Capítulo Único
sempre foi visto pelos colegas da escola como o esquisitão. No entanto, nunca se importara. Gostava de suas roupas pretas combinando com o blazer do uniforme do colégio, o cabelo relativamente longo com a franja escondendo seus olhos, o tom pálido de sua pele e os olhos pintados por lápis de olho preto.
Se amava como era. Gostava de seu corpo, sua aparência, seu jeitinho meio sombrio e até mesmo de suas unhas um pouquinho grandes demais — e que às vezes pintava de preto para combinar. Gostava de seu jeito de andar e falar, suas manias e se considerava inteligente. Sabia falar sobre o Universo, o corpo humano e meio ambiente. Ele era simplesmente quem era; assim como seus pais lhe ensinaram.
As tentativas de seus colegas maldosos de fazerem com que pensasse coisas ruins sobre si mesmo ou sentisse medo deles não funcionavam. Nada funcionava, na verdade. Nem com ele, nem com seu irmão gêmeo, . Simplesmente não se deixava intimidar por adolescentes desesperados por atenção e uns beijos da mina mais bonita da turma no fundo da quadra. Tentavam parecer valentões, mas, para eles, eram um bando de frouxos.
Para especialmente. Ele adorava assustar os colegas jogando o cabelo para trás e olhando-o nos olhos enquanto sussurrava ameaças bizarras e sombrias. Era engraçado. Sempre desistiam de praticar bullying consigo e saiam correndo feito um bando de maricas. Maricas, sim. Frouxos. Bobos. Acomodados.
ria do irmão e dos colegas enquanto revirava os olhos; preferia encarar aquelas pessoas com desdém e praguejar até a milésima geração de cada família.
— Será que eles não cansam nunca? — perguntou na vigésima manhã naquela escola, enquanto lixava as unhas e fitava mais um garoto correr após alguns sussurros e ameaças de feitiços de .
— Não, feioso. Eles nunca cansam. Vai ser assim até acabarmos o ensino médio. As pessoas dessa cidade nunca entenderão nossa cultura — deu de ombros, fitando o irmão sem emoção. — Eu avisei ao papai que cidade pequena não era uma boa ideia.
suspirou, maneando a cabeça positivamente. Concordava, e chorara rios de lápis de olho preto para não ter que se mudarem da capital. A cidade grande era reconfortante e eles passavam despercebidos. No entanto, e queriam abrir um cemitério no fundo de sua casa. E isso só era possível ali, no interior.
Ah, havia aquele pequeno detalhe: eram mesmo os esquisitos da cidade, de verdade (!), e nem se importavam; a cor preta agradava toda a família, e um cemitério mais ainda.
— Será que ainda acham que o papai e a mamãe são irmãos? — perguntou baixinho, sorrindo de lado.
soltou uma risadinha, lembrando de quando os pais foram até ali para realizar suas matrículas.
— É provável que sim, feioso. Por quê?
— Por nada… — fitou um dos valentões de longe, que ainda os fitava. — A manhã não lhe parece perfeita para uma sessão tortura, maninho?
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— Mamãe! — gritou empolgado, correndo casa adentro. — Trouxemos um presente para você!
— E que presente seria esse, feioso? — uma voz grave ecoou por toda a casa. — Já disse que não aguento mais receber insetos. Você parece até aqueles gatos de rua que são adotados e enchem a casa de baratas, ratos e lagartixas.
— Hoje eu trouxe um menino mau — murmurou, revirando os olhos.
— Outro coleguinha de escola? — finalmente a voz grave pareceu interessada, e finalmente a mamãe virou-se para , fitando-o com seus olhos pequenos e escuros. Os cabelos curtos estavam devidamente penteados e no lugar, sem um fio torto ou fora, com o corte contornando corretamente o rosto bonito e fino. Um sorriso gengival se abriu logo em seguida, e o adolescente voltara a se animar.
Adorava quando sua mãe, , ficava feliz com seus presentes repentinos.
— Ele diz que o presente é dele, mas quem teve todo o trabalho fui eu! — apareceu ofegante e suado no meio da sala, puxando um garoto alto pelas pernas. — Você é um folgado!
— Cale a boca, — revirou os olhos. — Veja só, mamãe. Esse foi o que nos encheu a porra do saco hoje. Não parece perfeito? O dia está lindo para uma sessão de tortura, não consegui me controlar!
— Não acha que já desapareceram pessoas demais nessa cidade, meu amor? — perguntou de forma mansa.
— Qual a graça de termos uma sala de tortura e um cemitério nos fundos de casa se não pudermos sumir com as pessoas e fazê-las conhecer esses lugares incríveis? — perguntou, colocando uma mão na cintura, e com a outra tirando os cabelos do rosto.
riu do filho e revirou os olhos. Achava engraçado como suas crianças eram tão bem criadas; duas cópias de si. Adorava aquilo, embora , seu marido, dissesse que era quase impossível viver naquele meio. No fim, porém, acabava dando risadas e beijando-lhe os lábios. Adorava todo o caos causado por sua família. E adorava o fato de serem tão anormais; afinal, o que é ser normal?
Eram felizes daquela forma. Uma família sombria, os de fora diziam. Uma família repleta de amor, eles próprios sabiam.
e eram educados, bonitos e tinham boa autoestima. era o marido perfeito, tudo que pedira aos Infernos. E ela… bem, ela era ela. Mesmo que às vezes sentisse que havia nascido no corpo errado por conta dos comentários alheios, era feliz e esperava que logo pudesse estar com o tipo de corpo que não a incomodasse ou atraísse comentários maldosos. Estava no meio do caminho para tal. Suas curvas já eram visíveis, os saltos já não incomodavam mais, a voz já estava menos grave do que anos atrás e os longos vestidos pretos e vermelhos deixavam-na extremamente bela, deslumbrante. A visão de uma verdadeira deusa das trevas, dizia.
Só faltava mesmo ajustar o que tinha entre suas pernas. Não precisava tanto daquilo. Além de ser o maior fator para que fosse assunto em toda a cidade, as pessoas insistiam em se meter em sua intimidade, mesmo quando sua própria família não o fazia. E era grata por seu marido e seus filhos entenderem e apoiarem; sequer perguntavam mais sobre o assunto.
Menos, é claro, as pessoas daquela cidadezinha medíocre. Todos faziam questão de lhe apontar o dedo e dizer o quão bizarro tudo aquilo era, como eram esquisitos, como diabos era possível dois homens, mesmo que ela não fosse um, terem filhos e toda aquela baboseira nojenta que odiava. As pessoas fofocavam, faziam e falavam asneiras 24/7 e eles, que só queriam cultivar o cemitério no fundo da casa e eram mais propensos ao masoquismo, eram esquisitos? Ora, pois! Não aceitava.
Talvez, só talvez por isso aceitava de bom grado quando seus filhinhos chegavam de surpresa com um ou outro coleguinha mau.
Todos apreciavam uma boa tortura, principalmente , que era quem sempre trazia seres vivos para serem testados e jogados no cemitério.
Tsc, era mesmo o garotinho da mamãe. Puxara em tudo; na delicadeza, na lábia e na persuasão.
— Tudo bem, garotos. Vamos para a sala de tortura!
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A vida dos era bem diferente. Eram unidos, se amavam mais do que tudo e se machucavam juntos. Olhando de fora, pareciam doidos, bizarros, uma família de assassinos. Haviam muitas fofocas sobre aquela família rondando a cidade e isso só fazia a curiosidade aumentar entre todos. A cidade não era grande; pelo contrário, era tão pequena que todos se conheciam e sabiam de tudo. Mas sobre aquela família não sabiam de nada; só que haviam dois homens — mesmo que afirmasse ser uma mulher (e era!) e que estava trabalhando para que reconhecessem aquilo — que eram donos de um cemitério e cuidavam daqueles gêmeos que pareciam dois diabos na escola.
Contudo, ao longe, um rapazinho via-se encantando por aquilo. Não pela maldade que exalavam ou queriam mostrar ter; ele acreditava piamente que tudo aquilo era fachada somente para assustar todos ao redor e ninguém incomodá-los ainda mais por terem um cemitério em seu terreno.
A beleza que os irmãos possuíam chamava sua atenção, principalmente o gêmeo mais malvadinho, que adorava assustar as pessoas na cara dura, o .
, o nome do rapazinho curioso. Ele nutria uma paixão platônica por . O observava de longe, elogiava mentalmente seus cabelos, roupas e delineador pretos. Gostava de suas unhas longas, as coxas torneadas e o sorrisinho de coelho. Mas só haviam trocado meia dúzia de palavras, uma vez, e fora durante um trabalho de biologia onde apenas dissera:
— Abrir sapos é bem legal, olhe.
E riu, como se assistisse a um filme de comédia super engraçado.
ficou encantado e queria ouvir mais daquela risadinha maléfica. Mesmo com medo das histórias e rumores que ouvia pela cidade sobre a família , queria se aproximar. Nem que para isso precisasse liberar um pouquinho seu lado masoquista. Se fosse para ver sorrindo daquela forma mais vezes, até se deixaria ser marcado com cera de velas ou algumas espetadinhas com alfinetes.
Em seu íntimo, carregava mesmo uma curiosidade por aquelas coisas. E também achava sapos abertos magníficos.
Gostava de ver gente morta naquele estado também, queria ser legista e se divertir com órgãos alheios. Talvez por isso estivesse tão apaixonado por aquele garoto esquisito.
Ops.
— ? , que droga! Acorda! — uma voz suave porém zangada gritou em seu ouvido, finalmente lhe tirando de seus devaneios. — Você pode, por favor, parar de olhar para aquele esquisitão como se ele fosse o único cara do mundo?
— Ah, — sorriu, suspirando em seguida. — Não fale assim do , ele é tão adorável. E para mim, sim, ele é o único cara do mundo. O único que eu quero.
— Você é tão estranho, não sei por que sou seu amigo — falou, fazendo uma careta. — E céus, meu nome é . ! Pare de me chamar dessa forma.
— Tudo bem, , tudo bem — deu de ombros. — Agora apenas cale a boca, o intervalo já está acabando e logo ele voltará para a sala.
— Eu desisto de você — murmurou, passando as mãos no rosto. — Por que não fala com ele de uma vez?
— Eu vou falar hoje. Ontem ele parecia meio irritado e o vi junto com o irmão indo atrás daquele valentão, o Minjae.
— E o que aconteceu?
— Não sei, Minjae não veio hoje — deu de ombros. — Mas não me importo. Hoje tem aula no laboratório e eu vou correr para tentar falar com ele. Você vem?
— Você sabe que a família tem um cemitério no fundo da casa, né? — perguntou baixinho, sentindo um calafrio percorrer todo seu corpo. Sentia tanto medo daquela família que sequer sabia como explicar. — E se… Eles levaram Minjae para lá e…
— Torturaram e mataram? — cortou o amigo. — A escola inteira vai agradecer. Enfim, você vem agora ou não?
— Credo, ! — se tremeu inteiro, apavorado. — Eu não vou, não! Deus me livre…
— Então até mais tarde, ! Se cuide!
Sem se importar com o olhar julgador do amigo, se mandou. Precisava mesmo sentar ao lado de e daquela vez se tornar amigo dele. E não estava nem aí para o que diziam sobre ele e sua família.
Só sabia pensar naquela boquinha desenhada e rosinha colada na sua.
E na pintinha que ele tinha quase no queixo, bem embaixo do lábio inferior.
Era adorável.
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— Por que você não para de olhar para o meu irmão? — foi direto, assim que viu entrar o laboratório ainda vazio e sentar-se no banco ao lado de onde estava a mochila de . — Sabe o que acontece com quem o encara muito, não sabe?
— Caramba, que susto! — levou a mão ao peito, respirando fundo. — Ele é minha dupla, só estava me certificando que não ficaria sozinho hoje de novo.
— Desculpa esfarrapada — uma vozinha ecoou em seus ouvidos. — O que devemos fazer com esse mentiroso, feioso?
— O que você quiser, , o problema é todo seu — deu de ombros, fitando com desdém. — Mas… se realmente quer minha opinião, acho que deve começar arrancando as unhas e depois os dentes. Ele meio que não vai aguentar a dor e confessar que é só mais um nos perseguindo.
encarou por alguns segundos e, sem se aguentar, soltou uma gargalhada alta, atraindo atenção dos poucos alunos que já estavam ali. Caramba, aqueles gêmeos eram tão engraçados! Como seus outros colegas não percebiam?
— Vocês são muito engraçados — respondeu depois de um tempo rindo, enquanto os irmãos encaravam-no sem entender absolutamente nada. — Eu não estou perseguindo ninguém, feioso. Apenas gosto da companhia de seu irmão.
— Não. Me. Chame. Assim! — rosnou lentamente, encarando-o com raiva. — É um apelido de família. Não se atreva, verme.
— Feioso… — chamou baixinho, tocando no ombro do irmão.
— Não gosto dele — se desvencilhou do outro. — Vou para o meu lugar. Vou abrir os ratos de hoje imaginando você no lugar, garoto.
quis rir novamente, mas sentiu que aquele não era o momento. parecia muito irritado consigo, tudo por causa de um mísero apelido. No entanto, o entendia. Toda aquela áurea defensiva era comum; eram sempre excluídos de tudo e a relação com os professores era claramente forçada. Sabia que não seria fácil se aproximar dos , mas esperava que entendesse que ele só queria ser legal e se enturmar com eles.
Fitou uma última vez e pôde sentir o ódio transbordando das orbes negras. Um arrepio lhe subiu a espinha e, por um milésimo de segundo, sentiu medo.
— Não liga para ele — murmurou logo ao seu lado. — É tudo ciúmes porque você disse gostar da minha companhia, logo ele fica tranquilo. É só você dizer que vai colocá-lo na cadeira elétrica.
— Tudo bem — riu, achando se tratar de uma piada. Mas ao fitar o rosto sério e de certa forma sereno de , entendeu que o garoto falava sério. — Isso é sério? O lance da cadeira elétrica?
— Claro que é — o outro respondeu como se fosse óbvio. — E você, estava falando sério?
— Sobre gostar da sua companhia? Claro que sim! Você é bem legal.
— Mas só conversamos uma vez. Isso é possível?
— Mas foi bem legal. Eu também gosto dessas coisas que dizem ser estranhas. Abrir animais, pessoas, ler e ver sobre torturas… Sabe? Mas shh, é segredo.
o fitou em silêncio por alguns segundos. Não sabia se achava tudo aquilo estranho ou legal demais. Nunca fora abordado daquela maneira, nem parecia ser verdade. era muitíssimo estranho, até mais que sua família. Porém, o achava tão bonito e fofo que não conseguia não dar corda. Os olhos grandes e pidões eram seu ponto fraco. Os cabelos castanhos, o rosto simétrico, o sorriso retangular, os dentinhos levemente tortos e pintinha na ponta do nariz… Tsc, tão fofo.
Observando-o de pertinho, finalmente percebeu o que seu irmão já havia percebido há tempos: achava encantador, e tinha uma enorme crush nele.
Sorrindo, então, perguntou ao colega-crush-adorável:
— O que acha de ir à minha casa hoje, ?
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Algumas semanas se passaram desde a primeira visita de à casa dos . E a cada coisinha nova que descobria sobre aquela família tão diferente o fazia morrer de amores. Gostava da forma que a mãe dos gêmeos cozinhava e contava histórias de terror, conhecera o paizão e suas piadas terrivelmente engraçadas e ficara apaixonado pelo bichinho de estimação que a família tinha, o Mãozinha — que na verdade era a mão de um tio de que morrera há pouco mais de vinte anos. A família adotou aquele pedacinho do tio porque ele era muito amado, e deixara para a sobrinha todos os seus bens, incluindo sua mão que não quisera ser enterrada.
— Espera, — o encarou. — Me explica isso direito.
— Cara, eles têm uma mão de verdade, de um homem, como bichinho de estimação! E a mão é simplesmente magnífica! Ela faz carinho, massagem, dá tapas e ainda ajuda nos afazeres domésticos! Sem contar que pega qualquer objeto que for necessário e…
— Eles. Criam. Uma. Mão. Humana. ! — gritou estupefato. — Uma mão! Isso é, no mínimo, bizarro. É impossível!
— Como você é bobo, eu mesmo vi a mão do tio de — revirou os olhos. — Você precisa ir conhecer a casa deles. Sabia que eles escolhem quando vão morrer? A avó de , inclusive, já está há 500 anos tentando ir embora de vez, mas simplesmente não consegue. Ela sempre desiste quando vê os vermes saindo do próprio corpo, ela acha que fica encantadora com minhocas saindo pelos olhos.
estava horrorizado. Sabia que a família era esquisita; mas não esperava que fossem bizarros a ponto de: 1) serem imortais, ou pelo menos escolherem quando morrerão (será que os gêmeos tinham mesmo dezessete anos?); 2) tinham a porra de uma mão (!!!) de um defunto de estimação; 3) que conquistaram seu melhor amigo a ponto de nem fazê-lo sentir um arrepio de medo em meio àquela situação (principalmente ao ter uma velhinha soltando minhocas e larvas pela cara).
O amor não cegava a tal ponto, certo? Céus, agora estava se borrando de medo de se apaixonar.
— Não é possível que você ache tudo isso normal — praticamente sussurrou. — Eles fizeram uma lavagem cerebral em você, tenho certeza!
— E o que é ser normal, ? — perguntou pacientemente, encarando o melhor amigo. — Ser como, sei lá, seu vizinho? Não é segredo algum que ele trai a esposa sempre que pode e ela mantém a pose. Sabia que entre os não existe segredo algum? Eles sempre contam tudo um para o outro.
deu de ombros. Aquilo ainda era muito, muito horripilante para ele. Todo seu corpo se arrepiava quando olhava para os gêmeos, assim como sua respiração ficava ofegante sempre que os ouvia murmurar coisas estranhas e sorrir de forma diabólica. Seu coração ia parar na garganta toda vez que se aproximava sorrateiramente e perguntava baixinho em seu ouvido, como um fantasma, onde estava, fazendo-o pular e grunhir no mais puro susto e pavor.
No fundo, até que estava preocupado com o melhor amigo. Mais borrado de medo que preocupado, porém, ainda assim, muitíssimo preocupado.
Não é possível que ter uma mão de estimação fosse tão legal e comum assim.
Aliás, será que sua mãe o deixaria ter uma patinha de cachorro, então?
— , olhe só… — começou. — Nada disso é comum, mas é o jeito deles e eles são felizes assim. Até porque eles sempre cuidaram de cemitérios e familiares velhos à beira da morte. E sei lá, ter a mão de um deles deve ser alguma homenagem. Algum feitiço que fez com que aquela mão criasse vida. Você não acredita em magia? Pois eu sei que sim. E se você pudesse, teria a patinha de um cachorro em seu encalço. E sinto lhe informar: sua mãe jamais aceitaria isso.
— Mas o que…? — fitou o amigo, assustado. — Você lê mentes agora, por acaso? Eles te ensinaram isso também?!
— Não, . Você só é muito óbvio — revirou os olhos. — Mas me diga logo: o que devo fazer pra arrancar uns beijos de de uma vez por todas?
fez de conta que não ficou assustado com o o encarando daquela forma, assim como preferiu fingir que tudo estava bem e focar no assunto principal: fazer beijar seu melhor amigo.
Sabia que, no fim, aceitaria fazer uma visita rapidinha à família . E pediria uns conselhos sobre feitiços, se aquilo realmente funcionasse. Queria uma patinha de cachorro de estimação. De preferência a de seu poodle que morrera no ano anterior.
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— ! — chamou. — Vá se arrumar, monstrinho. Hoje é sexta-feira 13, esqueceu? Logo o tio estará entre nós para o ritual!
— Mamãe, vamos sacrificar alguma virgem esse ano? — perguntou, jogando-se no sofá sem se importar em amarrotar as roupas pretas que vestia; estava tão bonito.
— Só se a virgem for você, feioso — zombou, dando risada ao receber um soco do irmão.
— E você vai junto, babaca! — gritou, mas logo pôs um sorriso nos lábios. — Ou não, já que vive grudado no …
— O que está insinuando, ? — entrou no meio dos dois filhos antes que pudesse rebater a provocação.
— Ora, mamãe! Não é óbvio? — aconchegou-se mais no sofá ao sentir o Mãozinha emaranhar-se em seus cabelos lisos. — e se adoram; vivem juntos. Aposto que se beijam ao lado dos túmulos quando vão visitar o cemitério.
— Cale a boca, , você não sabe de nada! — rosnou, ficando completamente vermelho. — é meu amigo e a única pessoa nessa cidade que não julga nossa forma de viver.
— Seu irmão só está te atazanando, monstrinho — riu. — De qualquer forma, não tem problema nenhum em você gostar de . Ele nos entende. Só precisa se acostumar com as torturas, os rituais da nossa família, às minhocas da vovó, ao jeito perturbador do seu irmão e…
— Mamãe, chega! — bufou. — Eu adoraria dar mesmo uns beijos no e apertá-lo até que explodisse em meus braços para então poder mordê-lo por inteiro até deixá-lo em carne viva, mas não sei se ele sente o mesmo. Agora com licença, vou me arrumar para esperar o tio .
— Estou dizendo, mamãe, está apaixonado — disse convicto, sabendo que o irmão ainda o escutaria mesmo que estivesse saindo da sala. — Logo ele larga as trevas para recitar poesias de amor e nos fazer vomitar por dias seguidos, assim como acontece quando o tio decide demonstrar o amor que sente pela Lua.
— Credo, feioso! — exclamou horrorizada. — Que Satã nos proteja! Não vou permitir que meu monstrinho se transforme numa aberração como . Está escutando, ?! — gritou. — Eu sei que está! Não se atreva a derreter-se desta forma, está entendendo? , não me ignore!
apenas ria e ronronava devido aos beliscões de Mãozinha em seu rosto e pescoço. Adorava ver o irmão se ferrar. Talvez aquilo lhe custasse boas músicas alegres e pomposas para vomitar.
detestava todas aquelas coisas, mas sentia que logo passaria a gostar e ele que teria que aguentar o gêmeo.
Sua vontade era empurrar do penhasco próximo dali e livrar seu irmão de todas aquelas coisas, mas sabia que cinco minutos depois de mandar para o cemitério da família, iria também. Não queria morrer ainda; era tão novo para ter vermes saindo de seu rostinho bonito.
É, talvez fosse melhor aguentar meio pomposo e meio das trevas. Que Satã se virasse para protegê-lo.
apenas ignorou o alarde de seu irmão e sua mãe; tudo que menos queria naquele momento era lembrar o quão bobo estava por causa de . Talvez o ritual daquela noite o ajudasse nisso; conversar com Satã e lhe fazer promessas sempre ajudava.
Embora desejasse fazer um sacrifício muito legal dali algumas horas, ainda tinha o garoto de cabelos castanhos na cabeça. Se perguntava se seria uma boa ideia chamá-lo para jantar com sua família.
pensou, repensou, e até mesmo ouviu as risadas de , sentiu os tapas de Mãozinha e, pior: pode ouvir as felicitações orgulhosas de seu tio , a aberração da família por ser naturalmente romântico e um bobão por conta da Lua.
Céus, estava apaixonado e queria muito que fosse jantar ali. Queria lhe oferecer um ritual; uma virgem! Cabras! Gatos pretos! E tudo mais que o garoto quisesse.
Sem raciocinar, por fim, enviou uma mensagem:
“Venha jantar na minha casa hoje. Sexta-feira 13 sempre é uma data especial para nós. Traga seus pais, temos maconha e LSD! 🖤”
Agora, teria que encarar a parte mais difícil: seus pais. E o fato de que usara emoji de coração. Preto, mas usara.
Pelo menos os pais de não iriam julgá-los.
Afinal… hippies eram igualmente excluídos e mal vistos, certo?
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A mulher alta e de cabelos extremamente vermelhos fitou o jovem à sua frente.
— Nós vamos o que, ? — perguntou.
— Jantar na casa dos ! Isso não é um máximo? — respondeu muitíssimo empolgado, sorrindo abertamente para a mãe. — me disse que os pais adoram umas coisinhas proibidas, como vocês. Lá pode usar à vontade, eles deixam na mesa. E hoje um tio deles está chegando, ele estava na Lua! Se casaram no mês passado.
— Quem se casou no mês passado, garoto? — o homem pressente se pronunciou desta vez, rindo sem entender muito o porquê.
— O tio de . Ele se casou com a Lua no mês passado, está voltando das festas — explicou calmamente para o pai. — Mas, ah, deixem para lá. Só vamos nesse jantar, tudo bem?
— , são os — sua mãe murmurou. — E se eles nos jogarem naquele cemitério? As pessoas da cidade sempre dizem horrores sobre eles…
— Vocês vão adorar o cemitério, é tão bem arejado! — riu. — Sim, a cidade fala horrores deles. Mas antes falavam de nós, não vai ser nenhuma surpresa as duas famílias mais incomuns da cidade se juntarem. O pessoal vai até gostar porque terão mais fofocas.
— É, faz sentido — o pai concordou. — Vamos neste jantar. Mas… filho, você sabe se em algum lugar daquela casa dá para… Você sabe. Plantar umas coisas?
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A campainha da casa dos tocou, fazendo com que ficasse extremamente emburrado enquanto se agarrava a um homem de cabelos roxos que vestia um sobretudo preto. Somente um sobretudo.
— Eu ainda não acredito que convidou e a família dele… — o garoto resmungou ao ver seu gêmeo correr para atender a porta.
permanecia com a expressão neutra, assim como que apenas desfrutava de uma massagem de Mãozinha.
— Não seja assim tão amargo, — o homem ao seu lado murmurou. — Você pode acabar se apaixonando um dia.
— Não me venha com essas, tio — se afastou. — Só aceito me apaixonar se for por Satã ou uma bruxa!
— Aposto que se apaixonará por um defunto de mil anos — finalmente abriu a boca. — Você gosta tanto de tortura e gente morta, feioso, que é meio difícil acabar apaixonado por outra coisa.
— Ah, papai, isso devo concordar — gargalhou. — Você já viu a vovó como está? Entrando em decomposição! É tão legal, embora eu não queira ficar daquele jeito. De qualquer forma, é muitíssimo divertido torturá-la… Sempre cai pedaços dela pela casa e eu saio correndo com eles. Dia desses a deixei sem pernas, depois tive que costurá-la.
— Você não devia fazer isto com sua vovó, … Mas, me diga, foi mesmo engraçado? Você filmou?
— Claro, pai! Vou te mostrar é agora!
E aquela fora a primeira cena que os pais se presenciaram na casa dos .
— Sejam bem vindos — saudou, achando engraçado o casal com os olhos arregalados. Podia apostar todas suas jóias que os corações estavam acelerados e tudo que mais queriam era sair correndo dali, mortos de medo. Tão divertido!
— Olá! Sou , tio de — o homem de cabelos roxos finalmente se apresentou, levantando-se para cumprimentar a família que chegara. — e , por favor, parem de ver a vovó sem as pernas e venham cumprimentar as visitas.
não deu ouvidos ao tio, apenas se permitiu gargalhar novamente junto ao filho. Ambos com risadas esganiçadas e engraçadas, fazendo com que todos na sala sentissem vontade de acompanhá-los.
— Oh, céus! — secou as lágrimas. — Mil perdões, mas isso está hilário. Tadinha de mamãe, isso que dá estar 500 anos aqui. Um dia a terra há de comer!
— Pai… — chamou um tanto sem jeito. — Visitas.
— Ah, claro, claro. Seu namorado e a família — se levantou, finalmente. Vestia roupas pretas e bonitas, pareciam feitas sob medida. — Sou , sejam bem vindos à nossa humilde residência. Fiquem à vontade! Gostariam de beber alguma coisa? Mãozinha, por favor, ajude pôr a mesa, sim?
Os pais de estavam um tanto quanto assustados, mesmo que tentassem agir naturalmente como o filho. Precisavam, sim, de alguma bebida.
E umas balas.
E um pouco de erva.
Céus, estavam em meio a vivos-mortos em plena sexta-feira 13 e prestes a presenciar um ritual (provavelmente) satânico.
De fato, precisavam ficar muito chapados naquela noite.
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O jantar correu melhor do que esperava. No fim das contas, os pais de ficaram encantados com tio e suas histórias; ele contara como seu romance com a Lua começou, como fora casar-se com ela e passar uma temporada lá, aproveitando-a e flutuando sobre ela. Também recitou suas poesias, contou que sua cor de cabelo a amada quem havia escolhido e, no fim, disse-lhes qual era o melhor conhaque da região e como transar após de algumas doses dele era bom.
Tio já estava mais para lá do que para cá. Entretanto, continuava firme. O ritual começaria em alguns minutos, e já organizava as coisas no cemitério com a ajuda de , que amava aquele lugar.
— Vocês gostariam de visitar nossa plantação de ervas medicinais? — perguntou para os convidados, sorrindo ladino e os encarando de forma sugestiva.
Os olhos do casal brilharam de forma intensa; pareciam ter galáxias nas orbes de tão encantados que ficaram.
— Claro que sim! — Responderam em uníssono, e logo seguiram o dono da casa.
logo se levantou também, deixando apenas e ali, com a desculpa que ajudaria a sobrinha a organizar as coisas.
— Então, como funciona esse tal ritual? — respondeu.
— Não é nada muito absurdo. — sorriu um tanto sombrio. — Por que não vamos lá para fora ver como tudo é organizado? Aposto que você vai gostar.
E, de mãos dadas, seguiram para o lado de fora.
O cemitério era bem grande e ficava logo atrás da enorme casa dos . Tinha um portão preto e alto que fazia barulho ao ser aberto e, lá dentro, possuía enormes fileiras de túmulos. Todos com nomes, datas e fotos (a maioria em preto e branco). Conforme caminhavam, viam a decoração simples de . Enfeites pretos e vermelhos em cada cruz, frases soltas rabiscadas aqui e ali na letra miúda e confusa de , alguns gatos pretos andando e miando por entre as covas… E no alto do céu, a esposa de . Uma superlua cheia. Bonita, brilhosa e intensa. Parecia olhar para cada um, guardar suas histórias e sorrir cada vez que ouvia a voz do amado.
estava encantado. Já adorava aquele cemitério durante o dia; agora, à noite, estava ainda mais apaixonado. Seu coração batia calmo, seu sorriso crescia a cada passo e seus cabelos balançavam devido a brisa calma que passeava por ali.
estava se sentindo em casa.
— Olhe, estão todos ali, até seus pais e a vovó com a cara caindo aos pedaços — murmurou, apertando mais a mão de na sua. — Pelo jeito já está na hora do ritual. Vocês podem participar se quiserem. Mas só da oração.
— O que mais tem além da oração? Me conte! Estou curioso e você só me conta as coisas pela metade!
— Além da oração tem o pacto de sangue, .
— Vocês… Como…? — fitou com os olhinhos arregalados, confuso.
— Você vai ver, garoto, se acalme.
não teve tempo de rebater nem mandar tirar o sorrisinho misterioso da boca. Logo já estavam próximos dos outros.
A família de — incluindo a vovó remendada — estavam de mãos dadas e em um círculo perfeito. O garoto logo se enfiara ali, dando uma das mãos para seu gêmeo, e a outra para sua mãe. Logo ao lado, e seus pais faziam a mesma coisa, olhando para a família para seguirem o próximo passo.
— Apenas rezem e peçam tudo aquilo que desejam — explicou de forma calma. — Deixem que os deuses e as trevas se juntem e tomem conta de seus corações. Pedidos bons ou ruins; não se importem. É apenas algo maior do que vocês mostrando o caminho pelo qual devem seguir.
— Agradeçam Satã no final — debochou, sorrindo. — Quando acabarmos daqui, tem um ritual particular de família. Vocês gostam de choque? Eu espero que sim, porque a cadeira elétrica é o melhor lugar para relaxar após um ritual desses; encontrar Satã sempre é muito revigorante, porém cansativo.
Os pais de , embora parecessem muito chapados, tremeram dos pés à cabeça após as palavras do garoto, fazendo-o rir.
— Assustar as visitas é feio, meu filho — murmurou, fechando os olhos. — Você aprendeu direitinho, parabéns. Ganhará mais dez segundos na cadeira elétrica.
comemorou e voltou a se concentrar no que fazia antes.
, no entanto, apenas permaneceu de olhos abertos. Fez todas suas orações e pedidos enquanto fitava tão concentrado em seus próprios desejos. O garoto sorria, e era impossível para o não sorrir de volta.
Ficaram ali por longos minutos, enquanto o vento passava por seus corpos um pouco mais forte. As folhas das árvores tremiam, soltando uma ou outra para voar até eles, como se estivessem ouvindo todos seus pedidos. A lua parecia brilhar mais ao passo que crescia, ficando cada vez mais cheia e bonita. Sua luz tomava todo o cemitério, clamando por e fazendo o que podia para realizar os desejos daquelas famílias.
Principalmente os daqueles adolescentes; e que, não tão secretamente assim, pedia um pelo outro.
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Após longos minutos naquilo, finalmente acabaram. A família fez o tal pacto de sangue, porém longe dos outros e escondidos entre outros túmulos, como se tivessem coisas específicas com mortos específicos. Até Mãozinha havia participado.
Os pais de continuaram ali, caladinhos, se olhando e pensando se deveriam correr ou simplesmente continuar ali já que as ervas e comida eram tão boas.
E parecia tão, tão, tão feliz que isso deixava os corações dos hippies quentinhos. Amavam ver o filho daquela forma; era seu primeiro amor, e estava sendo especial para ele. Uma família incomum, como a dele, e cheia de surpresas. Apesar de todas as esquisitices, a família se amava. Muito.
— O que acha de dar um passeio? — perguntou meio tímido, assim que se aproximou de novamente.
— Acho ótimo!
E mais uma vez de mãos dadas, saíram juntos. Não importava se já estava ficando tarde, se seus pais estavam cansados ou qualquer outra coisa; a noite estava deveras agradável e queriam prolongar a companhia um do outro.
— Sabe, … — começou, enquanto se esgueiravam para o final do cemitério. — Eu sempre gostei de observar você. Desde o seu primeiro dia… eu sentia que você era especial de alguma forma, entende? Nunca te enxerguei como o garoto esquisitão da cidade.
— Pare de dizer essas coisas, eu sinto vontade de te esmagar no meu abraço e encher de beijos e mordidas e arrancar seu nariz porque ele é muito fofo — respondeu de uma só vez, ficando sem fôlego. riu do jeito do amigo/crush e se aproximou mais ao notar que paravam de caminhar.
— Você pode me explodir em abraços, me devorar em mordidas lentas e eu nem vou me importar, porque vou estar fazendo o mesmo com você — deu de ombros, sorrindo. — Você é adorável e tem detalhes adoráveis. Eu amo suas pintinhas, seus cabelos cobrindo seus lindos olhos, seu nariz, suas unhas longas, suas pernas gostosas, seu traseiro… Poderia passar anos listando tudo que gosto em você. Não me conformo, você é todo bonito! Dá vontade de bater sua cara na parede até deformar!
riu e acenou em negação. Não era possível que numa cidadezinha medíocre do interior tivesse encontrado sua alma gêmea. Ainda mais ali, onde tudo era tradicional demais e o mais diferente que haviam visto era um casal de hippies que só aproveitavam a vida. E agora estava ele ali, filho de um casal nada tradicional, com um irmão masoquista e herdeiro de cemitérios e parentes, literalmente, caindo aos pedaços.
E não se importava, gostava dele e de sua família como eram. Céus, ele realmente estava prestes a morder por inteiro até que lhe arrancasse toda a pele para depois colocar de volta e encher de beijinhos e carinhos e amor como tio fazia com a Lua — esta que brilhava estrategicamente sobre eles, iluminando seus rostos e a parte mais bonita do cemitério, com as lápides altas e as árvores ao fundo. O céu estrelado completava o cenário natural e bonito, estavam derretidos sob o brilho do universo.
— Eu quero muito beijar você — falou baixinho, sentindo um peso sair de seus ombros. — Eu quero tanto…
— Eu também quero beijar você, — respondeu num sussurro, se aproximando mais de e encostando-o numa das lápides dali. — E eu vou fazer isso agora.
sorriu de lado e se aproximou do outro de uma vez, roçando suas bocas.
— Pois faça — soprou contra os lábios cheinhos.
O beijo não demorou a vir; logo que suas bocas se colaram definitivamente, a brisa quente e calma voltou a passear por ali, levando paz por todo o ambiente. A Lua explodiu em felicidade, atingindo seu ápice; grande, brilhosa e sorridente enquanto lembrava-se de seu amado .
Aqueles dois jovens estavam descobrindo o encanto do amor. Com uivos de lobos agitados ao fundo, sincronizando com os corações acelerados que dançavam em seus peitos, um contra o outro, o céu estrelado banhando-os de alegria e uma sexta-feira 13 chegando ao fim.
O amor estava exalando bem ali, em meio às trevas; que nunca foram tão fortes quanto pensavam ser.
No fim, estava certo: havia se transformado num bobo apaixonado que recitaria todas as poesias de amor que lhe fossem possíveis.
Se amava como era. Gostava de seu corpo, sua aparência, seu jeitinho meio sombrio e até mesmo de suas unhas um pouquinho grandes demais — e que às vezes pintava de preto para combinar. Gostava de seu jeito de andar e falar, suas manias e se considerava inteligente. Sabia falar sobre o Universo, o corpo humano e meio ambiente. Ele era simplesmente quem era; assim como seus pais lhe ensinaram.
As tentativas de seus colegas maldosos de fazerem com que pensasse coisas ruins sobre si mesmo ou sentisse medo deles não funcionavam. Nada funcionava, na verdade. Nem com ele, nem com seu irmão gêmeo, . Simplesmente não se deixava intimidar por adolescentes desesperados por atenção e uns beijos da mina mais bonita da turma no fundo da quadra. Tentavam parecer valentões, mas, para eles, eram um bando de frouxos.
Para especialmente. Ele adorava assustar os colegas jogando o cabelo para trás e olhando-o nos olhos enquanto sussurrava ameaças bizarras e sombrias. Era engraçado. Sempre desistiam de praticar bullying consigo e saiam correndo feito um bando de maricas. Maricas, sim. Frouxos. Bobos. Acomodados.
ria do irmão e dos colegas enquanto revirava os olhos; preferia encarar aquelas pessoas com desdém e praguejar até a milésima geração de cada família.
— Será que eles não cansam nunca? — perguntou na vigésima manhã naquela escola, enquanto lixava as unhas e fitava mais um garoto correr após alguns sussurros e ameaças de feitiços de .
— Não, feioso. Eles nunca cansam. Vai ser assim até acabarmos o ensino médio. As pessoas dessa cidade nunca entenderão nossa cultura — deu de ombros, fitando o irmão sem emoção. — Eu avisei ao papai que cidade pequena não era uma boa ideia.
suspirou, maneando a cabeça positivamente. Concordava, e chorara rios de lápis de olho preto para não ter que se mudarem da capital. A cidade grande era reconfortante e eles passavam despercebidos. No entanto, e queriam abrir um cemitério no fundo de sua casa. E isso só era possível ali, no interior.
Ah, havia aquele pequeno detalhe: eram mesmo os esquisitos da cidade, de verdade (!), e nem se importavam; a cor preta agradava toda a família, e um cemitério mais ainda.
— Será que ainda acham que o papai e a mamãe são irmãos? — perguntou baixinho, sorrindo de lado.
soltou uma risadinha, lembrando de quando os pais foram até ali para realizar suas matrículas.
— É provável que sim, feioso. Por quê?
— Por nada… — fitou um dos valentões de longe, que ainda os fitava. — A manhã não lhe parece perfeita para uma sessão tortura, maninho?
— Mamãe! — gritou empolgado, correndo casa adentro. — Trouxemos um presente para você!
— E que presente seria esse, feioso? — uma voz grave ecoou por toda a casa. — Já disse que não aguento mais receber insetos. Você parece até aqueles gatos de rua que são adotados e enchem a casa de baratas, ratos e lagartixas.
— Hoje eu trouxe um menino mau — murmurou, revirando os olhos.
— Outro coleguinha de escola? — finalmente a voz grave pareceu interessada, e finalmente a mamãe virou-se para , fitando-o com seus olhos pequenos e escuros. Os cabelos curtos estavam devidamente penteados e no lugar, sem um fio torto ou fora, com o corte contornando corretamente o rosto bonito e fino. Um sorriso gengival se abriu logo em seguida, e o adolescente voltara a se animar.
Adorava quando sua mãe, , ficava feliz com seus presentes repentinos.
— Ele diz que o presente é dele, mas quem teve todo o trabalho fui eu! — apareceu ofegante e suado no meio da sala, puxando um garoto alto pelas pernas. — Você é um folgado!
— Cale a boca, — revirou os olhos. — Veja só, mamãe. Esse foi o que nos encheu a porra do saco hoje. Não parece perfeito? O dia está lindo para uma sessão de tortura, não consegui me controlar!
— Não acha que já desapareceram pessoas demais nessa cidade, meu amor? — perguntou de forma mansa.
— Qual a graça de termos uma sala de tortura e um cemitério nos fundos de casa se não pudermos sumir com as pessoas e fazê-las conhecer esses lugares incríveis? — perguntou, colocando uma mão na cintura, e com a outra tirando os cabelos do rosto.
riu do filho e revirou os olhos. Achava engraçado como suas crianças eram tão bem criadas; duas cópias de si. Adorava aquilo, embora , seu marido, dissesse que era quase impossível viver naquele meio. No fim, porém, acabava dando risadas e beijando-lhe os lábios. Adorava todo o caos causado por sua família. E adorava o fato de serem tão anormais; afinal, o que é ser normal?
Eram felizes daquela forma. Uma família sombria, os de fora diziam. Uma família repleta de amor, eles próprios sabiam.
e eram educados, bonitos e tinham boa autoestima. era o marido perfeito, tudo que pedira aos Infernos. E ela… bem, ela era ela. Mesmo que às vezes sentisse que havia nascido no corpo errado por conta dos comentários alheios, era feliz e esperava que logo pudesse estar com o tipo de corpo que não a incomodasse ou atraísse comentários maldosos. Estava no meio do caminho para tal. Suas curvas já eram visíveis, os saltos já não incomodavam mais, a voz já estava menos grave do que anos atrás e os longos vestidos pretos e vermelhos deixavam-na extremamente bela, deslumbrante. A visão de uma verdadeira deusa das trevas, dizia.
Só faltava mesmo ajustar o que tinha entre suas pernas. Não precisava tanto daquilo. Além de ser o maior fator para que fosse assunto em toda a cidade, as pessoas insistiam em se meter em sua intimidade, mesmo quando sua própria família não o fazia. E era grata por seu marido e seus filhos entenderem e apoiarem; sequer perguntavam mais sobre o assunto.
Menos, é claro, as pessoas daquela cidadezinha medíocre. Todos faziam questão de lhe apontar o dedo e dizer o quão bizarro tudo aquilo era, como eram esquisitos, como diabos era possível dois homens, mesmo que ela não fosse um, terem filhos e toda aquela baboseira nojenta que odiava. As pessoas fofocavam, faziam e falavam asneiras 24/7 e eles, que só queriam cultivar o cemitério no fundo da casa e eram mais propensos ao masoquismo, eram esquisitos? Ora, pois! Não aceitava.
Talvez, só talvez por isso aceitava de bom grado quando seus filhinhos chegavam de surpresa com um ou outro coleguinha mau.
Todos apreciavam uma boa tortura, principalmente , que era quem sempre trazia seres vivos para serem testados e jogados no cemitério.
Tsc, era mesmo o garotinho da mamãe. Puxara em tudo; na delicadeza, na lábia e na persuasão.
— Tudo bem, garotos. Vamos para a sala de tortura!
A vida dos era bem diferente. Eram unidos, se amavam mais do que tudo e se machucavam juntos. Olhando de fora, pareciam doidos, bizarros, uma família de assassinos. Haviam muitas fofocas sobre aquela família rondando a cidade e isso só fazia a curiosidade aumentar entre todos. A cidade não era grande; pelo contrário, era tão pequena que todos se conheciam e sabiam de tudo. Mas sobre aquela família não sabiam de nada; só que haviam dois homens — mesmo que afirmasse ser uma mulher (e era!) e que estava trabalhando para que reconhecessem aquilo — que eram donos de um cemitério e cuidavam daqueles gêmeos que pareciam dois diabos na escola.
Contudo, ao longe, um rapazinho via-se encantando por aquilo. Não pela maldade que exalavam ou queriam mostrar ter; ele acreditava piamente que tudo aquilo era fachada somente para assustar todos ao redor e ninguém incomodá-los ainda mais por terem um cemitério em seu terreno.
A beleza que os irmãos possuíam chamava sua atenção, principalmente o gêmeo mais malvadinho, que adorava assustar as pessoas na cara dura, o .
, o nome do rapazinho curioso. Ele nutria uma paixão platônica por . O observava de longe, elogiava mentalmente seus cabelos, roupas e delineador pretos. Gostava de suas unhas longas, as coxas torneadas e o sorrisinho de coelho. Mas só haviam trocado meia dúzia de palavras, uma vez, e fora durante um trabalho de biologia onde apenas dissera:
— Abrir sapos é bem legal, olhe.
E riu, como se assistisse a um filme de comédia super engraçado.
ficou encantado e queria ouvir mais daquela risadinha maléfica. Mesmo com medo das histórias e rumores que ouvia pela cidade sobre a família , queria se aproximar. Nem que para isso precisasse liberar um pouquinho seu lado masoquista. Se fosse para ver sorrindo daquela forma mais vezes, até se deixaria ser marcado com cera de velas ou algumas espetadinhas com alfinetes.
Em seu íntimo, carregava mesmo uma curiosidade por aquelas coisas. E também achava sapos abertos magníficos.
Gostava de ver gente morta naquele estado também, queria ser legista e se divertir com órgãos alheios. Talvez por isso estivesse tão apaixonado por aquele garoto esquisito.
Ops.
— ? , que droga! Acorda! — uma voz suave porém zangada gritou em seu ouvido, finalmente lhe tirando de seus devaneios. — Você pode, por favor, parar de olhar para aquele esquisitão como se ele fosse o único cara do mundo?
— Ah, — sorriu, suspirando em seguida. — Não fale assim do , ele é tão adorável. E para mim, sim, ele é o único cara do mundo. O único que eu quero.
— Você é tão estranho, não sei por que sou seu amigo — falou, fazendo uma careta. — E céus, meu nome é . ! Pare de me chamar dessa forma.
— Tudo bem, , tudo bem — deu de ombros. — Agora apenas cale a boca, o intervalo já está acabando e logo ele voltará para a sala.
— Eu desisto de você — murmurou, passando as mãos no rosto. — Por que não fala com ele de uma vez?
— Eu vou falar hoje. Ontem ele parecia meio irritado e o vi junto com o irmão indo atrás daquele valentão, o Minjae.
— E o que aconteceu?
— Não sei, Minjae não veio hoje — deu de ombros. — Mas não me importo. Hoje tem aula no laboratório e eu vou correr para tentar falar com ele. Você vem?
— Você sabe que a família tem um cemitério no fundo da casa, né? — perguntou baixinho, sentindo um calafrio percorrer todo seu corpo. Sentia tanto medo daquela família que sequer sabia como explicar. — E se… Eles levaram Minjae para lá e…
— Torturaram e mataram? — cortou o amigo. — A escola inteira vai agradecer. Enfim, você vem agora ou não?
— Credo, ! — se tremeu inteiro, apavorado. — Eu não vou, não! Deus me livre…
— Então até mais tarde, ! Se cuide!
Sem se importar com o olhar julgador do amigo, se mandou. Precisava mesmo sentar ao lado de e daquela vez se tornar amigo dele. E não estava nem aí para o que diziam sobre ele e sua família.
Só sabia pensar naquela boquinha desenhada e rosinha colada na sua.
E na pintinha que ele tinha quase no queixo, bem embaixo do lábio inferior.
Era adorável.
— Por que você não para de olhar para o meu irmão? — foi direto, assim que viu entrar o laboratório ainda vazio e sentar-se no banco ao lado de onde estava a mochila de . — Sabe o que acontece com quem o encara muito, não sabe?
— Caramba, que susto! — levou a mão ao peito, respirando fundo. — Ele é minha dupla, só estava me certificando que não ficaria sozinho hoje de novo.
— Desculpa esfarrapada — uma vozinha ecoou em seus ouvidos. — O que devemos fazer com esse mentiroso, feioso?
— O que você quiser, , o problema é todo seu — deu de ombros, fitando com desdém. — Mas… se realmente quer minha opinião, acho que deve começar arrancando as unhas e depois os dentes. Ele meio que não vai aguentar a dor e confessar que é só mais um nos perseguindo.
encarou por alguns segundos e, sem se aguentar, soltou uma gargalhada alta, atraindo atenção dos poucos alunos que já estavam ali. Caramba, aqueles gêmeos eram tão engraçados! Como seus outros colegas não percebiam?
— Vocês são muito engraçados — respondeu depois de um tempo rindo, enquanto os irmãos encaravam-no sem entender absolutamente nada. — Eu não estou perseguindo ninguém, feioso. Apenas gosto da companhia de seu irmão.
— Não. Me. Chame. Assim! — rosnou lentamente, encarando-o com raiva. — É um apelido de família. Não se atreva, verme.
— Feioso… — chamou baixinho, tocando no ombro do irmão.
— Não gosto dele — se desvencilhou do outro. — Vou para o meu lugar. Vou abrir os ratos de hoje imaginando você no lugar, garoto.
quis rir novamente, mas sentiu que aquele não era o momento. parecia muito irritado consigo, tudo por causa de um mísero apelido. No entanto, o entendia. Toda aquela áurea defensiva era comum; eram sempre excluídos de tudo e a relação com os professores era claramente forçada. Sabia que não seria fácil se aproximar dos , mas esperava que entendesse que ele só queria ser legal e se enturmar com eles.
Fitou uma última vez e pôde sentir o ódio transbordando das orbes negras. Um arrepio lhe subiu a espinha e, por um milésimo de segundo, sentiu medo.
— Não liga para ele — murmurou logo ao seu lado. — É tudo ciúmes porque você disse gostar da minha companhia, logo ele fica tranquilo. É só você dizer que vai colocá-lo na cadeira elétrica.
— Tudo bem — riu, achando se tratar de uma piada. Mas ao fitar o rosto sério e de certa forma sereno de , entendeu que o garoto falava sério. — Isso é sério? O lance da cadeira elétrica?
— Claro que é — o outro respondeu como se fosse óbvio. — E você, estava falando sério?
— Sobre gostar da sua companhia? Claro que sim! Você é bem legal.
— Mas só conversamos uma vez. Isso é possível?
— Mas foi bem legal. Eu também gosto dessas coisas que dizem ser estranhas. Abrir animais, pessoas, ler e ver sobre torturas… Sabe? Mas shh, é segredo.
o fitou em silêncio por alguns segundos. Não sabia se achava tudo aquilo estranho ou legal demais. Nunca fora abordado daquela maneira, nem parecia ser verdade. era muitíssimo estranho, até mais que sua família. Porém, o achava tão bonito e fofo que não conseguia não dar corda. Os olhos grandes e pidões eram seu ponto fraco. Os cabelos castanhos, o rosto simétrico, o sorriso retangular, os dentinhos levemente tortos e pintinha na ponta do nariz… Tsc, tão fofo.
Observando-o de pertinho, finalmente percebeu o que seu irmão já havia percebido há tempos: achava encantador, e tinha uma enorme crush nele.
Sorrindo, então, perguntou ao colega-crush-adorável:
— O que acha de ir à minha casa hoje, ?
Algumas semanas se passaram desde a primeira visita de à casa dos . E a cada coisinha nova que descobria sobre aquela família tão diferente o fazia morrer de amores. Gostava da forma que a mãe dos gêmeos cozinhava e contava histórias de terror, conhecera o paizão e suas piadas terrivelmente engraçadas e ficara apaixonado pelo bichinho de estimação que a família tinha, o Mãozinha — que na verdade era a mão de um tio de que morrera há pouco mais de vinte anos. A família adotou aquele pedacinho do tio porque ele era muito amado, e deixara para a sobrinha todos os seus bens, incluindo sua mão que não quisera ser enterrada.
— Espera, — o encarou. — Me explica isso direito.
— Cara, eles têm uma mão de verdade, de um homem, como bichinho de estimação! E a mão é simplesmente magnífica! Ela faz carinho, massagem, dá tapas e ainda ajuda nos afazeres domésticos! Sem contar que pega qualquer objeto que for necessário e…
— Eles. Criam. Uma. Mão. Humana. ! — gritou estupefato. — Uma mão! Isso é, no mínimo, bizarro. É impossível!
— Como você é bobo, eu mesmo vi a mão do tio de — revirou os olhos. — Você precisa ir conhecer a casa deles. Sabia que eles escolhem quando vão morrer? A avó de , inclusive, já está há 500 anos tentando ir embora de vez, mas simplesmente não consegue. Ela sempre desiste quando vê os vermes saindo do próprio corpo, ela acha que fica encantadora com minhocas saindo pelos olhos.
estava horrorizado. Sabia que a família era esquisita; mas não esperava que fossem bizarros a ponto de: 1) serem imortais, ou pelo menos escolherem quando morrerão (será que os gêmeos tinham mesmo dezessete anos?); 2) tinham a porra de uma mão (!!!) de um defunto de estimação; 3) que conquistaram seu melhor amigo a ponto de nem fazê-lo sentir um arrepio de medo em meio àquela situação (principalmente ao ter uma velhinha soltando minhocas e larvas pela cara).
O amor não cegava a tal ponto, certo? Céus, agora estava se borrando de medo de se apaixonar.
— Não é possível que você ache tudo isso normal — praticamente sussurrou. — Eles fizeram uma lavagem cerebral em você, tenho certeza!
— E o que é ser normal, ? — perguntou pacientemente, encarando o melhor amigo. — Ser como, sei lá, seu vizinho? Não é segredo algum que ele trai a esposa sempre que pode e ela mantém a pose. Sabia que entre os não existe segredo algum? Eles sempre contam tudo um para o outro.
deu de ombros. Aquilo ainda era muito, muito horripilante para ele. Todo seu corpo se arrepiava quando olhava para os gêmeos, assim como sua respiração ficava ofegante sempre que os ouvia murmurar coisas estranhas e sorrir de forma diabólica. Seu coração ia parar na garganta toda vez que se aproximava sorrateiramente e perguntava baixinho em seu ouvido, como um fantasma, onde estava, fazendo-o pular e grunhir no mais puro susto e pavor.
No fundo, até que estava preocupado com o melhor amigo. Mais borrado de medo que preocupado, porém, ainda assim, muitíssimo preocupado.
Não é possível que ter uma mão de estimação fosse tão legal e comum assim.
Aliás, será que sua mãe o deixaria ter uma patinha de cachorro, então?
— , olhe só… — começou. — Nada disso é comum, mas é o jeito deles e eles são felizes assim. Até porque eles sempre cuidaram de cemitérios e familiares velhos à beira da morte. E sei lá, ter a mão de um deles deve ser alguma homenagem. Algum feitiço que fez com que aquela mão criasse vida. Você não acredita em magia? Pois eu sei que sim. E se você pudesse, teria a patinha de um cachorro em seu encalço. E sinto lhe informar: sua mãe jamais aceitaria isso.
— Mas o que…? — fitou o amigo, assustado. — Você lê mentes agora, por acaso? Eles te ensinaram isso também?!
— Não, . Você só é muito óbvio — revirou os olhos. — Mas me diga logo: o que devo fazer pra arrancar uns beijos de de uma vez por todas?
fez de conta que não ficou assustado com o o encarando daquela forma, assim como preferiu fingir que tudo estava bem e focar no assunto principal: fazer beijar seu melhor amigo.
Sabia que, no fim, aceitaria fazer uma visita rapidinha à família . E pediria uns conselhos sobre feitiços, se aquilo realmente funcionasse. Queria uma patinha de cachorro de estimação. De preferência a de seu poodle que morrera no ano anterior.
— ! — chamou. — Vá se arrumar, monstrinho. Hoje é sexta-feira 13, esqueceu? Logo o tio estará entre nós para o ritual!
— Mamãe, vamos sacrificar alguma virgem esse ano? — perguntou, jogando-se no sofá sem se importar em amarrotar as roupas pretas que vestia; estava tão bonito.
— Só se a virgem for você, feioso — zombou, dando risada ao receber um soco do irmão.
— E você vai junto, babaca! — gritou, mas logo pôs um sorriso nos lábios. — Ou não, já que vive grudado no …
— O que está insinuando, ? — entrou no meio dos dois filhos antes que pudesse rebater a provocação.
— Ora, mamãe! Não é óbvio? — aconchegou-se mais no sofá ao sentir o Mãozinha emaranhar-se em seus cabelos lisos. — e se adoram; vivem juntos. Aposto que se beijam ao lado dos túmulos quando vão visitar o cemitério.
— Cale a boca, , você não sabe de nada! — rosnou, ficando completamente vermelho. — é meu amigo e a única pessoa nessa cidade que não julga nossa forma de viver.
— Seu irmão só está te atazanando, monstrinho — riu. — De qualquer forma, não tem problema nenhum em você gostar de . Ele nos entende. Só precisa se acostumar com as torturas, os rituais da nossa família, às minhocas da vovó, ao jeito perturbador do seu irmão e…
— Mamãe, chega! — bufou. — Eu adoraria dar mesmo uns beijos no e apertá-lo até que explodisse em meus braços para então poder mordê-lo por inteiro até deixá-lo em carne viva, mas não sei se ele sente o mesmo. Agora com licença, vou me arrumar para esperar o tio .
— Estou dizendo, mamãe, está apaixonado — disse convicto, sabendo que o irmão ainda o escutaria mesmo que estivesse saindo da sala. — Logo ele larga as trevas para recitar poesias de amor e nos fazer vomitar por dias seguidos, assim como acontece quando o tio decide demonstrar o amor que sente pela Lua.
— Credo, feioso! — exclamou horrorizada. — Que Satã nos proteja! Não vou permitir que meu monstrinho se transforme numa aberração como . Está escutando, ?! — gritou. — Eu sei que está! Não se atreva a derreter-se desta forma, está entendendo? , não me ignore!
apenas ria e ronronava devido aos beliscões de Mãozinha em seu rosto e pescoço. Adorava ver o irmão se ferrar. Talvez aquilo lhe custasse boas músicas alegres e pomposas para vomitar.
detestava todas aquelas coisas, mas sentia que logo passaria a gostar e ele que teria que aguentar o gêmeo.
Sua vontade era empurrar do penhasco próximo dali e livrar seu irmão de todas aquelas coisas, mas sabia que cinco minutos depois de mandar para o cemitério da família, iria também. Não queria morrer ainda; era tão novo para ter vermes saindo de seu rostinho bonito.
É, talvez fosse melhor aguentar meio pomposo e meio das trevas. Que Satã se virasse para protegê-lo.
apenas ignorou o alarde de seu irmão e sua mãe; tudo que menos queria naquele momento era lembrar o quão bobo estava por causa de . Talvez o ritual daquela noite o ajudasse nisso; conversar com Satã e lhe fazer promessas sempre ajudava.
Embora desejasse fazer um sacrifício muito legal dali algumas horas, ainda tinha o garoto de cabelos castanhos na cabeça. Se perguntava se seria uma boa ideia chamá-lo para jantar com sua família.
pensou, repensou, e até mesmo ouviu as risadas de , sentiu os tapas de Mãozinha e, pior: pode ouvir as felicitações orgulhosas de seu tio , a aberração da família por ser naturalmente romântico e um bobão por conta da Lua.
Céus, estava apaixonado e queria muito que fosse jantar ali. Queria lhe oferecer um ritual; uma virgem! Cabras! Gatos pretos! E tudo mais que o garoto quisesse.
Sem raciocinar, por fim, enviou uma mensagem:
Agora, teria que encarar a parte mais difícil: seus pais. E o fato de que usara emoji de coração. Preto, mas usara.
Pelo menos os pais de não iriam julgá-los.
Afinal… hippies eram igualmente excluídos e mal vistos, certo?
A mulher alta e de cabelos extremamente vermelhos fitou o jovem à sua frente.
— Nós vamos o que, ? — perguntou.
— Jantar na casa dos ! Isso não é um máximo? — respondeu muitíssimo empolgado, sorrindo abertamente para a mãe. — me disse que os pais adoram umas coisinhas proibidas, como vocês. Lá pode usar à vontade, eles deixam na mesa. E hoje um tio deles está chegando, ele estava na Lua! Se casaram no mês passado.
— Quem se casou no mês passado, garoto? — o homem pressente se pronunciou desta vez, rindo sem entender muito o porquê.
— O tio de . Ele se casou com a Lua no mês passado, está voltando das festas — explicou calmamente para o pai. — Mas, ah, deixem para lá. Só vamos nesse jantar, tudo bem?
— , são os — sua mãe murmurou. — E se eles nos jogarem naquele cemitério? As pessoas da cidade sempre dizem horrores sobre eles…
— Vocês vão adorar o cemitério, é tão bem arejado! — riu. — Sim, a cidade fala horrores deles. Mas antes falavam de nós, não vai ser nenhuma surpresa as duas famílias mais incomuns da cidade se juntarem. O pessoal vai até gostar porque terão mais fofocas.
— É, faz sentido — o pai concordou. — Vamos neste jantar. Mas… filho, você sabe se em algum lugar daquela casa dá para… Você sabe. Plantar umas coisas?
A campainha da casa dos tocou, fazendo com que ficasse extremamente emburrado enquanto se agarrava a um homem de cabelos roxos que vestia um sobretudo preto. Somente um sobretudo.
— Eu ainda não acredito que convidou e a família dele… — o garoto resmungou ao ver seu gêmeo correr para atender a porta.
permanecia com a expressão neutra, assim como que apenas desfrutava de uma massagem de Mãozinha.
— Não seja assim tão amargo, — o homem ao seu lado murmurou. — Você pode acabar se apaixonando um dia.
— Não me venha com essas, tio — se afastou. — Só aceito me apaixonar se for por Satã ou uma bruxa!
— Aposto que se apaixonará por um defunto de mil anos — finalmente abriu a boca. — Você gosta tanto de tortura e gente morta, feioso, que é meio difícil acabar apaixonado por outra coisa.
— Ah, papai, isso devo concordar — gargalhou. — Você já viu a vovó como está? Entrando em decomposição! É tão legal, embora eu não queira ficar daquele jeito. De qualquer forma, é muitíssimo divertido torturá-la… Sempre cai pedaços dela pela casa e eu saio correndo com eles. Dia desses a deixei sem pernas, depois tive que costurá-la.
— Você não devia fazer isto com sua vovó, … Mas, me diga, foi mesmo engraçado? Você filmou?
— Claro, pai! Vou te mostrar é agora!
E aquela fora a primeira cena que os pais se presenciaram na casa dos .
— Sejam bem vindos — saudou, achando engraçado o casal com os olhos arregalados. Podia apostar todas suas jóias que os corações estavam acelerados e tudo que mais queriam era sair correndo dali, mortos de medo. Tão divertido!
— Olá! Sou , tio de — o homem de cabelos roxos finalmente se apresentou, levantando-se para cumprimentar a família que chegara. — e , por favor, parem de ver a vovó sem as pernas e venham cumprimentar as visitas.
não deu ouvidos ao tio, apenas se permitiu gargalhar novamente junto ao filho. Ambos com risadas esganiçadas e engraçadas, fazendo com que todos na sala sentissem vontade de acompanhá-los.
— Oh, céus! — secou as lágrimas. — Mil perdões, mas isso está hilário. Tadinha de mamãe, isso que dá estar 500 anos aqui. Um dia a terra há de comer!
— Pai… — chamou um tanto sem jeito. — Visitas.
— Ah, claro, claro. Seu namorado e a família — se levantou, finalmente. Vestia roupas pretas e bonitas, pareciam feitas sob medida. — Sou , sejam bem vindos à nossa humilde residência. Fiquem à vontade! Gostariam de beber alguma coisa? Mãozinha, por favor, ajude pôr a mesa, sim?
Os pais de estavam um tanto quanto assustados, mesmo que tentassem agir naturalmente como o filho. Precisavam, sim, de alguma bebida.
E umas balas.
E um pouco de erva.
Céus, estavam em meio a vivos-mortos em plena sexta-feira 13 e prestes a presenciar um ritual (provavelmente) satânico.
De fato, precisavam ficar muito chapados naquela noite.
O jantar correu melhor do que esperava. No fim das contas, os pais de ficaram encantados com tio e suas histórias; ele contara como seu romance com a Lua começou, como fora casar-se com ela e passar uma temporada lá, aproveitando-a e flutuando sobre ela. Também recitou suas poesias, contou que sua cor de cabelo a amada quem havia escolhido e, no fim, disse-lhes qual era o melhor conhaque da região e como transar após de algumas doses dele era bom.
Tio já estava mais para lá do que para cá. Entretanto, continuava firme. O ritual começaria em alguns minutos, e já organizava as coisas no cemitério com a ajuda de , que amava aquele lugar.
— Vocês gostariam de visitar nossa plantação de ervas medicinais? — perguntou para os convidados, sorrindo ladino e os encarando de forma sugestiva.
Os olhos do casal brilharam de forma intensa; pareciam ter galáxias nas orbes de tão encantados que ficaram.
— Claro que sim! — Responderam em uníssono, e logo seguiram o dono da casa.
logo se levantou também, deixando apenas e ali, com a desculpa que ajudaria a sobrinha a organizar as coisas.
— Então, como funciona esse tal ritual? — respondeu.
— Não é nada muito absurdo. — sorriu um tanto sombrio. — Por que não vamos lá para fora ver como tudo é organizado? Aposto que você vai gostar.
E, de mãos dadas, seguiram para o lado de fora.
O cemitério era bem grande e ficava logo atrás da enorme casa dos . Tinha um portão preto e alto que fazia barulho ao ser aberto e, lá dentro, possuía enormes fileiras de túmulos. Todos com nomes, datas e fotos (a maioria em preto e branco). Conforme caminhavam, viam a decoração simples de . Enfeites pretos e vermelhos em cada cruz, frases soltas rabiscadas aqui e ali na letra miúda e confusa de , alguns gatos pretos andando e miando por entre as covas… E no alto do céu, a esposa de . Uma superlua cheia. Bonita, brilhosa e intensa. Parecia olhar para cada um, guardar suas histórias e sorrir cada vez que ouvia a voz do amado.
estava encantado. Já adorava aquele cemitério durante o dia; agora, à noite, estava ainda mais apaixonado. Seu coração batia calmo, seu sorriso crescia a cada passo e seus cabelos balançavam devido a brisa calma que passeava por ali.
estava se sentindo em casa.
— Olhe, estão todos ali, até seus pais e a vovó com a cara caindo aos pedaços — murmurou, apertando mais a mão de na sua. — Pelo jeito já está na hora do ritual. Vocês podem participar se quiserem. Mas só da oração.
— O que mais tem além da oração? Me conte! Estou curioso e você só me conta as coisas pela metade!
— Além da oração tem o pacto de sangue, .
— Vocês… Como…? — fitou com os olhinhos arregalados, confuso.
— Você vai ver, garoto, se acalme.
não teve tempo de rebater nem mandar tirar o sorrisinho misterioso da boca. Logo já estavam próximos dos outros.
A família de — incluindo a vovó remendada — estavam de mãos dadas e em um círculo perfeito. O garoto logo se enfiara ali, dando uma das mãos para seu gêmeo, e a outra para sua mãe. Logo ao lado, e seus pais faziam a mesma coisa, olhando para a família para seguirem o próximo passo.
— Apenas rezem e peçam tudo aquilo que desejam — explicou de forma calma. — Deixem que os deuses e as trevas se juntem e tomem conta de seus corações. Pedidos bons ou ruins; não se importem. É apenas algo maior do que vocês mostrando o caminho pelo qual devem seguir.
— Agradeçam Satã no final — debochou, sorrindo. — Quando acabarmos daqui, tem um ritual particular de família. Vocês gostam de choque? Eu espero que sim, porque a cadeira elétrica é o melhor lugar para relaxar após um ritual desses; encontrar Satã sempre é muito revigorante, porém cansativo.
Os pais de , embora parecessem muito chapados, tremeram dos pés à cabeça após as palavras do garoto, fazendo-o rir.
— Assustar as visitas é feio, meu filho — murmurou, fechando os olhos. — Você aprendeu direitinho, parabéns. Ganhará mais dez segundos na cadeira elétrica.
comemorou e voltou a se concentrar no que fazia antes.
, no entanto, apenas permaneceu de olhos abertos. Fez todas suas orações e pedidos enquanto fitava tão concentrado em seus próprios desejos. O garoto sorria, e era impossível para o não sorrir de volta.
Ficaram ali por longos minutos, enquanto o vento passava por seus corpos um pouco mais forte. As folhas das árvores tremiam, soltando uma ou outra para voar até eles, como se estivessem ouvindo todos seus pedidos. A lua parecia brilhar mais ao passo que crescia, ficando cada vez mais cheia e bonita. Sua luz tomava todo o cemitério, clamando por e fazendo o que podia para realizar os desejos daquelas famílias.
Principalmente os daqueles adolescentes; e que, não tão secretamente assim, pedia um pelo outro.
Após longos minutos naquilo, finalmente acabaram. A família fez o tal pacto de sangue, porém longe dos outros e escondidos entre outros túmulos, como se tivessem coisas específicas com mortos específicos. Até Mãozinha havia participado.
Os pais de continuaram ali, caladinhos, se olhando e pensando se deveriam correr ou simplesmente continuar ali já que as ervas e comida eram tão boas.
E parecia tão, tão, tão feliz que isso deixava os corações dos hippies quentinhos. Amavam ver o filho daquela forma; era seu primeiro amor, e estava sendo especial para ele. Uma família incomum, como a dele, e cheia de surpresas. Apesar de todas as esquisitices, a família se amava. Muito.
— O que acha de dar um passeio? — perguntou meio tímido, assim que se aproximou de novamente.
— Acho ótimo!
E mais uma vez de mãos dadas, saíram juntos. Não importava se já estava ficando tarde, se seus pais estavam cansados ou qualquer outra coisa; a noite estava deveras agradável e queriam prolongar a companhia um do outro.
— Sabe, … — começou, enquanto se esgueiravam para o final do cemitério. — Eu sempre gostei de observar você. Desde o seu primeiro dia… eu sentia que você era especial de alguma forma, entende? Nunca te enxerguei como o garoto esquisitão da cidade.
— Pare de dizer essas coisas, eu sinto vontade de te esmagar no meu abraço e encher de beijos e mordidas e arrancar seu nariz porque ele é muito fofo — respondeu de uma só vez, ficando sem fôlego. riu do jeito do amigo/crush e se aproximou mais ao notar que paravam de caminhar.
— Você pode me explodir em abraços, me devorar em mordidas lentas e eu nem vou me importar, porque vou estar fazendo o mesmo com você — deu de ombros, sorrindo. — Você é adorável e tem detalhes adoráveis. Eu amo suas pintinhas, seus cabelos cobrindo seus lindos olhos, seu nariz, suas unhas longas, suas pernas gostosas, seu traseiro… Poderia passar anos listando tudo que gosto em você. Não me conformo, você é todo bonito! Dá vontade de bater sua cara na parede até deformar!
riu e acenou em negação. Não era possível que numa cidadezinha medíocre do interior tivesse encontrado sua alma gêmea. Ainda mais ali, onde tudo era tradicional demais e o mais diferente que haviam visto era um casal de hippies que só aproveitavam a vida. E agora estava ele ali, filho de um casal nada tradicional, com um irmão masoquista e herdeiro de cemitérios e parentes, literalmente, caindo aos pedaços.
E não se importava, gostava dele e de sua família como eram. Céus, ele realmente estava prestes a morder por inteiro até que lhe arrancasse toda a pele para depois colocar de volta e encher de beijinhos e carinhos e amor como tio fazia com a Lua — esta que brilhava estrategicamente sobre eles, iluminando seus rostos e a parte mais bonita do cemitério, com as lápides altas e as árvores ao fundo. O céu estrelado completava o cenário natural e bonito, estavam derretidos sob o brilho do universo.
— Eu quero muito beijar você — falou baixinho, sentindo um peso sair de seus ombros. — Eu quero tanto…
— Eu também quero beijar você, — respondeu num sussurro, se aproximando mais de e encostando-o numa das lápides dali. — E eu vou fazer isso agora.
sorriu de lado e se aproximou do outro de uma vez, roçando suas bocas.
— Pois faça — soprou contra os lábios cheinhos.
O beijo não demorou a vir; logo que suas bocas se colaram definitivamente, a brisa quente e calma voltou a passear por ali, levando paz por todo o ambiente. A Lua explodiu em felicidade, atingindo seu ápice; grande, brilhosa e sorridente enquanto lembrava-se de seu amado .
Aqueles dois jovens estavam descobrindo o encanto do amor. Com uivos de lobos agitados ao fundo, sincronizando com os corações acelerados que dançavam em seus peitos, um contra o outro, o céu estrelado banhando-os de alegria e uma sexta-feira 13 chegando ao fim.
O amor estava exalando bem ali, em meio às trevas; que nunca foram tão fortes quanto pensavam ser.
No fim, estava certo: havia se transformado num bobo apaixonado que recitaria todas as poesias de amor que lhe fossem possíveis.
FIM
Nota da autora: Eu amo Família Addams demais, e vocês? haha Esse plot me veio depois que eu assisti a uma peça inspirada na Família Addams no ano passado e que foi muito divertida. Alguns apelidos também foram inspirados na peça.
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