Finalizada em: 14/09/2017




Capítulo Único



A música calma que toca em meus fones de ouvido não combina em nada com a bagunça de sentimentos e pensamentos que me sufocam. Caminho depressa pelas calçadas cheias de Seul, tentando ignorar quando, vez ou outra, alguém esbarra em mim, me fazendo perder o equilíbrio.
O dia está nublado, e as nuvens espessas e cinzentas denunciam que irá começar a chover a qualquer segundo, e lembro que esqueci meu guarda-chuva em casa.
O peso de meu notebook na bolsa é praticamente inexistente diante do peso da culpa que repousa sobre meus ombros, me obrigando a caminhar encolhida e tensa.
Eu realmente não deveria ter deixado para terminar meu trabalho tão em cima da hora… Suspiro frustrada, desejando poder voltar no tempo e substituir minhas saídas aos finais de semana por horas dedicadas à faculdade. Apesar de meus passos apressados, pareço levar cerca do dobro do tempo para chegar até minha cafeteria preferida.
Não preciso dar mais do que dois passos para dentro do local quente e familiar para perceber que, como é comum durante todas as manhãs, a cafeteria está completamente lotada, com praticamente todas as mesas ocupadas. Aperto a alça de minha bolsa, sentindo um nervosismo incômodo enjoar meu estômago e atrapalhar minha respiração. Percorro todo o lugar com o olhar, tentando encontrar aquilo de que preciso: uma tomada. Avisto uma mesa vazia próxima do balcão, mas não há o menor sinal de tomadas por ali, e continuo tentando encontrar algum cantinho no qual possa carregar meu notebook e terminar meu trabalho de história - que, a propósito, deve ser entregue hoje. Para ser mais específica, em três horas.
Eu realmente não deveria ter deixado tudo para última hora.
Depois de mais alguns segundos averiguando o local, percebo que todas as tomadas estão sendo usadas pelos mais diversos tipos de clientes. Considero a ideia de tentar encontrar outra cafeteria por perto, mas no mesmo instante em que o pensamento surge, ouço o som dos pingos pesados de água se chocarem contra a vidraça do café, e Seul parece ser engolida por uma tempestade. Hoje definitivamente não parece ser meu dia de sorte, e estou quase ao passo de implorar para o garoto do caixa deixar que eu fique em seu lugar e use seu computador. O resquício de esperança e positividade que permanece aceso em meu peito me faz correr os olhos pelo café outra vez, e meu olhar finalmente se depara com algo que prende minha atenção, e me faz perder o ar.

Mas não é a tomada de que tanto preciso.

Não faço a menor ideia de qual seja seu nome, mas o esboço de seu sorriso gentil e radiante, e seus olhos suaves, já estão gravados de maneira permanente em minha memória. O garoto de cabelos escuros e óculos de armação redonda está imerso em um de seus livros, ignorando a xícara de café em sua frente, e o restante de um croissant comido pela metade. A cena que encontro não é nada nova, e se parece idêntica a todas as outras vezes em que já o encontrei por aqui.
Depois de quase dois meses o observando de longe, eu pareço ter decorado todas suas manias. O jeito como ele alonga os braços e o pescoço cada vez que deixa o livro repousar sobre a mesa… O sorriso discreto e de canto que surge em seu rosto levemente dourado quando ele parece ler algo que o agrada. Os suspiros leves e as caretas quase que imperceptíveis que ele faz quando resolve tomar seu café e percebe que o líquido já está frio. Às vezes me pego pensando se sua presença tem alguma coisa a ver com o fato de eu ter me tornado uma cliente assídua da cafeteria, ou se meu vício recente por cafeína tem outro motivo.
Continuo sem saber qual a resposta certa para essa pergunta - ou finjo não saber.
Me obrigo a afastar meu olhar e focar no que realmente importa: meu trabalho.
Porém, no mesmo instante em que começo a me virar para seguir na direção contrária, meus olhos vislumbram um sinal de esperança que faz com que eu chegue a pensar que nem tudo está tão perdido quanto parece. Uma tomada disponível brilha em minha frente, e tenho certeza de que escuto um coro de anjos em meus ouvidos. Mas é claro que minha esperança é completamente esmagada diante de meus olhos, assim que percebo a qual mesa a tomada que grita por mim pertence.
Minha visão se alterna entra a tomada, a cadeira vazia, e o garoto desconhecido, sentado exatamente na cadeira oposta. Considero a ideia de me aproximar, mas só o pensamento já faz com que meu coração bata acelerado, e uma camada fina de suor brota nas palmas de minhas mãos. Um casal entra na cafeteria e passa por mim, então percebo que estou imóvel no mesmo lugar pelo que parece ser uma eternidade. A garota que trabalha atrás do balcão de doces me olha com uma expressão confusa, e chego à conclusão de que preciso fazer uma escolha e tomar uma atitude.
A chuva continua caindo e o lado de fora do café parece tingindo em vários tons de cinza. Nenhum dos clientes parece disposto a deixar sua mesa antes que a tempestade resolva diminuir. Todas as tomadas continuam ocupadas, com exceção de uma. Meu trabalho precisa ser feito e entregue até o meio dia. Não posso nem mesmo sonhar em entregar ele após o prazo, porque minha aprovação nessa matéria depende dessa nota.
Repasso todas essas informações mentalmente e sei o que tenho que fazer, mas isso não significa que eu esteja nem perto de ter a coragem necessária para isso.
Respiro fundo e começo a explorar cada canto desconhecido de minha mente, tentando encontrar uma dose de impulsividade que seja o suficiente para me fazer caminhar em direção ao garoto estranho. A música em meus fones de ouvido muda e me pego prestando atenção na letra, de maneira involuntária.

Hey stranger
Tell me if the feeling flows both ways
.

A ironia por trás da canção me faz arrancar os fones do ouvido depressa, enrolando o fio em torno de meus dedos, e me pego rindo sozinha, achando graça de meu desespero desnecessário e sem motivo.
Resolvo que, antes de qualquer coisa, preciso de um café forte e quente.
Talvez sobrecarregar meu sistema com cafeína me ajude a criar a coragem necessária para me aproximar do estranho, ou talvez nesse meio tempo o destino resolva contribuir comigo e faça alguém ir embora, deixando uma tomada livre.
Me dirijo até o balcão e espero pacientemente até que meu pedido seja retirado e meu café seja entregue. O copo aquece minhas mãos e sinto os músculos de meus ombros relaxarem de imediato, mas o horário no relógio da cafeteria deixa meus nervos em estado de alerta, preciso definitivamente começar esse trabalho. Olho para trás e percebo que, infelizmente, hoje não é mesmo meu dia de sorte.
Tudo bem, eu posso fazer isso.
Dou um gole longo no café e sinto minha língua arder em razão da temperatura do líquido, mas ignoro a sensação, porque toda minha atenção está direcionada para o movimento lento de meus passos, que se arrastam pelo piso claro da cafeteria.
Quando penso em desistir, já estou parada ao lado da mesa do garoto moreno, que continua mergulhado em seu livro. Ele parece completamente alheio a minha aproximação, o que só faz com que eu me sinta ainda mais como uma intrusa e completamente desconfortável por estar invadindo seu espaço. Mas droga, eu realmente preciso fazer esse trabalho.
Limpo a garganta e vejo o rosto do garoto se erguer e se voltar em minha direção. Seus lábios cheios e rosados se partem e vejo seus olhos em formato de meia lua se abrirem bruscamente, como se ele estivesse surpreso com minha aproximação. Assisto enquanto ele se arruma em seu assento e endireita sua postura, deixando o livro repousar sobre a mesa.
O silêncio que cresce entre nós dois é ensurdecedor, e estou a um passo de abrir a boca quando sua voz me pega desprevenida, fazendo com que o ar fique preso em minha garganta.
— Você precisa de algo? — sua voz é doce e melódica, e o timbre musical por trás de suas palavras faz com que minhas pernas fraquejem. Penso em me afastar imediatamente, mas de repente meu notebook parece ter seu peso multiplicado, me lembrando do motivo por trás de minha aproximação do garoto.
— Eu não queria te atrapalhar, mas eu realmente preciso usar uma tomada, e a única que encontrei livre está do lado da sua mesa… — explico, agradecendo por ser capaz de formular uma frase coerente e não acabar me engasgando com as palavras. Vejo seus lábios se abrirem no formato de um ‘O’ e ele balança a cabeça de modo afirmativo, os fios escuros de seu cabelo balançando sobre sua testa, próximos da armação de seus óculos.
— Claro, sem problemas… — ele fecha o livro e faz menção de alcançar sua bolsa, esquecida no canto da mesa, e de repente percebo que ele está se preparando para ir embora, e me sinto péssima. Não era para parecer que eu estava o expulsando, e é exatamente isso que ele parece estar pensando.
Sem pensar, estico minha mão e toco seu ombro, pegando-o de surpresa e sentindo o calor de sua pele irradiar por meus dedos, apesar do tecido grosso de sua camisa.
Ele fica paralisado e olha para mim com um grande ponto de interrogação estampado em seu rosto, e reparo que ainda estou tocando seu ombro. Afasto a mão depressa e troco o peso de meu corpo de um pé para o outro, desviando meu olhar para a cadeira vazia.
— Por favor, se você for embora vou me sentir culpada…. Se você não se importar em dividir a mesa, eu posso sentar aqui — digo, contornando a mesa de madeira escura e ficando atrás da cadeira vaga.
Ele parece hesitar, e não consigo decifrar a expressão que surge em seu rosto. Meu nervosismo só se torna mais ameno quando vejo seus lábios se curvarem em um sorriso e ele relaxar contra o assento, deixando sua bolsa de lado e voltando a segurar o livro antigo entre seus dedos longos.
— Espero não atrapalhar — ele diz, e entendo isso como uma permissão para que eu me sente, e faço isso depressa, antes que o arrependimento tenha tempo de me fazer desistir. Agradeço e retiro o notebook de minha bolsa, encontrando o carregador e o ligando na tomada.
A sensação de alívio que me atinge é quase tão maravilhosa quanto o aroma floral que invade meus poros e toma conta de meu olfato, e tenho certeza de que o perfume pertence ao garoto em minha frente. Olho atrás da tela do notebook e percebo que ele voltou a dar atenção para seu livro, e isso me deixa mais tranquila. Talvez a situação não seja assim tão estranha e tudo acabe dando certo.
Mas é claro que estou completamente enganada.
Assim que meus dedos começam a deslizar pelas teclas já gastas de meu teclado, percebo que o som das letras sendo pressionadas é alto demais, e a certeza de que estou atrapalhando sua leitura faz com que eu me obrigue a digitar mais devagar. Aperto uma tecla de cada vez, mas o barulho alto se torna espaçado e irritante, como se eu estivesse fazendo isso de propósito. Olho uma segunda vez por cima da tela de meu notebook e vejo sua garganta se mover devagar, engolindo em seco. Ele espreme os olhos e observo que ao invés de avançar na leitura, ele volta para a página anterior, como se estivesse tendo que ler o conteúdo dali outra vez.
— Acho melhor eu tentar achar outro lugar — digo sem pensar, levando minha mão até a tela de meu notebook para fechá-lo, mas dessa vez é ele quem me surpreende. Seus dedos alcançam os meus e ele se inclina sobre a mesa, se aproximando de mim e me olhando com olhos alarmados e preocupados. Seu toque é quente e macio, faz com que um formigamento engraçado faça cócegas em meu coração — Eu tenho certeza de que o som do meu teclado está atrapalhando sua leitura e acho que já atrapalhei o bastante — digo, e seus dedos permanecem sobre os meus.
As lentes redondas escondem seus cílios, mas mesmo através do vidro consigo enxergar a saturação vívida e brilhante de sua íris castanhas. Ele parece se dar conta de que sua mão continua sobra a minha, e então a afasta depressa, voltando a largar o peso de seu corpo contra o encosto da cadeira antes de responder.
— Você não está atrapalhando…. Eu preciso mesmo fazer uma pausa e terminar de tomar o meu café — sua resposta é seguida de um sorriso discreto, e observo ele fechar o livro e o deixar de lado, voltando a dar atenção a seu café. Tenho certeza de que o líquido já está morno, a julgar pelo modo como sua testa se franze assim que ele dá o primeiro gole, e desiste do segundo — Você pode digitar o quanto quiser.
Me pego indecisa entre querer agradecer ou perguntar se ele é sempre tão compreensivo assim com todo mundo, mas opto por ficar em silêncio, voltando a dar atenção para o documento aberto em minha frente. Meus dedos voltam a correr pelo teclado, mas quase não presto atenção nas palavras que surgem em minha frente. Minha consciência parece ocupada demais repetindo constantemente que estou sentada na mesma mesa que o garoto que venho observando já faz meses. Quero erguer o olhar e estudar cada detalhe de seu rosto, descobrindo coisas novas que não fui capaz de perceber de longe.
Luto contra essa vontade e me obrigo a prestar atenção em meu trabalho, conseguindo me concentrar na história da queda do império romano depois de algumas tentativas. Estou tão imersa em meus escritos que quando alcanço meu copo de café para dar outro gole, percebo que a bebida acabou e solto um suspiro frustrado, deixando o corpo de lado e voltando a mergulhar em meu trabalho.
Estou no meio de uma frase quando o som da cadeira em minha frente sendo arrasta chama minha atenção, e vejo o garoto desconhecido se levantar e se afastar sem dizer nada. Sua bolsa e seu livro continuam sobre a mesa, e assim que percebo que ele está indo até o balcão, me permito relaxar e voltar a dar atenção para meu notebook. Alguns minutos depois, um novo copo de café é colocado ao meu lado, e o garoto volta a se sentar em minha frente.
— Achei que você precisava de mais café — ele explica e a missão de continuar indiferente a todos os efeitos que ele parece despertar em mim se torna quase impossível. Me pego sorrindo sem perceber e dou um gole longo na bebida, me agarrando a sensação confortável que o calor do líquido espalha por meu corpo.
Aproveito a pausa para estalar os dedos e relaxar contra a cadeira, vendo o moreno abrir e fechar o livro uma, duas, três vezes, parecendo inquieto. Ele dá uma mordida em seu novo croissant, e dou outro gole em meu café, prestando atenção no silêncio barulhento que cresce entre nós. Quero dizer algo, mas também não quero acabar o atrapalhando ainda mais, mas tenho certeza de que ele é capaz de ler meus pensamentos, porque no instante seguinte sua voz está surgindo novamente.
— Posso perguntar sobre o que é seu trabalho? — sua voz parece mais baixa e hesitante do que antes, e me pergunto se ele também está preocupado com a ideia de estar atrapalhando minha atividade.
Abaixo a tela de meu notebook apenas o suficiente para que nossos olhares possam se encontram sem obstáculo algum, em uma tentativa de deixar claro que no momento estou mais interessada em nossa conversa do que em minha tarefa. O gesto parece surtir algum efeito, já que ele se inclina sobre a mesa e vejo o canto de seus lábios se repuxarem.
— Preciso terminar de escrever sobre a queda do império romano e os impactos que isso trouxe para a sociedade da época… — explico e tenho certeza de que vejo uma faísca cruzar seu olhar.
— Você é estudante de história? — Ele pergunta logo em seguida, parecendo surpreso.
— Sim, por quê? — Devolvo a questão e pela primeira vez na manhã seus lábios se abrem em um sorriso verdadeiro, que deixa seus dentes perfeitamente brancos a mostra, e faz com que duas covinhas ganhem vida. Me pego apertando o copo quente em minhas mãos, e puxando o ar com força para dentro dos pulmões, uma sensação de conforto e calor se abriga em meu peito.
De repente é como se eu estivesse finalmente encarando o sol depois de meses vivendo na escuridão. Seu sorriso é radiante e parece ter o poder de acalmar todas as minhas angustias, de extinguir minhas preocupações. Tenho certeza de que ele diz alguma coisa, mas levo alguns segundos para voltar a prestar atenção em suas palavras, porque continuo hipnotiza pela luz que parece o envolver. Não importa se o cinza parece ter tomado conta de toda cidade de Seul, porque o sol parece estar brilhando bem diante de meus olhos, me mantendo aquecida.
— Eu estou fazendo minha pós-graduação em história! — ele exclama, com a voz mais leve e relaxada do que anteriormente. Me pego sorrindo de volta e achando essa coincidência a melhor coisa do mundo, e pela primeira vez na manhã quero agradecer por todos os infortúnios que me fizeram sentar em sua mesa.
— Ah, tenho certeza de que foi o destino quem resolveu te colocar na minha frente hoje! — digo brincando, vendo seus olhos se transforarem em duas linhas quando ele ri de meu comentário.
— Isso significa que você precisa de ajuda? — ele pergunta, voltando a exibir um sorriso gentil que é ainda mais bonito visto de perto. Considero sua oferta por alguns segundos, mordiscando o lábio inferior e assumindo uma postura pensativa. Ele aproveita o momento para dar outro gole longe em seu café, sem afastar os olhos do meu, e chego à conclusão de que já estou abusando demais de sua boa vontade.
— Eu acho que já estou abusando demais da sua bondade, não quero acabar te dando trabalho… — Mal termino a frase e o vejo usar uma das mãos para espanar o ar entre nós, em um gesto descontraído. O tempo que levo para piscar uma vez é o tempo que o garoto desconhecido leva para se levantar e arrastar sua cadeira para o lado da minha, se sentando ao meu lado.
Meu corpo se torna rígido no mesmo instante, reagindo a sua aproximação inesperada. Seu perfume doce intoxica o ar ao meu redor de forma mais intensa, e me pegando inspirando longamente, em uma tentativa infantil de deixar que seu aroma domine todos meus pensamentos, e fique gravado em minha memória.
— Posso? — ele me tira do transe, olhando para meu notebook e esperando por minha permissão para poder ler o conteúdo escrito em uma fonte Arial tamanho 10.
Espero pelo que parecem ser quase dez minutos até que ele parece terminar de percorrer todos os tópicos de meu trabalho, e só percebo que estou apreensiva e ansiosa quando seu olhar volta a encontrar com o meu. Seu rosto está sério e indecifrável, e me encolho involuntariamente em minha cadeira, verdadeiramente preocupada com a sua opinião sobre o que escrevi até então.
— Eu tinha certeza de que você era uma garota inteligente, mas não pensei que fosse tanto assim — ele diz, e parto meus lábios para que minha respiração presa possa escapar em um sopro longo. Como assim ele tinha certeza de que eu era uma garota inteligente? Ele pensou isso durante o tempo em que fiquei sentada em sua frente? Ou… — Droga, isso saiu meio errado — ele se desculpa, coçando a nuca e baixando o olhar por um segundo — É para você encarar como um elogio…
— Tudo bem, eu entendi — digo sem graça, sentindo minhas bochechas esquentarem, denunciando meu rubor. Ele concorda com a cabeça e respira aliviado, voltando a sorrir.
— Você quer escrever mais alguma coisa? — ele questiona, voltando a assumir uma postura pensativa e crítica — Eu acho que está ótimo… Só parece que você precisa retomar algumas coisas importantes na conclusão.
Ele então começa a buscar por partes específicas de meu trabalho, indicando o que seria interessante aprofundar mais, e também se demorando nas partes que, segundo suas palavras, estão “dignas de um livro excelente de história. ” Cada comentário que escapa por sua boca parece seguir diretamente para perto de meu coração, e uma sensação intensa de conforto e felicidade começa a se alastrar por todo meu corpo. Percebo que já não sou capaz de impedir que meus lábios continuem esboçando uma porção de sorrisos.
Escuto cada uma de suas críticas construtivas com atenção, e enquanto digito algumas informações novas, e arrumo algumas frases que parecem mal explicadas, ele termina seu café e me observa trabalhar em silêncio, arrumando seus óculos. Chego a esquecer que somos dois completos estranhos, e que ainda não faço a menor ideia de qual seja seu nome, mas a verdade é que a energia que flui entre nossos corpos parece já ser tão conhecida e íntima. Todo nervosismo que eu sentia se dissipou e desapareceu no ar, e uma calma gostosa, que não sinto há muito tempo, toma conta de todo meu corpo. Não consigo impedir o pensamento de que a presença do garoto misterioso parece ter uma espécie de efeito terapêutico sobre mim, e por mais que eu não diga isso com palavras, tenho certeza de que meus sorrisos constantes deixam claro como estou agradecida por sua ajuda.
Levo cerca de mais meia hora para arrumar tudo, e finalmente digito o último ponto final, sorrindo vitoriosa e orgulhosa de mim mesma. Ainda tenho mais uma hora antes do prazo se esgotar, e o trabalho está finalmente pronto, e mal parece que fiz quase 80% dele em uma cafeteria lotada. Releio tudo uma vez, e quando tenho certeza de que está tudo certo, envio o arquivo para o e-mail do professor responsável pela matéria, esperando até que o aviso de concluído surja para só então fechar a tela de meu notebook, deixando um suspiro de alívio e contentamento escapar.
— Ótimo trabalho — o garoto sem nome diz, erguendo a mão no ar e parecendo esperar que eu bata minha palma contra a sua, em um sinal de comemoração. Me pego rindo quando nossas mãos se chocam e ele levanta o polegar, e então dá uma piscadela divertida com um olho.
— Obrigada pela ajuda…. Sinto muito por ter ocupado praticamente toda sua manhã, e ter interrompido sua leitura — peço desculpas novamente, e vejo seu sorriso ser substituído por uma expressão mais serena e passiva, mas que não deixa de ser leve e reconfortante.
— Você não precisa se desculpar… estou feliz que tenha resolvido se aproximar.
Suas palavras me fazem sorrir, e sinto meu coração se agitar novamente, denunciando que a quedinha platônica que nutro por ele parece ser mais séria do que eu imaginava. É só quando o silêncio entre nós dois volta a se tornar mais pesado que paro para pensar em alguns detalhes que deixei passarem despercebidos. Como ele sabia exatamente qual o tipo de café que tomo? Ou o que ele quis dizer ao falar que tinha certeza de que eu era uma garota inteligente? Antes que os pensamentos se organizem em meu cérebro, as palavras já estão escapando por minha boca.
— Como você sabia qual tipo de café eu prefiro? — vejo ele franzir o cenho e pressionar os lábios em uma linha — E como você tinha certeza de que eu era uma garota inteligente?
A resposta demora a chegar, e nesse meio tempo reparo no tom rosado que se alastra por seu rosto, colorindo suas bochechas salientes. Ele desliza os dedos por sua franja, arrumando alguns fios de cabelo que parecem fora de lugar, e continua em silêncio, levando a mão até a armação de seu óculos e o retirado, deixando que o acessório repouse sobre a mesa, ao lado de meu notebook fechado. Ele pressiona a base de seu nariz com o polegar e o indicador, e seus olhos se fecham por alguns segundos.
Antes de tornar a abri-los, uma respiração pesada escapa de seu peito, e ele desvia o olhar para a mesa, parecendo fugir de mim. Começo a pensar que talvez minhas perguntas tenham sido invasivas demais, e que ele não se sente confortável para responsável, mas então sua voz arranhada reverbera no espaço entre nossos corpos, e suas palavras saem arrastadas.
— Eu meio que tive tempo para perceber e pensar sobre essas coisas… — ele explica, ainda sem me olhar — Eu já te vi por aqui algumas vezes… — sua confissão me pega de surpresa, e suas íris vibrantes voltam a buscar pelas minhas — Várias vezes na verdade…
Por um segundo o mundo ao meu redor parece se tornar denso demais, e o tempo congela, me fazendo mergulhar em uma espécie de vácuo. Mas então, sem aviso algum, a ideia de que ele também me observava me atinge com força e uma maré de perguntas varre minha mente, me deixando desnorteada e confusa. Abro a boca algumas vezes, determinada a dizer algo, mas nada escapa, e vejo ele se remexer em sua cadeira, parecendo nervoso.
— Eu nem sou tão fã de café… — ele volta a falar, e vejo um sorrisinho inclinado enfeitar sua boca — Mas eu achei que valia a pena continuar aparecendo por aqui, porque você continuava aparecendo, e então eu tinha um motivo bom para isso…
— Você também ficava me olhando? — pergunto, deixando transparecer minha insegurança e descrença em suas palavras. Não é possível que meus sentimentos fossem recíprocos e que eu não estivesse vivendo uma paixão platônica unilateral. Ele abre a boca, parecendo prestes a responder, mas então assisto uma misto de confusão e surpresa estamparem seu rosto.
— Também? — ele enfatiza a palavra, e só então percebo que acabei me denunciando. Tento desconversar bebendo mais café, mas a bebida já acabou faz tempo, e meu plano fracassa. Seu olhar continua sobre o meu, esperando por uma resposta.
— Eu estava tentando me convencer de que eu realmente gostava do ambiente aqui… — começo a falar, e o vejo lutar contra um sorriso que insiste em surgir no seu rosto — Mas a verdade é que eu também tinha um motivo para continuar aparecendo…
— Você quer ouvir uma coisa engraçada? — ele pergunta e me pego assentindo, curiosa.
— Na primeira vez que te vi, um mês atrás, você estava sentada nessa mesa, rabiscando alguma coisa em uma agenda… — a memória logo surge e consigo lembrar com clareza desse dia — Acho que nunca fez tanto calor em Seul, e você continuava tentando se abanar com um guardanapo de papel — ele sorri, e fico envergonha em saber que eu estava sendo observada tão atentamente assim — A cafeteria estava lotada como sempre, e todas as tomadas estavam ocupadas… — Ele faz uma pausa e esconde o rosto atrás das mãos, rindo baixinho antes de continuar — E eu precisava, urgentemente, terminar de digitar um trabalho de história…
Pisco algumas vezes, surpresa com sua história e com coincidência entre nossas situações. Ele apoia um dos braços sobre o tampo de madeira da mesa e repousa o queixo sobre sua mão, me observando com toda calma do mundo.
— Todas as outras tomadas estavam ocupadas, e eu me lembro de ter praguejado a demora das pessoas para terminarem suas coisas e deixarem alguma mesa livre…, mas então eu voltei a prestar atenção em você, e na única tomada livre…
Ele termina de contar, e minha vontade é de esticar minha mão e tocar seu rosto, traçando o contorno de seus lábios rosados com a ponta de meus dedos, e sentindo a textura deles na ponta de meus dedos. A sensação de que já nos conhecemos há várias vidas me atravessa de novo, e dessa vez não tenho empurrá-la para longe, porque a certeza que sinto é maior que o meu medo de estar me iludindo.
— E o que você fez? — pergunto alguns segundos mais tarde, sentindo os músculos de minha mandíbula protestarem, implorando para que eu acabe com o sorriso que continua fixo em meu rosto, mas por mais que eu tente, não consigo deixar ele de lado.
— Eu dei dois passos na sua direção, e então você ergueu o olhar… — sua descrição me faz voltar no tempo e não demora para que sua imagem se forme nitidamente em minha cabeça. Consigo lembrar da camisa bege que ele vestia, e dos jeans justos e com rasgos na altura dos joelhos. Uma máscara preta estava presa abaixo de seu queixo, e os fones de ouvido pendurados em torno de seu pescoço. E tenho quase certeza de que aquela também foi a primeira vez em que percebi sua presença ali…
— E você deu meia volta e saiu depressa, desaparecendo na rua… — concluo, porque consigo me lembrar perfeitamente da sensação estranha que senti ao vê-lo saindo pela porta, e fazendo com que o café parecesse se tornar instantaneamente mais vazio e frio. Vejo ele sorrir sem graça e balançar os ombros, como se não tivesse uma explicação para justificar seu comportamento.
E foi então que eu resolvi que deveria começar a aparecer por aqui mais vezes…
— E foi então que eu resolvi voltar outros dias… — ele diz, sua fala perfeitamente compatível com meus próprios pensamentos — Queria falar uma coisa, mas tenho certeza que você vai achar que sou algum louco, e vai resolver sair correndo, e não quero arriscar estragar minhas chances de te ver de novo… — as palavras dele saem atropeladas, revelando seu nervosismo, e me pego achando sua reação ridiculamente fofa.
— Eu prometo que vou tentar não sair correndo… — brinco, vendo negar com a cabeça e tentar fugir do assunto, mas minha curiosidade já foi despertada e tenho certeza de que não vou conseguir descansar enquanto não arrancar as palavras de sua boca — Por favor…. Você não pode me deixar curiosa — digo com a voz manhosa, e ele suspira.
— Você não pode fazer isso…
— Isso o quê? — pergunto tentando me fazer de inocente, esboçando um sorriso inclinado.
— Tentar me fazer ceder usando essa voz manhosa, e apelando pro meu emocional… — ele responde divertido, me fazendo rir, e percebo que sua resposta não passa de uma tentativa de fugir do assunto.
— Por favor…. Eu quero mesmo saber — sua expressão volta a se tornar séria, e seu olhar se torna mais intenso sobre o meu, tornando a atmosfera ao meu redor mais pesada, mas ainda assim reconfortante. Tudo nele parece exalar conforto, e é quase como se eu me sentisse me casa, em um abrigo seguro.
— Às vezes, enquanto eu te olho…. É como se eu conseguisse lembrar de você de vidas passadas — ele confessa, parecendo envergonhado — É bobeira, eu sei… — quero interromper e dizer que não, que entendo perfeitamente o que ele está tentando dizer, mas ele continua a falar — Mas você não parece uma estranha…. Você parece alguém que sempre fez parte da minha vida, entende? Por favor, se você quiser sair correndo, pelo menos espere até eu pedir a conta e ir embora… — ele tenta amenizar o clima, mas a força de suas palavras me impede de achar graça.
— Eu sei o que você quer dizer…. Acho que eu sinto o mesmo — confesso, me surpreendendo com a firmeza por trás de minhas palavras. – Para ser sincera, tenho certeza de que no meio de toda essa situação, a única coisa que me parece estranha é continuar sem saber seu nome — Eu ainda nem sei seu nome… — digo, vendo seus lábios exibirem um sorriso radiante novamente, e nesse momento tenho certeza de que uma de minhas metas de vida é fazer com que esse mesmo sorriso continue aparecendo mais e mais.
— Hoseok… Jung Hoseok — ele responde, estendendo a mão para mim. Não demoro para envolver seus dedos nos meus, em um aperto delicado, mas seguro e quente, que faz com que uma corrente elétrica se espalhe por minhas veias.
— Me apresento também, e percebo que nossos dedos continuam entrelaçados, e que nenhum de nós parece disposto a interromper o contato físico, e me pego agradecendo por isso.
— Será que posso te convidar para tomar um sorvete, ? — ele parece testar meu nome na ponta de sua língua, e o som que envolve as sílabas se parece com uma canção, que eu poderia escutar em uma repetição eterna sem me cansar — Eu realmente não sou muito fã de café — ele completa, deixando outro sorriso crescer em seu rosto, e meu interior se aquece novamente.
Em silêncio, enquanto nossos dedos permanecem unidos e nossos olhares se comunicam sem a necessidade de palavras, me pego agradecendo por todos os trabalhos de histórias inacabados, e por todas as tomadas indisponíveis.

You say “I guess I must’ve known ya
In some past life, we’re not strangers”
I don’t think i blame ya
I feel the same.




Fim.





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