Um Conto de Nataridade

Última atualização: 25/12/2020

Capítulo Único

Acordei aquele dia com uma dose extra de energia e excitação, que no contexto atual, me fazia parecer uma criança. Era véspera de Natal, 24 de dezembro. Minha época favorita do ano. Mamãe cozinharia doces deliciosos, Beta estaria no melhor humor possível e eu poderia ficar bêbada de cidra sem ninguém me julgar.
Iríamos passar o natal no mesmo lugar de sempre, na cabana nas montanhas, a melhor herança que mamãe poderia ter recebido. Tia Mel recebeu dinheiro, Tio Tony recebeu os carros, Tia Ju recebeu a casa da praia, e mamãe ficou com a cabana. Era só uma cabana de três quartos no meio de uma floresta montanhosa na encosta do mar - na verdade, falando assim, ela parece até bem ajeitada. E de fato era, mas seu verdadeiro valor era sentimental.
Quantos natais não tínhamos passado ali? Todos, pelo o que eu me lembre. Menos o último. Faz dois anos que meus avós faleceram, e nossa família parou de ver sentido em passar o natal juntos aqui. Aliás, o motivo da festa sempre foi não deixar o vovô e a vovó sozinhos nessa época do ano. Meus tios preferiram ir para as festas de natal de seus cônjuges e, como mamãe não tinha um, nossa nova tradição era passarmos só nós três.
Eu gostava muito disso. Nunca fui muito fã do barulho e da bagunça que nossa família trazia consigo. Eu os amava, é claro, mas vocês não acham que as tardes de natal são feitas para se passar sentada na janela com uma xícara de chocolate quente e um bom livro? Ter um momento desse enquanto vinte pessoas conversavam dentro de um chalé tão pequeno desses era quase impossível. E eu estava feliz por finalmente conseguir fazer isso.
Como eu ia dizendo, gostava tanto de nossa nova tradição natalina que me voluntariei para vir mais cedo e limpar a casa. Eu sei. Eu? Me voluntariar para limpar a casa? Parecia mais um milagre natalino, e talvez fosse mesmo. Talvez a magia do natal me fizesse uma maníaca da limpeza. Mas eu só queria que tudo desse certo. Mamãe ficaria em casa por mais algum tempo, esperando a hora de buscar Beta no aeroporto. Minha irmã não morava mais com a gente, fazia faculdade fora. Eu estava ansiosa para vê-la.
Estacionei o carro na garagem da cabana e me apressei para tirar as coisas do carro, pois o tempo ameaçava em chuva. Não só chuva, um verdadeiro temporal. Todo ano chovia e fazia frio no natal. Muito tempo atrás, quando eu ainda era pequena, costumava nevar. Tem uma foto minha, aos dois anos de idade, com tanta neve no chão que eu só fico com o pescoço de fora. Mas com o passar dos anos a neve foi ficando tão escassa que acabou. Era quase como se a mãe natureza tivesse nos deixado de castigo: "vocês vão acabar com o planeta? Pois bem, nada de neve então." Justo, eu diria.
Estava arrastando a última mala para dentro quando um carro para na frente do portão. O homem magricelo e enrugado de óculos escuros que estava no volante acenou brevemente, quase contra sua vontade, e logo se ouviu uma voz calorosa e alta:
, querida! Que bom te ver! Você e sua mãe vão passar o natal aqui?
Era Anne, a mulher mais simpática que eu já conheci na minha vida inteira. Ela se esticava por cima do marido para alcançar a janela. Anne era uma grande amiga de minha mãe. Elas se conheceram na faculdade e hoje em dia organizavam juntas eventos beneficentes para ajudar causas locais. O mais famoso era o Chá da Tarde das Mulheres de Fé, que reunia uma grande parte, senão todas, as mulheres da classe alta da cidade.
— Vamos sim, Sra. . — respondo. — Be... Roberta vai vir também.
Minha irmã odiava que chamassem ela de Beta, e só aturava eu e minha mãe, contanto que não usássemos o apelido perto de ninguém.
— Ai que maravilha! Dêem uma passadinha em casa amanhã, ok? Tenho grandes idéias para nosso próximo evento.
Ela dá uma risadinha de quem está aprontando algo e o carro sai. Consigo ver Duncan no banco de trás acenando para mim. Aceno de volta. Junto dele havia , o filho mais novo de Anne, e Isabelle, a namorada de Duncan. Nenhum dos dois pareceu notar minha presença.
Duncan foi meu veterano no primeiro ano de faculdade. O que foi muito bom, pois aí não sofri na mão de secundaristas desconhecidos. Duncan pegou bem leve comigo nos trotes, basicamente só fui pintada com tinta guache no primeiro dia de aula e tive que pagar uma cerveja para ele em uma das festas dos calouros. No ano seguinte ele já tinha se formado, mas eu não tinha mais que me preocupar. Além disso, Duncan ajudava a mãe com quase todos os eventos beneficentes, assim como eu ajudava a minha, então nós sempre conversávamos um pouco nessas ocasiões.
Fui entrando de volta para a casa fazendo uma nota mental para não esquecer de avisar minha mãe do convite de Anne. Eles eram nossos vizinhos de cabana e seria bem rude não ir visitá-los no natal. Tratei de ir arrumando tudo. Limpei o chão, tirei pó dos móveis, troquei os jogos de cama e até lavei os banheiros. No meio de tanta arrumação com direito a playlist e até uma cervejinha, nem percebi que o tempo lá fora tinha piorado e começado a chover. Já estava adiantando a preparação da ceia quando minha mãe me ligou.
— Filha? Tá conseguindo me ouvir?
A ligação estava com uma qualidade péssima, mas respondi que sim.
— Não vamos conseguir ir. Sua irmã teve que fazer um pouso de emergência e a rodovia está fechada por causa de um deslizamento.
— O quê? — Era uma dúvida genuína, eu não tinha conseguido escutar uma palavra do que ela disse. — Beta não chegou?
— O avião teve que pousar em um outro aeroporto, já não dava mais para voar nessa tempestade.
Roberta estava presa em um aeroporto, mamãe em casa e eu nessa cabana. Uma tempestade nos separando. Minha cabeça rodou tentando pensar em uma alternativa, um jeito de consertar as coisas. Um barulho estático muito alto ecoou pela vizinhança e as luzes piscaram. Em menos de um segundo depois, ele soou de novo, dessa vez ainda mais alto, e todas as luzes se apagaram. A energia tinha acabado.
— Eu vou voltar para casa, mãe.
No fim dessa rua de casas montanhosas havia uma tão grande que mais parecia uma mansão. Pertencia aos Waterford, e nós éramos conhecidos. Conhecidos o suficiente para usarmos a estrada da propriedade deles. Era o único caminho alternativo para a montanha que não usava a rodovia.
— Você tá louca? Aquela estrada é muito perigosa.
Minha mãe sabia exatamente sobre o que eu estava falando, eu nem precisei explicar. E ela estava certa, descer uma montanha por uma estradinha íngreme de terra com um carro velho era quase suicídio, mas eu tinha que fazer isso. Não podia passar o natal aqui sozinha.
Hall, me prometa que você não vai sair daí enquanto não for seguro.
Merda. Eu tinha que prometer. E então, teria que cumprir. Ao longe, ouvi o mesmo barulho estático, dessa vez com algumas engrenagens rangendo. Os geradores das casas ao lado começaram a funcionar. Mas eu continuava no escuro. Já fazia três anos desde que o nosso gerador quebrara, e ninguém se deu ao trabalho de consertar.
— Mas mãe, a energia acabou e...
— Me prometa, !
— Ok, eu prometo.
Um tempo em silêncio no telefone. Ela está pensando? Ou chorando?
— Mãe?
Tiro o celular da orelha e vejo que a ligação caiu. Não tinha mais sinal. Será que ela tinha me ouvido prometer que não iria sair daqui? Se não, eu poderia pegar o carro e ir... Ok, quem eu estava enganando? Tenha ela escutado ou não, eu prometi. Além do mais, não sei nem se conseguiria tirar o carro da garagem com a enxurrada de lama que descia pela rua. Quis chorar. O natal estava arruinado. Batidas na porta me tiram de meu torpor. Assim que me aproximo da porta, reconheço a silhueta rechonchuda de Anne pelo vidro.
— Oi, querida. Viemos ver como você está. — Sua voz era tão calorosa que por uns segundos, tudo parecia bem. — Sua energia não voltou?
Atrás dela estava , segurando um guarda-chuva preto grande. Ele era o oposto da mãe. Magro, alto e super calado. Não lembro da última vez que ouvi sua voz. Nós costumávamos brincar juntos nos eventos das nossas mães, mas já fazia anos desde que ele parara de ir.
— Não, nosso gerador quebrou. Mas tenho certeza que já já volta. — Tentei tranquilizá-la.
— Caiu uma árvore em cima de um dos postes de energia. Não vai voltar tão cedo. — Ele fala.
Então é assim que sua voz era. Como eu já disse, ele era bem diferente da mãe. Sua voz era grossa e baixa. Mas ainda sim, tinha aquele mesmo conforto de Anne. Era uma voz quase... quentinha. Aveludada. Do tipo que você consegue ouvir por horas. Ressenti que ele falara apenas uma frase tão curta. Afastei todos esses pensamentos e foquei no que era mais importante: a energia não iria voltar.
— Você precisa de alguma coisa? Pode esperar por sua mãe lá em casa. Aliás, fale para ela esperar a chuva passar um pouco antes de subir a serra. Já tivemos tantos acidentes nesse trecho por conta das chuvas e dos deslizamentos…
Anne falava rápido demais, era difícil acompanhar.
— Ela não vai conseguir vir. A rodovia está fechada. E minha irmã está presa num aeroporto longe daqui.
"Vai ser só eu esse ano" pensei, mas não tive coragem de falar. Não queria que fosse verdade. Podia ver sentindo dó de mim. Seus olhos eram muito expressivos. Eram iguais os da mãe, tirando que os dela vinham com um par de rugas de cada lado.
— Oh não. — Anne lamenta. — Você não pode passar o natal aqui sozinha, nesse breu. Vamos lá para casa.
Eu não queria passar o natal sozinha, mas acho que seria pior ainda passar com os . Eles eram adoráveis, só que eu queria um natal tranquilo, não queria ser uma intrusa na casa de ninguém.
— Está tudo bem, Sra. . Eu não quero atrapalhar...
— Besteira. Tem comida de sobra lá, e vai ser maravilhoso ter você conosco. pode te esperar aqui para você não subir sozinha depois.
Não tinha como dizer não para Anne. Ela já tinha decidido que eu ia para lá e pronto. A mulher pediu que me ajudasse a arrumar minhas coisas para passar a noite lá e antes que pudéssemos contrariá-la, ela já tinha pegado o guarda-chuva e ido embora.
— Não vou demorar. Fica à vontade.
concorda com a cabeça e fecha a porta da frente atrás de si, porque a água que respinga no chão já começava a escorrer para dentro da casa.
Os últimos resquícios de luz lá fora me permitiram desfazer as malas e arrumar tudo de novo em uma mochila menor. Coloquei apenas o necessário para uma noite, por que era só esse tempo que passaria lá. Não iria abusar da minha estadia. Quando desci as escadas, observava algumas fotografias em cima da lareira apagada. A que ele tinha em mãos, a da moldura verde musgo desgastada, tinha uma foto de nós ainda crianças. Duncan e Gemma, os mais velhos de Anne, estavam de pé, atrás de nós. Roberta estava agachada em uma posição estranha e eu e jogados no chão, cobertos de glacê de bolo, fazendo cosquinha um no outro. Todos posavam para a foto, menos nós. Estávamos muito ocupados nos divertindo.
Assim que me viu, voltou a foto sobre a lareira, como se fosse eu tivesse flagrado ele cometendo um crime.
— Vamos?
Ele assente com a cabeça e pega o guarda-chuva das minhas mãos, caminhando para fora. Tranco a casa e o sigo. Agora eu entendia por que Anne pediu para subir comigo até a casa deles. Havia tanta lama no chão que era quase impossível não atolar. Tivemos que andar puxando um ao outro a cada passo. Mesmo com o guarda-chuva, chegamos lá ensopados. A chuva estava muito forte.
Mal passamos pela porta da frente e Anne nos enrolou em toalhas quentinhas e disse para irmos tomar banho. Quando entrei no banheiro não esperava encontrar a banheira já cheia, pronta para mim. Com o coração quentinho, agradeci e aceitei. Ia ter que fazer uma bela de uma torta se quisesse recompensar Anne por toda essa hospitalidade.
Fiquei de molho naquela banheira quente até ela deixar de ser quentinha e as pontas dos meus dedos ficarem enrugadas. Me arrumei bem rápido, calculando que já havia demorado demais e saí para o corredor. Estava chegando às escadas quando me lembrei que havia deixado meu celular na pia do banheiro e me virei para buscar. Péssima ideia.
Esbarrei com . A diferença de altura fez com que eu metesse a cara no peito dele. Rezei para minha maquiagem de segunda mão não ter sido transferida para a camisa branca dele. Olhei para cima, envergonhada, pronta para pedir desculpas, mas fiquei sem palavras. estava tão lindo. Os cabelos molhados pendiam pelo lado da cabeça e parece que o banho quente tinha dissolvido aquela sua carranca mal-humorada. E seu cheiro... cheirava a baunilha, e lã fresca, e madeira e frutas. Ok, falando assim parece meio nojento. Mas era bom. Era muito bom.
— Com licença.
Ele desvia de mim e passa. Tentei lembrar o que é que eu ia fazer. Na verdade, às vezes o cheiro da madeira poderia ser dos móveis. E as frutas e baunilha dos doces, lá em baixo na cozinha. Não é possível que alguém tenha um cheiro tão bom assim.
Falando em cozinha, desci para lá. Já que era uma convidada, o mínimo que podia fazer era oferecer ajuda. Anna e Gemma estavam com praticamente tudo pronto já, mas me ofereci para olhar o fogão enquanto a Sra. ia se arrumar para a ceia. Um silêncio constrangedor se instalou entre eu e Gemma na cozinha, então decidi puxar um assunto.
— E aí, como vão os gêmeos?
Gemma tinha dado a luz à dois menininhos um ano atrás. No natal passado eles pareciam dois burritos, e agora, ficavam de pé e balbuciavam coisas desconexas.
— Vão bem, graças a Deus. Quer chá?
Aceito. Ela serve uma xícara para mim. Então ela me pergunta da faculdade. Digo que falta apenas um semestre para terminar. Pergunto de seu trabalho, ela diz que a galeria de arte vai bem.
O resto da noite com a família não foi muito diferente disso. Conversei alguns minutos mais com Gemma até seu marido a chamar e ela ter que ir acudir os gêmeos chorões. Depois troquei algumas palavras com Duncan e Isabelle, sua namorada, mas eles pareciam estar em uma lua-de-mel, então os deixei sozinhos. Durante a ceia, fizemos uma oração e Sr. me fez algumas perguntas sobre meu tio Tony.
Fred era dono de uma rede de padarias no norte do estado. Meu tio Tony era dono de uma rede de padarias no sul do estado. E com a expansão das franquias, é claro que eles iriam se encontrar no meio. Uma guerra silenciosa e passivo-agressiva entre padeiros rolava no mundos negócios. Tive vontade de rir. Imaginei os dois jogando farinha um no outro, ou se batendo com baguetes.
Eu estava sentada na janela da sala, observando a chuva cair lá fora. Se eu me concentrasse bastante, conseguia fingir que estava em casa, e que essas vozes eram de mamãe e de Beta. Escuto Anne me chamar. Ela estava fazendo de tudo para me enturmar com sua família, e eu me sentia até mal por não me esforçar mais para socializar com eles, mas eu não estava no clima para festa. O natal desse ano estava morto para mim.
— Estávamos aqui falando de o quão fofo foi quando você e o cantaram Last Christmas no Baile de Nataridade de 2011.
Ah, o Baile de Nataridade. Minha mãe deu a brilhante ideia de juntar as palavras "natal" e "caridade" para nomear o evento e Anne milagrosamente acatou. Eu tentei avisar que era bem brega, mas elas estavam tão animadas que não deram ouvidos. Especificamente naquele evento, minha mãe encheu o meu saco o ano inteiro para eu cantar alguma coisa, e eu me recusava. Quando Anne falara que iria cantar, eu imediatamente disse que iria também. No fim, nós descobrimos que elas armaram isso para nós, já que Anne também falara a que eu iria cantar.
O resultado foi duas crianças de doze anos cantando uma música de amor sem nem entender o significado na frente de centenas de adultos. Eles obviamente acharam aquilo tudo muito fofo. Queria não ter lembrado dessa noite. Eu e éramos amigos naquela época, mas nos últimos tempos as coisas tinham ficado esquisitas entre nós. Nós éramos um menino e uma menina extremamente amigos no auge da puberdade com 12 anos. Acho que vocês já sabem o que aconteceu.
Tudo começou quando uma menina da nossa idade mudou ao lado da casa de . Ele não parava de falar dela, e eu fiquei com ciúmes. Logo depois foi minha vez. Um primo distante meu viera passar uns dias na cidade. Ele era mais velho e encrenqueiro, e eu logo fiquei caidinha. Na época eu não soube por que, mas não gostava dele. Depois disso, ficar sozinha com já não era mais tão confortável. O silêncio sempre tinha que ser preenchido e se nos esbarrássemos sem querer, uma onda de vergonha afogava o cômodo.
Foi assim o ano inteiro. Até que na festa de Nataridade - meu Deus, quase dói ter que falar esse nome - nós sentamos debaixo de um ramo de azevinho para dividir um pedaço de bolo de chocolate surrupiado da cozinha. tentou me beijar. E eu ia beijá-lo de volta, mas minha mãe me chamou de longe e eu entrei em pânico. Pelo bolo roubado, por estar beijando o menino que eu gostava. Eu murmurei um "tenho que ir" desajeitado e corri. Passei o ano seguinte inteiro me remoendo e jurando para mim mesma que iria beijar na próxima festa de Nataridade. Mas não foi em mais nenhum evento de sua mãe, e eu praticamente não conversei com ele nos próximos nove anos.
Voltando a realidade, lembra quando eu disse que era impossível dizer "não" para Anne? Pois é. Ela me dirigia pelos ombros para o piano onde já estava sentado — claramente contra sua vontade. O restante da família tagarelava sobre como realmente foi muito fofo nos ver cantar em 2011. Nós éramos crianças! Não é adorável ver dois adultos cantando.
Não havia tempo para argumentar. já começara a dedilhar o piano e logo eu teria que cantar. Nem sei se lembrava a letra direito. Olhei de canto para . O piano já não era mais ridiculamente maior que ele. Ele não tocava mais notas espaçadas e lentas. Antes, tinha acabado de começar as aulas de piano. Agora, ele claramente sabia o que estava fazendo, pois duvido que essa era uma partitura simplificada da música. Talvez eu estivesse mais afinada também. Não éramos mais aquelas crianças de tantos anos atrás.
A música passou como um borrão. O que teria acontecido se eu tivesse beijado naquela noite? Será que ele teria tentado me beijar no ano seguinte também? Talvez ele tivesse virado meu primeiro namorado. Ou talvez as coisas estivessem ficado estranhas entre nós. Não seríamos maduros o suficiente para lidar com a situação. Prefiro acreditar nessa última versão. Não gosto de ficar imaginando uma versão em que ainda fosse meu amigo. Não por que eu não queria isso, e sim por que não era verdade. Prefiro pensar que, não importa o que tivesse acontecido naquela noite, nós acabaríamos nos afastando de qualquer jeito.
Uma salva de palmas soou pela sala quando terminamos de cantar. ria sem graça para os familiares. Meu celular tocou, cortando o clima. Era minha mãe. Anne fez um sinal positivo, falando para eu ir atender. Rumei até a porta dos fundos, vestindo meu casaco, e saí para a varanda. Tinha parado de chover.
— Oi filha. Tudo bem?
— Oi mãe. Tudo bem sim. E aí?
A ligação estava limpa e clara. Um verdadeiro milagre de natal.
— Estamos bem. Só consegui te ligar agora. Acabei de pegar sua irmã no aeroporto. Ela conseguiu terminar o voo.
— Eu estava sem sinal mesmo. Vocês vão vir amanhã?
— Acho melhor você voltar pra casa. Eu liguei para um amigo que trabalha na prefeitura e ele me disse que já tem uma equipe indo remover as pedras da estrada. Vai ficar livre pela manhã. A energia voltou por aí?
Era tão bom ouvir a voz da minha mãe.
— Não. Mas eu estou na casa dos . Eles tem um gerador. Anne fez questão que eu viesse.
Mamãe riu.
— É claro que sim. Vamos fazer uma torta para agradecê-la depois.
O resto da conversa foi tranquila. Mamãe disse que ligaria para alguém vir consertar o gerador, para que isso não acontecesse de novo ano que vem. Disse para ligar se precisasse de alguma coisa. Depois que ela desligou, me senti vazia. Eu já estava sentindo saudades, mas ouvir sua voz me deixou triste. Era como se tivesse caído a ficha. Em menos de uma hora seria natal, e eu estava sozinha. Por um momento desejei que minha família estivesse na cabana. Não só minha mãe e Beta. Toda a família. Todos os meus tios, primos e seus agregados. Mesmo com o barulho e a baderna. Eu achei que quisesse um natal tranquilo. Mas sentia falta daquele amor. Estava prestes a chorar quando a porta da varanda rangeu.
— Minha mãe pediu para eu checar você. Está tudo bem?
Era . Sua voz grave soou vaga contra o frio.
— Sim. Eu estou bem. Já vou entrar, só preciso de um ar.
Falei a primeira coisa que veio a cabeça. Queria ficar sozinha. A hospitalidade de Anne era incrível e eu era muito grata, mas já me sentia sufocada. Mesmo nas minhas festas de família turbulentas, eu costumava ficar quietinha no meu canto.
— O amor da família está te sufocando?
ri e se senta na cerca da varanda, deixando os pés balançarem para fora. A porta da varanda range de novo e fecha.
— Claro que não. — minto. — Acho que só estou sentindo falta do amor sufocante da minha própria família.
Sento ao seu lado. Qual foi a última vez que nós conversamos?
— Mas você não está feliz por ter um minuto de paz? — Ele pergunta.
— Na verdade, eu achei que era exatamente isso que eu queria.
"E em cinco minutos de introspecção, percebi que não", pensei, mas não completei a frase — Meu natal ideal seria eu, sozinho, nessa cabana gigante. Para poder andar pelado e beber uísque perto da lareira. — continua.
Tentei não pensar na imagem de pelado e segui com a conversa.
— Por que a cabana?
— Não sei. Eu gosto dela. É sempre quentinha e aconchegante, cheia de vida. Além do mais, parece que saiu diretamente de um filme de natal.
Ele tinha razão. Parecia mesmo um cenário natalino.
— Ela não ia ser tão quentinha e aconchegante sem o cheiro dos biscoitos de gengibre da sua mãe saindo do forno. Ou sem a Gemma e o Duncan cantando Hallelujah. Eles são a magia do natal.
O que, aliás, era o que eles estavam fazendo agora mesmo. Dava para ouvir mesmo com a porta fechada. Será que eles sabiam que essa música, na verdade, era sobre sexo? "E a cada respiração nossa era um aleluia"? Fala sério.
— Alguém precisa falar para eles que essa música é sobre sexo. — fala, rindo e observando os irmãos pela janela.
Como é possível que a gente esteja pensando a mesma coisa?
— Mas só para você saber, — Ele continua. — Na minha versão do natal ideal, eu estou com a pessoa que eu amo e está nevando. Então a magia de natal está garantida.
— E por que essa pessoa não está aqui agora?
— Eu ainda não conheci ela.
fala brincando e rindo, mas dá pra ver uma pontada de tristeza na sua face.
— Talvez vocês já se conhecem. Só não sabem que devem ficar juntos.
Ele me olha de canto de olho, o rosto incrédulo. Percebo o que falei. Eu meio que insinuei que e eu deveríamos ficar juntos. Mas não era para ser isso. Eu juro! De fato, eu e nos conhecíamos há muitos anos e nos encaixávamos na descrição que eu tinha dado mas... Agora meio que parece que eu estou tentando me convencer que devemos ficar juntos. Preciso falar alguma coisa para quebrar o silêncio.
— Eu fui amiga do meu ex-namorado durante muitos anos antes da gente começar a namorar.
Ótimo. Compartilhar detalhes pessoais da minha vida com um cara que eu não falo há anos. Boa jogada, . Era melhor do que insinuar que a gente deveria ficar juntos.
— Talvez seja o caso. Seja lá quem for, espero que apareça logo.
se levanta. Ótimo. Eu tinha estragado tudo. Eu e minha boca gigante. Talvez fosse melhor se entrássemos mesmo. Já estava com tanto frio que não conseguia sentir a ponta dos meus dedos. Mas se senta ao meu lado de novo, segurando duas latinhas de cerveja.
— Meu Deus do céu, o que é isso? — pergunto, completamente incrédula.
— Você não bebe? — Ele pergunta.
— Eu bebo. Mas estou surpresa que você bebe. Sua mãe sabe disso?
Anne se gabava sem humildade quando o assunto era a sobriedade dos seus filhos. Em toda a festa fazia questão de falar que seus meninos não precisavam envenenar seus corpos com álcool para se divertir.
— É claro que não. Ela acha que somos santos. Aliás, por que você acha que Gemma e Duncan estão fazendo sessão karaokê na sala?
— Eles estão bêbados? E sua mãe não percebe? — pergunto.
— Ah, ela sabe. Só finge que não.
— Bom, não sou eu quem vai estragar os sonhos dela.
Brindamos nossas latinhas encarando a floresta a nossa frente. Depois de alguns metros de árvore, tinha outra casa, toda brilhante e enfeitada para o natal. O silêncio entre nós ficava ainda mais estranho quando o único barulho era o som esquisito que a gente fazia quando bebia. Eu tinha que falar alguma coisa. Uma rajada de vento bateu em nós, fazendo meu casaco abrir. Fui puxá-lo de volta, e pensou a mesma coisa. Nossas mãos se relaram brevemente, e foi o suficiente para deixar o clima entre nós estranho. Parece que tínhamos doze anos de novo.
Eu tinhas tantas perguntas. Tantas coisas que eu queria saber. Todas essas dúvidas que ficaram me rodeando todos esses anos. Queria perguntar a por que ele nunca mais tinha ido nos eventos. Ou tentar explicar que eu queria beijá-lo também naquela noite. Mas aliás, por que é que isso me incomodava tanto? Já havia se passado quase uma década. Acho que ficar longe de todos esses anos tinha me deixado alheia ao quanto eu me incomodava com tudo isso. Eu odiava coisas inacabadas.
— Por que você...
— Por que você…
Falamos juntos. Rimos fraco. Isso era tão estranho. fez um sinal para que eu pudesse falar.
— Por que você parou de ir nos eventos? — Solto.
— Sei lá. Achei que você também iria parar de ir. Quando eu era pequeno, ir ajudar minha mãe era uma aventura. Depois eu comecei a perceber que, na verdade, era um trabalho. Quase exploração infantil.
— Eu gostava de ajudar... Mas minha parte favorita era passar tempo com você.
— A minha também. A gente costumava se divertir bastante, não é?
Concordo com a cabeça. O que tinha acontecido com a gente?
— Ás vezes eu fico pensando se nós ainda seríamos amigos se eu não tivesse estragado tudo. — Ele fala.
Era bom saber que eu não era a única pensando isso, mas...
— Peraí, estragado tudo? Você não estragou nada.
— Eu não deveria ter tentado te beijar aquele dia. Foi tão besta. Devia ter percebido que você não queria.
— Não! — Interrompo-o. — Eu deveria ter te beijado.
Talvez eu tenha falado alto de mais, ou em uma entonação muito forte, por que arregalou os olhos como se estivesse assustado. Talvez, eu só tenha falado a coisa certa.
— Quer dizer... Eu queria te beijar aquela noite. Não sei por que não o fiz.
Outro silêncio se instalou sobre nós. Mas dessa vez, ele não era tão constrangedor. Acho que ambos estávamos pensando. Tudo não passara de um mal entendido. Se tivéssemos conversado sobre isso antes, provavelmente ainda seríamos amigos. As coisas não teriam se tornado tão estranhas entre nós.
— Não acredito que a gente ficou todo esse tempo sem se falar. — comenta.
— Nem eu...
— E tudo por causa de um ramo de azevinho idiota. — Ele começa a rir.
Dou risada também. Acho que, no final, era engraçado mesmo. Tantos anos separados por causa de uma besteira. E só precisamos de uma tempestade e um karaokê natalino para nos unir. Só. Olhei para cima, querendo ver as estrelas, mas só encontrei o telhado do chalé e um ramo de azevinho pendurado junto dos pisca-piscas.
— Se você acha que azevinho é idiota, não deveria olhar para cima. — falo.
Mas olha. É claro que ele olha.
— Não acredito que a gente tá debaixo do azevinho de novo.
O jeito que ele falava era quase como se tal acontecimento fosse inacreditável. Dado a nossa história, talvez fosse.
— Será que é o nosso carma? — pergunto.
— É o que diz a profecia. — Ele responde.
Senti vontade de provocá-lo, como fazíamos antes. Mas será que eu podia? Tínhamos acabado de quebrar o gelo entre nós. Não podia simplesmente presumir que a partir de hoje voltaríamos a ser tão próximos como éramos há nove anos atrás. Mas decidi fazer uma piada mesmo assim.
— É melhor você não tentar me beijar. É má sorte.
— Talvez a má sorte foi você ter saído correndo.
— Então você acha que se a gente se beijar agora, estaremos livres dessa maldição? — pergunto.
A conversa tinha tomado um rumo completamente diferente agora. Eu olhava para e ele me encarava de volta. Algo me diz que ele estava com os olhos fixos em minha boca, mas eu não saberia dizer ao certo, pois não conseguia tirar os olhos do sorriso torto que cruzava seus lábios.
— Só tem um jeito de saber.
Ele responde com a voz baixa, quase sussurrando. Justo quando eu achava que ela não tinha como ficar melhor. coloca uma mão em meu rosto e me beija. E dessa vez eu não saio correndo. Eu fico e beijo de volta. Coloco a mão em seu rosto. Ela está tão gelada que consigo sentir arrepiar quase que instantaneamente. Mas ele não se afasta. Ao invés disso, segura minha outra mão com a sua quentinha. Era impossível que suas mãos estivessem quentes com um frio desses. Estava tão frio que até parecia que estava… Nevando. Abri os olhos, me afastando o suficiente de só para poder ver um único floco de neve que caíra sobre seu cabelo. Peguei o floco em meu dedo e coloquei diante do seu rosto.
— O primeiro floco de neve do natal. Faça um pedido.
Eu tinha inventado isso. Não havia pedidos para o primeiro floco de neve do natal. Aliás, como saber se esse era mesmo o primeiro floco? Antes que pudesse assoprá-lo, o vento bate em nós e leva o floco junto, para longe.
— Ah não. Você não pode fazer seu pedido. — falo.
— Tudo bem. — responde. — Acho que meu desejo já se realizou de qualquer jeito.
Ele me beija de novo. Uma mão na minha nuca e a outra na minha perna. Se eu soubesse que beijar seria tão bom, teria feito da primeira vez que ele tentou. Na verdade, estava feliz por esse ter sido meu primeiro beijo com . Tenho certeza que ele beija bem melhor agora com 21 do que antes, com 12.
Escutamos o pessoal dentro da casa gritar "feliz natal". Fogos de artifício estouram no ar.
— Crianças, aonde você estão? — Anne abre a porta da varanda e nos grita. — Já é natal.
me ajuda a descer do parapeito da varanda e caminhamos até a porta. Antes de entrarmos, com a mão na maçaneta, ele me diz:
— Feliz natal, .
— Feliz natal, .




FIM.



Nota da autora: Sem nota.
Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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