Finalizada em: Jun/2022

12 – Verdade

's POV

🎧 Dá o play:

On the Shelf – Isaac Lewis


O corredor ficava mais largo à medida que Jaehyun ia desaparecendo por ele.
Sem uma discreta intervenção divina, jurei que poderia cair de joelhos ali mesmo, tomada de frustração e derrota, tentando entender como um corpo simples e frágil como o do ser humano era capaz de aguentar baques tão violentos como aquele de agora: um pico extremo de euforia e outro extremo de desespero. A transição entre as duas coisas aconteceu de um jeito tão rápido que eu provavelmente não teria visto, ou assimilado a tempo, o que não foi muito diferente do que aconteceu, já que, quando entendi e coloquei os pés no chão, a única coisa que consegui pronunciar foi: Jaehyun.
E nada. Mais nada. Ele tinha ido embora do mesmo jeito, pela segunda vez, e agora eu não podia nem julgá-lo por isso.
Com a ruína do meu emocional ainda intacta, suspirei e fechei a porta, pensando seriamente em como faria para resolver a situação, ou o teor da mensagem que eu digitaria fervorosamente dali há pouco e nunca o enviaria, porque o conselho de Sophie parecia certeiro quando disse que esses idols não olhavam muito o telefone, e que principalmente coisas assim não se resolviam por aparelhos eletrônicos. Então, novas soluções pra não me martirizar teriam que surgir, antes que eu…
— Não sabia que Jaehyun conhecia o seu apartamento — a voz de Jungkook interrompe meus pensamentos, antes que eu me deixasse sair daquela casa com pijama e chinelos e fosse atrás de uma nova série de explicações.
— Não moro em um lugar vazio e cheio de vegetação, não é tão difícil de se achar — resmunguei, com a voz repentinamente cansada, suspirando mais uma vez — Agora pode me dizer o que aconteceu?
Ele não pareceu entender de imediato.
— Como o que aconteceu?
— O que você tá fazendo aqui? — perguntei em tom óbvio. Era visível o quanto Jungkook estava tentando se manter ainda mais em torno de mim, e todas as minhas tentativas de mostrá-lo que não era necessário não estavam funcionando.
— Eu já não disse? Vim ver como você está.
— Eu sei, mas… Eu não ‘tô doente nem nada parecido, não bebi o suficiente pra passar mal e definitivamente não preciso de uma babá, então…
— E desde quando esses são motivos pra eu aparecer aqui? — ele franziu o cenho, claramente confuso. Molhei os lábios e não tentei justificar sua impressão errônea. Tudo era errôneo — Agora existe um adicional pra eu tocar aquela campainha? Achei que eu pudesse vir a qualquer hora.
Dei um sorriso de canto ao analisar sua expressão levemente magoada. Não adiantaria de nada brigar com ele. Essa não era a minha intenção.
— Você pode, claro que pode — suspirei, apertando ligeiramente seu ombro — Mas é que… Acho que hoje eu tô um pouco cansada. Só isso.
Os olhos dele me fitaram em curiosidade, com um pouco de compreensão. É isso que se resumia nossa amizade, na grande maioria das vezes: eu entendo o que você quer e está tudo bem. E então tínhamos o nosso espaço muito bem delimitado. Esperava que fosse isso que ele estivesse lendo no meu rosto agora: que eu precisava de um tempinho na minha antes de qualquer explicação, independente de qual fosse.
Mas hoje era um dia atípico, e a próxima reação dele certamente foi a mais anormal que eu já vi.
Primeiro, ele encarou algum ponto atrás dos meus ombros, e então, se desvencilhou do meu toque, trincando um pouco o maxilar.
— Você estava cansada mesmo ou saiu mais cedo pra um encontro?
Juntei as sobrancelhas, virando-me para trás rapidamente na direção da cozinha.
— O que? Ah, aquilo… — encarei a comida que tinha sobrado na travessa, levantando uma sobrancelha — Não é exatamente isso…
— É por isso que você tá me ignorando ultimamente? Porque decidiu que as coisas vão ser assim agora?
Algo dentro de mim ficou imóvel e muito quieto. Jungkook percebeu, mas continuou com aquele olhar que esperava uma resposta.
— Não é isso…
— Então o que é? — perguntou, em um porte indignado — Sabe, no mês passado, em Jeju, você disse que gostava de mim. Mesmo com toda a história do beijo que ainda não entendo, você disse isso. E eu pensei muito, fui um idiota, mas depois disse que gostava de você também, e daí recebo uma proibição? Pensei que isso resolveria os problemas de comunicação entre nós dois, que voltaríamos a ser como antes, mas te vejo cada vez mais distante, me evitando, me tirando da jogada sem mais nem menos…
— Por favor, esse é o pior momento pra gente falar disso…
— O pior momento? Você anda dizendo muito isso ultimamente, — ele bufou, afastando-se um pouco pelo tapete até o outro lado. Prendi o lábio inferior entre os dentes, pensando loucamente em mandá-lo embora porque tudo já estava uma ruína, não precisávamos piorar a situação, não precisávamos — O que tá acontecendo de verdade, ? Somos amigos e nos gostamos, por que não podemos voltar ao que éramos antes? Sem as meias palavras, sem todo esse joguinho…
— Porque as coisas nunca poderiam voltar a ser como antes, Jungkook! — arregalei os olhos, notando o trincar dos meus dentes, minhas mãos paradas no ar e a impaciência estampada no acelerar do meu sangue.
Ele se calou, com a cabeça movendo-se devagar, como se tivesse levado um susto. Baguncei meu cabelo, já caótico o suficiente e liberei um respiro grande pelo nariz, desejando que o tempo parasse e eu tivesse tempo suficiente para fugir, mas o azar…
O azar me fazia querer descarregar ainda mais.
— Olha, você quer saber a verdade? Tudo bem, lá vai: eu realmente fui apaixonada por você. Por meses. Não, desde que te vi pela primeira vez. E passei muito tempo sem poder dizer isso ou coisa parecida, porque olá, você é Jeon Jungkook! Mas decidi me confessar em Jeju. Achei que só falar bastaria, que eu poderia até mesmo repetir vez ou outra, que eu não esperaria nada em troca, mas eu estava completamente errada porque é claro que se espera uma resposta quando se conta uma coisa dessas pra alguém — movi ainda mais as mãos, agora respirando pela boca. A pausa de três segundos foi o suficiente para que eu visse Jungkook apertar os nós dos dedos — Sinceramente, Jungkook, a partir do momento em que te deixei saber dos meus sentimentos, nós nunca poderíamos voltar a ser o que éramos.
Por favor, não me odeie por isso, não me odeie. Faça de novo aquele olhar de compreensão, aquele em que estamos acostumados…
Ou seria muita hipocrisia pedir para que ele apenas aceitasse?
— O que você tá dizendo? — ele finalmente disse, lançando um olhar confuso e perdido em minha direção — Quer dizer, tudo bem, eu entendo o seu lado, confessar os sentimentos sempre deixa um elefante no meio da sala, mas é exatamente por isso que tínhamos que conversar sobre isso, e não ignorarmos o assunto como se ele não existisse. Digo, não mais. O tapete, se lembra? Ele não aguenta tanta coisa mal resolvida por muito tempo — agora foi a vez de ele falar o óbvio e eu ficar parada, baixando os olhos imediatamente diante da declaração, tentando evitar um descontrole emocional que não deixaria minhas palavras em ordem. Droga, odiava quando ele estava certo — E não que importasse muito. Afinal, eu disse que gosto de você também, lembra?
Levantei a cabeça em um jato, vasculhando todo o seu rosto até dizer, com a voz assustadoramente baixa:
— Você não gosta de mim, Jungkook — dei de ombros levemente, um movimento tão lento e automático que mal percebi que tinha feito. A testa dele se contorceu em mais uma expressão de incompreensão — Você não gosta de mim do jeito que pensa. Só tá com medo de me perder, e eu entendo isso porque sinto a mesma coisa, o medo de que as coisas mudem. Foi por isso que guardei a verdade por tanto tempo, por isso achei melhor ficarmos nas mesmas posições…
, corta essa. Eu lembro o que eu disse. E não saio dizendo essas palavras pra qualquer pessoa, se digo que gosto de você é porque…
— Será mesmo? Será que só não ficou desesperado e confuso com o beijo, e achou que falar de volta era o significado de que as coisas não ficariam estranhas? — suspirei, mantendo o mesmo tom firme e ao mesmo tempo cansado ao continuar — Eu sei que você não diz essas coisas por aí. Mas eu também não sou qualquer pessoa, então eu entendo você ter se precipitado. Sentir vontade de me beijar é muito diferente de estar apaixonado. Eu sei disso, na verdade senti isso, com o…
Parei, assustada com o rumo que eu mesma estava tomando. Jungkook juntou as sobrancelhas, procurando as mentiras e omissões na minha postura, como sempre, devo dizer. Ele tinha essa bendita mania. Então, nunca era só falar. Nunca era só isso. Se não fosse 100% sincera, ele notaria…
— Com quem? — perguntou, fazendo sinal para que eu continuasse — O que você tá me dizendo?
Engoli em seco. Nada, isso é tudo, podemos mudar de assunto? Era o que eu pensei em responder na mesma hora. Alguma resposta curta e simples que tirasse seu foco da verdade.
Mas Jungkook ainda era meu melhor amigo. E ele ainda sabia tudo ou boa parte do que eu teimaria em esconder, e deixar as coisas explodirem na sua cara em uma revelação arrasadora que viesse depois não estava nos planos.
Fora que mentir para ele daquele jeito tão descarado me incomodaria pelo resto da semana, ou do mês, ou do ano, até que eu decidisse mostrar alguma coragem e contar.
Esse momento parecia ser agora. Por isso, guardei uma porção de ar na garganta, fitei-o com o máximo de determinação, e soltei:
— Estou te dizendo que estou apaixonada por outra pessoa.
Eu sabia que ele tinha reconhecido a sinceridade na minha voz. Nada indicava o contrário naquele momento. Seus olhos atordoados disseram exatamente isso: o que você disse?
— Tá apaixonada por outro cara? — sua voz foi ligeiramente falha, denotando ainda mais seu sotaque de Busan — Do nada? Rápido assim? Para com essa brincadeira, .
— Não estou brincando, Jungkook — meu tom foi recheado de cadência, acompanhado talvez de um pouco de rispidez, mas ouvir seus julgamentos sobre tempo não me pareceu algo necessário no momento — Sei que foi estranho pesar as coisas entre a gente quando eu te beijei, e depois disse aquelas coisas no carro, e te peço desculpas por isso, mas…
— Quem é ele? — interrompeu, com um passo à frente.
— O quê?
— Quem é o cara? Não mereço saber disso, pelo menos? Se vai me rejeitar, pelo menos me dê nomes.
Coloquei duas mechas do cabelo para trás das orelhas nervosamente, movendo os olhos abalados para baixo, cima, esquerda e direita, como se procurassem uma saída paralela de alguma parede do cômodo. A voz covarde e medrosa dentro de mim gritava no pé dos meus ouvidos, desejando que o assunto fosse adiado mais uma vez, que seria uma opção mais viável gravar toda a confissão que eu guardava em um gravador e entregar para ele depois.
Que vergonha, . Que decepção. Não sabia que você podia ser tão molenga.
— Jungkook, sério…
— Isso não pode ser tudo, . Eu o conheço? Ou você o conheceu em Jeju? É alguém de tão longe assim? Ou ele já tava na jogada há um tempo e você só decidiu reparar agora?
Um nó se alojou na minha garganta. Senti minha cabeça querer concordar imediatamente. Sim, é isso, é só isso. Agora você aceita um chá?
Mas droga, eu não era feita de ferro. Só de pensar na culpa posterior, eu já tinha desistido de mentir há muito tempo. Não fazia mais sentido.
— Mais ou menos isso — respondi, baixando os olhos mais uma vez.
… — ele insistiu, com um tom ainda firme, mais persistente. Fechei os olhos com força e bufei.
— É o Jaehyun — disparei, olhando para cima — O cara que eu gosto é o Jaehyun.
O silêncio foi maciço. Jungkook permaneceu parado na mesma posição por tanto tempo, me olhando como se estivesse esperando que eu dissesse logo o nome do cara, porque era impossível que o que ouviu antes fosse verdade. Eu não estava prestando atenção, pode repetir? Acho que me confundi e ouvi você dizer Jaehyun.
No entanto, eu também estava imóvel e agora até mesmo encolhida, esperando qualquer mínima reação humana dele, que veio da forma mais louca possível: uma risada.
Jungkook soltou uma risada tão alta que pensei que estivesse louco. Bom, talvez ele estivesse. Talvez eu também não demoraria muito pra ficar.
— Fala sério, … — ele sacudiu a cabeça, e vi que todo o escândalo vinha apenas de seus lábios, porque seus olhos pareciam abertos com descrença — Me diz que você tá brincando.
Agora eu quis rir. O que isso quer dizer? Ele achou mesmo que eu brincaria ao revelar que gostava de um dos seus melhores amigos? Apenas balancei a cabeça em negação, vendo o sorriso sumir definitivamente de seu rosto.
E, mais uma vez, ele deu um passo para trás, bagunçando um pouco os cabelos.
— Como isso é possível? Vocês mal trocavam 3 palavras antes daquela viagem! Como vocês dois… Meu deus!
— Eu não sei! — abri os braços em exasperação, sentindo a pressão da responsabilidade de me explicar, de dizer qualquer coisa que fizesse sentido pra ele — Fiquei tão confusa quanto você, não sabia o que fazer, mas é isso que tá acontecendo agora, tá legal? Nós nos beijamos em uma situação maluca, eu gostei, mas confundi…
— Ei, ei, ei. Espera aí. Ele é a pessoa que você beijou e pensou que fosse eu?
Prendi a respiração de novo, mas balancei a cabeça que sim, porque não tinha mais jeito. Eu podia venerar minha capacidade de soltar coisas sem perceber.
— Caralho, que tipo de maluquice é essa? — agora foi a vez de ele abrir os braços, transtornado por um momento ao perceber que a situação tinha se tornado maior do que ele.
— Eu sei, eu sei. Teve toda aquela coisa de troca de quartos, e eu não sabia, eu só…
— Então por isso você ficou daquele jeito quando te beijei? E quase desmaiou quando eu contei sobre isso, porque tinha entrado naquele quarto e beijado ele…
— É isso. Foi isso que aconteceu, Jungkook. Eu não queria te magoar, tá legal? — me adiantei, agora eu mesma me aproximando dele, e ficando aliviada quando ele não repeliu minha presença ou se afastou ainda mais para trás. Isso me deixou temerosa e esperançosa, e senti que tinha finalmente chegado ao assunto — Eu nunca quis dizer mentiras ou te julgar mal, eu só… Eu sinceramente não sabia. Mas sentia algo diferente quando pensava naquele beijo, e depois descobri sobre os sentimentos dele e tudo explodiu, foi a experiência mais confusa da minha vida.
— Espera aí, sentimentos dele? — Jungkook juntou as sobrancelhas em confusão, mas um momento depois já as erguia de volta para cima, como se uma lâmpada de compreensão acendesse em cima de sua cabeça — Ah, claro. É claro. Pensei que não era mesmo comum o jeito como ele ficava te olhando desde o dia que nos conhecemos. E na viagem, quando resolveu abrir a boca, deixou tudo ainda mais claro. Acho que eu sou o idiota da vez.
Balancei a cabeça em negativa rapidamente, desejando que ele não seguisse por esse linha de orientação, todas menos essa.
— Você não é idiota — afirmei, convicta.
— Não, mas sou devagar. Burro, até. Eu só… — ele abriu a boca para dar mais argumentos, mas logo a fechou. Abriu e fechou de novo. Por fim, suspirou e disse: — Acho que vou nessa, .
Então, começou a caminhar para a porta, sem mais perguntas, sem mais reclamações ou alegações, sem uma despedida.
— Jungkook, calma aí — pedi, fazendo-o se virar antes que chegasse à porta — Eu falei sério quando disse que nunca quis te machucar. E me perdoa não ter abrido o jogo antes, eu só… Eu não sabia o que fazer. Jaehyun viu a gente se beijando na praia naquele último dia e isso me fez mal. Também fez mal para ele, de certa forma. Talvez ele não esteja tão aberto a uma conversa assim.
Falei a última frase com toda a sinceridade e tristeza que eu esboçava automaticamente quando pensava no assunto. Não sabia como tinha saído, mas Jungkook pareceu relaxar os ombros e me olhar daquele jeito carinhoso de sempre, quando queria me consolar ou me via triste. Eu não sabia mensurar o quanto toda aquela situação pesava dentro de mim. E o quanto a verdade, sempre, era a melhor mas também a mais difícil das soluções.
— Eu… — ele começou, parecendo querer dar um passo à frente, mas desistindo na mesma hora — Eu não sei o que dizer agora, me desculpa.
— Tudo bem, não precisa dizer nada. — respondi, balançando a cabeça — Prefiro que você não diga, na verdade.
Preferia que não dissesse nada ali, agora. Nada que nos faria rever a nossa amizade. Nada que nos fizesse descartar os últimos dois anos, as risadas, os vinhos e os filmes ruins. Nada que o fizesse repensar as noites de apoio ao trabalho mútuo e me fizesse repensar se eu seria corajosa o bastante pra enviar alguma mensagem amanhã.
Não. Eu não queria repensar sobre o quanto o conceito de amigos e amor chegava a um limiar. Não queria que isso tivesse o poder de estragar alguma coisa. Não queria ter que assistir isso.
Jungkook colocou a mão na maçaneta e se virou em minha direção, abrindo a boca pela última vez, em uma última tentativa de dizer algo, mas nada disse. Apenas abriu a porta e saiu corredor afora.

Jaehyun's POV

🎧 Dá o play:

HARD KNOCK LULLABY – Noah Guy


Dois carvalhos se exibindo na TV não traziam inspiração nenhuma.
O único ponto interessante desse programa banal sobre turismo, era a enorme igreja no centro de um vilarejo. Fora toda a arquitetura deslumbrante e as duas facetas que expressavam tranquilidade durante o dia e obscuridade medonha à noite, o lugar que a rodeava merecia algumas olhadas a mais. A câmera não estava interessada o bastante em registrar todo o verde da parte de trás, o poço de pedra à esquerda, a forma como a luz do sol batia nos vitrais até formarem desenhos no chão.
As sombras do lugar pareciam trazer um acolhimento sinistro, algo que me faria querer ficar e querer correr ao mesmo tempo, mas definitivamente mexeria com alguma coisa aqui dentro. Traria o estímulo que eu tanto precisava. Bagunçaria o que já estava bagunçado, porém, de uma forma um tanto mais… Poética. Tanto de noite quanto de dia.
A imagem daquele arcabouço de pedra era a figura perfeita da dualidade de todas as coisas vivas e não vivas. A dualidade das situações — o lado bom e ruim que existe em cada elemento existente no mundo.
Rabisquei mais uma linha no papel, tachando uma frase inteira que provavelmente iria para o lixo.
Ser brega era muito diferente de ser poético, cara. Lógico que era.
Parecia que eu me encontrava no ponto bem entre essas duas coisas.
O violão pesava em cima do meu colo. Tinha perdido as contas de quantas horas se passaram em que ele estivera ali, no mesmo lugar. Eu dedilhava vez ou outra em movimentos soltos, sem propósito. Meu raciocínio não conseguia mais traçar uma linha reta entre dois pontos. As únicas coisas eram: Hmmm… Thank God I’m not a realistic… Hmmm…
A letra estava incompleta. A melodia era medíocre. Mas, de fato: aquele era o caminho. Ou ele estava ali, escondido naquelas linhas tortas e palavras incompreensíveis. Mas estava ali.
Olhei para o rabisco com impaciência. Não gostava de descartar totalmente alguma coisa. Sempre tive uma terrível impressão de que tudo poderia ser reaproveitado, mesmo que, naquele momento, ainda não conseguisse achar sentido para juntar uma frase na outra escritas avulsamente pelo caderno.
You smell so good, don’t need perfume… Heels over head in the bathroom…
Estalei a língua. O que isso queria dizer? Eu poderia deixar de pensar em por dois minutos para que as palavras que escrevi pra ela fizessem mais sentido?
Larguei a caneta, recostando-me novamente no sofá, tombando a cabeça para o teto. Já fazia 3 dias. 3 longos e tortuosos dias. 3 dias de silêncio e olhos inquietos vigiando o telefone, pensando se devia ou não, se podia ou não, se ainda dava tempo ou não…
Eu era pior nisso do que jamais pensei. Aos 25 anos, descobri que não sei lidar com emoções fora da rotina. Descobri que é uma merda, às vezes, ser uma pessoa de rotinas!
Não tenho certeza de quanto tempo passei me martirizando em cima daquele sofá, nem se aquele programa de turismo era realmente de turismo geral ou apenas de igrejas, já que outras começaram a passar repetidamente pela minha tela, variando em formas e tamanhos, soando muito mais interessantes do que eu e minha tentativa de colocar para fora minhas frustrações comigo mesmo e sobre minha incapacidade de mover as pernas, quando o barulho alto da porta da frente soou como um soco no nariz.
Antes que eu perguntasse, ou me movesse, ou fizesse qualquer coisa, a pessoa já estava ali dentro.
— E aí — Jungkook cumprimentou em um tom grave e baixo, muito diferente de sua voz normalmente enérgica de supercomputadores. Coloquei o violão ao lado, vendo-o não me dar tempo de retribuir e já caminhar para a cozinha conjugada a alguns metros.
— Você pode entrar, claro — resmunguei, abaixando o volume da TV.
— Já falei sobre essa sua mania de merda de deixar a porta destrancada. Acha que é um cara comum, Jeong? — ele abriu a geladeira, puxando de lá duas cervejas guardadas na porta. A expressão séria ainda estava ali, completamente anormal.
— Aconteceu alguma coisa? — questionei, sem olhar pra ele, o que consequentemente significava sem pressioná-lo a me dizer a verdade, se não quisesse. Olhei para o relógio de pulso e constatei que eu só tinha uma hora e meia antes de voltar ao trabalho.
— Aconteceu — foi a única coisa que respondeu enquanto abria uma das garrafas na bancada e entornava o líquido para dentro de um jeito que pareceu um pouco indignado.
Ergui uma sobrancelha, esperando por mais. Nada veio. Apenas seus grunhidos entre um gole e outro.
— E? É tão grave assim que precisa ficar bêbado às 3 da tarde pra conseguir falar?
— Na verdade, sim. Um pouco — ele respondeu incisivo, agora caminhando de volta para a sala até parar na minha frente, com aquela mesma fisionomia de quando chegou, a que já estava me deixando confuso.
Mas então, Jungkook puxou todo o ar em volta e esperou dois segundos antes de perguntar:
— Quando pretendia me contar que beijou a ?
Silêncio. A expressão de Jungkook era mais séria do que nunca. Sem contar o teor retórico da questão. Ele não teria dito nada disso se não tivesse certeza do que tinha acontecido.
Mas antes que eu pudesse falar, ele continuou:
— Aliás, não, não, vamos nos aprofundar: quando pretendia me contar que é apaixonado pela minha melhor amiga?
Mantive a boca entreaberta, sem qualquer resposta na ponta da língua. Tudo que consegui balbuciar, depois de cinco segundos de embaraço, foi:
— JK…
— Ah, esquece, você vai se embolar todo e no fim a resposta vai ser sempre a mesma: eu não quis te magoar. Ah, vão se foder — ele estalou a língua, de repente se jogando no sofá ao meu lado, despejando novamente a cerveja goela abaixo — Adivinhem só: vocês dois me magoaram. E enganaram também, mas acontece, não é?
Girei o corpo em sua direção, apoiando um cotovelo no encosto do sofá.
— Como você soube disso?
— Como você acha? Aquele dia que você me viu na casa dela. Ela ficou muito abalada depois que você saiu daquele jeito, toda aborrecida e perdida. Acabou me contando tudo quando eu insisti.
— Ah… Ela te contou, é?
— É. E me contou mais coisas também.
Ele se virou de lado igualmente para mim, rastreando todo o meu rosto agora em busca do que dizer e da melhor forma pra fazer isso. Levou pelo menos um minuto inteiro até que conseguisse articular alguma coisa na cabeça.
— Eu não fazia ideia, tudo bem? Mas, que seja, aquele dia na praia… Eu beijei ela. Me declarei e tudo. E ela saiu desesperada dizendo que não era eu, não era eu, mesmo que eu não fizesse ideia do que exatamente deveria ser eu e disse que ia te encontrar.
Mantive minha boca fechada. Olhei para além dele, desfocadamente, mirando a porta, o cabideiro, o tapete de plumas que tinha insistido ao meu pai que não precisava. Só depois, voltei a olhar para ele. E não sei o que tinha naquele olhar, ou o que tinha no meu, mas senti um leve desconforto ligeiro tomar conta do pequeno espaço entre nós dois e umedeci os lábios, virando-me novamente na direção da TV.
A voz de se fazia presente à medida que eu me lembrava de suas palavras. Jungkook a beijou. Jungkook também tinha se declarado. Mas ela estava me procurando.
Disse que não era ele.
Pela primeira vez, senti uma agitação tão forte no estômago mesmo sem estar ao lado dela que quis loucamente levantar dali e dirigir até o apartamento que deixei, zonzo, há 3 dias atrás. Todos os meus instintos imploravam por isso.
Mas até eles teriam que esperar, porque a falta de brilho no rosto do meu amigo indicava ainda mais explicações a serem dadas.
— E você? — finalmente perguntei depois do momento excruciante de silêncio — Como se sentiu com tudo isso?
Seu rosto se virou parcialmente para mim, para logo depois olharem para a frente, ou fingirem olhar alguma coisa na outra extremidade da sala. Sua cabeça estava aprumada de um jeito que eu reconhecia como perigosa — um jeito muito parecido como me olhou naquela noite do boliche.
— Não sei dizer. Enganado? Sufocado? Perdido? Foram muitas coisas — ele deu de ombros. Algo em seus olhos estava afiado quando voltou a me encarar, mas não durou por muito tempo — Fiquei desesperado com a ideia de que me amasse e se afastasse por causa disso. Porque eu não… — parou, desviando os olhos, desistindo da abordagem de última hora — Enfim. Eu a amo também. Muito. Você a ama?
Agora foi a vez de eu me virar, olhando-o com total indecisão; não da minha resposta, mas em como ele reagiria a ela.
— O que…
— É, você não ouviu errado, tô te perguntando: gosta dela ou não?
— Gosto — respondi imediatamente — Gosto muito. Já faz um tempo.
— Ah, claro — ele riu pelo nariz, ironicamente. Imagino o que ele estaria sentindo: já nos conhecíamos muito bem, e mesmo assim deixei passar — Sinto vontade de te socar toda vez que me toco disso, mas tá tudo bem.
Deixei que um pequeno sorriso fraco escapasse de mim. Jungkook devia estar facilmente juntando todas as peças agora, se ligando nos mínimos detalhes que até eu mesmo deixava passar despercebido. Todas as vezes que fiquei encostado contra o Volvo, esperando ela descer para que fôssemos em 3 ou 4 até a casa do amigo mais próximo, desejando que ela descesse daquele prédio para ir se encontrar comigo, apenas comigo, para realizarmos os vários planos de encontros que eu certamente já tinha em mente, rodando várias vezes na minha imaginação.
— Em minha defesa, não era minha intenção que você notasse alguma coisa — respondi, igualmente dando de ombros. Ele bufou, e pareceu defensivo diante da minha declaração plácida, dizendo relutantemente:
— Que seja. Eu também gosto dela, tá legal? — ele baixou os olhos, e não soube que nome dar para aquela expressão — É o que eu sinto agora, mas… Não sei. Talvez ela esteja certa, ou talvez não, quando disse sobre os meus sentimentos.
— O que ela disse?
Jungkook deu de ombros, terminando a bebida e colocando-a em cima da mesa de centro frouxamente, aproveitando para apoiar os cotovelos sobre os joelhos.
— Nada que eu entenda agora. De qualquer jeito, não quero me meter nisso, entende? Não quero insistir em algo que já tá falido para o meu lado, eu sou um pouco adulto sobre isso, sabe? Posso escolher as minhas lutas — Jungkook se inclinou para mais perto de mim, semicerrando os olhos — E se olhasse pro jeito que ela falou de você naquele dia, veria que seria muita burrice entrar nessa batalha.
As palavras foram ditas com tanta naturalidade que não consegui me intrometer entre o silêncio que se seguiu depois, mais um de tantos, e mais um que me deixava com a estranha sensação de que estava ficando mais próximo; tanto de Jungkook, da verdade, e dos meus próprios sentimentos; medos, crenças, certezas. Próximo o suficiente para confrontá-los sem temor.
— Tá falando sério?
— Acha mesmo que eu me deslocaria de Itaewon pra vir aqui e mentir? Aliás, não faço isso nem quando vou mentir — ele ergueu uma sobrancelha, e tentei dar uma risada seca, mas sem desviar os olhos dos seus, sem deixar de fazer a pergunta implícita que eles gritavam naquela hora: ‘e então? O que me diz? Vai me ameaçar por querer a mesma garota que você ou vamos passar por cima disso como adultos?’ — Eu só não quero ser o terceiro cara sobrando no fim, entendeu? Com aquela música triste e os olhares de pena. Uma merda. Por isso não gosto de triângulos, eles são muito injustos.
— Qual é, você nunca assistiu Hometown Cha-Cha-Cha? — falei o nome de um dos melhores dramas já criados naquele país e voltei a esticar a cabeça para cima, um pouco mais tranquilo do que antes — Triângulos só são injustos quando os dois caras são legais.
— Que seja, é o que tá acontecendo agora, gênio. Mesmo que eu seja muito mais legal do que você.
Desta vez, o silêncio não teve vez. Rimos juntos pela constatação, porque aquele era o jeito que Jungkook sabia ser: divertido e resiliente, inabalável por situações que não vinham com o selo de vida ou morte.
No entanto, as risadas foram perdendo força à medida que eu fitava o pé direito do teto, e senti a mesma coisa vindo dele. Ficamos nessa por um tempo. O silêncio também era legal, às vezes. Ele dizia mais do que as palavras. Revelava as verdades dentro das dúvidas. Tornava as coisas ainda mais reais. Quem temia o silêncio, não tinha certeza o suficiente sobre si ou sobre a outra pessoa.
Eu tinha certeza sobre Jungkook. Sempre tive. E ali, me senti ainda mais conectado com ele, de um jeito que já sabia ser, mas que era sempre bom reiterar.
— Acho que fiquei um pouco confuso — murmurei, com minha voz baixa passeando pela sala. Para o meu crédito, sabia que ele estava prestando atenção, então não recuei — Sempre desconfiei que ela fosse apaixonada por você, mas quando entrou no meu quarto e disse aquelas coisas… Por um momento, achei que era um sonho maluco. Que ela tinha começado a sentir a mesma coisa e então não existia mais nada que me impedisse. Mas o tempo, sabe, o tempo…
— O que tem a porra do tempo?
Suspirei. Senti minhas orelhas ficarem rosadas, mas disse:
— Você vai me chamar de pragmático, mas acho que sou estável demais. Esses dias em Jeju foram um misto de impulsos e novos sentimentos, e tudo isso serviria pra encurtar o objetivo que eu tinha desde muito tempo: dizer a ela o que eu sinto. É algo que não mudou e duvido que vai mudar. Mas fiquei pensando se o sentimento dela por você também não mudaria — minha voz era um silvo, um sopro. Deus, por que era tão difícil assim falar sobre as inseguranças em vez de simplesmente imaginá-las? — Ela está apaixonada há tanto tempo que eu, e não é por mim. É difícil se desfazer de algo assim, do nada.
Jungkook arqueou as costas, virando-se para mim com o corpo inteiro, saindo de seu lugar. Sua expressão agora era cansada, com os olhos revirando nas órbitas de puro tédio.
— E desde quando tempo define alguma coisa nessa merda? Acho que a intensidade falou mais alto quando o lance foi vocês dois. Sabe? Todo esse lance de conexão. Infelizmente, vocês têm tudo a ver.
Suspirei. Olhando pra ele, pude enxergar verdade. Muita verdade e sinceridade daquele cara que eu conhecia há bons anos. Um cara que eu quis ser por um tempo, porque conhecia a mulher que eu amava de uma forma que eu queria conhecer. Estava perto dela quando eu queria estar. Eu queria ser Jeon Jungkook várias vezes nos últimos dois anos. E ali estava ele, dizendo que , na verdade, não queria um Jungkook; queria um Jeong Jaehyun, mesmo que eu não me achasse páreo pra ocupar esse tipo de lugar.
— Eu ainda não sei — me vi dizendo de repente, olhando para o nada encontrado no chão. Não sabia o que pensar. A realidade parecia boa, e ao mesmo tempo, assustadora. Mas de uma coisa eu tinha certeza: não queria que mudasse de ideia, se aquilo fosse mesmo o que pensava. Não queria que aquele violão e aquelas folhas de papel, recheadas de palavras para ela, saíssem de perto de mim. Pelo contrário, queria preenchê-los com cada vez mais dela, para ela. Queria, finalmente, parar de tentar deduzir o que as outras pessoas sentiam ou deveriam, ou iriam sentir, baseados no que eu mesmo queria ou fazia para mim.
Queria dar as costas para o medo e acreditar. Só acreditar.
— E se eu não for bom o suficiente pra ela? — a pergunta saiu em um sussurro intenso, avoado. Foi mais para mim do que para ele.
— Jaehyun — disse Jungkook, trincando os dentes — Você fica bem assim? Hesitando? Se trancando em casa e no trabalho, se contentando em cantar a música que fez pra ela olhando pra TV? Sai dessa, caramba — vi seus olhos revirarem mais uma vez enquanto ele se recostava — É assim que se perde as coisas importantes: hesitando. Ficando parado, sem ter certeza, com medo. Até quando vai ficar dando seus malditos passos pra trás, vivendo com precaução? Sai. Dessa.
Jungkook agarrou a segunda cerveja em cima da mesa, colocando-se de pé na mesma hora. Sem dizer mais nada, começou simplesmente a caminhar para a porta da frente.
— Vou nessa, sou um cara muito ocupado, sabe? E felizmente, rico demais pra continuar tomando essa cerveja vagabunda — com uma piscadinha, ele colocou a mão na maçaneta e a girou, mas parou antes de sair e voltou o rosto para mim — Tá na hora de se jogar de cabeça, grandão. A felicidade te espera. Mas antes disso, tranca essa porta, tá bom?


13 – Revés

Jaehyun's POV

🎧 Dá o play:

Slow Down and Chew – Isaac Lewis


Gostaria de saber o que o clima de Seul tinha contra os meus planos, de modo geral.
O fim do outono sempre vinha acompanhado de um céu escuro e pesado, cobrando a conta de cada mísero fio de calor feito durante toda a estação. Não me importava com a chuva ou o tempo mais gelado. Na verdade, não estava nem mesmo reparando direito no que estava acontecendo lá fora, porque estava ocupado demais encarando meu telefone em cima da mesa grande do estúdio, esperando que ele tocasse magicamente ou que eu mesmo tomasse coragem e ligasse para ela.
Eu queria ligar para ela. Melhor dizendo: eu definitivamente ligaria pra ela. Mas agora, precisava saber o que diria quando fizesse isso.
Meu coração não parecia pesar o quanto estava pesando. Tinha participado do ensaio e da reunião com os outros normalmente. Comemos bulgogi e rimos dos perrengues de Johnny no MET Gala. Conversamos muito sobre as novas músicas. Mas era incontestável meu olhar espichado para o celular. E, quando finalmente fiquei sozinho, era indiscutível que precisariam reparar o piso em que eu andava de um lado para o outro.
Se eu aparecesse em vez de ligar, seria melhor? Ou pior? Ela estaria com raiva depois do jeito que saí de lá? Me beijaria de volta quando eu a beijasse de novo? Deveria pedir permissão para beijá-la outra vez?
Parei e olhei para baixo, segurando algumas camadas de incertezas que não me deixariam agir e jogando-as fora. Andei até o telefone, olhando para a tela de bloqueio sem notificações relevantes até abri-lo e agir sem pensar.
Mas, por fim, acabei não fazendo nada, mas não como de costume.
— Ei, Jae — disse Taeyong, colocando a cabeça para dentro da sala — Tá na sua hora.
Fiquei parado por um tempo, juntando as sobrancelhas sem entender.
— Hora de quê?
— Da sua live, gênio. É a sua semana — Taeyong ergueu uma sobrancelha. Suspirei. Tinha me esquecido completamente — As coisas já estão prontas na sala. E é justo que você faça mais do que 10 minutos, tá legal? Não seja tão anti-social.
— Claro, vou tentar — brinquei, com uma risada ácida. Taeyong voltou a sair e eu olhei do celular para a entrada, infelizmente sem escolha alguma a não ser guardá-lo e seguir para a outra sala vizinha.
Quando sentei na enorme poltrona, não sentia vontade nenhuma de sorrir. Ou não sentia vontade nenhuma de estender aquilo por mais de 10 minutos. Mesmo assim, gravar lives e encontrar pessoas que realmente admiravam seu trabalho era uma das maiores terapias e recompensas que poderiam acontecer para um cara como eu. Faziam mais bem do que mal, é claro. Quando liguei a câmera, os comentários fervorosos começaram a subir e subir. Em algum momento, pensei ter ouvido a chuva começar a cair lá fora. Apontei para a janela, indicando a mesma coisa.
Em resumo, eu tinha pouco a dizer. Antes do lançamento do repackage, tudo era sempre um grande mistério, o que limitava muito o que podia e não podia ser dito, mas era legal falar sobre o que fiz no dia e mostrar os últimos discos que adicionei na coleção e as músicas que eu mais andava escutando ultimamente.
Quando cheguei nesse assunto, um certo usuário começou a sair na frente de todos os outros comentários, dizendo repetidamente “oi, oi!”, “oppa!”, “se lembra de mim?”. Juntei as sobrancelhas, tentando me lembrar como conheceria alguém que se chamava “bi-eun14”, quando um estalo da lembrança se tornou claro.
— Eunbi? — perguntei, e as confirmações vieram em forma de vários emojis acompanhados de um grande sim — Oh, Eunbi. Claro, me lembro de você. Como vai?
O chat virou um caos. Pessoalmente, não sabia se eu podia estar fazendo o que estava fazendo: reconhecendo um fã específico diante de tantos outros, que pareceram bravos de início, e logo a resposta de Eunbi se perdeu no meio de tantos outros cumprimentos e perguntas.
Porém, ela pareceu ter dito algo que conseguiu puxar uma multidão, dizendo apenas uma coisa: “e a música autoral?”, “que música autoral?”, “a música já está pronta?”, “oppa! Não acredito que ainda não mostrou a música!”.
Mordi o lábio inferior. Aquela não era bem a forma certa de fazer com que eu respondesse a alguma coisa, mas suspirei, entendendo que fazia parte do trabalho: pressão. Insistência.
— Música autoral? Vocês não perdem tempo mesmo.
“Oppa, você me prometeu, lembra?”
— Eu sei o que eu prometi, mas ela infelizmente ainda não tá pronta.
“Pois então canta o que está pronto. Tenho certeza que vai te trazer uma nova inspiração e aí vai poder terminá-la.”
Falar daquele jeito me deixou flutuando no ar por um momento, absorvendo o que podia ser verdade, e o que podia ser apenas ansiedade de pessoas alheias. Eu normalmente não deixava nem a minha própria afobação sair na frente dos meus projetos, mas hoje eu estava precisando realmente estender os meus minutos que devia à empresa. E, vendo que o papo da música nova já não era mais segredo, bufei, esticando-me na direção do violão que sempre era deixado logo ao lado da mesa.
— Tudo bem, vou acreditar que eu posso encontrar esse final com a ajuda de vocês — emano um sorriso gentil, e dedilho algumas notas que já foram repetidas e repetidas tantas vezes que meus dedos se moviam por conta própria.
Uma repetição que eu, sinceramente, não esperava que fosse me trazer nada novo, ainda mais porque e toda a situação que estraguei não saíam da minha cabeça.

The present is so unsatisfying
I wish I was materialistic
Excited for the future unfolding
Thank God I'm not realistic

O material nunca me chamou a devida atenção. Ter um amor platônico foge totalmente da concepção de realidade. E, por mais que sustentar uma condição dessas pudesse ser perigoso e, claro, totalmente vazio, me fazia sentir vivo de algum jeito, tranquilo. Gostava de manter meu coração aquecido com a simples visão de , gostava de fazer planos de contá-la o que eu sentia, mesmo que sempre tivesse certeza que existia um outro alguém na jogada e que, provavelmente, chegaria antes de mim.
Gostava de pensar que iria beijá-la. Que vou beijá-la. Que um futuro com nossos nomes juntos existia ou existiria, de alguma forma.

Heels over head in the bedroom
You smell so good, don't need perfume
I'm a tulip, you're the spring bloom
I'd be a fool not to love you

Fazia dois anos que a abracei pela primeira vez. E foi uma das únicas, antes daquele outro abraço animado depois da vitória do boliche. Nas duas situações, me olhou daquela forma assustada, como se estivesse quebrando regras e difamando culturas, e talvez por isso não tenha percebido minha postura estática e por pouco não escutou meu coração fazendo um escândalo no peito. Ganhei um abraço depois de vencer o Music Bank com a title no ano passado. E, desde então, quis melhorar ainda mais no trabalho, mais do que já fazia por mim.
Nos abraços, desejei que seu cheiro fizesse parte do meu dia a dia, e por um momento, desejei que nunca tivesse sentido aquilo. Porque desejar também doía. A consequência do desejo era sempre a frustração.

Headed down, I see green lights
Block after block, nearly sunrise
Rolling my way through stop signs

Contei a ela que sabia o nome do seu escritório quando o bar em Itaewon, que juntou nós 7 juntos quase nos mandou embora depois de muitas horas extras de expediente, e ela me disse que contaria seu cargo se eu explicasse o que era aquele desenho que eu estava fazendo no guardanapo. Fazia 3 meses que nos conhecíamos. Inventei que estava fazendo rabiscos aleatórios. Na verdade, estava tentando desenhar o seu pingente de nuvens, azul-marinho, assim como seus brincos, me dizendo exatamente sua cor favorita nos mínimos detalhes.

Pinned down by jealous minds
Heels over head in the bedroom
You smell so good, don't need perfume
I'm a tulip, you're the spring bloom
I'd be a fool not to love you

Fiz um grande “hmmm” antes de terminar essa parte. Foi quando percebi que estava ferrado e totalmente entregue à garota nova do grupo. Quando um sentimento muito louco de querê-la a um nível intenso tomava conta de mim e travava totalmente minhas ações. Quando eu me vi negociando com meus pensamentos ciumentos, que se transformavam em um bando de terroristas que foram devidamente trancafiados no canto mais escuro do meu inconsciente. Quando me perguntei o que era mais importante: mantê-la por perto e estando longe, ou estragar tudo de uma vez com a verdade — que nem sempre era o melhor caminho.
O terrorismo também morava na parte seguinte. Ela simplesmente não existia. Meus dedos deslizavam pelas cordas do violão, repetindo as mesmas notas de antes, voltando em partes específicas e estagnando-se na falta de uma parte final. A história incompleta. Um fim que eu precisava demandar, precisava criá-lo, resolvê-lo.
O fim da história dependia única e exclusivamente de mim.
Diminuí o ritmo das notas. Instintivamente, olhei para o celular de novo, desejando que o nome dela aparecesse no visor, desejando que um sinal do além me dissesse as palavras certas para terminar, mas isso era uma besteira. Todos os sinais já tinham sido dados. A fantasia e o imaterial estavam cansados de me ajudar. Agora eu precisava me afundar de vez na realidade.
Mas a realidade era simples e brutal: me deu tudo o que eu queria e eu fui um idiota. Me deu um sorriso sincero, conversas agradáveis, autenticidade até os ossos, linda de um jeito único, divertida em um grau que nem todos eram capazes de ser. Conhecê-la de um jeito mais profundo em Jeju me trouxe mais certeza e desespero por não tê-la, por não falar, não abrir o jogo, um tipo de sentimento que eu não tinha há muito tempo — pressa. Eu, finalmente, tive pressa de contar. De viver.
Mas todos os meus medos me deteram. Todo o pensamento de que ela poderia estar confundindo as coisas e, no final, fizesse não só ela, mas os dois sofrerem, transformou minha mente em um vórtice e me deixou parado quando disse aquelas coisas no camarim. Eu estava assustado. Louco, medroso, adiantando um futuro muito incerto, e coisas incertas não soavam convincentes para mim. Pular de cabeça no escuro não fazia o meu estilo, mesmo que, daquela vez, tenha sido uma das decisões mais difíceis que já tomei.
E, afinal, por que a tomei? Hoje, tentando cantar e completar a parte final da música, me senti ainda mais idiota do que quando deixei aquele camarim. Percebi que estava largando uma oportunidade única e perfeita de vivenciar uma das fases mais fodas da minha vida, por pensar em um futuro que tinha tudo pra não ser como o que planejei desde sempre.
Futuros planejados. Imutáveis. Essas coisas não existiam!

Yeah, don't ever change

Cantei, de repente, dizendo mais para mim mesmo, esquecendo por um instante de estar ao vivo para milhares de pessoas.

Stay the same, stay the same
That's the last thing I said
To you

Repeti a parte mais uma, duas e três vezes, me convencendo de que aquela era a verdade: eu não queria que mudasse, mas estava fora do meu controle. Porém, queria que soubesse daquilo: ela não precisava mudar, não precisava mais se esforçar, agindo como se tivesse que me reconquistar, sendo que ela já tinha meu coração desde muito antes, bem antes do que imaginava. E eu precisava que soubesse disso. Precisava que ela soubesse que tudo que eu mais queria era que ela continuasse a mesma, e que fosse a mesma comigo. Juntos. Finalmente juntos.
Arfei com o final, percebendo que a plateia estava certa: eu tinha acabado. Ela estava pronta. A música estava pronta.
Os comentários surgiam como balas, rápidos e incompreensíveis. Ainda assim, sorri e suspirei, alegre e distraído, bagunçando um pouco os cabelos e encarando minha própria imagem no computador.
— Vocês sempre sabem o que dizer — murmurei, ainda rindo, descendo a paleta pela corda mais uma vez, extasiado por dentro — Espero que tenham gostado. Eu ficaria triste se não gostassem, mas ficaria ainda mais desconfortável com a ideia de que outra pessoa não goste — suspirei, esquecendo-me da decência das palavras, da filtragem de informações. Sinceramente, que se foda. Hoje, que se foda.
Larguei o violão no mesmo lugar, com o maior sorriso do mundo, aproximando o rosto da webcam.
— Agora, acho que 35 minutos foram o suficiente. Prometo voltar e mostrar aquele desenho que vocês tanto pediram no mês passado. Mas agora preciso fazer uma ligação urgente. Obrigado, nctzen! Até a próxima!
Desliguei a transmissão, estendendo a mão para o celular imediatamente.

's POV

🎧 Dá o play:

Someone New – Ok2222, NVTHVN, Ivoris


Esperei por quase 3 minutos para que o senhor Kwon repetisse.
Ele não me mostrou qualquer intenção de fazer isso. Apenas permaneceu ali, parado, me encarando do outro lado daquela mesa larga, o cenho relaxado e as sobrancelhas estáticas, sem qualquer dificuldade de permanecer sereno depois de dizer o que acabou de dizer.
Deixei que meus pulmões tomassem o devido fôlego de novo. Estar sem respirar era como entupir meus ouvidos para a tal palavra que passou voando por eles agora há pouco. Meus olhos imploravam com força para o meu chefe: repita o que disse. Repita para que eu possa ter certeza que entendi. Mas sinto que não adiantaria de alguma coisa.
Quando ele folheou uma página avulsamente na mesa, foi um sinal claro de que a vida estava acontecendo e eu precisava acordar porque sim, era exatamente aquilo que eu tinha escutado.
— De-demitida?! — sussurrei, paralisada como uma pilastra. Virei-me totalmente para o seu rosto para que pudesse ver se sua postura mudava um pouco pelas minhas palavras. Eu falei errado, não falei? Entendi errado o que você falou, senhor Kwon, me perdoe, mas diga que não é isso.
Era como se ele estivesse ouvindo as últimas notícias de artefatos encontrados na Pensilvânia, algo repetitivo e sem relevância.
— É isso mesmo que eu disse, .
— Mas… o quê?! — tornei o tom de voz mais agudo, mais aflito — Como demitida?! Eu acabei de fazer mais de 12 horas extras nos últimos 3 dias! Achei rabiscos sem sentido nas pautas das reuniões que colocou para aqueles estagiários novos preencherem, planejei estratégias para os próximos 3 anos, calculei os ganhos diários com excelência…
— E conseguiu fazer todas essas coisas de forma errada — ele interrompe, repentinamente cansado. Com certeza estava esperando que eu surtasse, por mais que nem imaginasse o estado catastrófico que acontecia dentro de mim agora. Ouvi o som da chuva caindo lá fora e percebi que já era noite e eu deveria estar correndo para casa, mas adivinha onde eu estava? No escritório, tentando agregar algum valor para que aquele crápula reconhecesse — Você catalogou todos os gastos nas planilhas como uma criança de cinco anos. Diferenças ridículas de décimos, falta de atenção em sinais, somatórios bagunçados. Perdemos 3 milhões na bolsa por causa da vírgula que você tirou de todos os saldos desse cliente. Tivemos um prejuízo de 5 milhões no total, você tem ideia disso? Tem alguma ideia? — disse ele, agora certamente nervoso.
Trinquei os dentes com força. Era inevitável sentir raiva de mim mesma, depois do choque das revelações. Durante 3 dias, trabalhei como uma condenada, pedindo as benditas horas extras porque precisava de distração. Precisava gastar minha energia fora de casa, fora das garrafas de vinho e fora do torpor de uma desilusão amorosa. Era isso, apenas isso. O plano não era trazer meus problemas pro trabalho, não era encarar números e continuar pensando onde eu errei com toda a bagunça da minha vida, não era errar vírgulas porque achei que estava tudo certo, Jaehyun, realmente achei que você podia ser mais flexível, não era esse, não era esse.
Mas pelo visto, os inevitáveis também estavam a postos para foder com tudo.
— Tenho certeza de que essa é uma medida muito radical — e apontei para os rabiscos de contas que havia feito nas últimas horas, entregues em uma folha de papel muito bem organizada em cima de sua mesa. Confesso que não conferi, mas não costumava errar tanto duas vezes.
Pelo menos, não costumava.
O senhor Kwon apenas suspirou. Aquele era seu jeito padrão: entediado, impaciente, manipulador e aborrecido. Diversas linhas em jornais, artigos e revistas importantes o nomeavam como o grande orgulho de Seul na área da contabilidade e corretora, e por isso era importante para mim ser um pouco estimada por ele, o que tinha conseguido, pelo menos um pouco, desde que cheguei.
No entanto, eu sabia reconhecer os traços de alguém que estava com a decisão tomada. Kwon respondia alto e nervoso, com têmporas escapando da testa quando estava incerto sobre alguma coisa. Mas quando permanecia sentado, manso enquanto estendia a mão para sua pasta, totalmente alheio aos olhos esbugalhados e indignação das pessoas, era porque não lhe restava dúvidas.
— Não quero que entenda errado, — suspirou e, por um momento estranho, pensei que reconsideraria, mas sua postura não mudou absolutamente nada — Você foi uma ótima funcionária desde o começo. Trouxe conhecimentos valiosos, agregou na parte linguística, cultural, matemática, fez ótimos pontos e não é à toa que mereceu a promoção. Mas ultimamente…
— O senhor quer me demitir por causa dos últimos 3 dias? Eles não irão se repetir, eu garanto — interrompi, totalmente hiperconsciente da situação. Meu coração martelava dentro do peito, e meu sangue latejava de nervosismo. De raiva.
— Foram 5 milhões, . Nosso maior bote do último trimestre foi por água abaixo por causa de um erro minúsculo. Um erro que nos tira muitas vantagens no caminho para nos tornarmos a maior corretora de valores da cidade. E você sabe que sou o chefe, mas existem milhares e milhares de pessoas ao redor, e também acima de mim, diretamente ou não. Sinto muito, mas não podemos continuar com a senhorita — ele levantou os ombros, agitando-se um pouco pela explicação repetitória, mas logo se recostou na cadeira, dando claramente sua sentença final — Mas não se preocupe, você vai receber uma ótima rescisão, junto com uma carta de recomendação assinada por mim e que vai te abrir portas em qualquer escritório dessa cidade, e até mesmo fora dela. Já visitou Busan? Eles fecham ótimos contratos com os chineses, é uma ótima opção.
Permaneci parada, os dentes fechados tão violentamente entre si que estavam a ponto de machucar minha gengiva. Aquele homem estava tão bem, tão relaxado, que quase colocava as pernas para cima da mesa, negando implicitamente qualquer tentativa de negociação. Qualquer discurso não o afetaria de modo algum.
Olhei atentamente para o piso, sentindo o bolo no estômago se transformar em uma massa dura que subia até a garganta. Quis urgentemente colocar a culpa no meu azar. Colocar a culpa em alguma coisa. Mas, assim como era ruim ser portadora da síndrome de Murphy, também era ruim remoer os seus efeitos quando não se tinha mais nada a se fazer sobre eles.
Não sabia direito o que deveria estar sentindo. Humilhada, descartada, substituível… Sempre me achei talentosa na minha área, uma pessoa que não passaria despercebida por nenhum chefe até que eu mesma me tornasse uma, mas nada que sentia agora parecia familiar a mim. Nada que me trouxesse algo bom. Nada…
A frustração era o pior tapa na cara que alguém podia receber.
— Claro, senhor Kwon — soltei uma risada fraca, sem qualquer resquício de formalidade — Quero muito sair daqui e continuar vivendo à sua sombra, pra quem sabe assim consiga fazer três refeições por dia. É muita consideração da sua parte. Vai me dar cobertores e vales de sopas em preparo para o inverno também?
— Não seja assim, senho…
— Desculpe, Woo Suk, mas já comecei a me sentir não-parte de toda essa fortaleza. E, se fizer as contas, 5 milhões perto dos 700 que já angariei pra esse lugar são nada menos do que nada — me virei para a porta, pronta para seguir em frente enquanto o ouvi bufar de ódio por chamá-lo pelo primeiro nome — Não esqueça de tomar cuidado com as vírgulas. Adeus, Woo-suk!
.
Andei para fora, quase correndo, querendo desesperadamente me ver livre daquela sala, daquele homem e de todo aquele edifício.
Uma ardência no nariz adiantava o que estava por vir, mas eu seguraria. Eu sabia exatamente quanta pressão aplicar para que um choro estarrecido e vergonhoso não escapasse na frente de todo mundo. Uma montanha de pensamentos, fruto de uma ansiedade invasiva, queriam travar meus pés e me fazer voltar atrás, implorar, ficar de joelhos e pedir para que meu nome ainda continuasse sendo vinculado ao melhor escritório de contábeis do país, mas minhas pernas já atravessavam toda a extensão do escritório, passando por baias e baias até chegar na minha, um pouco maior agora e separada das outras — todas vazias naquele horário, é claro, porque eu era a única estúpida o suficiente para estar ali de livre e espontânea vontade.
Com raiva, prendi a respiração e puxei a caixa de papelão debaixo da mesa, jogando tudo que encontrei pela frente: minhas fotos, canetas, funkos, até mesmo meus post-its grudados no monitor, preenchidos com avisos e lembretes do que eu precisava entregar. Bem, não precisava mais. Também não precisava mais daquela pauta de reuniões e anotações sobre meu novo cargo, mesmo que sentisse claramente que fazia parte dele há muito tempo. Foi parar na lixeira mais próxima.
E então, apagando a última luz, saí sem olhar para trás.

☀️⛱️


Confesso que tinha me esquecido da chuva.
Os pingos eram grossos e violentos, encharcando as margens da calçada e transformando a rua em um mar de guarda-chuvas. Queria ter me atentado melhor à previsão do tempo, como sempre fazia desde que peguei aquela tempestade tenebrosa na Grã-Bretanha há quatro anos, mas me martirizar agora não ajudaria em nada. Ainda mais quando já tive erros demais apontados em uma única tacada há menos de 30 minutos. Não, obrigada.
Nem a chuva me faria continuar parada dentro daquele prédio. Rapidamente, eu já apertava os passos para o lado de fora, agradecendo aos céus por ter a recepção vazia e não receber os olhares surpresos e intensos sobre mim durante minha caminhada da vergonha. Acho que foi um último ato de misericórdia do senhor Kwon: sair sem ser notada. Ótimo. Foi legal da parte dele.
Mas não escapei do olhar tristonho do senhor Pyo, um senhorzinho de idade muito simpático da portaria, que realmente pareceu sentido quando viu a caixa de papelão nos meus braços.
— Oh, senhorita… — ele torceu os lábios com infelicidade. Balancei a cabeça imediatamente, demonstrando que estava tudo bem. Pelo menos ficaria. Consegui abrir um meio sorriso, cumprimentando-o com uma singela curvatura, a que ele aceitava e me ensinava corretamente, já que até nisso o sistema público coreano queria regrar. Não era tão ruim assim, no fim das contas; quanto mais baixo suas costas se curvavam, mais respeito queria demonstrar, e eu me ajoelharia de uma vez diante do senhor Pyo, se não fosse pela caixa tosca de papelão.
Com um último cumprimento, entrei na cortina de água, olhando exclusivamente para a frente. Não importava. O que era uma chuva perto de toda a água que estava por vir dos meus olhos, junto com o soluço que escapou da minha garganta, um fungar do nariz que só deixei sair assim que me vi longe o bastante, andando depressa no meio-fio, me perguntando loucamente para onde eu iria agora.
Meu ex-chefe havia conseguido me fazer ofendê-lo em centenas de línguas diferentes, e todas elas presas na minha laringe, presas por toda a minha insegurança, porque o susto repentino de me ver desempregada era muito maior do que a vontade de gritar. Meus olhos embaçaram sem esforço algum. A chuva me deixava estranha e patética, e eu precisava urgentemente ir embora, precisava urgentemente procurar um táxi.
Um táxi ou um Uber? Não sabia. Não fazia ideia de que horas eram. Não sabia onde estava meu celular. Não sabia se deveria ligar pra Sophie ou Jungkook. Não sabia o que fazer da minha vida daqui pra frente.
Me vi concordando, pela primeira vez, com a última frase da minha mãe assim que disse que pegaria um avião para o outro lado do oceano: Isso não é pra você. Deveria ter cursado Direito e ir ajudar na campanha do seu pai. Essa coisa de empresária de valores, certamente não é pra você. E sim, ela falou exatamente desse jeito. E isso me dava nos nervos. E aqui estava eu, concordando com ela.
E isso poderia ser considerado o fundo do poço que eu não esperava atingir.
Digo, eu sempre soube que não ficaria na Vostras & Co pra sempre. Nunca fez parte dos meus planos ser uma assistente ou diretora executiva por toda a minha vida. Mas a empresa comandada por aquele miserável formava linhas de contato muito poderosas. Era um lugar que colecionava relatos excelentes e tinha visões extraordinárias sobre o futuro e nas proximidades dele. Então sim, quando as coisas aconteceram de forma tão brusca e inesperada, fiquei ainda mais tonta do que pensei que ficaria quando finalmente saísse. Porque sempre esperei fazer isso por conta própria.
Eu ainda precisava fazer história ali, começar a montar uma carreira. Ainda não era influente o suficiente. Ainda não tinha conquistado uma patente que me abrisse portas para conhecer outros do ramo sem precisar estar acompanhada do senhor Kwon e suas milhões de pastas e fazer meu próprio caminho. Ainda não tinha atingido um nível onde pudesse pedir para sair porque aquele lugar não me cabia mais.
Eu ainda não tinha chegado nisso. E agora dificilmente conseguiria alcançar isso sozinha.
Pelo menos era isso que o meu pessimismo me dizia agora. O mesmo que deixava minha cabeça tão confusa, com pensamentos tão fodidos sobre o futuro que me fazia querer andar mais rápido, andar para mais longe, quanto mais longe daquele lugar melhor. Segurei a caixa com força em um braço, já completamente ensopada, e puxei meu telefone para conseguir ligar pra um Uber, ou para Sophie, qualquer coisa que aparecesse primeiro. Porém, a junção de andar rápido e, de bônus, distraída, não fazia parte do sucesso para pessoas como eu.
Sem aviso, o paralelepípedo também fez seu ataque pessoal da noite. Com um tropeço, gemi quando tive o corpo impulsionado para a frente, caindo de joelhos junto com a caixa, que fez um bum intenso ao cair no chão, assim como meu telefone, que despencou primeiro do que nós dois e deslizou para longe, capotando dezenas de vezes até parar.
— Merda — resmunguei, me levantando rápido para tentar driblar os estragos. No entanto, com poucos passos em direção a ele, me desequilibrei de novo, conseguindo me manter em uma perna, desta vez sem nada a ver com as deformidades da rua. Quando olhei para baixo, vi o salto descolado da bota, totalmente inutilizado sem tempo de uso suficiente para isso.
Tirei o sapato, encarando aquilo com certo choque. Soava como uma conspiração paranormal de todo o azar depositado no mundo. Eu tinha acabado de comprar aquela bota. Ou melhor: tinha acabado de pagar a maior grana naquela bota de couro.
Bufei, jogando-a no chão com raiva, com ainda mais ódio e vontade de chorar. Desejei, por um instante, ser aquela garotinha do Poltergeist e me deixar levar por uma luz misteriosa de dentro do meu armário, mesmo que fosse para morrer no fim das contas, mas quem disse que não aproveitaria o passeio até lá?
No entanto, nenhuma aventura desagradável onde se encontraria homens-mariposa e cães negros se comparou quando terminei de mancar até o telefone e o virei, observando a tela toda trincada e sem qualquer chance de que ela ligasse novamente.
Senti de novo os olhos marejando e a ardência na garganta. Não era possível. As pessoas passavam por mim, distantes, correndo da chuva, não se dando ao trabalho de olhar uma mulher agachada no meio da calçada, encarando seu sapato estragado e o celular quebrado na outra, totalmente alheia à realidade porque a dela tinha se transformado em completa lama na última hora.
O choro começou baixo enquanto encarei meu reflexo no telefone quebrado, uma analogia à minha própria pessoa. Como cheguei nesse ponto? Como virei alguém despreparada, sem ter a menor ideia do que fazer daqui pra frente? Como virei alguém que chegaria no ponto de não saber o que fazer com a própria vida?
Hoje podia ser considerado, inegavelmente, como o pior dia da minha vida. O pico dos arremates da síndrome de Murphy.

Jaehyun's POV

🎧 Dá o play:

Muse – Afro Nostalgia


Tentei o número pela quinta vez. Nada.
Apoiei o celular nos ombros enquanto tentava a sexta, guardando o violão e mais algumas folhas dentro do armário. A mensagem não chegava. A caixa postal indicava um telefone desligado. E comecei a me sentir ainda mais nervoso, a cada segundo que passava.
Mas minha hesitação estava sendo desnecessária. Tentei o número de Jungkook, mas ele também não dava retorno. Pelos meus cálculos, ou ele estava trabalhando ou dormindo, e preferi muito mais colocar minhas fichas na segunda opção.
Sem esperar muito, dirigi até o apartamento perto de Yongsan-gu, recebendo também a notícia: ela não estava. E a chuva caía de forma terrível.
No fim de tudo, disquei o número de Sophie. Ela atendeu com um grunhido depois de 4 toques.
— Não era pra mim que você devia estar ligando — disse, sem uma zombaria inicial, como sempre. Devia estar concentrada pintando as unhas ou pintando um de seus quadros.
— Eu sei, e é exatamente por isso que você foi o plano C. Cadê a ?
— Como assim cadê a ? Ela desapareceu? — Em um segundo, sua voz ficou mais aguda e perto do telefone, o que demonstrou que agora definitivamente tinha parado de traçar seus desenhos — O que você fez?
— Eu não fiz nada, Sophie. Não ainda — disse, revirando os olhos enquanto voltava para o carro estacionado do outro lado da rua — Quero ter a chance de fazer alguma coisa. Mas ela não atende o celular, ou melhor, a linha não completa. O porteiro diz que ela não está em casa, e vi que as luzes estão apagadas. Onde ela se meteu?
Sophie não me respondeu imediatamente. Fechei a porta rapidamente, bagunçando o cabelo e a camisa para me livrar dos poucos resquícios de água que peguei entre uma corrida e outra até a entrada. Quando pensei em pressionar a garota calada mais uma vez, ela soltou uma expiração antes de responder.
— Ah! Ela disse que estava fazendo umas horas extras. Mas isso foi ontem — respondeu, estalando a língua — E anteontem também. Não acredito que aquela garota está fazendo isso de novo.
— Hora extra? Mas são nove e meia da noite.
— Quando fala em hora extra, é praticamente um dia extra, Jeong. Ela não é como as outras mulheres.
Suspirei, impossibilitado de discordar.
— Tudo bem, vou ao escritório.
Ah-ah. Muito cuidado, Jaehyun. Não complica a vida da minha amiga nessa altura do campeonato.
— O que? Eu jamais prejudicaria ela no trabalho.
— Não estou falando do trabalho, esperto. Acho que você entendeu — agora ela quem suspirou, e repuxei os lábios quando soube do que estava falando — Afinal, decidiu pensar melhor?
Deixei escapar uma risada fraca, levando uma das mãos para girar a chave.
— Decidi parar de pensar, Vermont. E agora vou atrás do que realmente importa.
Desliguei antes que ela soltasse um grito. Foi por pouco.
Eu não sabia o que significava costurar o trânsito antes de realmente precisar fazer isso. Mas no momento, chegar até o bairro vizinho tinha uma importância magistral que nunca pensei que fosse sentir. Só queria saber se ela ainda estava lá, se aceitaria que eu a esperasse sair, se aceitaria a minha carona, se aceitaria um beijo e se me aceitaria por inteiro, no fim das contas.
No entanto, o edifício gigantesco e espelhado também estava apagado, denunciando um fim de expediente total. Franzi o cenho, pegando o guarda-chuva que tinha deixado preparado no banco de trás e estacionando bem em frente à entrada, passando pelas portas giratórias até a recepção.
Nada. As luzes amareladas do hall de entrada ainda estavam acesas, mas a movimentação era mínima, e atrás do balcão principal não tinha nada além de uma placa de fechado. Alguns poucos funcionários terceirizados finalizavam o serviço de limpeza do dia, e os seguranças se preparavam para um longo expediente noturno.
Mesmo assim, me aproximei de uma mulher que limpava as arestas do elevador, concentrada em algum som muito pesado nos fones de ouvido.
— Com licença, senhora — falei perto dos seus ouvidos, o que foi um alívio, porque ela logo se virou para o lado, arrancando os fones — O expediente do escritório já acabou?
— Aqui tem pelo menos 20 escritórios, filho, de qual exatamente você está falando agora? — respondeu, ligeiramente ríspida. Não sabia se era porque eu tinha interrompido seu trabalho ou seu metal pesado — Se bem que não importa, todos eles já fecharam uma hora dessas.
— A Vostras, ele fica em um dos últimos andares, eu acho. Ainda estão fazendo horas extras…
— Não, querido, todos os escritórios já fecharam, como eu disse. E sei da Vostras, aquele CEO Kwon já saiu faz uns 20 minutos, e ele é sempre o último a deixar o lugar. Onde já se viu, até parece que não tem família… — disse ela, voltando a colocar os fones e resmungar sobre princípios familiares para a porta do elevador, dando fim ao assunto.
Baixei os ombros, perdendo qualquer tipo de empolgação por aqueles instantes de frustração. Depois, comecei a ser tomado por uma certa preocupação, porque agora não fazia ideia de onde poderia estar e ligar para Sophie só a deixaria em um pleno estado de alerta.
Antes que eu decidisse o que fazer, parei na porta do edifício, pronto para pegar o celular e tentar o número de de novo, quando ouvi uma voz baixa e ruminante ao meu lado:
— Ei. Garoto — virei a cabeça, dando de cara com um senhor de pé, segurando um corpo grande café — Está procurando a senhorita ?
— Sim, ela mesma — arfei, respondendo imediatamente, me aproximando dele por baixo da cobertura — O senhor a viu?
Ele assentiu com a cabeça, e vi um sorrisinho delicado desenhar suas bochechas.
— Ela saiu há uns 30 minutos. Pobrezinha, nessa chuva. Não acredito que não a verei mais — disse ele, em um muxoxo — Uma demissão é sempre muito ruim, rapaz. Ela vai precisar de uma companhia.
Olhei para ele por pelo menos dois minutos inteiros enquanto digeria a informação.
— O senhor disse demitida? — minha voz escapou em silvo, o choque ardendo nos meus olhos. O homem apenas concordou, sem nenhum sorriso dessa vez — Viu pra onde ela foi?
— Naquela direção, bem ali — apontou para a frente, em direção à bifurcação que levaria a avenida principal — Acho que você ainda consegue alcançá-la. Não vi nenhum táxi passar pra lá.
Sem pensar, comecei a descer o degrau, agora genuinamente agitado, com expectativa. Virei-me para ele, cumprimentando-o como manda a boa conduta patriótica, e tentei dar um sorriso, que saiu mais murcho que esperava.
— Obrigado, senhor. Tenha uma boa noite.
Então, abri o guarda-chuva e andei rápido de volta para o carro.


14 – Término

's POV

🎧 Dá o play:

Selfluv – RICEWINE


Às vezes, eu gostava de ficar sozinha.
Quando eu era mais nova, existia uma luta interna dentro de mim que me impedia de falar o que eu queria. Tanto por meus pais, autoritários e robóticos, quanto por meus amigos, que também tinham pais autoritários e robóticos, mas, diferente de mim, obedeciam cegamente suas ordens. Fazer isso nunca combinou muito comigo. A ideia de liberdade era muito mais intrigante do que colocar meu futuro inteiro na mão de terceiros.
Por isso, era bom me isolar no quarto, no terraço ou em qualquer outro lugar onde eu pudesse segurar minha agendinha dos sonhos e registrar minhas palavras em um espaço onde não me censurariam. Em uma zona onde elas ficariam marcadas com um selo de importância, e não ignoradas ou tachadas com um selo de inconveniência. Era pra isso que existia meus momentos solo: um período de reflexões importantes sobre a minha própria vida e o que eu estava fazendo dela.
Mesmo assim, o banco úmido e gelado de pedra na beira do rio Han e minha garrafa de soju quente não parecia ser o melhor ambiente para uma meditação profunda do próprio caminho. Eu não poderia nem usar meus fones de ouvido para imergir em outra realidade, já que meu celular estava em frangalhos, assim como os pés descalços e sujos de lama, e minha maquiagem arruinada pelo choro humilhante há algumas quadras atrás.
Olhei atentamente para a água escura do rio, sentindo o álcool esquentar meu sangue para que eu não morresse de frio com as roupas encharcadas. A chuva já tinha parado, e agora a beira do rio estava infestada de pequenos animais trazidos pela correnteza forte do vento anterior. Entre a imensidão de verde da beira, vi alguns pombos pousando e depois alçando voo novamente, garças e urubus, baratas e outros pequenos animais. O rio Han era o rio mais importante do país e desembocava em algum mar longínquo fora de Seul, então não me surpreendi quando algum serzinho minúsculo de aparatos ainda menores andou sobre a superfície de concreto, procurando areia no tampo, e voltando logo depois para baixo da água, aparecendo vez ou outra para cima.
Pequenos animaizinhos perdidos na água doce, parecendo de brinquedo naquela altura, graciosos como eu me lembrava. Funguei uma vez, bebendo mais um gole.
— Sabia que aprendi bastante coisa sobre vocês na praia um dia desses? — falei na direção dos caranguejinhos, mesmo que estivéssemos seguramente separados por uma grade — É, um cara bem legal me contou. Em cima de uma pedra, rodeada de um set de campos e árvores de brócolis. E claro, o mar, é óbvio. Soube que vocês tem essa carapaça que protege que é uma beleza, e também se afundam bem pra se esconder do sol. O sol pra mim é meio que vida, mas com tudo que anda acontecendo, eu entendo vocês fugirem da realidade. Seria legal, sabe? Fugir. Recomeçar. Mas é meio difícil saber o que fazer primeiro — suspirei, encarando a garrafa verde em mãos, sentindo que eu estava procurando algo, mas não sabia exatamente o que — Pra nós, humanos, é sempre mais complicado. Existe burocracia para tudo. E se desprender das coisas é difícil. Vocês conseguem se desprender das coisas? — perguntei, e vi o exato momento em que um deles caminhou lentamente de volta para a água que batia nas pedras e se deixou levar pela escuridão. Nenhum deles surgiu mais — Eu queria ser um caranguejo…
— Sério? Queria mesmo?
A voz masculina veio e passou por um instante de susto. Me virei para o lado, sabendo com toda certeza que estava sozinha naquele parque à beira rio, porque em hipótese alguma tinha encontrado outra alma tão louca a ponto de se expôr na chuva e na brisa gelada. Mas então, ouvi passos além da voz, e girando a cabeça para trás, pude vê-lo se aproximando rapidamente, com um sorrisinho tímido enquanto carregava um guarda-chuva fechado na mão.
— Jaehyun? — minha voz saiu em um sussurro, fruto da minha garganta repentinamente seca e o de sempre: nervosismo latente que acompanhava sua presença. Mas hoje, minha primeira reação foi estar genuinamente chocada.
— Com tantos artrópodes legais, queria ser logo um que se esconde? — ele disse, continuando sua fala anterior, chegando-se até se sentar ao meu lado no banco de pedra, sem se importar de molhar a roupa — Acho que você combina mais com aqueles que foram feitos pra voar.
Pisquei os olhos várias vezes, sem desviá-los dele. Não tinha como. Era impossível ter um repertório imediato diante de uma surpresa tão escancarada. O que era o meu “o de sempre”, então? Sei que ficava nervosa na presença dele, mas geralmente conseguia dizer alguma coisa.
— É… O que faz aqui? — perguntei, ainda em voz baixa — Quer dizer, como me achou?
Ele deu de ombros, descontraído.
— Foi fácil. Uma melhor amiga e um porteiro muito legal. Que, inclusive, vai sentir muito a sua falta.
— Ah. Você foi ao escritório — baixei os ombros, me lembrando da expressão tristonha do senhor Pyo e me sentindo ligeiramente mais afetada pela situação. O álcool tinha feito com que eu não lembrasse dela por 10 minutos, e agora a chegada de Jaehyun tinha transformado todo o dia de hoje em milhares de hectares de nada, mas meus problemas pessoais ainda se manteriam firmes e fortes pelo resto da noite, não importava quantas vezes eu tentasse fugir deles — É, também vou sentir saudades do senhor Pyo. Ele era um dos únicos que não ficava fazendo piadinhas sobre o meu cabelo ou tentando adivinhar de que país latino eu vinha. A maioria era bem idiota, mas eu gostava. Era o emprego dos sonhos.
As palavras saíram um pouco cabisbaixas, mas sinceras. Jaehyun me encarou com atenção, como quem compreendia, mas então disse:
— Ser assistente não era o emprego dos seus sonhos. Muito menos diretora executiva — pontuou. Ergui o queixo para encará-lo. Às vezes, me esquecia do quanto tinha compartilhado com esse cara. E do quanto, aparentemente, ele sempre se lembraria — E sinto muito pelo que aconteceu. De verdade. Era visível o quanto você era talentosa demais pra eles. As pessoas se sentem intimidadas.
Soltei uma risada fraca, baixando os olhos para os meus pés descalços.
— Mas acho que agora você precisa, primeiro, ir pra casa antes que pegue um resfriado.
Não soube o que responder. Ele olhava para os meus estragos com um estranho carinho: a caixa capenga com minhas coisas bagunçadas, minha calça social suja de terra, o cabelo em estado de calamidade, e os vários exemplos que posso dar para explicar como pegar uma chuva te deixava.
— E se livrar disso por enquanto — ele continuou, agora pegando a garrafa meio vazia da minha mão e colocando-a de pé no banco, puxando a caixa logo em seguida e pondo-se de pé — Vamos. A chuva vai estar de volta daqui a pouco. No caminho, você pode me contar como vai abrir a sua empresa e as linhas telefônicas que vai ter que conseguir com aquele povo do Reino Unido que adora usar a Lei de Murphy na bolsa de valores.
Pisquei os olhos novamente, confusa em todas as células do corpo. Jaehyun sorriu com complacência, e abri a boca para dizer algo, mas só me levantei, seguindo ao seu lado até o carro estacionado na calçada, sentindo que aquele convite e cuidado tinham aquecido meu peito com muito mais eficiência do que o soju.

☀️⛱️


Eu estivera em um avião pequeno com minha mãe na primeira vez que passei pela Coreia do Sul.
Era diferente de tudo que eu já tinha visto. Pequeno, organizado, tecnológico nos mínimos detalhes. Guardava tanta história em cada esquina, tanto simbolismo e respeito à própria trajetória que me tocou de certo modo. Parecia tão bonito de uma forma sublime, diferente das grandes esculturas antigas que eu via nas encostas de colinas de calcário na Inglaterra. Como tudo associado ao futuro, a Coreia conseguia domar meu coração por saber juntar as duas coisas em uma visão potente e perfeccionista.
Naquela noite, quando eu estava, pela primeira vez em muito tempo, sem pressa para chegar em casa ou no trabalho, ou sem pressa para trabalhar em casa, pude observar de novo essas nuances pela janela do banco do carona, fitando as luzes do templo budista, o festival iluminado da ponte, as árvores perfeitamente enfileiradas rente às calçadas, até mesmo a correria das pessoas me era atraente de uma forma encantadora. E me sentir relaxada em um dia catastrófico como aquele não era algo muito… Comum.
Quando Jaehyun estacionou em frente ao meu prédio, percebi que até ele era diferente dos outros, em certos pontos. Era estendido e estilizado, assim como o hall de entrada, os corredores e o próprio elevador. Lugares em que eu passava todos os dias, e que nunca tinha levantado a mínima questão de parecer diferente, parecer único.
Até minha porta, de número 511, parecia uma silhueta misteriosa e elegante, e me senti ainda mais sossegada por saber que estava indo para casa, e que poderia, por um dia, fazer o que eu quisesse antes de me tocar novamente que estava sem emprego e sem um futuro certo por um tempo.
Destranquei a porta devagar, virando-me para ele com a expressão abatida, mas sem me importar com isso no momento. Sinceramente, não fazia diferença. Eu tinha certos motivos pra isso.
— Obrigada pela carona. Foi muito gentil da sua parte — falei, com um sorriso de canto. Ele não pareceu muito feliz. Parecia mais a sugestão de um agradecimento, algo fraco e sem expectativa. Jaehyun me fitou com aqueles olhos e sorriso bonito, olhando para dentro com naturalidade.
— Não se preocupe. Melhor tomar um banho quente — e então, ele avançou para dentro, tirando os sapatos na entrada — Vou preparar o jantar.
Fiquei parada. Quando vi, ele já estava caminhando para a cozinha, depositando a caixa em cima de um móvel de madeira com um espelho grudado em fita 3M. Jeong Jaehyun tinha simplesmente entrado na minha casa sem um convite e isso mexeu em todos os meus estados de alerta.
— Mas… — falei para mim mesma, até perceber que continuava estática no corredor, entrando em seguida rapidamente e falando mais alto — Acho que não tenho nada para o jantar. Passei os últimos 3 dias fazendo horas extras.
— O que você tem? — perguntou ele, juntando algumas embalagens de plástico jogadas de qualquer jeito na pia e colocando-as em um saco de lixo.
— Lámen — respondi, envergonhada. Várias das embalagens eram lámen. Um pouco de chocolate e vinho também, mas primordialmente lámen e comida congelada. Jaehyun olhou de mim para elas com certo choque. Conte a ele sobre suas vírgulas erradas, a vozinha interior me disse, mas ignorei. Jaehyun não precisava saber do meu caos mental, não quando já tinha visto.
— Se importa? — murmurou ele, com um levantar de ombros.
— Claro que não… — respondi firmemente, mas travei um segundo depois, sentindo um peso estranho no ar, um peso que se assemelhava a uma crença popular que esse país tinha impregnado em mim. Ah, certo, você vai comer lámen com um cara, só vocês dois, sozinhos na sua casa, sabe o que isso significa por aqui, não sabe, ? Você sabe!
Bom, ele também sabia. E mesmo assim, deu um sorriso, bem maior do que o anterior, e respondeu:
— Eu também não me importo — e juro que escutei algo sugestivo quando disse, mas não tinha saúde e nem paciência para criar fantasias hoje. Seu braço indicou um pequeno sinal para que eu seguisse em direção ao banheiro e não questionei. Já bastava meu olhar de panda e meu cabelo desgrenhado, eu não poderia nem fingir que o banho não era uma melhor opção.
Apesar de eu ter lidado com boa parte de todos os pensamentos ansiosos de antes, foi só debaixo daquela água quente que senti que eles estavam se esvaindo de vez, indo pra bem longe, um lugar onde eu não tivesse que vê-los pelo restante da noite. Havia muitas preocupações no agora que exigiam minha atenção para que eu não surtasse diante de um futuro incerto, e isso incluía um cara gato cozinhando lámen pra nós dois e o fato de que eu gostava desse cara gato, e também o fato absurdo de que esse cara gato tinha ido me buscar no meio da chuva enquanto eu chorava pateticamente no parque.
Pensar na sequência dos acontecimentos me deixava com uma ligeira vontade de não sair mais daquele banheiro.
Mas, diferentemente da de algumas horas atrás, coloquei o mesmo conjunto dramático de ficar em casa: a blusa grande e o shorts de pijama e saí para a cozinha, sentindo o cheiro da carne e do caldo de legumes bem acentuado, passeando por todo o cômodo.
A cena parecia melhor do que da última vez que ele havia feito aquilo: Jeong Jaehyun mexendo em uma panela, concentrado no macarrão enquanto lia algo em outra embalagem e mexia no cabelo quando se afastava. Era bom para apenas parar e olhar. Satisfatório, até. Parecia algo de outro universo, e eu não tinha vivido naquele universo durante o último ano.
Uma pena. Eu realmente não queria sonhar hoje.
— Você tá se esforçando muito por um lámen simples — resmunguei em divertimento, apontando para a panela em cima do cooktop. Ele ergueu os olhos e me encarou de cima a baixo como da primeira vez. Com aquele mesmo olhar de querer, mas que hoje eu afastava tudo isso, toda essa fantasia. Ninguém merece uma rejeição duas vezes seguidas. Eu podia aceitar sua gentileza sem me iludir.
— Você diz que não tem nada, mas se parasse pra procurar e pensasse em algumas combinações, veria que tinha bastante coisa — ele deu de ombros, apontando para as embalagens ao lado — Ovos, broto de feijão, um pouco de kimchi, um queijo que consegui salvar… Parabéns, vai conseguir comer um belo lámen japonês.
Sorri com satisfação, arrancando outro dele. Era difícil explicar como Jaehyun parecia ficar animado com a ideia de explicar tudo pra mim. E era difícil não me deixar levar por isso. Se ele iria sorrir, bem, eu estava dentro. Totalmente dentro.
— Tudo bem, Jeong. Tenho preguiça de ir ao mercado, mas também tenho de fazer uma bela refeição, não tem como me defender — dei de ombros. Ele balançou a cabeça.
— Coloquei um cobertor no sofá. Pode esperar lá até que eu leve a comida, não vai demorar.
Abri os olhos repentinamente. Jaehyun não pareceu acanhado ou coisa parecida pelo fato de ter pegado um cobertor. Os cobertores que ficavam guardados no meu quarto. No meu armário. Puxa, o que estava acontecendo com esse cara?
No entanto, apenas limpei a garganta e assenti, fazendo o que ele pediu. Colocando todos os fatos na mesa, a história parecia bem plausível. Eu estava com frio e tinha pegado uma chuva, caramba. Era só isso.
Quando me sentei, não demorou nem 5 minutos para que ele fizesse o mesmo, trazendo dois bowls e apoiando-os na mesinha de centro. Pegou um deles, assoprando levemente e depois estendeu-o para mim, sentando-se ao meu lado logo em seguida.
Puxei o controle para ligar a TV, mas ele também fez isso primeiro. Foi direto em um daqueles canais antigos que passavam clipes musicais mais antigos ainda e me observou por um instante pelo canto do olho, avaliando se eu realmente estava comendo.
Dei uma risada pelo nariz e comecei, ouvindo clássicos de Panic! At the Disco tocar baixinho, enquanto ele também enrolava alguns feixes de macarrão no hashi.
— Como você se sente? — perguntou, continuando sua fixação em me encarar.
Dei de ombros enquanto terminava de mastigar.
— Bem, eu acho — ouvi minha própria voz soar baixa e seca. Ele levantou uma sobrancelha, nada convencido. Limpei a garganta e ajeitei as costas: — Ok, vou ficar. Tínhamos uma viagem marcada para o Peru no mês que vem, então talvez por isso eu demore um pouco para superar. Mas vou ficar bem, eu prometo.
— Eu sei que vai. Uma situação dessas nunca vai ser o fim pra você.
Existiam centenas de franzidos entalhados na minha testa quando perguntei:
— O que quer dizer com isso?
— Que agora nada mais te impede de começar o que você quer — ele deu de ombros, simplório, como se a resposta estivesse piscando na minha frente, no formato de pássaros, macacos, homens e criaturas mágicas — Você, finalmente, vai ser a chefe.
Eu quis rir. Quis rir, acima de tudo, com descrença, com impossibilidade. Quero dizer, ele falava com tanta confiança, com entusiasmo nos olhos, como se aquele fato já estivesse escrito há milhares de anos e eu não pudesse fugir dele, independente do que fizesse ou acreditasse.
— Não é bem assim… — tentei, mas Jaehyun continuava com a mesma expressão tranquila, do tipo: é assim, sim. Sinto muito, mas é. Você sabe que é.
E acho que, no fundo, eu sabia mesmo. Era o tipo de coisa que sempre fez sentido, mas fazia sentido somente do ar. De um avião. Fazia sentido como algo distante, grande demais para ser visto do chão, ou distante como escondido no coração, escondido até de você mesmo. A verdadeira vocação que é esmagada pela vida adulta, com as responsabilidades, por outros sonhos que deixamos implantarem na gente.
Vendo que eu não era capaz de dizer alguma coisa agora, Jaehyun se levantou de novo, deixando o bowl em cima da mesinha de centro e desaparecendo na direção da cozinha. Em dois minutos, ele voltou uma caneca, que cheirava ligeiramente muito bem — algo parecido com limão e outras ervas — e depositou-a também na mesinha, voltando-se para mim com um sorrisinho.
— E a versão fêmea do Jordan Belfort não pode se dar ao luxo de ficar doente.
Agora foi a minha vez de largar a minha comida. Olhei para ele, para o chá, para o lámen, a TV, a música, as luzes baixas, o cobertor e toda a atmosfera parada ao lado dele e, sinceramente, soltei uma expiração tão pesada que poderia ser claramente vista como aborrecimento, mesmo que não fosse.
— Por que tá fazendo tudo isso? — perguntei, agora parecendo explicitamente consumida pelo dia. Não era hora de escavar meu cérebro para confundi-lo, não hoje, Jaehyun, não hoje.
Ele não se encolheu com minha reação. Pelo contrário, parecia que eu tinha feito a pergunta premiada da noite.
— Você disse que eu sempre estava ali pra te salvar — levantou os ombros, descontraído — Acho que só tô fazendo meu trabalho.
— Não tô entendendo — fui incisiva, também usando meu melhor tom óbvio — Não é como se, pessoalmente, sempre fomos assim. Não é como se você não soubesse de nada. Você… Aquele dia… Arr. Não tô entendendo.
Isso era ridículo. Chegar ao ponto de dizer essas coisas era mais ainda. Mas sim, quando se tratava de Jeong Jaehyun, era responsável deixar claro que nutria certos sentimentos profundos por ele e, exatamente por isso, interpretava as coisas de uma forma errada.
Mas, depois de um segundo, percebi como essa atitude poderia parecer extremamente ingrata em primeira mão, então me apressei em me retratar:
— Quer dizer, eu sinto muito, eu não…
Foi quando ele simplesmente sorriu e se aproximou de mim, de um jeito abrupto e repentino, descansando suas mãos enormes em cima da minha bochecha carinhosamente.
— Desculpa ter assustado você — sussurrou, e senti seu hálito quente passear por toda a extensão do meu rosto — É que eu precisava dizer algumas coisas, mas quando vi, já estava agindo antes de falar. Agindo como eu queria. Mas queria que soubesse sinceramente: você sempre significou sorte pra mim, — ele se aproximou um pouco mais, mas sinto que não estava prestando atenção. Um bater de coração frenético, estranho e simétrico, bagunçava minha cabeça — Esse sorriso, essas marquinhas. Sinto que te observei de longe por tempo demais. Te amei de longe por tempo demais. Tô cansado disso.
Normalmente, era possível que eu estivesse totalmente trêmula e feliz, mas no momento, só conseguia me sentir confusa e um tanto desorientada. Claro, também trêmula, mas acima de tudo embaralhada, e por isso, não poderia desistir até entender.
— Você quer dizer que… — comecei, e minha garganta seca deixava minha voz grogue.
— É isso que você ouviu. Eu quero...
— Não, não! Não diga — falei em um ímpeto, afastando-me um pouco para trás no sofá, abrindo os olhos de choque quando entendi tudo, detalhe por detalhe.
Foi a vez de Jaehyun ficar confuso, levantando a mão que estava no meu rosto com preocupação se tinha feito algo errado.
— O que foi? — perguntou.
— Não diz! Espera! — arfei, agitando os braços enquanto respirava fundo. Não acredito que isso está acontecendo, não acredito… — Olha o meu estado! Como quer se declarar pra mim assim? Eu tô um caco.
Ele parou por alguns segundos antes de soltar uma gargalhada, a mesma que tinha me chamado a atenção da primeira vez, tão autêntica e serena. Meu coração já tinha esquecido de bater normalmente, e agora fui transportada para 48 horas de carnaval em Salvador.
— Pra mim você tá linda.
— Não, não! Preciso fazer isso direito.
Em um impulso, me aproximei dele, respirando fundo várias vezes e me certificando de estar olhando bem em seus olhos.
Centenas e centenas de imagens passavam diante de mim naquele momento. Não queria pensar no que estava fazendo, apenas me lembrar de que precisava fazer. Mesmo que não fosse dar em nada. Mesmo que ele estivesse brincando com a minha cara.
— Jeong Jaehyun, sei que sempre fui uma completa pateta na sua frente e sim, sei que era claramente apaixonada por outro cara, mas é isso, tô completamente apaixonada por você. Deitada, deitadíssima, como diria no meu país. Você aumenta e abaixa a minha pressão na mesma intensidade, e isso é perigoso, sabia? Muito perigoso. Ainda mais quando acabei de perder meu emprego — falei com uma careta. Ele me fitou com curiosidade — E, por mais que eu ainda esteja confusa com tudo isso, sei que podemos nos conhecer melhor. Eu quero te conhecer melhor. Saber cada detalhe que nunca soube e que sejam exclusivos pra mim. Quero saber tudo sobre você.
Ele pareceu abismado com a precisão. E em alguns instantes, pareceu também entender a atitude. Era uma forma tosca e simples de substituir aquele dia da viagem. Era uma forma de fazer uma declaração exclusivamente pra ele, com o nome dele, olhando diretamente em seus olhos. E daí ele sorriu, um sorriso matemático em sua perfeição.
— Eu vou adorar te contar.
E sem mais nenhuma falha de simetria, sem a terrível interferência de Murphy, ele colocou as mãos no meu rosto e se aproximou diretamente para me beijar, ativando os famosos fogos de artifício do inconsciente e dando um significado novo para todos os finais que considerei felizes durante toda a vida.
Mas a última coisa que eu esperava que me atingisse, além do impacto emocional, fosse a grande onda de irritação no nariz, que fez com que eu me afastasse de Jaehyun e espirrasse dentro de minhas mãos, fungando logo depois e sentindo a coriza enfraquecer os olhos e a testa.
— Que droga — murmurei, e quando o olhei, ele riu, me fazendo rir também, o que era melhor do que eu esperava. Jaehyun se aproximou, passando os braços ao redor de mim enquanto me dava um beijo delicado na testa, e afundei o rosto em seu peito, sentindo novamente a irritação para mais um espirro.
E ele veio outra vez, mas continuei rindo porque nem isso apagaria a aura surpreendente da situação. Não dissiparia o fato de que achei que o dia de hoje fosse o mais azarado de todos, mas acabou dando uma virada brusca no final, que ainda estava digerindo e aceitando como sendo um dos melhores.
E essa era a verdadeira lei de Murphy: tudo que tiver de acontecer, vai acontecer! Matthew McConaughey sempre soube melhor das coisas. Muito melhor.


Epílogo

1 ano depois


Em dois segundos, a fachada apareceu por cima dos pinheiros do quintal da frente.
Porque sim, agora existiam pinheiros, arbustos, um balanço em formato de pneu e todas essas coisas que foram propositalmente melhoradas depois de uma reunião misteriosa envolvendo a 97 line e um proprietário muito rico que tinha cedido aquela mesma casa no feriado do ano passado.
Olhei para Jaehyun ao volante no mesmo instante. Ele me respondeu com um sorriso de entendimento. Perto de uma moita grande, existia um canteiro de flores azuis e amarelas, e outros brotos coloridos que logo iriam desabrochar e deixar a frente ainda mais bonita. Flores de inverno, quem diria. Aposto que a ideia tinha sido de Yugyeom. Ele gostava de tudo ao contrário.
Por isso mesmo o encarei pelo retrovisor interno, vendo-o constatar o que eu já imaginava: sua ideia que tinha ganhado vida, a repaginação distinta para um feriado de primavera.
— São bonitas, não são? — ele deu de ombros, apontando para a direção das flores à medida que chegávamos mais perto.
— Aham, são lindas. Sabe que nunca vai vê-las pessoalmente se não vier pra cá em dezembro, não sabe?
— Vir pra cá em dezembro? Tá maluca? Não gosto do frio de Seul, que dirá o de Jeju.
Arqueei as sobrancelhas, rindo com escárnio. Ele me fitou com aquele tipo de olhar condescendente que poderia ter causado discussões quando eu era mais jovem e me irritava com facilidade, mas ali, agora, não existia nada mais que eu quisesse do que pisar novamente naquela casa e tirar os sapatos para andar naquela areia logo à frente.
— Se o proprietário descobrir o que você pediu pra plantar lá nos fundos, acha que ele vai ser bonzinho e não nos denunciar? — Jaehyun girou o volante para a primeira vaga de estacionamento, bem atrás da Land Rover de Mingyu e muitos minutos à frente da Mercedes surpreendentemente lenta vindo atrás.
Yugyeom apenas deu de ombros, indiferente.
— Eu não tenho mais nenhuma licença pra perder.
— Gostei dessa resposta — murmurei, desatando o cinto. Jaehyun desligou o rádio e suspirou.
— Ele não ia levar nem dois segundos pra chorar e implorar que o cara aceitasse seu suborno.
Soltei uma gargalhada enquanto Yugyeom refutava a declaração de Jaehyun com palavras obscenas e gestos agitados. Quando saímos do carro, vi Sophie discutindo baixinho com Mingyu sobre não ter trazido malas tão pesadas assim, e que se ele tinha nascido com mais de 1,84, era porque tinha perfeita capacidade para fazer aquilo.
Em contrapartida, Jaehyun andou rapidamente até o porta-malas, agarrando todas as bagagens junto com Yugyeom à medida que a Mercedes finalmente estacionava na outra vaga, tremendo com o som de Justin Bieber e também com os gritos raivosos de Eunwoo enquanto pedia para que Jungkook desligasse aquela porcaria. Palavras dele, não minhas.
— Não é só porque não tem ninguém em um raio de vários quilômetros que você precisa estourar meus tímpanos com a porra de Baby.
— Não tem uma casa sequer que não tenha tocado Baby nesses últimos anos, para de reclamar.
— Ah, pelo amor de Deus. Eu não vou voltar com você! — Eunwoo bateu a porta do carro com certa força, andando a passos pesados para a parte de trás, bufando como um touro. Escondi uma risada quando Jungkook também sorriu, estarrecido. Nossos olhares se encontraram logo depois.
O sorriso era equilibrado. Acenei imediatamente, recebendo outro de volta. Ele apontou para Eunwoo com uma careta engraçada, e eu fiz um sinal afirmativo para concordar e, se ele entendesse, mostrar que eu estava completamente do lado de quem não merecia escutar Baby em nenhum momento da vida.
Depois de um tempo, já era perceptível os gritos e cumprimentos de todos que se encontravam, com a voz de Mingyu se sobressaindo ao gritar as orientações sobre onde posicionar as malas no centro da sala. Peguei duas dos braços de Jaehyun, mesmo que ele protestasse, e segui para dentro junto com os outros.
Quando viu que, pelo menos, a maioria estava bem ali, Mingyu suspirou, erguendo um dos braços.
— Tá legal, precisamos estar na casa do Jay em duas horas, então vamos ser rápidos.
— Vamos mesmo numa festa do Jay Park? — Eunwoo perguntou, puxando sua enorme mala para junto das outras com certa dificuldade.
— Não é o máximo? — Jungkook ergueu uma sobrancelha, entusiasmado.
— Vou morrer de sono em dois segundos — disse Sophie, e semicerrei os olhos em sua direção. Como ela sentiria sono no meio de uma colônia de rappers? Impossível.
— Vou te colocar pra dançar, amorzinho, não se preocupe — Mingyu estalou um beijo em sua bochecha rapidamente, e se voltou para os outros. Jaehyun passou um braço pelos meus ombros — Tudo bem, hora do sorteio!
— Precisamos mesmo de um sorteio esse ano? — Yugyeom levantou os ombros — Digo, eu não me importo de pegar o mesmo do ano passado.
— Claro, era bem escondido aqui no térreo onde não precisávamos ouvir suas aventuras pós-festa — Sophie fez uma careta. Yugyeom abriu um sorriso sacana.
— E quer correr o risco de escutar esse ano?
— Nojento.
— Tá legal, não importa, vamos fazer o sorteio do mesmo jeito. Quem sabe esse ano eu pegue o melhor quarto — Mingyu encarou Jungkook e Jaehyun na mesma hora, fazendo os dois também trocarem um olhar engraçado. Ele foi o último a saber da peripécia dos quartos ano passado, quando Sophie finalmente tinha processado tudo.
Por fim, ele tirou uma caixinha do primeiro bolso da mochila, balançando-a e estendendo-a para Eunwoo, que estava mais perto. Ele puxou um papel largo e verificou sua resposta.
— Quarto 2.
— Fala sério — Yugyeom revirou os olhos e recostou-se no assento mais próximo: uma poltrona com estampa de zebra.
— Beleza — Eunwoo sorriu com satisfação. Mingyu passou a caixa para mim.
Puxei um número e averiguei.
— Número 7.
Sophie sufocou um ronco. Jungkook riu abertamente. Mingyu fechou a cara completamente. Eu continuei confusa.
— Mandou bem, — Jaehyun me deu um beijo na testa, rindo da cara do amigo, ainda desacreditado.
— Isso é um complô — Mingyu reclamou, balançando a cabeça.
— Menos um pra que eu cogite trocar. Valeu, Jae — Jungkook trocou um hi-five com Jaehyun, e a situação pareceu, finalmente, auto explicativa.
— Então, se vocês não se importam, minha namorada já fez a parte dela, então eu vou nessa aproveitar meus 10 minutos de descanso antes de sair de novo — Jaehyun lançou uma piscadinha no ar, começando a andar em direção às escadas, comigo ainda em seu encalço.
— Obrigado, ninguém merece a vibe apaixonada de vocês, é torturante — disse Yugyeom, já concentrado no celular.
— E ninguém merece saber o código para descanso, Jae. Que merda — agora foi Jungkook quem fez uma careta, jogando-se em uma cadeira qualquer enquanto tentava não rir. Mostrei a língua pra ele, agarrando a menor bolsa de mão e recomeçando a andar.
— Dez minutos é bastante coisa, precisamos arrumar as… — comecei quando nos afastamos o bastante, preocupada de repente com o tempo.
— Ei, tá tudo bem. Organizamos essas coisas em dois segundos. Amanhã — ele puxou meu queixo, selando um beijo rápido — Agora podemos descansar. Só isso.
Revirei os olhos, franzindo os lábios para não sorrir.
— Não me iluda, Jeong Jaehyun. Não temos tempo pra isso agora — falei, entredentes, destruindo qualquer plano devasso que podia estar passando por sua cabeça.
Ele apenas riu e estreitou os olhos.
— Acha que isso é um código? Estou falando de dormir. Literalmente, dormir.
— Não confio no seu literalmente dormir.
— Depois de dirigir por 4 horas, pode confiar, meu bem. É literalmente dormir — ele tascou um beijinho no meu nariz, destrancando a porta do mesmo quarto que foi seu no ano passado. O mesmo quarto que apareci do nada, e recebi o beijo incrível que me fez decolar completamente para outra realidade — Mas não posso dizer a mesma coisa depois da festa.
Soquei seu ombro e entramos no cômodo. A mesmice fez meu coração bater mais rápido. O jeito como ele se manteve nos mínimos detalhes me transportou para uma nostalgia tão recente, e tão gostosa de se sentir.
Jaehyun agora passou os braços em volta de mim por minhas costas, e meu estado antes aéreo, agora pousava devagar na realidade, uma que nunca foi tão boa, tão melhor do que o que eu tinha pedido.
— Vai querer dormir também ou trouxe o trabalho para o feriado?
Ele viu o iPad. Droga.
— Estou avaliando currículos. Isso dá mais trabalho do que eu imaginei.
— É só contratar alguém pra fazer isso — ele disse em meu ouvido, e como sempre, fazendo meu coração disparar — Alguém que vá deixar a chefe curtir uns dias de paz e sossego no paraíso antes de voltar à rotina.
— Eu já contratei, você sabe. Mesmo assim, gosto de ver os novos corretores por mim mesma — me virei pra ele, passando um dedo por sua nuca — Aliás, brincar com 10 milhões de dólares não é pra qualquer um.
— Gosta mais de mim ou dos seus 10 milhões?
— O que você acha? — dei um sorriso debochado pra ele, desviando de seu beijo com divertimento enquanto caminhava para o banheiro, ouvindo sua risada abafada atrás de mim.
— Você não existe, gata — disse com sarcasmo, bagunçando o cabelo — De qualquer forma, amo você mais do que 10 milhões.
Sufoquei um suspiro. Dentro do banheiro, tirei o celular do bolso, lendo as últimas mensagens de Hwang, meu assistente, que me mostrava o status do último pedido que tinha feito. Um objeto lindo, caro, fruto do sucesso que a Timeless andava tendo no mercado. Um anel lindo, grande e duradouro, totalmente propício para um pedido que também duraria uma vida inteira.
Coloquei a cabeça para fora, abrindo um grande sorriso quando disse:
— Eu também te amo, Jeong.


Fim.

Capítulos Anteriores | Página Inicial


N/A FIXA 📌: Olá! ESTAMOS EM MINI-FÉRIAS!
Muito, muito, muito obrigada por ter acompanhada essa história comigo. Que o feriado da 97 line tenha te trazido conforto e divertimento em dias difíceis e um pouco de distração da correria da vida. Espero que tenham gostado tanto quanto eu, desculpem qualquer coisa HUSHAUSH e voltem sempre pra mais histórias minhas <3


OLÁ! DEIXE O SEU MELHOR COMENTÁRIO BEM AQUI.

Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


comments powered by Disqus