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Um Natal Cinematográfico






Capítulo Único


Fazia cinco meses que ela estava na minha vida.
Sabia disso porque hoje é dia 24. E não um 24 qualquer, é véspera de Natal. E por isso completamos uma mão cheia amanhã.
Outra razão para ter decorado os meses foi Francis. Ele era o cara que jogava futebol comigo na faculdade e, agora, concertava os aparelhos quebrados no armazém da minha empresa. Tenho ido muito lá nas últimas semanas porque estava produzindo uma série que contava a história de uns infelizes, que viviam em uma Terra do futuro toda fétida e destruída e todo aquele papo.
Mas a história do seriado não era o caso. O ponto era que Francis não conseguia parar de questionar minha decisão há uma semana. Me perguntou tudo sobre Elisa, em uma forma de provar que eu não estava pronto.
- Qual a cor favorita dela? O quê ela gosta de comer de manhã? Quer dizer, ela come de manhã? Sabe, tem gente que não. – Respirou fundo. - Qual a posição favorita dela? Não falo a sexual, quero dizer, essa também, mas aquela que ela prefere ao dormir. Ela pode roncar. Bem alto. Ou você pode roncar e ela odiar isso. E se ela gostar daqueles filmes melosos de romance?
Dois dias depois desta enxurrada de perguntas, vieram mais umas outras tantas.
- Cara, você sabia que tem mulher que quer ter muito filho? Tem algumas que cogitam parar de trabalhar para cuidar dos pirralhos. Já viu se ela ganha mais que você? Ou menos? Li em um artigo que isso pode gerar problemas na relação. – Bateu duas vezes no meu ombro.
- Admita que você viu isso naquele filme “A verdade nua e crua”. – Cruzei meus braços, abafando um riso.
- Não vem ao caso, Matteo. Mas você pode descobrir uma outra mulher. Ela pode odiar aventuras sexuais. Pode amar bichos exóticos, tipo rã. Imagina você acordar com uma rã em cima da cama. Além do mais, as taxas de divórcio entre pessoas que se casam muito cedo é bem grande.
A verdade era que eu não me importava com o quê Francis dizia. Se eu não soubesse algo de Elisa, teria toda uma história pela frente para descobrir. Meu amigo estava frustrado, cada vez mais a cada pergunta sem sucesso de convencimento.
Eu sabia que ela tinha duas cores favoritas, o rosa e o lilás. Sabia que o seu café da manhã era um toddynho e um biscoito engolidos no carro. Sabia que ela preferia ficar por cima, mas também sabia que ela não se importava em fica por baixo. Sabia que ela dormia de bruços, com um travesseiro nos pés e outro apenas encostando na cabeça. Sabia que ela não roncava, mas fazia uns barulhos engraçados durante o sono. Sabia que ela tentava esconder, mas amava filmes de romance ao ponto de saber todas as falas – o quê ela punha a culpa no seu diploma de cinema. Sabia que ela queria ter muitos filhos, o quê eu não concordava muito, mas teríamos que conversar sobre no futuro. Sabia que ela não queria parar de trabalhar, mas o faria se ficasse sem ver os filhos. Sabia que ela amava aventuras e bichos de estimação, não importava a espécie.
Taxas de divórcio eram números. Regras que possuíam exceções. Eu seria qualquer número e qualquer regra por um futuro com ela.
Decidi que seria naquele 25 mesmo. Talvez haja mais metáforas do que em qualquer outro dia do ano se comprometer no nascimento de Jesus.
- Por que o senhor está tão quieto?
O cheiro familiar de Channel 5 tomou conta da varanda, me despertando dos devaneios. A festa de Natal desse ano estava acontecendo na sala da minha casa, com um espaço bom o bastante para as duas famílias. Elisa me abraçou por trás e pôs a cabeça sobre meus ombros, me proporcionando uma bela vista de seu sorriso branco, quase ofuscado pela luz piscando no seu gorro de papai Noel.
- Estão todos lá dentro, Mat. Sabia que é quase suicídio estar vestido assim, só de camisa de manga longa e calça, aqui fora? Não me leve a mal, iria para o quarto com você agora, está ridiculamente sexy com esse espírito natalino. – Mordeu os lábios, rindo. – Mas cogitei até que você estivesse planejando saltar pela janela. – Lis fingiu estar aterrorizada, colocando a mão na boca. Gargalhei.
- Poxa amor, só queria saber se a neve ia amortecer o impacto. Você adivinhou, Nostradamus. – Tirei o gorro, bagunçando seu cabelo, recebendo um grito em resposta. – E esse gorro aqui, papai Noel? Entrou, realmente, no clima.
- Sim, senhorito. Agora me dá essa porcaria. – Reclamou tirando-o de mim e me batendo com o mesmo. – E para a sua informação, é mamãe Noel. E adivinha, tem um só para você também. Tá lá dentro. Vamos ficar que nem dois ridículos bonequinhos de enfeites. Agora, é melhor a gente entrar antes que seja confirmado o suicídio.
- Epa! – A puxei pela cintura antes de sair. – Tem que pagar o pedágio para sair daqui.
- Ridículo, brega! - E me beijou.

- Bom dia, flor do dia!
Elisa cantarolou a sua saudação matinal favorita, enquanto sentava na cama. Me empurrou com o cotovelo, obrigando a ficar sentado para depositar uma farta bandeja de café da manhã no meu colo.
- Menu do dia é: morango com Nutella, café da Nespresso com caramelo e torradas um pouco queimadas com requeijão. Ta-dã! – Abriu os braços sorridente, para minutos depois fazer uma careta, levando a mão a cabeça. Coloquei a bandeja sobre a cama e a abracei.
- Ei, Lis. Olha para mim. O que houve? – Afaguei seus cabelos. - É a dor de cabeça de novo?
- É. Eu odeio isso. A mesma dor há sete anos, Mat. E só aumenta. Dói muito. – Ela ficou em posição fetal, enquanto eu fazia carinho em sua testa.
- Mas você sabe. Os médicos dizem que é genético, não tem jeito. Vou pegar seu remédio, ok? – Beijei sua bochecha e sai. Fui até a cozinha pegando o remédio e a água.
- Dane-se. Isso é ridículo.
- Tudo é ridículo para você.
- Principalmente você. – Gargalhei.
- Também te amo, lady. Toma aqui. – Elisa levantou por um segundo para engolir o comprimido e voltou a mesma posição. Fechei as cortinas e voltei para a cama.

- Ei, o quê você está fazendo? Temos que ligar para os seus pais e para os meus, ver se eles chegaram bem. Nos arrumar, ir para a casa da minha avó para a reunião que marcaram.
- Shiu. Vamos ficar aqui até você melhorar. Ok? Ok. Tchau para você. – Ela riu e deitou em meu peito, cochilando alguns segundos depois.

- Sabia que você fica linda colocando o rímel? A boca fica aberta. Fico com vontade de...
- Claro, é pela boca aberta. O fato que eu me arrumo só de calcinha e sutiã não ajuda na sua fantasia. – Elisa riu, desviando o olhar do espelho, me encarando.
- Contribui, claramente. –Agarrei sua cintura com força e puxei para mim, mordendo seu pescoço.
- Ei, sai, amor. Se começarmos assim terminaremos em um lugar que não é a casa da vovó.
- Para comer mutcha pasta, vabene! – Imitei o sotaque italiano da avó de Lis, Vera, recebendo um riso de volta.
- Ok, senhorito, vamos logo. Adiamo. Nona Vera não espera e você sabe. Além disso, italiano é fofoqueiro e vovó não foge à regra. Vai começar a imaginar coisas sobre nós e ligar para todos os primos e tios.
- Aposta até no interurbano? – Fiz uma cara de desespero.
- Será o segundo número da lista.
Alguns vestidos e borrões na maquiagem, depois Elisa estava finalmente pronta. A verdade é que não íamos para a casa de seus avós. Íamos para um dos parques cinematográficos da cidade. Eu havia planejado com Francis e outra meia dúzias de amigos um belo cenário em uma clareira que estavam filmando algum filme de vampiro.
A pausa para o Natal foi bem-vinda e utilizada.
Quando percebeu o desvio do caminho, Elisa ficou nervosa. Inventei uma desculpa que meu chefe havia ligado e pediu que passasse em um dos sets. As unhas de Lis estavam pela metade e, se fosse em outra ocasião, minha paciência também.
Porém minha paz de espirito era tamanha que, nem mesmo a bela técnica em me estressar da minha futura noiva, resultou em qualquer coisa.
- Ei, para de reclamar. – Ela me olhou furiosa. – Eu te amo.
- Não me venha com palavras bonitinhas agora. Vou dizer à nona que a culpa é toda sua. – Cruzou os braços como uma criança birrenta.
- Você é uma chata. E nós chegamos. Venha ver o set comigo, quero a sua opinião de roteirista. – Dei a volta no carro e abri a porta para ela.
- É aquela série sobre o futuro? – Concordei com a cabeça. – Não sei porque as pessoas acham isso legal. Credo, ver a destruição... Você sabia que não tem nada disso de aquecimento global causado por humanos? O aquecimento está...
- ...acontecendo porque é um processo natural do planeta. Ele sempre muda de temperatura, clima, que nem foi a Era Glacial. Já sei disso. Sempre fala a mesma coisa, Lis. – Murmurei, tedioso.
- E não deixou de ser verdade nenhuma das vezes, tá? – Ela deu língua. – Mas não entendi uma coisa, se é o futuro destruído, porque estamos indo para um lugar que parece a floresta encantada dos livros infantis? Como é o roteiro, Matteo?
- Essa parte é um sonho da personagem principal. O quê acha?
Chegamos aonde tudo aconteceria. A clareira estava ali, recheada de flores rosas, brancas e lírios lilás. Eu e os caras havíamos prendido umas luzes de natal ao redor de todas as árvores da clareira. A única coisa que me protegeu de não ser julgado por eles foi a época do ano. Colocamos duas almofadas brancas, que quase se escondiam no meio de tantas flores. Além disso, uma mesinha apoiava a tela branca que reproduziria o filme através do dispositivo portátil que eu havia trago comigo.
Tudo estaria perfeito se não fosse a chuva fina que começava a cair.
- Deixe-me mostrar como aconteceria a cena. A mulher que, vamos dizer que seria você, sentaria aqui nessa almofada e pensaria em tudo o quê ela fez no passado. Como seria esse passado e como ela gostaria que fosse seu futuro. – Fiz Lis sentar, enquanto ela ria baixinho. – Então, eu pego o refletor e reproduzo as imagens na tela, que eu espero que não estrague por causa da chuva.
- Ei, não precisa mostrar. Pode quebrar.
- Não, eu quero. Eu espero que não quebre nunca.
E então, começou. Talvez não fosse o melhor pedido do mundo, mas eu sabia muito bem que Elisa era apaixonada por filmes de romance. Eles foram o motivo dela escolher o curso de cinema no vestibular e agora todos os seus roteiros possuíam um mocinho e uma mocinha.
Por esse motivo, nos últimos dois meses, selecionei quase todos os pedidos de casamentos já realizados no cinema. Desde o cinema russo ao tradicional americano. Não importava ser filme de romance ou não, se fosse um pedido real e sincero, estava no vídeo. Tentei não deixar escapar nenhuma cena, nenhum filme. Para não ficar tediante, acelerei a gravação ficando apenas com três minutos.
Ao final do vídeo Elisa olhou para mim, sorrindo e chorando.
- Amei, Mat. A produção está linda. Mas qual o problema que o seu chefe viu? Eu gostei de tudo. – Gargalhei de sua ingenuidade. Coloquei seu cabelo atrás da orelha, me levantando.
- Logo, depois a mocinha ia comer esses chocolates. Ela não estaria esperando pela chuva, né? Mas, bem... – Lhe entreguei seus bombons favoritos que estavam sobre a mesa, sorrindo. – E dizer sim. - Me ajoelhei, tirando o anel do bolso. Vendo a sua expressão alegre se tornar uma careta, uma prévia para o mar de lágrimas que parecia se acumular. – Você aceita ser a mocinha da minha vida, meu amor?
Elisa não respondeu nada, apenas me abraçou. Temendo e soluçando. Segundos depois ela me soltou e mirou nos meus olhos, antes de começar a me bater.
- Ei, Lis, você não gostou? Tá muito cedo? Me desculpa. O quê eu fiz? – Ela me olhou raivosa.
- Seu ridículo. Idiota. Como você faz algo assim? Quer me matar do coração! – Continuou me batendo.
- Então, quer dizer que gostou? – Segurei seu rosto, impedindo os tapas.
- Se gostei? Eu amei, seu burro. Asno. – Seus lábios vieram tão depressa em direção aos meus, que fiquei sem folego quase antes de tudo começar. Ela estava fria, gelada. No entanto, seu gosto era picante. Uma fagulha que incendiaria toda – agora - nossa clareira. Elisa me puxava contra si como se o tempo pudesse parar. E por mim, que parasse mesmo, porque aquilo era tudo que nós dois queríamos. Sua carne tão faminta quanto a minha, pulsando um desejo que parecia estar reprimido.
- Só para ter certeza. – Parei o beijo contra minha vontade. - Isso foi um sim?
- Sim. – Sorrimos.

- Estou com grama em lugares que não gostaria. – Elisa fez uma voz de choro enquanto sorria. Gargalhei de volta, enquanto fazia carinho em sua perna em uma mão e na outra segurava o volante. – Não tem graça, te aviso que se eu pegar uma gripe por causa dessa tempestade lá fora a culpa é sua.
- Ui, que medo. – Recebi um tapa na cabeça logo depois. – Seu carinho me comove.
- Então, quer dizer que vamos para a nona agora.
- Positivo. Não falei nada do pedido, até por que, já sabe... ia rolar interurbano, como você disse. Apenas conversei com ela ontem na festa que confirmasse com você que o “enterro dos ossos” seria na casa dela, no almoço. Mas conhece dona Vera. Começou a reclamar em italiano, eu não entendi nada. Até que ela disse que os netos não tinham tempo para ela. Então, aqui estamos nós.
- Quem resiste ao charme italiano?
- Ou a gritaria. – Murmurei e Elisa riu.
- Essa estrada é que está me dando medo, chovendo assim. Os estúdios podiam ser mais perto do centro da cidade. – Disse, aumentando a calefação.
- Claro, porque São Paulo não é assim, nem Hollywood, nem Miami, mas o Rio tinha que ser. Bem no centro e a cidade crescia ao redor.
- Ignorante. Só estou dizendo. – Segurei sua mão. – Quantos filhos?
- Ai não Lis, isso de novo não. Já disse. Poucos. Não vou conseguir sustentar os doze. Já viu o filme? É demais.
- Só não digo vinte e cinco porque ia ser demais, mais vinte e cinco é o nosso número, sabia? Começamos a namorar no vinte e cinco e noivamos também.
- Que bom que acha isso, ao menos. – Ri.
- Podemos ter cinco. Tira o vinte e fica cinco.
- Ou sermos sensatos e ter os dois. Tira o cinco e fica o dois.
- Você é péssimo em matemática mesmo hein, Mat.
- E você entendeu o quê eu quis dizer. – Ela me deu língua e eu retribui. Elisa se aproximou e beijou meu pescoço. Olhei para sua cabeça apoiada em meu ombro e sorri, olhando no fundo de seus olhos.
Aconteceu uma eternidade em meio a segundos. Vi seu globo ocular mirar para frente e sua expressão se transformar. De serena para a tormenta.
- Mat, cuidado! – Elisa gritou. Um timbre fino que fez meu coração amolecer.
Olhei para frente e um carro vinha em nossa direção. Não era mão dupla, não tinha outra via. Eu não saberia dizer qual era a cor ou o modelo do veículo. Mas as duas lâmpadas me olhavam como se me acusassem de um crime perverso. E, talvez, fosse a mais pura verdade.
Então, fiz a única coisa que ocorrera. Virei todo o volante para a esquerda. Dessa forma, quem o carro atingiria primeiro seria eu e não Elisa. Poderia haver um futuro para algum de nós, afinal.
Em meio a luz do carro desgovernado, virei meu rosto para ela. Minha mocinha, minha noiva. Poderia ser algo da minha cabeça, fruto da minha imaginação fértil como o início de toda a nossa história, mas lá estava. Seu sorriso estonteante, brilhando mais do que qualquer farol. E o único que consegui foi sorrir de volta.
E, logo depois enxerguei apenas a negritude.



Fim.



Nota da autora: (11/12/2015) SEM NOTA




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