Em meio a Segunda Guerra, diferentes mulheres lidam com o medo e a perda. Mesmo enfrentando dores que ultrapassam o front, elas tentam seguir suas vidas.
1940 - A menina
Amelia apertava os olhos com força e tapava os ouvidos, aterrorizada. Passou a agarrar a camisa do pai enquanto ele a carregava para um local seguro e escondeu o rosto em seu pescoço rezando por proteção. Tentava rezar na verdade, pois o som das sirenes e do sino da igreja retumbavam em seus ouvidos. Ela não tinha coragem de olhar para o céu. Da última vez ela vira dezenas de aviões sobrevoando a cidade e em seguida explosões, desespero e chamas. Quando sentiu que começaram a descer as escadas que os levariam até o metrô, abriu os olhos. Queria se certificar que sua mãe os acompanhava. Em meio à confusão gerada pela multidão procurando abrigo, o medo de se perder de um dos pais era uma constante. Tentava conter um choro doído que estava entalado em sua garganta. Tinha só sete anos, mas sentia que precisava ser forte em meio ao caos.
Assim que chegaram a estação, se sentaram em um pequeno espaço, cercados por centenas de famílias. Todos ansiando que o local oferecesse proteção contra o destruição e dor gerados pelas bombas incendiárias. Conforme os minutos passavam, mais pessoas chegavam. Alguns se acomodavam até nos trilhos. Amelia observava atentamente os movimentos daquelas pessoas, especialmente uma mulher que tentava acalmar o filho, um pouco menor que ela, e repetia uma oração em sua mente. Então os bombardeios começaram e o pavor cresceu dentro dela. Não era a primeira vez que passava por aquilo, mas a cada ataque o pânico era maior. Os estrondos e a poeira faziam parecer que o teto ia cair a qualquer momento. Ela podia imaginar a cena. Morrer soterrada ali em meio a tanta gente inocente. Não entendia por que aquilo estava acontecendo. Não entendia por que as pessoas travavam guerras. Os únicos frutos que ela havia visto eram o terror, escombros e pessoas chorando sob a luz das chamas que consumiam tudo o que viam pela frente. Ela não conhecia nenhum alemão, mas já havia aprendido a odiá-los e não entendia o porquê. O grito de uma mulher a tirou de seus devaneios e fez seu coração acelerar. Viu que a mulher abraçava um homem caído e em seguida seus pais foram ajudá-lo. Os poucos segundos sozinha aumentaram seu pavor. Sentia que se não morresse soterrada, morreria sufocada. Se levantou e correu para longe, queria se afastar de tudo aquilo, queria deixar de sentir tanto medo. Sua fuga foi atrapalhada por uma mulher que a segurou pelos ombros.
- Eu tenho que sair daqui. – Gemeu chorosa tentando se desvencilhar das mãos que a seguravam.
- Nós precisamos ficar. – a mulher se ajoelhou, ficando da sua altura, e segurou suas mãos.
- A gente vai morrer. – Amelia sentiu as lágrimas finalmente rolarem.
- Não vamos. – Afirmou, a abraçando. – Estamos seguras.
- Mas e se os aviões destruírem tudo? E se o teto cair? E se tudo explodir? – questionava aflita, já sentindo o ar lhe faltar.
- Isso não vai acontecer. – a mulher limpou as lágrimas de seu rosto e a encarou. – Olha... eu sei que é assustador, mas nós vamos ficar bem. Eu prometo. Sente meu coração. – Colocou a mão de Amelia sobre seu peito. – Ele não está acelerado. Não estou tremendo. Porque eu sei que nós vamos ficar bem.
- Como consegue ficar calma? – perguntou entre soluços.
- Vou te ajudar. Feche os olhos. – Ordenou com uma voz doce e novamente segurou as mãos de Amelia. – Imagine que não está aqui. Esqueça os sons e cheiros. Imagine o campo, o cheiro de terra e grama. O vento faz carinho em seu rosto e bagunça seus cabelos. O sol aquece sua pele. Você vê o entardecer refletido em uma lagoa e patos nadando ali. Está feliz correndo e brincando sem preocupações. – A mulher sorriu ao ver que a garotinha estava mais calma, e então começou a cantar uma canção sobre coelhos e patos. Na terceira vez que repetiu o refrão, Amelia cantou junto. Talvez fosse a lembrança da amável avó ou a tranquilidade que a mulher passava, algo havia acalmado a menina que até conseguia sentir seus pés tocando grama.
- Amelia! – gritou ao avistar sua filha, ela se virou e correu para o seus braços. Apertou a menina com força, com medo de que desaparecesse novamente. – Não pode fazer isso. Você quase me matou de susto. Não posso te perder. – acariciou os cabelos da pequena.
- Ela estava muito assustada. – a mulher se aproximou e franziu as sobrancelhas. – Me chamo . Estávamos conversando um pouquinho. – deu um sorriso cúmplice para a menina.
- Ela é legal. – Amelia falou com a voz abafada pelo abraço do pai.
- Obrigado. – pegou a filha no colo e se aproximou de . Estendeu a mão para cumprimentá-la e assim que as mãos se tocaram ele sorriu. E então a segurou por um momento, grato pela gentileza da estranha.
***
sentia o sol queimando sua pele e o rosto pinicando por conta da grama, mas não se movia. Estava confortável ali. Era bom estar de volta à casa onde tinha crescido após tantos anos longe. Virou de barriga para cima, encarando o céu azul e imediatamente levou a mão até os olhos devido ao incômodo causado pela luz solar. Então, de repente a tranquilidade do campo sumiu, junto com a chegada de dezenas de aviões sobrevoando o local e tapando o sol. A luz desapareceu e em meio a escuridão o rosto daquela garotinha apareceu. Ela encarou por alguns segundos e então gritou "A gente vai morrer!"
despertou assustada. O rosto da menina vez ou outra aparecia em seus sonhos. Não a conhecia, mas em cada ataque se lembrava dela e se preocupava com seu bem-estar. Se tivesse o hábito de rezar, a colocaria em suas orações. Tentou se levantar mas não conseguiu. Sua cabeça rodava. Culpa da bebida ingerida na noite anterior. Também devia culpar a bebida por ter dormido no chão em cima de um tapete barato que pinicava a sua pele. Após alguns minutos conseguiu se sentar e passou as mãos pelos cabelos cheios de nós. Culpava a bebida e o tapete. Precisava de um banho e da milagrosa receita antirressaca de .
Após o banho, ela sentou em uma cadeira de madeira e, enquanto encarava o tampo da mesa, lembrou-se da noite anterior. Após uma noite de bebedeira e diversão com Lenny, ele havia lhe pedido em casamento. Aquela cena patética arruinara a noite e os possíveis futuros encontros descompromissados. Ele clamava que havia se apaixonado, além de outras sandices. apoiou o cotovelo na mesa e a cabeça em sua mão enquanto encarava o nada. Não ia casar com Lenny, não ia casar com ninguém. Sua vida estava ótima do jeito que estava. Pena que muitas pessoas não entendiam isso. Solteirice era tratada como uma condição da qual as mulheres deviam ser resgatadas. Especialmente uma mulher bonita como ela, palavras de Lenny e de tantos outros pretendentes. Mas ela não queria ninguém regulando sua vida ou pensando ser seu dono. Noites casuais lhe bastavam. Agora perdera Lenny, além de outros que havia perdido alguns meses atrás por conta da guerra. Precisava sair e fazer novos amigos. Gemeu com o som das batidas na porta, que mais pareciam estrondos invadindo seus ouvidos. Se levantou com dificuldade e caminhou até lá, queria que as batidas parassem logo. Abriu a porta, se deparando com que estampava um largo sorriso. A mulher entrou no pequeno apartamento carregando um envelope junto ao peito.
- Boa tarde. – começou animada, mas ao analisar a amiga franziu as sobrancelhas. – O que aconteceu?
- Bebi além da conta. – massageou a testa, se arrependendo um pouco da bebedeira.
- Vou preparar o tônico milagroso. – Colocou o envelope sobre a mesa e foi até a área da cozinha. – Alguém destruiu as latas de lixo ontem à noite. A senhora Hayes está furiosa. Alguma chance de ser um amigo seu? – assentiu, se sentando novamente. Lenny havia descontado sua frustração nas latas que ficavam justamente na direção da janela do quarto de seu senhorio. O senhor Hayes era um homem simpático, mas sua esposa detestava . Não fosse a extrema necessidade de obter aquele aluguel para pagar suas contas, ela já teria a expulsado dali.
- Lenny é o culpado.
- O que aconteceu?
- Não quero falar disso agora. Termine logo aí. Estou curiosa com o conteúdo da carta. – abriu o envelope e viu correr até a mesa equilibrando um copo com um líquido esverdeado.
- Tape o nariz e beba de uma vez. – ordenou e obedeceu, fazendo uma careta em seguida.
- Isso é horrível. – Tapou a boca ainda estampando a careta, sentindo o gosto daquela mistura. – Ok. Vamos ver como está. – Abriu a carta e começou a ler diante dos olhos ansiosos da amiga. Sempre que recebia uma carta do marido, atravessava o corredor e ia até o apartamento de . Sempre pedia para a amiga ler com medo de más notícias. – Querida ...
1941 - A mãe
Mary procurava se manter ocupada. Quando não estava exercendo o papel de secretária do marido, passava o tempo alternando entre diversas atividades. Cuidava da casa, do jardim e da horta, lia, tricotava, costurava e bordava. Tentava ocupar sua mente para que o aperto em seu peito não a sufocasse. No momento estava limpando uma janela e de tão distraída, esfregava o mesmo local há um bom tempo. A janela dava para seu quintal e seu olhar estava perdido ali. Era doloroso ver aquele quintal vazio e a casa tão silenciosa. Largou o pano na mesa e fez o trajeto que repetia diariamente. Assim que entrou naquele pequeno quarto cor de rosa, seus olhos passearam por toda a mobília. Sentou na cama e pegou uma das bonecas depositadas ali e a abraçou. Ela suspirava apertando a boneca, desejando a presença da filha. As memórias da despedida a atingiram e logo sentiu os olhos arderem. Apertou a boneca com ainda mais força e chorou, como fazia todos os dias.
Mais uma vez Mary acabou dormindo na cama da filha em meio a memórias e saudade. Mas dessa vez acordou com a chegada do marido que a observava. Sentou na cama e logo ele se aproximou.
- Eu sei que você está sofrendo, mas... – começou com uma voz terna, mas foi interrompido.
- Você não sabe. Não sabe de nada, .
- Eu fiz o que era melhor para Amelia. E não me arrependo. – Elevou um pouco o tom de voz. Estava cansado de discutir repetidamente o mesmo tópico.
- É minha filha. Só minha. E você tirou ela de mim. – gritou, sentindo mais lágrimas rolarem.
- Nossa filha. – gritou de volta. – Quando decidi me casar com você, não foi simplesmente para que não ficasse desonrada por conta de um erro tolo que cometeu. Eu escolhi ser um pai. Ela é minha filha também. – a dor na voz dele fez com que ela se desarmasse.
- Por que tirou ela de mim? – murmurou entre soluços.
- Para mantê-la a salvo. – Sentou ao lado da esposa e limpou suas bochechas. – Hitler estava determinado a destruir Londres e eu não podia permitir que ele destruísse nossa família nesse processo.
- Eu não a vejo há meses, não sei se está feliz e bem alimentada. – se abraçou enquanto sentia acariciar suas costas.
- Tenho certeza que seus pais estão cuidando bem dela. Além disso, ela ama aquela fazenda. Deve estar se divertindo todos os dias e... – O som do telefone o interrompeu. Diante do olhar preocupado da esposa, ele se apressou até o aparelho que estava em outro cômodo. Voltou após algum tempo e suspirou antes de se pronunciar. – Seu irmão está em Londres e precisa de você.
***
Mary estava ansiosa para encontrar Martin. Seu irmão mais novo havia a deixado para se juntar a RAF meses atrás e agora estava de volta. procurava acalmá-la, mas não estava tendo sucesso na tarefa. Estavam muito agitados quando entraram no hospital e se apressaram em pedir informações a uma das enfermeiras, que se prontificou a acompanhá-los até o quarto.
Martin sorriu ao ver os rostos conhecidos na porta do quarto e logo sentiu o aperto do abraço da irmã. Apenas quando se afastou é que ela notou que ele não estava sozinho. Uma mulher estava sentada em uma cadeira de madeira do lado oposto do quarto.
- Mary, essa é , uma amiga. , essa é minha irmã e aquele é meu cunhado. – Martin fez as apresentações, notando que encarava .
- É um prazer conhecê-los. – se levantou e cumprimentou Mary e . – Vou dar privacidade para vocês. – sorriu docemente para Martin antes de deixar o quarto.
- É muito bom te ver, Martin. – falou após observar atentamente os movimentos da mulher que seguia pelo longo corredor. Suspirou antes de continuar. – Mary precisa de um momento com você. Vou deixar vocês conversarem.
- Como você está? – após deixar o local, Mary foi até a cadeira antes ocupada por , e então seu olhos focaram na cadeira de rodas no canto do local. – Você perdeu os movimentos? – questionou, sentindo o desespero invadir sua mente.
- Temporariamente. – Agarrou a mão da irmã quando ela se aproximou. – Eu vou ficar bem. Os médicos falaram que preciso ficar aqui por um tempo e os tratamentos vão me fazer andar de novo.
- Com toda certeza você vai. Vou garantir que tenha os melhores médicos e tratamentos. – Acariciou o rosto de Martin. Queria poder retirar toda a dor que ele estava sentindo – E a sua cabeça?
- Está ótima, é uma ferida superficial. Meus dedos é que não tiveram salvação. – Ergueu a mão direita que estava enfaixada. O único dedo inteiro ali era o polegar.
- Meu Deus, Martin! – o choque fez sua respiração ficar mais pesada.
- Foi um acidente com um morteiro. Um maldito morteiro me deixou aleijado. – Ele queria arrancar todas as faixas e bandagens e ser capaz de levantar sozinho daquela cama para então quebrar toda mobília daquele quarto.
- Você é um herói de guerra! – Afirmou, tentando consolá-lo.
- E o que isso significa? Eu perdi muito nessa guerra. Não foram só os dedos. Eu sou um inútil. – A raiva e a frustração o sufocavam. – A , por exemplo, ela me desejava... e agora só vejo pena em seus olhos. Não sirvo para ela, nem para o exército e além disso eu nem posso me sustentar.
- Não diga isso. – Se sentou na cama e segurou a mão dele carinhosamente. – E não deve se preocupar com dinheiro. Você tem uma família para cuidar de você. Assim que recuperar os movimentos das pernas nós vamos para a fazenda. Nós dois.
- Deixei aquele lugar e não quero voltar. – Viu a tristeza nos olhos da irmã. – Mas você devia ir. Sei que sente falta da Amelia e devia ficar com ela. Ela precisa mais de você do que eu. E muito mais que o .
***
Assim que alcançou o pátio, seus olhos focaram em , que fumava apoiada em uma parede de tijolos escurecidos pelo tempo.
- Eu me lembro de você. – se aproximou sorrindo.
- Eu também me lembro de você e da sua filha adorável.
- Semanas após aquele dia e ela ainda cantava a música que você ensinou. Você realmente a ajudou a se acalmar. – fez sinal para que ela lhe entregasse um cigarro, o que ela prontamente atendeu.
- Precisei usar muitas mentiras e promessas para isso. Devemos manter a ingenuidade das crianças mesmo em meio a tempos sombrios. – acendeu o cigarro dele e jogou o isqueiro na bolsa. – Como ela está?
- A salvo no campo. – Tossiu após a primeira tragada. Não fumava há anos devido as reclamações de Mary. – A enviei para ficar com meus sogros.
- É isso que a guerra faz. – Comentou após uma tragada. – Separa famílias, de um jeito ou de outro.
- Você perdeu alguém? – Se recostou a parede, analisando cuidadosamente a mulher ao seu lado. Algo nela o intrigava.
- Sim, mas em outra guerra. Meu pai e meus irmãos mais velhos morreram nas trincheiras. Minha mãe morreu meses depois. O médico disse que foi a gripe, mas acho que foi de tristeza. – encarava seu cigarro e quando voltou os olhos para torceu a boca. – Sabe... odeio esse olhar. Pena.
- Eu não quis....
- Não vamos falar disso. Não gosto de perder meu tempo lamentando o passado. – jogou a bituca no chão, e logo puxou outro cigarro da bolsa.
- Há quanto tempo conhece o Martin? – Ela riu da pergunta. Sabia o que viria a seguir.
- Três anos. E não estamos juntos. – se adiantou em saciar a curiosidade dele.
- Quer que eu acredite que não há nada entre vocês? – a acusou, estreitando os olhos.
- Tivemos alguns encontros, mas nada além disso.
- Então, amor está fora de questão?
- Amor? – gargalhou – Não seja ridículo. Uma lição grátis para você. – Apontou o dedo para ele. – Amor é dor. Qualquer um que diga o contrário está mentindo para os outros ou para si mesmo. Não fique preso em ilusões. – aconselhou com um sorriso debochado e foi a vez dele rir.
1942 - A artista
O apartamento de era preenchido pelo som do rádio vinte e quatro horas por dia e cada vez que a música parava para o plantão de notícias da guerra, parecia que seu coração ia saltar para fora do peito. Sua atenção se dividia entre o rádio e sua tarefa de confeccionar cartazes. A arte que por muito tempo havia sido um hobbie particular, se tornara seu ganha pão. Criava e reproduzia todo o tipo de cartazes para o governo. A maioria de suas criações incentivavam os cidadãos comuns a se empenharem nos esforços de guerra como podiam, não apenas como soldados, mas também na produção de alimentos, de bens em geral e nas campanhas de racionamento e reciclagem. Queria que todos fizessem a sua parte assim como estava fazendo o dela.
O cheiro de tinta e o trabalho a ajudavam a se distrair apenas enquanto a música ecoava no ambiente. No momento em que a música parava, era como se o tempo também parasse. Largava o pincel e ouvia atentamente as notícias enquanto respirava profundamente. Pintava cercada por diversas pinturas de paisagens, cartazes de propaganda e um retrato do marido. Em cima da mesa estava a lata com todas as cartas que ele já havia enviado. Sua casa era seu ateliê e casulo onde se escondia do mundo. O trabalho permitia que passasse muitas horas sozinha em casa e isso apenas agravava a solidão e o vazio em seu peito. Rezava pelo fim da guerra, para que pudesse voltar logo para casa. Se conheceram no casamento de sua prima e após dois anos de namoro se casaram em uma pequena capela com apenas a presença de seus pais. Infelizmente, após apenas seis meses de casados, a guerra eclodiu e decidiu se alistar. Afirmava que seus conhecimentos em engenharia seriam melhor utilizados pelo exército. Agora tinha que se contentar com cartas e rezar para não ouvir más notícias. Tinha apenas vinte e dois anos e a possibilidade de perder o amor de sua vida e se tornar uma viúva a assombrava. Odiava aquela guerra e as vezes odiava por deixá-la. O ódio se esvaia quando as cartas chegavam, mas logo era novamente atingida por um sentimento de abandono.
A música animada que saía do rádio parou e ela largou tudo para se aproximar do aparelho. As notícias a deixaram estática.
***
se despediu de Martin se sentindo frustrada. Ele havia a pedido em casamento e ela havia o rejeitado. Mas ao invés de terminar de vez o relacionamento casual que mantinham, decidiu pedir que ele esquecesse do pedido para que então mantivessem tudo do jeito que estava. Ela não admitia, mas o motivo de não encerrar o relacionamento de vez era a pena. Martin voltara a andar, mas estava manco e sem os dedos da mão direita. Ele se sentia inútil e não queria aumentar seu sofrimento. Assim que alcançou o sobrado, encontrou a senhora Hayes que a encarava com desprezo e nem se deu ao trabalhou de ser educada e responder o bom dia que havia proferido. Dentro do prédio esbarrou em Judy que apenas murmurou um pedido de desculpas. Judy sempre fora reservada e dedicada ao seu trabalho como enfermeira, mas se afastara ainda mais de todos desde a ida do irmão para guerra. subiu as escadas e quando ia entrar em seu apartamento desistiu. Se virou e caminhou até a porta de . Após algumas batidas e nenhuma resposta decidiu abrir a porta. A amiga quase nunca se lembrava de trancá-la. Se deparou com uma cena que a fez gritar. Telas rasgadas, utensílios espalhados e a amiga caída no chão.
- , o que aconteceu? – correu até ela, que tinha olhos vermelhos que encaravam o nada.
- Eles... – começou ainda com a bochecha colada ao piso de madeira.
- Eles quem? Quem fez isso com você? – não conseguia conter o desespero em sua voz. voltou a chorar.
- Os japoneses. Eles tomaram Singapura. – ajoelhou em frente a amiga enquanto ela continuava estática. – pode estar morto. – deitou na mesma posição que , a obrigando a encará-la.
- Ele não está morto. – afirmou, segurando a vontade de chorar junto com a mulher, que parecia tão frágil na sua frente.
- Não tem como ele ter escapado. Os soldados tiveram que se render. Se ele não está morto, é prisioneiro dos japoneses e isso significa que vai morrer logo. – sua voz estava cheia de medo e dor.
- Ele não vai morrer. Ele vai ser forte e vai voltar para você. – alcançou a mão da amiga, esperando que suas mentiras a confortassem.
***
O álcool já fazia efeito e sabia que teria dificuldades para caminhar em linha reta quando se levantasse daquele banco e deixasse aquele bar. Viu pelo canto do olho um homem se sentar no banco ao seu lado, ficando de frente para ela.
- Você não parece bem. – ao se virar se deparou com .
- Só preciso do meu remédio. Mais bebida. – Fez sinal para o garçom, que encheu seu copo.
- O que aconteceu? – a analisava preocupado.
- O Japão está avançando na Ásia. Estamos perdendo a guerra no Pacífico e Hitler ocupa grande parte da Europa. Pelo andar da carruagem, logo nós vamos fazer parte do Terceiro Reich. – enumerou com a voz já meio enrolada e virou o copo em seguida.
- Eles não vão ganhar a guerra. De jeito nenhum. – retirou o copo da frente dela e ela bufou.
- Não por causa do seu esforço.
- Do que está falando? – Pediu uma bebida e logo estava bebericando um copo de rum. – Eu sou dono de uma fábrica de munições. Sou parte do esforço de guerra.
- Mas não está no front. Por que? Eu sei o porquê. Você é rico. – tentou alcançar seu copo, mas o afastou, logo a encarando com as sobrancelhas franzidas. – Seu dinheiro garantiu que não fosse convocado. Não precisa ver os horrores da guerra. Não precisa ser tratado como bucha de canhão. Pode sentar em uma cadeira de veludo confortável e comer carne com seus talheres de prata. – Rosnou diante do olhar despreocupado dele. – Não vai nem se defender?
- Você está irritada. O problema não sou eu. Só está descontando em mim e tentando arranjar briga. Escolheu o homem errado para isso.
- Todo homem tem um gatilho para perder a calma e se tornar agressivo. – Bateu a mão no balcão enquanto ele bebia seu rum tranquilamente
- Tem lidado com homens errados. – Largou o copo, se virando novamente de frente para ela. – O que realmente está acontecendo?
- Minha amiga é provavelmente uma viúva. – Apoiou os cotovelos no balcão e escondeu o rosto entre as mãos. – E eu não consigo visitá-la porque não sei o que dizer. É triste demais vê-la daquele jeito
- Não precisa dizer nada. Ela só precisa de você do lado dela. – Acariciou as costas dela por um instante e se levantou do banco em seguida. – Vamos, eu te acompanho. Acho que já bebeu demais.
- Não preciso de homem nenhum. – se levantou com um andar cambaleante.
- Sei disso. Mas acho que precisa de um amigo agora. – estendeu a mão pra ela, que após um momento de hesitação a segurou.
***
Após algumas horas de sono já sentia que o efeito da bebida havia abandonado seu corpo. Então, se levantou decidida a visitar . Bateu na porta e ouviu ela ordenando que entrasse. Se deparou com a amiga cheia de olheiras, vestindo o mesmo roupão de dias atrás, sujo de tinta. O local estava recheado de dezenas de retratos de em diferentes estilos e tamanhos, e pintava mais um.
- Já jantou? – analisou a sujeira que o lugar estava, sentindo um cheiro forte de álcool.
- Não estou com fome. – respondeu após um gole de vinho.
- Precisa se alimentar, . – catou algumas garrafas que estavam no chão e levou até a lixeira da cozinha.
- Eu vou, quanto estiver com fome. – A porta de entrada foi repentinamente aberta, assustando as mulheres.
- Vim receber o aluguel. – Ao observar minuciosamente o lugar, os olhos da senhora Hayes se arregalaram. – Meu Deus, esse local parece um mausoléu. Com todos esses retratos do falecido. – sua falta de tato fez bufar.
- Vá embora! Não é bem-vinda aqui. – gritou, arremessando a garrafa e Ophelia Hayes saiu pela porta resmungando. a seguiu. – Ele não está morto! – as mulheres ouviam repetindo aos gritos aquelas palavras.
- O que há de errado com ela? – Ophelia indagou assim que fechou a porta.
- O que há de errado com você? – Rebateu, sentindo uma vontade imensa de estapear a mulher que tinha idade para ser sua mãe. – Ela está sofrendo e você vem aqui tratá-la dessa forma.
- Ela é fraca. Precisa seguir em frente. – penteou os cabelos grisalhos com os dedos.
- Não é tão fácil assim.
- Tem que ser, porque a vida é mais que um marido, é mais que uma família e ela não devia se destruir desse jeito. – começou com uma voz dura que suavizou quando lágrimas tomaram seu rosto.
- O que há de errado? – questionou, preocupada.
- Roy está doente. Ele vai morrer. – A mulher se ajoelhou, finalmente sentindo todo o peso daquilo. Ia se tornar uma viúva. Perderia seu companheiro e sentia que certamente morreria em seguida. Sentiu o aperto do abraço de e chorou externando toda a dor que sentia.
1943 - A viúva
Após meses de relutância, Ophelia decidiu doar as roupas do marido para uma igreja. A única peça de vestuário que ela não conseguiu doar era um velho casaco marrom. O preferido do marido. Dormia abraçada àquele casaco todas as noites, e a essa altura o cheiro de Roy já havia se misturado ao seu. Ela não se importava, pois era como se sentisse a presença dele ali. No dia do enterro ela havia chorado tudo que podia e prometeu que não choraria mais. Promessa que quebrou poucas horas depois. Assim que entrou em casa e deitou sozinha naquela cama as lágrimas começaram a rolar. Dormir era a parte mais difícil. Ficar sozinha no escuro com apenas a companhia de seus pensamentos e daquele pedaço de pano marrom tornava sua dor ainda mais palpável. Em meio ao sofrimento ela havia decidido que não seria tratada como uma viúva desamparada e digna de pena. Teve um ótimo casamento e nunca deixaria de amar Roy, mas não podia passar o resto da vida chorando. Era mais forte que isso.
Ophelia decidiu arrumar um emprego. O aluguel dos três pequenos apartamentos pagava as contas, dois na verdade, já que um deles estava desocupado desde a ida de Judy para o front para servir como enfermeira. Mas independente da parte financeira, ela queria fazer sua parte para manter o país funcionando. Havia passado tempo demais longe de seu ofício e agora era hora de voltar. Crescera em uma fazenda, dirigindo e consertando todo tipo de máquinas agrícolas e tinha facilidade para entender todo tipo de maquinaria. Durante a Primeira Guerra ela trocou os tratores por ambulâncias. Em um dos trajetos dirigindo uma ambulância na França é que ela conheceu Roy. Ele havia sido baleado e ela o resgatara. Depois que ele se recuperou, eles lutaram juntos contra os invasores alemães e se apaixonaram no processo. Em meio ao horror das trincheiras eles forjaram seu relacionamento que durou quase três décadas. Esse passado de luta e resistência fez com que por muito tempo ela enxergasse como fraca. Acreditava que a mulher não devia ter ficado para trás lamentando a saudade do marido, devia estar junto dele enfrentando os japoneses. Sua visão havia mudado. Desde a morte de Roy ela encontrara força em e , que a ajudaram durante todos esses meses e as três construíram uma amizade inesperada. As duas haviam apoiado sua decisão de voltar a trabalhar e agora, na companhia de , ela se dirigia em direção a uma fábrica. Se apresentaria para o cargo de mecânica, enquanto tentaria o cargo de secretária. A mais nova foi demitida da central telefônica por conta de um escândalo feito por Martin após ter sido rejeitado. As duas se separaram assim que entraram na fábrica, e após um teste prático, Ophelia foi contratada e imediatamente começou a trabalhar.
estava em uma sala de espera, junto de uma dúzia de moças da sua idade muito bem vestidas e maquiadas. Após alguns minutos de espera foi chamada a sala do dono da fábrica e se surpreendeu com a visão do homem a sua frente.
- Senhorita . – pulou da cadeira e foi cumprimentá-la. – A que devo a honra dessa visita?
- É o dono dessa fábrica? – ela estava com os olhos arregalados ainda confusa, mas logo apertou a mão dele.
- Sim. Eu...
- Estou aqui para a entrevista. – O interrompeu ansiosa, apertando a bolsa entre os dedos. – Para o cargo de secretária.
- Está contratada. – o sorriso largo dele sumiu diante da careta que ela fez.
- Não pode me contratar. Não ainda. Ainda nem fez entrevista. – atropelava as palavras, andando de um lado para o outro.
- Já nos conhecemos.
- Não pode me contratar sem ouvir minhas qualificações.
- Ok. Estou escutando. – cruzou os braços e se apoiou a mesa.
- Eu sou muito boa com cálculo e datilografo rapidamente. Sou organizada e aprendo rápido. Aqui as minhas referências. – Retirou um papel da bolsa e estendeu para ele. Viu ele passar os olhos rapidamente, a encarando em seguida.
- Está contratada. – devolveu o papel novamente, estampando um sorriso.
- Ainda tem muitas mulheres para entrevistar. – apontou para a sala de espera e ele deu uma risada.
- Quer o emprego ou não?
- Quero, mas por meu valor, não porque nos conhecemos. – Guardou o papel, se sentindo agitada e passou a encarar os sapatos
- Preciso de alguém em que possa confiar. Mary trabalhava aqui comigo, e desde que ela foi para o campo não encontrei ninguém que pudesse substituí-la. – Se aproximou, percebendo a dúvida no olhar dela. – Eu sei que posso confiar em você. Sei que é esperta e honesta. E eu confio em suas habilidades. Então... aceita o emprego? – estendeu a mão, ansioso pela resposta dela.
***
Em pouco tempo provou que realmente era a melhor pessoa para o trabalho. Ajudou a organizar as contas da fábrica e suas ideias eram respeitadas por ele, que passou a enxergá-la não apenas como uma secretária, mas uma parceira na administração. A aproximação profissional abriu caminhos para uma aproximação pessoal e não demorou para que se tornassem amigos. Após um dia cheio no escritório da fábrica, os dois se dirigiram até um clube no centro. Conversavam sobre a vida e a guerra. Havia uma esperança que brotara com a vitória dos russos contra os alemães em Stalingrado, além das outras vitórias dos aliados no Pacífico. Depois de alguns drinks, conseguiu arrastar até a pista de dança.
- É a única que já conseguiu me obrigar a dançar jive. – ele tentava manter o ritmo.
- Até que dança bem.
- Sou mais do tipo que escuta jazz sentado tranquilamente bebendo rum. – ele se concentrava em não pisar no pé da parceira enquanto ela se divertia com o olhar preocupado dele.
- Que bom que está se divertindo. Estava muito agitado hoje cedo. – Comentou após um rodopio e então ele parou de dançar. – O que foi? – ele fez sinal para o bar e ela o acompanhou até lá.
- Recebi uma carta da Mary. – Falou após pedir um rum. – Ela achou alguém. Disse que está apaixonada. – bebeu diante do olhar preocupado da mulher.
- Tem razão de estar agitado. – tocou o ombro de que a encarou, apertando os lábios.
- Não foi isso que me abalou. Tenho contado tudo pra ela nas cartas e... ela percebeu algo que eu não tinha me dado conta até agora. – Bebeu o resto do rum, criando coragem para falar tudo. – Meus sentimentos por você. – Confessou, encarando o copo e então voltou o olhar para ela. – E eu sei que não pode acontecer nada e... – foi interrompido pelos lábios de junto aos seus.
- Devia falar menos e agir mais. – exclamou divertida enquanto pedia uma bebida.
- Eu não quero desonrá-la. – tocou a mão dela, externando suas preocupações.
- Honra é algo usado para tentar controlar as mulheres. – virou o copo e já pediu outro.
- Eu não quero que falem de você.
- Responda sinceramente, você me quer? – se aproximou dele, alternando o olhar entre seus olhos e sua boca.
- Sim. – afirmou com a respiração falha.
- Ótimo... eu também te quero. E é disso que você precisa. Meu consentimento. A aprovação de outras pessoas não é necessária. – foi a vez dele juntar os lábios aos dela.
1944 - A meretriz>
Celine desfez as malas sem pressa, sentindo que finalmente poderia recomeçar a vida. Estava feliz por ter encontrado aquele sobrado. Não aguentaria mais uma noite naquele hotel de quinta em que passara os últimos dias. O problema não era a estrutura ou limpeza do local, mas sim alguns hóspedes inconvenientes que aumentavam o sentimento de insegurança que já a acompanhava há algum tempo. O sobrado era uma grata surpresa. Um bom preço e a melhor parte: era habitado apenas por mulheres. Ophelia Hayes e a trataram muito bem e se dispuseram a ajudá-la no que precisasse, mas foi quem havia ganhado sua imediata simpatia. Gostava de gente brutalmente honesta. Em seu antigo círculo social, foi obrigada a seguir por muitos anos os jogos de interesses, etiqueta e decoro da sociedade francesa. Estava farta dessas mentiras e de forma alguma voltaria a se portar como aquelas pessoas, as mesmas que a rejeitaram.
Sentou em frente a uma antiga penteadeira e encarou seu reflexo por alguns minutos. As roupas, acessórios e maquiagem conseguiam criar a ilusão de que ela era apenas mais uma cidadã francesa buscando vida nova em Londres. Ainda encarando o espelho, retirou a peruca para que pudesse pentear aqueles fios pretos e lisos. Passou a mão direita pelo couro cabeludo tateando algumas cicatrizes ali e sentindo o cabelo, que começava a crescer, espertar seus dedos. Após retirar os vestígios de maquiagem, decidiu tomar um banho e quando se despiu, revelou as marcas de seu calvário, marcas que passavam o dia escondidas debaixo de pesadas roupas. Vestiu a camisola, amarrou um lenço na cabeça e então conferiu trancas e janelas antes de finalmente se deitar. Fechou os olhos desejando cair rapidamente nos braços de Morfeu, mas teve sua mente invadida por lembranças dolorosas. Seu sono nunca mais seria o mesmo. Ela nunca mais seria a mesma. Era uma mulher tosquiada.
Após a libertação de Paris, os franceses empreenderam "purgas legais". Investigaram, julgaram e condenaram qualquer um que tivesse colaborado com os nazistas de qualquer forma. O principal alvo de tais ações eram as mulheres que se envolveram romanticamente com oficiais e soldados do exército invasor. O comportamento "antipatriótico" e imoral dessas mulheres deveria ser expurgado. Celine era uma dessas mulheres. Se apaixonara pelo tenente Otto Werner, pelo seu sorriso e pela delicadeza com que lhe tratava. Ele, assim como tantos outros, não era correspondente ao estereótipo alemão que era martelado constantemente na mídia e propagandas. Apesar do sofrimento, tendo que conviver com a ocupação em sua cidade, isso serviu para perceber que as coisas não eram tão simples quanto ela ouvia. Os alemães não eram os vilões monstruosos e os franceses os bons heróis. A coisa era bem menos definida. Ela viu alemães mais humanos do que seus conterrâneos que a humilharam e maltrataram. Os alemães eram considerados os vilões agora, mas em outros momentos, outros povos invadiram territórios e dominaram nações. Era um jogo de forças constante e a culpa não era de uma nação específica. Talvez o egoísmo e a barbárie fossem inerentes a natureza humana. Traços que ela não via em Werner, mas vira nos olhos de tantos outros. No fim da Batalha por Paris, Celine se alegrou com a libertação da cidade, mas chorou a morte de Werner, que ocorrera dias antes. Semanas de choro pelo luto foram interrompidas quando ela foi acusada de colaboração com os nazistas. Diziam que ela havia cometido um ato de adultério contra sua pátria. Diziam que ela era uma mulher depravada, uma meretriz, uma ameaça a moral e aos bons costumes que deveria ser punida. Uma inimiga pública que devia ser escarnecida. Seu pecado contra a nação deveria ser expurgado. Expurgação feita através de linchamentos e humilhação pública. Rasparam seus cabelos, maltrataram seu corpo, cuspiram em seu rosto e pintaram uma suástica em sua testa. Em meio a risos, vaias e agressões desfilou nua em praça pública. Foi levada a prisão, onde após duas semanas de mais humilhações, conseguira escapar com a ajuda de dois primos. Conseguir fugir para Londres era um milagre e agora ela juntava todas as suas forças para acreditar que dias melhores a aguardavam.
***
tentava caminhar em linha reta, mas apresentava certa dificuldade. Ria de seus pensamentos diante de um também risonho. Sussurrou para ele ficar quieto enquanto entravam no sobrado, mas não conseguia conter o próprio riso. No primeiro piso morava Ophelia Hayes do lado direito e Celine na porta da esquerda. Se os dois bêbados acordassem Ophelia, ela os mataria. Subiram com dificuldade e sentou-se no topo da escada, observando tentar abrir a porta de por alguns segundos e então cair na risada novamente ao se dar conta de que era a fechadura errada. apoiou a cabeça na parede, sentindo que aquilo demoraria e fechou os olhos. foi até sua porta e se assustou ao notar que ela estava entreaberta. Entrou no cômodo lentamente e encontrou Martin revirando suas coisas.
- O que está fazendo aqui? – questionou, ficando subitamente sóbria.
- Vim te fazer uma visita. – se aproximou mancando e tocou o rosto dela com a mão esquerda.
- Vá embora. – se afastou receosa.
- O que? – Elevou o tom de voz e ela encolheu os ombros. – Não sou bom o suficiente para você? Não pode amar um aleijado?
- Martin, não foi por isso que terminei com você. – Começou, mas foi interrompida.
- Prefere outros termos? Inválido? Homem pela metade? – questionava com a voz cheia de sarcasmo.
- Não me importo com isso.
- Você me seduziu e depois me rejeitou. – havia ódio em seus olhos.
- Esse é o problema. A pessoa que você se tornou. O antigo Martin nunca me trataria assim.
- Não! – Gritou. – Isso é o motivo. – Ergueu a mão com dedos incompletos e em seguida acertou o rosto dela. – Não minta para mim.
- Martin! – entrou no cômodo gritando. Cochilara na escada e a discussão o acordou. – Eu quero você fora daqui. – amparou , que tinha a bochecha vermelha.
- Então é por isso que me trocou. – debochou, apontando para . cerrava os punhos, ansiando por quebrar os dentes do homem. – E você... você está traindo a minha irmã.
- Vou te ajudar a encontrar a saída. – marchou até o cunhado, mas paralisou quando ele sacou uma arma.
- Cadê a sua valentia? – apontou a arma para o casal enquanto enfiava no bolso o dinheiro que encontrara escondido no apartamento.
- Não faça isso. Por favor. – implorou, se aproximando com passos curtos. – Vai arruinar a sua vida.
- Que vida? Eu perdi tudo. E eu perdi você. – Seus olhos estavam cheios de lágrimas. – Talvez deva tirar algo de você para ficarmos quites. – apontou a arma para e antes que pudesse acontecer qualquer reação, um tiro foi disparado e Martin saiu do apartamento.
- Meu Deus! Não! – agarrou ofegante. O colocou em seu colo e analisou o buraco que a bala deixara na barriga dele. – Eu não posso te perder, ok? Preciso de você. – implorava enquanto tentava estancar o sangramento.
- Eu vou ficar bem. – falou com dificuldade, sentindo suas forças deixarem seu corpo.
***
Martiu desceu as escadas correndo como podia. Atirar no cunhado não estava nos seus planos, mas acreditava que fora necessário. Se sobressaltou quando uma porta foi aberta e Celine entrou em seu campo de visão.
- Sai da frente. – Gritou, mas ela não se moveu. Estava paralisada pelo medo. – Está surda? – Apontou a arma, mas ela ainda continuava parada, então se aproximou e acertou o cabo no rosto dela, a jogando no chão. Antes que pudesse desferir um segundo golpe ouviu o som de um tiro e então tudo se apagou.
Ophelia encarava o homem morto no corredor sem se mover. Ouviu gritos e então despertou de seus devaneios. Foi até Celine e a abraçou, a mais nova chorava compulsivamente.
- Está tudo bem agora. – Acariciou as costas dela. Celine se encolheu e puxou as mangas do roupão para esconder completamente suas cicatrizes.
- Meu Deus! – gritou da escada ao vislumbrar o morto e Celine chorando. – Ela está bem?
- Sim. Vai ficar. – encarou , que estava branca.
- foi baleado. Precisamos chamar uma ambulância. – falou rapidamente, tentando controlar a respiração.
- Vá. – Ophelia apontou para sua porta, era o único apartamento com telefone, e viu correr até lá. – Está a salvo. – Sussurrou para Celine, que se aconchegou ao abraço. – vai ficar bem também.
1945 - O espírito livre
Os aliados celebravam a vitória contra os alemães. Em Londres, milhões de pessoas se aglomeravam ocupando ruas, calçadas e monumentos. Havia música, dança e bandeiras sendo acenadas. e Ophelia ficaram em casa acompanhando Celine que se sentia desconfortável em meio a aglomerações. e estavam presentes, rindo e celebrando, entoando canções e brados. Mesmo em meio a uma multidão os olhos de não desviavam do rosto de . Ela o analisava a todo momento. As coisas mudaram desde que ele foi baleado meses antes. O medo de perdê-lo fez ela perceber como ele havia se tornado uma grande parte de sua vida e ela ainda tentava assimilar isso. Os sorrisos e o jeito que ele a olhava não a ajudavam na tarefa de se convencer de que eram apenas bons amigos aproveitando a vida. Havia algo mais, algo que ela não conseguia distinguir ou admitir. Devido ao barulho, se aproximou mais, a puxando pela cintura e falando ao seu ouvido:
- Eu te disse que os nazistas não iam vencer. E você achando que faríamos parte do Reich.
- Quando eu disse isso? – franziu as sobrancelhas, se sentindo um pouco ofendida.
- Dois anos atrás. Nos encontramos em um bar. Você estava triste por causa do sofrimento da e...
- Como se lembra disso? – O interrompeu, surpresa. – Eu não sabia que memorizava todos os momentos que passamos juntos. – o acusou, rindo.
- Sim. Me lembro até o que estava vestindo. – sorriu de lado e viu ela morder o lábio.
- Ainda bem que pelo menos um de nós tem boa memória. – deu alguns tapinhas no ombro dele e então se assustou com a intensidade com que ele a encarou.
- Eu amo você.
- O que? – a voz de sumiu no meio da fala. Pânico. Foi isso que as três malditas palavrinhas fizeram ela sentir.
- É... Eu sei. Amor é dor. – Imitou a voz dela, rindo em seguida. – Mas acho que é uma dor que vale a pena. – Acariciou o rosto da mulher, que abria e fechava a boca sem saber o que dizer. – Não precisa dizer nada. – Juntou os lábios por alguns segundos e em seguida segurou a mão dela. – Vem, vamos dançar.
***
Após a rendição japonesa, a guerra havia acabado. Semanas após diversas celebrações na cidade, as mulheres comemoravam outro evento no sobrado. O aniversário de Ophelia Hayes.
- Tem ideia do quanto eu odeio jazz? – Ophelia se aproximou de , que havia tomado posse de sua vitrola. Ele chegara à festa acompanhado por bebidas, um presente e uma caixa de vinis.
- Vai aprender a amar. Assim como aprendeu a amar essas três senhoritas. – sorriu e logo viu se aproximar com os olhos semicerrados.
- Sim. Assim como aprendeu a tolerar o . – entregou um copo de vinho para Ophelia.
- Ainda estou decidindo se o tolero. – Comentou com uma expressão pensativa, gerando risadas. – E coloque uma música mais animada. – ordenou após bebericar o vinho e voltou a cozinha para ajudar .
- Eu mereci essa.
- Tem algo do Bing Crosby aí? Ela o venera. Me arrastou para ver filmes dele. – Celine se intrometeu enquanto dançava sozinha no meio da sala.
- Tenho sim. Obrigado pela dica. – trocou o disco e assim que "White Christmas" começou a tocar, viu Ophelia reaparecer na sala dançando uma valsa com que não conseguia conter o riso.
Após mais algumas músicas de Crosby, colocou um disco de swing e logo ele dançava com e Ophelia com Celine. As duplas se divertiam arriscando alguns passos mais elaborados, mas depois de duas músicas sentou no sofá já ofegante, sendo acompanhado por .
- Está parecendo um velho moribundo. – ajeitou os cabelos dele, um pouco bagunçados por conta da dança animada.
- É, mas sou o seu velho moribundo. – Beijou a bochecha da mulher. – Venha morar comigo. – pediu após alguns segundos em silêncio, a observando ajeitar seu cabelo.
- Que? Você é casado e tem uma filha. A guerra acabou, elas podem voltar agora. – falou rapidamente, atropelando as palavras.
- Elas vão ficar no campo. Mary tem alguém e construíram uma vida lá. Vou visitá-las sempre que possível, mas elas não vão voltar. – Alcançou as mãos dela e as envolveu. – Você sabe como me sinto e eu só quero aproveitar todo o tempo que puder ao seu lado... Mas não quero que se sinta pressionada.
- Ok. Vou pensar no assunto. – Se levantou agitada. – Quer mais vinho? – viu ele assentir, e então seguiu até a cozinha.
- Está tudo bem? – se aproximou ao ver entrar na cozinha e começar a bater a cabeça em um dos armários.
- Sim. É que me chamou para morar com ele e...
- E você está apavorada. – acusou, afastando a amiga do armário.
- Eu não estou... – negou cruzando os braços e ergueu uma sobrancelha.
- Você ficou surtando por semanas quando ele disse que te amava e agora isso. Não surte de novo.
- Não vou surtar. Eu só estou confusa. Nem tenho certeza de como me sinto. – sentou em uma cadeira e encostou a testa no tampo da mesa.
- Nós últimos dois anos, com quem você tem se encontrando?
- . – Respondeu ainda na mesma posição. Fez uma careta, aquilo era óbvio.
- Além dele?
- Ninguém.
- Exatamente. Você já o escolheu e ainda nem havia se dado conta. – se levantou, sentindo a realidade a atingindo. Finalmente via com nitidez o que sentia. O simples fato de só querer estar com já era um indicativo muito claro de seus sentimentos. – Precisa falar para ele como se sente. – ordenou, pegando os pratos para levar para mesa de jantar, mas um olhar de relance para a janela fez ela derrubar todos no chão. se assustou e viu a amiga correr porta a fora. Olhou pela janela e não acreditou em seus olhos, estava lá.
sentia que seu coração ia sair pela boca. Correu até a porta com medo de que aquilo fosse um sonho. Assim que estava do lado de fora do sobrado, correu a curta distância que a separava do marido e pulou em seus braços. Ele imediatamente a envolveu e a tirou do chão.
- Eu nem acredito que finalmente posso te tocar. – chorou com o rosto enterrado nos cabelos dela.
- Achei que tinha te perdido. – O apertava com todas as suas forças. Temia que fosse uma miragem que se desmancharia no ar.
- O desejo de te ver de novo é o que me deu forças para suportar tudo. – A colocou no chão e então a beijou. Ambos tinham o rosto coberto por lágrimas.
- O que aconteceu? – indagou quando se separaram.
- Fui prisioneiro dos japoneses.
- Está tudo bem agora. Estamos juntos. – Tocou o rosto dele e acariciou. pegou a mão da esposa e beijou a palma, vendo ela fechar os olhos por um instante. – Se isso é um sonho eu juro que mato quem tentar me acordar.
- Isso é real e eu não sairei do seu lado nunca mais. – afirmou antes de juntar os lábios novamente.
Quando caminharam em direção ao prédio viram e as mulheres os observando da entrada com largos sorrisos. Apresentações foram feitas e logo o grupo estava de volta a sala bebendo e rindo, e dessa vez com a presença de , que não desgrudou da esposa em nenhum momento.
- Agora você não é mais o bendito é o fruto. – cutucou que a encarou com as sobrancelhas franzidas.
- Que?
- Você sabe... bendito é fruto entre as mulheres – imitou uma oração e logo levou um tapa no braço.
- Não faça piadas com religião. – Ophelia a repreendeu e ela riu.
- Ok, mamãe. – recebeu um olhar de reprovação seguido por um sorriso.
- Vamos jantar. O assado está pronto.
Depois de alguns brindes e discursos, foi a vez de Ophelia se levantar erguendo uma taça:
- Roy deve estar rindo no céu dessa cena. É algo que nós dois nunca imaginamos que pudesse acontecer. Eu costumava desprezar e também não era muito fã da , mas as coisas mudaram. – Todos na mesa riram. – Essa guerra... como tantas outras, foi cheia de dor e perdas... – sentiu os olhos arderem. O vazio deixado por Roy ainda estava ali. – Mas em meio a tudo isso eu ganhei três filhas. E eu estou tão agradecida por ter vocês aqui. – Sua voz falhou e teimosas lágrimas começaram a molhar seu rosto. – É isso, não vou falar mais nada por que não quero chorar mais.
As mulheres ficaram tocadas por aquelas palavras, mas Celine foi a mais atingida. No dia em que Martin a atacou, ela pensou em se mudar dali. Mas durante a madrugada e os dias que se seguiram ela recebeu todo o apoio daquelas mulheres. E pela primeira vez na vida sentiu que estava a salvo. Sentia que podia enfrentar o mundo, porque teria pessoas para suportá-la e amá-la. Em diferentes momentos, as três mulheres viram suas cicatrizes, mas não interrogaram, e nem ela teve coragem de contar o que passou. O que elas fizeram foi lhe dar auxílio e carinho incondicional e ela nunca conseguiria agradecer o suficiente.
- Eu aceito. – sentou ao lado de , que estava novamente perto da vitrola. A encarou por alguns segundos e então juntou os lábios ao dela, a puxando pela cintura.
- Mais respeito. – Ophelia sentou ao lado de , obrigando o casal a se separar. – Os únicos que têm direito de ficar se agarrando são e , que ficaram anos sem se ver. E eles estão se comportando. – Apontou para o casal que dançava grudado e alheio a presença de todos ali. – Coloque uma música mais animada ou vou começar a chorar de novo.
obedeceu. O swing preencheu o ambiente e todos foram dançar, cientes de que apesar de quaisquer problemas futuros, os dias seriam melhores.
Fim
Nota da autora: Essa história é um presente para Bruna Avelino. Amiga maravilhosa que conheci nesse mundo de fanfics. Foi engraçado que quando começamos a conversar e eu descobri que a maioria das fics que eu amava eram dela.
Em pouco tempo a amizade cresceu e hoje a admiro não só como autora, mas como mulher e parceira de luta. É ótimo ter alguém que fica indignado com as mesmas coisas e que divide os mesmos ideais. <3
Ela ama história tanto quanto eu e uma fic que se passa na Segunda Guerra pareceu o presente perfeito.
p.s.: Ela é minha cobaia para ler as minhas fics e escrever isso aqui sem ir mostrando para ela foi bem difícil.