Londres, dezenove de outubro de dois mil e dezenove.

Querida ,

Quero, antes de tudo, te dizer que sou um jovem deste século e nunca escrevi uma carta de amor na vida. E segundo, espero que não me ache tão arcaico por te escrever uma carta, onde quer que você a leia depois. Isso não é fácil para mim, mas imaginei que não teria wifi para ler minhas mensagens.
E o fato de estar indo embora sem me dizer para onde não está sendo tão simples.
Sabe, , eu gosto de lembrar da nossa infância. De jogar bola na rua descalços depois do almoço, trepar nas árvores dos fazendeiros quando visitávamos a casa de campo da sua avó, e de quando colocamos na cabeça – durante um bom tempo – que iríamos ser astronautas um dia, só para descobrir se a lua era realmente feita de queijo. Gosto de pensar dessa época onde a vida era mais complacente conosco, quando não tínhamos responsabilidades a não ser cuidarmos um do outro. Amo me recordar das suas ideias malucas, do seu sorriso doce e suave, de sua gargalhada tão estridente e escandalosa. Isso não mudou depois que cresceu, e ainda bem. Uns anos atrás você me disse que queria ser conhecida no mundo e fazer algo importante para a humanidade, por isso escolheu ser engenheira. E que mulher incrível você se tornou, ! Tão independente, altruísta e teimosa! Seria uma incrível engenheira se não fosse essa missão que vai fazer você partir para um lugar tão misterioso, sem poder levar ninguém com você.
Lembro do início da nossa adolescência, na escola, que os meninos te caçoavam por causa dos seus dentes e você me chamou para dar uma surra neles, mal sabendo que eu também era magrelo e não daria conta nenhuma de dar uma surra naqueles marmanjos. Acredito que nós dois nunca corremos tanto em toda nossa vida! Ou quando você brincou de sete minutos no paraíso, mesmo depois de eu ter saído, para tentar beijar Adam Chen. Vocês bateram os dentes com tanta força que tive que te tirar da roda e te encher de aspirina por causa da dor. Você ficou um bom tempo sem querer beijar alguém depois dessa. Ah, uma lembrança boa: quando pela primeira vez na vida ficou com medo de levar uma bronca de seus pais por não ter estudado para prova e resolveu colar de mim. Você levou uma bronca de todo jeito, porque foi pega colando graças a dedo duro da Tiffany Fadaye. Até hoje penso que ela fez isso porque gostava de mim e tinha ciúmes. O fato é que vocês ficaram sem se falar até a formatura.
Agora, uma coisa triste: nunca te disse o que sentia por você antes que resolvesse ir embora. Nunca te disse que você era muito mais que minha melhor amiga, nunca disse que seu sorriso sempre foi tão lindo e que eu não estava bêbado de verdade aquele dia que eu beijei você. Por isso eu me lembro: você correspondeu o beijo, você também me queria, . Só serviu para me iludir mais, já que no dia seguinte você me disse que te chamaram para sair e eu acovardei.
Eu só quero estar perto de você, te sentir comigo, te fazer enxergar que sou muito mais que seu melhor amigo também. Sei que não tem como você voltar agora, mas isso não faz as coisas serem melhores. Sou uma pessoa melhor com você, um homem melhor, e não sei como posso seguir sabendo que as três palavras que sempre quis te dizer vão ficar entaladas na minha garganta para o resto da minha vida, porque fui covarde para dizer o que eu sinto.
Eu juro que tentei entender sua decisão, , e só pude culpar seu altruísmo nem tão sutil ao me deixar. Ao deixar a todos nós, sem explicações.
O que aconteceu na ribanceira não era para ter acontecido. Não estou te culpando, claro que não. Todos os jornais e manchetes apontam você como a principal heroína do acidente, .
Você transformou a si mesma em uma heroína, sem pensar duas vezes, ao me puxar da beira daquele abismo.
Eu acordo naquele lugar há semanas e semanas, fantasiando a melhor maneira de sairmos os dois vivos daquela confusão de lama, chuva, desastre e barranco. Tinha uma maneira de estarmos juntos, rindo de mais uma aventura que não deu certo. Tinha uma forma de você saber que eu sempre serei sua vida, sua voz, sua razão de ser meu amor. , se eu pudesse voltar no tempo, jamais teria te convencido a sair do carro para ver a cachoeira no horizonte, porque prometi para mim mesmo no minuto que nos conhecemos que eu cuidaria de você pelo resto de toda minha vida.
A ideia de me empoleirar naquela beirada foi minha, era para o meu corpo ter sido encontrado naquela margem.
Era para o meu nome ter seu próprio memorial.
Era minha vida que deveria ter se desvaído.
Seu senso moral e altruísta me puxou da borda tão rápido que a força fez você escorregar, derrubando o seu frágil corpo metros abaixo até o riacho. Eu ainda consigo ver seu olhar de horror ao perceber que estava caindo, seu grito abafado pela chuva forte e o meu entalado na garganta quando minha mão não alcançou a sua. Encarava seu corpo inerte próximo ao córrego e as lágrimas misturadas com a água da chuva rolavam pelo meu rosto, enquanto, desesperadamente, ligava para uma ambulância em uma tentativa desesperada de salvar sua vida.
Me falaram para deixa-la ir há muitos dias, e não estava pronto, não quando me culpava tanto pelo que aconteceu. Não quis falar com ninguém, a não ser com você, mas você não estava em lugar algum. Achei que não conseguia usar palavras para expressar o que sentia antes de você me deixar para sempre.
Até que resolvi te escrever uma carta. Para que saiba como eu me sinto, como apesar de tão novo, o quanto eu te amo. E o quanto você também me amou ao me salvar da morte aquele dia.
A despedida não será fácil, no mínimo lenta e dolorosa, mas você me ensinou mais do que sou capaz de agradecer e me proporcionou os melhores momentos que vivi.
Eu te devo uma vida toda agora, . Sua vida pela minha, e nunca na minha vida vou me esquecer disso. Sua vida nunca terá sido em vão.
Eu te amo.
E eu te deixo ir, para onde quer que for.

Com amor,

.

Nota da autora: Sem nota.



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