bomba que estava em seu bolso, jogou-a no chão e bateu em retirada com os outros traficantes, que correram para as portas e janelas do prédio ao ouvir seu aviso. Os soldados precisavam sair dali imediatamente, ou teriam seus miolos estourados.
A maior parte da tropa conseguiu sair pelo mesmo caminho que os traficantes – portas, janelas, buracos na parede. No entanto, Luke estava machucado e incapaz de andar devido ao ferimento na perna. Só restavam ele e Owen no prédio, e uma bomba que explodiria em menos de trinta segundos. Owen estava correndo em direção à porta, quando ouviu um grito de socorro vindo do seu parceiro atingido, e lembrou-se dele. Olhou em seus olhos, e em seguida olhou para o visor do detonador: faltavam apenas vinte segundos para que aquele prédio viesse abaixo. Não havia tempo para pensar em uma decisão, e o soldado Owen Smith não sabia o que fazer.
Com o medo e o instinto de sobrevivência gritando alto em sua cabeça, ele decidiu correr, deixando seu parceiro Luke para trás com um olhar de pânico no rosto. Owen chegou ao lado de fora bem a tempo de escapar da explosão da bomba, que aconteceu segundos depois de ele ter pisado para fora do prédio. No entanto, Luke ainda estava lá dentro quando a estrutura veio a baixo, e destruiu tudo que estava ao seu redor e seu interior. Ele ainda estava lá, esperando pela ajuda de seu melhor amigo, que virara as costas para ele no último segundo.
Assim que viu a explosão acontecer, Owen Smith caiu de joelhos no chão e começou a chorar. O arrependimento que o atingira era inexplicável. Consegui sentir o sofrimento dele ao ver seu melhor amigo morrer em uma explosão de um jeito que ele poderia ter evitado. No entanto, o medo de morrer e o pânico da situação o fizeram agir como um covarde. Tantos anos no exército aprendendo sobre coragem e sacrifício, e fora isso que fizera. E ainda com o seu melhor amigo, que fez tanto por ele. Que o acompanhava desde criança, que lhe dava conselhos, que compartilhou seu treinamento... e que jamais faria a mesma coisa horrível com ele.
Pude ver, nas lembranças que passavam como um filme pela mente de Owen naquele momento, o quanto ele e Luke eram próximos. Desde crianças, sempre fizeram tudo juntos. Isso explicava o tamanho do arrependimento e tristeza dele ao agir assim e trair seu melhor amigo daquela maneira, pois não foi capaz de controlar sua mente durante aqueles malditos vinte segundos de pânico antes da bomba explodir.
Owen Smith não era um homem mau. Tinha família, duas filhas pequenas, uma esposa amada, uma ótima reputação no emprego e uma boa condição financeira. Não era corrupto, assassino ou ladrão, mas era um traidor. Traiu a confiança de seu melhor amigo, e era por sua causa que ele estava morto. E Owen jamais iria se perdoar por isso.
A missão com os traficantes acabou, e ele disse aos outros soldados que Luke já havia morrido devido ao tiro que levou do bandido, e por isso o deixara para trás. Não contou a ninguém sobre seu ato covarde, mas sabia que isso não o livraria da eterna culpa que carregaria. A autopunição que teria já seria suficiente.
Owen estava desolado. Tudo que ele queria era uma forma de se redimir pelo que fez. Mas sabia que, não importaria o que fizesse, jamais traria seu melhor amigo de volta. Mas mesmo assim queria recompensar o mundo pelo seu erro. Por ter sido Luke, um homem tão bom e corajoso a morrer, ao invés de ter sido ele mesmo, um fraco e covarde. Talvez pudesse se retratar fazendo um sacrifício por alguém, da mesma forma que não fez com Luke.
Saí da mente de Owen ainda sentindo a culpa que o preenchia ecoar em minha mente, e também o seu desejo de consertar o erro terrível que havia cometido.
Aquela me parecia a decisão certa a tomar, sacrificá-lo no acidente do táxi. Afinal de contas, era o que ele queria, não era? Recompensar aquilo que havia feito? Não existia maneira melhor de se sacrificar em prol da remissão do seu pecado. Acredito que, se soubesse da busca que eu estava fazendo, Owen iria se voluntariar para me ajudar e morrer no acidente.
Eu sabia que ele estava a caminho do enterro do melhor amigo falecido, e esta me pareceu a oportunidade perfeita para fazê-lo entrar no táxi. Concentrei-me nele enquanto caminhava passando por mim, deixando claro em meus pensamentos que ele era a minha escolha, e então Owen adentrou misteriosamente no veículo 237, rumo ao seu perdão.
Pouco depois dos momentos fatídicos do acidente, minha mente foi levada para os devaneios do futuro, como de costume. O medo do erro me atingiu como um caminhão em alta velocidade.
Por incrível que pareça, não encontrei nada de muito preocupante no futuro com Owen tendo sofrido o acidente. A família dele ficaria desolada, é claro, e sua esposa e filhas teriam de viver suas vidas sozinhas, mas nada me pareceu um motivo bom o suficiente para recorrer da decisão. Seu cargo no exército seria facilmente preenchido, sua família viveria com o dinheiro da poupança que tinham, e tudo acabaria bem – na verdade, o menos pior possível. Por mais incrível que soasse, parecia que eu havia encontrado a pessoa certa para sacrificar no acidente.
Uma onda de alívio e paz atingiu minha alma. Sorri em resposta, como se um peso tivesse sido tirado dos meus ombros. Parecia meio mórbido ficar feliz diante daquela cena, mas eu não pude me conter. Acho que eu finalmente encontrei um substituto para , e posso enfim salvá-la.
Até que, do meu lampejo de felicidade, minha mente foi levada para o futuro paralelo onde Owen não havia morrido.
Novamente, eu me encontrava em uma cena de guerra. Gritos, mortes, tiros e desespero reinavam no local, e o soldado Smith encontrava-se novamente no meio de tudo. Carregando sua metralhadora, ele caminhava abaixado pelas areias de um deserto do Iraque. Aquela parecia ser mais uma missão comum – no entanto, assustadora – até que Owen viu algo suspeito há cerca de vinte metros dele.
Um dos terroristas contra quem o exército lutava estava segurando um detonador, que fazia uma contagem regressiva de sete minutos exatos. O homem estava do lado de uma escola, onde centenas de crianças estavam escondidas com os funcionários e professores, evitando a violência da guerrilha, e que não faziam a mínima ideia do que estava por vir. E, para um soldado treinado como Smith, aquilo só poderia significar uma coisa: o terrorista planejava explodir aquela escola e todos dentro dela.
E mais uma vez, por uma ironia do destino, Owen Smith se encontrara naquela infeliz posição. Ele tinha duas opções: salvar sua pele ou cometer um ato de heroísmo que, mesmo que o matasse, lhe traria honra novamente. Aquela era sua chance. Estava bem ali, diante dos seus olhos, a sua oportunidade de se redimir pelo que fizera anos antes com seu parceiro de tropa Luke. Mas será que ele a aceitaria?
O homem relutou por alguns segundos. Mal sabia onde a bomba estava escondida. Aquele colégio era enorme, seria muito difícil descobrir onde o dispositivo estava antes que o tempo se esgotasse e tudo viesse abaixo. Não tinha como contatar seus companheiros, pois estavam longe demais e o sinal de transmissão do rádio havia sido cortado pelos inimigos. As chances de morrer eram grandes. Mas as chances de Owen se arrepender de não ter ajudado eram maiores ainda, sem dúvidas. E foi exatamente nisso que ele pensou, quando começou a correr o mais rápido que pôde em direção ao prédio escolar.
Tomando cuidado para não ser visto pelos terroristas, Owen adentrou o prédio e correu pelos corredores vazios à procura de respostas que o levassem ao detonador. Olhou pelas janelinhas presentes nas portas das salas e tudo que viu foram dezenas de crianças desesperadas e chorando ao lado de seus professores.
Enquanto Owen se comovia com a cena, uma das professoras o viu usando uma farda militar e saiu correndo em sua direção. Balbuciou algo na língua local que ele não foi capaz de compreender, especialmente porque o medo na voz da mulher era eminente. No entanto, quando ela percebeu que ele não entendera, logo traduzira o pouco que sabia para inglês, e disse algo parecido com “bomba” e “sala do zelador”. E aquelas palavras já foram mais do que suficientes para acender a esperança dentro do coração do corajoso Owen Smith.
O soldado correu o mais rápido que pôde e chegou até a sala do zelador, onde uma enorme bomba cheia de fios e dinamites estava sob a mesa. Ainda anestesiado pela adrenalina correndo por seu corpo, Smith pegou a faca que carregava em sua cintura para cortar os fios e desativar o dispositivo, que agora contava menos de um minuto e meio para a detonação. Como se o suspense não fosse o suficiente, a faca caiu no chão pouco antes de romper o fio, e Owen virou seu olhar para o céu, pedindo forças para quem quer que estivesse o ouvindo.
“Isso é por você, Luke. Me perdoe” foram seus últimos pensamentos, que ecoaram na minha cabeça tanto quanto ecoaram na dele. Com as mãos suadas e tremendo, o soldado finalmente cortou o fio vermelho responsável por detonar o dispositivo, salvando a vida de todos que estavam ali, e também a sua própria. Mas, principalmente, salvando sua consciência da culpa que até ali lhe parecia eterna.
E então era isso: Owen Smith salvaria centenas de crianças de uma explosão trágica no Iraque caso ficasse vivo e não sofresse o acidente. Seria condecorado pelo exército e se tornaria um soldado de renome pela sua bravura e coragem. Ele tomou a decisão certa, e eu sabia muito bem que deveria escolher o caminho correto também: mudar a minha escolha mais uma vez.
Não posso deixar que aquelas crianças morram numa explosão horrível sem ninguém para salvá-las. Owen tem uma missão a cumprir no futuro, e eu não posso interromper esse futuro como o destino fez com a minha história de amor. Ele pode ser um covarde, mas poderá se redimir salvando centenas de vidas. Aquela escola precisa de um salvador, e Owen é o escolhido para isso – e portanto eu não posso escolhê-lo.
Fui embora para casa novamente, frustrado. Minhas chances estavam se esgotando. E, a medida que o tempo passava, mais incerto eu ficava sobre a minha capacidade de completar essa missão maluca.
Cheguei em casa e tomei um banho para relaxar. Sabia que tinha tomado a decisão certa deixando Owen vivo, mas mesmo assim aquela sensação de impotência não deixava minha cabeça. Eu tinha pressa em resolver aquilo, pois a cada dia a pressão que eu fazia em mim mesmo só aumentava.
Normalmente quando estava irritado, eu tinha ao meu lado para me acalmar e dizer que tudo iria ficar bem. Agora, tudo que tenho sou eu mesmo e meus pensamentos. Peguei meu notebook e entrei no Facebook para tentar tirar um pouco a minha cabeça daquela situação toda. Li algumas publicações e vi alguns vídeos, e até consegui dar uma risada ou outra. Até que uma certa publicação me chamou a atenção.
“Minha querida amiga , sinto muitíssimo em ouvir a notícia da sua perda, ainda mais de uma forma tão trágica. Todos nós sentiremos sua falta aqui, pode ter certeza. Muito obrigada por ter sido uma amiga tão incrível por tanto tempo. Amo você xx”
Aquela era uma publicação da melhor amiga de , no mural da mesma, junto com uma foto das duas abraçadas em alguma festa. Achei aquilo muito estranho, afinal, tecnicamente não havia morrido naquele dia, certo? Quem entrou no táxi foi Owen, e essa permanece a verdade até que o relógio dê meia noite e o dia se reinicie. Pelo menos, eu acho que funciona assim.
Enquanto confabulava comigo mesmo sobre aquilo, ouvi um barulho vindo da cozinha. Achei muito estranho, pois estava sozinho em casa. Decidi ir até lá ver o que era, e quando acendi a luz me deparei com um par de asas brancas enormes prestes a derrubar um dos copos que estava na bancada.
- Samuel! – Exclamei, antes que ele pudesse espatifar o vidro no chão.
- ! – O anjo recebeu-me alegre, e em seguida virou-se para trás e desviou do copo antes que ele caísse. – Oh, me desculpe. Não estou acostumado a ficar com esse monte de penas aqui em lugares tão apertados. – Ele riu sem graça, olhando para o outro copo que já estava quebrado no chão, que foi o que provavelmente ocasionou o barulho que ouvi do quarto.
- Não tem problema. – Ri fraco. – O que te traz aqui?
- Decidi te fazer uma visita. Vi que você estava um pouco frustrado com tudo que tem acontecido ultimamente e anda tendo algumas dúvidas.
- É, não posso dizer que sou o cara mais satisfeito do mundo. – Disse com um meio sorriso.
- Pois é, eu notei.
- Mas, espere... Como você sabe disso? – Perguntei, confuso. – Você estava lá na avenida hoje?
- Eu estou em todo lugar onde você está, . – Samuel sorriu. – Posso ver tudo que você faz e ouvir tudo o que pensa.
- Então você tem mesmo me observado esse tempo todo? – Disse, surpreso.
- Sim. – O anjo sorriu novamente.
- Você poderia ter me contado isso antes... – Eu falei, um tanto sem graça.
- Relaxa, garotão, eu não vou contar pra ninguém sobre nada do que eu vi ou ouvi. – Samuel deu uma piscadela, divertido. – Faço isso só por precaução. Pra garantir que você está fazendo tudo certinho e não está com dúvidas.
- Entendi... – Falei, ainda um pouco desconfortável com o fato de Samuel estar me observando esse tempo todo e eu não ser informado disso.
- Vi que estava mexendo no Facebook encontrou uma publicação sobre a morte da , então ficou confuso. – Ele resolveu me explicar. – Escute, tudo isso aqui está acontecendo dentro da sua cabeça, em uma realidade paralela. O tempo continuou a passar para todas as outras coisas e pessoas, e isso inclui as redes sociais. Essas publicações vão ficar ai até você tomar sua decisão final, e então, essa realidade em que o resto do mundo esta vivendo será substituída pela realidade que você vê todo dia depois que seleciona uma pessoa. Todos os seis dias que você passa repetindo de novo e de novo não passam de frações de segundo no tempo real, mas pra você parecem dias inteiros pra que você também possa entender o futuro que aconteceria caso o acidente continuasse o mesmo. Sacou?
- Uau, eu não sabia disso... – Falei, surpreso. – Obrigado por esclarecer, agora faz mais sentido.
- Não tem de quê.
- Mas enfim, o que mais te trouxe aqui além de responder minhas dúvidas? – Eu disse me dirigindo ao meu quarto, e Samuel me seguiu.
- Vi que estava um pouco pra baixo e decidi aparecer pra te dar uma força, . – Ele sorriu, receptivo.
- Ah, obrigado. – Sorri de volta. – É bom ter alguém pra conversar além de mim mesmo. Tenho estado tão focado esses dias todos que às vezes nem me suporto direito.
- Sei bem como é isso... – O anjo riu. – Escute , você não precisa cobrar tanto de si mesmo. Eu escolhi você aquele dia no hospital por acreditar que você tinha o potencial para completar essa missão, e continuo acreditando nisso. Pode levar um tempo, mas você ainda tem duas chances, certo?
- Sim, e mais duas oportunidades de errar também. – Falei, um pouco frustrado. – E se eu escolher a pessoa errada no último dia, Samuel? Uma pessoa inocente irá morrer e eu não terei como evitar isso.
- Uma pessoa inocente JÁ morreu, . – Ele deu um meio sorriso. – O máximo que você vai fazer é substituí-la por outra. Olha, concordo com você quando diz que não merecia o que aconteceu com ela. Por isso você está aqui. Confie em mim, você vai achar a pessoa certa em breve.
- E se eu não achar?
- Caramba, quanto negativismo! – O anjo exclamou, e em seguida riu. – Você vai achar, ok? Eu prometo. Você não está aqui por acaso.
- Como assim? – Falei, confuso mais uma vez.
- Todas as coisas acontecem na vida com um propósito. não foi morta por acaso e eu não fui enviado até você por acaso. Posso não saber a exata razão, mas sei que ela existe. Todos nós temos coisas a aprender com as situações que nos colocam, tanto humanos quanto anjos. Tente não levar tudo tão a sério e se preocupar demais, procure tirar algo de bom dessa experiência.
- A única coisa que vou tirar de bom dessa loucura é ter a de volta, sério. – Eu disse e ri.
- Garanto que você vai pensar diferente quando tudo isso acabar, meu caro amigo. – Samuel sorriu, brincalhão. – Você realmente a ama de verdade, não é? Eu consigo perceber isso quando escuto seus pensamentos. Ela os domina.
- É, você tem razão. – Concordei, sorrindo da mesma forma. – Jamais me meteria numa loucura como essa se não fosse por ela. Realmente acredito que é a mulher da minha vida. Não sei o que seria de mim se você não tivesse aparecido naquele hospital e eu tivesse que viver o resto da minha vida sem tê-la.
- É incrível sermos capazes de amar tanto assim alguém. E também, quando essas pessoas se vão, é incrível o quanto sentimos a falta delas.
- Pois é. A morte é uma merda. – Ri sem graça. – Tira as pessoas de nós muito antes do que deveria, e interrompe os processos brutalmente, nas piores horas.
- Na verdade, tudo acontece no tempo certo. Morrer faz parte da vida.
- Não sei se acredito muito nesse negócio de que tudo continua depois de morrer... – Falei desacreditado.
- E o que exatamente você acha que está acontecendo comigo agora? – Samuel apontou para si mesmo e riu.
- Como assim?
- Todos os anjos já foram humanos um dia, . Tivemos vidas, famílias, trabalhos, e pessoas especiais ao longo da nossa jornada.
- Jura? – Surpreendi-me. – E você já sentiu algo assim por uma pessoa antes? – Perguntei, curioso.
- Ah, já – Ele riu.
- Que demais! – Exclamei, parecendo tão curioso quanto um menino de cinco anos. – E como era a sua vida?
- Oh não, essa é uma história para outra noite. – Samuel riu, levantando-se. – Eu tenho que ir. Passei aqui só pra dar um alô mesmo. E, a propósito, se quiser que aquele soldado salve as criancinhas da explosão, é melhor você ir dormir logo pra que o dia se reinicie. – Ele riu novamente, olhando para o relógio que marcava 23:30h. – Boa noite, . E boa sorte amanhã.
- Ok, obrigado Samuel. Foi bom conversar contigo. – Sorri em resposta. Estava prestes a me virar para ir deitar, e quando percebi, Samuel já não estava mais lá. Sumiu no instante em que pisquei os olhos, sem deixar nenhuma pista de que havia estado ali. Nada exceto o copo quebrado.
Depois de juntar os estilhaços de vidro do chão da cozinha, voltei para o quarto e me deparei com o notebook ainda aberto naquela publicação no mural de . Samuel disse que tudo aquilo fazia parte da realidade até que eu decidisse quem iria morrer no lugar de no acidente. Como a curiosidade falou mais alto, decidi ver o que mais as pessoas tinham publicado para ela enquanto ela ainda era a vítima.
“Querida , espero que você esteja gostando da sua nova estadia no Céu, e que seja muito feliz aí. Todos nós aqui da Terra sentiremos muita falta da pessoa maravilhosa que você foi. Obrigada por abrilhantar nossas vidas com a sua presença, sobrinha.”
“ , que notícia triste o mundo recebeu hoje. Desejo condolências a todos os seus familiares e amigos, que perderam uma pessoa tão maravilhosa quanto você em suas vidas. Descanse em paz, querida amiga.”
“Já sinto falta da chegando animada ao trabalho todas as manhãs, trazendo a todos o seu sorriso e alegria. Muito obrigada por ter sido minha parceira de trabalho durante esses dois anos, fico muito triste de ouvir sobre a sua partida. Se cuide.”
“Você nem imagina a falta que vai fazer, . Cuidei de você desde criança, espantei os monstros de debaixo da sua cama, fiz sua comida preferida no jantar, te levei para as aulas de música, cuidei dos seus joelhos ralados e dos corações partidos. E agora o coração que está partido é o meu, junto com o de todos os outros e outras que te amavam – e que não são poucos. A razão de o destino ter te levado tão cedo eu não sei, a única coisa que sei é que o céu ganhou mais uma estrela muito brilhante hoje. Obrigado por ter sido minha filha, eu te amo eternamente. Mamãe x”
“Ainda me lembro da sua alegria ao tocar e cantar. Do quanto você queria que as nossas aulas durassem mais dez minutinhos, assim como eu, só pra poder assistir você. Sinto muito pelo que aconteceu a você, , mas as lembranças que terei suas serão apenas as boas. Me orgulho de ter sido sua professora.”
Fiquei impressionado com a quantidade de pessoas que escreveram para ela, vindas dos mais diversos lugares possíveis. Amigos desde o jardim da infância, até a faculdade e o trabalho. Realmente, era muito querida por todos. E apesar de apreciar o carinho das pessoas, eu sabia que, se ela pudesse ler tudo isso, pensaria no mesmo que eu: metade daquelas pessoas não teria escrito nada se ela não tivesse morrido. Não teria dito coisas bonitas nem relembrado momentos felizes que tiveram ao seu lado, se não fosse pelo trágico acidente que lhe aconteceu.
Se fosse um motivo feliz como um aniversário, por exemplo, metade daquelas pessoas nem se daria ao trabalho de escrever nada. Mas o fato é que quando as pessoas morrem, ainda mais de uma forma tão violenta assim, é que os outros em volta realmente se importam.
Não que isso fosse de grande importância, nem pra ela e muito menos pra mim. Acredito que a gente faz as coisas pelas pessoas quando elas estão vivas, e não depois que morrem, pois já não faz mais diferença. A não ser que você se meta numa loucura enorme em que você volta no tempo todas as manhãs para impedir que um acidente de carro mate essa pessoa, e ao invés disso coloque outro alguém no lugar. Aí sim, a diferença é imensa.
A morte é uma coisa engraçada, e causa uma reação estranha nas pessoas. De repente, todos os amigos no Facebook de a conheciam bem até demais, passaram inúmeros momentos bons ao lado dela, sentirão saudades eternas e só tinham coisas boas a falar dela. Ninguém se lembrou do quanto ela se irritava facilmente, do quanto ela era irônica ou cínica quando queria. As pessoas parecem bem mais legais quando morrem, não é mesmo?
Não que eu ligasse pra isso. Afinal, era mesmo tudo aquilo que seus amigos falaram. Tudo aquilo e mais um pouco.
Mas, voltando ao assunto inicial, a morte é uma coisa engraçada. Mas não engraçada de um jeito bom, e sim de um jeito curioso e perturbador. Às vezes, você é capaz de impedi-la, como Owen fez na escola com as crianças do Iraque. Mas, às vezes, você é só um mero telespectador de uma explosão inteira que não pode ser evitada. Ela é misteriosa, ninguém nunca sabe o que acontece depois dela, e nem como é a sensação de vê-la chegando. Só morrendo pra entendê-la completamente, e às vezes nem assim. Não posso dizer com certeza, pois não morri ainda.
Gostaria de saber quando isso vai acontecer. Bom, na verdade, se eu soubesse provavelmente não seria tão legal. Acho que a vida só tem essa emoção porque nunca sabemos quando a morte chegará para terminá-la. Quando uma bomba relógio explodirá e devastará tudo que estiver em seu caminho. com certeza não sabia que iria sofrer um acidente de carro quando acordou naquele dia pela manhã para trabalhar. Se soubesse, provavelmente evitaria. A graça é justamente essa, a surpresa da morte, como eu disse quando comecei essa história. Mas não é uma surpresa tão legal assim quando você é a pessoa que fica para trás.
A vida é muito frágil, mais frágil do que gostaríamos de acreditar que é. Estamos o tempo todo fazendo planos para o futuro – como casar com a pessoa com quem se ama, por exemplo. E aí o destino vem e ferra com tudo, jogando um caminhão em cima dos seus sonhos. E o pior é que você não pode fazer nada para impedir isso. Tem que continuar sonhando e planejando, torcendo para que o destino não seja um filho da puta com você. Torcendo para que uma bomba não exploda o prédio que você construiu com suas ambições.
Eu gostaria muito de me lembrar qual foi a última coisa que eu disse para antes do acidente. Será que foi um “bom dia”? “Eu te amo?” Ou será que, quando ela saiu para trabalhar naquela manhã fatídica, eu mal acordei para dizer-lhe tchau? Não consigo me lembrar. E, embora o que realmente importa é o que eu disse pra ela durante todo o resto do tempo que passamos juntos, eu ainda sim gostaria de saber. Será que foi uma despedida de rotina, que no final das contas se tornou uma despedida eterna?
Impossível dizer. Mas, talvez, onde quer que ela esteja agora, ela saiba. Samuel me disse que ele é a prova de que existe vida após a morte. Eu nunca fui do tipo que acreditava nessas coisas, até que um anjo apareceu na minha vida e virou tudo de cabeça para baixo. Isso me fez rever meus conceitos, e imaginar se pode me ver de seja lá onde for que ela está. Será que sabe sobre o que estou fazendo por ela? Será que gosta da ideia de voltar a viver? Ou será que o lugar onde ela está é muito melhor do que a Terra? Será que o parceiro de Owen, o soldado Luke, ainda guarda mágoas do que o amigo fez? Ou será que ele está orgulhoso do que ele fará para se redimir? Eu não faço a mínima ideia, e acho que só poderei responder a tudo isso no dia em que morrer. O que, espero, vai demorar um tempo.
Minha mente estava a mil nos pensamentos, mas eu sabia que era hora de dormir. Faltavam quinze minutos para meia noite e eu precisava pegar no sono antes disso para que o dia fosse reiniciado amanhã. Independente de onde estava, eu precisava tirá-la de lá e tê-la comigo novamente. Sempre prometi a mim mesmo que faria qualquer coisa para ficar com ela, e estou cumprindo essa promessa agora. Passando pela mais estranha e confusa experiência da minha vida, para ter minha de volta, seja lá de onde for.
Acordei de manhã ainda pensando sobre tudo que vi e sobre a conversa que tive com Samuel no dia anterior. Como se fosse transmissão de pensamento, o bilhete costumeiro que ele deixara em cima do balcão da cozinha dizia:
“Vamos lá, ! Não desanime, tudo dará certo hoje. A propósito, gostei da conversa que tivemos ontem. Você é um cara legal, , fico feliz por ter escolhido você.
PS: Me desculpe pelo copo quebrado, já o consertei.
Samuel.”
Ao lado daquele bilhete, encontrava-se um copo de vidro perfeitamente intacto. Olhei para a pá de lixo com a qual catei os cacos na noite passada, e ela estava vazia. Samuel havia consertado, não sei como – talvez tenha poderes mágicos de anjo. Sorri, impressionado com o feito.
Mas algo mais naquele bilhete me chamou a atenção. Samuel disse que estava “feliz por ter me escolhido”. Ao ler aquilo, uma dúvida surgiu em minha mente.
Por que eu fui o escolhido?
O que será que eu estava fazendo ou pensando naquele momento, que levou o anjo a ter pena de mim e da minha noiva e nos dar uma nova chance para ficarmos juntos? Será que foi destino, que era pra ser assim? Será que alguém falou a Samuel que deveria ser eu? Difícil dizer. Acho que só Deus pode me responder isso, se é que ele existe.
Preferi deixar essas dúvidas de lado, afinal tinha um trabalho a fazer. Decidi seguir o conselho de Samuel e não desanimar, pois ainda me restavam duas chances para escolher a pessoa certa para o acidente. E eu preciso acreditar que conseguirei, já que Samuel confiou em mim pra isso.
Fui para a 5ª Avenida me sentindo determinado. Vasculhei diversos rostos na multidão, alguns que, depois de tanto tempo repetindo esse mesmo dia, já me eram até familiares. No entanto, alguém com quem nunca tinha cruzado o olhar me chamou a atenção.
Era um senhor de idade, que me parecia muito velho e doente. Ele estava tossindo e carregava um olhar triste no rosto, e aquilo despertou minha curiosidade. Decidi investigar sua mente e a história que ele carregava, e assim o fiz.
Arthur Hall era o seu nome. Tinha 85 anos, e muita história para contar. Ele parecia ser um idoso muito solitário. Sua esposa, Emily, a quem tanto amou e que até hoje domina seus pensamentos, já era falecida há muito tempo. Ele vivia numa casinha pequena em Nova York, com apenas dois quartos, sala, banheiro, cozinha e uma varanda aconchegante. Apesar disso, era um homem simpático. Possuía uma rotina diária, que consistia em acordar cedo, ir até a padaria para comprar sonhos de creme, dar uma longa e lenta caminhada pelo parque durante a tarde e depois voltar para casa para assistir o noticiário. Arthur tinha uma vida urbana e ordinária, e parecia satisfeito com a sua longa trajetória até aqui.
Aquele senhor tivera uma vida e tanto. Nasceu e cresceu no interior do Kansas, ajudando os pais e seus oito irmãos mais velhos a cuidar da fazenda que possuíam. Quando se tornou adulto, Arthur lutara na guerra e perdera seus pais numa epidemia de febre que aconteceu no campo enquanto estava fora. Mudou-se para Nova York com a esperança de uma nova vida, e foi onde conheceu sua tão amada esposa Emily, que trabalhava em uma livraria próxima a sua casa. Arthur trabalhou como operário em diversas fábricas, e fez isso até se aposentar aos cinquenta anos. Ele e Emily tiveram apenas um filho, chamado Thomas. Sua esposa o deixou há cerca de quinze anos atrás, devido a uma doença pulmonar, e então ele ficou sozinho.
Até ali, nada que me fizesse cogitá-lo como uma opção. Exceto pelo fato de que eu não conseguia prever o seu futuro. Parecia que havia uma espécie de bloqueio, algo que me impedia de ver o resto da sua vida. Tudo que eu vi não passou de flashes: uma risada feminina, cabelos loiros e uma carteira de motorista – foi tudo que consegui identificar.
Não demorei muito para entender o que aquilo significava: Arthur iria morrer em breve.
Isso acendeu uma luz na minha cabeça. Já que minhas opções estavam acabando e minhas chances se esgotando, por que não pegar uma pessoa que já está no fim da sua vida? Afinal, Arthur parece estar sozinho e pela idade avançada, restam poucas pessoas com quem ainda tenha contato. Acho que essa seria uma boa alternativa. É improvável que no futuro ele vá ser responsável por salvar milhares de animais abandonados ou centenas de crianças de uma explosão. Não acho que a morte dele causaria grande impacto – afinal de contas, ela já está se aproximando – então não há motivos para não escolhê-lo.
Sem pensar muito e extasiado pela solução que encontrara, foquei meu olhar no idoso tristonho à minha frente para selecioná-lo. E então, como se fosse apenas uma aleatoriedade, Arthur decidiu entrar no táxi de número 237 para ir até a sua casa. Mas eu sabia que aquela escolha não era apenas falta de sorte, pois eu havia o selecionado para sofrer aquele acidente.
E então tudo aconteceu novamente. Uma cena que mesmo vista um milhão de vezes continua sendo chocante e triste, mesmo que a pessoa lá dentro seja um ladrão, um doente, um suicida, um covarde ou alguém que já viveu muito. É uma pena que alguém realmente tenha que morrer dessa maneira, pois é bem trágica.
Refleti alguns minutos sobre aquela história toda e sobre aquele maldito caminhão desgovernado, até que minha mente foi levada para as Consequências – algo que nem pensei que existisse nesse caso.
Mas acontece que existia. E eram totalmente inesperadas, para variar. Acontece que Arthur Hall não era um homem tão solitário quanto eu pensei que fosse. Ele tinha uma neta de doze anos, a qual eu não sei por que, não consegui enxergar durante meu breve passeio pela sua mente. O nome dela era Rebecca, e a garotinha havia perdido seus pais num trágico acidente de carro há alguns anos atrás. Como não tinha mais ninguém para ficar e ainda era menor de idade, Rebecca morava com seu avô, a quem amava muito. Os dois eram muito unidos e um cuidava muito bem do outro, e a garotinha dependia inteiramente daquele senhor. Ele pagava todas as suas despesas, a levava para a escola e tomava conta dela com todo o amor e carinho do mundo, já que ela era sua única neta e, portanto, a única que poderia desfrutar do grande coração de Arthur.
Caso ele morresse no acidente hoje, Rebecca ficaria sem ninguém para cuidar dela. Seu pai era filho único e sua mãe também, portanto não tinha tios ou tias que pudessem ajudá-la. Os outros avós, por parte de mãe, já haviam morrido também, há muito tempo atrás, quando sua mãe era criança. Não possuía primos, tios-avós, nem ninguém que pudesse cogitar para cuidá-la.
Como ainda era menor de idade e não teria nenhum responsável adulto para tomar conta dela em segundo plano, a garota acabaria indo para um orfanato. Porém, Rebecca já tinha doze anos. É difícil encontrar alguém que queira adotar uma criança com essa idade, e portanto, a garota passaria um longo tempo naquele lugar sem receber nenhuma família nova. Só poderia sair de lá quando tivesse idade suficiente para se virar, e quando toda a sua alegria tivesse sido tirada dela devido aos longos anos de abandono.
A tristeza habitaria seu coração. Por não ter família, perder o contato com os amigos de infância e também com os colegas de orfanato – já que seriam todos adotados, menos ela – ela ficaria desolada. Rebecca seria uma menina sozinha no mundo. Sairia da instituição sem dinheiro e sem estudos e, portanto, sem expectativas para a vida. Chegaria até a se envolver com drogas e pequenos furtos, pois sem a devida instrução de uma família, a garota ficaria a mercê de pessoas que só queriam se aproveitar dela. Ela seria até presa uma vez. E toda a sua vida se daria dessa forma, até o final – cheia de mentiras, tristeza e falta de esperança.
Parei para refletir um pouco sobre tudo o que vi. Eu já poupei animais feridos, centenas de crianças, vidas que ainda nem começaram e histórias de amor. Arthur, por si mesmo, não seria afetado pelo acidente. E Rebecca era só uma criança. Comparado a todos os impactos que eu deixei de causar recorrendo das minhas decisões anteriores, aquele não era um mal tão sério assim. Será que eu deveria?
E então, sem nem me dar tempo para terminar o raciocínio, a segunda parte das Consequências atingiu minha mente.
Os flashes que vi anteriormente no futuro de Arthur retornaram, mas agora mais claros. A garota loira que ouvi rindo e segurando uma carteira de motorista era Rebecca, no dia do seu aniversário de 18 anos. Embora sua vida tivesse um prazo curto, Arthur ainda viveria por mais alguns anos, até ver sua neta crescer e se tornar uma adulta responsável e independente. O senhor morreria dias depois de a garota completar a maioridade e poder se cuidar sozinha.
Minha visão se concentrava na garota. Antes, eu a vi apenas uma criança, que ainda brincava de barbies e tinha medo do escuro. Agora, eu a via uma mulher completa, linda e inteligente, fazendo faculdade e, mais importante, feliz. Rebecca arrumara um namorado chamado Sam, que seria muito bom para ela e pelo que pude ver continuaria ao seu lado por um bom tempo. Seria uma menina direita e responsável, nunca daria nenhum tipo de problema a ninguém.
O som da risada dela ecoava pela minha mente, transbordando a alegria dela por ter finalmente crescido e se tornado quem sempre sonhou ser. Rebecca queria ser dentista, e estava no primeiro ano do curso quando a vi – e eu sabia que ela seria uma profissional muito bem-sucedida. Obviamente ela estava muito diferente do que no futuro que eu assisti anteriormente, pra melhor.
Realmente, aquele não era o maior impacto que o acidente causaria nas vítimas que eu escolhi. Mas ainda sim, algo não me parecia certo ao colocar Arthur dentro daquele táxi. Como eu poderia acabar com a felicidade de uma pessoa só para trazer a minha? Como eu poderia estragar o futuro daquela garota só para tornar o meu melhor? Eu não seria capaz de fazer isso com Rebecca, uma inocente garotinha que não tinha nada a ver com a minha história, e que teria tudo para ser feliz caso seu avô não morresse naquele dia.
Bom, eu ainda tenho mais uma chance. Sei que posso me arrepender disso, mas eu vou recorrer da decisão mais uma vez. Não posso conviver com a culpa de ter arruinado o futuro de Rebecca para sempre. Tem que haver alguém melhor que Arthur para entrar naquele maldito táxi, tem que haver algum futuro que não vá ser totalmente horrível caso uma pessoa morra naquele acidente. Eu preciso achar essa pessoa, e terá que ser amanhã.
Mas eu ainda não tinha entendido completamente o que acontecera hoje. Por que eu não consegui ver Rebecca da primeira vez que entrei na mente de Arthur? E por que o futuro dele me pareceu tão cinza e confuso, se ele ainda viveria por mais tempo? Como se alguém ouvisse as minhas dúvidas – e de fato, havia alguém as ouvindo mesmo – uma voz conhecida começou a falar dentro da minha cabeça. “Existe uma razão para você não ter conseguido ver a garota da primeira vez. Quando você entra na mente das pessoas, apenas algumas partes específicas dos pensamentos delas aparecem pra você. Alguns são bem antigos, como a participação de Arthur na guerra, e alguns são bem recentes, como a ida dele a padaria hoje de manhã. A visão pesca apenas algumas partes da vida da pessoa. A razão pela qual você não conseguiu ver Rebecca é porque ela está de férias com a família de uma amiga na Disney há três semanas, e portanto ela encontra-se no meio das lembranças, e você não foi capaz de enxergá-las.”
Sabia de quem era aquela voz inconfundível ecoando pela minha mente: era Samuel, que estava a postos como sempre, e veio esclarecer minhas dúvidas como disse que faria. “A respeito do futuro de Arthur, você tinha razão: o velho não irá viver muito mais. Quando o futuro é muito curto, às vezes ele fica embaçado e difícil de ser lido, e passa como flashes para quem o assiste. A risada que ouviu, os cabelos loiros e a carteira de motorista que viu eram de Rebecca, ao completar dezoito anos. Arthur só viveria por tempo suficiente até que a sua neta completasse a maioridade, o que levaria seis anos. Comparados a uma vida inteira, seis anos não são nada, e por isso o futuro que viu ficou confuso e te impediu de tomar uma decisão mais precisa. É mais uma das peças que essa ‘aventura louca’ como você chama está pregando em você.”
Agora tudo fazia sentido. Parece que nem mesmo revistando a mente de uma pessoa você é capaz de conhecê-la por completo, pois entre os começos e fins existem sempre meios – e que às vezes são a parte mais importante da história.
Por incrível que pareça, apesar da falha de hoje, não fui embora para casa frustrado. Fiquei satisfeito com a minha decisão de devolver um futuro feliz à Rebecca, talvez porque me surpreendi com a minha própria bondade. Sacrifiquei os últimos cinco dias de trabalho porque meu coração se derreteu pela história de uma menininha de doze anos. Nem parece que sou eu mesmo – e isso é bom.
Em geral, eu não estava acostumado a pensar no bem das pessoas. Eu sempre me preocupei com quem estava ao meu redor, mas nunca realmente liguei para o que acontecia com os desconhecidos que passavam por mim. Rebecca me ensinou que as coisas não devem ser assim, e que devemos fazer o bem sem olhar a quem estamos fazendo.
Cheguei em casa pensativo, refletindo sobre o meu dia e sobre tudo que vem acontecendo esta semana. Sobre quantas vezes encarei a morte de perto, e assisti a aquele maldito acidente diariamente. Sobre todas as mentes pelas quais vaguei, sobre todas as pessoas que conheci mesmo sem elas saberem, e sobre toda a experiência que essa realidade paralela me trouxe.
Mas, ainda sim, o pensamento que predominava minha mente era somente um: . Aqueles cinco dias que passei longe dela pareciam uma eternidade, enquanto eu esperava para revê-la novamente depois que essa loucura acabasse. Sinceramente, eu não sei como irei me virar amanhã. Eu só sei que preciso dar um jeito de encontrar a pessoa certa, pois é a minha última chance de fazer tudo certo e tê-la de volta.
. Era incrível a falta que ela fazia. A saudade dela hoje estava mais apertada do que em todos os outros dias. Tomei um bom banho e peguei meu notebook novamente, mas desta vez sem ler publicações fúnebres: por um momento, eu queria deixar de pensar em estar morta. Ou em ter somente mais uma chance para salvá-la. Eu a queria viva, queria ver o seu sorriso e assistir sua pessoa em pleno funcionamento. E eu sabia muito bem como fazer isso: vendo suas fotos.
Sentei-me na cama e abri minha pasta de arquivos. As fotos começavam há cerca de seis anos, quando e eu nos conhecemos. As primeiras fotos eram de mim no primeiro dia de faculdade, em geral fotos do campus e das instalações, que eu enviei para minha mãe. Algumas com os amigos e colegas de quarto, de coisas que fiz nas aulas... e então começavam as fotos com ela.
[Photograph – Ed Sheeran] Loving can hurt (amar pode doer)
Loving can hurt sometimes (amar pode doer as vezes)
But it's the only thing that I know (mas é a única coisa que eu sei)
When it gets hard (Quando fica difícil)
You know it can get hard sometimes (Você sabe que pode ficar difícil as vezes)
It is the only thing that makes us feel alive (É a única coisa que nos faz sentir vivos)
A primeira foi tirada no nosso primeiro encontro. Era uma selfie, nós dois estávamos sorrindo no píer de Santa Monica com as ondas batendo na praia logo atrás. Aquele era o exato local onde demos o nosso primeiro beijo, e ao ver aquela foto foi quase como se eu sentisse o gosto daquele momento outra vez.
Mais algumas fotos pra frente, e nós dois já estávamos nos formando. Havia fotos da cerimônia, de nós dois usando beca, do jantar e da festa. Foi lá que conheceu a minha família, e eu me lembro que nesse dia, enquanto ela brincava e ria com as minhas priminhas mais novas, minha mãe me puxou para um canto e disse: “essa garota é perfeita pra você, nunca deixe-a ir.” We keep this love in a photograph (Nós mantemos esse amor numa fotografia)
We made these memories for ourselves (Nós fizemos estas memórias para nós mesmos)
Where our eyes are never closing (Onde nossos olhos nunca se fecham)
Our hearts were never broken (Nossos corações nunca foram partidos)
And time's forever frozen still (E o tempo está congelado para sempre)
Nas próximas fotos, nós dois já estávamos morando em Nova York. Havia diversas fotos dos nossos passeios pela cidade, como no Central Park, no Museu de História Natural, na Broadway e em uma série de lugares. Algumas eram muito engraçadas. e eu nunca fomos do tipo “casalzinho fofinho”, sempre gostamos de brincar um com o outro e fazer palhaçada o tempo todo. Em algumas estávamos fazendo caretas, posando com as atrações e quadros do museu, imitando as poses das estátuas, fingindo sermos atingidos pelos tiros disparados de um dos cartazes de uma peça da Broadway, entre outras brincadeiras.
Também tinham fotos das diversas viagens que fizemos juntos. Durante as férias, e eu adorávamos ir a qualquer destino que estivéssemos afim ou que tivéssemos curiosidade de conhecer, e explorar tudo que havia para ver. Fomos a grutas, cachoeiras, museus, monumentos, estradas, zoológicos, praias e todo tipo de lugar que você imaginar. Viajamos para o país todo e também para cidades fora dele, conhecendo tudo que havia para conhecer. Sempre fomos muito curiosos, e adorávamos sumir do mapa por uns dias e ter um tempo pra nós dois.
Uma foto que eu particularmente adorava era uma que tirei durante a nossa visita ao zoológico de San Diego, em que estava posando ao lado das girafas quando de repente uma delas abocanhou seu chapéu e começou a mastigá-lo. Eu tirei a foto no momento exato em que tudo aconteceu, e dava para ver a expressão de susto e surpresa em enquanto a girafa roubava seu acessório. So you can keep me inside the pocket (Então você pode me guardar no bolso)
Of your ripped jeans (Do seu jeans rasgado)
Holding me close until our eyes meet (Me mantendo perto até nossos olhos se encontrarem)
You won't ever be alone (Você nunca estará sozinha)
Wait for me to come home (Me espere para voltar para casa)
As próximas fotos eram no natal, quando já estávamos juntos há três anos. Passamos as festas na casa dos meus pais, e houve uma nevasca fora do normal naquele ano durante quase todo o feriado natalino. Estradas foram interditadas, o comércio foi fechado e estava muito frio.
Alguns dias antes do ano novo, quando a tempestade finalmente deu uma trégua, eu e decidimos nos divertir um pouco e saímos no jardim para construir bonecos de neve com meus sobrinhos pequenos. Passamos a tarde toda fazendo guerra de bolas de neve e anjinhos no chão, rindo e brincando muito – tudo registrado também em vídeos da correria e das gargalhadas.
Nosso boneco de neve ficou totalmente deformado, e como não tínhamos cenoura em casa, tivemos que fazer seu nariz com um aspargo. Minha sobrinha mais nova o batizou de Natalino Noel. Nas fotos, estávamos todos encapotados usando luvas e toucas, rindo deitados no chão, correndo das bolas de neve que meu sobrinho chamava de “superbombas” e com as roupas cobertas de gelo macio. Loving can heal (Amar pode curar)
Loving can mend your soul (Amar pode remendar sua alma)
And it's the only thing that I know (E é a única coisa que eu sei)
I swear it will get easier (Eu juro que ficará mais fácil)
Remember that with every piece of ya (Se lembre disso em cada pedaço seu)
And it's the only thing we take with us when we die (E é a única coisa que levamos com a gente quando morremos)
A outra sequência mostrava nós dois na fila do cinema para assistir a pré-estreia do novo filme do Star Wars. Ambos estávamos segurando sabres de luz de brinquedo e baldes gigantes de pipoca, usando óculos 3D e com as caras mais animadas do mundo. era apaixonada por aquele filme desde criança, e a estreia do novo episódio seria bem no nosso aniversário de namoro. Só Deus sabe o quanto eu penei pra conseguir as entradas para aquela sessão, o que incluiu até subornar o cara da bilheteria que era um velho amigo meu. Ela quase chorou quando lhe dei os ingressos, e parecia uma criança de tão empolgada que estava no dia em que fomos assistir. Ela me obrigou a tirar fotos com os cartazes do filme e também com alguns fãs que estavam vestidos de personagens na entrada do cinema.
Algumas das fotos que eu tinha eram de nós dois em casa. Tinha um vídeo de nós tentando fazer panquecas para o café da manhã e sujando a cozinha toda, completamente cobertos de farinha e dando risada. Outro vídeo foi quem fez, num dia em que ela resolveu pregar uma peça e me dar um susto – que sinceramente quase me matou do coração. Ela se escondeu atrás da porta do banheiro e me esperou sair pra pular na minha frente e gritar usando uma máscara assustadora do Freddy Krueger.
A minha foto preferida dessa coleção foi tirada no dia seguinte a essa brincadeira, num domingo em que eu acordei mais cedo e fiquei observando dormir. Ela estava abraçada ao travesseiro com o cabelo todo jogado para trás e a luz do sol batendo no seu rosto, parecendo um anjo. Foi um dos inúmeros momentos durante o tempo que passamos juntos, em que eu percebi o quanto era um homem de sorte por tê-la. Eu assisti aquela cena durante vários minutos, e então tirei a foto para poder me lembrar dele. Quando mostrei a ela quis apagá-la, mas eu salvei no computador antes que ela fizesse isso. We keep this love in a photograph (Nós mantemos esse amor numa fotografia)
We made these memories for ourselves (Nós fizemos estas memórias para nós mesmos)
Where our eyes are never closing (Onde nossos olhos nunca se fecham)
Our hearts were never broken (Nossos corações nunca foram partidos)
And time's forever frozen still (E o tempo está congelado para sempre)
So you can keep me inside the pocket (Então você pode me guardar no bolso)
Of your ripped jeans (Do seu jeans rasgado)
Holding me close until our eyes meet (Me mantendo perto até nossos olhos se encontrarem)
You won't ever be alone (Você nunca estará sozinha)
And if you hurt me that's okay baby (E se você me machucar, tudo bem querida)
Only words bleed (Apenas as palavras sangram)
Inside these pages you just hold me (Dentro dessas páginas você me abraça)
And I won't ever let you go (E eu nunca vou te deixar ir)
Wait for me to come home (Me espere para voltar para casa)
Era quase como se aquelas fotos saíssem de dentro da tela do computador. Como se os momentos em que foram tiradas ficassem tão vivos na minha mente, que eu pudesse assisti-los acontecendo novamente bem ali, dentro do meu quarto. Eu podia ouvir o som da risada infantil dos meus sobrinhos enquanto brincávamos com as bolas de neve, podia sentir a brisa quente da estrada que invadia o carro quando eu e viajávamos, o toque macio da farinha que ela jogou em mim enquanto fazíamos panquecas, sentir a paz que me transbordou enquanto eu a observava dormir. Eu ria e me divertia sozinho ali sentado, relembrando todas as emoções e sentimentos que estavam guardados dentro daqueles arquivos do passado. So you could fit me (Então você poderia me colocar)
Inside the necklace you got (Dentro do colar que você ganhou)
When you were sixteen (Quando tinha 16 anos)
Next to your heartbeat where I should be (Perto das batidas do seu coração, onde eu deveria estar)
Keep it deep within your soul (Mantenha isso no fundo da sua alma)
Outras fotos, agora na primavera, eram as últimas que eu tinha. Essas eram mais atuais, de cerca de duas semanas atrás. e eu estávamos fazendo um piquenique no Central Park, debaixo da árvore de cerejeira em que eu pedi sua mão. O dia estava lindo e ensolarado, e nós nos divertimos muito. Ela estava usando um vestido amarelo todo florido, e tinha pendurada no cabelo uma das flores da árvore que eu peguei e dei a ela. Havia fotos do lago, dos gansos e da paisagem. E então eu cheguei à última foto da pasta.
O sol já estava se pondo, e estava encostada no tronco da árvore virada pra mim e com o rosto na direção da luz. Ela não sabia que eu estava com a câmera, e olhava distraída para a água azul do lago refletindo o fim da tarde. Um sorriso tímido brotava no canto do seu rosto, provavelmente devido a algum pensamento bom que lhe atingiu. A brisa jogava seu cabelo para trás dos ombros e ajudava a tornar aquela a melhor foto que eu já vi na minha vida.
Uma lágrima teimosa rolou dos meus olhos. era tudo pra mim. Durante nossos quatro anos juntos, ela me ensinou mais do que eu poderia aprender a minha vida inteira sozinho. Me ensinou a me divertir, a ouvir, a observar as coisas simples da vida, a ser grato pelo que eu tenho, a sorrir sempre, a me preocupar com as outras pessoas, a como não fazer panquecas de café da manhã e, mais importante, me ensinou a amar. Amar incondicionalmente e verdadeiramente. Amar aos outros, amar a natureza, amar ao conhecimento, amar a mim mesmo, amar ao mundo, amar a vida. E a amá-la também.
Me ensinou tão bem que eu sabia que jamais seria capaz de desaprender. Me acostumei tanto a tê-la ao meu lado o tempo todo que agora era difícil lidar com o fato de ela não estar mais por perto.
É, Samuel tinha razão. No final das contas, eu levaria muita coisa boa dessa experiência toda. Muito mais do que uma segunda chance de viver a minha história de amor, mas também uma segunda chance de olhar a vida. Eu a vi de diversas formas diferentes, vivida pelos mais diversos tipos de pessoas, com idades, cores, raças, culturas e personalidades diferentes.
Eu aprendi que nem tudo é o que parece, e que um ladrão pode sim ser uma boa pessoa no fundo. Eu aprendi que há sempre uma esperança se você acredita que é possível, até mesmo para a cura de um câncer terminal. Aprendi que o amor verdadeiro sempre encontra o seu jeito de fazer as coisas se acertarem novamente, mesmo que seja a beira de um divórcio ou de um suicídio. Aprendi que é preciso perdoar e se perdoar, pois nossos erros não definem quem somos e nós sempre teremos outra chance de salvar alguém de uma explosão. Aprendi que é preciso olhar duas vezes antes de julgar qualquer coisa e que o poder de um sorriso é muito maior do que imaginamos. E aprendi também que é preciso ter compaixão e compreensão ao se lidar com as pessoas, e às vezes ter a bondade de colocar a vida dos outros a cima da sua e fazer sacrifícios pelo que é certo.
Sou uma pessoa totalmente diferente de quem eu era há cinco dias atrás. Não sou mais cético, aprendi a olhar para o lado ao invés de só olhar para mim mesmo, passei a acreditar que tudo acontece por uma razão e que existe bem dentro das pessoas, inclusive de mim mesmo. Samuel tinha razão, eu não estou aqui por acaso. Eu tinha uma lição a tirar de toda essa loucura. E durante esses cinco dias preso aqui nessa realidade paralela eu pude aprender e perceber mais de um milhão de coisas para as quais nunca tinha ligado, mas a minha principal lição tinha acabado de me ser dada: eu precisava resolver meus próprios problemas sozinho.
A verdade é que eu estava cansado de assassinar pessoas inocentes todos os dias. A culpa era enorme todas as vezes que eu enfiava alguém dentro daquele táxi, pois nenhuma das pessoas que eu escolhi tinha uma verdadeira razão para estar ali. David, Aimee, Monica, Owen, Arthur... eles não tinham nada a ver com o porquê de eu estar fazendo aquilo. Por mais que fossem ladrões, doentes, suicidas, traidores ou muito velhos, nenhum deles tinha culpa por ter morrido. Os destinos deles não pertenciam a aquele acidente. Eu estava tentando encontrar alguém que resolvesse o meu problema, quando na verdade eu mesmo é que deveria resolvê-lo.
Chegar a essa conclusão não foi fácil. Mas eu não posso colocar essa responsabilidade nas costas de ninguém, e também não posso continuar a me enganar. Eu já vasculhei a mente de cada um naquela avenida durante esses cinco dias, não existe ninguém com um motivo bom o suficiente para ser colocado dentro daquele táxi e ser jogado para a morte – eu já teria o achado. Eles não devem nada para e muito menos para mim, e eu não tenho o direito de tirar a vida de nenhum deles para devolvê-la a minha noiva sem consentimento. Eu preciso de alguém que faça um sacrifício real e consciente, alguém que esteja disposto a morrer para salvar a vida de .
E eu sabia que essa pessoa tinha que ser eu.
Eu não posso colocar mais ninguém dentro daquele táxi. Não existe ninguém perfeito para colocar lá dentro, não existe nenhum destino preparado para terminar naquela rodovia, nunca existiu. Sempre fui eu. Passei esse tempo todo procurando pela pessoa perfeita que resolveria os meus problemas, mas ela jamais aparecerá.
Quais são as outras alternativas que eu tenho? Chamar Samuel e dizer a ele que eu desisto? Não posso deixar que continue morta. Sua vida estava apenas no começo. Ela é uma pessoa maravilhosa, tem amigos e família que a amam, tinha muito pela frente. Tem uma carreira, é querida, tem planos para o futuro e uma razão para estar viva. É uma pessoa maravilhosa, e com certeza no futuro acharia outro cara para seguir a sua vida e ser feliz a dois como sempre sonhou. Ela é independente, vai saber lidar com a dor e seguirá em frente iluminando a todos que cruzarem seu caminho com o dela. Perder seria um grande desperdício para o mundo, e eu sabia disso.
A quem eu quero enganar, afinal? Minha vida não tem mais sentido se não for para ter ao meu lado. De alguns anos pra cá ela se tornou tudo pra mim, e eu sempre disse que faria qualquer coisa por ela. Meu cargo pode ser facilmente ocupado no trabalho, minha pequena herança vai servir de gatilho para que recomece sua vida, minha família pode muito bem se unir para superar a dor da perda e meus amigos podem se contentar em se lembrar de mim apenas quando virem nossas fotos antigas em álbuns empoeirados. Pois, desde que eu conheci , sempre foi ela o resumo de tudo. E, por mais que me exija coragem e seja uma das decisões mais difíceis que tomarei na vida, eu estou disposto a sacrificar tudo por ela, e para vê-la viva e feliz outra vez.
Não vou jogar uma pessoa qualquer aos leões só para consertar um erro na minha vida, não posso fazer isso – não depois de tudo que aprendi. Vou agir como homem e encarar o problema de frente, e então veremos no que isso vai dar. vai ficar bem, todos ficarão, inclusive eu.
A única coisa que lamento nisso tudo é ter que partir o coração dela. Não desejo essa dor que estou sentindo pra ninguém, muito menos pra ela. Sei que, já que não saberá de toda a história que aconteceu durante esses últimos dias, provavelmente não vai entender o porquê de tudo ter acontecido. O porquê de eu ter morrido em um trágico acidente de carro logo depois de pedir sua mão em casamento. Vai se sentir injustiçada pelo destino e pensará que tudo não passa de um grande erro do universo. Assim como eu pensei quando ela se foi. Mas é forte, muito mais do que imagina. Eu sei que em breve ela ficará bem e, mesmo não sabendo sobre o meu sacrifício, ficará grata por todo o resto.
Nunca em minha vida pensei que fosse amar tanto uma pessoa a ponto de dar a minha vida por ela. Mas aqui estou eu, contrariando a tantas coisas que durante a vida toda pensei que eu nunca mudaria. Revendo meus princípios e sacrificando tudo que eu sou por uma outra pessoa. Mas eu sei que estou fazendo a coisa certa. merece viver, e eu sou o único que pode proporcionar isso a ela novamente. Pois eu sei que uma vida sem ela não vale a pena ser vivida. When I'm away (Quando eu estiver longe)
I will remember how you kissed me (Eu vou me lembrar de como você me beijou)
Under the lamppost back on 6th street (Em baixo do poste de luz da 6ª rua)
Hearing you whisper through the phone (Ouvindo você sussurrar pelo telefone)
Wait for me to come home (Me espere para voltar para casa)
O dia seguinte amanheceu com o clima bem mais pesado do que o usual, com a decisão que tomei na noite anterior dominando meus pensamentos por inteiro. Mas eu sabia que tinha que fazer aquilo; o que eu sentia não era incerteza, mas sim a sensação da morte se aproximando. Do sacrifício que eu estava disposto a fazer para salvar a vida da pessoa que eu mais amo no mundo. E do fim de tudo isso.
Levantei da cama pela última vez e tomei o último banho da minha vida, seguido do meu último café da manhã. teria sua vida de volta em breve, e eu cumpriria minha missão finalmente, acertando as coisas como sempre teve que ser. Estava a poucas horas de deixar este mundo e ir para sabe Deus onde, para sempre. Era uma sensação estranha; Como se eu estivesse me preparando para a morte, com uma xícara quente de café. Troquei de roupa e então saí, ao encontro do meu destino.
Caminhei lentamente pelas ruas no caminho até a 5ª Avenida, já que agora não precisava mais correr para revirar mentes. Observei o céu azul da manhã, as nuvens sendo levadas pelo vento, os carros passando, as pessoas caminhando, as árvores balançando suas folhas e tudo que eu se encontrava ao meu redor. É, esse mundo é um bom lugar pra se viver. Gosto dele, e adorei passar minha vida aqui. Não sei se depois que tudo acontecer eu irei para um lugar onde há tudo isso que tem aqui, ou se ao menos irei para algum lugar. A única coisa que eu sei é que eu sentirei falta disso tudo.
Durante a caminhada, muitas coisas me vieram à mente. Lembranças, memórias, coisas que fiz durante o tempo em que estive aqui. Pensei sobre a minha infância, na minha época de escola, nos campeonatos de futebol, nas viagens em família e na casa que morei quando criança. Pensei na minha adolescência, no quanto cresci, nas coisas que aprendi, na minha faculdade e no meu trabalho.
Também pensei em várias pessoas. Meus pais, que cuidaram tão bem de mim durante todo esse tempo, e que provavelmente ficariam arrasados depois de saber do que me aconteceu. Nos meus irmãos mais velhos, que me enchiam tanto o saco quando criança, mas que sempre estiveram lá por mim. Nos meus sobrinhos pequenos, a quem nunca verei crescer, mas que me trouxeram vários sorrisos e me fizeram criança outra vez. Nos meus amigos, tanto do colégio quanto da faculdade e do trabalho, caras incríveis com quem me diverti muito, vivi diversas histórias e aprendi também. E pensei sobre ela. . A garota dos meus sonhos, a mulher da minha vida. A pessoa que fez da minha existência algo mais valioso e divertido. A pessoa por quem eu estive nessa essa loucura - a pessoa por quem eu morrerei.
Fiquei pensando sobre a morte. Logo serei eu dentro daquele táxi. É irônico que durante esse tempo todo eu estive colocando os mais diversos tipos de pessoa lá, procurando por alguém que pudesse sofrer as consequências, quando essa pessoa era eu mesmo. Em breve, será o meu mural do Facebook cheio de publicações de luto e saudade, algumas verdadeiras e outras nem tanto. Em breve, serão os meus pais chorando naquela recepção de hospital, desejando ter seu amado filho de volta. Em breve, será quem estará sentada naquele banco no corredor do hospital, chorando enquanto lamenta-se pela morte da pessoa que um dia a fez feliz. Mas desta vez, sem nenhum anjo para ajudá-la.
Será que vai doer quando aquele caminhão atingir o táxi? Será que eu verei uma luz no fim do túnel? Ou será que verei apenas escuridão? Qual será a sensação de morrer? Será que , de alguma forma, saberá do sacrifício que eu fiz por ela?
Todas aquelas eram dúvidas sem resposta, eu sabia disso. Mas isso não impedia que elas corressem pela minha mente, de novo e de novo. Eu estava assustado, ansioso, inseguro, mas estava certo da minha decisão. Prometi a mim mesmo que faria qualquer coisa por , e estou cumprindo essa promessa agora.
Continuei a minha caminhada até o destino final, ainda filosofando sobre a vida, a morte e coisas do gênero. Mas então, quando estava a apenas algumas ruas da chegada, avistei algo na esquina que me chocou completamente, interrompendo a minha respiração.
Era ela.
estava ali, bem na minha frente.
Aquilo não era um fantasma. Era mesmo, vivinha, em carne e osso. Carregando sua bolsa com a papelada do trabalho, segurando um copo do Starbucks e usando o mesmo vestido que estava no dia em que sofreu o acidente.
Não sei como aquilo nunca passou pela minha cabeça. Aquele era o dia do acidente, algumas horas antes. Se não morria no táxi, ela continuava viva em algum lugar da cidade, sem nada mudar em sua vida. Ela estava apenas tendo um dia normal, sem fazer ideia do que estava acontecendo na realidade paralela.
Vê-la assim depois de tudo que aconteceu foi surreal. Aqueles cinco dias que eu passei tentando encontrar um substituto para o acidente pareciam como uma eternidade sem ela. Era quase como se eu tivesse me esquecido, mas ao mesmo tempo, eu me lembrava muito bem.
estava linda como sempre. Usava o cabelo preso num coque, a aliança que eu lhe dei nos dedos, e tinha os olhos distraídos vasculhando a rua, esperando o sinaleiro de pedestres abrir para passar. Eu fiquei paralisado olhando para aquela cena, sem saber o que pensar e sem poder acreditar. Ela estava ali.
Depois de alguns segundos em choque, saí correndo em direção a ela. Não sabia ao certo se podia fazer aquilo, mas pouco me importava. Eu precisava falar com ela uma última vez, antes de tudo acontecer. Fui até antes que o sinal abrisse, com o coração palpitando na garganta.
Chamei seu nome a pouquíssimos metros de distância, e ela virou para o lado, confusa. Pousou seu olhar sobre mim e então deu um sorriso, um pouco surpresa.
- ? – Ela disse divertida e com uma sobrancelha arqueada, achando estranho que eu estivesse ali num dia “comum”. – O que está fazendo aqui?
Ouvir o som da sua voz novamente foi algo inexplicável. Tinham sido apenas cinco dias longe dela, mas pareciam eras inteiras. Eu nem sabia o que dizer.
- Eu... – Gaguejei, ainda abobado com tudo aquilo. – Eu vim aqui só... só pra dizer que eu te amo. – Falei por fim. – Eu te amo mais que tudo no mundo. Obrigado por ser a mulher da minha vida, e por me fazer feliz todos os dias. Você não faz ideia do quanto significa pra mim.
sorriu derretidamente. Tombou a cabeça um pouco para o lado, e colocou uma das mãos no meu rosto.
- Eu também te amo, , mais do que você imagina. – Ela disse com um sorriso carinhoso.
Sem pensar muito mais, eu a puxei para perto e a beijei. Beijei-a doce e calmamente, como sempre gostei de fazer. Sentir o toque dela novamente me causou diversos arrepios, e uma sensação de paz atingiu meu coração. Eu sabia do fundo da minha alma que a amava, e sentia isso em todas as células do meu corpo. Eu senti muita falta disso, e agora sentiria para toda a eternidade. Eu só precisava de mais um momento ao lado dela, antes de ir embora para sempre – e ao menos nisso, o destino foi gentil comigo.
Queria poder permanecer ali com ela em meus braços pela eternidade, mas não seria possível. Eu sabia que o horário do táxi estava próximo, e eu tinha que ir pegá-lo. Dei um longo beijo em sua testa, e então saí correndo. Virei para trás por um momento, e acenei para que acenou de volta ainda um pouco confusa com tudo aquilo, mas sorridente. Dei a ela uma última olhada, e então fui embora.
- Adeus. – Sussurrei, e apenas eu pude ouvir.
Foi difícil conter as lágrimas diante de uma situação daquelas. Sempre que uma pessoa querida morria, eu pensava que queria ter sido avisado na última vez que estive com ela para poder me despedir. Mas agora eu sei que isso só torna tudo mais difícil, pois despedir-se para sempre de quem se ama é uma das coisas mais difíceis de fazer.
E então eu segui o meu rumo, e não demorei para chegar até a 5ª Avenida. Já eram quase nove e meia da manhã, o que indicava que em breve o táxi 237 encostaria na calçada a espera de um novo destino para finalizar.
Dei uma última olhada no céu. Muitas pessoas dizem que é pra lá que nós vamos ao morrermos, para viver em um paraíso eterno. Não sei se acredito em palácios feitos de nuvens e unicórnios mágicos, mas depois de tudo que aconteceu na minha vida durante esses últimos dias, acho sim que pode existir algo além daqui. Algum lugar melhor, de onde existe alguém sempre olhando por nós aqui na Terra. Esse pensamento me confortou, afinal de contas eu estou prestes a descobrir a verdade.
Então o grande carro amarelo e preto aproximou-se da calçada, estampando o número 237 na identificação. Olhei a minha volta e vi o grande mar de gente que circulava pela 5ª Avenida naquele momento, e pensei em todas as pessoas que coloquei naquela situação nos últimos dias. Todos eles deveriam estar por ali. Carregando consigo suas próprias histórias, seus próprios demônios e seu próprio futuro. No fim das contas, era eu. Aquele era o meu futuro.
Respirei fundo e comecei a andar em direção ao veículo. Era uma sensação estranha, como se eu estivesse caminhando para a morte. Eu estava pronto – tinha que estar. Chegou a hora. Naquele momento, havia alguém observando aquela cena toda acontecer. Alguém que a observava desde a noite anterior. Alguém que, na verdade, a observava desde sempre.
Um jovem anjo chamado Samuel estava encostado no canto de um dos prédios, assistindo ao ato de coragem de ao querer se sacrificar pela noiva. Samuel dera a ele a chance de salvar a vida da amada, mas não era bem aquilo que ele esperava que acontecesse.
Ele estava ouvindo os pensamentos de quando o garoto tomou essa decisão. Já estava absolutamente tocado com o que vira nas noites anteriores, o amor verdadeiro do rapaz pela garota que dominava seu coração. Mas sabia que aquilo estava errado: tal amor não deve ser arruinado daquela maneira, sendo separado pela morte. Pois foi justamente esse pensamento que o fez dar uma segunda chance a naquele dia no hospital.
Aquele deveria ser só mais um passeio de rotina pelos corredores do Lenox Hill, para ajudar os doentes e confortar os familiares aflitos com sua energia angelical. No entanto, Samuel sentiu algo que realmente chamou sua atenção e o levou até . Enquanto o garoto estava chorando sentado num dos bancos do corredor, Samuel conseguiu ver o quanto o amor dele por era verdadeiro. Ele não sabia por que, mas algo lhe dizia que precisava ajudá-lo. Ele precisava reunir e novamente.
Mas bem ali naquele momento, sua missão estava falhando. estava prestes a se suicidar para devolver a vida a sua amada, e isso – apesar de ser uma linda prova de amor – estava errado. não deveria morrer, e Samuel sabia disso.
Na noite anterior, após ouvir todos os pensamentos do rapaz e vê-lo dormir, Samuel teve acesso a como seria o futuro caso morresse no sexto dia da missão e fosse a vítima definitiva do acidente. Na verdade ele fazia isso sempre – até mesmo antes de – pois gostava de acompanhar tudo de perto para ter certeza de que seu amigo estava no caminho certo. Dessa vez, ele tinha certeza de que era a escolha errada.
E provavelmente estava certo, pois aquele não era o futuro mais agradável do mundo. Samuel viu o acidente acontecendo com dentro do carro, o que automaticamente tornava aquele o curso definitivo do tempo, já que aquele era o sexto dia da missão e o responsável por controlar tudo havia morrido. E então as Consequências de tudo vieram.
“ estava no trabalho quando tudo aconteceu. A garota recebeu uma ligação do hospital, do tipo que ninguém quer atender. Foi correndo para lá imediatamente, onde recebeu a notícia do falecimento de seu amado noivo em um trágico acidente de táxi, devido a uma fatalidade infeliz do destino.
A garota caiu de joelhos no chão duro e gelado do hospital, chorando, enquanto tinha um pedaço do seu coração sendo arrancado e tirado para sempre dela. tentava imaginar o futuro dela sem , nunca mais tendo seu carinho, seus beijos, seu corpo no dela, nunca mais ouvindo suas piadas e histórias, nem mesmo “eu te amo”. Sem poder tocá-lo, amá-lo, fazer cafuné em seus cabelos, comer seus deliciosos nachos mexicanos no jantar ou fazê-lo rir de alguma piada idiota que adorava contar. Sem ter ele para protegê-la, confortá-la, dizer que tudo ficaria bem e que ele estaria sempre ao lado dela.
Eles nunca mais viajariam juntos. Nunca mais acordariam um ao lado do outro de manhã. Nunca mais construiriam bonecos de neve no natal. Nunca mais iriam ao zoológico alimentar girafas. Nunca mais fariam seus costumeiros piqueniques debaixo da cerejeira do Central Park. Nunca mais caminhariam de mãos dadas, ririam juntos, ficariam acordados até de madrugada tendo longas e filosóficas conversas, nunca mais assistiriam filmes agarradinhos no sofá, nunca mais jogariam videogame juntos, nunca mais se casariam. estava sozinha agora.
sempre fora seu porto seguro. Era o tipo de cara que nunca te deixava na mão, que sabia exatamente o que você estava sentindo, que fazia de tudo pra te ver sorrir. Que trazia chocolates quando ela tinha crise de TPM, que a acalmava toda vez que estava irritada – e quantas vezes isso aconteceu -, que sempre fazia gracinhas quando ela estava triste só para fazê-la rir, que a amava incondicionalmente. Ele era o homem perfeito, do tipo que todas sonham em ter. costumava referir-se a ele como um anjo que foi enviado para a Terra destinado a aturá-la para sempre, pois ela sabia muito bem que não era uma mulher fácil de lidar. O nome dele na sua agenda de contatos era “Príncipe”, justamente porque ela acreditava que ele era um – o príncipe encantado dela.
nunca havia a deixado na mão. Era sempre gentil, desde as pequenas coisas como abrir a porta do carro até defendê-la em discussões e protegê-la do que quer que fosse. Nunca se negou a ajudá-la, estava sempre lá quando ela precisava, dava ótimos conselhos e fazia um ótimo chocolate quente nos dias frios. Nunca reclamou de nada a respeito dela, nem de suas bagunças, nem de seus acessos de raiva e nem das inúmeras vezes que ela o fez pagar mico. Ele costumava chamá-la de “bicho-preguiça” porque dormia demais. Sempre matava as baratas e aranhas que apareciam no banheiro e na sala – mesmo que ela não visse problema em matá-las sozinha. gostava de tratá-la como uma dama, sempre colocando as necessidades dela acima das suas.
Era um cara extremamente inteligente, gentil, carinhoso, engraçado, romântico, aventureiro, divertido, bonito e incrível. tinha sorte em tê-lo, ela sabia disso. Era perfeito demais para a grande bagunça que ela era. No entanto, eles se davam incrivelmente bem e sempre foram assim. Eram inseparáveis, feitos um para o outro, almas gêmeas, ou seja lá o que for. Tudo que sabia era que queria passar o resto da sua vida tendo ele ao seu lado – e agora isso não seria mais possível.
A garota ficou sentada por horas naquele chão gelado, segurando a aliança dele em mãos e refletindo sobre tudo aquilo. Aquele era um pesadelo horrível do qual ela jamais poderia acordar.
E essa melancolia duraria por muito mais tempo do que se pode imaginar. A “ Alegria” como era conhecida desapareceria, e daria lugar a uma triste e desanimada de um jeito que ela jamais foi. Ela deixaria de sair, de fazer piada de tudo, de pagar micos, de ver sua família e seus amigos, de se divertir, de rir. jamais seria a mesma depois de ter arrancado da sua vida daquela maneira. O tempo iria passar e a vida continuaria, mas aquele pedacinho dela continuaria sempre pensando nele e deixando um vazio jamais preenchido dentro dela. Sua luz, que sempre fora seu ponto forte, se apagara para sempre.
nunca namoraria outra vez. Chegaria a sair brevemente com outros caras, mas tudo sempre a levaria a crer que era e sempre seria o homem da sua vida. Não se casaria nem teria filhos. Parte da alegria que antes a habitava voltaria, e faria com que todos acreditassem que ela estava bem. E ela estava, mas não tanto quanto já esteve. De alguma forma, uma pequena partezinha dela havia morrido dentro daquele táxi também.”
Samuel sentiu extrema pena daquela situação toda. , um cara tão perdidamente apaixonado por uma garota perfeita aos seus olhos, e mal sabia que ela era igualmente apaixonada por ele, que por sua vez também era perfeito para ela.Nenhum dos dois achava que merecia o outro, e isso só fazia tudo ser ainda mais lindo e ao mesmo tempo ainda mais trágico.
Isso fez Samuel duvidar da perspicácia do destino. Não era possível, ele tinha que ter errado daquela vez. Um casal que se ama de verdade nunca deve ser separado desse jeito, e pessoas que amam tão pura e verdadeiramente alguém não devem ter um destino tão trágico quanto um acidente de carro ou uma vida eternamente amargurada. Pois ele bem sabia o que era viver uma vida daquela maneira.
Nem sempre Samuel fora um anjo. Antes, ele era Samuel Higgins, um cara comum. Vivia uma vida normal e ordinária, no entanto, era uma pessoa muito egoísta. Não tinha o costume de ajudar os outros, ignorava mendigos e cachorros de rua que passavam por ele, poucas coisas tocavam seu coração. Dificilmente fazia esforços para ajudar alguém, era preguiçoso e avarento.
Até que um dia o feitiço virou contra o feiticeiro. Apesar de ser egocêntrico, Samuel era verdadeiramente apaixonado por uma moça chamada Isabela Turner. Um dia, Isabela estava dirigindo em uma rodovia durante a noite e se envolveu em um acidente de carro terrível, onde um motorista bêbado em alta velocidade atingiu em cheio o seu carro. Por ter medo da polícia e da punição que sofreria, o homem que provocou a batida recusou-se a ajudá-la e fugiu do local, deixando Isabela ferida e desacordada no carro destroçado – o que fez com que os médicos chegassem tarde demais para ajudá-la.
O egoísmo de outro homem acabou com a vida do individualista Samuel. O rapaz, que apesar de tudo não era mau, sofreu muito com a perda de Isabela. Ela fora a única pessoa com quem ele realmente se importou, e aquilo foi demais para ele. Samuel não conseguiu lidar com a perda da amada e acabou se suicidando para evitar a dor que o atormentava.
É, seu final não foi dos mais felizes. No entanto, depois que muito tempo se passou do ocorrido, Samuel recebeu ajuda de muitos outros anjos bons, que o guiaram e o ensinaram a amar ao próximo e a ser solidário. Ele se arrependeu do seu suicídio e de todo o mau que havia causado sendo egocêntrico. Um tempo depois, ele reencontrou Isabela e acertou as coisas com ela, e também com o homem que causou o acidente que a matou. E depois, recebendo o devido treinamento, então se tornou um anjo. Um anjo que, apesar de evoluído, ainda tinha muito a aprender.
Samuel entendia pelo que estava passando naquele futuro que viu. Ele era do tipo que acreditava em finais felizes para histórias de amor – apesar de a sua não ter tido o mesmo destino -, e ver aquilo foi como levar um tiro em seu orgulho. Depois de todo o seu esforço e do esforço de nessa missão, isso não poderia acabar daquela maneira.
Não podia ter sido tudo em vão. Tinha que haver um motivo para Samuel ter sentido aquela conexão com e tê-lo ajudado. Talvez tenha feito isso porque se identificou com a sua situação, devido ao acidente de carro e ao amor incondicional sendo perdido, ambas coisas pelas quais já passou. Talvez porque ele estava louco para exercer sua nova solidariedade, mas isso não importa. O que importava agora é que o seu plano estava indo por água abaixo, e ele precisava dar um jeito de concertar as coisas.
Aquilo não era justo. Samuel sentiu extrema compaixão pelo jovem casal, e focou-se em planejar alguma coisa que pudesse impedir esse desfecho trágico, antes que acordasse para um novo dia – e provavelmente o último. Começou a pensar sobre Isabela, e no que ele gostaria que outra pessoa tivesse feito para ajudá-los na época em que ela sofreu o acidente.
precisa de alguém para entrar naquele táxi. Isso significa que alguém precisa necessariamente morrer e, na falta de outra opção, ele mesmo morreria. Mas pode haver outra alternativa com um pouquinho de esforço.
Aquela não era uma opção fácil de executar. Incluía um grande esforço pela parte do anjo e também um possível sacrifício de muitas coisas. Mas aquela história mexeu com ele de uma maneira que nada jamais havia mexido. E ele não podia ficar parado sem fazer nada, não outra vez.
Anjos são capazes de assumir formas humanas quando necessário. É por um curto espaço de tempo, mas o suficiente. Tornam-se humanos como qualquer um, da mesma forma como já foram um dia, e sentem dor, fome, frio e também amor ou ódio. É como se eles voltassem a sua forma viva novamente, em carne e osso, para executar uma tarefa específica. Como por exemplo, entrar em um táxi amaldiçoado e dar a sua vida num acidente de carro para trazer de volta uma jovem apaixonada para o amor da sua vida.
Sim, aquilo era possível. No entanto, era como se Samuel voltasse a ser Samuel Higgins novamente. Caso morresse no seu corpo materializado, ele voltaria a ser apenas um espírito comum, e não seria mais um anjo. Caso quisesse voltar a ser, teria que passar por uma série de testes e treinamentos de novo se quisesse voltar a ter suas asas e seus poderes, e isso levaria muito, muito tempo.
Samuel adorava ser um anjo. No entanto, ele tinha uma missão com aquele casal, uma missão que não fora dada a ele por acaso, e sabia que aquela era a única solução para juntar os dois novamente. Seria um sacrifício válido.
Essa foi a decisão que Samuel tomou durante a noite, e que estava prestes a executar naquele momento enquanto observava se preparar para entrar no táxi. Numa rápida transformação, o anjo trocou suas asas por um moletom e calças jeans, e tornou-se um humano outra vez, pronto para salvar o dia.
Chegou a hora. Meu destino estava me esperando dentro daquele veículo, e eu estava pronto para encará-lo e trazer de volta a partir do meu sacrifício. Fui caminhando até o carro e estiquei a mão para abrir a maçaneta, no entanto, um homem agarrou-a primeiro e abriu a porta.
- Acho que esse é o táxi errado pra você, . Não vai para um destino que você deveria ir. – Disse o rapaz em tom brincalhão, me fitando com seus grandes olhos azuis de forma profunda. E então, sem mais nem menos, entrou no táxi 237.
Sabia que já tinha ouvido uma voz debochada semelhante, e sido encarado por olhos azulados parecidos com aqueles. Mas não conseguia me lembrar a quem pertenciam.
Mas não tive tempo para pensar nisso. O táxi arrancou rapidamente e saiu andando em direção à ponte, onde, em poucos minutos, o acidente aconteceu diante dos meus olhos. Com uma pessoa totalmente desconhecida e aleatória dentro, mas que, de algum jeito que não consigo explicar, acabara de salvar a minha vida.
Observei o estardalhaço do acidente acontecer a minha volta, ainda tentando entender o que tinha acabado de acontecer. Aquele homem estranho não só sabia quem eu era como me chamou de , e parecia saber muito bem para onde aquele táxi estava indo, embora eu não tivesse certeza absoluta disso. Ele deu sua vida por mim e por .
Eu sentia que o conhecia. E também sentia que aquilo não tinha sido mera coincidência, embora aquele sujeito tenha entrado no táxi por vontade própria. Pra mim, ele sabia do sacrifício que estava fazendo – eu só não sabia o porquê dele o ter feito.
Não havia muitas pessoas no mundo que me chamassem de . Eu já vi aquele semblante antes, mas estava de uma forma muito diferente do que eu me lembrava. Gostaria muito de saber quem era aquele sujeito, mas não tinha nenhum nome em mente – na verdade, eu tinha um palpite, mas era totalmente impossível. No entanto, isso não era realmente importante, pois ele salvara minha vida em um ato único de heroísmo. E por isso eu seria eternamente grato a ele.
Eu queria ao menos saber o seu nome - se é que eu já não sabia quem ele era.
Voltei pra casa naquela noite com a cabeça flutuando em pensamentos dos mais variados tipos. Acordei essa manhã esperando pela morte certa, e acabei ganhando a ajuda de um amigo inesperado que salvou a mim, ao meu relacionamento e a todo o resto. Eu me sentia inexplicavelmente feliz e aliviado por tudo ter acabado bem, mas também tinha sérias dúvidas e muitas perguntas correndo pela minha mente. Eu já tinha passado por aquilo antes.
Estava em uma situação de total desespero e desamparo, quando alguém estranho surgiu e milagrosamente deu uma solução para todos os meus problemas. Essa situação era conhecida – e aliás, era a razão de eu estar aqui em primeiro lugar. Samuel fora essa pessoa da primeira vez.
Por algum motivo, ele não falou comigo hoje pela manhã por meio de um de seus bilhetes. Também não apareceu para conversar sobre os resultados da nossa missão, que afinal de contas, acabou finalmente. Tudo muito suspeito e inesperado vindo de um anjo que adora conversar.
Acho muito difícil que tenha sido mera coincidência, ou então, que um desconhecido tenha decidido se sacrificar por mim sem mais nem menos. Eu sentia que sabia a verdade, mas nunca poderia ter uma confirmação pra ela. Acho que a resposta continuaria apenas no meu coração, e eu tinha certeza de que a guardaria bem.
É, Samuel tinha razão. Aprendi muitas coisas com essa experiência toda. Já tinha aprendido a não julgar pelo olhar, a acreditar no impossível, a nunca perder a fé, a dar segundas chances e a ter compaixão, e hoje tive a minha lição final: reconhecer um sacrifício. Não foi nem de longe da forma como eu esperava, mas eu aprendi sobre o significado de se sacrificar por alguém com quem se importa.
Quem sabe o destino não seja tão perverso assim. Quem sabe todas as suas obras aconteçam por uma razão. Quem sabe ele seja guiado por algo maior do que apenas o curso da vida, mas algo ou alguém no qual eu nunca realmente quis acreditar. Alguém que sempre busca o melhor para todos nós, e que sempre nos dá oportunidades de aprender e melhorar. Quem sabe as obras do destino, por mais cruéis que pareçam, sirvam para nos ensinar coisas e tornar o nosso futuro bem melhor. E eu acredito nisso agora. Pois eu fiz parte de uma dessas obras, ou, melhor ainda, eu sou uma dessas obras. Fui moldado por uma experiência desse tipo.
Sou uma pessoa muito melhor do que era a cinco dias atrás. Antes, não acreditava no bem das pessoas, não acreditava que elas pudessem mudar ou fazer sacrifícios umas pelas outras. Mas então eu perdi minha noiva e tudo virou de cabeça para baixo, e durante muito tempo eu pensei que isso fosse ruim. Mas aí eu fui jogado em uma realidade paralela toda confusa e maluca, e percebi que não importa se você é um ladrão, uma paciente terminal, uma suicida, um covarde, um idoso, um anjo ou um cara como eu, você sempre terá uma outra chance de ser melhor. Ou seis delas.
- Ei, seu dorminhoco, acorde! A gente vai se atrasar!
Acordei no dia seguinte sem saber direito onde estava. Fiquei totalmente perdido por alguns segundos, sem saber o que era sonho ou realidade, ou se era tudo realidade. Então, abri meus olhos e dei de cara com uma garota de pijamas me fitando com olhinhos curiosos e um sorriso travesso no rosto.
- Anda logo, ! Você prometeu que me levaria para ver o sol nascer na beira do lago do Central Park.
Acho que nunca em toda a minha vida eu me senti tão vivo quanto naquele momento. Eu estava ali, ao lado dela novamente, de uma forma que jamais esperei estar. Os olhos dela estavam de encontro com os meus outra vez, como se nunca tivessem deixado de se ver. Eu podia tocá-la, senti-la, abraçá-la, tendo a certeza de que tudo era real e permanente agora, pois nenhum de nós dois iria embora. Aquele era só mais um dia normal. Para todos, menos pra mim.
estava de volta, como se nunca tivesse ido.
Ela não fazia ideia de tudo que eu tinha passado naqueles cinco dias, de todas as coisas que eu vi e fiz. E nem desconfiava que quase teve sua vida encerrada da forma mais trágica possível. Não sabia que a minha vida e a dela, e também a nossa vida em conjunto, tinham sido salvas pelo sacrifício de um desconhecido.
- Por que está me olhando desse jeito? – Ela tombou a cabeça para o lado com uma sobrancelha arqueada e sorrindo. – Anda logo, já são quase seis horas, a gente vai perder o amanhecer!
Eu já nem me lembrava dessa promessa da qual ela falou. Na noite do nosso noivado, prometi a que a levaria para assistir o sol nascer no nosso aniversário de seis anos de namoro, que acontecia no sábado daquela semana. Faríamos isso debaixo da árvore de cerejeira do Central Park, bem no lugar onde eu a pedi em namoro, e agora em casamento.
E foi isso que eu fiz. Ambos vestimos nossos moletons e pegamos o carro para ir até o parque, numa corrida contra o tempo para conseguir assistir ao espetáculo do amanhecer. A cidade estava totalmente vazia, com tudo escurecido pelo final da noite que ainda reinava em Nova York.
- Você viu no noticiário o que aconteceu aqui? – Disse enquanto passávamos pela ponte. – Um acidente horrível, envolvendo um táxi e um caminhão ontem. O caminhão foi ultrapassar na pista contrária para fugir do trânsito, e acertou o carro em cheio. Os dois motoristas morreram na hora, e havia um passageiro a bordo do táxi.
- Jura?
- Uhum. Mas quando os bombeiros foram retirar as vítimas da ferragem, não encontraram o corpo dele. Tinha sumido, como se nunca tivesse estado lá.
- Puxa, que coisa horrível – Eu disse, tentando conter o sorriso que me ocorreu devido ao quanto aquilo soava maravilhosamente irônico. – É uma pena. Mas quem sabe tenha sido por uma boa causa.
- E que tipo de acidente acontece por uma boa causa, ? – disse um tanto horrorizada, mas eu não me preocupei em explicar. Ela jamais entenderia.
Não demoramos a chegar até o Central Park, que estava completamente deserto àquela hora. Esticamos uma toalha de piquenique na grama perto do lago e sentamos ali, esperando o show começar. Aquele lugar significava muito para nós dois, pois grande parte da nossa história aconteceu ali. Era um momento especial. Passei meu braço ao redor do corpo de abraçando-a, e em seguida beijei o topo de sua cabeça.
- Senti saudade. – Eu sussurrei.
- Saudade por que, bobinho? Você me viu ontem. – riu, encarando-me confusa.
- Pode soar estranho, mas pareceu uma eternidade pra mim. – Sorri de volta.
- Eu sei, sou uma pessoa incrível de se estar perto. – Ela deu risada, fingindo ser convencida. Voltou a falar depois de uma pequena pausa. – Não se preocupe, eu estou aqui. Nunca vou sair do seu lado.
- Eu espero que não. – Sorri e dei-lhe um longo selinho.
- Olha, está começando! – exclamou, apontando para uma luz fininha e tímida no horizonte. Apertei-a mais contra o meu corpo, e ela deitou a cabeça no meu ombro.
A paz que eu sentia naquele momento era indescritível. Estávamos só eu e ela ali, sem nada para nos atrapalhar. Sem táxis, sem caminhões, sem destinos, sem dias recomeçando de novo e de novo. Se bem que eu gostaria de poder reviver esse momento várias vezes.
Realmente, algo estava começando. Aliás, recomeçando, com tudo igual, mas ao mesmo tempo tudo diferente. E eu adorava aquela mudança, pois me deixava ansioso para o futuro e grato pelo passado. Não sei dizer por que fui o escolhido para viver algo parecido com o que vivi, mas sei que deve haver um motivo. Sei que passar por isso tudo me fez um homem melhor para , para mim mesmo e para o mundo de um modo geral. Não sei dizer quem foi o responsável, mas gosto de acreditar que boa parte foi por minha própria obra. Minha e de, literalmente, um anjo.
Essa é uma história que eu jamais poderei contar pra ninguém. Primeiro porque ninguém acreditaria, e segundo porque perderia a graça. Só eu sei o quanto essa experiência louca significou pra mim e pra . E agora, nós dois vamos nos casar. Começar uma vida juntos, e ficar assim para sempre graças ao anjo que me salvou daquele acidente.
- Eu te amo. – sussurrou, encostada no meu peito.
- Também te amo. – Sussurrei de volta. – Você nem imagina o quanto.
E foi assim que nós dois ficamos por aproximadamente uma hora, refletindo sobre o futuro e o passado, o bem e o mal, o certo e o errado, enquanto assistíamos ao mais belo amanhecer de todos, que veio trazendo consigo um novo dia e uma nova chance de viver. E então tudo ficou em seu devido lugar. O anjo aprendeu sobre compaixão e sacrifício, dando sua própria vida para salvar a de um amigo. E o garoto aprendeu sobre bondade e milagres, a partir de seis histórias que se cruzaram com as suas e seis destinos que ele sentenciou. E tudo estava bem.
e casaram-se no final daquele mesmo ano, numa festa tão grande quanto seu amor e alegria. Continuaram sempre sendo um casal unido e apaixonado, escrevendo mais um capítulo da sua história de amor todos os dias.
E algum tempo depois, essa história se tornou completa, com a chegada de um filho menino muito amado pelos dois: Samuel. Batizado assim por escolha de , em homenagem ao anjo que salvou suas vidas e tornou tudo aquilo possível.
tornou-se um homem muito melhor daquele dia em diante. Passou a ajudar os outros, a acreditar no bem e a fazê-lo também. Ele e construíram uma linda família e um lar maravilhoso, no qual permaneceram sempre cultivando o seu amor.
Samuel teve seu sacrifício reconhecido e seu aprendizado foi completo, o que fez com que, depois da morte, se tornasse um anjo novamente. Ficou exclusivamente encarregado de proteger sempre a família -, especialmente o pequeno Samuel, de quem particularmente gostava muito.
Quanto as outras cinco pessoas pertencentes a toda aquela experiência, cada uma seguiu o seu caminho. Já que todas foram poupadas do acidente, seus destinos continuaram de acordo com aquilo que foi previsto nas visões, e certificou-se disso acompanhando todos de perto: deu um emprego ao ex-ladrão, doou uma boa quantia de dinheiro para a instituição de animais da ex-paciente de câncer, mandou flores para a filhinha recém-nascida do casal da ex-suicida, tornou-se um bom amigo e companheiro do ex-militar traidor e ajudou a neta do idoso a se manter depois que ele faleceu, pagando parte da sua faculdade de odontologia. Tudo isso como forma de retribuir a eles todo o ensinamento que lhe passaram, mesmo não sabendo.
O destino é traiçoeiro. Adora pregar peças e nos fazer duvidar dele. Às vezes pode parecer cruel e injusto, mas ele tem sua lógica própria, e ela caminha sempre para o bem – embora seja difícil de acreditar, às vezes. Nem sempre entendemos quais são seus planos, até porque muitas vezes os planos dele não batem com os nossos. Mas não adianta, as escolhas do destino são inevitáveis – o que ele quiser, acontece. Portanto, você tem duas opções: pode ficar parado esperando que o caminhão atinja o táxi, ou então pode entrar dentro dele e esperar que te leve à algum lugar.
Fim
Nota da autora: Se você chegou até aqui, esse agradecimento é pra você. Espero que essa história tenha levado a você um pouco de diversão, distração, emoção e reflexão. Me desculpe se trouxe um pouco de lágrimas também, hehe. Obrigada por ler e reservar um pouquinho do seu tempo para ouvir minha história. Tomara que tenha gostado, deixe um comentário e me diga o que achou ali em baixo :) xx