01
Abril de 2002, Inglaterra
A luz do sol incomodou o sono do homem deitado com o rosto entre os travesseiros, fazendo-o apertar os olhos e puxar o lençol para cobri-los. Não fazia ideia de que horas deviam ser, mas certamente era cedo demais para que o sol atrapalhasse seu descanso. Alguém se remexeu do outro lado da cama, mas ele resolveu ignorar, queria dormir e queria que o sino tocando em sua cabeça silenciasse.
– O que temos para café da manhã. – Alguém sussurrou enquanto o abraçava pelas costas.
– Ainda é cedo para o café da manhã. – Respondeu ele, achou que se apertasse bem os olhos e imaginasse um lago calmo e tranquilo, voltaria a dormir mais rápido.
– Na verdade já são três da tarde.
– O que? – Ele abriu os olhos com dificuldade, piscando até que se acostumasse com a claridade, depois ergueu a cabeça, falhando em se lembrar quem era a mulher que o acompanhava. – Três da tarde? Que dia é hoje?
– Segunda. – A mulher respondeu, beijando-o as costas, mas ele a ignorou, arrastando-se para a borda da cama e se sentando.
– Que merda. – Xingou baixo enquanto coçava os olhos.
– O que teremos para o café? – Ela tornou a perguntar, rolando para mais perto dele.
– Eu ouvi falarem de café? – Uma segunda mulher se aproximou dos dois, afagando os cabelos dele. – O que vamos comer?
– Champanhe. – Ele respondeu ficando de pé, procurando sua cueca pelo chão do quarto. – Só tenho champanhe.
– Ele está atrasado. – Uma das organizadoras sussurrou para o chefe.
– Seu garoto se esqueceu do compromisso de hoje? – O presidente da McLaren-Mercedes questionou a Antoine François, ao perceber a ausência do sobrinho e piloto que o francês agenciava ao evento.
– Ele vai chegar. – O ex-piloto garantiu, esforçando-se para não transparecer a irritação que sentia.
O francês se afastou do presidente, escondendo-se da multidão que mais abaixo esperava a estrela do dia. Procurou então o sobrinho mais velho, o encontrou entre algumas mulheres, enfeitiçadas pelo poder do dinheiro que a família possuía. François voou até ele.
– Onde está seu irmão? – Indagou sem se importar em ser educado.
– Deve estar a caminho. – Dino deu de ombros.
– É bom que esteja. – François passou os dedos no bigode quase branco que ostentava. – Ou ele não vai ser o único a chorar.
O caos de uma vida famosa podia sempre ser melhor, era o que gostava de pensar, e também era sua justificativa para o estilo de vida pouco convencional que levava. Não era nenhum jovem piloto seduzido pela fama e dinheiro, muito pelo contrário, não sabia como era viver outra vida. Desde o nascimento já carregava o pesado e macio fardo de ter dinheiro o suficiente para uma boa vida. Filho de um empresário ítalo-americano, presidente de uma multinacional e de uma psiquiatra francesa, e os irmãos nunca haviam experimentado nenhum tipo de escassez além da emocional.
Com o início da carreira no automobilismo as prioridades haviam mudado um pouco, mas não o suficiente para que o estilo de vida do piloto fosse alterado. Ser um dos pilotos de Fórmula Um de destaque no campeonato gerava a ainda mais conforto e possibilidades. Não lhe faltava nada na vida pessoal, tinha muitos amigos, mulheres, festas, diversão, e na vida profissional ainda tinha um grande percurso a seguir, talvez por isso desse tanto valor a diversão e as coisas leves da vida.
A herança as vezes também podia ser um fardo, a psiquiatra francesa a quem chamava de mãe tinha um meio irmão por parte de mãe, um ex-piloto de Fórmula Um. E além disso, havia um legado de família, quando o primeiro e o primeiro François fundaram uma escuderia, dezenas de anos antes. A François- era mais que uma equipe na Fórmula Um, era o negócio de família. Depois da família e dos amigos, a equipe era o que tinha de mais importante. E apesar de cultivar no coração o sonho de guiar pelo time bordô, seu mentor e tio, Antoine François, e seu pai, Howard , o mantinham longe da escuderia. Para o tio François e seu pai, guiar pela equipe da família não seria uma boa ideia, poderia desencadear ainda mais comentários infelizes e questionamentos acerca do talento do piloto americano.
Por isso, mesmo de coração partido, dirigia por uma concorrente de sua equipe de coração, tentando conquistar o terceiro título mundial de Fórmula Um, vencendo seu maior e principal rival: Michael Schumacher.
– Se quer desperdiçar energia com bebedeiras e prostitutas, pelo menos tenha a decência de acordar na hora certa para seus compromissos. – Fora a primeira coisa que tio François disse ao ver entrando no prédio.
– Não eram prostitutas. – esclareceu, expirando entediado. – Assim você me ofende.
– Você ofende a si mesmo. – François cuspiu e em seguida apressou os passos em direção ao resto equipe.
– Aí está você. – O presidente cumprimentou o piloto com um abraço. – Chegou bem a tempo. Logo é a sua vez.
assentiu com seu sorriso arrebatador e se aproximou do pequeno palco montado na sede da escuderia. Era mais um dos milhares de eventos para motivar a equipe, dos funcionários da fábrica, até os que viajavam junto com a equipe para as corridas. Era o quarto ano de guiando pela West McLaren, e a luta pelo terceiro título estava acirrada, sendo alimentada pela mídia que insistia em temperar a rivalidade entre as duas escuderias e os dois pilotos.
– E sem mais delongas, como vocês, nosso campeão. . – O chefe de equipe, que fazia sua fala, anunciou, aplaudindo e sendo imitado por todos.
sorriu simpático e subiu os poucos degraus até o palco, sendo abraçado pelo chefe. O piloto aguardou alguns segundos até que a plateia silenciasse, para enfim começar a fazer o discurso que não havia preparado.
– Olá, equipe West McLaren-Mercedes. – Ele acenou e todos aplaudiram mais uma vez. – Bom, essa noite tive um sonho, sonhei que vencíamos o Schumacher e ganhávamos o campeonato na última corrida. – O grupo aplaudiu outra vez. – Mas fiquei triste quando acordei, porque percebi que era só um sonho. – disse e sua plateia se entristeceu com ele. – Porque eu sei que vamos vencer o Schumacher e a Ferrari bem antes da última corrida.
Com aquela fala, as pessoas que ouviam foram a loucura, aplaudindo e celebrando o bicampeão mundial. ainda permaneceu ao lado do chefe da escuderia por algum tempo, enquanto este ainda falava. O piloto apenas acenava para as pessoas, sorria e era sedutor, magnético.
– O que houve com você hoje? – Dino quis saber assim que os irmãos entraram no carro, a caminho do hotel.
– Só me atrasei. – deu de ombros.
– Atrasou umas duas horas. – Lembrou o mais velho. – Achei que François fosse te matar hoje.
– Ele é como um cachorro, aquele que tínhamos na fazenda. – riu. – Apenas faz barulho. Eu disse que viria, estive aqui, não é? E as pessoas gostaram. Fui muito aplaudido.
– François fez de você um deus para eles. – Dino comentou.
– Alguém precisava ser, não é? – deu de ombros enquanto manobrava o carro, para que enfim tomassem a estrada até o hotel.
– É bom que eles estejam motivados mesmo, as próximas corridas vão ser difíceis. – Dino tornou a falar. – As previsões são de que a pista de Ímola favoreça o carro deles.
– Não traga seu negativismo para o meu carro, Alfredino. – pediu, rolando os olhos. – Venci na Malásia e no Brasil, vou vencer em Ímola e a corrida seguinte, e a seguinte, e a seguinte...você sabe como um calendário funciona.
– Não subestime seus rivais. – Alertou o irmão.
– Não me subestime, irmão. – enfatizou.
Dino afastou o olhar, não estava com ânimo o suficiente para continuar naquele assunto, então passou a olhar a paisagem que corria do lado de fora, enquanto o irmão acelerava no asfalto.
– Sabe, não vi o David Coulthard hoje. – Dino comentou, distraído.
– Ah. – se deu conta. – Até me esqueço de que tenho um companheiro de equipe.
– ... – Dino negou com a cabeça. – François já falou por horas com você sobre isso. Não devia agir assim com David. Embora pareça, a Fórmula Um não é um esporte individual.
– O que vocês queriam que eu fizesse? – ergueu os ombros. – O segundo piloto da Ferrari me ajuda mais do que o David. É como tio François diz, não há nada de bom que venha da Escócia.
– Será que eles renovam o contrato dele?
– Infelizmente, sim. – rolou os olhos. – Mais dois anos correndo com um peso de papel.
– ...se David não fosse bom, não estaria onde está agora. – Dino alertou.
– Dane-se se ele é bom, Dino. Eu preciso de um companheiro de equipe que seja do meu nível.
– Mude-se para a Ferrari, então. – Dino sugeriu.
– Não seria uma má ideia...– O piloto ponderou. – Com o mesmo carro nós poderíamos tirar a dúvida de uma vez por todas.
Abril de 2002, Ímola - Itália
Todas as câmeras e olhares se direcionavam ao recém-chegado, os jornalistas fotografavam e o único som que se podia ouvir eram o das máquinas fotográficas e dos flashes sendo disparados na direção do piloto. Estavam todos reunidos para as entrevistas que abriam o fim de semana de corrida. Muito já estava em jogo, apesar de a corrida em Ímola ser apenas a quarta do calendário. Crescia, alimentada por muita lenha e gasolina, uma rivalidade intensa e que certamente seria memorável, lembrada para sempre. O embate entre o quatro vezes campeão, Michael Schumacher, e o bicampeão, . O piloto alemão era mais experiente, mais velho, mas mesmo assim, amava o espírito competitivo que o americano havia trago consigo para o esporte.
A mídia e os fãs se deleitavam com os espetáculos que eram proporcionados pelos dois pilotos, tidos nos últimos anos como os maiores do esporte. Gostavam de dizer que era o Princícipe de Mônaco, devido as relações de com o principado, contra o Rei alemão. Cada corrida era ansiosamente esperada, os fãs faziam contas e mais contas, conferindo sempre quem estava na frente a cada corrida, e qual seria a chance de serem batidos.
Naquela corrida, em especial, todos os olhares estavam - como de costume - focados nos dois pilotos, mais especificamente em Schumacher. O alemão ainda tinha uma parte grande da mídia ao seu lado, salientando que alguém quatro vezes campeão não seria batido tão facilmente. Ao mesmo tempo, a fama de o precedia, era seu oitavo ano na Fórmula Um – começando como piloto reserva em noventa e quatro e tendo sua estreia em noventa e cinco -, e já contava com bicampeonato – em noventa e seis e dois mil -, quatro segundos lugares – em noventa e cinco, noventa e sete e noventa, noventa e oito, dois mil e um - e um terceiro – em noventa e nove. era novidade, era o recém chegado que parecia ter mais força no combate a Michael Schumacher.
Para as entrevistas, os jornalistas já estavam a postos, fotografando os pilotos que chegavam para participar, mas que iam direto para a antessala, fugindo dos flashes. já estava lá dentro, concentrando-se, andando de um lado para o outro, tentando se manter calmo e tranquilo, ignorando a agitação natural que o afligia. Mas quando o piloto ouviu o vozerio do lado de fora, inclinou-se para a porta para descobrir quem chegava, encontrando Michael. O alemão caminhava de modo arrogante, com queixo erguido e um suave sorriso nos lábios, atravessando a multidão de fotógrafos e jornalistas como se não fossem nada.
– . – Michael deu um sorriso torto após entrar na sala, cumprimentar todos e se aproximar de um frigobar, retirar de lá uma garrafa, beber um gole e só depois cumprimentar .
– Schummel-Schumi. – sorriu de canto, encarando o piloto com olhos cerrados, atento.
– Eu devia ter trazido lenços para você? – Michael zombou. O alemão sabia que ainda guardava rancor pelo campeonato do último ano, usar aquele apelido patético era sinal disso.
– Vamos ver quem vai chorar nesse final de semana. – aproximou-se um pouco do outro piloto.
– Isso, faça ameaças sem fundamento fora das pistas. – Michael falou e em seguida deu um longo gole em sua água. – É o único lugar onde você consegue soar pelo menos um pouquinho ameaçador.
não quis conter o impulso que sentiu de avançar contra o rival, mas fora impedido por Dino, que atento a tudo, colocou-se entre os dois. Enquanto ainda espumava, Michael sorriu e se despediu com um aceno de mão.
– Enlouqueceu? Quer mesmo arrumar uma briga aqui? Com aquele monte de repórteres lá fora? – Dino sussurrou, repreendendo o irmão.
– Eu devia ter dado um soco nele. – protestou, empurrando o irmão sem delicadeza, mas rumando para o fundo da sala. – Tirar aquele sorrisinho idiota do rosto dele.
– Ele está tentando te desestabilizar. – O mais velho alertou, entregando ao irmão uma garrafa de água ao se aproximar dele novamente. – A mídia gosta disso, as arquibancadas estão lotadas, e ele está se divertindo. Não cai no jogo dele.
– Tarde demais. – cuspiu, tomando metade da garrafa de água de uma vez.
– Escuta, é o que ele quer. Ele sabe que você é você, está usando as armas que tem.
– O que quer dizer com eu sou eu? – franziu o cenho.
– Bem, você sabe... – Dino hesitou, mas o irmão arqueou uma sobrancelha. – Esquentado, pavio curto, cede a provocação.
– Como eu devia ser? Um buda? Um homem de gelo? Que não cede a nada? – protestou.
– Não é isso. – Dino inclinou-se e apertou o ombro do irmão mais novo, olhando em seus olhos. – Escuta, só estou dizendo que ele já notou seus pontos fracos e está usando isso contra você. Seja esperto.
02
Abril de 2002, Nice – França
L'Ecole du Journalisme de Nice
Os estudantes se aglomeravam em frente ao prédio, assistindo à manifestação pacífica após a denúncia de mais um caso de assédio no campus. Estudantes com cartazes entoavam gritos e canções contra o assédio, a favor do respeito à mulher, e incentivando a expulsão dos envolvidos, embalados pelo som de tambores e outros instrumentos que davam ritmo a manifestação. Quase uma centena de estudantes estavam reunidas, assumindo a frente da manifestação e ocupando o prédio administrativo.
Vaias e gritos de protestos tomaram conta do espaço quando o reitor, junto a polícia do campus, se aproximara do grande grupo, tentando dialogar.
– Nós estamos aqui a favor do diálogo. – O reitor começou a dizer. – Não queremos que ninguém fique prejudicado. Entendemos a manifestação de vocês, estamos com vocês nessa luta, mas nossa luta não precisa prejudicar o andamento das atividades do campus. Não é assim que se resolvem essas coisas.
– Pela expulsão dos estupradores! – Alguém gritou e todo o grande grupo apoiou, entoando aquelas palavras, acompanhados pelo som dos tambores.
– Nós estamos abertos ao diálogo, queremos conversar com vocês, entender as demandas de vocês e explicar como esses processos funcionam. – O reitor tentou argumentar outra vez. – Por isso, estamos propondo que daqui saia uma comissão, para que nós, em conjunto, possamos nos sentar a discutir a situação do acontecimento da última semana.
Um grupo pequeno de estudantes, que parecia estar à frente do ato, trocou rápidas palavras e em seguida, um microfone, que era usado para agitar os alunos, fora passado para uma das estudantes.
– Senhor, nós não queremos mais horas de negociação, de diálogos intermináveis, onde apenas nos é dito que não há o que possa ser feito. – A estudante começou a falar. – Nós já nos reunimos com a administração, com a polícia do campus, com a direção, reitoria, e nunca, nada foi feito. Nós, estudantes, somos vítimas de assédio todos os dias, e não nos é oferecido qualquer apoio. No ano passado foram registrados pela polícia do campus, seis estupros, além de outros casos de assédio. Nenhum deles foi julgado, e em nenhum deles o agressor foi penalizado com qualquer coisa além de uma semana de suspensão.
O grupo presente no ato aplaudiu e assoviou após a fala da estudante.
– Apenas neste ano, esse foi o terceiro caso notificado de violência sexual dentro do campus. A vítima não tinha condições de vir as aulas todos os dias e encontrar o abusador sentado na carteira ao lado. – Ela voltou a dizer. – Não queremos palavras. Chega de palavras. Queremos atitudes. Queremos saber o que será feito com as novas denúncias. Queremos saber como os violadores serão responsabilizados.
Após outra longa onda de aplausos o reitor, antes de cabeça baixa, ergueu o olhar para voltar a falar.
– Certo, Lisa... – Ele começou a falar, já conhecia aquela estudante de outros atos daquela natureza e de outras.
– . – Ela o corrigiu, mantendo a postura ereta e firme de quando estava fazendo sua fala.
– Bem, ... – O reitor tossiu, tentando limpar a garganta. – Você traz dados que não são do meu conhecimento. Não sei de onde esses números saíram, então não posso responder sobre eles. – Disse o reitor, enquanto a estudante balançava a cabeça negativamente, e sorria incrédula. – Mas posso garantir que não houve nenhum caso que tenha chegado ao nosso conhecimento, que não tenha sido investigado e punido como se deve, segundo o regimento da instituição.
Antes que o reitor continuasse, um outro aluno entregou a uma folha, e a estudante interrompeu o mais velho.
– Peço perdão por interrompê-lo, reitor, mas há coisas de que o senhor precisa se lembrar. – Ela sorriu. – Setembro de dois mil e um, Charlotte Martin, aqui presente, o procurou quando a denúncia do abuso sexual que sofreu foi ignorado pela polícia do campus. A sua resposta, senhor reitor, na íntegra, abre aspas, infelizmente não há o que ser feito, uma vez que é a sua versão contra a dele, e não é possível provar quem está mentindo. Fecha aspas. – O grupo fez barulho outra vez. – Outra estudante, em junho de 2001, mesma situação, culpabilizada pelo senhor porque o estupro aconteceu durante uma festa. Nas suas palavras, era um ambiente propício para esse tipo de comportamento, e que a instituição não tem controle sobre o que acontece nas festas. O senhor deseja que eu continue, ou é suficiente?
– Eu gostaria de perguntar a senhorita, como teve acesso a essas informações. – O reitor tentou se defender. – As conversas dessa natureza com alunos é sigilosa, e por principalmente, eu não reconhecer nenhuma dessas falas.
– Reitor. – sorriu, inclinando a cabeça sobre o ombro. – Estamos numa faculdade de jornalismo, que modestamente, é muito boa. O senhor se surpreenderia com o potencial dos alunos daqui.
Com aquela fala, o reitor perdeu seus argumentos, e o som dos tambores se juntou aos apitos e os gritos com os nomes das estudantes vítimas de violência no campus. se juntou ao coro, largando o microfone com outra colega, e se juntando o grupo, ao lado de outros colegas de turma.
– Você vai entrar na lista vermelha dele, sabe disso, não é? – Camile, uma amiga sussurrou, entre um grito e outro.
– Achei que já estava. – deu de ombros. – O que eu poderia fazer? Fingir que não me importo? Que tipo de jornalista eu seria?
– Vivendo no limite assim, você vai ser o tipo de jornalista que é morta, presa ou processada antes dos trinta. – Camile alertou, mas sorriu.
– Não é tão ruim, daqui até os trinta consigo fazer muita coisa. – Brincou , erguendo um dos ombros, enquanto a amiga negava com a cabeça.
Camile e eram colegas de quarto, e ambas eram estudantes de jornalismo prestes a se formar. Faltava cerca de uma semana até a formatura, aquele talvez fosse um dos últimos atos que as duas participariam enquanto estudantes da L'Ecole du Journalisme de Nice.
– Vamos nos concentrar na entrada principal para continuar o ato. – Greta, outra estudante de jornalismo se aproximou das duas. – Vocês vem?
– Eu vou. – Camile assentiu.
– Precisou voltar para Aspremont ainda hoje. – lembrou-se, mordendo o lábio e conferindo as horas no relógio de pulso. – Meu trem deve sair em uns dez minutos. Se eu conseguir chegar à estação a tempo. – Ela sorriu. – Mas contem com meu apoio e energia, mesmo que a distância.
Despediu-se com um aceno, e se apressou em direção contrária à do aglomerado de pessoas no ato.
Abril de 2002, Aspremont – França
A viagem até Aspremont era mais rápida se feita de carro, mas amava fazê-lo de trem, mesmo que levasse o triplo de tempo. Amava ler no trem, acompanhando o movimento sutil e quase imperceptível dos vagões, deslocando-se rápido e devagar ao mesmo tempo. Amava a vista, as paisagens que não lhe era possível contemplar no dia a dia, ou se fizesse o mesmo trajeto de carro. Sentia-se muitas vezes, em Assassinato no Expresso do Oriente, livro de sua autora favorita, Agatha Christie. Às vezes, em suas fantasias, gostava de se imaginar um tipo de Miss Marple do jornalismo, desvendando crimes, encontrando informações escondidas, investigando situações perigosas.
No trem, enquanto assistia o outono deixar a paisagem dourada, gostava de ler os clássicos da autora inglesa, ou O Drácula de Bram Stoker, um dos seus livros favoritos no mundo inteiro. Amava suspenses, mistérios, histórias de crimes, e as vezes pensava que quando se cansasse do trabalho de jornalismo em campo, poderia se tornar uma dessas escritoras de crônicas, ou até mesmo, quem sabe, suspense.
A leitura atual, no entanto, não se tratava de nenhum clássico gótico, ou dos muitos clássicos de Agatha Christie, era Ernest Hemingway, lera recentemente O Velho e o Mar. Por quem os sinos dobram era um rapto da coleção deu seu pai, um velho francês metido a intelectual com gosto por literatura. O livro trazia a discussão os absurdos das guerras, principalmente as guerras civis.
Com a leitura do clássico de Hemingway, mal vira a viagem passar, e ao perceber, já estava em casa. Ou perto de casa. Da estação até a propriedade de família, isolada no campo, levaria cerca de vinte minutos de táxi, aproveitando o cair da noite.
Os pontos positivos de se viver naquela região era a paz, a natureza exuberante, a possibilidade de contemplar o cair da noite, o aparecimento das estrelas, o coaxar dos sapos, o som dos grilos e cigarras, as corujas. Era o equilíbrio perfeito de uma vida vivida à flor da pele. Durante a semana, em Nice, no campus, se empenhando no jornalismo que acreditava, apurando fatos que geralmente ninguém mais queria apurar, se colocando em situações de risco, enfrentando pessoas importantes. E nos finais de semana, de volta a Aspremont, com o pai, aproveitando a paz e o silêncio da natureza, quebrado apenas pelas músicas que constantemente os dois ouviam para perturbar a natureza pacífica.
O fim de tarde ensolarado se mostrava timidamente quando os raios quentes tocavam as pernas de , atravessando a janela de vidro e o calor dos raios mudavam de posição a cada curva ou buraco na estrada irregular, ou quando as arvores do caminho cobriam a estrada. Estava no banco de trás de um táxi que encontrara na estação de Aspremont, pensando sobre como seu lugar favorito no mundo, seu lar, parecia algum tipo de cenário onde são gravados filmes de monarquia, com seus castelos, pontes, casas antigas, seu campanário românico e barracas de madeira do século XVI.
Era como um retorno ao passado, muito anos atrás, uma viagem quase feudal, se não fossem as lojas, comércios e pessoas caminhando pelas ruas do centro de Aspremont, poderia fingir ter dormido e acordado em outro século.
Sua casa não ficava perto do centro, estava no táxi por pelo menos quinze minutos quando começara a vislumbrar de longe a fachada de pedra da casa campesina. A primeira coisa a ver era o mudo de pedras, tão velhos quanto aquele continente, e que era, em muitos lugares, coberto por heras e rosas trepadeiras. Depois de mais de meio quilometro de muro de pedra e árvores, a entrada principal, um recorte grande o suficiente no muro, onde se passavam as pessoas e os carros. Os portões de ferro da entrada estavam abertos, e fixados em dois lados de muros de pedra do estilo romano, o caminho até a casa era largo, de terra batida e rodeado por hortênsias queimadas de sol e frio, a fileira de flores se enlarguecia à medida com que se aproximava da casa e então acabavam. Em seguida, via-se fachada de pedra da casa grande, o grande jardim e o celeiro.
As pedras da fachada eram posicionadas com cuidado, pareciam milimetricamente colocadas, as janelas de vidro e madeira eram pintadas de verde, combinando com o verde que rodeava a casa. O vidro era impecavelmente limpo, e as janelas pareciam recém pintadas. Heras e outras trepadeiras também ali cresciam e subiam pelas paredes, misturando-se no chão com pequenas roseiras e cravos que coloriam o espaço abaixo das janelas no térreo, destacando-se da grama verde que precisava ser aparada com urgência.
Ao redor da casa haviam mais hortênsias, jacintos-uva com suas continhas azuis e muitas lobélias de todas as cores que se espalhavam, criando um campo colorido que parecia intocável. Na frente, uma grande varanda, com três degraus de pedra e cadeiras de balanço, bancos de madeira. Perto da casa, mas mais ao fundo, um grande celeiro de madeira, que mais parecia um galpão, contrastando com todo o cenário campesino de filme medieval. A noite começava a cair, e as luzes da casa estavam acesas e se denunciavam pelas janelas de cortinas abertas, e o jantar devia estar a ser preparado, julgando pela fumaça acinzentada que saía pela chaminé. pagou o taxista e se arrastou até a porta da frente com suas malas, abrindo-a sem dificuldade e deixando toda sua bagagem no armário.
– Papa, estou em casa. – Avisou, mas não ouviu resposta, apenas o som de panelas na cozinha.
atravessou o hall de entrada, parando frente ao espelho com moldura dourada que ficava sob o aparador para deixar as chaves numa travessa chinesa que seu pai havia trago de sua última viagem. Depois andou devagar pela grande sala de estar passando os olhos pelas janelas com vista para o jardim, pelos sofás antigos, tocando a mobília de cerejeira e mogno, envernizadas, a tapeçaria na parede, sentindo o cheiro das flores no vaso grande da sala de estar. Aproveitando o fato de estar em casa, sentindo a energia das paredes amarelas, desenhas a mão com pássaros e florezinhas, a lareira que dava sinal de ter sido usadas nos últimos dias, os pratos de cerâmica pendurados a uma parede qualquer.
logo alcançando a cozinha, encontrou seu pai inclinado sobre uma panela de ferro, parecendo reviver as cenas na ficção, onde as bruxas jogam tudo e qualquer coisa em seus caldeirões e fazem poções mágicas. A estudante roubou um dos pêssegos grandes e carnudos que estavam na cesta de vime sobre a mesa de madeira, antes de se anunciar ao pai, experimentando quanto tempo ele levaria para perceber sua presença.
– Para alguém que passa tanto tempo sozinho aqui, o senhor está bem desatento. – Disse ela, despretensiosamente, após morder o pêssego.
– A desatenção pode ser um presente para alguém que passa tanto tempo sozinho aqui. – Alexander devolveu, sorrindo para a filha por sobre o ombro. – O que foi? Já te despejaram na cidade grande?
– É, sabe como são essas coisas...eu acabo causando muito problema. – deu de ombros, aproximando-se do pai e o abraçando forte, recebendo dele um beijo na fronte.
– Foi sua última semana no campus, suponho.
– Foi. – Ela assentiu, tomando um lugar na mesa. – Eu agora estou quase, oficialmente, desempregada.
– Não por muito tempo, certamente.
– Hoje eu participei de um ato, uma manifestação quanto aos casos de violência sexual do campus, e que não são resolvidos pela administração. – Contou ela.
– Bem, você está aqui, diante de mim, e não em uma cela em Nice, então imagino que foi um sucesso. – O pai sorriu, provando um pouco do conteúdo da panela de ferro e depois oferecendo a .
– O que é isso? – Ela franziu o cenho.
– Não importa o que é, apenas prove.
– Não, eu nem sei o que é. – Negou ela.
– Mas vai continuar sem saber se não provar. – Falou ele, ainda insistindo com a colher. – Vamos, . Estou com pressa.
cedeu e provou o conteúdo da colher, fazendo careta em seguida, devido ao gosto amargo.
– Não seja boba, isso está ótimo. – O pai negou com a cabeça.
– Talvez para você. – Resmungou ela. – Mas tem razão, tem razão sobre o ato. Mas acho que se eu precisar de indicação da faculdade para qualquer emprego, é melhor começar a procurar outro tipo de trabalho.
– Você é jornalista, incomodar faz parte. – Alexander deu de ombros.
– Incomodar apenas, não paga contas e temos um monte delas. – rolou os olhos, mordendo seu pêssego outra vez.
– Anne. – O pai a repreendeu. – Achei que não fosse o tipo que se vende.
– Não sou. – Ela deu de ombros. – Mas, até os ativistas precisam de um trabalho. É o que dizem.
– Passarinho. – Alex se aproximou da filha, tocando os ombros dela e sorrindo com gentileza. – Não é preciso que se preocupe com essas coisas. Não enquanto eu estiver vivo. – Ele sorriu. – E eu venci um câncer há dois anos, então vou viver por muito tempo ainda. Se preocupe em fazer o que ama, e só isso basta. – O mais velho voltou para junto do fogão. – Você tem dívidas de jogo em Nice?
– Não. – negou, confusa.
– Deve a agiotas, banco, ações, precisa pagar algum resgate?
– O que? Não. Claro que não, papa. – Ela negou outra vez, sacudindo a cabeça.
– Então não há com o que se preocupar.
negou com a cabeça, sorrindo incrédula com o pai. O velho era um homem diferente dos demais, na opinião de . Mesmo após passar por intensas e destrutivas tragédias, Alexander ainda se mantinha firma e alegre, não passava um dia sequer onde o pai estivesse sem seu sorriso no rosto. Primeiro, a partida do filho mais velho, Alex. O pai, talvez pela sabedoria que o incidente o trouxe, sempre disse que os piores dias da vida sempre começam como qualquer outro dia, ordinário.
Era um passeio de barco durante uma tarde de verão qualquer, o terceiro durante aquela semana, e por alguma razão, o Lago de Broc fora o destino escolhido pela família . se lembrava de passarem por várias outras famílias, cães e crianças, muitos fazendo piqueniques, pescando e andando de bicicleta em volta do lago. Tinha oito anos, completaria nove no próximo setembro, Alex, seu irmão, havia recém completado quinze anos. Estavam na proa do barco, jogando cartas enquanto tomavam limonada e aproveitavam o sol, os pais sentados mais acima, desfrutavam da vista e da paz que o lago azul trazia.
E era tudo paz, até que Alex resolveu se refrescar, pulando no lago. Lembravam-se com clareza dos últimos instantes antes de tudo mudar. Primeiro ele ficou de pé, espreguiçou-se e sorriu, como um gato aproveitando o sol, depois disse que queria verificar de perto a temperatura da água. ficou de pé, também sentia muito calor, mas Alex não a deixou entrar. “Fique aí, eu quero ir sozinho para nadar”, disse ele, e então, sob protestos da irmã caçula, pulou na água e nunca mais emergiu.
se lembrava de inclinar-se para ver a água, esperando o irmão aparecer, tentando encontrá-lo entre as águas calmas do lago, mas somente quando os pais perguntaram sobre Alex que se dera conta de que havia algo errado. Quando se tem oito anos, a morte não é tão feia de se encarar, ela dói, mas não como dói quando se é adulto e já está contaminado por todos os sentimentos tortuosos da vida adulta. Aos poucos, a medida com que cresce, ela volta e te assombra, fazendo com que você perceba o tamanho da ferida, te fazendo lembrar de toda dor, raiva e angustia que não sentiu na época, como se tudo estivesse reprimido.
via os pais entristecidos, via a mãe adoecer e morrer aos poucos, embora seu corpo ainda tivesse vida e seu coração ainda batesse, mas não conseguia compreender os efeitos que aquilo lhe traria no futuro.
Durou pouco.
No início do inverno de 1990, a professora Juliette Lloris não conseguiu suportar a dor que a consumia desde a morte de Alex, e resolveu por conta própria finalizar sua jornada. Era poético, anos depois seu pai dizia, a mulher que sempre tentou ter controle sobre tudo e que se viu sem controle algum quando perdeu o filho, voltou a controlar seu destino ao desafiar a morte. Era como se com o suicídio, Juliette, sua mãe, dissesse a morte, destino, Deus ou quem quer que controlasse aquelas coisas, que ela ainda tinha controle e poder sobre si mesma. No final, não se sabia se o suicídio era uma prova de poder, um desafio de Juliette para com forças maiores, ou apenas um grito desesperado de uma mãe que preferia perder a vida a nunca mais abraçar o filho primogênito.
Aquele dia também havia sido começado como qualquer outro.
fora a escola, tinha passado o resto da tarde fazendo suas lições, jantado com os pais, e no final, a mãe lhe pusera na cama. Juliette ajeitou os cobertores, disse para a filha o quanto a amava, e o quanto era ela brilhante, e que ficava ótima quando vestindo verde. Em seguida, a beijou e a deixou, para sempre.
No dia seguinte, quando Alexander acordou, encontrou o corpo da esposa, que parecia dormir tranquilamente ao seu lado, após tomar uma farmácia inteira de remédios.
De modo súbito, em dois anos, a família havia se reduzido, agora eram só Alexander e sua garotinha, com dez anos na época. E mais uma vez, por mais falta que sentisse da mãe, a ideia do suicídio e a raiva que sentia só desabrocharam na juventude de . Culpava a mãe por ter escolhido Alex e não ela, sentia raiva por ter sido deixada, sentia culpa por não ter impedido o irmão de pular na água, ou de não ter dito qualquer coisa que fizesse a mãe repensar seu ato.
Anos depois, já com quase vinte, o diagnóstico de câncer do velho . enfim entendeu a mãe, entendeu que as vezes é preferível morrer a imaginar a dor de perder qualquer outro alguém. Mas Alex estava com ela, como nas duas outras perdas, segurando sua mão e lhe dizendo que tudo ficaria bem com o tempo. E ficou. Quando receberam a notícia do médico, sobre a cura do mais velho, tudo pareceu voltar aos eixos e ficar bem, ao menos até aquele momento.
– Como foi a viagem dessa semana? – indagou, cutucando o prato que o pai lhe tinha servido. – Descobrindo muitos novos talentos por aí?
– Na verdade, vi alguns meninos na Fórmula Renault Britânica. – Contou Alexander. – Bons meninos, mas ainda muito jovens, François quer alguém que já venha pronto.
– E ele por acaso tem uma vaga para algum piloto que já venha pronto?
– Na François-, sim. – Disse o mais velho. – Eles não estão conseguindo encaixar uma dupla de pilotos que funcione.
– Pelo visto você tem muito trabalho pela frente. – ergue as sobrancelhas e sorriu.
– Mais do que quando era mecânico da equipe.
– Pense positivamente, papa, de mecânico a caça-talentos. A ascensão. – Brincou e o pai maneou a cabeça, sem discordar.
– E você? Alguma coisa em vista em Nice ou vai voltar para cá? Há um jornal em Aspremont, não é nada muito chique, mas é um lugar.
– Vou investigar roubo de ovelhas? – Ela zombou. – Há, há um lugar. – Assentiu . – Não é nada certo e estou um pouco preocupada com meus antecedentes se eles perguntarem a faculdade. – Ela inclinou a cabeça sobre o ombro, pensativa. – Mas é um bom lugar. Bom salário, um jornal local com notícias urbanas, sabe...cobertura de crimes e essas coisas.
– Investigativo. – Concluiu o pai.
– É, é, esse é o ponto. – assentiu, experimentando a sopa do pai, e fazendo careta em seguida. – Eu quero usar minha profissão para algo maior. Adrenalina.
– Vou deixar meu médico avisado. – O pai brincou.
– Não seja bobo, papa. – A quase recém-formada jornalista sorriu. – Eu vou me dar bem. Consigo me virar, você sabe.
– Ah, sim, sei. E é disso que tenho medo. – Alex admitiu, traçando sobre si o sinal da cruz.
03
Abril de 2002, Ímola – Itália
Autódromo Enzo e Dino Ferrari
estava concentrado, encarando a movimentação de mecânicos em frente a garagem de sua equipe. Tinha a postura compenetrada de sempre, antes das corridas, pernas paralelas ao quadril, pés firmes ao chão, braços cruzados na frente do corpo, cabeça levemente inclinada para trás, olhos estreitos e observadores, respiração controlada e uma expressão séria. Tinha ganho duas das três corridas da temporada, e o título daquele ano era uma questão pessoal.
O carro não era tão bom quanto o da principal rival, a Ferrari. Tinham instabilidades em quase todos os componentes, e erros de estratégia quase fatais. Mas após 2001, quando teve o título tirado de suas mãos covardemente, era mais que pessoal vencer em 2002, era questão de honra.
No último ano – 2001 – se seguiu a campanha de rivalidade criada pela mídia e alimentada nas pistas pelos dois pilotos que já lhes era antiga. fizera sua estreia em 1995, ano do segundo título do rival alemão, e no primeiro, em 1994, ainda era piloto reserva. Mesmo em seu primeiro ano no esporte, tinha conseguido um campeonato regular e com excelentes resultados, terminando o ano em segundo lugar, para surpresa de muitos. No ano seguinte, 1996, o piloto americano teve seu primeiro título, deixando o alemão com o vice-campeonato. ainda conseguiu mais dois segundos lugares nas vitórias de Jacques Villeneuve em 1997, e de Mika Hakkinen em 1998.
Mas no ano seguinte, as brasas se incendiaram outra vez com a vitória de Schumacher em 1999, e o terceiro lugar para . O sabor da vitória não durou muito para o alemão, perdendo para o Mundial de 2000.
Mas fora em 2001 que as coisas tomaram outras proporções, em um campeonato de início de domínio Tifosi, Schumacher viu o rival ganhar espaço, até que na última corrida, a diferença era de poucos pontos. A situação era a seguinte, para que vencesse naquele ano, precisava vencer a corrida, e se por acaso não acontecesse, precisava chegar pelo menos em quinto, e que Michael não pontuasse. A mídia julgava quase impossível a retomada do campeão do ano anterior, mas tinha confiança em si mesmo, no carro, na equipe e não costumava desistir fácil das coisas que queria.
Mas, o sonho do terceiro título foi tolhido quando Schumacher causou uma colisão ao jogar a McLaren de para fora da pista na curva treze do circuito do Japão. Depois de 2001 tudo havia mudado. Não se tratava mais de uma rivalidade saudável nas pistas que em grande parte só existia no imaginário dos fãs, onde todos queriam descobrir quem venceria no próximo ano. Era mais sério.
não costumava ser o tipo de piloto gentil, possuía um jeito de guiar selvagem, quando estava dentro do cockpit só enxergava a linha de chegada, nada mais. Seu modo de dirigir era considerado perigoso e violento pela mídia e outros pilotos, que em vários momentos precisavam ceder, entregar posições ou sair do caminho para que passasse. Era o que chamam de Vitória ou Muro, ou vencia ou encarava a proteção da pista. Mas nunca, em nenhuma corrida da Fórmula Um ou antes, havia sido traiçoeiro, jogado sujo, ou feito qualquer coisa parecida com o que Michael Schumacher costumava fazer. Ele era bom, não se podia negar, mas era sujo tanto quanto. Era fogo e gasolina, uma gasolina de péssima qualidade.
– Está pronto? – Dino se materializou ao lado do irmão, que apenas assentiu com a cabeça, sem esboçar qualquer outra reação. – Vai dar certo, vai ser mole. – Falou o mais velho, e o dirigiu um olhar de canto.
– Está nervoso?
– Você não? – Dino arqueou uma sobrancelha.
– Não. – deu de ombros. – Tô confiante de que o bem vai vencer.
– Acho que o Schumacher estava falando a mesma coisa lá fora. – O mais velho riu de canto, sem achar aquilo realmente engraçado.
– As coisas, Dino...– virou-se para o irmão e apertou-lhe o ombro com uma mão, deixando a outra mão livre para gesticular. – Tudo pode mudar de uma hora para outra. E eu sinto que esse ano, nada pode me parar.
– Bom que pensa assim.
– Ele é bom, o carro é bom, ele joga sujo. – maneou a cabeça e projetou o lábio inferior rapidamente. – Mas não é invencível. Já venci ele duas vezes, jogando limpo, posso fazer de novo.
Abril de 2002, Nice - França
tinha optado por fazer o retorno até Nice com o Camaro azul do velho . Amava sentir o cabelo sendo jogado para trás com o vento que vinha da janela aberta, amava a sensação de acelerar por aquelas montanhas, sentindo o cheiro da natureza, contemplando o verde, vendo seu carro se misturar a paisagem.
Era um carro antigo, mil novecentos e setenta, azul com duas faixas brancas que iam das lanternas dianteiras as traseiras. Graças aos talentos de Alexander com máquinas, o Camaro estava impecável, sua pintura brilhava quando tocada pelo sol, era a visão perfeita. O carro azul chamava atenção por onde passava, fosse na cidade ou nas estradas solitárias de Aspremont até Nice.
O ato de dirigir, seu carro e tudo que tinha a ver com automobilismo era uma das grandes conexões de com o pai. O ex-mecânico de Fórmula Um havia passado muitos de seus conhecimentos para a filha, apresentado a ela o esporte que ele tanto amava. Nos tempos mais difíceis, após o falecimento do irmão e da mãe, e por não terem mais familiares por perto, Alex optava por levar aonde quer que ia, fosse em corridas, ao autódromo, a fábrica, não importava. crescera rodeada por aquele ambiente, e apesar de gostar, não adorava tanto quando o irmão, conseguia ler nos olhos do pai a falta que Alex fazia.
Antes, por opção, quem acompanhava o pai era o filho mais velho, que algumas vezes competia de kart ou em outras categorias maiores. Talvez Alex se tornasse piloto um dia, vivendo o sonho de seu pai, que não teve a chance em sua época graças a falta de recursos. Seria o primeiro Alexander piloto de Fórmula Um, era o que dizia o velho Alex. Mas o jovem Alex não teve chance de viver aquele sonho, partindo jovem demais. sacudiu a cabeça e apertou os olhos rapidamente, na tentativa de afastar aqueles pensamentos da cabeça. Pensava muito sobre a família, o irmão e a mãe, mas aquela não era hora e nem lugar, porque toda vez que aquelas lembranças a alcançavam, sentia-se profundamente triste e desamparada.
Estava na cidade, não era hora de uma crise de melancolia, ela dizia a si mesma. Tinha traçado um plano específico para aquela tarde em Nice, primeiro encontraria uma amiga para um café, depois se reuniria com os chefes do jornal local, para tratar se sua possível contratação. Se tudo corresse como esperado, voltaria para Aspremont como uma jornalista investigativa.
A quase jornalista estacionou na porta do café, o maior da cidade, mas que a àquela hora estava vazio, com poucas mesas ocupadas. Depois de escolher uma das mesas na área externa, se sentou, aguardando a chegada da amiga.
– Uma pequena flor para a linda senhorita . – Bianca, a amiga que esperava, disse ao se aproximar e sorriu ao esticar a mão direita com uma flor lilás entre seus dedos.
– Que romântico. – sorriu segurando a flor e levando ao nariz, sentindo o aroma. – Quase me faz esquecer seu atraso. – Sorriu de lado, apertando os olhos para evitar a claridade do sol da tarde.
– Eu não tenho culpa se essa cidade está linda hoje. – Bianca deu de ombros e sorriu outra vez ao se aproximar mais e tomar entre seus braços, apertando a amiga com ternura, faziam alguns meses desde a última vez que se viram. – Me desculpe pelo atraso, fiquei observando tudo. Esperou muito?
– Tudo bem, aproveitei para pensar na vida. – deu de ombros, sorrindo com a personalidade sonhadora da amiga.
– Me conte no que anda pensando. – A outra levou os óculos ao topo da cabeça e tomou o lugar em frente a .
– Em como não ficar desempregada. – A francesa riu pelo nariz, em seguida ergueu dois dedos a um garçom que passava, pedindo dois cafés. – Tenho uma reunião com os editores daquele jornal da TV, daqui de Nice. Cobertura das notícias urbanas. – Contou.
– Eu compreendo bem o que isso quer dizer. – Sorriu a italiana, assentindo com a cabeça. – Mas eles são sua única opção?
– Até agora sim. – assentiu depois de suspirar. – Meu pai disse de um jornalzinho em Aspremont, mas não quero escrever sobre o roubo de ovelhas. – A francesa riu. – Aparentemente o mercado é muito mais concorrido do que pensei que seria.
– Com certeza e temos que começar de algum lugar. – Bianca concordou. – Você vai conseguir, é brilhante.
– Vai depender de muita coisa. – parou de falar quando um garçom lhes serviu o café. – No que depender das indicações da faculdade, acho que estou um pouco… em perigo, digamos. – Comentou depois de beber um pouco do líquido quente. – Se precisar de referências, acho que as coisas podem não dar certo.
– Como assim se depender de referências? – Bianca arregalou os olhos. – Eu lembro quando terminou seu último estágio, o pessoal quase implorou para você não sair, suas orientadoras sempre te incentivam. O que estou perdendo?
– Minha relação com o reitor e alguns professores não ficaram muito boas quando comecei a me envolver de forma mais ativa nos atos no campus. – Ela piscou. – Sabe como é… causo algum incômodo.
– Sei bem como é mesmo. – Bianca sorriu meneando a cabeça. – É o preço que pagamos por nos posicionar. – assentiu com a cabeça.
– E você, o que faz em Nice?
Bianca tomou um gole do café antes de responder.
– Algo parecido com uma proposta para trabalho. – Sorriu tímida. – Recebi algumas ofertas de universidades para uma especialização. Estou conhecendo pessoalmente as universidades e clínicas para descobrir se me agrada.
– Uau! Isso é muito bom. – sorriu. – Aqui em Nice? Vai ficar em Nice?
– Ah, amiga, isso seria incrível, não acha? – Bianca sorriu alegre. – Mas eu ainda estou analisando minhas possibilidades, tenho uma oferta tentadora em Londres e não sei se outra me faria balançar tanto como aquela. É tudo que sempre imaginei para mim, estou bem tentada a ir para Londres.
– Eu sou a última pessoa do mundo a dizer para que fique aqui, principalmente porque eu não recusaria uma proposta para qualquer jornal ou canal em Londres. – gargalhou, inclinando-se sobre a mesa. – Mas se por acaso resolver ficar aqui, minha casa é grande o suficiente para isso. E mesmo com as viagens do meu pai, ficaria mais tranquila em ter mais alguém para ficar de olho nele. Principalmente agora.
– Eu adoraria ficar uns tempos com vocês, sabem que os considero como família. – A italiana também sorriu. – Mas prometo que venho visitar vocês com frequência, assim como vocês podem ir até Londres às vezes.
– Assim que eu descobrir para onde vou, prometo ir e conhecer sua nova casa. – piscou. – O velho Alex deve ir antes, ele tem viajado a Europa toda, também Brasil e a América atrás de uma nova estrela. – Contou, mexendo preguiçosamente seu café.
– Estrela do automobilismo? – Questionou relaxando o corpo na cadeira. – Londres vai ser bom, apesar do clima sempre chuvoso.
– É, sabe… para a equipe que ele trabalhava. – deu de ombros. – Meu pai diz que uniu o útil ao agradável, por não ter que se afastar da Fórmula Um e por ter o privilégio de conhecer o mundo com viagens pagas, cortesia da François-.
– Ele não está errado, eu fico feliz que ele esteja melhor de saúde para conseguir aproveitar o trabalho que ele gosta tanto. – Apreciou. – Está realmente tudo certo? Não teve mais nenhuma metástase?
– Não. – sorriu aberto, apoiando as costas a cadeira de modo relaxado, esticando as pernas. – Tudo estava ótimo na última consulta. Acho que por isso ele aceitou este emprego. – A francesa mordeu o lábio inferior, pensativa. – Acho que a experiência fez com que ele quisesse aproveitar melhor a vida, do jeito mais intenso possível.
– Isso é uma notícia maravilhosa! – Vibrou animada. – Eu nem consigo expressar tamanha felicidade. Ele tem mesmo que aproveitar, seu pai é o melhor ser humano que conheço.
– É, ele é. – suspirou um sorriso.
Abril de 2002, Ímola – Itália
Autódromo Enzo e Dino Ferrari
– Por que eu não parei ainda? – perguntou no rádio, pelos seus cálculos, devia já ter parado há pelo menos dez voltas.
Ninguém no rádio respondeu, a equipe seguia a estratégia anteriormente pensada, tentando se adequar a estratégia da equipe italiana, que tinha aproveitado um safety car para trocar os pneus de seus dois pilotos.
– Por que eu não estou com pneus novos? – O americano, que naquele momento liderava a prova, falou alto do outro lado do rádio.
– Se você parar a outra Ferrari vai tomar sua posição, ele está muito perto. – O engenheiro respondeu enfim, já temendo a resposta que receberia do bicampeão americano.
– E se não parar, o Schumacher vai me alcançar. Consigo ver ele pelo retrovisor. – Tentou explicar . – Ele não parou, se eu for primeiro, consigo voltar pelo menos atrás do Schumacher.
– É muito arriscado. – Respondeu a equipe.
– Arriscado é ficar na pista com esses pneus. – reclamou. – Eu não posso acreditar nisso. – O americano riu sem qualquer traço de humor. – É sério?
– É a última palavra. – O chefe da equipe quem respondeu dessa vez.
fechou o canal de comunicação, rindo enraivecido, descrente do erro claro de estratégia da equipe. Sabiam que o combinado era outro, mas diante a boa prova da Ferrari e da estratégia apresentada por eles, não podiam se prender, precisavam de um plano B, e aquele parecia ser justamente o problema da equipe.
Não demorou muito para que Michael Schumacher ultrapassasse seu companheiro de equipe sem esforço e colasse em . O alemão fazia pressão em todas as curvas, obrigando a levar o carro ao seu limite.
– , próxima volta, parada... – O engenheiro chamou.
– Me deixe sozinho. Eu sei o que estou fazendo. Me deixe em paz agora. – Gritou ao mesmo tempo em que fechava a chance de ultrapassagem de Michael na variante bassa.
Michael pressionava e respondia, em vários momentos era preciso que o americano desse um pouco do próprio veneno de Michael, deixando para o alemão pouquíssimo espaço. Mas nas curvas o carro vermelho da escuderia italiana surgia como um pesadelo, os pneus novos davam mais velocidade a Schumacher, junto a superioridade do carro se comparado ao da McLaren. precisava fazer o uso de todo seu talento para manter Schumacher atrás de si. Como se sua vida dependesse daquela vitória.
Mas de repente, faltando três voltas para o final da corrida, um som já conhecido entre os pilotos atingiu os ouvidos de , e em seguida o piloto americano precisou lutar com seu carro, não para impedir a ultrapassagem de Schumacher, mas sim para controlá-lo. Graças aos pneus em péssimo estado, o traseiro parecia ter estourado e por alguns segundos o carro da McLaren girou descontrolado na pista, até atingir um guard-rail.
tentou controlar sua máquina e depois tirá-la da brita, tentou voltar para a disputa, mas o carro não saia do lugar. Somou-se ao péssimo estado dos pneus os danos causados pelo choque contra o guard-rail. Tudo estava perdido, de seu carro o piloto americano via o resto dos pilotos passando, perdendo posições uma a uma. gritou o mais alto que pôde e quando conseguiu sair do carro não se importou com o que diriam, estava com raiva e não ligava, acertaria o rosto do primeiro que lhe aparecesse. O piloto arremessou o volante com força ao chão, depois chutou o pneu dianteiro esquerdo, em seguida apoiou-se com as mãos no carro e gritou outra vez. Tirou o capacete, arremessou-o ao chão com violência, pulou o guard-rail, arrancou as luvas e as arremessou pelo caminho, andando a passos firmes em direção as garagens, pronto para brigar com o responsável por aquela lambança. Aquela sucessão de erros que havia lhe custado uma vitória importante.
04
Abril de 2002, Nice – França
piscou algumas vezes tentando compreender o que havia acabado de escutar, os olhos estavam fixos em um ponto qualquer da mesa do recrutador do jornal e ele tinha braços cruzados apoiados sobre a grande e lustrosa madeira.
– Como é? – A francesa piscou outras duas vezes, tonta.
– É como eu disse, senhorita , nós... – O homem tentou continuar, puxando o colarinho da camisa, denunciando o quão sem jeito estava, mas o interrompeu.
– Vocês... vocês compararam os currículos? As notas? – abriu a bolsa e remexeu, tentando encontrar cópias de seu histórico e currículo enquanto ria nervosamente. – Eu tenho certeza que tenho algumas cópias bem aqui. – Ela procurava e quanto mais procurava, mais impossível de encontrar parecia ficar. – Eu entendo que a falta de recomendação seja algo a impactar, mas eu...
– Senhorita ... – O homem tentou chamar a atenção da jornalista.
– Eu sei que posso surpreender, as minhas atividades acadêmicas e as produções nos anos de faculdade... – ria, ficando cada vez mais nervosa e agitada. – Se eu puder mostrar...
– Senhorita . – O homem falou com mais firmeza e se esticou para tocar o antebraço de , enfim atraindo seu olhar. – Eu lamento, mas a vaga já foi preenchida. Já temos um contratado.
– Eu sei, você disse, mas eu conheço o Paul, ele é bom, mas...– Ela continuou argumentando, lutando para não perder a compostura, mas já soava quase que psicótica, à beira de um colapso. – Se eu tiver uma chance... se me derem uma chance.
– Senhorita... – O homem expirou baixando o olhar, ainda mais embaraçado.
– Uma experiência. – Ela sugeriu enfática. – Talvez algumas semanas, voluntária. Posso ficar como estagiária voluntária, posso mostrar um pouco mais do que sei fazer e...
– , por favor. – Ele a chamou novamente e ela interrompeu sua frase no meio, engolindo o ar. – Eu realmente lamento. A decisão já foi tomada. – Ele apertou os lábios em um sorriso empático. – Tenho certeza que alguém com seu currículo não vai demorar a encontrar uma oportunidade a altura.
não conseguiu responder, apenas assentiu derrotada.
O percurso para fora da sede do jornal foi um borrão enquanto a francesa repetia em sua mente as palavras do recrutador. Inadequada. Falta equilíbrio. Sem perfil. Não recomendável. Estava decepcionada, frustrada, como se o chão tivesse sido arrancado de sob seus pés. Claro, já imaginava que não seria a estudante mais recomendada da classe, mas ver um aluno com desempenho muito inferior ao seu conseguir sua vaga, apenas por ter recomendações de meia dúzia de professores... aquilo a tinha matado.
A frustração foi se transformando em um sentimento de vazio, de pequenez, enquanto a francesa andava pelas calçadas movimentas de Nice. Talvez estivesse destinada a ser uma daquelas jornalistas que se formam, mas que nunca atuam na área, ou que acabam cobrindo fofocas, a imprensa marrom. Afinal, ninguém na faculdade dizia ter como sonho cobrir traições de um ator famoso ou o surto de uma jovem celebridade, mas muitos profissionais acabavam naquele nicho, por um motivo ou outro.
E então veio a raiva a consumindo por inteiro no caminho até o carro. Raiva dos professores, da universidade, do mundo por ser tão machista e duro. Algum dia aquele cenário mudaria, algum dia seria grande e faria todos aqueles que duvidavam, que a esnobaram se arrependerem. Amargamente. Era brilhante, não achava arrogância admitir, sabia de seu potencial e do quanto era boa e adequada a qualquer jornal, o quanto tinha talento. Ver tudo o que era ser ignorado por causa de meias palavras de professores machistas e ancestrais era revoltante.
Então fez a si mesma uma promessa, em algum dia, talvez não logo, talvez demorasse, mas algum dia seria conhecida, algum dia teria destaque e mostraria a eles. A todos eles.
Abril de 2002, Mônaco
se perguntava se no mundo, naquele momento, havia alguém tão ferrado quanto ele. Ainda estavam no início da temporada, mas com a corrida que a equipe havia entregue (de bandeja para o alemão que vivia em seus pesadelos) estavam empatados no número de vitórias. Mas diferente de Michael, que havia pontuado – mesmo que pouco – nas corridas em que o americano havia vencido, não tinha feito sequer um ponto. Era frustrante, irritante.
Os resultados na Fórmula Um eram uma soma de piloto, carro e equipe. Todos diretamente proporcionais e com o mesmo impacto, ou quase. Se tinha um piloto excelente, mas em um carro ruim, se tivesse uma equipe competente, teria grandes chances de êxito. Ou se fosse um piloto mediano em um carro muito extraordinário, junto a uma equipe que nunca cometia erros, o sucesso era certo. Assim como era certo o fracasso se um daqueles componentes falhasse repetidamente.
Depois da corrida o piloto americano tinha tido um momento daqueles com os estrategistas e chefe de equipe. tinha fama de esquentado, de ser ativo dentro das equipes que passava e de nunca se calar quando algo estava errado ou quando era contrariado, além de ser protegido pelo cão de guarda e tio François – um ex-piloto mundialmente conhecido, herdeiro de outra equipe da Fórmula Um, a François-. Aquilo o tornava um dos piores pilotos para se trabalhar, era certo, mas também o tornava um dos melhores pilotos no grid. Todos dentro e fora da Fórmula Um sabiam do gênio indomável do herdeiro François-, mas a fila de propostas para o americano nunca diminuía.
não se importava com nada daquilo – com as propostas e a fama. Queria correr e ser perfeito, queria superar Schumacher, que parecia ter como missão infernizar seus dias. Queria provar a si mesmo, ao mundo e a Michael Schumacher que era melhor, que entre eles havia um piloto excelente e ele era americano. Era uma competição mental contra si mesmo, contra suas ansiedades, contra as peças que sua mente lhe pregava, contra sua dificuldade de atenção, sua hiperatividade e todo o resto que o consumia quando ninguém estava olhando.
Assim que o jato pousou no principado de Mônaco, desafivelou o cinto e se preparou para descer. Não via a hora de sair daquele espaço confinado, precisava extravasar o que sentia, procurar alguma festa, beber um pouco, acelerar seu carro pelas ruas de Mônaco, fazer sexo, qualquer coisa que o fizesse gastar toda aquela energia reprimida, colocar para fora toda a frustração, que o fizesse sentir vivo. Se não estivesse no meio de um campeonato mundial, poderia ir até o autódromo da François-, nos arredores de Mônaco e acelerar um pouco naquelas pistas. Mas até isso tinha sido tirado de , o que só aumentava sua revolta congênita e frustração.
– Garoto. – François o chamou assim que , o tio e Dino, irmão de , estavam prestes a descer do avião. – Tem alguns dias até o próximo, não adianta viver no passado. Não adianta também arrumar uma briga que não se pode vencer. – O piloto não respondeu, tampouco se deu ao trabalho de olhar para o tio, estava frente a porta, ignorando os dois homens, estralando os dedos compassadamente, ansioso para sair.
François ajeitou a fivela larga do cinto e o paletó cor de marfim que vestia, depois tirou um cigarro do bolso e se preparou para acende-lo assim que a porta da aeronave fosse aberta. Dino estava atrás, usava uma camisa de botões aberta até metade do peito e os cabelos estavam bagunçados e o rosto amassado, havia dormido durante toda a viagem. usava a combinação simples de sempre, jeans e camiseta, uma jaqueta preta e óculos escuros, somada a expressão fechada e inatingível de quando era contrariado.
– Você já tem saído em muitos jornais, muitas fofocas. – François voltou a falar assim que a porta foi aberta e os três homens foram atingidos por uma lufada de ar. rolou os olhos. – Se não for pelo motivo certo, não tinha que estar em notícia nenhuma. Se quer extravasar, faça. – O mais velho deu de ombros enquanto acendia seu cigarro e acompanhava os sobrinhos, descendo do jato. – Não me importa. Desde que não atrapalhe no trabalho. Desde que eu não tenha que arrumar sua bagunça.
jogou a jaqueta sobre um dos ombros, segurando-a com a mão e apressou o passo, ignorando o tio e se afastando deles. Dino apertou os lábios ao perceber a postura do irmão, vigiando o que o tio faria em seguida. A relação estabelecida entre e o tio não era das mais saudáveis aos olhos de quem via de perto, mas de algum jeito parecia funcionar.
Antoine François era irmão de Lana Dubois-, uma psiquiatra francesa que havia se casado com um herdeiro bilionário dos Estados Unidos da América, Howard J. , e com ele tido quatro filhos, entre eles o piloto de Fórmula Um Paul Dubois-. Antoine fora um grande piloto de Fórmula Um em seu tempo, carregava o legado de representar a família entre os pilotos, já que entre as equipes a François- já cumpria esse papel. Antoine conhecia bem o fardo que os pilotos da família carregavam, tendo seu talento questionado por serem “donos de uma equipe”. Mas para François aquilo não importava, corria nas melhores equipes, nas que lhe ofereciam maior possibilidade de vitória.
Em seus anos de pista, François fora um piloto conhecido, tendo vencido um campeonato mundial. Muito se dizia sobre aquela vitória, já que segundo os críticos e entendidos do esporte, a vitória do piloto francês se deu única e exclusivamente por falta de pilotos com carros melhores e mais competitivos naquele ano. Para François não importava a condição, o que estava por trás do título, títulos são títulos, independente de como se chegava até ele, era o que o piloto costumava dizer ao sobrinho.
Quando já aposentado, François conheceu ainda criança, percebeu logo que o gosto por corridas não era apenas interesse infantil, o pequeno loiro e de personalidade dócil era talentoso. Não demorou para que ele convencesse os pais do garoto e levasse consigo para a Europa, onde o garoto teria acesso a tudo de melhor que havia no mundo para alguém que almeja se tornar um piloto profissional.
A mãe, Lana, era incisiva quanto ao seu desgosto, não gostava da ideia de ver seu menino sendo criado pelo irmão, ainda mais num ambiente tão exigente e duro quanto o daquele esporte que conhecia tão bem. As famílias François e eram parceiras e sócias na equipe François- desde a sua fundação, todos os membros das duas famílias respiravam automobilismo – a dose respirada pelos François era infinitamente maior, já que nenhum havia ocupado o papel de piloto antes. Lana conhecia o gênio do irmão, sabia o que esperava na Europa, não queria que ele crescesse com aquelas cobranças todas, desejava para os filhos uma criação em contato com a natureza, vivenciando todas as fases da vida com calma e profundidade. Mas a psiquiatra fora voto vencido, então não demorou para que o garoto passasse a viver com François, em Mônaco.
François já era casado com Céline, uma ex-modelo, com quem nunca havia tido filhos. Assim fora criado, era o filho que Antoine François e Céline nunca tiveram. E graças ao empenho e talento de , o piloto aposentado fez de um experimento perfeito do piloto perfeito. cresceu sendo forjado com todas as virtudes e talentos que um ótimo piloto precisava ter, muitas lhe eram naturais, outras François o obrigava a aprender, desenvolver e cultivar. Mesmo as barreiras naturais do garoto, como os impulsos juvenis, as dúvidas da adolescência, a rebeldia, ou o déficit de atenção que trazia consigo, nada desviava o empenho de François, que fez do sobrinho – filho – seu principal projeto de vida.
François, por outro lado, era tóxico, controlador, abusivo, intolerante e emocionalmente distante. recebia algum afeto de Céline, quando ela conseguia algum tempo livre entre suas muitas atividades, ou dos pais e irmãos, quando podia encontrá-los. Haviam alguns amigos também, pessoas das equipes que corrida, todos aleatórios que por vezes representavam na vida do jovem piloto em construção o lugar de afeto. Para o afeto do tio – pai – era condicionado a ser o melhor que podia. Não era ruim, porque ser perfeito era algo que perseguia, se superar a cada dia era sua obsessão, já que, não tinha tanta dificuldade em superar outros pilotos.
François criou o piloto, mas esquecia-se do homem, e isso constantemente lhe causava problemas. Se dentro das pistas era humilde, focado, perfeccionista e odiava cometer erros, fora era impulsivo, sem limites, gostava de viver no extremo, não respeitava regras, não tinha noção dos perigos em que se colocava, nem contava com qualquer senso de responsabilidade. François comandava a carreira do sobrinho com mãos de ferro, mas o lado paternal que o francês tinha costumava negligenciar tinha impacto no comportamento destrutivo do jovem piloto. Abafava todos os escândalos, subornava, calava, ignorava e aos poucos havia conseguido blindar a imagem de , deixando-o inatingível – ou quase.
Silenciava jornalistas que criticasse o sobrinho, membros de equipes que contradiziam em seus momentos de irritação costumavam receber correções severas. tinha tudo o que queria, como queria e quando queria, e não era preciso que ele passasse por cima de outras pessoas para conseguir, François já fazia isso – muitas vezes sem que o piloto sequer soubesse.
Por isso, mas também pelo afeto e por gostar do universo das corridas que Alfredino, irmão mais velho de , acompanhava o piloto nos últimos anos. Dino era como um escudeiro, aconselhava e representava os pais, tanto no afeto quanto no direcionamento. Durante a criação, o piloto se distanciara muito dos ideais e tradições dos pais, se tornando cada vez mais parecido com François, aquela era a forma de Lana e Howard tentarem ter o filho de volta.
François não era o maior fã do sobrinho mais velho, para o francês, Dino o lembrava o cunhado, alguém por quem ele não nutria o maior dos amores ou admiração. Dino fora logo transformado em um personagem secundário, que existia apenas para deixar as coisas mais fáceis para o Príncipe de Mônaco, . François não escondia sua preferência, não fazia questão. Mas o modo com que o tio tratava o irmão mais novo não agradava a Dino, causando frequentes enfrentamentos entre os dois, quando Dino partia em defesa de . Tudo para, depois, ficar ao lado do tio e fragilizar ainda mais a posição de Dino naquele contexto maluco.
– Se continuar assim, vai acabar aparecendo mais nas notícias pelas festas do que pelas corridas. – Comentou Dino, que seguia ao lado do tio.
– Ele não é um monge. – François torceu os lábios, dirigindo a Dino um olhar atravessado. – É esse o tipo de coisa que rapazes normais da idade de vocês prefere. – O mais velho alfinetou Dino, como costumava fazer sempre. – Mas você até que tem um pouco de razão. É um milagre. – Ironizou o tio, Dino apertou os lábios, sem jeito. – Vou cuidar disso.
– O que quer dizer? – Alfredino olhou curioso para o tio, que apenas deu de ombros.
– O homem domesticou Mustangues, mulheres... – François riu com voz rouca, soprando fumaça para cima. – É o ciclo natural, sei muito bem como controlar o meu garoto.
– tem vinte e cinco anos. – Dino rebateu, o incomodava a forma com que o tio falava e agia com o irmão caçula, e o incomodava ainda mais o fato de ter adoração cega por François. – Não é mais um garoto há muito tempo.
– Pode ter quarenta e cinco, enquanto ele estiver comigo, eu cuido dele. – François arqueou uma sobrancelha na direção do sobrinho mais velho, de modo mais sugestivo do que Dino gostaria que fosse.
05
Abril de 2002, Aspremont – França
Sede do Actualités
A viagem de carro até Aspremont não fora demorada, principalmente porque a havia a feito no modo automático. Estava cega de frustração, chateada, injuriada, com raiva. Não conseguia afastar seus pensamentos do encontro com o representante do jornal, nem engolir toda a frustração e apenas sacudir a poeira, queria sacudir alguém. Queria balançar alguém até que ele vomitasse, ou desmaiasse.
Quando estava no meio da cidade, a caminho da zona mais afastada onde residia, a jornalista recém-formada percebeu que o carro estava ficando de tanque vazio e enquanto esperava e abastecia, uma ideia lhe ocorreu. Buscou no fundo da bolsa o nome do jornal local que o pai lhe havia indicado e tomou uma decisão. Talvez estivesse fadada a uma vida pequena, noticiando chuvas, roubos de rebanhos, casamentos e festas paroquiais. Devia aceitar, não é? Afinal, parecia ser impossível vencer todas as batalhas – mas perder era bem possível.
Estava frustrada e desanimada enquanto esperava o editor chefe terminar a leitura de seu currículo. O jornal era literalmente uma sala grande em um prédio velho no centro. Além do editor chefe, mais três pessoas trabalhavam ali. Um homem de cabelo branco e barba bem cortada, com aspecto de um avô gentil, uma mulher de meia idade que vestia terninho e um homem mais jovem, com barba por fazer e mancha de café na camisa social azul.
Animador, pensou ela com ironia.
Da decisão de buscar pelo nome do jornal, até passar pela porta, tudo havia sido movido por muita frustração e uma aceitação forçada, um gosto de peixe azedo na boca. Bem semelhante a frustração que sentiu ao terminar a leitura de O velho e o Mar, de Hemingway, ao sentimento que o velho devia ter sentido ao ver-se chegando a praia com a ossada daquele peixe. “Um homem pode ser destruído, mas não derrotado”, era o que o livro dizia, mas, droga, não era tudo a mesma coisa no final?
– Bem, senhorita ... – O editor chefe, um homem de uns quarenta anos e cabelo escuro, sorriu grande depois de expirar. – Há tempos não vejo um currículo tão interessante quanto o seu. Mal posso acreditar que o mercado te deixou livre por aí. – Se você não acredita... – A francesa expirou com sarcasmo e o editor riu.
– Jornalistas bons incomodam, é um fato. – Disse ele, recostando-se a cadeira e observando a mulher com olhos estreitos. – O que não se fala sobre isso é que, muitas vezes, incomodam outros jornalistas. – o olhou com curiosidade. – Não sei quem irritou, , mas parece que foi uma irritação e tanto.
– Eu, de alguma forma, atraio esse tipo de coisa. – maneou a cabeça e piscou com um dos olhos. – Não sei explicar, só vem até mim.
O editor sorriu e o imitou, sorrindo fechado e erguendo os ombros.
– Veja... – Ele se endireitou e respirou fundo antes de prosseguir. – Vendo seu currículo não é difícil supor que seu trabalho dos sonhos não seja aqui, em Aspremont.
– Perspicaz. – ergueu as duas sobrancelhas. – Não estava nos meus planos cobrir roubo de ovelhas.
– Roubo de ovelhas? – O editor riu e por alguns segundos se flagrou pensando sobre como sua risada era sedutora. – Não, não fazemos isso aqui. É um jornal independente. Gosto de pensar que adaptamos o mundo para que o povo de Aspremont consiga acessar. – inclinou a cabeça sobre um ombro, dirigindo a ele um olhar que tentava externalizar sua descrença. – Abbie, por exemplo. – O editor ficou de pé e rodeou a mesa, apoiando o quadril de volta a mesa, ao lado de . Ele cruzou as pernas e os braços sobre o peito, fazendo com que os botões de sua camisa social reclamassem, principalmente os sobre o peito. Depois apontou para fora da sala sem porta, de onde se podia ver o resto da equipe trabalhando concentrada. – Abbie escreve sobre economia. Não só sobre a venda de flores na feira anual, mas sobre a economia no mundo. Ano passado ela desvendou um esquema de corrupção na prefeitura local. – Ele a olhou por cima, arqueando uma sobrancelha. olhava para a direção apontada por ele, por sobre os ombros, tentando enxergar melhor a mulher.
– Devo dar meus parabéns? – A jornalista debochou e o editor riu pelo nariz.
– Pierre, ali. – Ele tornou a apontar, mas agora para o homem de camisa suja. – Além de ser o ser humano mais desastrado da região, ele escreve sobre política. Era um jovem promissor quando saiu de Paris, anos atrás, com desejo de mudar o mundo sem ser escravo do capital. – O editor arqueou as sobrancelhas novamente.
– Falta um. – apontou com o queixo, achando estar entendendo o ponto do editor.
– Rob Giddens, ganhador de um Pulitzer. – O homem expirou um sorriso ao falar do mais velho. – Mais irritou gente demais em seu país.
– Acho que entendo onde quer chegar. – se endireitou na cadeira e cruzou as pernas, apoiando-se mais relaxada, olhando para o editor. – Bons jornalistas que foram enterrados por não conseguirem ir contra a corrente. Eu sou a mais nova na estante.
– Não, . – O editor olhou para a mulher, inclinando um pouco o corpo para que pudesse a olhar mais de perto. – Estou te mostrando que nem tudo é o que parece. Não somos o Le Monde, mas não nos subestime. – Ele piscou um dos olhos. – Não nos subestime tanto.
Ela riu baixo quando ele se afastou, voltando a ocupar seu lugar atrás da mesa.
– Certo, Hubert... – começou a falar, mas ele a interrompeu.
– Me chame de Matthieu, só Matthieu está bom. – Ele piscou um dos olhos.
– Bem, então, Matthieu... sendo assim, quando posso começar?
Abril de 2002, Mônaco
Casa dos François
se olhava no espelho mais uma vez enquanto ajeitava os cabelos loiros ondulados, quase tão rebeldes quanto ele. Deitado na cama, observando a movimentação do irmão, estava Dino, que brincava com uma bola de baseball, arremessando para o alto e a segurando com a mão.
– Você devia vir conosco. – Dino voltou a falar depois de um longo silêncio. – Tenho quase certeza que essa visita do François a um velho amigo tem a ver com você.
– Por que teria? – riu pelo nariz, dando de ombros. – Às vezes ele só quer bater um papinho sobre a vida de aposentado.
– E quando foi que o François fez algo sem um grande motivo por trás? – Dino arremessou a bola na direção do irmão, o atingindo nas costas. - E que não fosse sobre você?
– Você precisa parar com essa implicância boba com tonton François. – zangou com seu sotaque francês e rolou os olhos entediado, enquanto recolhia a bola do chão e atirava com mais força na direção do irmão, que usou uma almofada para se defender. – Ele só faz o que é melhor, sempre foi assim e sempre deu certo. – se virou e abriu os braços, se exibindo. – Vê? Deu certo. Eu dei certo. Eu sou o melhor. Melhor até do que ele foi um dia.
– Você sabe que não existe isso de dar certo ou errado, não é? – O irmão mais velho arqueou uma sobrancelha.
– Existe. – voltou sua concentração para o espelho. – No meu mundo, existe. Você não entende, não é um piloto. – olhou para o irmão por sobre o ombro. – Não me leve a mal, irmão, mas... isso é uma coisa que só pessoas como o tonton François e eu entendemos.
– Tio. – Dino o corrigiu. – Tio François.
– Eu cresci em Mônaco, Dino, não na América. – deu de ombros, buscando as chaves e a carteira. – E você está em Mônaco, não na América.
– Pode até ser, mas mesmo se você perdesse, se fosse um mal piloto... – Dino suspirou. – A gente, a família, isso não faz diferença. Não faz diferença o que alguém tem ou é, nesse sentido.
– François tem razão. – riu nasalado, estava parado no meio do quarto, com as mãos nos bolsos, olhos sobre o irmão. – Você fala como a mamãe. – O piloto sacudiu a cabeça negativamente. – Que besteira. – riu outra vez. – Não precisa me esperar acordado, irmãozinho. Hoje vai ser uma noite e tanto. – celebrou, depois se inclinou e beijou o rosto do irmão de modo a provocá-lo e saiu do quarto cantarolando.
De longe, Dino era capaz de ouvir as piadas que o irmão fazia para provocar os empregados, assim como suas reações. Até que a voz sumiu, sendo substituída por roncos de motores, pneus e enfim, o silêncio da partida de .
Abril de 2002, Mônaco
Garagem de Jean Le Pen
O sol ameaçava a se pôr atrás de uma parede de nuvens brancas e densas no horizonte, era uma tarde morna e a noite parecia ter tendência a seguir os mesmos moldes. usava jeans e camiseta, como gostava e se sentia mais confortável. Estacionou do outro lado da rua de seu local alvo. Era em um canto de Mônaco longe dos cassinos e grandes hotéis, era pacato com vizinhança tradicional e uma belíssima vista para o mar.
Haviam carros na calçada e algum movimento de pessoas indo e vindo. Era a garagem da casa de Jean Le Pen, um velho amigo. Jean gostava dos carros, não só das grandes máquinas furiosas, mas dos antigos, dos simples e dos quebrados. Passava tardes ocupado ajeitando, customizando e inventando modificações nos carros que tinha e no dos amigos. Era uma espécie de oficina/garagem, onde os amigos se reuniam quando queriam paz, ou esquecer de onde estavam. Jean não era francês de nascimento, era de Gana, nascido ganês, mas com pai francês. Depois, por causa de perseguições políticas se firmaram em Paris, depois em Mônaco.
ainda estava atravessando a rua quando o amigo o notou de dentro da garagem. O piloto viu o homem limpar as mãos em uma flanela e se aproximar da porta, apoiando o peso do corpo nos braços e as mãos em uma pilastra.
– Quem é vivo... – Jean saudou com um sorriso de lado, para logo em seguida ser abraçado pelo piloto americano.
– É, eu tô por aí. – respondeu com seu sorriso grande de sempre.
– Vi sua corrida ontem. – Jean contou, erguendo o queixo. – E ainda te pagam para fazer aquilo? – Riu com escárnio. – Eu quando estava aprendendo a dirigir conseguia fazer melhor.
– Me sacanearam, não valeu. – respondeu colocando-se para dentro da garagem e correndo os olhos pelos carros que ali estavam, Jean estava logo atrás.
– Isso é desculpa. – Jean cruzou os braços sobre o peito e olhou para o amigo. – Um homem não dá desculpas.
– Então me arranja um vestidinho. – debochou, jogando-se em um sofá velho com cheiro de suor e cerveja.
Jean negou com a cabeça e expirou um riso sem humor, depois voltou para o motor de um dos carros em que trabalhava antes da chegada de .
– Sabe a diferença entre você e o Schumacher? – O ganês indagou, mas não o respondeu. – Base. Cabeça. Enquanto você ficar culpando os outros pelos seus erros...
– Meus erros? – se levantou e se aproximou do amigo. – Eu teria feito diferente, quis parar antes, não deixaram. Foi uma corrida de tudo ou nada por causa do erro da equipe. – Acusou ele apontando para fora, como se ainda estivessem no autódromo.
– Você não é fácil. – Jean acusou apontando para o rosto de . – Se eu fosse um mecânico, ou trabalhasse com você, não me esforçaria também. – encarava o amigo com sobrancelhas juntas e lábios entreabertos, respirando pela boca, como sempre fazia quando ofegante, nervoso ou fora de seu centro. – Você quer ser rei quando precisa ser líder.
– Eu preciso que todo mundo faça seu trabalho. – O americano bufou, apoiando as mãos na lateral do carro e inclinando a cabeça. – Que todo mundo faça seu trabalho direito.
– Você não entende. – Jean riu outra vez, balançando a cabeça negativamente. – Não entende e talvez nunca vá. – Falou se afastando e abrindo uma pequena geladeira, no fundo da garagem e tirando de lá duas cervejas.
– Sou duas vezes campeão mundial. – projetou o lábio inferior e riu, recebendo a cerveja das mãos do amigo e a abrindo com ajuda da barra camiseta. – Talvez não precise entender nada.
Jean negou com a cabeça outra vez, mas correspondeu ao brinde que propôs.
– Mas eu não vim aqui pra falar disso, nem pra ouvir seu papo sobre família, leis e seus códigos de conduta. – O piloto ergueu as sobrancelhas. – O que tem pra mim hoje? – ergueu o queixo e olhou de modo sugestivo para amigo, que riu e desviou o olhar.
– Depende do que quer.
– O melhor que tiver, parceiro. – arqueou uma sobrancelha e maneou a cabeça. – Essa noite é minha.
Jean riu, ergueu sua cerveja e os dois brindaram outra vez.
Abril de 2002, Aspremont – França
Casa de e Alex
Quando passou pelos muros de pedra que cercavam as terras da família, já no caminho de ciprestes avistou um carro diferente, um conversível vermelho que a jornalista não conhecia. Pensou que podia ser alguém visitando o pai, alguém do trabalho, então tentou ser silenciosa. Levou seu carro devagar até a lateral da casa, saiu e fechou a porta com delicadeza para não chamar atenção. Tentou adivinhar, pelo som das vozes, em que parte da casa os visitantes deviam estar. Pelo som distante, deviam estar nos fundos, perto da cozinha ou na cozinha.
era especialista em descobrir pessoas pelo modo com que o som de suas vozes e passos chegavam aos seus ouvidos. Havia crescido evitando interagir com os amigos e visitas do pai, tinha um pouco de preguiça e preferia evitá-los sempre que possível. A francesa entrou devagar, lutando para não fazer barulho, passou pelo hall de entrada na ponta dos pés e se dirigiu as escadas, mas quando alcançava o terceiro degrau, foi interceptada pelo grupo que chegava a sala, vindos da cozinha.
– Aí está você. – Alex, seu pai, a saudou, como se encontrar fosse o seu objetivo.
– Papa. – Ela sorriu amarelo, girou em seus calcanhares para cumprimentar as visitas com um sorriso sem jeito. – Olá.
Os dois homens a responderam com sorrisos e acenos de cabeça. Um era mais velho, o lábio superior era coberto por um bigode grosso e salpicado de pelos grisalhos, as sobrancelhas retas davam aos olhos azuis um tom de severidade. Ele poderia interpretar qualquer general duro e invencível em qualquer filme de guerra se fosse um ator. Mas o conhecia, já o tinha visto muitas vezes, se tratava de Antoine François, chefe e uma espécie de amigo de seu pai. Era um ex-piloto de Fórmula Um, empresário, herdeiro e muito, muito rico. O homem que o acompanhava era mais jovem, devia ser pouco mais velho que a jovem francesa, tinha cabelos cor de mel penteados em um topete, olhos verdes calmos e um sorriso gengival. Tinha pele bronzeada, sardas e o rosto meio queimado de sol, era mais baixo que . Não sabia quem era esse, mas definitivamente não era francês, ou de Mônaco. Tudo nele gritava turista.
– François e seu sobrinho vieram nos fazer uma visita. – O pai retomou a palavra e viu François erguer as sobrancelhas como se a cumprimentasse outra vez. Algo atiçou sua intuição.
– Você me parece melhor do que da última vez que a vi. – François a saudou enfim. – Está grande e bonita, mas diferente. Parece com seu pai, mas tem os traços fortes do seu irmão. – Disse ele e sorriu fraco, depois olhou para o mais jovem, a quem ainda não havia sido apresentada. – Ah, e esse é meu sobrinho...
– O piloto. – A jovem completou, em seguida afastou o olhar do mais velho e desceu os degraus de escada que ainda a afastava deles, ficando um pouco mais próxima do mais jovem.
– Esse não. – François respondeu sem muita animação, talvez estivesse entediado por ela não ter reconhecido logo de início de que não se tratava do sobrinho piloto e famoso.
– Eu sou o irmão normal, na verdade. – O mais jovem sorriu e esticou a mão em um cumprimento que correspondeu. – Dino .
– É um prazer conhece-lo. – Ela sorriu. – .
– François está aqui a sua procura. – O pai chamou sua atenção, falando com suavidade e olhou devagar de Dino para o pai, surpresa.
– Eu? – A jornalista riu fraco.
– Soube que terminou a faculdade, jornalista, não é? – François indagou e enquanto falava, Alex indicou em silêncio para que fossem para a sala.
– Sim, me formei recentemente. – A jovem respondeu olhando sugestivamente para o pai e ocupando uma poltrona, enquanto os visitantes se sentavam no sofá.
– Não vou fazer rodeios, você como jornalista deve saber também que, fatos expostos de modo direto e em falas simples são mais efetivos. – O empresário recostou-se ao sofá e abriu o botão do blazer que usava.
– Isso é algo que não sei se concordo. – sorriu educada e endireitou a coluna. – Mas nesse momento, não acho que tenha motivos para não ir direto ao ponto.
– Claro. – François expirou um riso. – , sempre é direta e espirituosa assim? – Perguntou de modo retórico e a jornalista estreitou o olhar, mantendo o sorriso leve e educado nos lábios. – As mulheres deveriam ser mais como você. – François sorriu, inclinou a cabeça e pareceu tentar limpar a garganta. – Bem, não farei rodeios, então. – Ela sorriu assentindo. – Um amigo me disse de uma vaga em uma coluna de esportes, cobertura de Fórmula Um. Uma mídia internacional com representantes em todo mundo. Gostaria de indicar seu nome.
– Nossa. – Ela expirou surpresa. – Não esperava algo assim no dia de hoje. – se ajeitou na poltrona, olhando de canto para o pai.
– Sei que é algo grande, mas confio no seu potencial. – François voltou a falar e pelo semblante de seu sobrinho, a proposta era nova até para ele. – Você é filha do Alex, não há nada de ruim que saia dele. – François riu abafado. – Além do péssimo gosto para bebidas.
sorriu nervosa, enquanto Alex e François gargalhavam da piada do visitante. No mesmo momento, como se providenciado pelo Divino, o som de uma chaleira que era aquecida na cozinha chegou aos ouvidos deles e pôs-se de pé em um pulo.
– O chá. – Anunciou ela. – Papa, você gostaria de me ajudar? – sorriu para o velho Alex, como se aquilo não fosse apenas um pedido.
O anfitrião pediu licença aos dois e seguiu a filha para a cozinha.
– Achei que estávamos entendidos quanto a não pedir emprego para mim. – sibilou entredentes, empurrando contra o peito do pai um maço de erva doce que secava pendurado perto da janela. – Não pedir favores.
– Não pedi. – Alex deu de ombros, segurando o maço e o despedaçando, jogando na chaleira.
– Papa, por favor, não me... – tornou a falar, esforçando-se para não falar alto.
– Não pedi. – Ele repetiu a interrompendo. – Sou contra o nepotismo. – Disse ele, como se achasse graça daquela situação. – François veio até aqui com essa ideia. – Contou Alex ao tempo em que lhe alcançava um jogo de xícaras. – Esse não, o de louça chinesa. – Ele instruiu e viu a filha bufar e voltar ao armário. – E qual o problema em tentar. Você gosta de esportes, escrever sobre isso não vai ser difícil e é um emprego internacional. Um primeiro emprego internacional.
– É, mas eu já consegui um emprego. – Ela maneou a cabeça, ajeitando o conjunto em uma bandeja.
– O de Nice? – O pai a olhou com expectativa.
– Não. – Sussurrou ela. – Eles me rejeitaram, já tinham alguém em vista. – O pai apertou os lábios, empático. – Mas o jornal de Aspremont. Hubert, o editor. Ele foi... – demorou alguns instantes para pensar nas melhores palavras. – Ele foi bastante sedutor em sua proposta. – Contou com um sorriso de lado.
– Eu sabia que algo de bom sairia do Actualités. – O pai sorriu animado, ajeitando um ramo de alecrim junto ao pires de cada xícara. – Fosse um emprego ou... bem, um marido.
– Papa. – o repreendeu sorrindo, arremessando um biscoito de leite no mais velho. – Não acredito nisso. Por isso me mandou ao Actualités?
– Não, te sugeri porque conheci o Matthieu em uma livraria interessante e pensei que, a fama terrível que ele tem não deve ajudá-lo a se aquecer a noite, ele devia sentir falta de uma esposa. – Alex se divertia ao contar sua peripécia. – E bem, eu tinha uma filha solteira e com uma fama igualmente ruim. – negou com a cabeça, sorrindo, vendo o pai erguer a bandeja. – Vocês jornalistas solteiros costumam ser muito talentosos, focados e... solteiros.
Alex voltou para a sala com em seu encalço, ainda se divertindo com a ideia estapafúrdia do pai. O pai serviu os visitantes e logo todos estavam com suas xícaras em mãos e sentados novamente.
– Como estava dizendo, . – François retomou o assunto. – Gosto de jornalistas. No nosso meio, uma relação honesta com bons jornalistas sempre é o melhor caminho. Sempre nos facilita a vida. – Ele continuou após um longo gole de chá. – Além disso, gosto de dar exclusividade a jornalistas que conheço. É uma via de mão dupla.
Com aquelas palavras, pensou ter desvendado o que sua intuição tentava lhe dizer. Não era alguém conhecida, nem ativa ou engajada naquele esporte, nem como estudante de jornalismo ou como fã, mesmo sendo filha de Alex . Isso tornava a proposta de François estranha, sem mencionar o fato de que vagas assim, daquela magnitude, deviam ter uma concorrência gigante entre jornalistas com carreira no esporte. François também não a conhecia, era uma garota que há pouco havia deixado a faculdade, sua contratação não faria sentido a não ser que, fosse por meio da intercessão de alguém muito maior.
Inicialmente considerou que fosse em nome da amizade de François e seu pai, mas agora, a menção a vias duplas por parte do empresário francês foi a peça que faltava do quebra-cabeças. Ele queria algo em troca. A indicação de alguém cru e novo, filha de alguém com quem François possuía uma relação, para uma vaga importante... ele queria algo, queria controle.
– São viagens pelo mundo, cobertura das corridas, entrevistas... – François continuava, seu tom parecia o mesmo utilizado por vendedores. Bons vendedores.
– Eu estou realmente tocada. – se pronunciou enfim. – Lisonjeada, entendo que é uma grande oportunidade e com muita responsabilidade. – Ela sorriu. – Mas não sei se sou a melhor pessoa... eu... – A jovem francesa hesitou. – Não sou alguém que entende do esporte. Nunca me aproximei muito da Fórmula Um.
François franziu o cenho por dois segundos.
– Mas... não há um de vocês que adorava isso? – Ele indagou ainda de cenho franzido, colocando sua xícara sobre a mesa de centro. – Os carros e...
– Meu irmão. – respondeu, engolindo a forma sem empatia que François se referia ao irmão, demonstrando com seu descuido com as palavras, que toda aquela polidez e a proximidade que ele insistia em tentar demonstrar eram falsas, apenas para disfarçar suas verdadeiras intenções. – Meu irmão corria. – Ela completou, poupando o pai de fazê-lo. Alex encarava o fundo de sua xícara, com semblante neutro, enquanto o sobrinho de François parecia perdido em todo aquele contexto.
– Claro. – François deu de ombros, ignorando a atmosfera tensionada que havia se criado com o tom endurecido de . – Que seja então. – Ele sorriu. – Tenho certeza que é algo que pode aprender. Você tem o Alex, ele sabe tudo que precisa. – François continuou, como se ignorasse o desconforto dos anfitriões. – Pense, é uma chance que não chega para jornalistas recém-formados. Uma oportunidade. Um cavalo selado que não passará duas vezes. – Ele piscou. – E se, por acaso, você não gostar ou não se adaptar, pode voltar e se enfiar nas pilhas de papel e poeira com café morno que deve ser o jornal de Aspremont. – François gargalhou de sua própria piada, batendo uma vez no joelho do sobrinho, ao seu lado.
06
Abril de 2002, Aspremont – França
Casa de e Alex
Ao final da tarde, o sol começava a perder sua intensidade e seguia para o horizonte, atrás das colinas pequenas e das árvores, em direção ao oceano, onde iria se pôr em breve. estava sentada nos degraus da pequena varanda, o tronco inclinado sobre os joelhos, abraçava o próprio corpo enquanto sentia o vento bagunçar seus cabelos. Os olhos estavam na figura de seu pai e François, que conversavam perto do celeiro animadamente. As palavras do monegasco ainda ecoavam na cabeça de . A oportunidade caída do céu, de repente. Era muito bom para ser verdade e apesar do preço quase explícito nas palavras dele, ainda era uma proposta tentadora demais.
ouviu passos suaves e tranquilos no piso de madeira do chão da varanda, mas não se voltou para a direção dos passos. Se manteve imóvel, aguardando o que aconteceria a seguir, sem muita energia para ser simpática.
– . – Dino, sobrinho de François, se juntou a ela, sentando-se ao seu lado. – Queria pedir desculpas pelo meu tio. – O americano conseguiu capturar a atenção da jornalista, que o mirou com curiosidade. – Queria dizer que ele faz essas coisas sem querer, mas... – Dino riu fraco, inclinando a cabeça. – mas eu sei que não é verdade.
– Tudo bem. – Ela sorriu fechado, empática a ele. – Acho que já ouvi o suficiente sobre Antoine François para saber o que esperar ou não dele. – subiu os ombros e expirou, esticando os braços, mas mantendo as mãos unidas. – Ele é o tipo de cara que nunca vai mudar. – Dino assentiu com a cabeça, suspirando pensativo. – E eu preciso me desculpar também. – tornou a falar e Dino a olhou surpreso. – Por ter te confundido com seu irmão. Imagino que não seja muito agradável ficarem confundindo vocês, comparando...
Dino riu pelo nariz e inclinou a cabeça, apoiando os cotovelos nos joelhos.
– Você não conhece mesmo o meu irmão?
– Não. – Assumiu em um riso. – Não acompanho o esporte e também nunca o vi. Sendo sincera, só conheço François por causa do meu pai, mas não poderia me importar menos com a Fórmula Um.
– Mas como? – O mais velho se voltou para a direção da francesa, achando graça. – Seu pai trabalhou com a François- por anos e o seu irmão corre.
desviou o olhar e apertou os lábios em um sorriso fechado, sem jeito e que sumiu rapidamente de suas feições.
– É justamente por isso. – Ela respirou fundo antes de continuar. – Meu irmão morreu há alguns anos.
– Perdão. – Dino sentiu o sangue sumir do rosto. – Meu Deus. Eu juro. Não imaginava. Me desculpe.
apenas assentiu com a cabeça e voltou a olhar para o grande verde à sua frente. Dino se culpava por sua gafe e insensibilidade, não sabia o que fazer para se redimir. Tinha vontade de derreter ali, apenas para não precisar encará-la novamente.
– Espera. – O americano foi atravessado por uma constatação. – Meu tio sabe disso? François sabe que seu irmão... – O americano indagou e o olhou de novo, depois desviou o olhar e passou a observar as unhas.
– Ele até mandou umas coroas de flores na época. – Contou a jornalista.
– Uau. – Alfredino riu, chocado. – Ele sabia.
o olhou de novo, um tanto espantada com a reação dele. Dino ainda ria, incrédulo e injuriado. François era cruel. Sabia que o filho e irmão havia morrido há anos e falara com eles como se ele estivesse apenas em outro lugar. Era claro que François não dava a mínima para os , apenas para seus próprios interesses e vontades. Não estava ali porque queria dar uma chance a filha de um velho amigo, ele queria algo dos dois ali, François só se importava consigo mesmo. Dino temeu pelo irmão ao olhar a figura do tio, gargalhando com Alex como se há minutos atrás não houvesse espezinhado sobre a dor dele.
– Eu sinto muito por isso. – Dino lamentou. – Você... você vai aceitar o emprego?
– Eu não sei se quero rédeas. – levantou os ombros e sorriu.
– Você não devia. – O americano surpreendeu a jornalista, que estreitou o olhar. – Eu já senti o peso do cabresto do meu tio, e o meu irmão... sei como é. – Alfredino riu fraco, sem humor. – Ninguém devia viver assim. – Ele sorriu para a francesa. – Acho que você devia ficar em Aspremont. Seria mais feliz aqui.
– Por que você está falando contra seu tio? – sorriu. – Você não veio aqui para apoiar ele? Com ele?
Dino riu fraco, inclinando a cabeça outra vez, mantendo os olhos no sol que se escondia atrás das árvores.
– Às vezes não dá para proteger todo mundo, mas alguns eu posso. – Dino a olhou e piscou para a jornalista antes de se levantar.
não soube o que responder.
De longe, viram François acenar para chamar o sobrinho ao se aproximar do carro.
– Acho que é a minha deixa. – Dino sorriu, um pouco mais leve. – Foi um prazer conhecer você, .
– É, foi sim. – A jornalista ficou de pé, colocando as mãos nos bolsos traseiros do jeans que usava. – Você... – hesitou, maneando a cabeça. – Devia voltar, sem seu tio. Pra conhecer a casa e o celeiro, tem um pomar também e... – tirou uma das mãos do bolso e apontou para trás de si, em direção a casa.
– Eu volto. – Dino riu, baixou a cabeça e depois a ergueu de novo. – Eu vou voltar.
Dino e trocaram mais um sorriso antes que o americano entrasse no carro e Alex se juntasse a filha na varanda. François acenou para , que só respondeu com um aceno de cabeça breve. Pai e filha observaram os dois deixarem a propriedade contemplativos.
– Ele não é um partido ruim. – Alex sorriu de lado, provocando a filha após um longo e contemplativo silêncio.
– Ah, papai... – riu, rolando os olhos e deu as costas para o pai, subindo as escadas rindo.
– O que? Ele é mesmo um bom partido. – Alex também riu, subindo as escadas atrás dela. – É um bom menino. Você brincava com o irmão dele quando era criança. Estamos todos em família.
– Papai, eu não vou namorar com um François. – gargalhou, balançando a cabeça.
– Mas ele não é um François, ele é um . – O pai retorquiu. – Eles tem olhos azuis e muita presunção americana, mas até que não é um mal negócio.
– Papa. – ainda ria. – Sem . Sem americanos na minha vida.
– Mas o irmão é um bom partido...
Abril de 2002, Mônaco
Jean Le Pen estava apoiado a lateral de seu carro, usava uma camisa fina, branca, de botões e quase todos estavam abertos, na mão uma cerveja e estava rodeado de pessoas. Não se fala muito sobre a irônica inclinação de ricos por coisas fora da lei, e as corridas de rua eram bons exemplos disso. As pessoas que queriam um pouco de diversão e adrenalina para além da que os cassinos podiam oferecer estavam ali. A rua pouco movimentada estava cheia de carros caros e estilizados, havia música, bebida e muita gente, muitas mulheres também.
Jean se distraiu da conversa dos que o cercavam por um momento quando viu de longe o Nissan Skyline azul que subia a rua sem pressa. Parecia estar guardando pneus e potência para a corrida, aquele motorista sabia o que fazia. Quando o carro alcançou os outros, estacionou rápido e sem que fossem necessárias muito acertos, em uma manobra única e furtiva. saiu do carro sorrindo, caminhava do jeito de ser, solto, despreocupado, relaxado, dobrando os joelhos para fora a cada passo dado. O piloto de Fórmula Um era cumprimentado por todos como uma verdadeira celebridade e sorria como se tivesse sido treinado a isso, diferente de quando estava nas corridas de Fórmula Um.
– Achei que não vinha mais. – Jean falou arrastado, sorrindo.
– Eu precisei resolver uma coisinha antes. – respondeu, desviando o olhar para duas garotas que passavam por perto e em seguida tornou a olhar para o amigo, rindo com ele. – E aí, o que tem pra mim?
Jean se afastou do carro e deu um longo gole em sua cerveja enquanto se aproximava de .
– Tem uma coisa. – Sussurrou, apontando com o queixo para onde um pequeno grupo esperava, perto de três carros estacionados e posicionados estrategicamente para uma largada. – Dez mil, passando pelos cassinos.
– Só isso? – O americano riu com desdém, passando a mão pelo queixo.
– Nem todos aqui são pilotos de Fórmula Um. – Jean maneou a cabeça, batendo com o dedo indicador da mão que segurava a garrafa de cerveja no peito do amigo, sorrindo de canto. – Ou playboys americanos.
– Mas estamos em Mônaco, não estamos? – provocou, abrindo os braços.
O piloto enfiou as mãos nos bolsos da calça que usava e se dirigiu ao pequeno grupo de três. Dois eram brancos, cabelos tingidos e brincos na orelha, não eram monegascos, tinham sotaque americano e olhares presunçosos. O outro tinha pele amendoada, não era da região, mas não conseguiu adivinhar de onde ele vinha por seu sotaque.
– Então, vamos correr? – O piloto os cumprimentou.
Os dois americanos se entreolharam empolgados, provavelmente reconhecendo , mas o outro se manteve impassível.
– Sabe, eu estava pensando... – coçou o queixo de novo. A atenção de todos estava sobre ele, mas o piloto não se importava, se sentia em casa. – Vamos aumentar as apostas? – Ele maneou a cabeça e torceu os lábios. – Ninguém passa pela porta dos cassinos com menos de trinta mil no bolso.
– Ei, ninguém disse sobre aumentar as apostas. – Um dos homens que parecia ser americano falou, endireitando a postura.
inclinou a cabeça e desviou o olhar, depois ergueu a cabeça e sorriu de canto, maneou a cabeça e respondeu:
– Está em Mônaco, cara. Se não está satisfeito, pode pedir pra galera dar licença para você tirar seu carro.
As pessoas ao redor gritaram e o homem torceu os lábios a contragosto, cedendo ao piloto.
– De quanto está falando? – O homem de pele amendoada indagou, erguendo o queixo.
– Trinta mil. – O americano respondeu rápido. – É a primeira da noite, depois a brincadeira vai esquentando. – Ele sorriu de lado. – E então? Podemos correr?
– O que? Você? – O outro homem, que estava em silêncio indagou. – Você vai correr também?
– Está com medo de perder? – Jean, que assistia tudo calado ao lado do amigo, riu.
– Ninguém falou sobre correr por trinta mil contra a porra do príncipe de Mônaco. – O homem protestou, firme.
– Um piloto é um piloto, e se você não se garante como um, não devia nem ter tirado o carro da garagem. – Jean retorquiu.
– Pense nisso como uma oportunidade de vencer na rua o maior piloto de Fórmula Um. – riu pelo nariz e ergueu as sobrancelhas, o provocando, estufando o peito orgulhoso. – Se você perder, pelo menos vai ter história para contar. – Disse ele, dirigindo um olhar cúmplice para Jean, que sorriu de volta.
Abril de 2002, Mônaco
e Alex voltavam de um jantar em Mônaco. Alex era um grande apreciador da culinária italiana e Mônaco contava com ótimos restaurantes que serviam pratos magníficos. Era um dos vícios mais luxuosos do caça-talentos e antigo mecânico da François-, gastar muito dinheiro em restaurantes bons e ludibriar-se de prazer. Era isso que Alex sempre dissera a filha todas as vezes que ela o questionava sobre as contas altíssimas. Aquele era um de seus prazeres favoritos e um dos que quase perdera pela doença. Pensou que nunca mais poderia saborear um bom risoto, um bom vinho ou uma fruta suculenta que parecia ter saído do próprio Éden. E, já que felizmente havia sobrevivido, não perderia um dia sequer de oportunidade.
Estavam voltando para a casa, em Aspremont. Não era longe, fora de Mônaco, mas não era uma distância impossível de ser percorrida se em busca do tesouro certo. dirigia e falava, como havia feito durante todo o jantar e o dia, desde que François e Dino deixaram pai e filha naquela tarde. Alex já não sabia o que usar como argumento, duvidava conseguir aguentar mais algumas horas de falatório no mesmo assunto.
– Ele tem interesses escusos nisso tudo. – Ela continuou, dividindo a atenção do asfalto com o pai.
– Você adora essa palavra. – Alex revirou os olhos e sorriu. Sentia-se empanzinado pelo jantar, sem muito ânimo para conversas. – Veja, você pode fazer como Tróia. Afinal, se ele está tão ocupado em satisfazer os próprios interesses, pode esquecer de olhar bem para você. E então teria uma chance de provar para todos que espezinharam que, a grande deu a volta por cima.
sorriu, considerando a ideia.
– Até que me parece um bom plano. – Ela ponderou. – Mas se eu fizer mesmo isso, François pode retaliar contra nós. Contra você. – Ela falou sério, olhando para o velho Alex.
O homem sacudiu a cabeça negativamente, revirando os olhos outra vez e a filha sorriu, voltando a se concentrar na rua.
– Sabe, estamos mesmo é precisando de alguma diversão. – Falou pensativo.
não respondeu, apenas expirou profundamente e assentiu com a cabeça. Ao parar em um semáforo, perto da saída da região central e movimentada, a jornalista relaxou no banco, mexendo o pescoço, tentando relaxar a musculatura tensionada. Ainda esperavam a luz verde quando quatro carros passaram voando por eles, corriam mais do que o permitido e pela forma com que um dos carros ultrapassava os outros, a jornalista logo compreendeu do que se tratava e buscou o olhar do pai, que pareceu ler seus pensamentos.
– Não. – Alex negou com a cabeça, sorrindo. – Não é desse tipo de diversão.
– Pois eu acho que isso sim é um tipo de diversão que vale a pena. – se inclinou para frente, assistindo os carros subirem a rua e desaparecem em uma curva.
– Para alguém que não gosta de Fórmula Um, corridas de rua serem o único tipo de transgressão que você tolera é um tanto cômico. – O pai gargalhou quando a filha deu partida na luz verde.
– Eu gosto, mas nunca corri. – Ela deu de ombros. – Não em uma de verdade pelo menos. Então não conta. – A francesa tomou a direção oposta aos quatro carros, mas ainda os procurava no retrovisor. – Até porque, eu não tenho parentes ricos para me tirar da cadeia.
– É porque se você chegasse ao ponto de ser presa, provavelmente seu pai iria preso também.
Os dois gargalharam, percebendo que aquele cenário era o mais possível para os dois.
07
Abril de 2002, Principado de Mônaco
Casa dos François
Depois do passeio em Aspremont, Dino e François estavam de volta em casa, onde os dois garotos também viviam nos últimos anos. Os dois deixaram o carro no pátio largo na área externa da casa em Mônaco, François demonstrava seu calor jogando o blazer sobre um dos ombros e ajeitando os óculos escuros no rosto. Ele seguia em direção a entrada grande sem dar muita atenção ao sobrinho, mas começou a falar com ele, esperando que Dino o estivesse seguindo. E como o mais velho conhecia bem os costumes do tio, estava.
– Não quero que seu irmão fique sabendo sobre esse passeio. – O ex-piloto acendeu um cigarro tão rápido quanto andava. – Nem sobre a jornalista. – Dino o olhou de lado, confuso pelo segredo. – Vocês tem ideias altruístas demais. – Continuou o tio. – Você é como ele. Howard. – François se virou para o sobrinho, seus lábios estavam entortados para segurar o cigarro. – Com essa coisa estúpida de fazer o certo acima de tudo. Ninguém precisa saber de todos os truques e meios... – François deu de ombros e voltou a caminhar. – Vai ser bom que você aprenda algo útil comigo. Um dia vai ser você nesse lugar, cuidando de tudo para o e vai precisar entender como as coisas tem que ser feitas.
O tio ainda falava e andava, mas Dino congelou onde estava. Então aquele seria seu destino? Se continuasse como estava, seu destino seria ser para sempre o escudeiro de ?
Amava o irmão, adoraria passar a vida perto dele, mas não assim. Não sendo sujo e usando as pessoas para livrar a cara do irmão de todo e qualquer problema. Queria ter uma vida, tinha seus próprios sonhos e planos e neles não estava incluído se tornar outro François. Usar as pessoas, manipular para fins próprios... não, não queria ser aquilo.
Queria que fosse grande, sim. Queria que ele crescesse também. Mas não. Não se tornaria outro Antoine François, nunca seria como ele, nunca. Se o amava e admirava, para Dino era diferente. Amava o tio, claro, mas não o admirava e a cada dia que passava, o afeto entre eles ficava mais estremecido.
Abril de 2002, Catalunya – Espanha
Grande Prêmio da Espanha – Barcelona
A movimentação das equipes era intensa do lado e fora as garagens, era sexta-feira e estavam todos ocupados com os últimos preparativos para a quinta etapa do mundial da Fórmula Um. Em algumas horas teria início o segundo treino livre do dia, estava em seu espaço no motorhome se concentrando. Gostava de ficar longe de toda confusão e mídia antes de cada etapa, elas faziam sua mente ficar barulhenta e ele odiava quando aquilo acontecia. Já havia tomado sua medicação e estava pronto, mas não queria sair daquela atmosfera de paz e mansidão que seu pequeno cômodo no motorhome lhe oferecia.
Não havia muito espaço para luxo ali, segundo o tio, enfeitar o quarto era bobagem de menina, de pessoas deslumbradas por dinheiro. Não era o caso de . O piloto não era um daqueles que dá valor ao berço, ao dinheiro e ao poder que possuía. Claro que isso tudo era importante, não seria hipócrita em negar ou fingir que não amava o poder de fazer o que quiser, quando quiser, sem precisar pensar ou esperar. Amava o que o dinheiro e poder de sua família o proporcionava, mas fora ensinado que o dinheiro não era tudo. Talvez aquela fosse uma das poucas filosofias de vida que seu pai e François concordavam, dinheiro é pequeno e se você o coloca em primeiro lugar, é porque é escravo dele.
François costumava dizer que o homem que escolhe dinheiro ao poder é estúpido. Para ele, ser respeitado, admirado, ser grande e poderoso, invencível, tudo isso era muito melhor que ter dinheiro. Ser o maior. Aquela era a aspiração de vida que o tio lhe ensinara. Não precisava perder tempo com marketing, com patrocínio e investimentos como os outros pilotos faziam, aquilo poderia manchá-lo, era para pilotos normais, não para um François-. François dizia aquilo também.
Para , essa parte era besteira.
Gostaria de fazer propagandas, se ver na TV, se divertir com essas coisas para ver que sabor tinham, mas François nunca permitia. Só lhe restava suas fontes de divertimento nada ortodoxas, as corridas de rua, as festas, as mulheres, dias na piscina sem nada para fazer, viagens. Sua mãe lhe reprendera uma vez, para ela, vivia a vida de um rico grego. “Carpe diem”. Sua mãe era alguém muito inteligente, era psiquiatra e amante das artes e culturas. Mas era constantemente lembrado por François que mal a conhecia, saíra cedo de casa e passavam pouco tempo juntos. Talvez por sua inteligência ou sua devoção por seu trabalho, mais a conhecia pelos relatos dos outros, as histórias contadas por seu irmão e pelos recortes que tinha quando se falavam por telefone ou nos breves momentos em que se viam.
Nesses momentos ela costumava o repreender por seu modo de vida e dizer de seu arrependimento quanto a tê-lo deixado ir tão novo para junto de François. Um Dionísio, ela o chamava assim quando estava desapontada pelo comportamento exagerado e sem limites do filho. Apolo quando o piloto os ia visitar em seu país natal e aproveitava o calor e as praias. Chamava-o de Zeus quando ele era imperioso, cheio de si e acreditava que assim como no esporte ou em Mônaco, todos deviam se curvar ao seu querer. A mãe talvez fosse uma de suas maiores críticas. O pai também, mas este não era muito de conversas, quando decidia se posicionar o fazia com três ou quatro palavras e com distanciamento. sempre teve dúvida sobre o que era pior.
Tinha também os irmãos, mas com exceção de Dino, convivia tão pouco com os outros que não sentia qualquer profundidade de vínculo ou laço, como imaginava dever sentir. Mas Dino era diferente, era seu irmão mais velho, era meio pai, meio irmão, meio melhor amigo, meio confidente. Dino e François era o que tinha de mais íntimo se tratando de uma família.
Por isso, era Dino que estava ali com ele. Naquele pequeno cômodo, cheio de pôsteres de vitórias de . Alfredino encarava as imagens contemplativo a tempo suficiente para despertar incômodo e curiosidade no irmão mais novo.
– Se apaixonou, Dino? – atirou uma camiseta no irmão, tentando chamar sua atenção.
Alfredino riu pelo nariz e negou com a cabeça, afastando-se dos pôsteres e se sentando em uma cadeira.
– O que foi? – perguntou, arqueando as sobrancelhas com expectativa. – Fiquei em um ângulo ruim? – Brincou, tentando maquiar a curiosidade que o incomodava.
– Só estava pensando. – Respondeu o mais velho, contemplativo, ignorando a brincadeira do irmão, deixando-o ainda mais ansioso.
– Eu tô esperando você continuar. – falou após alguns instantes em silêncio, encarando Dino.
Dino expirou um riso fraco, apoiou os cotovelos nos joelhos e passou as mãos no rosto.
– Você... – Ele hesitou. – François já fez alguma coisa que você não concordou? Que achou ruim?
A primeira reação de foi a de estreitar o olhar, confuso, depois ele riu.
– O que? – O piloto negou com a cabeça, um pouco perdido. – Tipo o que? Do que tá falando? Não. – ergueu os ombros. – Não, não fico prestando atenção no que o Tonton faz. – O americano maneou a cabeça. – Mas se conta, eu não gosto quando ele não me deixa sair quando eu quero.
Dino olhou o irmão em silêncio por alguns instantes, pensando sobre como devia funcionar aquela cabeça.
– O que você espera do futuro, ?
– Ser campeão. – O piloto ficou de pé e deu as costas para o irmão, adotando um tom pouco mais severo, aproximando-se de uma pequena mesa e comendo algumas uvas verdes que ali estavam, em uma tigela de vidro. – E só.
– Comecei a pensar sobre o meu. – Alfredino tornou a falar, os olhos estavam fixos no nada, contemplativo outra vez, como se falasse para si mesmo. – Talvez esteja na hora de eu ir atrás do meu futuro. – o olhou, curioso. – Talvez devesse voltar para a América.
arregalou os olhos, chocado.
– Não! Ficou maluco? – O piloto tinha os ombros tensos e sobrancelhas juntas, falava com dedo erguido na direção do irmão. – Não vai voltar. Você não vai voltar.
– Você é o piloto, . – Dino falou, mantendo a calma. – Eu não tenho o que fazer aqui.
– Você tem sim, você vai ficar aqui comigo. – O piloto colocou uma das mãos no ombro do irmão e falou olhando em seus olhos. – Que tipo de irmão é você? Você não vai voltar pra lá. Você deve estar cansado, ou maluco, ou cansado e maluco. Mas não vai voltar. Só precisa de uns dias de folga, Saint Tropez. Na pausa de verão nós vamos pra lá e você vai tirar essa ideia ridícula da cabeça. Isso não tem nada ver, você não vai voltar. – estava agitado, caminhou em direção a porta. – Não vai, Dino. Não vai.
O início da carreira de jornalista de seria em Barcelona. Depois de muitas crises existenciais, a jornalista aceitara a proposta de Antoine François. Era torto, mas era um início e tanto, muito maior do que qualquer colega de turma, um tiro alto demais até para alguns jornalistas formados há anos. Não seria frente as câmeras, entrevistando pessoas, seria por trás delas, escrevendo, onde mais amava estar. Era longe do jornalismo investigativo que tanto amava, mas tinha conversado com seu quase futuro chefe, Matthieu Hubert e poderia escrever para o jornal em Aspremont de forma independente. Por hora, seus desejos e sonhos podiam esperar, seria mais fácil alimentá-los depois que tivesse alguma estabilidade.
Ainda era estranho estar ali, era como se estivesse fora da forma, fora do lugar. O ambiente, os termos, as pessoas, tudo lhe era muito estranho e precisava pesquisar quase todas as palavras que ouvia, além dos múltiplos idiomas falados por todos naquele meio. Felizmente seu trabalho consistia em organizar, transcrever e editar as entrevistas para o jornal, separar as melhores e mais importantes e ajudar os repórteres de campo no que fosse preciso. Assim poderia disfarçar por mais tempo seu pobre conhecimento no assunto.
Ela ainda não sabia se era normal naquele ambiente, ou se era devido a indicação do próprio François, “suas costas quentes”, mas todos pareciam medir muito suas palavras antes de qualquer conversa com a francesa. Ou talvez pensassem antes de falar com qualquer jornalista. Mas dentro da equipe também era assim, como se todos a olhassem de canto de olhos, curiosos. Imaginava o porquê, uma jornalista recém-formada ocupando aquela posição? Deviam pensar que tinha alguma relação mais íntima com a Família François, ou que estivesse ali como uma peça encaixada especial por ele. Ela não levaria fé e desconfiaria de alguém naquela posição, por isso não culpava os outros. Mal sabiam eles o tipo de jornalista que era.
Barcelona era quente e o ar era pegajoso, mesmo usando as roupas mais frescas que possuía, não parecia suficiente. Derretia e sentia as costas suarem, assim como a parte de trás dos joelhos. Via a movimentação de pessoas de um lado para o outro, pessoas com copos de café, conversando concentradas e não fazia qualquer ideia sobre o que falavam. Assistia tudo com o queixo apoiado com a mão, distraída com os xingamentos que fazia ao clima do país.
– Café? – Alguém se aproximou de repente, sentando-se sobre a mesa que ocupava, empurrando na direção dela um copo grande de café. ergueu o rosto e o olhou com sobrancelhas juntas, confusa. Era um homem alto, cabelos e olhos claros, ele estava sentado de costas para a direção que a jornalista olhava antes, e ao lado dela.
– Perdão? – Ela falou em inglês, idioma utilizado por ele.
– Café. – Ele arqueou as sobrancelhas e sorriu, levando um copo de café que segurava aos lábios. maneou a cabeça, ainda desconfiada. – Dizem que isso traz bom ânimo.
– E quem disse que eu preciso de bom ânimo? – arqueou uma sobrancelha, tentando adivinhar suas intenções.
Ele maneou a cabeça, sorriu e deu outro gole no café.
– Você está aqui, completamente entediada, com esse jeitinho de quem queria estar em qualquer outro lugar. – Ele expirou um riso frouxo. – Me parece alguém que precisa de ânimo. – Ele deu outro gole no café e ergueu as sobrancelhas, falando mais baixo. – Ou algo mais.
– Você é sempre presunçoso assim? – recostou-se a cadeira e sorriu, agitando uma caneta que tinha nas mãos. – Ou a arrogância é parte do pacote por aqui?
– Ah, não aja como se eu não fosse especial. – Ele revirou os olhos, achando graça. – Assim você parte meu coração. – Ele olhou no fundo dos olhos da francesa.
– Desculpe destruir seu mundo de sonhos, mas você não é especial. – ergueu o queixo. – Mas obrigada pelo café.
– Ainda não sou. – Ele enfatizou a primeira palavra da frase, corrigindo-a e tocou a ponta do nariz dela com o dedo indicador. – Pelo menos ainda não para você.
– Ah... o ego frágil masculino. – riu pelo nariz.
– Michael. – Ele sorriu de volta, esticando uma das mãos na direção dela. – Ao seu dispor.
– . – Ela retribuiu o gesto, sorrindo de canto.
Era sábado, voltava para a garagem de sua equipe com capacete em mãos e um amargo terceiro lugar para início da corrida do dia seguinte no bolso. Havia acabado de dar entrevistas pós-classificação e ignorando perguntas atravessadas sobre supostas voltas rápidas que deviam ter sido excluídas e não foram. Não entendia o que aqueles jornalistas podiam esperar, ou o que queriam dele. Mal havia colocado os pés para fora do carro e já fora bombardeado por inúmeras perguntas e indagações sobre a comissão de prova, sobre as decisões dos comissários. Se pudesse nem mesmo daria entrevistas, mas era uma obrigação – muito mais por François do que pela equipe ou federação.
Pensava nisso quando percorria a distância final até a garagem de sua equipe, e ao ver que cruzaria com alguns pilotos que conversavam em um canto. O piloto americano ergueu o rosto decidido e apressou o passo, não estava com ânimo para intrigas, para perder tempo com chateações. Trulli, Pablo Montoya e Davinson estavam reunidos, encostados a garagem da Renault, os três começaram a rir e trocar olhares quando se aproximou.
– Olhe, cuidado. – Pablo fingiu se assustar e procurar por algo que estava longe, saltando na frente de e o impedindo de continuar e mesmo que ele tentasse, era cercado por um ou por outro do trio. – Ai vem o trator .
– Cuidado, Juan. – Trulli bateu com o dorso da mão no ombro do colombiano. – Se ele te atropelar, nem a federação vem em seu socorro. – Provocou e bufou rolando os olhos, perdendo a paciência que já não tinha.
– Deve ser mesmo bom ser um François-, não é? – Montoya cruzou os braços sobre o peito e sorriu. – Me conta, , seu tio monta seu prato para você também? Ou escolhe suas roupas, ou...
não era conhecido por um temperamento dócil e sereno, ao contrário, era imperioso e impulsivo, sangue quente, pavio curto. Estava tentando evitar mais conflitos porque aquele tipo de provocação era comum desde sua estreia no esporte, até mesmo antes, nas categorias anteriores. Mas as palavras de Montoya conseguiram extrapolar todos os limites do jogador, que em um ímpeto, avançou para cima de Montoya.
Por capricho do destino, por perto estava passando Dino , que percebeu o que acontecia antes que algo mais sério acontecesse – de novo – e interveio.
– Irmão, que bom te encontrar aqui. – Dino abraçou o irmão mais novo de lado, o imobilizando e afastando-o com dificuldade dos três.
– Me solte! – Ordenou , imperioso, enquanto Pablo e os outros se afastavam um pouco de sua fúria, ainda se divertindo com sua reação. – Já mandei me soltar.
– François está te procurando. – Dino tornou a falar, apertando o irmão com mais força e lutando para afastá-lo dos outros pilotos, que acenavam e sorriam com deboche.
– Me largue. Agora. – tentou empurrar o irmão mais velho.
– Não adianta ceder a provocação deles. – Dino falou sério, com firmeza, enfim liberando o irmão quando estavam a uma distância segura do trio. – É só assim que eles vão conseguir te afetar.
– Não me venha com discursos agora. – deu as costas ao irmão, pisando firme em direção a garagem. – Você não escuta o que eu escuto. Você não vive na minha pele. – falou alto, entrando nas dependências da garagem da McLaren sob o olhar atento de François, que seguiu os dois irmãos para dentro. – Não vem aqui dar lições sobre ser superior.
– Não é sobre ser superior. – Dino continuou, ignorando o tom do irmão caçula. – Não vê que é justamente isso que eles querem? Desestabilizar você?
– Que se fodam, Dino! Não me importo se querem me desestabilizar, eu vou desestabilizar a boca dele com a minha mão, vou...
não conseguiu terminar, foram interrompidos por um grito de François e um tapa forte na porta dado pelo tio. olhou para o tio de olhos arregalados e Dino baixou a cabeça.
– Já chega de show. – François se aproximou do sobrinho com dedo erguido. – Quer chamar a atenção da imprensa toda? Como um moleque? Um garoto estúpido?
– Eu não sou estúpido! Eu estou cansado! – protestou, erguendo a voz. – Essas pessoas falando de mim. Aguentar a provocação em silêncio. Quieto. Apanhar calado.
– É bom. É bom, porque logo vai ter que apanhar de verdade e calado. – François ensaiou erguer a mão na direção do sobrinho, que se encolheu. – Garoto estúpido. Chorando por causa desses imbecis.
– François. – Dino, chocado com a cena, tentou entrar na frente do irmão. – Não pode tratá-lo assim. não tem culpa do que falam.
– E você está falando por que? – François rosnou para o sobrinho. – Alguém pediu sua opinião? Ou perguntou alguma coisa?
– é meu irmão, eu não vou ficar... – Dino ergueu a voz.
– Dino, chega. – se fez ser ouvido, endireitando os ombros e enfim falando algo, para surpresa de Dino. – Não preciso de defesa.
– Enfim, alguma coisa que preste está saindo da sua boca. – François rolou os olhos.
– O que você está falando? – Dino encarou o irmão, chocado.
– Chega, Dino. – , que antes estava encolhido em um canto da parede, se afastou, vestindo um olhar impassível e expressão fria. – Tonton tem razão.
– Espera. O que? – Dino riu, confuso. – Ele tem razão? Mas ele... – O americano mais velho estava atordoado.
– Não preciso agora de problemas com a imprensa também. – deu de ombros e começou a caminhar rumo a saída, sob o olhar perplexo do irmão. – Ele tem razão.
Era inacreditável e a cada dia mais insustentável conviver com François. Alfredino estava irado, tinha pego o primeiro táxi que encontrou e ido ao primeiro bar aberto que achou. Precisava beber, talvez se estivesse completamente fora de si fosse capaz de compreender como a cabeça do irmão funcionava. François era autoritário, rude, não se importava com ninguém além de si mesmo e de seus interesses, era até cruel. Como podia continuar com aquela obediência cega pelo tio? Será que na mente pequena e simplória do piloto, ele acreditava dever algo a François? Ou era tão cego a ponto de validar tudo que o mentor dizia ou fazia? Até mesmo quando o subjugava?
Dino já estava no quarto copo de uísque duplo sem que percebesse qualquer efeito entorpecente ou relaxante. O bar estava quase vazio, o ambiente era escuro e parecia um daqueles bares vintage, com decoração antiga e bancos de couro, iluminação amarelada e abajures espalhados.
– Será que ganho uma moeda por encontrar um perdido em Barcelona? – sorriu, sentando-se junto a Dino sem avisar ou ser convidada.
– . – Ele constatou, olhando ao redor para confirmar se ela estava sozinha. – O que faz aqui?
– Eu estava passando e achei o bar bonitinho. – Ela deu de ombros, apoiando os cotovelos na mesa. – E estava desesperadamente procurando por um rosto conhecido. Você foi meu oásis. – Ela sorriu e Dino a imitou.
– Você aceitou o emprego. – Ele se deu conta, sentindo seu pesar aumentar. – Como está indo? – Dino ergueu dois dedos, chamando a atenção de um garçom.
– Eu me sinto uma impostora. – A francesa riu pelo nariz. – Mas ao mesmo tempo sinto que consigo fingir muito bem. Até agora ninguém desconfia que eu não faça ideia sobre como funciona esse universo. – Contou e Dino riu fraco. – O mesmo que o dele. – Ela disse quando o garçom se aproximou e Dino ergueu as sobrancelhas. – O que é? Sou filha de Alexander , você deve imaginar porque ele teve câncer. – Ela inclinou a cabeça e arqueou uma sobrancelha.
– Não paro de me surpreender. – Dino sorriu e em seguida mais dois uísques foram servidos, um para e outro para o americano.
– Por que você estava procurando alguém conhecido? – Dino voltou a puxar assunto, depois de ver a jornalista dar um longo gole no uísque sem fazer careta.
– Tenho a impressão que todos lá medem suas palavras comigo. – Ela contou, tocando a borda do copo com a ponta do dedo. – Como se temessem que eu não estivesse ali para fazer o meu trabalho, mas sim para cuidar dos interesses de alguém.
– E não é justamente isso? – Alfredino não pode conter o lábio que repuxou com desprezo. – Não é por isso que ele colocou você lá? Que te arrumou o emprego?
– Ele não foi exatamente claro, eu prefiro a livre interpretação desse fato, especificamente. – ergueu um ombro e capturou a atenção de Dino. – Existem muitas verdades, Dino. A sua, a minha, as compreensões e entendimentos são diversos. E para cada acordo firmado no mundo existe uma brecha.
– E você, deve ser boa em encontrar brechas. – Ele sorriu, recostando-se a cadeira.
– Eu não gosto de cabresto.
– , François não é alguém para ser traído. – Dino alertou depois de sorrir, expirar e balançar a cabeça negativamente. – Por mais que eu adore pensar na possibilidade, me preocupa o que ele pode fazer. Sua carreira vai acabar antes mesmo de começar.
– É um risco que eu assumi. – Ela falou firme, tomando mais um gole de sua bebida.
– Você é idealista, sem juízo, deve ser porque acabou de sair da faculdade e acha que vai mudar o mundo. – Dino esticou uma das mãos sobre a mesa e segurou a mão da jornalista. – Mas esse mundo, esse que você está agora, ele é diferente. Ele vai te mastigar e cuspir, ainda vai pisar em você, só porque não é um cara rico que dirige carros.
– Dino, eu não sou inocente. – Ela o olhou nos olhos. – Não me subestime. Não tanto assim. – sorriu.
– Não te subestimo, só me preocupo. – Dino sorriu e deu um gole em seu copo, afastando-se dela.
– Ele é o seu tio, até onde sei, é o mentor do seu irmão. – lembrou e Dino sentiu o estômago revirar.
– E quem disse que isso são coisas boas? – Alfredino sorriu amargamente e desviou o olhar.
Houve um breve silêncio.
– Citamos seu irmão na matéria que vai ao ar amanhã. – contou depois de certo tempo. – Sobre a classificação.
– É, foi uma classificação difícil. – Comentou o americano. – Meu irmão, ele...
– Se envolveu em uma confusão com outros três pilotos? – completou. – Eu sei. Citamos isso também. Desculpe.
– Citaram? – Dino arregalou os olhos.
– O texto não é meu, eu só ajudei a revisar e editar. – fez um barulho com a boca. – Parece que deixei passar algumas coisas, espero que seu tio perdoe o errinho. – Ela debochou.
– Ainda estamos falando do meu irmão, . – Dino a repreendeu com o olhar.
– Como acha que eu poderia dizer a verdade, traindo François, como você disse, sem respingar no piloto protegido dele? – Fora vez de erguer as sobrancelhas, confusa. Dino não respondeu. – Eu lamento, mas, se ele não quer ter o nome vinculado a esse tipo de notícia, é só não se meter nesse tipo de situação.
Dino negou com a cabeça e suspirou.
– Meu irmão não é essa pessoa que está achando. – Alfredino tornou a falar. – François fez dele um deus, ele não teve muita escolha. É a única coisa que ele conhece.
– E isso devia me fazer trata-lo de forma diferente? – arqueou uma sobrancelha outra vez. Em seguida ela sacudiu a cabeça e esticou uma das mãos sobre a mesa, segurando a mão do americano. – Escute, nós escrevemos sobre o que acontece nas pistas. Não sei quem é o pessoa, nem mesmo poderia reconhece-lo se o visse sem capacete. Pra mim, do lado de fora das pistas não importa.
– É irônico o que vou dizer agora, mas ... – Dino expirou um riso fraco, voltando a se recostar na cadeira. – François sempre diz que você tem que olhar para o piloto fora das pistas, a relação com a equipe. Precisa entender quem está por trás de tudo, para entender as motivações dele na pista, como ele funciona.
– Parece uma lição interessante. – Comentou .
– O piloto não é uma peça que existe fora do carro, sem importância. Precisa haver uma relação boa com a equipe, ele precisa conhecer o carro, ouvir o carro. Precisa ter o respeito da equipe e a confiança deles. – Dino continuou. – Não importa o quanto uma equipe revire um carro, há coisas que a máquina só vai dizer ao seu piloto.
– Você entende muito desse universo também, não é?
– Aprendi. – Dino maneou a cabeça. – Querendo ou não, sou o primeiro herdeiro pelo lado dos . Temos uma equipe de Fórmula Um para tocar. – Ele sorriu. – E claro, François quer me transformar em alguém como ele para cuidar do quando ele não puder mais. – Confidenciou, baixando a cabeça.
– Acho que você merece mais que isso. – falou e o americano ergueu o rosto. – Muito mais que isso.
Dino não respondeu, estavam próximos o suficiente para que o próximo movimento do herdeiro americano fosse beijá-la. E não recuou.
subiu as escadas do motorhome de sua equipe, estava animado, logo mais aconteceria o Grande Prêmio da Espanha e apesar de uma classificação ruim, estava motivado. Não seria difícil alcançar seus adversários e chegar na ponta, esperava – segundo a estratégia – estar disputando o primeiro lugar até antes da metade das voltas. Schumacher largaria da oitava posição depois de um treino ruim e de penalizações. Felizmente não receberá nenhuma e podia contar com a sorte e seu talento para superar o rival em mais uma corrida.
O piloto tinha uma garrafa de uísque nas mãos e procurava o irmão. Desde a situação no dia anterior, não havia visto ou conversado com Dino. Entendia as discordâncias do irmão com François, apesar de estas estarem mais vivas que nunca. Também entendia que não podia se meter em mais confusões do que as que costumava estar. As provocações de outros pilotos e jornalistas eram comuns e quase que normais ao piloto – não que isso não o magoasse. Aquele tipo de crítica era justamente esperado e carregava aquele peso desde sempre. Esse era um dos motivos para não correr pela equipe da família, a François-. Segundo o pai, era bom e não precisava estar na equipe da família – que àquela altura protagonizava o meio do grid – para ter um lugar no esporte. E também, para Howard, as críticas triplicariam se ele dirigisse pela escuderia da família. Lá ele não seria apenas o piloto, seria dono, filho do dono, sobrinho do dono, herdeiro, e aquilo poderia colocar toda a equipe em uma situação delicada.
achava besteira, mas não se importava muito com qual equipe defendia, desde que ele tivesse um carro bom e competitivo, uma equipe eficiente e uma estratégia boa.
O americano havia pensado sobre aqueles assuntos por toda a noite e agora buscava o irmão, encontrando-o em uma das áreas privadas do motorhome.
– Olá, olá! – saudou, enfiando as cabeça para dentro do cômodo e sorrindo.
– Oi. – Dino sorriu, terminava de se vestir, escolhia e colocava uma camiseta com a marca da equipe do irmão.
– Estava passando por aí e vi essa beleza. – entrou, fingiu admirar a garrafa que tinha em mãos. – Pensei, por que não dar de presente para o melhor e maior apreciador de uísque de toda a América. Não, melhor, de todo mundo. – Dino sorriu e também, esticando a garrafa para o irmão. – Pegue. Tome. É seu. – Ele incentivou.
– Obrigado, mas não é preciso. – Dino sorriu, passou pelo irmão e voltou a se ajeitar.
– É um pedido de desculpas. Por ontem. – o seguiu. – Vamos, Dino. Vamos. Aceite. – insistiu.
– Não é preciso, tudo está bem. – Alfredino deu de ombros. – Não há com o que se preocupar.
estreitou o olhar e observou o irmão, curioso.
– O que se passou? – Perguntou, sentando-se uma cadeira qualquer, disponível por perto e Dino sorriu ladino.
– Se passou uma garota, em um bar ontem. – Contou, dando de ombros, ajeitando a gola da camiseta no espelho.
– Você teve tempo? Que malandro! – gargalhou e ficou de pé, abraçando o irmão pelo pescoço e bagunçando seus cabelos molhados. – Foi só uma coisa de bar ou...
– Não sei. – Dino respondeu sincero, erguendo os ombros. – Ela é uma conhecida de outros dias.
– E quando eu aqui vou conhece-la? – Quis saber o piloto. – Não precisava ficar com ciúmes, dessa vez vou fingir que é uma baranga e prometo não tomar ela de você. – riu.
– Não, vai conhecer, provavelmente. – Dino ignorou a brincadeira do irmão. – Não por minha causa, pelo menos. – Ele respondeu e o irmão franziu o cenho. – Foi só uma noite, um encontro em um bar e mesmo tendo sido bom, apesar dela ser ótima, não quero ninguém aqui.
– Aqui de Barcelona? – voltou a se sentar. – É, as garotas aqui são bem excêntricas mesmo. – torceu os lábios, enfim colocando a garrafa de uísque sobre um pequeno aparador.
– Não, não quero ninguém aqui da Europa.
– Como assim? – riu confuso. – Quer seguir o exemplo da mamãe? Ou aquela máxima do papai sobre americanos?
– Nenhum dos dois. – Dino ainda estava de costas para . – Não quero nada que me prenda aqui, quero ficar livre.
– Disso eu entendo. – riu alto.
– Livre para voltar. – Continuou Dino e o semblante alegre de mudou.
– Voltar?
Dino não respondeu e negou com a cabeça, expirou uma risada mecânica e fria, passou a mão no queixo de ficou de pé.
– Não vem com essa história de ir embora. – Falou .
– Você devia me apoiar, como meu irmão. – Dino enfim encarou o irmão caçula. – Assim como eu fiz com você.
– Mas você está me traindo agora. Agora você está me dando as costas. – Apontou .
– Eu? – Dino tocou o próprio peito. – E fazer o que é melhor para mim, não viver para sempre na sua sombra, isso é trair você?
– Tonton me disse, ele sempre me disse. – voltou a falar, andava em círculos pelo cômodo. Dino encarava pasmado o irmão. – Disse que você logo fugiria também. Que não ia aguentar.
– O que? Que eu não ia aguentar o que? – Dino subiu a voz.
– Me diga, o que preciso fazer para você ficar? – Quis saber , colocando as mãos sobre os ombros do irmão. – Qualquer coisa. Só me diz o que preciso fazer para você não me abandonar também.
08
Maio de 2002, Aspremont – França
Casa dos
Era o primeiro dia de maio, dia do trabalhador.
Alex estava fora de casa, acompanhando uma prova na Alemanha, em busca de um jovem talento para a François-. estava sozinha, planejava ir até a cidade, talvez visitar o jornal – se estivesse aberto – tomar um café, ver o movimento pacato. Tinha tirado os últimos dias para estudar a Fórmula Um, seus pilotos, equipes, regulamento, história. Felizmente seu pai era um acumulador materialista histórico, a quantidade de fontes e referência ao esporte na pequena biblioteca que o velho usava de escritório era gigantesca.
estava imersa. Era uma boa profissional e como boa profissional, faria bem seu trabalho, não importando qual fosse. Não precisava se aposentar na Sport Quotidien, podia passar apenas uma temporada, criar contatos, pegar o jeito. Depois voltaria ao investigativo, sua paixão, ou até poderia se aventurar em coberturas de futebol. Afinal, cinquenta, sessenta anos de carreira eram tempo demais para passar em apenas um lugar, fazendo a mesma coisa.
estava na sala de TV, rodeada de anotações e papéis escritos pelo pai sobre o esporte. Na TV a reprise do jogo da noite anterior, Bayer Leverkusen contra Manchester United, mas mal prestava atenção. Era início da tarde, o sol estava alto e o clima agradável, mesmo que não o aproveitasse. Ainda lia sobre a François- quando ouviu o som de um carro se aproximando. A francesa estranhou, não esperava visitas, mas saiu do amontoado de papéis e foi até a janela mais próxima, puxou a cortina e tentou ver quem era. Sorriu quando enxergou quem dirigia o carro que havia acabado de estacionar em sua porta.
correu até a porta, ajeitando a roupa que usava, tentando ficar mais apresentável. Soltou os cabelos e tentou arrumá-los como se não tivesse intenção e abriu a porta devagar, como se não se importasse.
– Dino . – Ela sorriu e o visitante, que já estava de pé nos degraus da varanda sorriu. – Que surpresa.
– Eu disse que voltava. – Dino sorriu de volta.
– Disse. – ergueu o queixo. – É, você disse.
– Trouxe isso pra você. – O americano mostrou ao se aproximar, era um embrulho grande em papel pardo, com um laço de fita vermelho. – Não queria ser tão mal educado.
– Eu te convidei, não é falta de educação vir se te convidam. – sorriu de lado, recebendo o embrulho. – O que é?
Dino maneou a cabeça e desviou o olhar, sorrindo. sorriu de volta e abriu o pacote de qualquer maneira, revelando uma espécie de livro. A jornalista ergueu os olhos para o americano, franzindo o cenho, depois se pôs a folhear o livro.
– Uau. – Ela ficou admirada. – Isso é incrível. Deve ter... como fez tudo isso?
– Pode ser difícil de acreditar, mas eu também sou um , não foi uma tarefa impossível. – Brincou Dino. – Com isso você tem tudo que precisa saber pra se dar bem no trabalho novo.
– É muita coisa. – sorriu outra vez e abraçou Dino. – Obrigada. Acho que agora não tenho mais desculpas para não saber o que estou fazendo.
– Não por isso. – Ele sorriu fraco, sem jeito. – Você já está fazendo um bom trabalho, eu sei.
– Cuidado, Dino. – A francesa estreitou o olhar. – Me elogiando assim e com a sua influência, posso acabar ganhando um pouco de arrogância americana.
Ele riu jogando a cabeça para trás.
– E você diz como se isso fosse ruim?
– Bom... – hesitou, afastando-se dele e apontou para trás de si. – Posso te oferecer um chá ou uma cerveja? Por ter vindo até aqui só para me entregar isso?
– É, eu esperava mesmo beber alguma coisa. – Alfredino sorriu e estalou a língua no céu da boca, dando espaço para que ele entrasse primeiro.
Maio de 2002, Mônaco
– Onde está o dono dessa casa de ratos. – provocou, chamando na porta da garagem de Jean Le Pen.
O piloto olhava para dentro a procura e espera do amigo e demorou para que Jean o ouvisse. Quando ouviu, surgiu na porta com cenho franzido, curioso para descobrir quem ofendia seu santuário. Quando o ganês percebeu que era parado do lado de fora, apoiado a porta com as duas mãos sobre a cabeça, ele sorriu e relaxou. Era a primeira vez que via o amigo desde a corrida na Espanha, que o tinha consagrado campeão de mais uma.
– Olhe só o que a maré trouxe de Barcelona. – Jean brincou, limpando as mãos em uma flanela e se aproximando do amigo. – Boa corrida.
– Não foi nada demais. – ergueu os ombros, fingiu não dar importância e olhou o amigo por baixo das sobrancelhas.
– Não adianta fazer isso, não vou te elogiar mais. – Jean o olhou de canto, erguendo uma sobrancelha e gargalhou, voltando a erguer o rosto.
– Uma pena, isso geralmente funciona. – deu de ombros e se jogou em um pequeno sofá, nos fundos da oficina. – Não tem uma cerveja aí?
Jean o lançou um olhar matador.
– Eu devia te dar uma cerveja? – O outro homem apontou para o próprio peito, incrédulo.
– É assim que se recebe visitas? – implicou, erguendo o queixo. – Principalmente as mais importantes.
– Importante? – Jean riu com escárnio, voltando a trabalhar em um motor. – Só vejo um engomadinho arrogante. Metido.
– Ei. – protestou, ficando de pé. – Arrogante, sim. – Ele maneou a cabeça. – Metido, também, eu admito. Agora, engomadinho já é demais. – Negou, apoiando-se ao carro que o amigo trabalhava, fazendo-o rir. – O que você tá fazendo aqui? – O piloto mudou de assunto, olhando para o trabalho de Jean.
– Ainda não sei. – Jean ergueu os ombros. – Acabei de começar.
– Nunca vi dutos tão derretidos. – O piloto apontou, pegando uma chave para que pudesse levantar os dutos e olhar melhor.
– Acho que ninguém nunca abriu esse capô desde que foi comprado. – Jean comentou o péssimo estado do carro.
– Que pena. – concordou com um suspiro, tocando no motor. – Ele é uma beleza. Mas pra sorte dele você tem um ótimo mecânico.
– Tenho? – Jean uniu as sobrancelhas. – Quem?
– Eu. – riu enquanto tirava a camisa de flanela que vestia e o jogava em um canto qualquer da oficina.
– O grande vai sujar as mãos de óleo? – Jean riu pelo nariz. – Como antes?
– É, parece que preciso mostrar a você como se conserta um carro. – riu. – Principalmente um como esse. – O piloto tocou a lataria outra vez, como quem afaga.
– O grande piloto. – Jean continuou a provocar. – Campeão de Barcelona. Tratando carros comuns na minha garagem.
– Vai ficar aí de papinho mesmo, ou vai começar a trabalhar? – questionou, esticando a mão para que Jean lhe passasse a ferramenta. Ele sorriu, negou com a cabeça e entregou a , deixando que ele trabalhasse.
Maio de 2002, Aspremont – França
Casa dos
e Dino aproveitavam o pôr do sol na sombra de um pessegueiro carregado de frutas. Depois de conversarem, tomarem chá e de apresentar toda a propriedade para o americano, estavam ali contemplando as nuvens laranjas e o bonito entardecer. Estavam sozinhos e não haviam notado o tempo passar naquela tarde.
– Não tem coisa assim em Mônaco. – comentou quando Dino mordeu mais uma fruta.
– Mas tem cassinos e ótimos restaurantes. – Ele sorriu dando de ombros – Depende do seu gosto.
– O meu é esse. – A francesa tocou a árvore saudosa. – Minha família vive nessas terras por séculos. Aqui é o nosso lugar.
– Posso fazer uma pergunta estúpida? – Dino sorriu, apoiando as costas a árvore. assentiu. – Você é parente daquele outro ? Famoso?
riu alto, jogando a cabeça para trás.
– Em partes. – Respondeu. – A família do meu pai é descendente do irmão dele, François. Mas ninguém nunca deu muita ênfase a isso. – Ela deu de ombros. –Depois, nasceu outro, um jornalista. A família não era originária da França, mas esse sim. François-Olivier , um jornalista. – Contou ela, enfiando as mãos nos bolsos da calça que usava. – Talvez a veia do jornalismo seja mesmo de família.
– Você tem mais parentes? – Dino tornou a perguntar. – Não fazem anualmente uma convenção entre vocês? – Brincou, divertindo-se. – Convenção .
– Não. – Negou a francesa. – A família se dispersou durante os anos. Mal conheci meus avós paternos. E minha mãe era filha única também.
Dino voltou a olhar para a casa grande.
– E quais as chances de Jean–Jacques já ter pisado na sua casa?
– Nenhuma. – riu alto. – A casa é uma herança de família dos Lloris. Minha mãe, Juliette Lloris, foi a única entre os parentes que quis ficar em Aspremont. E, com a casa da propriedade daqui.
– Faz muito tempo que ela se foi? – Dino perguntou, um tanto mais sereno, aproximando-se de .
– Alguns bons anos. – sorriu fechado. – Eu tinha uns dez anos na época. Quase um ano depois do meu irmão.
– Deve ter sido difícil.
– E existe algo na vida que é fácil? – deu de ombros e lhe deu as costas, fingindo prestar muita atenção em uma pedrinha no chão, perto da raiz da árvore.
– Você se lembra dela? – Dino tornou a indagar.
– Claro. – Assentiu sorrindo e se virou para o americano. – Ela era doce, elegante, tinha modos de princesa. Me lembro de como fomos criados, Alex e eu. Era como um desses filmes de princesas encantadas, onde tudo que se faz, se canta. Sempre estão sorrindo, brincando ao redor da lareira e de animais ou no jardim. – contou saudosa, sorrindo com as memórias que enchiam seus olhos. – Ela amava flores, passava tardes como essa cantando e cuidando de roseiras. Fazia torta de maça também, e de pêssego. Quando Alex e eu nos machucávamos, ela sorria e nos abraçava. – suspirou e sacudiu a cabeça. – Ela era boa demais para esse mundo, eu acho.
– Parece mesmo. – Dino sorriu empático.
– Fico pensando se... se um dia eu tiver filhos, se conseguiria ser tão doce e amável como ela. – Confidenciou . – Ela fazia tudo parecer tão fácil. Mas, acho que alguém que parecia ter um talento nato para ser mãe, não suportou perder um filho. – Dino apertou os lábios, lembrou-se rápido de François e de suas palavras durante a última visita e sentiu um gosto amargo na boca.
– Como ela morreu? – Dino perguntou inocente e ergueu o olhar para ele, um pouco surpresa. Já havia muito tempo desde que alguém lhe fizera aquela pergunta pela última vez.
– Ela tirou a própria vida. – Contou o olhando. – Depois que meu irmão se afogou, ela não conseguiu se recuperar.
– , eu sinto muito. – Dino perdeu a cor.
– Tudo bem, Dino. – sorriu fechado. – Não precisa disso.
se afastou alguns passos outra vez, enquanto Dino pensava sobre sua terrível curiosidade.
– Sabe, você devia considerar a América. – Sugeriu ele, mudando de assunto e atraindo um olhar divertido de . – Lá sempre precisam de bons jornalista.
– Isso é você me dizendo que realmente vai embora? – Ela sorriu e levantou as sobrancelhas, aproximando-se dele. Dino assentiu com a cabeça. – É uma pena, logo agora que nos tornamos amigos.
– O Estados Unidos sempre tem espaço para mais um. – Ele piscou e esticou uma mão, afagando o braço de , depois tomou sua mão e enlaçou seus dedos. – Além disso, algo me diz que nosso destino ainda vai se cruzar muito.
– Claro, as chances de me ver falando mal da sua família são grandes. – Ela brincou e ele riu alto.
– Para além disso.
– Bom, eu espero que você seja bom prevendo o futuro, Dino . – sorriu. – Porque é sempre bom ter o certo do lado. – piscou.
Maio de 2002, Áustria
Era o Grande Prêmio da Áustria, depois de todo dossiê entregue por Dino sobre o esporte, todas as informações coletadas do pai, se sentia um pouco mais preparada para fazer o que era contratada a fazer. Fazia a transcrição do texto sobre as entrevistas coletivas que seria publicado. Sentia-se mais confiante e encorajada, conseguia entender os termos e até conseguia rir das piadas feitas pelos pilotos e jornalistas, assim como formular suas próprias para enriquecer o texto.
Sentia-se útil outra vez e isso era bom.
Estava sentada em uma área comum, comendo um pretzel e tomava café enquanto escrevia animada.
– Dessa vez parece que você não precisa de mim para garantir um café. – Michael se aproximou, sentando-se ao lado de sem se anunciar.
– Schumacher. – sorriu de lado, reconhecendo-o de soslaio.
– . – O alemão sorriu, enfim capturando o olhar e atenção da francesa. – A jornalista de Aspremont.
A jornalista foi pega de surpresa e apertou os olhos.
– Você sabe de onde eu venho. – Ela o esquadrinhou com os olhos. – Não sei se isso é uma coisa boa. Como descobriu?
– Só se quando eu resolver passar por Aspremont, você não abrir a porta para mim. – Ele ergueu um ombro e projetou o lábio inferior. – Fora isso, não vejo problema. Te incomoda que eu saiba sobre você?
– De onde você vem não te contaram que é falta de educação visitar pessoas sem ser convidado? – arqueou uma sobrancelha. – E sim, me incomoda que alguém que eu não conheço saiba sobre mim. A pessoa pública aqui não sou eu.
– Eu ainda não fui convidado. – Michael piscou, ignorando o resto da fala da jornalista.
– Que confiante. – rolou os olhos, voltando a olhar para seu trabalho.
– É o segredo. – O piloto alemão afastou os materiais de . – Você precisa ter confiança e aí todo o resto acontece.
– E quando não se tem confiança? – quis saber, cruzando os braços e erguendo o queixo.
– Confiança é a única coisa que você pode fingir que tem. – Michael arrastou o corpo, aproximando-se mais dela. – Ninguém vai saber que é mentira e no final acaba se tornando verdade.
– Esse é o segredo do sucesso de Michael Schumacher? – o analisou.
– Não, o segredo do meu sucesso é persistência, foco, disciplina, talento e várias outras coisas. – Ele a olhou com firmeza. – Mas a confiança ajuda.
– E o que você faz aqui? – tomou seu café, não interrompendo o contato visual entre eles. – Além de me incomodar, claro.
– Estreitando laços com a mídia, conhecendo uma pessoa nova, flertando... – Ele deu de ombros. – São várias possibilidades.
– Um piloto como você não tem nada melhor para fazer? – fingiu alguma surpresa e Michael riu, balançando a cabeça.
– O que você acha que sabe sobre mim?
– Sei quem você é. – A francesa deu de ombros. – Quatro vezes campeão mundial.
– Você está me resumindo. – Michael se aproximou um pouco mais. – E de forma tão simplória que fico até ofendido.
– Eu comecei nesse esporte há pouco, mas não nasci ontem. – tentou manter os olhos o mais longe possível do piloto. – E uma das lições mais valiosas que aprendi é não misturar trabalho e lazer. Principalmente com um homem casado.
– Rígida. Firme. – Constatou ele, um pouco envaidecido. – Mas isso não vai durar muito. Nunca dura nesse meio.
– Você não me conhece. – riu, balançando a cabeça negativamente.
– Nem você a mim.
– Veja, eu não tenho interesse em me envolver com pilotos de Fórmula Um. – enfim se voltou para o alemão. – Nada desse universo me interessa para além do trabalho. E eu, odeio, odeio, odeio levar o trabalho para casa. – A francesa começou a juntar suas coisas. – Se é que me entende.
A francesa começou a se afastar, dando as costas para o piloto alemão.
– Você sabe sobre mim, deve saber que eu não desisto. – Michael falou, olhava para o chão, parecia contemplativo, calmo. – Sou competitivo e adoro desafios. Também não deixo nada me parar até ver a linha de chegada.
parou onde estava, expirou um riso incrédulo e então se virou para olhá-lo.
– Pode até ser, mas para cada um como você existe um . – percebeu pelo modo com que o piloto ergueu uma sobrancelha que ela o havia atingido. – Ninguém é invencível. Nem todo mundo se dobra para um piloto de Fórmula Um só porque ele joga um biscoito e manda abanar o rabinho.
– Abanar o rabinho? – Michael apertou os lábios para conter o riso.
enrubesceu, ergueu o queixo e lhe deu as costas.
Abanar o rabinho? Que diabos era aquela resposta? Ela se perguntava, completamente envergonhada.
Quando deu as costas para a multidão de repórteres que se amontoavam na grade com seus microfones estendidos, a primeira coisa que entrou em seu campo de visão foi François. O tio o aguardava de pé, como uma árvore velha com suas raízes fincadas no fundo da terra, sugando água e o que quer que tivesse disponível. sentiu o estômago ficar enjoado e baixou a cabeça, passou perto do tio o mais rápido que pode na tentativa de evitá-lo, mas François pareceu o acompanhar sem dificuldade.
Era um abandono de corrida, mais um. Dessa vez por azar, azar de estar nomomento errado, no lugar errado, perto do piloto errado. Jean Alesi, que além de competir nas pistas, era piloto de testes da equipe de , havia causado um acidente ridículo e burro, tirando outros dois pilotos além dele do páreo na Áustria. fora um deles, obrigado a abandonar na trigésima volta. O piloto americano não conseguia silenciar seu cérebro, tudo que sua mente gritava eram ofensas a Alesi e a si. Poderia ter desviado se seus reflexos fossem melhores, se dirigisse melhor em pistas molhadas, se estivesse talvez um pouco mais atento. E definitivamente, se o próprio já se martirizava, não queria imaginar o que o tio diria.
Mas ao contrário do que acontecia todas as situações como aquela, François estava em silêncio. Com um péssimo semblante, mas em silêncio. algumas vezes tentava o olhar de canto, ainda de cabeça baixa. O tio estava irritado e pelo modo com que o lábio inferior se projetava sobre o superior, assim que estivessem fora da vista das pessoas, ele explodiria.
Em determinado ponto do caminho até as dependências da equipe, François enfim se pronunciou.
– Vá se trocar. – O tio parou , impedindo-o de prosseguir com uma mão em sua barriga. – Vou tratar de um assunto, cuido de você mais tarde.
– Que assunto? – O sobrinho americano estranhou, unindo as sobrancelhas.
– Um assunto que não é seu. – Respondeu François, andando para outra direção. – E não se enfie em qualquer buraco achando que pode se esconder de mim. Não pode.
ergueu as mãos, rendido e observou o tio se afastar, ainda confuso. Mas por fim, deu de ombros e aceitou sua sorte. Teria algum tempo para se preparar e talvez fugir, sumir no hotel ou em algum clube da cidade. Se passasse tempo suficiente, talvez François não se lembraria de cuidar dele.
deu de ombros e se apressou, não tinha muito tempo a perder.
Não havia qualquer alma livre ou disponível.
A corrida estava em pleno vapor, cheia de mudanças e seguindo para um resultado pouco provável. Schumacher tinha dificuldade em ocupar a liderança, estava com sérios problemas no carro que parecia não conseguir acompanhar o pelotão da frente. Reclamava constantemente de perda de potência no rádio e toda equipe estava atenta. Era péssimo para o piloto alemão. estava na frente em vitórias, e com o abandono do americano Schumacher tinha condições favoráveis e quase o dever de vencer para empatar com no campeonato. Mas fosse o peso das expectativas ou de um motor não tão bom naquele dia, Michael estava tendo um péssimo dia.
riu e sacudiu a cabeça enquanto anotava. Era um tipo de vingança do destino, o tão arrogante e cheio de si, agora passando por um sufoco enorme, sem que sua empáfia pudesse socorre-lo. Não que a arrogância fosse específica de Schumacher, todos pilotos carregavam um pouco disso. A jornalista pensou em , havia ajudado a escrever a nota sobre o abandono do piloto americano e agora pensava sobre ele. Se estava acompanhando a corrida e torcendo contra o rival alemão, se estava concentrado em si, tentando rever junto a equipe o que podia ter sido evitado em seu abandono de prova. Pensou um pouco naquela figura ainda tão misteriosa, mas cheia de má reputação.
A francesa estava tão entretida com a corrida, suas notas e a rivalidade dos pilotos que, não prestou atenção no que se passava do lado de fora. Uma agitação, vozerio, alguém estava irritado. apenas percebeu quando a confusão entrou em seu campo de visão e ela, assim como os colegas, pararam o que faziam, assustados.
– , esse senhor quer falar com você. – Alguém da equipe, que antes tentara impedir François e agora estava ofegante, anunciou e todos os olhares se voltaram para a jornalista francesa, de olhos arregalados.
– Mas eu estou trabalhando.
– Não como devia. – François rosnou sem pensar.
– Se há algum problema com alguém da minha equipe. – Maurice, um de seus chefes ficou de pé em sua frente, entre e François. – Pode tratar comigo.
François o ignorou e apontou para uma tela, dentro da sala, onde era exibida a nota sobre o abandono de .
olhou da tela para François, depois para a tela outra vez e teve um estalo. Lembrou-se de Dino e de suas conversas. A expressão assustada e acuada da jornalista se transformou em uma mais confiante, ergueu os ombros e o rosto, sentiu os pés mais firmes no chão.
– Algum problema com a nota? – Ela perguntou. – Mencionei o errado?
– Não se faça... – François se interrompeu, estava nervoso, mas ainda estava entre muitas pessoas. – Aquele texto sobre...
– não escreve textos, François. – Maurice o cortou, provavelmente conhecia o gênio do ex-piloto. – Mas se tem alguma reclamação, eu sou o editor chefe, pode se dirigir a mim.
O ex-piloto francês coçou a nuca e riu nervosamente.
– Deviam se envergonhar de tantas mentiras que escrevem aqui. – Apontou François. – Pierre não deve estar sabendo do trabalho porco que fazem aqui.
– Não sei, quer contar a ele? – Maurice ergueu um ombro e quase sorriu.
François encarou Maurice por alguns segundos, imóvel e então buscou com o olhar outra vez.
– Lembranças a seu pai, . – Ele desejou no mesmo tom azedo e a jornalista tencionou o queixo.
François deixou o espaço e por alguns segundos o clima terrível se manteve, até que a equipe se lembrasse do que fazia antes da chegada do sujeito desconvidado e enfim retomasse ao trabalho. soltou o corpo sobre a cadeira, havia se levantado quando François entrou na sala.
– Sabe, . – Maurice se aproximou, inclinando-se um pouco sobre a mesa que a francesa ocupava, fala baixo. – Quando Pierre te mandou, achei que fosse causar problemas, mas não pensei que fosse desse tipo.
– O que posso dizer? – Ela ergueu um ombro, sem jeito. – É um dom natural decepcionar.
– Qual foi o jogo entre vocês? – Ele perguntou.
E quando apenas negou devagar com a cabeça, ele a podou.
– Não me venha com essas, estou aqui há tempo demais para você me insultar a inteligência dessa forma. – O chefe a repreendeu e a francesa engoliu em seco. – Pierre não colocaria alguém como você aqui assim. E sei da ligação dele com François, logo, imagino que há uma ligação de François com você. Você pode contar, ou eu posso descobrir. Em um dos cenários eu sigo o que estou prestes a fazer, no outro eu crio uma terrível antipatia e torno seus dias aqui um inferno. Por qual caminho vamos?
o analisou surpresa, mas curiosa, piscou algumas vezes.
– Uau.
Mas Maurice continuava com seus olhos de águia sobre ela, espreitando. Todos os outros estavam focados na corrida, ninguém mais prestava atenção nos dois. Decidiu por ceder e contar, não queria arriscar que o chefe descobrisse a verdade e fizesse sua própria interpretação dela.
– Meu pai trabalha para a François-, já foi muitas coisas lá, mas hoje em dia é uma espécie de caça-talentos. – contou com um suspiro cansado e viu Maurice arquear uma sobrancelha, pareceu surpreende-lo. – Quando me formei, François me procurou para oferecer o emprego. Pensei que seria alguém dentro, alguém para limpar a barra do sonho americano que ele queria, pensei em não aceitar por isso. Dino me aconselhou a não.
– Dino ? – Maurice se chocou. – O mesmo da François-? Do ?
– Bom, ele tem neurônios mais preservados, é boa pessoa. – maneou a cabeça. – Diferente dos outros s. Ele é irmão do .
– François não daria uma faca nas mãos de um caçador e o soltaria no meio do rebanho. – Maurice desconfiou. – Você devia ser de confiança da família.
– Quem ganha sempre se desacostuma a perder, acha que isso nunca mais pode acontecer. – levantou as sobrancelhas. – Ele achou que eu seria alguém submissa, grata e faria o que ele queria. Ser alguém de dentro. Mas como disse, eu sou boa em decepcionar.
– Ou você é burra, ou muito cínica. – O homem estreitou o olhar, endireitou as costas e cruzou os braços.
– Idealista é uma palavra que gosto mais. – se recostou a cadeira e deixou-a girar. – Mas aparentemente, burra também serve.
Maurice riu abafado.
– Mais um pouco e ele vai te derrubar do cavalo, com a mesma facilidade com que te colocou.
– Eu estou ciente disso, por isso preciso fazer valer a pena.
– Bom, ... parece que seu jogo acabou de começar.
Continua...
É um novo início que já é tanto conhecido por vocês, mas não vou criar expectativas, vamos seguir como se fosse a primeira vez. Porque de fato é, esses personagens estão aparecendo como nunca antes foram vistos, então espero que seja bom e vocês gostem.
É de fato curioso ver como isso aqui vai chegar ao lá que já vimos um pouco em The Curve, que aliás volta. Mas primeiro quero terminar essa.
Foram muitas idas e vindas, muita coisa aconteceu desde o último dia que escrevi essa história e hoje, que envio. Então, tenha paciência, amor e vamos juntos.
Temos uma longa jornada pelo caminho e eu mal posso esperar.
Meus sinceros agradecimentos por sua leitura.
Um grande beijo e até breve,
Carmen
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Ele (Atores)
Inter Duo (Hockey - Original)
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