Última atualização: fevereiro/2024

Capítulo 26 – Manhattan

— Desde quando você sabia, sua danada?!
Diante da minha pergunta ansiosa, o sorrisão que Jenna sustentava para mim era impagável. Era como se ela finalmente pudesse libertar uma felicidade proibida que há tempos tentou segurar.
O verão nos fez escolher roupas leves e prender nossos cabelos naquele domingo. Domingo de jogo. Estávamos no Yankee Stadium, no Bronx, fingindo que assistíamos à partida entre os Patriots e seja lá qual fosse o time adversário. Eu não prestava a menor atenção, porque assim que sentamos nossas bundas nas cadeiras da arquibancada, eu e Jenna começamos a conversar como se não houvesse amanhã.
Ao meu lado direito estava Sadie, pouco ligando para o calor com sua camiseta preta do Aerosmith; depois Alex, usando um colete jeans e óculos escuros; ambos tentando manusear uma filmadora como se precisassem registrar cada segundo de sua primeira “viagem” juntos. Logo ao lado de Alex estava , que ficava mais em pé do que sentado, berrando feito um louco toda vez que algum jogador fazia um movimento que ele desaprovava. E então PJ, ocupado demais mastigando um cachorro-quente de cinquenta metros que ele tinha comprado na lanchonete do estádio minutos antes – mas toda vez que olhava para o campo à sua frente, também xingava ou comemorava com o amigo, tão empolgado ou puto quanto ele.
— Já sei, já sei — revirei os olhos —, pode dizer. Eu sou péssima em esconder sentimentos ou qualquer merda do tipo. É o que sempre me diz.
Ela gargalhou.
— Até gostaria de ter desconfiado primeiro de você, mas não foi bem o que aconteceu.
— Mentira! Sério?
— Acha que foi tão difícil assim sacar o jeito que ele olhava pra você? Eu sinto as coisas, meu amor.
Agora foi minha vez de soltar uma gargalhada.
— Preciso de mais detalhes, por favor. É uma questão de sobrevivência agora.
— Ah, você sabe… Passo mais tempo na república dos meninos do que eu realmente gostaria. E quando eu tô lá, … Quando eu tô lá, boto minha audição supersônica pra jogo — as sobrancelhas dela fizeram uma dancinha engraçada e convencida. — Quantas vezes vi chegando atrasado pro nosso rolê porque ficou tempo demais em Oakwood com você? Ou foi te deixar no alojamento? Ou cancelou planos com a Renée no telefone? Ou desconversou quando eu o enchia de perguntas sobre a aula de desenho que vocês estavam fazendo juntos? Inúmeras, se quer saber. Eu sabia que tinha algo diferente rolando. Ele ficava bem irritado, mas eu realmente tava enchendo o saco — ela riu sozinha. — Não posso evitar, é meu passatempo atazanar esse idiota.
— Vocês são como gato e rato, sabia?
— Nada, eu apenas revido. Você sabe como ele gosta de irritar a gente primeiro.
— Isso é um fato.
De repente, um touchdown nos fez desviar abruptamente a atenção para o jogo. As pessoas se levantaram de suas cadeiras e milhares de vozes bradantes comemoraram mais seis pontos dos Patriots no placar. Até que praticamente o estádio inteiro vibrou ainda mais em festa quando um jogador conseguiu lançar a bola para dentro das traves, marcando um ponto extra. Dava para sentir a arquibancada inteira tremer.
e PJ foram à loucura. Sadie filmava tudo como se precisasse registrar cada movimento daquela vida selvagem à sua volta – eu podia apostar que ela ouvia os gritos de cada pessoa ali como o guincho de um animal. Desajeitado, Alex a abraçava de lado e acompanhava a celebração exagerada do resto, até que Sadie o filmou também e ele mandou um beijo para a câmera. Sua carranca se desmanchou na mesma hora e ela caiu em risadinhas.
Nada poderia superar a estranha fofura entre aqueles dois.
Quando a poeira foi baixando, aos poucos as pessoas foram se sentando em seus lugares de novo. Eu e Jenna continuamos paradas, esperando o fervor passar – nem nos demos ao trabalho de ficarmos de pé para começo de conversa. Botar aquele assunto em dia estava mais interessante do que se começasse um show do Super Bowl agora, do nada.
— Ei, mas quando você teve certeza? — perguntei mais alto, sem saber se ela ainda conseguiria ouvir.
— Caramba, como eu tava DOIDA pra te contar isso! — Jen só agarrou meu braço e começou a rir, em êxtase, virando o corpo um pouco mais em minha direção. — Foi no dia que o apareceu lá na república depois de uma festa, claro. Estávamos fumando um lá na sala, de boas, eu, PJ e uns amigos dele. chegou meio bêbado, meio introspectivo e todo sorrisinhos. Aí ele se juntou a nós, mas ficou só comendo umas batatinhas e bebendo o resto de uma garrafa de vodca em silêncio. E adivinha o que tava escrito na palma da mão do bonito?
Por um momento não fiz ideia do que ela poderia estar falando, mas no segundo que entendi, abri a boca e só consegui ficar vidrada num ponto aleatório da arquibancada. Minha mente montou toda a cena que ela tinha acabado de descrever até se encaixar com o dia que eu finalmente pude recordar.
— Putz… — respondi, tentando esconder a cara, mas cedendo um risinho. — Meu número de telefone.
— Exatamente! — ela bateu palminhas que nem uma foca. — Não sei como ele não percebeu o jeito que fiquei encarando aqueles números à caneta até identificar que era mesmo o seu. E daí… PIMBA! Nunca mais olhei pra vocês dois do mesmo jeito, muito menos pro safado do .
— Meu Deus, Jenna, por que você não me falou nada? Que vontade de GRITAR!
— Você também não parecia preparada pra aceitar o que tava rolando entre vocês, né? — ela me deu uma encarada bruta, coberta de um sermão implícito. — Vocês dois precisavam de um tempinho, tinham acabado de sair machucados de relacionamentos passados. Eu entendi isso. Entendi que talvez um empurrãozinho fosse mais prejudicial do que qualquer outra coisa. E quer saber? Vocês nem precisavam disso, ia acontecer uma hora ou outra. Tava claro como água. Então deixei o destino tomar conta de tudo sozinho, e não vou mentir, foi tão divertido acompanhar.
Revirei os olhos.
— … E aqui temos as duas fofoqueiras do bairro que não param de tagarelar um segundo. Com vocês, e Jenna — ouvi a voz de Sadie atrás de mim. — Anda, olhem pra cá! Dêem um tchauzinho, vocês duas!
— Oiiiiii — Jen abriu um largo sorriso e acenou para a câmera. Então, girei o pescoço para trás e olhei para minha colega de quarto.
— Você ainda tá filmando?
— Tô, e esse vídeo vai ficar pra eternidade — ela observava a telinha retrátil enquanto gravava tudo. — Seja mais simpática, por favor.
— Oiiiiii — forcei um sorriso e acenei para ela, assim como Jenna.
— Eu disse simpática, não falsa.
Revirei os olhos outra vez, o que fez Jen rir mais. Assim que Sadie se virou pro outro lado, sussurrei rapidamente:
— Ela tava filmando nossa conversa?
— Não, foi só agora.
— Ótimo.
— … E do lado de lá — ela continuou a narrar seu mini-documentário —, temos e PJ, amigos do Alex. Um deles tem o azar de beijar a de vez em quando. Conseguem adivinhar qual é?
— EI! — protestei. — Me dá essa filmadora.
— Não.
Pude vê-la dar um zoom na cara do , que tinha o rosto de perfil para o vídeo, já que ele olhava para frente, atento ao jogo. Ela não parou de aproximar a imagem, deve ter chegado no máximo do negócio. Até que finalmente percebeu e olhou de volta para a câmera, mostrando a língua em uma de suas caretas exageradas.
— Viu? Conseguiram adivinhar? É esse abestado aí.
— Já chega, Sadie — quando ouvi minha própria voz dizer aquilo, infelizmente percebi que meu pedido não teve firmeza alguma. Eu já estava rindo.
— Queria que minha câmera tivesse um cabo ligado naquele telão e filmar vocês dois se beijando pra todo mundo ver.
— WOW! Seria o Kiss Cam do ano! — Jenna foi a primeira a se empolgar com a ideia, o que nem me impressionou.
— É sério — encarei as duas —, agora já chega. Chega.
Elas ficaram de risinhos e olhadinhas suspeitas para mim pelos cinco minutos seguintes, ignorando completamente minha tentativa de demonstrar o mínimo de seriedade. Sabiam bem como eu odiava ser o centro das atenções em situações como aquela. Ficavam loucas para enfiar algum romantismo constrangedor entre mim e , só para me irritar. E conseguiam.
Quando o jogo finalmente acabou, quase levantei as mãos para o céu. Era legal ouvir pessoalmente o coro de torcedores vibrando, se exaltando, cantando músicas numa sincronia perfeita. Sem brincadeira, os pelinhos do meu braço até se arrepiaram. Mas depois que a primeira meia hora passou, fiquei entediada num nível preocupante, e ainda por cima, com uma puta vontade de tomar um sorvete.
— Aonde vamos agora? — perguntei, limpando o suor da minha testa. Fiquei meio desorientada quando todos se levantaram de seus assentos, e nada poderia ser pior do que um mormaço feito de calor humano.
— Pro Central Park — Jen respondeu, também afobada. As bochechas e a ponte de seu nariz já estavam queimadas pelo sol. — Lori tá me esperando em frente ao Edifício Dakota. Vamos juntas visitar o memorial do John Lennon e tomar uma casquinha.
— AH! — devo ter dado um sorriso maior que o de uma criança. — Sim, por favor!
— Alex e Sadie também vão com a gente. Ela queria filmar a vista do terraço do Empire State, mas o cagão do Alex passa mal se subir mais de vinte andares num elevador. Acho que todo mundo vai pro Central Park mesmo, e de lá pensamos em outra coisa pra fazer. Topa?
— Já concordei quando você disse que vamos tomar um sorvete.
Caminhando com a muvuca, demoramos um pouco até sair do estádio e descer para a estação subterrânea do metrô. Eu não fazia ideia do itinerário nem da linha que íamos pegar, só sei que tivemos que esperar por longos minutos até entrarmos num vagão - lotado, por sinal. Jenna continuou de fofoquinha comigo, mas eu estava tão exausta de me equilibrar por tanto tempo em pé, tentando me segurar naquelas barras metálicas e escorregadias de suor alheio, que já não prestava mais tanta atenção no assunto. Até porque era algo sobre a fase psicodélica dos Beatles e mil outras bandas que foram influenciadas depois.
Eu só estava muitíssimo concentrada em não cair em cima de alguém naquele metrô. Mas parecia que os outros não tinham a mesma preocupação que eu, porque vez ou outra – contra minha vontade – eu me pegava com o nariz bem no sovaco de algum infeliz. Seria romântico se não fosse trágico, mas me olhava do outro lado do vagão. Ele não estava muito longe, talvez a umas cinco pessoas espremidas de distância, mas o suficiente para se entreter com meu visível sufoco. Houve uma movimentação na terceira parada – foi quando pude me livrar de uma dos sujeitos espaçosos ao meu lado, o que me garantiu um pouco mais de dignidade ali dentro.
Antes de os portões fecharem de novo, aproveitou para se aproximar de nós. Ele se segurou na mesma barra que eu e parou na minha frente, ao lado de Jenna. Olhei para cima e observei seu sorrisinho misterioso, como quem estava planejando algo.
— A gente quer mesmo ir ao Central Park? — sua voz estava completamente rouca, quase falha, de tanto que gastou as cordas vocais durante o jogo acalorado daquela tarde.
era um torcedor ferrenho. Quieto, civilizado e racional em casa – gostava muito de debater sobre pontos, campeonatos e escalações com PJ e Alex –, mas não se continha pessoalmente num estádio. Era até engraçado assisti-lo tão alegre e maluco, inclusive, muito mais divertido que o próprio jogo.
— Erm… — fiz uma pausa para pensar. Eu nem sabia se tinha uma resposta para aquela pergunta. — O que você tem em mente?
— Uma ideia melhor — ele falou mais baixo, como se quisesse economizar a própria voz. Depois desviou o olhar para o painel acima das portas automáticas, indicando a rota da linha e cada parada restante. Segundo meus cálculos, ainda faltavam umas cinco para fazermos a baldeação.
— E o que exatamente poderia ser melhor do que um sorvete agora?
O sorrisinho de aumentou. Nem precisei suspeitar de nada. E precisaria? Os pensamentos dele definitivamente tinham ido para outro lugar.
— Cuidado com o que você vai responder — Jenna levantou o indicador para ele, que só se fingiu de assustado. — Eu sei que você não tá nem aí que estamos num vagão lotado. E tem crianças aqui — ela sussurrou, impositiva.
— Beleza… Agora conversas de metrô têm classificação indicativa?
Jen bufou e eu comecei a rir.
— Olha… — ele continuou, ainda entretido. Estava ainda mais engraçado ver sua voz falha tentando contra-argumentar alguma coisa. E sexy pra caralho. — Eu não diria pras crianças tamparem os ouvidos… E sim você, porra. Você não tá convidada pro que eu ia propor.
— Você não ouse a roubar minha agora, . Vamos ao Central Park primeiro, depois você pode viver sua história de amor em Nova York com ela à vontade.
— ele olhou para mim —, você ouviu. A Jenna não quer nem me deixar falar o que eu tava pensando.
— foi a vez de Jen me olhar —, o te quer roubar do nosso passeio em grupo porque não aguenta mais passar mais um minuto sem você só pra ele. É assim agora.
Nem consegui responder nada; foi mais rápido e olhou para a amiga antes de dizer:
— Ok, ok… Tá legal, Jenna — ele parecia exausto ao ceder daquele jeito. — Eu espero mais um tempo.
— Obrigada. Até porque não é como se fosse um grande sacrifício, não é? Não é?
— Sim, claro. Quero dizer, não, não é.
Ela apenas arqueou uma sobrancelha, com a maior cara de desconfiada.
— Promete?
— Prometo.
— Promete mesmo?
De repente, vi uma das mãos dele se soltar da barra só para levantar o dedo mindinho. Pensei que Jenna no mínimo hesitaria, mas pelo visto ela só se animou ao ver que o amigo estava tentando se comprometer. Enquanto isso, eu só queria gritar: “É mentira, mentira dele! Essa promessa não vale de NADA!”.
— Eu espero, Jen. Prometo.
— Ok! — ela abriu um sorriso, e os dois laçaram os mindinhos um no outro. — Pelo menos, que bom que chegamos num acordo.
Ele sorriu calmamente enquanto concordava com a cabeça. Então, olhou rápido para mim e voltou a conversar com Jenna logo em seguida, que já tinha começado a falar sobre algum outro assunto que nem consegui ouvir – fiquei perdida por um momento, presa naquela breve olhada que tinha me dado. Como se ele tivesse me passado uma mensagem, ou estivesse ciente de que eu não estava acreditando em seu papinho. Como se eu fosse sua confidente.
Pelos próximos longos e cansativos minutos que se passaram, até fui me esquecendo dessa coisa toda. Esqueci o suficiente para ter tomado um baita susto quando chegamos em nossa parada e descemos na estação para trocar de linha – no meio de toda aquela procissão de gente nova-iorquina e aquela dificiuldade de reunir nosso grupo de novo, já todos dispersos um do outro, senti uma mão cutucar meu ombro tão rápido quanto descer pelo meu braço e segurar a palma da minha. Mas antes de olhar para trás, eu já soube que era .
Ele tinha o mesmo sorrisinho no rosto de quando começou a falar comigo no vagão, o que imediatamente me fez sorrir também. Me puxou na direção contrária ao fluxo e foi me levando para mais longe na estação. Até que ouvi a voz repreensiva de Jenna lá atrás, ao fundo:
— Ei! — ela gritou, meio brava. — EI, VOCÊS DOIS! NÃO ACREDITO NISSO!
— Deixa, eu tô filmando tudo — ouvi Sadie falando alto também, tentando bancar a esperta. Me virei rapidamente para olhar e lá estava ela com a câmera apontada para mim, com Jen bem ao seu lado. As duas indignadas, paradas no meio da multidão, que acabou levando-as consigo segundos depois como uma onda varrendo a areia de volta pro mar de pessoas.
continuava me puxando, dando passos cada vez mais apressados, me segurando cada vez mais firme à medida que o fluxo de gente ficava mais intenso. Entramos no mesmo metrô, mas num vagão diferente — dessa vez, não tão cheio. Consegui até me sentar em um dos últimos assentos vazios. parou bem na minha frente, em pé, e com as duas mãos agarrou aquelas alças que caíam do teto.
Quando senti o veículo acelerar sobre os trilhos, foi a hora de perguntar para ele aonde estávamos indo, mesmo que no fundo eu soubesse — e o sorriso encolhido no canto dos meus lábios com certeza deixava transparecer. Olhei para cima para buscar seus olhos.
— Aonde vamos descer? Hmm, deixa eu pensar… — tamborilei os dedos no meu queixo, fingindo que eu ainda tinha alguma dúvida. — No terminal White- Espera, é White alguma coisa, não é? Como é mesmo o nome?
— Whitehall.
— Isso.
Turista.
— Eu não sou turista mais, . Só esqueci um maldito nome.
Ele deu uma risadinha, e seu semblante foi mudando levemente. continuou me olhando por mais um tempo, sem desviar, sem piscar, como se eu fosse a coisa mais interessante daquele metrô. Eu me sentia a coisa mais interessante do mundo quando ele me olhava assim.
— Quer dizer então que vamos adiantar nossa volta pra Ilha de Staten — concluí o que eu já sabia. — Posso saber o porquê dessa pressa toda?
— Porque tudo o que a Jenna disse é verdade — ele confessou na maior naturalidade, com aquela voz áspera que já estava me enlouquecendo. — Eu não aguento mais passar mais um minuto hoje sem você só pra mim.
Meu sorriso cresceu, afinal, eu também sentia o mesmo. Sempre tínhamos ótimos momentos na companhia de outras pessoas, mas ultimamente meu coração vinha se sentindo cada vez mais em casa quando éramos só eu e , no nosso mundinho particular de idiossincrasias. E, de alguma forma, ambos parecíamos sentir mais urgência em aproveitar isso. Não sabia se era meu medo da graduação chegando – ou do futuro, como sempre –, mas eu evitava pensar muito sobre essa questão. Desde o luau, estive realmente levando a sério aquela coisa de viver o presente e tudo mais.
Chegando ao terminal Whitehall de balsas para a ilha, nos embolamos no meio das pessoas como se fôssemos só mais dois estranhos com o mesmo destino. O sol ainda estava alto no meio das nuvens, mas já ameaçando a se pôr, coisa que eu não via a hora de acontecer. Não aguentava mais aquele calor dos infernos. Assim que embarcamos, decidimos nos sentar nos bancos da parte externa do deque, onde o vento e os respingos da água salgada podiam nos refrescar um pouco. Logo comecei a sentir aquele som grave e forte da proa cortando a superfície do oceano à nossa frente.
Algum tempo depois, comecei a me dar conta de que era a primeira vez que eu via a Estátua da Liberdade pessoalmente desde minha última conversa com Jenna sobre um assunto que achei muito esclarecedor. Ela estava falando sobre como queria ir pra Califórnia e lançar uma coleção de calçados confortáveis para essa nova geração de mulheres no mercado de trabalho. Ainda havia muitos homens ditando códigos de vestimenta por aí - até pouquíssimos anos atrás, as mulheres no nosso próprio Congresso Nacional eram proibidas de usar calças. Por esse motivo, Jenna via que a obrigação do uso de salto em outras profissões ainda estava longe do fim. Ela queria lutar contra tudo isso através da moda, queria transformar a tendência. Estava empenhada em seu projeto, o que eu admirava muito.
A gente podia avistá-la conversando sobre os mais diferentes assuntos em qualquer grupo de pessoas pelo campus – Jen pertencia a todo tipo de tribo. Mesmo assim, havia uma coisa em comum que todos aqueles estudantes saberiam sobre ela: Jenna vivia cansada de ouvir que precisava ter uma certa aparência para impor respeito ou ocupar espaço. Para ela, a moda deveria refletir o que a gente sente, não o que uma sociedade espera, e essas foram palavras que ressoaram comigo de um jeito muito profundo quando as ouvi pela primeira vez. Num desses seus discursos, ela passava horas inteiras descendo a lenha na Estátua da Liberdade por algum motivo. Eu até achava engraçado, mas só agora havia parado para pensar de verdade sobre sua angústia.
Esbarrei meu ombro no de para compartilhar aquilo com ele.
— Ei, tava aqui pensando. Eu sempre achei que a Estátua da Liberdade fosse um ícone feminino, sabia? — comentei enquanto observava de longe a escultura verde-azulada na outra ilha. Era a primeira coisa que a gente via no horizonte. — Mas é um símbolo muito contraditório. Ela tá lá no porto de Nova York há mais de um século e ainda nunca tivemos uma mulher na presidência, já parou pra pensar? E olha que quando cheguei aqui, eu via inspiração nela. Via confiança, poder, força, mas acho que não vejo mais. Nem ferrando. E foi um dos primeiros lugares que visitei, paguei o maior pau. Tô te falando, , meus dias de turista já passaram.
Ele sorriu, virando o rosto para mim. Eu ainda mantinha meu olhar fixo na estátua segurando uma tocha com o braço erguido. Com o outro, ela carregava a famosa Declaração de Independência dos Estados Unidos, e seus pés estavam livres das correntes quebradas. Eu estava me sentindo reflexiva de repente sobre aquilo, e ainda ia concluir meu raciocínio, mas ouvi acrescentar:
— Então você já ouviu a Jenna falar sobre o projeto dela por quarenta horas seguidas?
— Já — engoli todo o discurso que eu ia soltar e olhei para ele. — Como deduziu tão rápido?
— Eu sei como ela consegue ficar animada quando descobre algo novo da história social da moda e não sei mais o quê e joga umas ideias na nossa cabeça. E até que sempre acabam fazendo muito sentido.
— Exatamente! Ela fica doida pra compartilhar as coisas, né? Mas eu adoro. Adoro quando ela compartilha comigo o que leu ou ouviu na aula que a fez ter essa nova visão do mundo, mais consciente, eu acho. Acabo refletindo muito, gosto de ouvir. E perguntar também.
— Eu também, mas ela deve te ouvir muito mais. Recebo uma patada atrás da outra a cada dez minutos, sabe como é. Ela jura que eu não presto atenção direito, mas é claro que eu presto — ele fechou os olhos de repente e deixou a cabeça cair para o lado, depois roncou bem alto. Dei uma gargalhada que não consegui parar. — Mas falando sério, a Jenna gosta pra caralho de você. Ela ama pessoas perguntadeiras.
— Ah, ela gosta pra caralho de muita gente.
— Gosta, mas como ela sempre fala… você sempre vai ser o Oscar, o Resmungão dela.
Fui parando de rir enquanto voltava meus olhos para frente. Então, percebi uma melancolia chegando e não consegui contê-la tão rápido. Soltei um suspiro pesado, o que não adiantou nada - não esvaziou nenhuma das preocupações que eu tinha dentro de mim. Mas talvez dissipassem se eu as transformasse em palavras.
— Eu… não queria que ela fosse embora — admiti, sentindo um aperto no peito só de me ouvir falar. — Às vezes eu queria que a gente ficasse pra sempre se encontrando no meio do campus, morando a passos de distância no alojamento feminino… Comendo comida chinesa no restaurante ao lado da sua república, vendo séries na televisão do quarto dela… Mas sei que não tem nada a ver. É só um apego idiota que eu sinto.
— Ei… Não é idiota. Vocês ainda podem manter contato.
— Você sabe que não é tão simples assim, . Ela vai pro outro lado do país. Tinha um lado egoísta meu que dizia que ela não iria de verdade, mas ela vai mesmo.
— Calma, a gente nem sabe se ela vai ficar lá pro resto da vida. Ela só vai tentar a sorte, experimentar um sonho. Muita gente faz isso.
— É… Ok, tem razão… É o que as pessoas fazem depois da universidade, né? Hora de viver o mundo real, de se bitolar na própria profissão, de descobrir quem você é e toda essa parada. É algo normal — tentei reforçar aquilo mais para mim mesma. — Sabe, foi isso que eu vim fazer em Nova York, . Eu tentei a sorte e deu certo, mas parece que a minha experiência tá acabando e a dos outros só começando, e isso é uma sensação tão… amarga. Sabe quando você tá comendo um monte de morango delicioso, todos docinhos, e do nada morde um pedaço podre e amassado? E aquilo te faz querer cuspir a fruta? É isso que eu sinto. Tava tão bom, mas agora sei que vou morder a parte merda da vida, e não há absolutamente nada que eu possa fazer sobre isso. Não tem como mandar o tempo ir mais devagar.
Houve um silêncio, talvez um pouco desconfortável, mas que pode ter sido só impressão minha. Porque era um assunto desconfortável. desviou o olhar para o horizonte pela primeira vez, e eu reparei em sua expressão pensativa pelo canto do olho.
— Eu não discordo de você, mas… — ele falou devagar. — Você não tá empolgada pra começar sua carreira de verdade agora?
— Tô… Aliás, mais ou menos. É que eu já vi de perto como é o mundo do trabalho assalariado, e ele não é tão empolgante assim. Já vi gente se fodendo pra agradar clientes sem receber um centavo a mais por horas extras. Já vi gente me alertando sobre a profissão que escolhi. Já vi gente falando que eu ia passar fome. Já vi gente falando que as coisas são assim mesmo, que ficar até meia-noite na empresa é normal, que faz parte do sacrifício, do “desafio”. Aquele papo de dar seu sangue e suor, de se superar e passar por cima dos outros pra ser um destaque na multidão, sabe como é? Tudo isso pra merecer valor. Mas a que custo? Isso é ridículo. Existe uma diferença bem grande entre a grana que nos pagam e o valor do que a gente produz com nosso trabalho, não tem como negar.
— É, eu tô ligado. Já me toquei desse esquema também. Já entendi que o normal é se sentir como uma máquina de produção, sem espaço nenhum pra criatividade. Nem me lembro de quantas vezes já me senti mal por não entregar demandas em… porra, prazos impossíveis.
— Não é?! Eu também.
— Mesmo com um diploma na mão, nada vai mudar, já te falei isso. A gente não passa de fase como num videogame. Tem gente que nem sequer tem um checkpoint pra tentar de novo caso tudo dê errado.
— Pois é! Não sei você, mas a realidade é um balde de água fria pra quem cresceu numa “terra encantada do Alabama” que nem eu, — brinquei, olhando para ele de soslaio por um segundo mais uma vez. — Essa não é a grande e cruel verdade sobre o mundo que descobrimos quando chegamos nessa idade? É isso. Vamos ser explorados pro resto da vida, e isso é deprimente.
— Então… É por isso que eu quero seguir o caminho menos danoso possível. Você já sabe como eu funciono, . Você é muito mais determinada do que eu. Cruzar os braços é a coisa mais fácil do mundo pra mim, porque eu só quero relaxar e ter paz, e você vive atrás de confusão.
— Eu?! — comecei a rir, indignada. — Que confusão?
— Você quer mudar o mundo toda hora — ele enrugou a testa e entortou a boca do jeito mais exagerado e reclamão possível. Dei uma risada bem alta e sarcástica. Aquele insuportável. Coloquei minhas mãos na cintura e levantei as sobrancelhas.
— Ok, , entre mudar o mundo e apanhar do Nate DeWolff, qual confusão você escolhe?
— Vai se foder, — ele disse em meio ao riso rouco de novo. — O que eu quero dizer é… Para de viver um sofrimento que nem existe ainda. Deixa pra você sentir saudade da Jenna quando ela não estiver mais aqui.
— Eu não consigo — sem querer, deixei um pouco de agonia se externar na minha voz. — Acho que… só não quero me iludir. Eu odeio me iludir.
— Se iludir com o quê? Você tá imersa numa realidade que você só supõe que vai fazer parte do seu futuro. Você não sabe como vai reagir de verdade.
— Porque eu costumo fazer isso pra me proteger dessa realidade que vai chegar.
— Para de afirmar que ela vai chegar.
— Mas vai! Se eu falar que não, vou me iludir, não entende? — virei o rosto para encará-lo. De repente, aquela sua típica calma começou a me irritar um pouco. Eu não entendia como as coisas podiam ser tão simples para , como parecia que ele não tinha medo de nada. — Meu tempo de ilusão foi em Livingston, onde eu deixei todo mundo pra trás, e agora sei que são as pessoas que vão me deixar. E isso é tão… assustador. Mas nem posso culpá-las, claro que não. É por isso que eu disse que é um apego idiota.
— Mas agora a gente tem internet, . É só mandar um e-mail pra Jenna que chega no mesmo dia, não é como se você precisasse esperar semanas pra uma carta chegar no correio lá no outro lado do país. As pessoas vão ficar cada vez mais conectadas assim. É sério, eu sou otimista quanto a isso.
Lembrei de como ele estava realmente por dentro de todas as novidades tecnológicas, e falou aquilo com segurança – não só para me confortar. Mesmo assim, senti que estava simplificando as coisas, ignorando como a falta física de alguém poderia ser tão avassaladora que nem sempre encontramos uma saída para aliviar o vazio que ela nos deixa. E eu não era o tipo de pessoa que conseguia ignorar. Eu sentia, e sentia muito o preço da distância da minha família para viver meu sonho e experimentar oportunidades, por exemplo.
— Eu só queria mais tempo com a Jenna — falei no meio de um suspiro mais contido. — É uma amizade muito importante pra eu perder tão rápido assim. Eu só queria mais tempo com ela, com… com…
“Com você.”
Não consegui dizer. Ao invés disso, os alto-falantes interromperam uma música qualquer que estava tocando na rádio para anunciar, naquele microfone ruim e estridente, que estávamos próximos da doca da Ilha de Staten. Em seguida, a música voltou a tocar.

🎵 Pra você ouvir de fundo:
Fade Into You – Mazzy Star

— Sei lá. Desculpa. Às vezes me sinto muito sobrecarregada pelo mundo. Desculpa despejar tudo assim.
inclinou mais o rosto na direção do meu. Seu olhar continuava tranquilo, doce e complacente de algum jeito, mesmo não se identificando com minhas questões. — Seu senso de realidade não pode te deixar tão miserável assim. Você é uma pessoa que não consegue sentir nada superficialmente, mas-
— Eu odeio isso.
— Não, não odeie. Me deixe terminar. A gente tá num mundo onde somos encorajados a olhar só pra superfície das coisas, não é? E você enxergar profundidade é tipo… é tipo ganhar o poder de visão raio-X. Porra, pensa, você tem a chance de mergulhar de cabeça nos seus sentimentos enquanto outras pessoas podem ficar felizes em só molhar os pés, e foda-se o resto. Só que você não pode deixar esse poder te consumir, entende? Eu sei que é difícil responder “qual o sentido disso e daquilo”, mas às vezes essa pergunta nem precisa ser respondida.
— É… Eu meio que preciso aprender a controlar meu poder, né?
— Sim.
— Então quer dizer que… você é meu Professor Xavier?
soltou uma gargalhada alta e falha, o que me fez rir também. Sua voz rouca não o deixava rir normalmente.
— Não, você não vai entrar nos X-Men, caralho — disse ele ainda risonho. Então, pigarreou algumas vezes na tentativa de recuperar a voz antes de continuar: — Na prática, eu não diria “controlar”, e sim viver bem com isso.
— Exemplo?
— Exemplo… — respirou fundo enquanto estirava os braços para descansá-los no encosto do banco; um deles bem atrás das minhas costas. — Você não para de olhar pro mar e não tá enxergando o que tá bem na sua frente de verdade.
— O quê? — senti meus ombros rígidos de repente, meu olhar congelado naquela mesma direção. Para frente.
— A paisagem. Eu tô olhando pra você, o tempo todo, mas sei exatamente o que tá à nossa volta. Você não para de olhar pra paisagem, mas sabe o que tá enxergando? Nada do que tá aqui. Você tá vendo alguma cena da Jenna indo embora pra sempre num aeroporto e nunca mais voltando. E você chorando sem parar, achando que vai ficar sozinha e triste e abandonada pro resto da vida.
— … É exatamente isso — confessei, meio balançada, enfim desviando o olhar para ele. Mas não consegui voltar, algo nos olhos de me prendeu. Era a segunda vez no dia que isso acontecia. Não consegui desviar outra vez para a paisagem e entrar naquele mundo hipotético da minha cabeça paranoica de novo. Parecia sem sentido agora.
Em silêncio, depois de alguns segundos, despreguei meus olhos dos dele e girei o pescoço, decidida a contemplar a paisagem sem distrações. O mar azul-escuro, o vento úmido e quente, o céu alaranjado, as nuvens rosadas. Aquela mistura de cheiros de café, pretzels e poluição de lixo plástico no oceano. O pôr do sol já estava acontecendo, quase se esvaindo, e eu nem tinha notado. Os arranha-céus de Manhattan acendiam as primeiras luzes, formando aquele lindo conjunto caótico de prédios meio-iluminados; o Empire State, as Torres Gêmeas e os edifícios castanhos do Brooklyn dominando a vista cada vez mais distante. E era tudo isso que ele sabia que eu estava perdendo.
Meu Deus. Quanto mais ansiosa eu ficava, mais deixava de reparar os detalhes do mundo que sempre me fascinavam. Mais eu perdia o agora, mais eu esquecia de mim e das coisas que me faziam ser eu. Voltei a olhar para , que nem tinha se movido – ele ainda me observava como se estivesse absorto em devaneios. Divaguei meus olhos por seus cabelos, suas sobrancelhas grossas, as pequenas linhas de expressão no canto de seus olhos e de sua boca. O traçado de seus lábios, seu nariz, a pele lisa de suas maçãs e a barba rala nas bochechas.
Então, me demorei em seus olhos de novo. E me vi no reflexo deles, naquela imensidão azul e verde, com manchinhas amareladas se você reparasse bem. era real. E eu estava desperdiçando toda hora o que era real, mesmo com meu mantra clichê de aproveitar a droga do momento.
— Para de viver o que ainda não aconteceu — ele disse mais baixo, quase como se estivesse lendo a bagunça da minha cabeça. — Você tá aqui, comigo, numa balsa voltando pra Oyster. Um dia de cada vez, lembra?
Um sorrisinho me escapou, e logo vi o dele me espelhar. Caramba, ele estava sempre pronto para me ouvir e disposto a oferecer aconchego pro meu caos.
— Eu gosto como você consegue enxergar beleza em qualquer paisagem — falei, sem nem perceber. Apenas saiu. abaixou o olhar enquanto me ouvia com atenção e balançava a cabeça, meio surpreso. — Esse é o seu super-poder. Você vê a composição de todos os lugares. Luzes, texturas… Eu conheço seus desenhos. Pensando bem… É o seu super-poder de artista, não é?
— É mesmo. E você também é uma — ele me olhou nos olhos de novo, dessa vez, mais sério. Como se tivesse aprendido a me manter ali, neles, me deixando entrar em seus segredos. — Nós dois somos artistas, temos olhos treinados. E isso significa ver o mundo de um jeito diferente, não necessariamente melhor ou pior, mas diferente. Eu me pego percebendo pequenas coisas na natureza, até nas pessoas… e depois uso isso nos meus desenhos. A gente descobre cedo na vida que somos artistas, não é? E isso não muda, não importa o que mais a gente tente fazer ou o quanto a gente envelheça. Podemos não trabalhar ativamente com arte, mas se tivermos sorte, conseguimos. E é dessa sorte que eu vou correr atrás, até o último dia da minha vida.
— Então… é esse o seu… “caminho menos danoso”?
— Sim.
— Gostei. Isso tudo é muito verdade. Eu não sabia, mas… acho que também tô correndo atrás dessa sorte.
— Pessoas e paisagens estão mudando a todo momento, . E você sofre porque quer que elas permaneçam as mesmas pra sempre, como um museu.
Fiquei olhando para ele por um instante. Como conseguia me decifrar daquela maneira? Como ele conseguia enxergar um universo inteiro dentro de mim? Me vi imersa em seu olhar tão compassivo, tão direto e magnético que eu sentia que ele também estava dentro do meu. E não tive medo algum. Meu Deus, aquele era sem sombra de dúvidas um caminho sem volta.
— Eu amo como você fala do jeito mais clássico possível sobre como tem tanta bobagem na minha cabeça — admiti. — Me dá um misto de esperança e desespero.
Ele riu.
— Quando tem tanta bobagem dentro de nós, é muito difícil aceitar que outra pessoa goste da gente, não é? Porque é isso que você sempre deixa passar — seus dedos tocaram meus ombros, depois foram roçando devagar até meu pescoço. — … Você é minha paisagem preferida — ele recolheu um pouco o braço e levou a mão até meu rosto; as pontas dos dedos fazendo um leve carinho na linha do meu queixo. — A mais linda que eu já tive o prazer de pôr os olhos. E não vou mentir, muitas vezes eu quis te guardar no meu sketchbook, mas sei que não faz sentido. Pra mim não importa mais o quanto você mude amanhã. Eu sempre quero ficar perto de você, porque fico louco pra te admirar.
Prendi a respiração. Não consegui dizer nada. Eu nem saberia dizer o que eu estava sentindo.
E será que eu precisava?
Aquelas bobagens continuariam comigo, mas senti o gosto do controle sobre elas pela primeira vez em muito tempo. De repente, tudo ficou tão calmo que foi como se uma antena parabólica finalmente tivesse acabado com o chiado da minha mente. Existia uma grande diferença entre achar que eu precisava de uma pessoa para me sentir bem e menos solitária, e uma que me fizesse me sentir aceita. E eu tive a certeza que me aceitava.
Inteiramente.
Toquei seu rosto com as duas mãos e cheguei o meu bem perto do dele, ainda o observando. Queria enchê-lo de beijos, e foi o que eu fiz. Dei vários beijinhos em cada canto de sua pele; bochechas, queixo, lábios, nariz, até suas pálpebras fechadas. Pude senti-lo sorrir aos poucos, o que me fez beijá-lo mais e mais e mais.
… — o chamei com a voz arrastada, me afastando só o suficiente para olhá-lo outra vez. Ele encarava minha boca.
— Hmm.
— Se um dia você se esquecer de mim, eu te mato.
“Porque eu acho que nunca vou conseguir me esquecer de você.”
E, de novo, não falei nada.

— Relaxa — ele deixou um beijo preguiçoso em meus lábios, a barba por fazer me dando pequenas cócegas. — Isso é impossível.


Capítulo 27 – Planos

A noite trouxe uma temperatura um pouco mais agradável, porém, dentro da Chevy estava um forno. Uma chuvinha morna não parava de cair, mas não me deixou abrir as janelas, ou seu precioso banco de couro ia molhar. Apenas uma frestinha estava aberta, e eu estava com a metade do rosto colado no vidro gelado para receber um pouco do vento.
— Que calor — eu já reclamava sem propósito, apenas para tirar do meu sistema. — Que calor, . Que calor.
— Foi mal, , mas o poder de controlar o clima eu ainda não tenho.
Meus olhos rolaram para cima.
— Você me prende nessa estufa ambulante e eu não posso nem reclamar em paz. Dá um tempo.
Ele deu uma risadinha enquanto eu cruzava os braços e apoiava preguiçosamente meus pés no painel do carro. O para-brisa dançava de um lado para o outro, devagar, no mesmo ritmo que os pingos cobriam o vidro largo. Eu gostava como caminhonetes eram tão espaçosas, principalmente as antigas como aquela – a relíquia pessoal de , que ele levava para cima e para baixo e nem percebia que era seu apego próprio. Seu único lar possível. Era onde ele relaxava ao máximo, era quando seus pensamentos viajavam longe. Hipnotizado pela estrada sem fim à sua frente, com o olhar sério e tranquilo, parecia que sua mente se transportava para um mundo paralelo, e a frequência de atenção às outras coisas ao seu redor – que não fosse o trânsito – diminuía bastante.
dirigia rápido, no limite da velocidade, nem um quilômetro abaixo ou acima. Ele vestia agora um boné, o mesmo azul-marinho do Patriots de sempre, que ele tinha catado dentro do porta-luvas assim que entramos no carro. Era difícil fazê-lo virar o rosto para mim enquanto eu falava alguma coisa. Por outro lado, eu olhava para ele toda hora, aproveitando para contemplar as linhas de seu perfil pelo tempo que eu quisesse. Ele ficava concentrado na estrada do jeito mais bonitinho possível. O cotovelo apoiado na janela, os ombros leves, o cabelo caindo um pouco pelas laterais do rosto. O braço direito esticado e a mão que segurava o volante batucando com o ritmo da música. Dirigir era seu momento particular preferido, então eu tentava respeitar ao máximo.
Menos para reclamar do calor.
— Desculpa, não consigo ficar quieta nesse calor. Eu preciso me distrair com alguma coisa dentro dessa caminhonete, .
Ele moveu o canto direito dos lábios milimetricamente para cima, mas não disse nada.
— É sério, me dê ideias. Já cansei de contar Fuscas.
Pude ouvi-lo rir pelo nariz. Então, pela primeira vez, seu rosto virou para o meu.
— Quer mesmo que eu te dê ideias? — e seus olhos voltaram para a estrada. Então, apontaram para mim de novo. — Eu tenho uma.
Claro que ele tinha. A risada que deu depois do meu silêncio só confirmou qualquer dúvida que eu pudesse ter sobre suas segundas intenções.
— Eu já devia imaginar — falei, me endireitando no assento e balançando a cabeça, ainda de braços cruzados. — A gente sempre chega aqui, né? Nesse ponto.
— E tem coisa melhor?
Mais um silêncio meu, daqueles de que quem cala, consente. Fiquei me perguntando qual cena exatamente devia estar passando pela cabeça dele. Ah, eu queria muito saber.
— Você anda pensando muito em mim, hein, ? Por que será?
O sorrisinho dele se moveu mais um pouco para cima, mas os olhos continuaram fixos na estrada.
— Tá com saudades daquele dia na república? — instiguei, então finalmente vi seus dentes em seu sorriso.
— Você não tá? — ele me olhou, e sorri de lado na mesma hora. Consegui.
— Eu sei que minha expressão não consegue mentir. Você que me falou isso, lembra? Então você já sabe a resposta, e sabe de uma coisa? Eu adoro não precisar falar.
Ele deu uma pausa maior enquanto voltava a dividir a atenção entre o trânsito e eu.
— Eu também gosto disso. É só olhar pra você e eu não preciso de muito pra ler o que tá escrito na sua testa.
— E o que tá escrito na minha testa?!
— Agora? Tá variando entre “que calor” e “tô louca pra transar com você de novo”.
— Porra, … — minha voz arrastada entregava minha completa preguiça de contrariá-lo. Seria uma tentativa tão falha que seria embaraçoso. Logo ouvi sua gargalhada ecoar pela cabine da Chevy, mas continuei: — Não é à toa que você tá me levando pra lá de novo, não é…? Pra república.
— Onde não vai ter ninguém além da gente? Claro. Duvido você sugerir um lugar melhor. E de graça. E coberto.
— Bom…
Acho que ele não esperava que eu fosse sequer pensar numa opção, porque girou o pescoço para mim no instante em que ouviu minha voz.
— O quê? — questionei, mas tudo que recebi como resposta foi uma risadinha sugestiva demais.
— Não vai me dizer que quer ir pro terraço do Belva Hall…
— Claro que não — dei uma cotovelada no braço dele, que até tentou me repreender por isso, mas o interrompi. — Nem começa, eu nem te atrapalhei. E também não faço ideia onde, não consigo pensar agora. Eu só fiquei… um pouquinho curiosa. Mas não no terraço — fiz uma careta. — Na verdade, não no perímetro da Oyster, chega disso. Você já não cansou de lá? E talvez… num lugar não tão aberto… talvez.
estava adorando cada segundo.
— Ok… — ele falou depois de um tempo, como se tivesse transformado tudo aquilo numa nota mental. — Agora você me fez ter duas ideias, mas a gente deixa a segunda pra outro dia. A república tá fácil demais agora pra desistir dela.
— É, concordo. Além do mais, eu não tô preparada ainda pra sua segunda ideia, calma aí. Eu nem sei qual lugar você pensou.
— Relaxa, pode me cobrar depois.
Encolhi os joelhos e voltei a apoiar os pés no painel, depois olhei para frente, pensativa. Satisfeita. Eu estava felizinha porque estávamos fazendo planos para transar mais vezes. Catei um porta-CDs ao meu lado e fui passando um por um, curiosa, mas a fita cassete escolhida por já tocava qualquer música que era a cara dele.

🎵 Pra você ouvir de fundo:
Say Hello 2 Heaven – Temple Of The Dog

O barulho da chuva, aquela guitarra lentinha e a voz de Chris Cornell, “um dos melhores vocalistas do mundo” e mais blá-blá-blás segundo , me embalou num sono que me fez tirar um cochilinho discreto. Quando acordei, a primeira coisa que notei foi que a chuva tinha aumentado, bem como a velocidade do para-brisa. Dava para ouvir os pingos mais fortes na lataria da picape, e o rádio agora estava num volume mais baixo. As nuvens cinzas e carregadas estavam à nossa frente, prontas para nos receber no campus enquanto deixávamos um céu mais limpo para trás.
Fiquei meio perdida por um momento. Aquele cochilo de cinco minutos que fode com sua memória recente.
— Meu Deus… — arrumei minha postura no banco mais uma vez, me espreguiçando e dando um bocejo depois do outro. — Meu Deus, eu dormi. Foi mal, .
Ele só murmurou alguma coisa que fui incapaz de entender.
— Tá tudo bem aí? Você tá cansado? Quer que eu dirija?
— Não, não esquenta. Já estamos chegando — olhou para mim calmamente, só por um breve segundo. — Obrigado.
Achei bonitinho ele agradecer. Eu não estava esperando por aquilo, ou só não estava acostumada com alguém apreciando meu mínimo cuidado com alguma coisa, mesmo. E também não era a pessoa mais acostumada do mundo a receber o cuidado de alguém, pelo menos no microcosmo da nossa vida universitária.
— Essa tempestade de verão não tá com cara que vai parar. O mundo tá desabando — comentei enquanto observava a paisagem escura e nebulosa lá fora, com alguns relâmpagos clareando o céu. Meio assustadora, até, principalmente quando nos aproximávamos mais do campus, que era rodeado de imensos carvalhos, agora com as copas todas cheias e agitadas pelo vento. Mas ainda tinha um volume considerável de carros nas ruas, e o asfalto molhado refletia as luzes vermelhas e amarelas dos faróis. Aproveitei para rodar a manivela da porta ao meu lado e fechar a fresta da janela. — … Engraçado. E lá atrás tava tão tranquilo. Se os meninos pegarem essa chuva com o táxi da volta, vão ficar tão putos. E a balsa ainda vai ficar lotada — soltei uma risadinha debochada, da qual quase me arrependi logo depois, mas também riu. — Eles vão xingar a gente demais. Principalmente você.
— É… — ele concordou, mas meio indiferente. — Isso é uma coisa que vou deixar pros meus ouvidos aguentarem depois.
— Só seus ouvidos mesmo, porque eu já sei que você não vai rebater nada, não é? É sua cara ficar ouvindo a Jenna reclamar, deixar só os outros se abalarem. Típico.
— É isso aí. Conhece aquela frase, “é melhor ter paz do que ter razão”?
— Conheço. Você é guiado por ela.
— É isso aí.
E eu era o oposto, e ele sabia bem disso. Eu não conseguia ficar quieta, procurava o confronto na melhor das oportunidades. Mas na filosofia do desapego de , o que eu gostava era de caçar confusão.
Quando chegamos no campus, seguiu mais algumas ruas e dobrou mais algumas esquinas, então estacionou a Chevy na garagem da república; um pavimento externo e acimentado ao lado da casa. Assim que ele puxou o freio de mão, começou a resmungar algo que não entendi. Ficou tateando os próprios bolsos, depois soltou seu cinto de segurança para alcançar o porta-luvas na minha frente. Abriu, fechou e resmungou de novo.
— Ah, merda… Merda… Não acredito.
— O que foi? — perguntei enquanto também me preparava para sair da cabine.
— Trancamos a porta antes de sair hoje. A chave tá com o PJ.
— Mentira.
— Queria que fosse.
— E agora…?
— Olha, era pra ter uma chave reserva lá atrás, no quintal, debaixo do tapete, naquela porta que dá pra cozinha. Se ninguém pegou, deve tá lá ainda. Anima ver? — ele me chamou, indicando com o queixo para o lado de fora.
Na maior chuva.
— Tá bom… — abri a porta a contragosto, já sentindo um zilhão de pingos no meu braço; abriu a dele logo em seguida. Saí correndo primeiro porque ele teve que trancar a Chevy, depois dei a volta na casa e o esperei na porta de correr.
O que eu mais queria era entrar, então resolvi não perder tempo e pisotear o tapete para sentir se havia algum objeto por baixo. Não deu outra: tinha uma chave ali.
Assim que ouvi os passos dele pela grama molhada, espiei, por cima do meu ombro, correndo até onde eu estava. Suas roupas estavam mais molhadas que as minhas; a aba de seu boné não parava de pingar na frente de seu rosto. Ele já chegou se inclinando em direção ao tapete, apressado.
— Aqui, acabei de pegar — mostrei a chave para ele, depois coloquei-a em sua mão. — Abre logo.
Até que a água não estava tão gelada, mas a roupa grudando no corpo me deixou com frio. destrancou a porta e, assim que entramos, ele trancou de novo e largou a chave na bancada. Estávamos encharcados. Pálidos, batendo os queixos; os pingos formando poças no piso da cozinha, o silêncio repentino da casa aumentando o som das nossas respirações. E a primeira coisa que fiz, sem discrição alguma, foi reparar na bermuda esportiva totalmente colada nas coxas e virilha dele. Suas mãos puxaram a barra de sua camisa só um pouco para cima, na altura de seu umbigo, então torceram o tecido para escorrer mais água. Aquela cena se repetiu mil vezes na minha cabeça em menos de um segundo.
E eu me peguei sentindo necessidade de rever o que tinha por baixo daquela bermuda. De rever e de sentir, agora, de mil jeitos diferentes. Eu estava faminta – e para piorar minha situação, não sabia nem como começar.
— Eu… — alcancei a barra da minha regata, deixando meu corpo agir por conta própria. — Olha só pra gente. Eu tô toda molhada. Sem condições.
Puxei-a para cima e tirei de uma vez. Em seguida, desabotoei meu sutiã e deixei que caísse no chão, sem tirar os olhos de – que já tinha os dele cravados em outro lugar. Quando abaixei o zíper do meu short jeans e também o larguei em qualquer canto, sua boca abriu e fechou algumas vezes. As sobrancelhas estavam erguidas, inquietas. Ele realmente não sabia se olhava para minha calcinha ou meus peitos. Pelo menos, eu esperava que a minha loucura inédita fosse um incentivo para adiantar meu trabalho e tirar a roupa também.
Mas ele continuou em transe.
— Vamos — avancei dois passos em sua direção, e ele, que também já tinha dado um, foi me acompanhando com os olhos. Dei uma risadinha. — Pensei que você fosse fazer o mesmo.
tirou a camisa na mesma hora, tão atônito que deixou o boné cair para trás. Seu cabelo molhado agora estava bagunçado para todos os lados, e duas gotas grossas de água escorriam pelas linhas de sua mandíbula.
Fomos nos aproximando sutilmente até ele parar na minha boca, até ficarmos insuportavelmente perto um do outro. E o que fez em seguida foi agarrar a polpa da minha bunda antes de me beijar, um beijo tão sedento que me deixou eletrizada. Dali em diante, eu nem pensei mais no que estava acontecendo. Nem ele. Nos jogamos no desejo um do outro e foi gostoso demais.
Demais.
Seria sempre assim? Aquele tesão e carinho misturados? Talvez em doses intercaladas com o passar do tempo?
Eu só sentia que a gente dava muito certo. E queria mantê-lo por perto o máximo possível, em intermináveis aspectos da minha vida. Mas, no momento, eu só queria transar.
Quando colei meu corpo no dele, o choque de temperatura foi imediato. Estávamos morrendo de frio, não dava para negar, mas nenhum de nós tinha raciocínio o suficiente para resolver aquele problema. E eu amei aquilo. Amei não precisar me preocupar com uma solução, amei perceber que nada mais importava, amei me sentir uma gostosa e me entregar à sensação sem um centavo de culpa.
Quando vi, já estávamos cambaleando pela sala até nos jogarmos no sofá. Eu tinha caído por cima dele, e fui me ajeitando até que ficasse com as coxas bem encaixadas em torno de seu quadril. Assim que parei de beijá-lo e ergui o tronco, ficou me olhando com aqueles olhos baixos, a respiração ofegante, as mãos ainda agarradas na minha bunda. Elas foram subindo pelas minhas curvas, deixando um rastro mínimo de calor por onde passavam.
— Puta merda, , meu tesão em você é uma coisa fora do normal.
Inferno. Tive que inspirar o ar com mais controle, me segurar para não sorrir igual uma absoluta idiota. Meu coração espalhava eletricidade, mas fui calma e impassível ao responder:
— … É porque você ainda não sabe o que eu vou fazer com você hoje.
abriu um sorriso como se tivesse acabado de entrar no sétimo céu. Também ergueu o tronco e ficou com a cabeça na altura dos meu seios, onde se demorou alguns segundos antes de tomar um deles com a boca. E quando senti sua língua quente na minha pele gelada, morri algumas vezes e voltei para a Terra. Talvez a hora perfeita para ligar para a emergência, mas, para ele, o momento perfeito para levantar somente os olhos e se deleitar ainda mais com as caras de prazer e desespero que eu fazia.
Como da última vez, foi fácil desligar um pouco minha autoconsciência excessiva. Não prestei tanta atenção nas minhas expressões, ângulos, para onde eu olhava ou qualquer posição estranha que eu pudesse fazer sem perceber, inclusive que mostrassem um milhão de dobras da minha barriga. Não tinha que ser uma performance, só tinha que ser um sexo gostoso. Para os dois.
E a gente era muito bom nisso.
Meus dedos passavam sem parar pelos cabelos molhados dele, até que deslizei-os pela sua nuca e ombros, onde usei minhas mãos para empurrá-lo com um pouquinho de custo. Ele não queria parar ainda, mas quem estava ansiosa hoje era eu.
— Vem, deita aqui — pedi.
Meus dedos já vagavam por seu peito, então desceram até os elásticos de sua bermuda e cueca para baixá-las logo, e ele terminou meu trabalho quando balançou as pernas para tirá-las por completo. Alcancei sua ereção livre e fechou os olhos por um instante, detalhe que notei porque olhei para seu rosto por um momento antes de me curvar sobre ele. Joguei o cabelo para o lado antes de começar e, na mesma hora, uma de suas mãos agarrou meus fios atrás da minha orelha.
— Porra, você é linda demais, sabia?
Aquilo fez com que um sorrisinho de canto permanecesse em meus lábios durante todo o tempo em que olhei para ele. E adorou, porque sorriu de volta do mesmo jeito.
Ele fechou os olhos de novo e soltou uma grande quantidade de ar quando sentiu minha língua experimentá-lo pela primeira vez. Seus olhos me espiavam vez ou outra, e eu o sentia endurecer ainda mais toda vez que eles me encontravam. E eu demorava, provocando-o com minhas longas e lentas carícias, alternando entre beijos e lambidas. Pude sentir a umidade inundar minha calcinha cada vez que respirava mais profundamente, ou os dedos de sua mão apertavam mais forte o meu cabelo.
— Caralho… — ele deixou o murmúrio no ar por um tempo. — Você é tão boa nisso…
— Eu sei — dei um sorrisinho convencido antes de levá-lo totalmente em minha boca, minha mão direita torcendo em torno de sua base. Ele jogou a cabeça para trás, batendo a nuca no braço do sofá.
Porra — seu resmungo ofegante me fez segurar o riso. — Vai, , disso eu deixo você se vangloriar o quanto quiser.
E eu não parei. Não parei enquanto ele também não parava de me estimular. Em questão de minutos fiquei igualmente excitada, só de perceber cada mínima reação que seu corpo fazia, ou de senti-lo cada vez mais concentrado e entregue a mim – e eu sabia como essa parte podia ser difícil sem uma gota de álcool no sangue ou sem a intimidade ideal com uma pessoa. Quando suas mãos escorregaram do meu cabelo e seus dedos cavaram a base do meu pescoço, eu soube que estava quase lá.
Deixei-o deslizar para fora da minha boca e continuei com minha mão direita. No alto da crista de sua onda de prazer, seus olhos se apertaram, os músculos de suas pernas contraíram e o som grave e demorado que fugiu de seus lábios me fez enlouquecer. Não tinha nada mais gostoso do que ouvir aquilo.
Ele foi abrindo os olhos lentamente, seu corpo relaxando aos poucos… e eu apreciava cada instante. Ergui minha coluna e me inclinei para distribuir mais alguns beijos por seu pescoço enquanto se recuperava. Eu sabia que ele se derretia com beijos no pescoço, principalmente na curva de sua nuca. Ao mesmo tempo, as pontas de seus dedos passeavam livres por minhas costas, coisa que ele ainda não sabia o quanto eu amava.

— Hmm? — levantei o rosto para olhá-lo.
— Merda… — ele não me olhava nos olhos como eu fazia, e sim um pouco mais para baixo. Sua voz ainda estava rouca do jogo. — Precisamos limpar você.
Havia um sorrisinho safado escondido ali que eu já estava acostumada a detectar. Ele passou rapidamente a língua pelos lábios, depois subiu o olhar para mim de novo.
— Vem cá. Se segura em mim.
De repente, ergueu o corpo num impulso nem um pouco calculado, mas enganchou os braços ao redor das minhas coxas e, de uma vez, me levantou junto com ele, com uma firmeza surpreendente. A única coisa que deu tempo de fazer foi soltar um gritinho esganiçado que o fez rir.
— Pra onde você tá me levando?!
— Pro chuveiro — disse ele com dificuldade, e ainda tínhamos uma escada pela frente. Mas que não foi problema, ainda bem. Eu me agarrava ao corpo dele como um bicho-preguiça se pendura no tronco de uma árvore.
Assim que entramos no banheiro do andar de cima, me soltou dentro do box, largo o suficiente para caber nós dois. Ele abriu a torneira e a água quente escorreu primeiro pelos meus cabelos, o que me já me fez suspirar de alívio. Puxei-o para baixo da água corrente comigo e fiquei na ponta dos pés, envolvendo meus braços em torno do seu pescoço. Eu observava seu rosto de pertinho enquanto ele tirava um momento para jogar o cabelo molhado para trás e esfregar os olhos com os dedos. Eu podia ver em seu sorriso calmo e sutil que, assim como eu, ele aproveitava aquela proximidade e o vapor que nos aquecia.
— Meu Deus… — eu estava suspirando igual uma idiota. Um calor continuava me queimando e a ficha começava a cair: eu queria transar com ele a tarde toda. — Meu Deus, você é o cara mais gostoso do mundo inteiro.
Ele riu, então me puxou um pouquinho para fora do chuveiro. A água agora caía só nas minhas costas, mas ainda espirrava ao nosso redor.
— Tô falando sério, . Você tem noção da gravidade dessa constatação? Deixa eu te explicar, no mundinho isso é muito, muito grave. É sério, para de rir, por favor.
— … Por que tão grave? — ele ainda ria. Qualquer conversa com era como receber um ingresso para entrar num parque de diversões só nosso.
— Porque… — senti o sangue correr mais rápido de repente. Eu com certeza estava prestes a admitir algumas coisas. — Porque precisamos deixar uma coisa bem clara aqui. Eu meio que tô apaixonada por você-
— Não tava claro antes?
Revirei os olhos.
Eu sei, eu sei, isso não é nenhuma novidade pra nenhuma pessoa — dei um empurrãozinho em seus ombros. — Mas você tem ideia do que isso significa?
— Hmm.
— Significa que não tem mais volta, — brinquei em tom de ameaça, mas com aquele fundo de verdade.
— Que bom que não tem mais volta.
— … O que quer dizer?
— A mesma coisa que você, — ele deu uma batidinha com a ponta do nariz no meu. — Que já era. Já era pra gente, não é? Eu juro que não faço a menor puta ideia de quando as coisas ficaram assim, mas… eu sabia que quando isso finalmente rolasse — com o queixo, ele apontou para nós dois —, ia ficar impossível negar que um caminho com você seria um caminho sem volta.
— Espera aí… Você nem pensou que transar comigo poderia ser péssimo e acabar com absolutamente todas as suas expectativas?!
Ele deu uma risadinha levemente incrédula, como se a minha linha de raciocínio não tivesse a menor lógica. Tinha para mim.
— Não tinha como, . Eu já tava pirado em você muito antes, porra. Nem lembro quando foi a última vez que tive essa dúvida.
Comecei a rir e o apertei ainda mais forte contra mim.
— É. Já era pra gente.
— Já era.
Daquele banho ao seu quarto, foi tão difícil controlar meu fogo quanto me concentrar para não derreter de amores. Aquela universidade era uma bolha lotada de gente bitolada em suas próprias responsabilidades individuais, sempre com medo de criar laços com os outros, então poder experimentá-la com era a mais incrível das sensações. Dava vontade de ligar para minha mãe e contar tudo sobre ele, depois mandá-la espalhar a fofoca para a família toda.
Talvez eu tenha encontrado a minha pessoa. “Grave! tá com os quatro pneu arriado!”, eu já conseguia imaginar aquela voz alta de taquara rachada no telefone com a minha tia.
Entre risos e quase tropeços, eu e nos jogamos na cama desarrumada dele – bastante convidativa, inclusive. Ele gostava de deixar uma baguncinha de cobertores, lençóis e travesseiros por toda parte, assim como eu também fazia, e não escondia isso. Eu amava dormir sentindo meu corpo afundado no meio de nuvens fofas de algodão, não numa tábua de madeira forrada. Mas exagerava – talvez para compensar a finura ridícula de seus travesseiros, era minha hipótese.
E como era bom não precisar me preocupar com ninguém que pudesse aparecer a qualquer momento. Com sons. Barulhos. Portas abertas, serenatas, vômitos alheios, que seja – estávamos finalmente sozinhos, nas condições perfeitas para fazer o que a gente quisesse. Repetidas vezes.
O desejo já ardia entre minhas coxas só de saber que hoje eu ia gozar com ele de novo. E se não acontecesse, eu também sabia que não seria nenhuma questão, ou nada que me faria carregar uma culpa imensa e desnecessária por semanas. Tudo ficaria bem de qualquer jeito, porque foda-se, tínhamos intimidade o suficiente para lidar com essas coisas. Era mais fácil.
Talvez uns vinte ou trinta minutos depois, lá estávamos ofegando feito dois atletas, esparramados no colchão como uns bagaços de laranja. Eu com a cabeça no pé da cama, ao contrário. Eu ainda estava meio entorpecida, lenta demais, o prazer ainda terminando de pulsar.
— Tudo bem aí? Precisa de ajuda? — ele ironizou na cara dura. — Quer que eu chame um médico?
— Cala a boca, pelo amor de Deus…
Ouvi sua risada e segurei a minha, mas nem falei mais nada. Ainda estava um pouco sem ar.
— Foi tão bom assim? — ele perguntou.
— Não tá dando pra notar…?
— E como tá.
— Então fica calado — me virei para o lado enquanto ele terminava de rir. — Caramba, nossas roupas estão lá embaixo.
— Que horas são?
— Não sei.
— Então volta aqui, vem cá — se esticou preguiçosamente e alcançou meu braço. — Fica aqui mais um pouco.
Ele não precisava de esforço algum para me convencer todas as vezes.
Voltei para a cama e me aninhei ao seu lado. Deitei minha cabeça em seu peito e enrosquei uma das minhas pernas nas suas, entre lençóis amarrotados e alguns travesseiros ao redor da gente. ligou o ventilador de teto na velocidade máxima com um controle que apanhou na mesinha ao lado, e o vento agradável refrescou o quarto de imediato. Ficamos ali, abraçados, relaxados, curtindo cada mínimo segundo da companhia um do outro.
— Foi tão fácil me acostumar com você — falei, só porque senti que ele amaria saber o que se passava em meus pensamentos. — Sei lá. Você não tá com a sensação que vamos viver isso mais um monte de vezes? Isso aqui, agora, esse momento. O que vivemos hoje.
— Por quê? Você queria viver mais hojes comigo?
— Queria.
olhou para mim e eu ergui o queixo para olhá-lo de volta. Ele sorria, calmo e doce, meio apaixonadinho também – ele nunca tinha pressa, nem em cumprir suas obrigações mais sérias, nem em expressar seus sentimentos mais profundos. Era o jeito dele, o tempo dele. Por isso que, quando notei seus lábios dançando um pouco, como se estivesse prestes a falar alguma coisa que não saía, deixei quieto. Mas eu tive certeza que seus olhos diziam muito mais que seu sorriso.
O quê? Não sei.
Era difícil decifrá-los às vezes. E eu sabia que ele não tinha a mesma dificuldade comigo.
— Eu também queria — falou, por fim, desviando o olhar para o teto. — Queria muito mais hojes, mais amanhãs e mais depois de amanhãs…
Seus dedos faziam um carinho tão gostoso em minhas costas que eu fechei os olhos. Suas unhas arranhavam levemente a minha pele, traçando caminhos aleatórios como se tocassem uma harpa. Por onde passavam, eu sentia tudo formigar. Eu sentia tantas coisas; seu peito subir e descer com sua respiração tranquila, os pelos ralos de seu braço, os mais ásperos de suas pernas, a lateral de seu torso colado no meu. Não tinha uma borboleta sequer no meu estômago, mas eu sentia… alguma outra coisa, e ela não era empolgante, só…
Amor?
Um amor real.
Não dava tempo de assimilar o amor com a realidade, a gente só vivia e sentia tudo ao mesmo tempo. E o que me dava medo era a consciência de que esse era um sentimento tão frágil, tão mutável. Era bem diferente de uma paixão avassaladora, ou uma leve obsessão por um pauzudo, ou uma quedinha séria por um cara que até saberia me jogar para cima, mas que também gostasse de me jogar no fundo do poço, e às vezes até me prender lá. Paixões só sobreviviam das mesmas promessas e ideias. Amor era sinônimo de trabalho e cuidado, um tipo de loucura mais responsável.
Comecei a me perguntar se também sentia isso.
O ar úmido da noite misturava-se com o cheiro dele, mais acentuado ainda em seu quarto. Tudo tinha seu cheiro. E o silêncio não tinha vez ali dentro – os trovões continuavam, as rajadas de vento quase arrebentavam as janelas, mas na paz que estávamos, só um tornado nos faria levantar para no mínimo cogitarmos sair daquela posição.
Minutos depois, quando sua mão parou com o carinho e ouvi sua respiração pesar, olhei para cima e vi dormindo, simplesmente. Meu Deus, como eu queria dormir como um anjo assim, mas eu sabia como minha cabeça era traiçoeira. Ela tinha muita energia para gastar em pensamentos sobre a vida e mil cenários fantasiosos antes de cair no sono.
Ainda mais num dia como aquele.

Porém, como mágica, eu também simplesmente dormi.


🙂🙃🙂


Inacreditável como aquela noite estava rendendo. A chuva foi generosa com a gente, pelo menos naquele sentido, porque fez o resto do grupo se atrasar em Manhattan como eu já previa. Fala sério. Deu tempo de fazer tudo. Transar, tomar banho, dormir, ter conversinhas idiotas e edificantes sobre a vida, transar de novo, comer duas fatias de pizza requentada no micro-ondas e ainda dividir a última cerveja do engradado. Deu tempo até de jogar umas partidas de Mortal Kombat no PlayStation do PJ.
Quando todo mundo enfim chegou na república, já passava das nove horas. Eu e estávamos lavando a louça.
— A-HÁ! — Jenna berrou enquanto entrava pela sala. — Não falei? Bonnie e Clyde vieram se refugiar aqui.
— Óbvio, né… — Sadie resmungou; Lori estava logo atrás carregando sacolas de compras e Alex fechava um guarda-chuva. — não é de perder uma chance sequer.
— Chance de quê? — PJ começou a cantarolar. — Descobrir o prazer da liberdade e a pureza do amor? — ele veio todo irritante até a cozinha, onde estávamos parados de frente para a pia, então se enfiou ali no meio e nos abraçou pelos ombros. — Eu sabia que ia encontrar um belo casal em lua de mel nessa casa… Você esqueceu a chave comigo, vacilão. Entrou como? — ele deu um tapa nas costas de .
— Chave reserva do Alex… embaixo do tapete lá fora.
— Hmm… INTERESSANTE.
sentiu-se irritado o suficiente para levantar o dedo cheio de espuma na cara do amigo.
— PJ…
— Hã.
— Vai procurar um emprego, vai — ele sujou o nariz do PJ, que fez uma cara hilária de horror. E com razão.
Nossa. Aquela doía fundo em qualquer jovem adulto no processo de desilusão.
— Tá bom, meu parça — agora ele dava tapinhas leves nas costas de . — Precisa mesmo jogar na cara? Hein? Hein? Hein? — ele fingia peitá-lo, depois riu sozinho e abriu a geladeira, sem querer, na cara da Lori.
— AI! Não tá me vendo, cacete?! — ela cobriu o próprio nariz com uma mão.
— F-Foi mal… Quer… Quer um gelo?
— Relaxa, sem climão. Trouxe comida chinesa pra gente jantar, abre aí — Lori despejou todas as sacolas que carregava na bancada. PJ, já com seu sorrisinho faceiro, foi abrir as caixinhas mais cheirosas de todas. — Desastrado.
— Ei! Eu ouvi!
— Eu disse depravado.
— Isso foi você tentando consertar?
— Desgraçado?
— Porra… Só melhora.
Os dois já estavam rindo juntos enquanto separavam os hashis.
— Tudo bem, tudo bem. Eu disse drogado.
— Ok, esse eu aceito.
— Que lindo — Jenna se aproximou do outro lado. — A paz foi selada com ofensas que o PJ precisava receber.
Todo mundo riu, menos os dois. Lori mantinha seu sorriso esperto no rosto enquanto PJ exalava uma energia de réu culpado.
Depois do jantar na cozinha, ninguém ainda estava a fim de encerrar aquele evento, já que a chuva não parava. Os meninos ficaram na mesa pra fumar um, e a gente até ia participar, mas Lori e Jenna chamaram Sadie e eu para conversar ali na sala. Paramos em frente à estante numa pequena roda, como se fôssemos o Clube da Luluzinha.
— Lori Lynn teve uma ideia genial — Jen começou —, precisávamos contar pra vocês.
— Na verdade — Sadie interveio —, ela também já me contou uma parte. Mas como você fugiu, , vamos te repassar.
Para Sadie demonstrar um pingo de interesse, com certeza tinha a ver com política.
— É sobre o quê? A invasão no Iêmen?
— Não, idiota.
— O que tem o Iêmen? — Lori quis saber.
— Outro dia lá no quarto a gente viu o Bush falar disso no David Letterman, nada de mais.
— Hmm… Esse sim é um desgraçado.
— Quem? O Letterman?
— O Bush!
— Por quê?! — naquele momento, o mundo de Sadie caiu.
— Esquece.
— Não, fala. Você discorda da posição dele contra os terroristas?
— Eu? Mas é claro. Esse canalha tá louco pra explodir outra guerra no Oriente Médio.
— Mas ele só quer proteger a gente, Lori. O ocidente, os nossos valores, não pensou nisso?
— Foi mal, eu não caio nessa história da carochinha. O Bush pode alegar várias razões humanitárias pra atacar os outros, mas quem tem um reinado de terror é a gente. Os Estados Unidos não sabem existir no mundo sem lucrar bilhões com armas e tratar outros países como periferia. E digo mais, eles não vão desistir de manter essa regalia sem que milhões de pessoas sofram e morram primeiro. Tudo em nome da paz.
Sadie ficou calada, os olhos inquietos, a testa franzida; no mínimo tentando digerir aquele caminhão de informações. Finalmente alguém com estudo e conhecimento o suficiente para contrariá-la, porque Alex tava mais pra um baba‐ovo.
— Enfim — disse Sadie, voltando à sua postura normal. — Eu só acho que não deveria sair barato qualquer ataque estrangeiro contra nós.
— Mas e o que nós fazemos contra estrangeiros? Isso não conta?
— É verdade, Sadie — Jen concordou, mas também parou por ali. Eu sabia que ela não era tão politizada quanto parecia. Estava mais para uma observadora como eu.
— Não tô te entendendo, Lori. Você tá do lado dos talibãs?
— Não… O ponto é… — ela respirou fundo, mas ainda empolgada para lançar mais questionamentos. — Você já se perguntou por que será que eles cresceram tanto nesses últimos anos? Como conseguiram armamento e poder?
Ninguém falou nada, mas aquilo fritou meus miolos. Os Estados Unidos estavam financiando aqueles grupos todos? Por décadas?!
De repente, meu raciocínio congelou pelo burburinho que deu para ouvir da cozinha. Não aguentei e comecei a rir alto, porque no meio daquele nosso papo seríssimo, os meninos na mesa estavam simplesmente discutindo por que amamos borboletas se odiamos mariposas.
— Eu tô falando muito sério agora — Alex soprou a fumaça. — Isso só mostra como pessoas bonitas têm muito mais privilégios na sociedade. O jeito que tratamos mariposas é a prova disso.
— Sei não, cara — foi a vez de PJ filosofar. — Borboletas não invadem meu quarto à noite quando acendo a luz pra ler alguma coisa, tá ligado? Nem comem a porra das minhas roupas na gaveta.
— Nada a ver — pegou o baseado que foi passado para ele. — São só alguns tipos de mariposas que comem tecidos. A maioria delas são a mesma merda que borboletas, só que mais encorpadinhas. Vocês viajam demais.
— Tá chamando mariposas de borboletas gostosas?
— Incompreendidas.
— É um advogado de feios, mesmo.
— O sempre quer bancar o árbitro nos nossos debates. Cansei disso.
Logo em seguida, ouvi Sadie soltar uma arfada tão alta e impaciente que me fez rir mais ainda.
Foco aqui, por favor — ela pediu.
— Ok, vamos voltar a fita agora — Jenna cruzou os braços. — Então, , a gente decidiu criar um blog.
— Um blog?
— É, e nele vamos postar os relatos de quem quiser compartilhar qualquer experiência desagradável que teve com caras que passam dos limites na Oyster.
— Sim, mais especificamente, situações de assédio — Lori completou. — Criei um e-mail pra receber esses relatos de forma anônima. Compartilhei o acesso com a Jen, depois posso mandar a senha pra vocês também.
— Nossa, mas vocês foram geniais! — exclamei, tanto em surpresa quanto em admiração. — Essa caixa de entrada vai ficar lotada se a gente encorajar o povo direito.
— Pois é. A Carly também já me mandou, aquela minha amiga, ex do Nate. E várias outras ex-alunas estão se movimentando, porque estão fazendo questão de divulgar. Já estamos pra receber vários semana que vem.
— Ah, também tem isso — Jenna falou em tom de alerta. — Temos que divulgar na calada, pra não sofrermos nenhum tipo de boicote antes.
— Exato, isso é importante.
Então, Sadie levantou a mesma dúvida que estava pairando sobre minha cabeça:
— Beleza, mas o que vamos fazer com todos esses relatos?
— Primeiro… Tem toda uma parada de criar um senso de pertencimento entre a gente — Lori explicou. — As pessoas vão ver que não estão sozinhas. E que não é um problema individual, é coletivo.
— Isso, vamos criar uma rede de apoio. Uma comunidade — Jenna voltou a falar. — Depois, se tivermos números o suficiente…
— E a gente vai ter — afirmei. — Não tenho a menor dúvida disso.
— E aí?! — Sadie ainda ansiava por uma resposta.
— Conta pra elas, Lori.
Com aquelas bochechas simpáticas, Lori deu um sorriso simples, mas triunfal ao responder:

— Aí a gente manda pra imprensa.


Capítulo 28 – Desapegos

A semana que passou não foi tão quente como as últimas tinham sido, e isso eu apreciava todos os dias. Depois de uma força-tarefa, eu e as meninas colocamos bilhetinhos por baixo das portas dos dormitórios femininos com o endereço do blog da Lori. Quem anotou todos os e-mails à mão em cada uma das centenas de post-its fui eu, numa manhã inteira durante umas cinco aulas diferentes, então nunca mais me esqueceria do nemteconto2000@hotmail.com. E era para ele que estavam enviando relatos atrás de relatos.
Eu não estava surpresa, mas assustada. Todas nós. Espalhou como fogo sobre palha, como se o problema fosse tão público e urgente que só faltava qualquer iniciativa de base para ser discutido mais seriamente.
Em meio à correria das últimas semanas de aulas e exames finais, a gente sempre arranjava um tempinho para encontrar em algum laboratório de informática e, juntas, checarmos as histórias que as pessoas tinham para contar. Sadie não participou muito, porque resolveu entrar em foco absoluto nos estudos, mas eu sempre a atualizava quando dava. O que impressionou foi a quantidade de homens que também passaram por experiências traumáticas com outros homens, dos mais diversos grupos. Até de professores. Foi o que nos levou a divulgar o blog, com cuidado, pelos dormitórios masculinos também.
Apesar de cada relato ser único, depois de várias conversas e encontros, começamos a perceber um padrão: todos aqueles abusadores usavam sua reputação para controlar e manipular os outros. E eles eram caras comuns, presentes em todas as salas de aula, em todas as festas e barzinhos que frequentávamos. Não pareciam os monstros malignos de quem sempre ouvíamos falar. Eram pessoas também, nada mais – por isso tão difíceis de desconfiar.
Seria mais fácil se tudo fosse claro como cristal.
Mas as coisas não eram assim. E também não precisavam ser transformadas num pânico moral gigante e desnecessário.
As palavras do e-mail de Carly Sims ficariam um bom tempo pregadas em minha cabeça: “Namorar uma pessoa que me machucou tanto parecia difícil, mas era muito fácil, na verdade. Quando você está vivendo um abuso, o inferno parece normal.” Dava vontade de imprimir aquilo numa folha A4 e colar no meu mural, para nunca mais esquecer.
Eu e Lori estávamos confiantes com aquele movimento; Jenna acreditava que nossa missão era salvar todos aqueles caras de si mesmos com paz e amor; Sadie achava que o mundo deveria explodir e começar tudo de novo. Aquela era sua nova postura para tudo, e eu estava amando sua versão hardcore, embora sentisse o contrário.
Era engraçado. Achei que eu fosse passar o resto da minha vida odiando o ser humano também, mas com as ideias de Lori, comecei a perceber o poder que uma força organizada tinha. Claro que não alcançaríamos mudanças sistêmicas com aquilo, mas se continuássemos com as estratégias certas, poderíamos gerar uma pressão significativa sobre a Oyster – ela, sim, tinha o poder de implementar mudanças. E se nada desse certo, ainda podíamos jogar a merda no ventilador, ou seja, chamar a atenção da mídia.
E aquela era minha parte favorita.
Com o fim do semestre batendo à porta, a universidade ficava cada dia mais vazia. Mas no caso dos veteranos como nós, o clima era de mudança – juntar os últimos pertences, empacotar um monte de caixas, resolver as pendências finais. Sadie já havia entrado nessa loucura e nunca mais parou quieta no nosso quarto, que estava uma bagunça completa. Por outro lado, minha mania de postergar tudo – além da negação – me impedia de sentir tamanha ansiedade.
— Pois é, loirinho — ela conversava com , parada bem na soleira da minha porta. Estava segurando uma tesoura imensa com uma mão e equilibrando dois rolos de fita crepe na outra. — Eu já entendi por que você gosta tanto dessa daí, vocês são parecidos nessa calma diante do caos. Estão aí, relaxando, rindo como se amanhã fosse só mais um dia. Nem parece que vamos nos formar SEMANA QUE VEM.
Sadie não era de gritar, mas não poupava ninguém quando estava sob muito estresse. Ela já tinha recusado nossa ajuda para embalar mais coisas em plástico-bolha, então só ficamos deitados na minha cama de barriga para cima, o que não amenizou em nada.
— Nem parece que alunos estranhos estarão neste exato quarto em poucos meses, que foi nosso por quatro anos, . Quatro anos. Acabou e você foi capaz de arrumar só uma mala. Como consegue?!
— É só viver o momento, Sadie — tentei propagar meu mantra. — Você que tá tratando como se já tivesse acabado. A realidade é que ainda não acabou. Repete comigo — fechei os olhos e juntei os dedos como se estivesse meditando, só para irritá-la —, “o segredo é viver o momento”.
— Vai cagar. Não significa que eu tô negligenciando a realidade… É você quem tá fazendo isso — ela jogou sua palavra final e ergueu o dedo para mim, então se virou para sair. Porém, um segundo depois, voltou e apontou o dedo para : — E você também. Arrastando a menina pra sua filosofia deboísta sem pensar em consequência nenhuma. Abre o olho, .
— E o Alex, hein? — provoquei-a de volta. — Já sabe que você tá caçando um intercâmbio remunerado sei lá onde no leste europeu?
Lógico que ele sabe. Que pergunta. Agora se me derem licença, meus queridos, tenho mais o que fazer.
Quando Sadie enfim saiu do quarto, me levantei e fechei a porta.
— Alerta drama… Paciência tem limite — voltei para a cama num pulo, bufando. O colchão até deu uma balançada. — Tá rindo de quê?
— Nada.
tinha um daqueles sorrisinhos infernais, pronto para soltar a maior gargalhada da história. E continuava o exibindo no rosto sem fazer a menor questão de explicar.
— Você tá escondendo algo de mim? O que tem aí?
Um de seus braços estava estranhamente fixo atrás de suas costas. Quando o puxei à força, desembestou a rir e desistiu de lutar.
— EU NÃO ACREDITO! — dei um berro indignado. Ele tinha pegado uma foto minha de aparelho. — Isso tava bem escondido na caixa, seu idiota. Eu tava falando sério quando disse que não era pra você ver essa foto!
Ele não respondeu nada, só continuou rindo. Entrou numa crise, na verdade; se encolheu pro outro lado da cama e segurou a barriga, rindo tanto até o som sumir e o rosto ficar vermelho.
Eu achava insuportável olhar para aquela foto, mas isso não importava agora. Olhei para ela e soltei uma risada sem querer.
— Além de tudo eu tinha diastema.
— Quê? — ele parou para respirar. — Quê isso?
— Meus dentes da frente tinham uns cinquenta quilômetros de distância um do outro.
gargalhou alto e se encolheu no colchão de novo.
— Você é um idiota — me levantei para guardar a maldita foto na caixa. — Aposto que teria feito bullying comigo.
— Provavelmente…
— E ainda confirma.
Ele riu mais, e dessa vez eu também.
Momentos antes de Sadie ter puxado assunto com a gente, tinha pedido para ver alguma foto dos meus cachorros, então eu tinha tirado uma caixa de sapato do fundo do meu armário, onde eu guardava troços mais pessoais. Ele também viu fotos da minha infância, dos meus irmãos, e me achou parecida com Lizzie. Contei toda a fofoca do recente casamento dela e que eu odiava o cara, um mão de vaca maluco por dinheiro e metido a galã.
— Ah, não acho. Lizzie parece mais com minha mãe, o Jackel com meu pai, e eu uma mistura doida. Enfim, ela é legal, só é chata quando quer bancar o papel da minha mãe e mandar em mim, o que ela adora, na verdade. Então nunca fomos de bater um papo profundo. Eu e meu irmão somos mais próximos nesse sentido.
— Deve ser da hora ter um irmão pra trocar uma ideia assim.
— É muito bom. Sua irmã é bem mais nova, né? Deve ser estranho ter uma criança até hoje na família.
— Sim, mas… minha família é um negócio diferente. Cada um tá num canto e cada um se vira como pode. Ninguém é unido, todo mundo é mais independente. A gente se encontra no máximo no Natal, mas até que eu gosto disso. Acostumei. Por isso eu acho que mesmo se minha irmã fosse um pouco mais velha, eu duvido que ela dividiria a vida comigo em Boston anos atrás, estaria com minha mãe e o pai dela num bairro bem longe.
— Mas a sua mãe não frequenta a casa da sua avó?
— Até rola, mas é meio raro. Só em feriados, e os aniversários ela só vai no de parentes que suporta ou tem uma mínima consideração. Fazer sala social não é a praia dessa galera, não importa se somos ligados por uma árvore genealógica.
— Entendi… — respondi em meio a risinhos, um pouco surpresa.
Fiquei pensando se não era melhor ser assim também. Parecia uma ideia ótima não sofrer tanto com a distância da minha própria família, a qual eu era tão apegada ainda. Diferente de , acostumei com parentes muito unidos. Sem aquele peso, que era simplesmente manter a tradição de encontros para satisfazer nossos avós, talvez eu estivesse menos ansiosa com meu futuro hoje, com tanto medo de deixar meu passado e eles para trás. Viver com aquela nova perspectiva era tentador demais para minha sanidade.
Eu estava com as costas apoiadas na cabeceira da cama; estava mais deitado, abraçava um travesseiro enquanto apoiava a nuca em outro.
— Ei — o chamei, olhando para baixo —, falando nisso, você vai rever a Lassie nessas férias, n-
De repente, um lapso de consciência me fez lembrar que não se tratava mais de férias. Era algo permanente agora.
— Quer dizer… — tentei me corrigir. — Você vai revê-la agora, não é? Tipo…
Os trinta segundos que ele demorou para responder me causaram um mini-pânico, porque não tínhamos conversado sobre aquilo ainda. Adiei o máximo que consegui. Será que ele também tinha feito isso?
— Você quer dizer… — começou um pouco nervoso, mas eu não saberia dizer se era pelo mesmo motivo ou porque ficou realmente confuso. — Depois da formatura? — ele me olhou.
— Aham.
— Vou — seus olhos vagaram pelo teto. — Minha irmã vai passar as férias na casa da minha vó, então antes de qualquer coisa… vou pra lá. Um dia depois da formatura.
— Ah, é? Eu vou pra Livingston uns dias depois também.
— Vai? — ele subiu os olhos para mim de novo.
— Eu tô morrendo de saudade deles. Mas volto pra cá duas semanas depois… Uma amiga aqui da Oyster tá querendo dividir o aluguel de um apartamento comigo no Brooklyn, mas nem resolvi nada ainda. Mas deveria.
Ficamos em silêncio. Os dois vidrados na parede.
Aquele assunto todo tinha um gostinho amargo de incertezas, coisa que eu não queria lidar naquele momento. E, pelo visto, nem ele. O último semestre da faculdade tinha sido de longe o mais estressante, para todo mundo, então era normal evitar assuntos sérios. Quando a gente conseguia frear a rotina para se encontrar, era um alívio. Eu sentia minhas energias recarregadas quando ligava para ou o via em pequenas escapadas durante a semana. Tentava ao máximo não transformar nossos encontros em sessões de terapia, só porque com ele era mais fácil desabafar.
Algo me dizia que ele estava fazendo exatamente o mesmo.
Evitando.
Mas tudo bem, teríamos tempo para voltar àquilo. Não era como se ele fosse voltar a morar em Boston do nada, porque já teria mencionado. O mais provável, aliás, era que não fizesse a menor ideia do que faria; deixaria o acaso comandar agora. O vento levá-lo. E dessa vez aquilo me deixou secretamente irritada, porque parecia confortável demais poder subestimar o sistema daquele jeito.
Parei de pensar demais no instante em que esticou o braço e alcançou meu queixo, que ele puxou para baixo para que eu o olhasse. Ele sorria um pouco de lado e tinha as sobrancelhas no alto da testa, como quem tinha acabado de ter uma ideia.
— Quer ir pra Oakwood um dia desses? Pela última vez?
Meus olhos se arregalaram. Aquele gosto amargo voltou; a nostalgia, a tensão, mas também uma felicidade doce demais para ser ignorada. Tudo de uma vez.
— … Quero.


🙂🙃🙂


Eu e .
Chevy.
Meia-noite, muito calor.
A ponta apagada de um baseado estava jogada em algum dos compartimentos do painel e o rádio tocava uma música pop porque eu tinha escolhido a estação daquela vez. A caminhonete se encontrava parada numa estradinha de terra perto de Oakwood. O motor estava desligado, e lá fora os únicos sons que podiam ser ouvidos eram o dos grilos e da brisa que soprava entre as árvores.

🎵 Pra você ouvir de fundo:
Heartbreaker – Mariah Carey, Jay Z

Naquela parte da floresta de carvalhos, a única iluminação vinha dos faróis acesos do carro, que projetavam dois círculos de luz à nossa frente. Fora isso, breu total. Se Mariah Carey não estivesse cantando seus falsetes àquela hora, talvez eu me cagaria de medo. Ou também não estivesse distraída demais com embaixo de mim quase chegando a um orgasmo, enquanto eu me mexia por cima, mesmo com certa dificuldade, sentada de frente para ele.
Era pra gente ter ficado na traseira da caminhonete, onde estendemos um cobertor e começaram os primeiros amassos, mas uns morcegos voando baixo demais me apavoraram. Fomos para dentro da cabine e fechamos todas as janelas para fazer uma sauninha com o resto do beck antes de continuarmos. Ali ainda valia como local público, não é?
Eu já tinha entregado os pontos – seria uma missão muito difícil gozar numa posição tão desconfortável, mas o momento não deixava de ser extremamente excitante. , então, parecia maluco de tanto prazer. Nossas sensações ao toque estavam mais aguçadas que o normal, então sentir suas mãos me agarrando, seus beijos molhados pelo meu colo e seu quadril impulsionando contra o meu era o suficiente para me fazer sentir um prazer mais constante também. De repente, chegar ao ápice deixou de ser meu objetivo, porque parecia que eu estava experimentando um clímax eterno.
Não pegando uma cãibra na panturrilha já estava ótimo.
Quando prendeu um gemido forte na garganta, soube que tinha terminado. Saí de cima dele lentamente e me joguei ao seu lado, notando só depois que fiquei no lugar do motorista, de frente pro volante. estava no meio do banco, completamente atordoado, como quem tinha acabado de aterrissar de um estado mental imerso no paraíso. Ele ainda tinha a respiração descompassada e a cabeça jogada para trás quando tirou a camisinha, subiu a calça e fechou o zíper e o botão, vagaroso, aplicando sua típica lei do esforço mínimo.
Eu já tinha arrumado minha calcinha e descido minha saia da cintura, que decidi usar estrategicamente naquela noite. Estava doida para abrir os vidros, todos embaçados pela fumaça e o ar quente e úmido, mas meu medinho de bichos continuava falando mais alto – não dava para ignorar que estávamos no meio de uma reserva florestal deserta, àquela hora da noite.
... Abre as janelas…
— Nem pensar.
riu com uma voz arrastada, depois jogou o cabelo para trás, tirando alguns fios grudados em sua testa. Ainda estava tentando se recompor.
— E aí? — ele olhou furtivo para mim enquanto ajeitava a postura. — Gostou de ter riscado um item da sua lista?
— Sim. Dois deles, na verdade. Transar chapada eu também nunca tinha feito.
Um sorrisinho safado se formou em seus lábios entreabertos.
— Você pode achar que eu tô exagerando, , mas puta merda… esse foi… um dos melhores orgasmos que eu já tive na vida.
— Acho que percebi.
Ele riu, e acabei rindo também. Estava com a maior cara de bobo, me engolindo com aqueles olhos baixos e vermelhos.
— Vem cá, vem. Deixa eu te dar um também.
— Aqui não dá,
— Mas eu tô com saudade pra caralho de chupar você. Não tem mais nada no mundo que eu queira fazer agora.
Era meio doido como aquele tipo de diálogo entre nós já havia se tornado frequente. Uma doideira deliciosa, mas eu não ia confessar isso agora.
— Tem dois dias que você fez isso. No meu quarto, inclusive, lembra?
— Exatamente.
Bufei, sentindo uma onda de calor queimar meu rosto. E o meio das minhas coxas também.
— Porra, você acha que eu tenho feito o quê nesses dois últimos dias? — ele insistiu. — Que fui pra aula e prestei atenção no que o professor tava falando? Ou pensei o tempo todo em você sentada na minha cara?

— Vai, dirige aí pro Belva Hall. Toma aqui a chave.
— Não, tá doido?! A Sadie tá lá.
— E daí,
— Você sabe como ela fica sabendo de tudo e me inferniza depois. E também sabe muito bem que não é fácil aguentar essa ladainha.
— É só chegar de fininho e não fazer barulho…

— Eu tampo sua boca.
Ele estava por um fio de convencer, o que era grave.
— Não, não dá — falei rápido antes que mudasse de ideia. — Eu queria, mas hoje não dá. Vamos, sei lá, comer um hambúrguer agora. Meu estômago tá roncando.
Em câmera lenta, ele bateu nos próprios joelhos e deixou a cabeça tombar para baixo. Em seguida, girou o pescoço para me olhar, um sorrisinho ainda cortando o rosto.
— Olha a puta oportunidade que você tá perdendo.
— Eu sei disso, não precisa me lembrar — bati os pulsos no volante e o agarrei com as mãos, segurando uma risada de ódio. — Você não tá morrendo de fome, caramba?
— Tô… — ele se afastou um pouco, escorregando para o outro lado do banco. Então, cruzou uma perna aberta na outra e tirou o isqueiro do bolso. — Sobrou alguma coisa daquele beck?
— … Acho que não.
— Abre aí o quebra-vento — ele se inclinou para abrir o do lado direito, e eu, o esquerdo. Eram umas janelinhas dobráveis que ajudavam na circulação de ar, já que não tinha um ar-condicionado para desembaçar os vidros.
Senti que estava muito longe do lado de lá. Eu o queria mais perto de novo, mas sabia que ele estava querendo se recuperar depois do meu fora.
Comecei a reconsiderar sua proposta.
Enquanto pensava em mil cenários, eu olhava para fora da janela à minha frente, pelo para-brisa, tentando enxergar alguma coisa. Lentamente, o vapor começou a desaparecer. As formas na floresta ainda eram muito escuras e indistintas, mas gradualmente foram se tornando mais nítidas. À medida que o vapor continuava a se dissipar, comecei a notar mais detalhes, tipo umas teias de aranha nas folhas de uma árvore ali perto, o formato dos troncos e…
De repente, um brilho mais fraco apareceu naquela escuridão. Ele se movia rapidamente, balançando de um lado para o outro, então me endireitei no banco e fiquei atenta ao que poderia ser. Senti um arrepio na espinha enquanto a luz se aproximava cada vez mais, fazendo com que a vegetação parecesse se mover em um ritmo estranho.
Não percebi se estava prestando atenção na mesma coisa que eu ou não – apenas fiquei estática, sem nem notar se já tinham passado cinco segundos ou dez minutos. A luz se movia tão rápido que, de vez em quando, se dividia em duas no ar. Pareciam olhos de um fantasma. Olhos grandes como pérolas brilhantes, completamente brancos, sem qualquer pigmentação ou manchas. Como se fossem pura luz.
Eu estava hipnotizada, sem saber o que fazer.
… — falei baixo, quase gaguejando.
— Hmm?
— Olha pra frente — agora eu estava sussurrando, meio desesperada. — Tá vendo isso?!
— Ah, porra…
Ele também viu. Tive a certeza que ele também viu.
— Puta que pariu — minha voz estava quase sumindo. — É a Mary Lou, .
— O quê?! — ele riu. — Você tá tão chapada assim?
— ANDA, CADÊ A CHAVE? A GENTE PRECISA FUGIR! AGORA!
, calma.
— É verdade, a idiota da Jenna me contou tudo — eu estava prestes a chorar, porque as luzes não paravam de se aproximar e eu não sabia mais distinguir o que era historinha pra boi dormir e o que era real. — É sério, por favor! Eu juro que a Jenna falou algo sobre os olhos da Mary Lou serem a única conexão que ela ainda tinha com o mundo dos vivos, SEI LÁ, SÓ PODE SER ELA!
explodiu em gargalhadas. A risada mais estrondosa que já ouvi ele dar até hoje.
— PORRA, EU TÔ FALANDO SÉRIO!
Do nada, em um único movimento, a luz apareceu diante da janela bem ao meu lado da caminhonete. Dei um grito desesperado, simplesmente não parava de rir. Era um guarda florestal que olhava diretamente para mim, mas eu mal podia ver seu rosto através da luz.
— Parabéns, . Você surtou por causa de uma lanterna. Vai, abre a janela pro senhor Wage.
Com a mão trêmula, girei a manivela para descer o vidro. O homem se abaixou para ficar da nossa altura e iluminou o interior da cabine.
— O que estão fazendo aí? — ele questionou, enfatizando cada palavra com puro desdém.
— E-E-E-Eu…
— A gente só tava dando uma volta, senhor Wage.
O velho grunhiu e parou de nos cegar com sua lanterna. Ele nos encarava com hostilidade, como se estivesse prestes a nos expulsar da floresta a qualquer momento. Tinha linhas profundas e vincos ao redor dos olhos, que se estreitaram em uma fúria contida.
— Já estamos indo — avisou enquanto enfiava a chave na ignição para mim. — Vai, vai rápido — sussurrou —, não quero nem fodendo dar o resto da minha erva pra ele.
Puxei as alavancas do câmbio e do freio de mão, em seguida virei a chave. O motor roncou alto e espalhou sua vibração pela caminhonete inteira, fazendo o volante tremer em minhas mãos. Ele era pesado, difícil de girar, mas com um esforço considerável, consegui dar meia-volta e ir embora dali o mais rápido possível, deixando o guardinha maconheiro para trás.
Trepidando pela estrada e me concentrando muito para manter aquela lataria na pista, finalmente cheguei até o asfalto liso, onde a suspensão do carro aguentava melhor. Não demorou até que minha ficha caísse por completo e eu começasse a rir também. Esperava nunca mais encontrar aquele velho chato das trevas de Oakwood.
Minutos depois, num bairro próximo aos alojamentos da Oyster, resolvemos estacionar numa lanchonete que ficava aberta vinte e quatro horas. Era para lá que os estudantes costumavam ir depois de encher a cara de madrugada; tinha um sanduíche gostoso e um precinho acessível.
e eu nos acomodamos em uma das mesas com bancos de vinil vermelho, uma das poucas livres. Estávamos cansados, aéreos, e eu pelo menos ainda me sentia anestesiada e risonha. Um garçom vestindo um avental listrado aproximou-se e nos entregou aqueles cardápios antigos, mas eu já sabia muito bem o que pedir.
Quando meu duplo X-burguer com batatas e refrigerante chegaram, até dei um suspiro de satisfação. Mal abri o ketchup e já estava devorando o lanche dele, ignorando tudo ao seu redor.
A hora da larica era sagrada. Enquanto eu aproveitava a suculência da carne e a crocância das batatas, ele afundava os dentes em seu hambúrguer como se cada mordida fosse uma grande conquista. Enquanto comia, o molho escorria por seus dedos, o queijo derretido pingava em sua bandeja.
Quanta endorfina liberada numa noite só para nós dois.
No final, estávamos catando as últimas batatas durante mais um transe profundo. estava relaxado, os braços cruzados sobre a mesa em uma posição descontraída. Depois de ser tão observada por seus olhos hipnotizados, imitei sua pose e o encarei com curiosidade.
— Que foi?
Ele acordou um pouco e sorriu suavemente, mas apreensivo.
— Nada, tô… pensando.
— Em quê?
— Numa… bola de neve. Uma que deixei acontecer.
Esperei que ele elaborasse aquela resposta mais vaga que tudo, mas não aconteceu. baixou o olhar para a mesa e pegou alguns guardanapos para se limpar.
— Vai bancar o misterioso agora? — brinquei, arrancando um risinho dele.
— Ah… Tô só pensando numa caralhada de coisas. Foi mal, sei que combinamos de manter o clima leve nesses últimos dias. Deixa pra lá, eu não… queria estragar o momento.
— Tudo bem, me conta outro dia. Acha que eu não sei que essa paz que a gente tenta construir não é imune às ansiedades da vida adulta?
De repente, ele levantou um pouco mais a cabeça e seus olhos encontraram os meus de novo. Eu não sabia o que era, mas ele parecia se sentir melhor com o que eu falei, mesmo que por um breve momento. Seu sorriso era suave e aberto. Doce. Travesso, mas sempre caloroso, que apertava seus olhos até aparecer umas ruguinhas adoráveis nos cantos.
Algo sobre aquele limbo que estávamos vivendo em conjunto me deixava ansiosa também, claro. Era como se os últimos grãos de areia estivessem fluindo pelo gargalo de uma ampulheta. Por outro lado, não deixava de ser empolgante. Era a despedida de uma fase, mas também o início de outra, onde eu viveria uma independência maior em todos os sentidos – principalmente financeira, se eu tivesse a sorte de ser contratada num bom emprego.
Fora que “viver o momento” parecia estúpido, mas estava de fato funcionando comigo.
Se sempre estivesse ali para me dar aquele sorriso cúmplice e um olhar confiante, eu tinha certeza que ficaria bem.


🙂🙃🙂


Dois dias antes da cerimônia de formatura, resolvemos passar na locadora para acalmar os nervos e nos divertir um pouco. Era uma quinta-feira à tarde como qualquer outra, mas ambos decidimos que matar o último dia de aula do dia seguinte e curtir o momento como se fosse um sábado era uma ideia muito melhor. Por quê? Bom, porque eu queria ir ao cinema, mas estava com preguiça de ir até Manhattan no meio da semana, então optamos por algo mais prático.
. Eu realmente não quero ver um filme sobre OVNIs e guerras galáticas entre palhaços.
— E eu realmente não tô a fim de ver um filme sobre policiais e inspetores e altas aventuras, .
— Você sabe o que eu acabei de ouvir agora? — ele arranhou a garganta, e, por experiência própria, eu já sabia o que vinha a seguir. Uma imitação barata e irritante da minha voz. — “Eu realmente não tô a fim de ver a comédia mais genial de todos os tempos, ”.
— Eu não sei como alguém intitula Um Tira da Pesada como uma comédia genial.
— Ah, porque Palhaços Assassinos do Espaço Sideral é uma comédia tão melhor…
— Melhor, não. Soberana.
— Porra, preciso mesmo rever meus conceitos sobre você.
— Confia no que eu tô dizendo, caramba. Vamos alugar esse e pronto — peguei o VHS da prateleira e o abracei contra o peito, como se fosse roubá-lo de mim a qualquer momento. — Eu pago.
Ele só revirou os olhos, mas com um sorriso maroto cravado no cantinho dos lábios, daqueles que nunca passavam despercebidos por mim. Daqueles que fui capaz de notar desde o dia que nos conhecemos, porque ele sempre achava minhas reações a coisa mais cômica do mundo, o que às vezes me irritava profundamente. Mas eu ficava nesse embate infinito entre querer acertar um tapa em sua cara ou lhe arrancar um beijo.
— O que foi, hein? — perguntei, como se nada daquilo estivesse passando por minha cabeça.
— Nada. Acho bonitinho você com 100% de certeza que eu vou concordar a assistir essa loucura só por me fazer economizar três contos.
— Tá bom, então vou te convencer por outra coisa — tombei a cabeça para o lado, percebendo que de repente minha proposta o deixou de ouvidos bem atentos. — Interesseiro.
Ele olhou para os lados e aproximou sutilmente o rosto do meu.
— Olha, se o que você tá prestes a dizer não envolve nós dois tirando a roupa, eu nem quero saber. Mas sou todo ouvidos.
— Saudades quando você só queria um beijo meu de volta. Agora sou obrigada a lidar com chantagens sexuais o tempo inteiro.
Só ouvi sua gargalhada alta ecoar pelo corredor da locadora.
— É sério — comecei a rir também. — Para de rir e me escuta.
— Tô te ouvindo, tô te ouvindo — seus olhos recaíram sobre os meus. Eu estava achando super engraçado vê-lo tão curioso. — Só tô duvidando se existe uma sugestão melhor que a minha.
— Não sei se melhor, mas… talvez tão boa quanto.
— O quê?
— A gente pode assistir chapados.
A cara que ele fez foi inigualável. As duas sobrancelhas se ergueram e o sorriso não parou de aumentar, ainda que discreto.
… — ele soltou um longo suspiro. — Eu tô prestes a me ajoelhar de novo pra você no meio da Blockbuster e te pedir em casamento.
— NÃO! — agarrei seu pulso quando vi que ele estava quase se ajoelhando de verdade. Meu berro chamou a atenção de algumas pessoas por perto, o que me fez morrer de vergonha e praguejar inúmeros palavrões diferentes. Às vezes ia longe demais com uma piada, principalmente em locais públicos, tudo para ver até onde meu desespero podia chegar. — Só por causa disso, agora você vai desbancar os três dólares pra pagar esse filme. E rebobinar a fita antes de devolver.
Ele só continuou se divertindo com o fato de que eu também continuava a levar aquilo a sério.
A locadora tinha um cheiro bem característico do plástico que envolvia as capas de todas aquelas fitas. Adorava chegar em casa com a sacola cheia de filmes, com a certeza que nenhuma noite seria entediante com eles. Filmes que perdi a chance de assistir quando estavam em cartaz no cinema, clássicos antigos ou simplesmente aqueles que eu queria rever pela milésima vez.
— Vamos alugar mais algum — ele sugeriu.
— Sem ser Um Tira da Pesada, por favor. Falando sério, eu já sei esse filme de cor. Meu pai já assistiu umas duzentas vezes, e ele sempre ri das mesmas piadas.
— Ok, então. Você venceu. Vamos alugar Um Tira da Pesada 2.
— Ah, não, , puta merda…
Ele começou a rir e me arrastou para o balcão – uma mão segurando a minha, e a outra, o VHS que tinha acabado de puxar da prateleira. Depois de pagar tudo, subimos na Chevy e voltamos para a república.
PJ e Alex estavam em casa, os dois na mesa da cozinha lanchando baldes de frango frito. Cada um devorava uma sobrecoxa com as mãos meladas de gordura, parecendo duas criaturas das cavernas. Eles se empolgaram quando nos viram chegar com sacolas da Blockbuster e algumas balas e chocolates que compramos numa loja de conveniência.
— Opa! Vamos fazer uma sessão de filmes hoje? — Alex perguntou com a boca cheia, todo feliz. PJ deu um chute em sua perna por baixo da mesa, o que o fez resmungar na mesma hora. nem precisou dizer nada. Quando o encarou com uma sobrancelha arqueada, Alex entendeu. — Ok, tudo bem, vamos te dar privacidade… — ele limpou a boca com um guardanapo. — , só me descola um Twix aí, por favor?
— Claro — arremessei um pacote a ele, que o pegou no ar.
— E eu quero um Skittles — PJ também pediu. — Sei que o tem um estoque de Skittles no porta-luvas.
— Não tão grande quanto o estoque de jujubas — fiz a necessária observação, erguendo o olhar para o culpado ao meu lado. — Pude comprovar isso hoje.
— Dá pra pararem de julgar o meu kit de sobrevivência? — ele protestou, tirando as chaves do bolso e indo até eles. — PJ, já bolou algum daquela maconha da Tess?
— Já… Inclusive, tenho dois prontos na minha gaveta, podem pegar. Mas espera aí, … você vai repor pra mim depois.
— Beleza. E como tá a erva?
— Putz… Perfeita, então não abusem. , não use o como referência, ok? Vai no seu ritmo.
— Pode deixar. Eu sei meus limites.
Então, comecei a rir da cara de ofendido do . Ele subiu as escadas para buscar os baseados no quarto do amigo e eu fui preparar os filmes no aparelho embaixo da televisão na sala anexa à cozinha.
— Quais vocês alugaram? — Alex quis saber.
— Esse e… — mostrei a capa do meu escolhido, depois fiz uma careta ao pegar o outro. — … Um Tira da Pesada 2.
— Nossa! Bora ver, PJ? Eu só vi o primeiro.
— Bora. Eddie Murphy? Tô dentro.
— Jura? Sério, vocês estão me fazendo um grande favor. Toma — levei a fita até eles e deixei-a em cima da mesa. — Podem sumir com isso.
— Ótimo! — PJ pegou o filme enquanto Alex juntava os pratos sujos e os levava à pia. — Vamos assistir hoje mesmo, meu quarto tem uma TVzinha que quebra o galho. Bora fumar um também e assistir lá em cima, Alex.
— Tô indo.
Animados, os dois se apressaram para subir. No meio da escada, esbarraram em descendo com os baseados e um isqueiro na mão, sem entender nada.
— Como você conseguiu expulsar eles tão rápido? — ele perguntou, atônito, quando terminou de descer o último degrau.
— Tive que sacrificar seu filme — dei de ombros, com uma falsa pena no meu olhar. — Desculpa…
— Essa culpa que você tá sentindo é tão comovente — se virou de costas para abrir uma gaveta numa das bancadas da cozinha. Então, girou só o pescoço para me olhar por cima de seu ombro, ainda com aquele ar irônico. — Você tá com sorte hoje. Não vou render essa discussão.
— Por quê? — sorri um pouquinho. Era difícil resistir àqueles olhares que ele me dava… quase o tempo todo.
— Prefiro perder meu tempo com você hoje de outro jeito — ele tirou um cinzeiro da gaveta e se virou de novo, caminhando até mim com a felicidade de quem estava prestes a ficar chapado pela primeira vez na vida.
Até parece.
Então, nos sentamos no sofá. Lado a lado. Eu, meio encolhida; ele, tipicamente espaçoso, com os joelhos bem afastados. Mesmo assim, sem contato. Civilizados demais.
Ainda.
— Você conferiu se o PJ fechou a porta do quarto dele? — perguntei, hesitante.
— Não sei, não ouvi — ele deu de ombros com um dos cigarros presos nos lábios enquanto o acendia com o isqueiro. O outro, colocou atrás da orelha. Então apenas continuou, soltando a fumaça para cima junto com a provocação tão habitual em sair de sua boca: — Por quê? Do que você precisa se assegurar, ? Que obscenidade planeja fazer comigo?
Revirei os olhos. Ele sorriu e tragou mais; logo depois me estendeu o beck e, quando peguei, só o vi puxar uma almofada e colocá-la em meu colo. Em seguida, deitou a cabeça nela e esticou as pernas até os braços do sofá, de barriga para cima. Me olhando.
Enquanto eu dava umas quatro tragadas seguidas em menos de um minuto, pensei excepcionalmente sobre a minha papada.
— Tô linda desse ângulo, não tô? — o olhei rápido de soslaio. prendia um risinho ao mesmo tempo que lutava para concordar com a cabeça. — Vai, pode falar, tô parecendo um ovo.
Ele soltou a gargalhada que queria e, enquanto isso, aproveitou minha distração para roubar o beck de volta para seus dedos.
— Ainda bem que você já aceita e eu não preciso consolar sua cara de ovo.
— Vai se foder — também ri.
— Quantos queixos você tem aí? Um, dois, três, quatro…
— A gente vai pôr o filme ou não?!
Depois de um resmungo, ele ergueu o pescoço para que eu pudesse levantar e ir até o videocassete. Eu podia apostar que quem levantaria se fôssemos assistir Um Tira da Pesada. Dois.
— Que bom que você já aceitou seu destino, preguiçoso — comentei, e ele só resmungou mais. Afundou a cabeça na almofada e ficou fumando tranquilamente, equilibrando o cinzeiro no peito. No momento seguinte, dei o play pelo controle remoto e fui me sentar no sofá de novo. — Vai monopolizar o baseado agora?
— Toma aí, apressadinha.
A luz da tarde entrava pela janela, iluminando suavemente a sala enquanto dividíamos aquele beck precioso e nos envolvíamos na trama bizarra do filme. Os personagens basicamente precisavam lutar contra invasores alienígenas com a aparência de palhaços assassinos, só que com efeitos especiais ridículos.
Meia hora se passou e o sol já desaparecia lentamente no horizonte enquanto o filme continuava. Eu ficava observando de soslaio para ver como reagiria às minhas cenas preferidas, mas foi uma em particular que chamou sua atenção – quando um dos personagens foi preso e morto num casulo de algodão-doce por um dos palhaços alienígenas. Ele me olhou tão chocado que eu comecei a rir, mais alto do que deveria.
Precisamos pausar.
— Cara… Essa é definitivamente uma das coisas mais loucas que eu já vi num filme de terror.
— Pode me dar razão agora?
— Tá maluca? Eu tô traumatizado.
— Tá nada, admite que é a cena mais memorável que você já viu.
— Nada é mais memorável do que Axel Foley em Um Tira da Pesada quando-
— Ah, não. Não começa.
— Tá achando ruim? Eu ainda vou fazer você assistir a filmografia inteira do Eddie Murphy.
Enquanto a gente ria um da cara do outro, retomamos o filme. se levantou e se sentou ao meu lado, o ombro grudado no meu. Já devia ter se passado mais de uma hora; estávamos tão imersos naquele universo surreal que ninguém se preocupou quando o telefone começou a tocar. O final do filme era mais importante.
Mas tocou tanto que me irritou.
— Ei, você vai atender ou não?
De repente, deu um berro para chamar PJ, pedindo para ele atender lá em cima. Os dois ficaram numa disputa de berros preguiçosos que acabou de vez com o silêncio da casa – até que PJ cedeu. Minutos depois, ele desceu com o telefone sem fio na mão enquanto reclamava.
— Quem diria… A ligação era pra você — ele parou na cozinha, onde acendeu a luz e se apoiou na bancada enquanto pegava uma maçã da fruteira. — É o sr. Baxter, quer saber se deu tudo certo com as passagens pra Seattle.
O… quê…? Seattle?
… Em Washington?
— Que dia mesmo você vai, ? Semana que vem? — PJ deu a primeira mordida em sua maçã e voltou a falar de boca cheia. — E aí, , como você tá? Já preparou os lenços?
Eu não estava entendendo nada, e se estivesse, aquilo parecia uma brincadeira de muito mal gosto. Fiquei olhando para ele, esperando uma mínima explicação, mas PJ só continuou mastigando a droga da fruta. Não consegui assimilar nenhuma daquelas informações que ele tinha jogado, e isso me deixou nada menos do que perturbada.
De repente, com aquele silêncio todo, quem não estava entendendo nada era PJ.
— Espera aí… — ele largou a maçã na bancada. Então, fez o que eu não estava com a menor coragem de fazer: olhou para . Eu sabia que a resposta que eu buscava estaria em seu rosto. — Você… não contou pra ela?
Me levantei. Me levantei do sofá e olhei para ele, não ligando mais se me machucasse.
— Você… — quando vi que seus olhos ainda se mantinham fixos no chão, não consegui terminar minha pergunta. Minha respiração ficou mais pesada. — Você tá indo embora pra Seattle, ?
Até parece que eu precisava ouvir que sim, se era só ligar os pontos. Estava tão fácil. O que eu queria ouvir? Que ele não aceitaria a sei lá qual proposta de emprego que deve ter recebido do professor mais prestigiado em sua área lá do outro lado do país? E por que decidiu não me contar?!
A voz de PJ rasgou o silêncio como um vaso quebrando no chão:
— Erm… Eu vou… — ele foi dando longos passos para trás até alcançar o primeiro degrau da escada. — Eu vou falar pro Baxter que… você liga depois… Ok?
Ele nem esperou por uma resposta, só se virou e subiu correndo. Aproveitei para voltar imediatamente meu olhar para baixo, onde estava sentado com os joelhos um pouco mais inquietos; os olhos cravados no chão e os ombros retraídos.
Seu peito se expandia enquanto ele tomava um fôlego profundo. Parecia estar lutando ao máximo para conter suas emoções, e eu, a um passo de estourar as minhas.
Quando finalmente ergueu o olhar para mim, primeiro devagar e depois de uma só vez, não precisei de mais nada. Estava tudo neles: uma mistura de culpa, angústia e desespero, e olhos vermelhos que não eram da maconha – pareciam prestes a se romper. Mas eu não me importei.

Fui embora quando os créditos do filme já estavam rolando na tela preta da TV.


Capítulo 29 – Despedidas

Quando cheguei no meu dormitório, meus pés já estavam cheios de bolhas. Isso que dava andar sem dinheiro para um mísero táxi, porque precisei correr umas oito quadras para sumir do bairro das repúblicas. Tamancos não foram feitos para fugir como se o mundo estivesse acabando.
No meu caso, estava.
Sadie viu meus olhos inchados e já abriu a boca para metralhar perguntas, mas usei minhas últimas forças para me trancar no quarto e ligar o som bem alto. O rádio já tocava alguma música animada e totalmente fora de contexto – eu não estava nem aí, contanto que me isolasse de tudo, principalmente do barulho da minha própria cabeça.
Eu mesma estava cheia de perguntas, como ia respondê-las para outra pessoa? Não queria nem procurar por respostas agora, se no minuto que saí por aquela porta ninguém veio atrás de mim.
A verdade é que eu estava em choque.
Em completo choque.
E precisava de um tempo para processar tudo, sozinha, para sentir toda a raiva que estava transbordando em mim. Uma raiva tão grande, tão imponente, presa numa jaula como um leão feroz, impossível de reprimir – só foi liberada quando peguei um dos meus travesseiros e dei um grito sufocado contra ele, por pelo menos um minuto inteiro. Ela estava me dominando em tudo, fazendo meu corpo tremer e meu raciocínio dar voltas e mais voltas sem chegar à conclusão alguma. Eu estava fazendo força para não me deixar levar pelo desespero.
Só então entendi que não era só raiva. Era mágoa também. Uma decepção horrível, tão profunda e desconhecida que eu não fazia a menor ideia de como aliviar.
Deixei o rádio num volume baixo e as músicas de diferentes gêneros se misturarem numa só. O tempo não estava mais passando de forma linear. Fiquei olhando para um ponto fixo aleatório, paralisada, sem saber o que pensar ou fazer. Era como se meu cérebro estivesse envolvido em uma nuvem de fumaça espessa, mas estava bom assim. Aquele vazio era mais confortável do que chorar mais.
Dormi quando o cansaço me venceu, mas, no dia seguinte, a primeira coisa que fiz foi ligar para Jenna.
Ele o QUÊ?! — sua voz estava arrastada pelo sono. Eu tinha acordado mais cedo que o horário da palestra de encerramento do semestre. O sol ainda raiava, naqueles minutos de transição entre o escuro e o claro. — Seattle, o quê? Ele pirou a cabeça?!
— Jenna, você tá indo pra São Francisco... Qual a grande diferença...
Meus olhos arderam e eu me arrependi de ter sequer me levantado da cama. Parecia que uma faixa de compressão estava apertando minha cabeça, pressionando sem dó contra as paredes do meu crânio.
A diferença, , é que todo mundo que me conhece sempre soube que meu destino de ir embora pra Califórnia era certo. Que porra fez o esconder essa certeza de você?
— Espera aí, você sabia também?
Eu tava sabendo que ele ia trabalhar pra Microsoft pela indicação de um professor sei lá das quantas, não que seria em Seattle.
— Caramba, Jen... Nem disso eu tava sabendo — tive que me segurar para não dar outro berro no travesseiro. — Meu Deus... Por quê? Por quê?!
A gente jurou que você sabia, porque disse que ele mesmo te contaria. Não queria que você soubesse por outra pessoa senão ele.
— E quando ele pretendia me contar? Na porra do aeroporto?
Olha...Você tem duas opções. Ou eu vou bater na porta daquela república agora mesmo e encurralar esse idiota pra você, ou... Hmmm... Você tá a fim de falar com ele hoje? Tipo, agora?
— Não!
Então vai ser a primeira opção.
— Não, Jenna... Eu preciso respirar. Espera.
Respirar? Mais do que você já teve que respirar essa noite? O mínimo que ele deve a você é uma explicação! Tipo, agora!
Não respondi mais nada. Tentei segurar o máximo que pude, mas as lágrimas já estavam lutando para escapar.
— Eu só... — prendi o resto da minha fala na garganta, e ela foi sumindo no ar.
Fala. Acesse a sabedoria do seu coração agora, .
— ... Não sei se consigo.
Consegue, sim. A ametista que eu te dei vai te ajudar. Vai, fala o que você tá sentindo, depois vamos pensar juntas numa solução.
Ela sabia mesmo como arrancar de mim aquilo que estava à flor da pele, mas com raízes tão profundas, de forma quase indolor. De repente, senti que era seguro jogar as verdades, não sem o choro molhando meu rosto inteiro.
— Eu só queria saber por que ele não me contou, Jenna... Não era como se eu tivesse chegado depois dessa oferta... Caramba, eu acompanhei cada passo. Por que fui deixada de lado agora? — minha voz ficava cada vez mais trêmula, tamanho o desespero que ia me consumindo aos poucos, mas que decidi conter. Precisava racionalizar as coisas. — Por que ele deixou tudo isso acontecer?! E por que... por que ele me deixou me apaixonar...? Por que fazer isso se não poderíamos ficar juntos? O que foi isso pra ele...? Eu fui só... um escape?
Jen me ouviu com calma e me deu o espaço que eu precisava. E depois de ter me xingado por querer esperar um pouco, finalmente concordou comigo e fez uma contagem para que eu respirasse fundo pelo menos umas três vezes.
Mas não adiantaria. Eu ainda estava meio entorpecida pela mágoa.
Faz o seguinte. Eu vou pra palestra, pego nossos convites, becas, capelos e tudo mais, depois passo aí pra te entregar. Vou passar o dia com você, tudo bem?
— Tudo bem.
Eu sabia que, concordando, Lori também viria junto. As duas sempre andavam coladinhas agora, não importava o local. Vão ter uma vida de casadas quando morarem juntas em São Francisco.


🙂🙃🙂


Parada em frente ao espelho, eu esperava Jenna fazer alguns ajustes na minha beca – ela prendia pontas soltas da barra do tecido com alfinetes para costurar depois. Lori estava deitada em minha cama, de onde ficou quicando uma bola de softbol no teto. Estávamos discutindo sobre minha situação com , e não demorou muito para que eu concordasse em ouvi-lo primeiro.
Era injusto ele ter tido todo o tempo do mundo para tomar decisões sozinho, e agora eu estava aqui, numa corrida contra o relógio para desarmar uma bomba que eu não ativei. Estava com vontade de gritar com ele, mandá-lo para o quinto círculo do inferno, mas sem olhá-lo nos olhos, porque eu também não tinha motivos para esconder... estava morrendo de medo. Apavorada de saber que todas as minhas perguntas tivessem uma resposta muito clara em seu olhar; que eu não tivesse passado de uma fantasia para ele viver antes de dar o fora. E talvez fosse só minha ansiedade falando, mas estava difícil pra burro de distinguir.
— Sinceramente, eu duvido que ele vai ter culhão de ir atrás de você hoje. Será que ele tem noção dessa urgência? — concentrada, Jenna falava com um punhado de alfinetes equilibrados nos lábios. — não é muito de encarar as coisas... Ele é daqueles que precisam refletir sobre tudo, cada detalhe, e isso pode durar dias, meses.
— AI!
Já era a segunda vez que eu dava um berro de dor porque ela espetava minhas canelas sem querer.
— E não é como se ele tivesse dias pra resolver isso... — Lori alertou.
— Eu tô dizendo, ele é um mago da enrolação. E tá achando que pode enrolar a minha ? Ah, não vai, não.
— AAAI! — outro espeto. — Dá pra parar de descontar o ódio em mim?!
— Olha, , ignora a Jen, ok? Tá óbvio que ele vai atrás de você. Fala sério, até os cachorros do campus sabiam que vocês estavam apaixonados.
Hmpf — Jenna grunhiu sem paciência. Ela estava com vontade de estrangular . — Eu não admito isso. A gente perguntava, “e aí, já falou com a ?”, e ele sempre falava, “ainda não, vou falar amanhã”. Ah, cara, eu não admito que ele procrastinou desse jeito. Como ele deixou chegar nesse ponto? Porra, isso é um negócio sério. Fala sério, Lori Lynn, você acha que a cabeça dele tá tão ruim assim?
— Calma, calma... Talvez ele estivesse morrendo de medo também. É complicado.
Eu era só uma ouvinte no debate, meio distraída e irritada. Estava tentando não sentir as coisas demais para evitar um estresse maior. Até que, por incrível que parecesse, Sadie bateu na porta.
— Entra!
Ela girou a maçaneta e deu dois passos adentro.
— Erm...
— Fala logo — pedi.
— O loirinho tá na porta. Deixo entrar?
O quê?!
Um silêncio absoluto tomou conta do quarto. Preencheu cada canto enquanto acontecia um terremoto dentro da minha cabeça. Rompendo a tensão, Lori estalou dois dedos e os apontou para Jenna:
— Eu falei com você, não falei? Ele viria atrás.
— Pois demorou pra aparecer. Eu acho que a deveria ir lá e bater a porta na cara dele.
, faz o que você tem que fazer. Não precisa explicar pra gente, só vai lá e faz.
Continuei aérea, mas hesitante, tentando não pensar demais e apenas seguir mais um conselho de Lori pra minha vida. Enquanto elas ainda rendiam discussões que envolveram até Sadie, saí andando e fechei as três dentro do meu quarto.
Quando parei na salinha e notei a porta do dormitório largada aberta, vi parado no corredor lá fora, me esperando. Ele estava com uma cara péssima. Os olhos fundos e a mandíbula travada, como se um nó estivesse apertando sua garganta. As mãos enterradas nos bolsos da calça, a mesma roupa do dia anterior. Ficamos nos olhando por um segundo incômodo.
— Preciso falar com você — ele soltou de repente, com a voz até mais firme do que eu esperava.
Eu estava cansada de ouvir aquela frase. Toda vez seria isso? Ter que consolar um cara culpado demais pela consciência de ter me usado?
— É, eu sei que você precisa falar comigo.
Deixei o leão sair da jaula. Enchi meus pulmões e atravessei o cômodo para ir lá para fora, o tecido da beca se movendo ao meu redor. Parei bem na frente de no corredor e fechei a porta silenciosamente atrás de mim. Eu estava pronta para soltar uma enxurrada de questionamentos, pouco ligando se ele estava preparado para ouvir ou não.
— Você teve milhões de chances de falar comigo, não acha? E agora que você me deixa na merda eu sou obrigada a ouvir só porque você foi flagrado pelo PJ? — Havia um nervosismo perceptível em minha voz, mas eu sentia uma força interior me impulsionando a enfrentá-lo. Era como se eu finalmente estivesse superando minhas inseguranças, apesar do medo. — Não, ! Eu preciso decidir sobre o meu tempo também. Um tempo que você roubou de mim.
Os olhos dele se moviam de um lado para o outro. Os ombros, cobertos pela malha preta e básica de sempre, estavam levantados e enrijecidos; os lábios entreabertos num choque silencioso, como se estivessem prestes a falar alguma coisa, mas logo voltaram a se fechar. A preocupação que se formou no meio de sua testa não me deixava dúvidas de como eu havia o atingido. Ele quase se inclinou um pouco para frente, para se aproximar de mim, mas hesitou.
parecia carregar uma angústia interna que esteve enfrentando há meses. Fiquei me perguntando se aquela sua versão tranquila era só uma fachada de normalidade. Eu devo ter sido uma distração ou algo do tipo, para ele não querer compartilhar aquela informação crucial comigo, tão determinante para um futuro que ele me deixou idealizar com ele.
Aquilo tudo estava me matando.
— E... o que ele falou é verdade, não é? O que PJ disse sobre as passagens... — parei de falar, porque as emoções começaram a tomar conta de mim de novo. — Você vai mesmo trabalhar em Seattle. Não vai?
Quando ele mexeu os lábios, antes de eu ouvir qualquer som, já senti que ia machucar.
— ... Sim. Vou.
É.
Claro que ia.
Eu precisava ouvir dele para não me agarrar a nenhum tipo de ilusão, só não contava que um “sim” tão óbvio fosse doer tanto.
— ele continuou, tirando uma das mãos do bolso. — Eu preciso te explicar tudo o que tá aconte-
— Não, eu não consigo lidar com isso agora. De verdade. Você pode dar a justificativa que quiser, mas eu não vou lidar com elas agora. Não consigo.
— Eu não- Eu não vou me justificar.
— E isso muda alguma coisa? — eu tentava manter o controle, mas já estava vencida pelo esgotamento mental. Era horrível simplesmente constatar que nada tinha uma solução prática. — A real é que você vai embora e eu vou ficar aqui. Isso não muda, não é? E você sabe, . Você sabe que isso não vai funcionar. Foi por isso que você adiou tanto? Porque sabia que esse fim ia chegar? Foi por isso que você foi me levando até onde não dava mais, não é?
...
— Pronto, você conseguiu. Viveu o momento que queria e agora ele passou. Suas lembranças da Oyster serão ótimas! Enquanto isso eu fiquei aqui, tentando me proteger do jeito mais inútil possível. Eu tô... com tanto ódio de você. E uma decepção que tá me machucando sem parar, não importa se tô fazendo outra coisa. Não tem saída. Sabe... Você não me deixou nem comemorar a notícia, . Eu nem... nem tive a chance de ficar feliz que você vai trabalhar pra porra da Microsoft.
Carregada de raiva e determinação, de repente minha voz começou a ser permeada por uma tristeza que era impossível conter. Ela ia se infiltrando em cada parte do meu corpo, entre pausas e respirações profundas, até dominar tudo. Aquela sensação de desilusão, tão familiar durante todos aqueles anos universitários, principalmente o último, se provou ainda pior quando se tratava de . Quanto mais eu olhava para ele, mais eu sentia como se houvesse uma névoa densa pairando sobre nós, obscurecendo minha visão e dissipando minhas esperanças.
Não incomodava, só doía. Doía muito, penetrava fundo em meu coração, e eu não sabia como fazer parar. Eu nem sabia se tinha como parar.
Meus olhos já estavam prontos para derramar lágrimas a qualquer momento. Eu podia ver as gotas se acumulando nos cantos.
— Eu teria vivido tudo diferente. Tudo... Eu teria me preparado pra te deixar ir, eu... eu não me deixaria me envolver tanto, ... Meu Deus, por que você fez isso? De todas as pessoas que poderiam foder com minha confiança, por que foi você?
— Desculpa — a voz dele saiu falha, quase desesperada. Cada tentativa de falar era acompanhada por uma pausa prolongada, como se ele estivesse buscando forças para superar a angústia que o consumia. Então, ele olhou para os lados, verificando os passos distantes de outras meninas que perambulavam pelo corredor, muitas tirando caixas e malas dos quartos. — , vamos... vamos conversar, por favor. Em outro-
— Não. Não! Eu já disse que não consigo lidar com isso agora — enxuguei rápido o meu rosto. — Você não conseguiu me contar isso não foram uma ou duas vezes. Foram várias. Eu também quero esse direito. Eu quero o direito de lidar com as coisas no meu tempo agora! — dei alguns passos para trás e coloquei minha mão na maçaneta outra vez, preparando para abri-la. — Sinto muito. Eu vou ficar bem aqui. E você... pode ir embora.
Depois de entrar no quarto, fechei a porta.


🙂🙃🙂


Nunca imaginei que o dia da minha formatura na Oyster seria tão deprimente. Eu me sentia alheia à todo aquele entusiasmo exalando pelo auditório, onde milhares de pessoas se concentravam para a cerimônia. Para começar, ninguém da minha família estava ali – era uma viagem muito longa e cara; além disso, quase nenhum deles tinha conseguido folga no trabalho. Eu viajaria para minha cidade em breve, então não fazia sentido arcar com tantos custos extras.
“É só um ritual bobo”, foi o que sempre preguei, mas estava difícil sustentar aquilo. Eu sentia uma solidão incomparável naquele lugar. Uma desconexão terrível. Talvez, se apenas Jackel estivesse ali, eu me sentiria melhor.
Só de pensar nele comecei a chorar.
E eu podia usar daquele momento agora para fingir que estava me emocionando com o discurso clichê que o orador fazia no palco.
Estávamos organizados em setores diferentes nas poltronas, categorizados por cursos. Lá na frente ficava o corpo docente e outros membros da diretoria. Me mantive bem distante de qualquer rosto conhecido, o que foi uma tarefa difícil, afinal, conheci praticamente todo mundo do meu curso naqueles últimos quatro anos. Foi até engraçado rever alguns rostos que eu já tinha me esquecido, o que também não deixava de ser triste. No dia seguinte, todos seguiríamos caminhos separados, e provavelmente nunca mais nos veríamos.
Para completar, a fofoca que corria pelo auditório era que as casinhas abandonadas de Oakwood seriam demolidas a mando do governo municipal. E muitos estavam comemorando, já que a praia deixaria de ser inóspita se fosse revitalizada.
A vontade que eu sentia era de correr até lá e pedir para ser atropelada por uma retroescavadeira.
Só vi quando ele foi buscar seu diploma, não muito depois de mim. Estava na companhia de alguns amigos, não tão solitário como eu, mas com a mesma cara abatida do dia anterior – dava para notar que ele tentava disfarçar, ainda mais porque sua família também não estava presente. Quem não sabia do contexto, não faria a menor ideia que sua melancolia era por outro motivo. No palco, então, foi receber seu diploma feito um robô. O sorriso forçado do reitor estava mais natural que o dele. Eu conseguia observá-lo de longe, já que tinha me isolado bem no canto da parede algumas poltronas acima.
Eu não queria que aquele dia fosse o último que a gente se visse. O pensamento me ocorreu de surpresa, porque de todas as minhas incertezas sobre o futuro, não ter por perto era a pior de todas.
Ainda tinha muita gente a ser chamada pelo microfone, então fiquei bem quieta em meu assento tentando abstrair minhas emoções enquanto esperava por Lori. Ela ia me entregar um pacote de confetes personalizados com o endereço do blog e algumas frasezinhas de efeito para chamar atenção. Isso porque o plano era trocar pelo pacote tradicional que iam explodir no final da cerimônia.
— Cheguei — ela foi se enfiando na minha fileira até se sentar na poltrona vaga ao meu lado. Em seguida, tirou de baixo da própria beca um saco transparente. Dentro dele havia infinitos papéis picados e coloridos que ela imprimiu, a fonte em Comic Sans. — Toma aqui, fica com você. Vou demorar ainda a ser chamada lá no palco. Vou ficar aqui com Jenna, a gente tá mais embaixo, ali do outro lado.
— Ok... E pra quem vou ser obrigada a ser educada hoje? Já sabe pelo menos o nome do carinha que tá encarregado de lançar os confetes?
— Um tal de Will Sanders.
Era só o que me faltava. Comecei a rir.
— O quê? — Lori estranhou. — Você conhece ele?
— Sim... Mais ou menos. Jenna conhece mais.
— Ah, é? — Lori pescou a ideia, mas também soou divertida. Ela sempre gostava de aprender curiosidades sobre o passado de Jen para tirar uma com a cara dela. — Sei. Vou perguntá-la mais sobre isso depois.
Botei a sacola debaixo do braço e acabei me levantando.
— É... Will tem o cabelo verde, bom que vai ser fácil identificá-lo ali atrás nos bastidores.
— Ótimo. Vai com tudo.
Assim que escapuli daquele setor de cadeiras e desci a longa rampa que dava para os bastidores do auditório, dei de cara com uma portinha que indicava “armazenamento”, bem ao lado de portões maiores que davam para a saída de emergência. Entrei na menor e encontrei Sanders no meio de dezenas de vassouras e materiais de limpeza, sem o capelo na cabeça e tomando uma cerveja escondido. Ele deu um pulo para trás quando me viu.
— Tá maluca? Você não pode estar aqui!
— Eu não vou te dedurar, só vou te pedir um favor.
— Hã? Que favor?
— Cadê os confetes que você vai lançar nos canhões do palco?
— Hmm... Estão ali — ele apontou para umas caixas de papelão no chão. — Por quê? Não é pra lançar mais?
— É, mas você vai fazer uma última mágica agora, ok? Vai usar esses aqui — estendi a sacola para ele pegar. Quando continuou sem entender nada, expliquei: — Pedido da comissão e convidados.
— Ok... O que é isso?— Will inclinou a cabeça e ficou lendo todas aquelas letras pela transparência do plástico. — Nem te... “nemteconto2000@hotmail.com”? Espera aí um minutinho...
— Porra, Will, não estraga… Por favor. Por favor.
— Ah, não, eu não quero me encrencar...
— Se você não fizer isso, eu vou te dedurar — apontei para a garrafa que ele tentava despistar dentro de um saco pardo.
— Tô zoando, garota. Já saquei o que tá rolando, e tô de acordo. Sou legal, pô — ele arrancou a sacola das minhas mãos, já que eu tinha virado uma estátua. — Mas leva essas caixas dos outros confetes com você, guarda em algum lugar. Eu vou alegar que lancei os únicos que me entregaram, ok? Nem assinei ainda o recebimento de encomenda.
— Tá, e... onde raios eu vou guardar essas caixas?
— Ali fora tem um corredor cheio de salas vazias da administração. Só passar pela saída de emergência.
— Posso deixar em qualquer uma?
— Sim, elas estão cheias de cadeiras que eu empilhei. O pessoal só vai se ligar de ver o que tem nessas salas quando a gente já estiver bem longe daqui — ele fez um brinde comigo no ar e tomou um golão de sua cerveja. — Alakazam! E tchau, Oyster!
— Obrigada — segurei um risinho e me abaixei para pegar as duas caixas. Então, voltei para a porta. — Tchau, Will.
Ele estava muito ocupado para responder, bebendo como se não houvesse amanhã, então simplesmente saí sem olhar para trás. Eu estava tão depressiva que até aquele adeus tinha me abalado.
Depois de guardar tudo na outra sala, saí pelos portões e fui seguindo de volta ao meu lugar no auditório. Quando eu já estava quase no final da rampa, mesmo cabisbaixa, notei uma movimentação estranha em uma das fileiras ao meu lado. Tinha um pessoal dando passagem para alguém. Era , que de repente parou bem no meu caminho.
Levantei os olhos para ele e nem tive a chance de dizer qualquer coisa.
— Vem comigo?
Havia uma aura de determinação em seu olhar que me pegou desprevenida. Seu corpo estava todo tenso, tomado pela urgência, como se ele estivesse segurando uma grande expectativa. Não deu tempo de driblar meus próprios pensamentos, porque tudo em mim gritava para eu ir com ele. Mais um dia naquela fossa e eu seria engolida por ela.
— Por favor?
— ... Onde?
— Ali — ele indicou com o queixo —, de onde você acabou de sair.
Me virei um segundo para olhar, só para ter certeza. Assim que balancei a cabeça e confirmei, senti sua mão se espalmar em minhas costas, me guiando lá para baixo outra vez. Passando pela saída de emergência, paramos num corredor vazio e silencioso, mas que ainda circulavam alguns funcionários da universidade.
Então, entramos na sala de cadeiras empilhadas.
Enquanto eu olhava aflita pelos cantos, fechou a porta com cuidado e se aproximou de mim, agora muito mais calmo.
— Na verdade... eu... não tô muito legal hoje — falei, já sentindo o peito apertar, dando mínimos passos automáticos para trás, a ansiedade me corroendo.
Era o medo de ter aquela conversa.
O fim.
, espera, eu não sei se tô preparada pra me... me-
... Vou dizer o óbvio que precisa ser dito — ele tirou seu capelo e o segurou na frente do corpo, se aproximando ainda mais. — Me desculpa por não ter te contado antes sobre essa mudança. Foi um erro não compartilhar meus planos com você, ainda mais considerando o quanto a gente significa um pro outro. Eu... eu adiei, perdi o timing entre minhas próprias dúvidas, e a última coisa que eu queria era ter te causado toda essa mágoa... Porra, eu não... nunca quis que as coisas tivessem acontecido desse jeito... Eu sei. Eu errei quando não te incluí numa decisão que ia te afetar também. Me desculpa.
Quanto mais ele falava, mais parecia que as paredes estavam se fechando ao nosso redor.
— Então... por quê?
— Eu entendo, eu entendo que pode parecer difícil enxergar alguma lógica no que se passou pela minha cabeça, mas... Quando recebi a oferta de emprego em Seattle, um mês atrás, a primeira coisa que senti foi um medo absurdo — a voz dele quebrou. Até parou de gesticular com o braço livre e firmou o olhar desamparado no meu, o que capturou minha atenção. Suas sobrancelhas franzidas o deixavam mais sério, apesar dos olhos vermelhos anunciarem aquela iminência de lágrimas. — ... Medo de te te perder. Medo da gente não conseguir conciliar com a distância. Acha que não pensei em tudo isso? Desculpa, eu não... consegui te contar. Toda vez que eu tentava achar um momento, ele era bom demais pra eu arruinar tudo. E tô arrependido pra caralho por isso.
— Por que... Por que você não confiou em mim, ? A gente lidaria com isso juntos. A gente discutiria sobre isso como tantos outros assuntos. Eu poderia te ajudar com essa indecisão, e não ficar de fora dela. É seu trabalho, sua carreira... Eu não quero ser o que te impede de viver uma chance de reconhecimento tão grande igual a essa. Eu não sou essa pessoa, eu entendo que cada um tem prioridades diferentes, como todo mundo tem. Era isso que aconteceria se você tivesse me contado antes, eu te apoiaria. Que tipo de terror você imaginou?
Ele ficou olhando para os lados, contendo o choro, buscando algum conforto que simplesmente não existia.
— Eu pensei que... você ia se desapontar por eu querer ir. Eu tinha duas certezas, , ficar com você e aceitar a proposta. E sempre soube que não tinha como ter os dois ao mesmo tempo, porque eu sei que você vai ficar aqui. É o seu lugar. Mas eu... — ele ficou inquieto de novo, a voz mais embargada. — ... Eu não tenho um lugar. Tive medo de abrir essa questão com você, de você achar que não merecia não ser escolhida, de... de achar que eu deveria ter recusado a proposta de cara.
ainda tinha um medo quase irracional de sofrer chantagens emocionais, e eu de ser tratada como segunda opção. Cada um com suas pequenas cicatrizes.
— Mas é claro que você tem que ir, . E vou ficar aqui, mesmo... mas eu precisava saber. Eu com certeza teria vivido esse último mês diferente-
— Não, ... Não — ele deu um passo à frente, preocupado; os olhos se arregalaram um pouco, a testa levemente franzida. Eu nunca o tinha visto tão vulnerável daquele jeito. — Como você fala isso? — ele tocou meu rosto, só as pontas dos dedos, e ficou tão perto que eu segurei o impulso de me aproximar de volta. — Eu não viveria nada diferente com você. Nada.
— Mas é que... o último mês com você foi...
Não consegui terminar, porque o choro veio e começou a escorrer pelas minhas bochechas.
— ... Eu me apaixonei por você — desviei o olhar. — Talvez mais do que isso.
— Eu também, . O que eu sinto por você vai muito além de um dilema.
Depois de alguns segundos nos encarando com toda a intensidade do mundo, voltou a segurar seu capelo e soltou o ar, aliviando um peso invisível que parecia sufocá-lo.
— Foi por isso que eu só assinei a segunda versão do contrato. Pedi uma cláusula que estipula um período de teste de três meses, assim até eu me sinto mais seguro.
— O quê...? Como assim?
— Quer dizer que eu volto no final dessa experiência. Primeiro porque eu não seria louco o suficiente de deixar você. E segundo porque eu já tive que recalcular minha rota uma vez, lembra? — perguntou, e eu fiz que sim com a cabeça. Estava se referido à mudança de curso e cidade. — A última coisa que quero fazer nessa altura do campeonato é recalcular mais uma.
— Mas... eu sei como você é, . De onde veio. Você é um nômade, gosta de ser livre, correr riscos, você sabe que é verdade.
— Como, se a ideia de arriscar você foi o que mais me deixou apavorado?
Senti sua mão alcançar a minha, devagar. Seus dedos entrelaçaram-se com os meus enquanto ele me olhava com ternura nos olhos. Talvez até com... admiração.
— Eu odeio tudo isso — sequei meu rosto. — Eu queria ter te conhecido antes. Ou depois. Meu Deus, eu queria prolongar o tempo, fazê-lo parar. A vida é tão... injusta...
— É. Mas eu acho que ela vale muito mais a pena com você — ele levou o dorso da minha mão em direção aos seus lábios, e eu senti o calor de seu hálito próximo à minha pele. Meu coração se apertou. — E eu não vou te pedir pra me esperar, mas eu queria... tentar-
— E-Eu quero te esperar, , mas não posso fazer isso comigo — minha voz saiu trêmula de novo enquanto eu recolhia minha mão, um pouco relutante. — Se meu coração se partir outra vez... e por sua causa... eu não saberia como juntar os pedaços. Eu realmente não saberia. Não agora. Não assim, de repente.
Ele ficou em completo silêncio.
Eu também. No entanto, aproveitei a deixa para continuar desenterrando meus pensamentos:
— Você sabe que chegando lá, tudo pode mudar. Seattle é muito longe. É muita responsabilidade, é muita gente nova, é muita novidade. Eu sei o que é sentir isso. Seu mundo vai virar de cabeça pra baixo. O meu vai continuar o mesmo, e eu não quero me agarrar a nenhuma promessa, entende? Eu não faço isso mais.
... Eu tenho plena consciência de tudo isso, mas também tenho os pés na realidade. A única coisa que você precisa saber é que alguma merda muito grande precisa acontecer pra eu não te ligar, ou não te mandar um e-mail.
— Mas isso significa acreditar... e eu não confio no futuro, porque ele ainda não existe. Não tem como a gente saber. Eu só queria uma mini garantia, só pra conseguir acreditar... mas sei que é impossível.
Ele pendeu a cabeça para baixo e soltou um suspiro profundo. Será que se sentiu pressionado durante todo esse tempo? Por que essa mania de carregar o mundo nas costas? Era essa a voz silenciosa que ele não queria que ninguém mais ouvisse, dizendo sempre para internalizar os próprios problemas?
— Eu vou... — comecei a me desvencilhar dele. — Vou voltar pra lá — fui me afastando devagar, sem jeito, e só quando parei na porta, virou o rosto para trás e me encarou. — Daqui a pouco vão encerrar a cerimônia e... explodir os confetes.
Ele não disse mais nada, nem eu. Inclusive, se eu ficasse mais um segundo ali, iria desabar. Saí da sala, atravessei o corredor vazio e empurrei os portões da saída de emergência como se eles tivessem vinte toneladas.
De volta ao auditório, a atmosfera estava tão diferente que eu parecia ter acabado de sair de um filme de drama enquanto todos estavam assistindo Adam Sandler. Me dirigi o mais rápido possível até onde Jenna e Lori estavam sentadas, porque eu não queria mais ficar sozinha. Assim que elas me viram, me deram um lugarzinho.
No palanque, o orador estava no final de seu discurso, o que fez Jen segurar forte nossa mão, cada uma de um lado. A voz do cara ressoava pelos alto-falantes, alcançando todos os cantos do ambiente:
— Que cada um de nós siga em frente com determinação e coragem, levando consigo as memórias preciosas que compartilhamos, os desafios que superamos juntos e a certeza de que somos capazes de alcançar grandes conquistas. Parabéns a todos nós, turma de 2000!
O auditório virou um festival de gritos eufóricos e todos jogaram seus capelos para cima, depois abraçaram uns aos outros. Eu não joguei, porque estava desconectada demais da felicidade ao meu redor. Fiquei lá, paradona, parecendo uma planta ornamental de luxo no meio da algazarra. Além disso, não tinha ninguém para eu abraçar naquele setor de cadeiras.
Nunca imaginei que assim seria o meu dia de formatura.
... — Jenna se virou para mim com os olhos cheios d'água depois de ter tido seu momento com Lori. Ainda bem que ela nem precisou questionar por que meu capelo ainda estava na minha cabeça. — Quero que fique com isso.
Olhei com curiosidade enquanto ela puxava meu dedo mindinho como se fosse me pedir em casamento.
— O que é isso?
— Um fio vermelho do destino.
Agora eu a observava amarrar uma linha de crochê em meu dedo, que ela com certeza havia tirado de seus próprios materiais. Eu não estava entendendo nada.
— Um fio vermelho do destino...? O que isso significa?
— É uma lenda chinesa, . Esse fio representa nossa conexão, ok? E mesmo que eu esteja partindo pra Califórnia, nosso destino agora está entrelaçado. Esse fio nunca vai se romper.
Ela soltou minha mão e eu fiquei olhando para o meu dedo com aquele lacinho vermelho, tão delicado e bem atado.
— Jenna, eu... não sei o que dizer... É tão bonito.
— Eu sei que nossos caminhos vão se separar agora, mas a gente nunca vai se separar de verdade — ela me olhou com carinho, as lágrimas já rolando por seu rosto. — Sempre estaremos conectadas, não importa a distância.
Meu coração foi a mil. Quase pulei em seu colo quando a abracei com força, e assim ficamos. Agarradas, eu sentia aquele cheiro de incenso em seu cabelo – o que antes de conhecê-la me incomodava, agora me transportava para um estado de paz profunda. Seu abraço era um lugar seguro, e nele pude chorar tudo o que tentei segurar naquela salinha lá fora. Num instante a beca de Jenna ficou ensopada com minhas lágrimas. Talvez ela não tivesse noção da falta que me faria.
— Obrigada, Jen — falei com dificuldade. — Por este presente e por ser minha amiga. Obrigada por me salvar da solidão lá no píer de Bricktown. Nunca vou me esquecer daquele dia, nem de você.
Então, nos afastamos um pouco, só para uma olhar para a cara de choro da outra.
— Eu sempre estarei aqui pra você, , não importa o que aconteça. Agora, sempre que olhar pra esse fio vermelho, lembre-se de que nossa amizade é eterna, ok? Acredite, por favor.
— Tudo bem — dei um sorrisinho triste, sabendo que a realidade poderia ser outra. — Vou guardar isso comigo sempre, Jenna. Eu sei que a gente pode se afastar... mas quando nos reencontrarmos, nossa conexão vai ser ainda mais forte. Quero acreditar nisso.
— Isso! Muito bem! Vai ser!
Comecei a rir enquanto ela secava os olhos. Tentei fazer o mesmo, mas era inútil.
— Eu também acredito nisso, — ela continuou, agora mais calma, me dando as duas mãos. — Até o nosso próximo encontro. E ele não vai demorar.
De repente, ouvimos vários estouros, um seguido do outro, e os papéis coloridos começaram a se espalhar pelo ar e a cair em nossas cabeças. Como se tivesse achado sua carta para Hogwarts, Lori pegou um dos papeizinhos e ficou balançando para nós.
— Missão cumprida! — ela dava pulinhos no lugar. — Plano executado com sucesso!
Nos juntamos na comemoração e batemos um high-five. Agora o blog ia explodir de vez, e ainda bem que Lori ainda estava empolgada para administrá-lo.
Eu não tinha mais forças.


🙂🙃🙂


Era estranho ver meu quarto vazio. Inabitado.
Sadie já tinha voltado para sua cidade natal, já que precisava buscar uns documentos e resolver trâmites burocráticos antes de se mudar de país. E Alex tinha ido com ela para conhecer os sogrões. Os dois vazaram pouco depois da cerimônia à tarde. Ela ia ficar seis meses na Polônia, ou Estônia, eu não lembrava mais. Mesmo assim, o casal se mantinha firme e forte.
Por que eu não conseguia sentir a mesma esperança com ficando só três meses fora?
Eu ainda tinha algumas caixas para lacrar, porque deixei tudo para a última hora. No entanto, sem aguentar mais aquele poço de depressão, saí para beber com Erin, minha futura colega de apartamento. Ela não parou de falar sobre como a proprietária era uma chata que odiava gatos, sendo que a Princesa Ronronilda ia, sim, se mudar com a gente. Ainda tínhamos alguns problemas para resolver, tipo mofo nos armários da cozinha, e eu só queria que uma fada mágica aparecesse e resolvesse tudo para mim de uma vez.
Lá pelas nove da noite, quando voltei para o quarto, o telefone já estava tocando.
— Alô?
, finalmente! — PJ falou, o que já me causou um estranhamento dez vezes pior. — Tem como você passar na clínica do campus hoje ainda?
— O quê? Por quê?
Você ainda não tá sabendo?
— Não, cheguei no alojamento agora. Por quê, o que aconteceu?!
Calma, não se preocupe... É que o quebrou o braço hoje mais cedo.
— O quê? Como assim quebrou o braço?!
Tava na bicicleta, pedalando rápido demais, aí não viu um pedestre que apareceu do nada na trilha. Ele tentou desviar, mas foi arremessado quando fez a curva e acabou quebrando o braço quando tentou se proteger da queda. E foi feia.
— E por que raios ele tava andando de bicicleta por aí no dia da formatura, meu Deus?
Então não... voltou para o auditório depois da nossa conversa mais cedo?
Vai lá perguntar pra ele. Jenna já foi, e acho que não conseguiu falar com você a tempo. Agora ele tá sozinho lá.
— Mas... Mas...
Vai ver o pobre enfermo, vai. Por favor. É a última coisa que te peço, ver o coitadinho combalido. Berrou igual um fodido quando o enfermeiro precisou recolocar o osso no lugar.
— Putz... E agora, engessaram?
Sim. Agora ele também não sabe nem se vai pra Manhattan ver a avó mais. Mas o único remédio que cura a dor é o amor, não é mesmo? Vai lá, ...
— Cala a boca, PJ. Você tá fazendo o oposto de me convencer.
Mas ele tá querendo falar com você, é sério. É importante.
— Como você sabe?
Eu tava lá, porra. Na hora do acidente.
— E o que isso tem a ver?!

Você vai ver. Fui ajudar o a fazer uma loucura de amor.


Capítulo 30 – Presença

Eu podia ouvir vozes vindas da sala de enfermaria. Quanto mais eu me aproximava, mais elas ficavam nítidas: um homem dava instruções médicas para , e ele ia respondendo com “aham” a cada frase. Esperei o cara sair, em pé ao lado da entrada, tentando parecer invisível e relevar o cheiro forte de desinfetante do lugar.
Ainda me sentia um pouco altinha. Quando deixava as pessoas falantes feito Erin gastarem saliva num bar, eu derramava álcool para dentro sem nem ver. Estava morrendo de fome, sono, e agora de preocupação por causa de um idiota que caiu de bicicleta.
As paredes daquela clínica tinham um tom verde desbotado que me irritava. E uma máquina de venda automática que engoliu todas as minhas moedas sem entregar meu lanche. Eu já estava num estado que qualquer coisinha atacava minha ansiedade, e ter que esperar de estômago vazio o médico terminar seu atendimento só fazia o tempo passar ainda mais devagar.
Assim que o ouvi dando alta para , me preparei para entrar. A sala de enfermaria tinha uma fileira de macas, cada uma separada por cortinas, claro que todas abertas. A Oyster estava mais vazia do que uma segunda-feira, como se tivessem evacuado cada canto depois da formatura.
Foi fácil ver ali no meio, sentado na beirada de uma das macas. As roupas um pouco sujas, amarrotadas, com rasgos nas mangas e nos joelhos de sua calça jeans. Fui entrando com pressa enquanto segurava minha bolsa contra o corpo – os olhos dele se voltaram para mim no mesmo instante, e me acompanharam até eu parar no pé da maca. Foi bonitinho como seu rosto se iluminou em surpresa, mesmo com um sorriso tão discreto. Havia alguns arranhões em sua pele e um ralado maior no queixo, se destacando contra a barba curta.
Ficamos nos olhando num silêncio sepulcral. De repente, eu não soube o que fazer ou falar, porque era estranho ter que manter uma distância tão cautelosa dele.
Seu antebraço direito estava suspenso por uma bandagem em torno do ombro. O gesso branco já tinha algumas assinaturas de amigos que passaram por ali mais cedo – reconheci de imediato a letrinha de Jenna quando li “CUZÃO” de todo tamanho entre outros nomes ao redor.
— Tô indo assinar uns papéis na recepção — murmurou enquanto tentava se levantar. Parecia que o corpo todo estava dolorido. — Aumentar minha dívida estudantil com mais essa e ir embora.
Então, ele finalmente se pôs de pé, mas quando deu o primeiro passo, fez uma careta de dor. Quase que por instinto, me aproximei para oferecer minhas mãos de apoio.
— Quer ajuda?
— Não, é só… um mal jeito que eu peguei nas costas.
Ele também tentava manter uma distância, mas parecia se conter mais. Marcou mais um pouco e, depois de cruzar comigo, parou de repente. Aí, virou a cabeça para me olhar por cima do ombro:
— Você… veio porque a Jenna pediu?
— Não — respondi, tensa sem motivo. — Vim porque o PJ me ligou. Ele me contou do acidente e… também disse que você tava sozinho aqui.
— Ficou com peninha de mim?
Segurei o riso e até pensei em dar um tapa em seu braço. O quebrado.
— Jenna veio — ele terminou de virar o corpo na minha direção e apontou para o recado dela em seu gesso. Fiquei curiosíssima para ler os outros. — Ela disse que ia te ligar, então pensei--
— É, ela ligou, mas eu não tava no alojamento. Saí com uma amiga.
Olhei para os pés, mudei-os de lugar, soprei uma mecha de cabelo que caía no meu nariz. Aquele típico silêncio desconfortável pairando no ar e que não deveria existir, não entre a gente. Mas nunca fui a que conseguia ficar quieta por mais de cinco segundos.
— Tenho algumas perguntas — avisei, minha voz soando um pouco trêmula. direcionou seu olhar para o próprio braço, talvez esperando que eu perguntasse sobre o acidente. — Não, não sobre isso. Sobre… — fiz uma pausa. Enquanto pensava em trocentas coisas, me odiando por quase deixar escapar aquela chance de vê-lo de novo, ele tinha os olhos plantados em mim, ansioso como um relógio tic-tac. — Na verdade, eu não… não sei nem por onde começar.
— Pode falar — ele deu um passo à frente, os tênis do Forrest Gump mais surrados do que nunca. Cheios daquela terra acinzentada da ilha de Staten. — O que você quer saber?
— Sobre… seu emprego. Como foi? Você foi indicado?
— Fui. Pelo Sr. Baxter.
— Imaginei.
Àquele ponto, já dava pra gente fazer uma coleção de pequenos silêncios estranhos. parecia averiguar se era seguro continuar a falar, então logo que percebi isso, fiz um sinal com a mão para incentivá-lo.
— O Sr. Baxter tem uns colegas da época que trampou com design industrial — sua voz saiu um pouco mais confiante. — Eles montaram uma empresa e cresceram pra caramba no último ano. Hoje o principal cliente deles é a Microsoft, por isso estão em Seattle, transferiram a sede pra lá. É tipo o contrato dos contratos, o único que realmente enche o bolso da empresa.
— Então você vai prestar serviço pra Microsoft através dela, é isso?
— É, outros clientes também. Mas a Microsoft tá investindo muito em inovação agora, aí contrataram essa empresa pra criar as interfaces dos novos softwares deles. Eu tô entrando pra pegar uma experiência maior nisso. O PJ também foi chamado, mas não quis se mudar, já tava negociando outro trampo perto de onde ele vai morar agora. No Brooklyn, inclusive.
“Por que você não troca de lugar com ele?”, foi o que eu quis perguntar, e de brinde jogar um vaso em sua cabeça.
— Legal — respondi. Estava sendo honesta e irônica ao mesmo tempo. — Devem ter te oferecido uma graninha boa, não é?
— Sim — ele riu. — Como você sabe?
Até me surpreendi com a pergunta. Às vezes eu esquecia que fazia parte de um pequeno grupo de pessoas naquela universidade, o dos que tiveram um gostinho da vida proletária.
— Você é jovem, , tem a técnica, a habilidade… É um talento promissor ambulante. Esses velhos que cagaram de medo do bug do milênio vão fazer de tudo pra manter a gente na cola e fazer o trabalho que eles têm mais dificuldade, e também o mais lucrativo pra eles — eu falava e ele ia balançando a cabeça, no mínimo concordando, mas também interessado. — Ainda tô com raiva por você não ter me contado nada disso, mas… eu sei que no seu lugar, aceitaria na hora. É uma chance de reconhecimento muito grande e muito cedo, porque enquanto todos nós vamos correr atrás disso por mais alguns anos ainda, essa oportunidade vai te lançar lá na frente… Isso é demais. Tô orgulhosa de você. Mas com raiva.
Um mini sorriso brotou em seus lábios.
— É isso aí. Eu tô ligado — ele falou, querendo parecer despreocupado. Eu conseguia notar essa diferença agora. — Isso também tá na lista.
— Que lista?
— A de motivos pra eu vazar no outono. É que nem você falou, vou ser catapultado lá na frente com essa estrelinha dourada no meu currículo. É como eu vejo também. Aproveito o ticket da ida, mas eu queria muito que você entendesse… A minha condição foi ter o da volta.
De novo um silêncio. Porém, dessa vez, eu quem o quebrei, tentando ser engraçadinha:
— E você volta mesmo? Duvido…
— Volto, — ele deu mais um passo, bem sutil, na minha direção. Estava mais contido ainda. — É fácil falar que você aceitaria o emprego na hora, porque se eu pensasse com frieza, eu também teria aceitado, e também teria contado pra você. Mas não foi o que aconteceu. Pra falar a verdade, na hora mesmo, eu quase recusei.
— O quê?!
Aquilo era novidade. Será que ele sempre soube que se recusasse a proposta na hora, e por minha causa, também seria me colocar numa posição péssima? Será que ele finalmente entendeu no meio disso que eu não seria essa pessoa que o impediria de voar? Ele considerou tudo isso no meio de suas dúvidas?
Então, talvez… não fosse a pessoa sem raízes que eu achei que era. Ele se preocupava com o futuro, e um onde eu não seja feita só de memórias. Porque esse era o meu maior medo.
Quis chorar. Ainda me sentia num beco escuro, sem enxergar como eu poderia acreditar nisso quando tudo continuava incerto.
— Você ainda acha fácil deixar as pessoas como deixou em Livingston? — ele soou um pouco machucado. — Ok, foi uma decisão necessária na época, pra você seguir seu próprio caminho… mas agora você cresceu, . Você não é mais a menina aventureira correndo atrás da primeira oportunidade de vir pra uma cidade grande. Eu não sou mais o nômade que eu achava que deveria ser porque meu pai parecia legal vivendo assim. Não, eu odiava ele tão distante, e nunca gostei de manter contato por cartas, ligações caras de dois minutos e presentes que chegavam pelo correio nos meus aniversários. Eu não tô indo pra Seattle porque “tô explorando o desconhecido”... tô indo porque em três meses nesse emprego vou conseguir juntar uma grana pra construir a estabilidade que eu nunca tive na vida. Nem nas casas e cidades diferentes onde morei, nem na minha família, nem em relacionamentos. E eu percebi que eu quero isso já.
Quando vi, já estava a dois passos de distância. O que ele dizia me causava um rebuliço na cabeça, e ele nem fazia ideia do quanto. Talvez até tenha percebido, sim, diante da minha falta de respostas. Eu estava mais inquieta que o normal, uma confusão que só, mas seus olhos não desviavam dos meus nem por um segundo. E tinha um brilhozinho neles, um monte de lágrimas prestes a escapar.
— E nesse tempo todo, … e porque eu te conheci… descobri que encontrar um lugar onde eu me sinta em casa é tão importante quanto me tornar independente.
Eu estava por um fio de chorar. deu voz ao que eu também sentia, mas não tinha formulado até então. Naquele instante, eu soube que algo especial estava começando a se formar entre a gente – uma profunda compreensão, daquelas que transcendiam as palavras de um jeito doido, mexia com tudo em mim.
Mas não era hora de soltar o freio ali, agora. Engoli aquilo tudo e chacoalhei a cabeça.
— Espera, eu… eu-- Afinal, que trilha é essa que vocês pegaram? — perguntei, fungando, pronta para lançar uma bronca. — Não dava pra escolher um dia melhor pra pedalar?
— Ah, é… — ele coçou a nuca. — É que a gente tava em Oakwood.
— O-Oakwood? — franzi a testa. Logo ali fui desarmada. — Por quê…?
— Fui lá buscar sua “mini garantia”. Olha pra trás. Na mesinha.
Na mesa branca ao lado da maca havia um jornal antigo e amarelado. Meu coração acelerou tanto que parecia querer saltar do peito enquanto eu caminhava até ele. Não era um jornal qualquer… Era o The New York Times de 1942. Inacreditável como ele estava praticamente intacto enquanto descansava ali na mesinha. Eu me lembrava bem de como estava quase esfarelando embaixo dos caixotes de pesca lá na casinha abandonada.
Fiquei pensando na missão que deve ter sido trazer aquele jornal até ali. Estiquei os dedos para tocar nas páginas envelhecidas, tão frágeis, e fui capaz de estragar seu estado de preservação naquele primeiro contato, porque duas lágrimas gordas pingaram dos meus olhos.
Minha… mini garantia?
“Mas isso significa acreditar… e eu não confio no futuro, porque ele ainda não existe. Não tem como a gente saber. Eu só queria uma mini garantia, só pra conseguir acreditar… mas sei que é impossível.”
— É melhor botar ele num plástico ou algo do tipo — avisou —, porque o que eu tinha usado rasgou e o PJ jogou fora.
Minha cabeça se encheu de reflexões e os sinais de clareza começaram a aparecer. Por que eu me esforçava tanto em resistir contra os caminhos imprevisíveis da vida? Tinha beleza naquilo também, mesmo que trágica, em aceitar a finitude das coisas e a impermanência das pessoas. Quanto mais eu me apegava a elas, mais difícil era o adeus... Mas até que ponto valia a pena deixar de sentir para evitar sofrimento?
Não tinha escapatória. Se algum dia eu quisesse ter resiliência emocional na vida, não era tentando fazer doer menos que eu chegaria lá. Chegou a hora de me livrar daquelas filosofias antigonas.
Olhei para de relance, tentando ao máximo não desabar.
— O que… O que você fez? Você foi até lá pra isso? Por quê…?
— Porque eu precisava te mostrar que você não precisa confiar no futuro, ... Só em mim.
Nem pensei. Antes que meus joelhos vacilassem, corri até ele e enlacei meus braços ao redor de sua cintura, para não encostar em seu braço engessado na frente do corpo. Então, desatei a chorar. Eram muitos pesos antigos indo embora de mim.
Aconcheguei meu rosto no ombro de , onde havia uma mistura de cheiros só dele, o meu cantinho favorito no mundo. E em pouco tempo senti seu braço livre me envolver de volta e um beijo estalar no topo da minha cabeça.
— Obrigada — murmurei.
— Sua boba — ele afagou meu cabelo. — Você liga muito pra coisas bobas.
— E você foi buscar uma delas pra mim. O bobo aqui é você.
Ele deu uma risadinha. Sua mão procurou meu rosto e, quando levantei o olhar para ele, seus dedos seguraram meu queixo como sempre faziam.
— É que eu te amo demais. .
Demorei alguns segundos preocupantes para assimilar aquilo. Para quem estava com medo de receber mais um pé na bunda histórico, receber um “eu te amo” parecia um milagre inesperado.
Eu já tinha ouvido aquilo do meu primeiro namoradinho de escola, que repetia “eu te amo” a cada dez minutos, e de bêbados na faculdade depois de encontros de uma noite só – mas aquele bateu diferente. Óbvio. Era o tipo de frase que eu tinha me programado para não acreditar de novo, no entanto, eu já tinha me entregado há tempos, porque estava fora do meu controle.
Era isso que significava amá-lo também, não era? Independer de promessas.
— Eu também amo você.


🙂🙃🙂


Atravessar a ponte Verrazano-Narrows às seis da matina pedia velocidade, e eu pisava fundo no acelerador da Chevy. estava meio borocoxô pelo braço quebrado, de castigo do outro lado do banco porque não podia dirigir. Azar o dele. Eu curtia ao máximo a pista vazia, a cidade ainda adormecida, o vento cortando a cara, e no rádio a musiquinha de uma das fitas de .

🎵 Pra você ouvir de fundo:
1979 – The Smashing Pumpkins

O destino era a casa de sua avó, onde ele passaria uma semana antes de decolar para Seattle. A casa de dona Genevieve ficava num bairro mais isolado, perto do rio Hudson. Mas como a ponte dava para o Brooklyn, resolvemos passar em frente ao prédio de tijolos vermelhos onde eu ia morar, só para conhecer. Depois disso, mais uma viagem até os subúrbios do extremo norte de Manhattan.
No meio do caminho, ele me ofereceu um chiclete de menta – uma das inúmeras guloseimas de seu estoque no porta-luvas, e aquela eu sabia que ele sempre comia depois de um cigarrinho.
— Ei, cê decidiu parar de fumar? — perguntei.
— Nem percebi quando parei — ele esparramou o corpo todo no banco, os joelhos afastados quase tocando minha coxa. — Nessa correria toda eu só me droguei com cafeína.
— Tadinho. Só a droga do século.
Ele riu. — E você?
— Eu?
— É, você, … Eu vi o que você guardou na sua bolsa rosa de glitter.
Revirei os olhos.
— Tá… Um amigo de uma amiga da Lori planta em casa, e quando ela foi comprar com a Jenna, eu também fui e peguei um pouco. Não pedi pra você porque sabia da… sua pausa — parei de falar. Percebi que ele estava me encarando demais, como se eu fosse o alvo de seu mais puro entretenimento. — Que foi?
— Deu um upgrade, é?
— Tá achando que só você tem seus contatos? — dei uma olhada direta para seu gesso. Foi a primeira coisa que eu tinha visto quando PJ apareceu mais cedo com ele lá no dormitório: um recado com a assinatura da Tess.
soltou uma risadinha, ainda se divertindo.
— Isso aqui? — ele levantou o braço e arranhou a garganta. Claro, se preparou para imitar a voz dela. — “Que você se livre desse gesso e fique pronto para novas aventuras em Seattle. Melhoras e logo estaremos rindo disso juntos. Cuide-se. Tess” — ele olhou para mim de novo e ficou balançando a cabeça, daquele seu jeitinho letárgico de ser. — É… Eu imaginei que você fosse notar.
— Claro que eu ia notar esse testamento.
— E quando é que eu vou ganhar o seu?
— Nunca. Morra esperando.
Não aguentei segurar por muito tempo e gargalhei, ele mais ainda. Uma risada que tentava escapar desde o início daquela conversa.
— Falando sério agora — comecei —, eu devia ter comprado mais. Tá me ajudando com a ansiedade, sabia?
— Sério? — ele olhou para mim com as sobrancelhas arqueadas, parecendo surpreso. — Conseguiu ter um final feliz com a maconha, então?
— É, o jogo virou. Satisfeito?
demorou alguns segundos antes de responder. Ficou quieto, olhando para frente e contemplando a estrada, provavelmente criando cenários na própria cabeça e filosofando sobre a situação – a exata cara que ele fazia quando ficava chapado.
— Não, na verdade… Tô triste — ele deu um suspiro e voltou a olhar para mim. — Queria ter fumado mais com você.
— Fico imaginando minha mãe ouvindo uma coisa dessas. Ela ainda vive na Idade Média, com certeza te acharia o pior namorado do mundo. O pior não, o rei da decadência e do mau exemplo.
Ele riu de novo.
— É, porque eu tô falando com a rainha do bom exemplo agora. Imagina se ela soubesse que foi você quem me chamou pra ficar chapada no meio do mato e transar depois, e ainda foi pega por um guarda.
— Chega.
— Ela já sabe do seu vibrador?
Chega.
explodiu em risadas, e eu também não resisti.
— Não posso pensar muito nessas coisas — ele comentou —, é uma parada que mexe comigo…
— Lembrou de outras?
— Lembrei pra caralho.
Comecei a rir. Ele também, mas as risadas foram diminuindo mais rápido dessa vez, até tudo ficar silencioso de novo. Do nada um clima deprimente. E eu tinha certeza que estávamos pensando na mesma coisa; ele porque ficou mais quieto do que o normal, eu porque tive que segurar umas lágrimas enquanto apertava o volante com mais força.
Ele usou o joelho para cutucar minha coxa de leve.
— Ei. Você sabe que eu vou morrer de saudade, não sabe?
Aquele idiota me fisgava sempre. Sabia quando minha cabeça ficava acelerada em pensamentos, e sabia me trazer de volta como num pouso seguro de paraquedas.
— … E você sabe que eu já tô — respondi.
— Fica comigo hoje — ele me deu outra cutucadinha. — Minha irmã chega um pouco mais tarde, ela vai achar você o máximo.
— Eu?! Por quê?
— Porque você… Não me leve a mal — ele começou a rir enquanto falava —, é que vocês duas gostam de boybands ruins, e você sabe todas as coreografias e tudo mais. Ela vai amar aprender, e não tô exagerando.
Dei uma risadinha. Claro que eu adoraria conhecê-la também.
— Vamos. Seu voo pra Louisiana é só amanhã…
— Tá bom. Qual o nome dela?
— Maxine, ela odeia. Chame ela de Max.
Pelo resto do percurso, ele acabou me contando mais algumas coisas sobre sua família e me relembrando de outras; tipo o fato de sua mãe ter engravidado aos dezoito anos enquanto ainda era uma hippie que dançava descalça em festivais e fritava o cérebro com LSD, e agora ela tinha uma nova família e levava uma vida totalmente diferente. “Às vezes penso que talvez tenha sido melhor assim”, foi o que ele comentou, “talvez ela tenha encontrado a estabilidade que eu tô buscando agora”.
me equipava de cada informação como um colete a prova de balas.
Eu aproveitei para perguntar sobre Oakwood, porque não tinha ido até lá depois que anunciaram as obras. Ele me disse que as casas estavam cheias de faixas de restrição e alertas, como se fosse a área mais perigosa do mundo, com animais venenosos e risco de enchentes. O que era estranho agora, porque o lugar tinha ganhado outro significado. Aliás, havia um significado diferente para cada um – para Jenna, a conexão sobrenatural; para , as paisagens para seus desenhos; para Sadie ou PJ, um fim de mundo, como também era para a maioria das pessoas. Para mim, um apego histórico.
E eu não quis me despedir. Uma pessoa dramática que nem eu não tinha estrutura nenhuma para despedidas. Pelo menos na minha memória aquela praia e suas ruínas continuariam vivas. E eu tinha um souvenir especial agora que nunca me deixaria esquecer.
Chegando no bairro onde dona Genevieve morava, já me senti um pouco mais aliviada, afinal, estava cansada de dirigir. Lá era super arborizado e tranquilo, raridade na região. Antigo também, o que de cara me empolgou – fiquei observando as casinhas velhas e compactas, minimalistas, tão diferentes das de Louisiana, que costumavam ter grandes varandas, quintais, cores vibrantes e uma mistura de estilos.
— É ali à direita, a cerca cheia de plantas.
Estacionei a caminhonete na rua, bem em frente. Na traseira da Chevy, busquei as malas de e deixei as minhas lá. Ele carregou duas com o braço livre, e eu, todo o resto feito um burro de carga.
Havia plantas para todo lado; vasos na frente da casa, a cerca cheia de gavinhas e a fachada quase toda coberta por heras e trepadeiras. Num mastro afixado na parede, uma bandeira dos Estados Unidos. Enquanto passávamos por um caminho de pedras em direção à porta, pude ouvi-la se destrancar por dentro. Então, uma mulher de uns sessenta anos apareceu ali fora, usando um vestido preto de bolinhas brancas e um sorriso que lhe rasgava as bochechas.
! — sua avó espremeu os olhos. O dia estava muito claro. — O que aconteceu com esse braço, filho?
— Oi, vó Genny. Nada não, caí de bike.
Tsc. Tentando voar sem sair do chão — ela colocou as duas mãos na cintura fina, apesar do quadril largo. Tinha braços rechonchudos que lembravam os da minha avó também. — Como é que pode… Vem cá me dar um beijo.
Os dois deram um abraço apertado que durou vários minutos. Até eu quis ser abraçada pela vó Genny.
— Quem é essa? — ela perguntou quando me viu por cima do ombro dele.
estendeu o braço livre e apontou para mim:
. Achei ela fugindo da polícia no campus e trouxe pra cá.
A mulher franziu o cenho e arregalou os olhos, em completo choque.
— É mentira — esclareci antes que ele aumentasse ainda mais aquela história, porque era bem possível.
— Liga não, .
Entramos na sala de estar, do chão ao teto revestida em madeira. Havia estantes de livros em quase todas as paredes, uma delas com uma coleção de canecas de cerâmica lotando as prateleiras.
— Deixa eu saber de uma coisa… — ela continuou. — Você já tá acostumada com a chatura do há quanto tempo?
Eu e , falando ao mesmo tempo, demos uma resposta distinta um do outro:
— … Perdi as contas dos meses.
— Eu falei que achei ela ontem no campus, não falei?
Por que ele tava insistindo naquela história?
Ah.
Segurei um risinho. Aquele foi o jeito da avó de perguntar há quanto tempo estávamos… juntos?
— Desculpe por aparecer assim do nada — me expliquei, tentando quebrar o gelo pra ele. — não podia dirigir e ficou sem ninguém pra dar carona hoje.
— Sem desculpas, viu? Eu tô achando ótimo que você apareceu. Mas que moça bonita… — ela cochichou para o neto como se eu não pudesse ouvir, enquanto iam adentrando a casa. — Olha só. Sorriso bonito pra daná.
— É mesmo? Nunca reparei. Deixa eu ver… — ele virou o rosto para mim e me analisou de cima a baixo. Até tentou manter a atuação, mas mandei um dedo do meio escondido que em um segundo o fez quebrar a pose com uma gargalhada.
Assim que ouvi o barulho de patinhas batendo no assoalho, olhei para a porta da cozinha – de lá veio Lassie nos cumprimentar com o rabinho abanando. Por um momento, ela ficou em dúvida se vinha até mim, uma pessoa nova, ou . Mas consegui sua atenção primeiro quando larguei as malas no chão e agachei para recebê-la.
De imediato, ativei minha vozinha para falar com animais:
— Oi, grandona! Como você é linda… Ia adorar conhecer Fozzie e Gonzo. Aliás, o Gonzo não, ele é meio bravo. Ah, que coisa fofa você é, velhota.
Lassie balançou o rabo curto e deu umas lambidas no meu braço. Em seguida, se jogou no chão de barriga para cima, o que fez todo mundo rir.
— Eu falei que ela era carente — se agachou para afagá-la também, e eu me levantei. — Não é, bobona?
Aqueles dois entraram no próprio mundo e foi a coisa mais adorável de se ver. Ele fazia uma voz fininha quando falava com Lassie, que tinha os olhos brilhando com doçura, claramente acostumada a ser paparicada por ele.
Ao meu lado, Genny aproveitou para contar toda a história da Rottweiler, que eu já sabia mais ou menos. havia me contado outras vezes, e numa delas foi depois da festa Céu e Inferno, quando passei a noite em seu quarto da república pela primeira vez. Genny também citou todos os recentes problemas de saúde de Lassie, mas nada que a afetasse tanto assim até hoje, porque era tratada da marioria. Sua velhice estava sendo tranquila.
— Bora lá pra cima? — me chamou.
Seguimos para o segundo andar da casa; sua avó me ajudando a carregar as coisas e Lassie em nosso encalço. Depois de ajeitarmos tudo, Genny nos deixou à vontade no quarto e desceu com a cadela, e a primeira coisa que fez foi trocar seus tênis e meias por um par de chinelos.
— Eu não acredito que tô no seu quarto de infância.
Eu estava bem no centro do cômodo, girando meu pescoço para todos os lados. Tinha um monte de bonequinhos do He-Man, pilhas de CDs, vinis e gibis; na parede uma composição de seus desenhos, a maioria de paisagens urbanas. Fiquei pensando se ele só tinha começado com suas paisagens naturais depois da Oyster, e era evidente que seus desenhos atuais carregavam muito mais técnica, talvez até mais sentimento.
Logo ao lado, os pôsteres mais icônicos e os mais vergonhosos. Tinha um do filme Tubarão, do Spielberg, e outros em volta de uns surfistas genéricos em ondas radicais, que ele com certeza achava o máximo aos treze anos. Também tinha um da capa de Nevermind do Nirvana, aquele com um bebê pelado dentro da piscina. A água e seus diferentes tons azuis predominavam vários cantos daquelas paredes.
Um pôster mais escuro me chocou, do filme A Hora do Pesadelo, que de imediato me fez rir:
— Entendi agora por que você tava com tanto ódio do DeWolff naquela festa que ele tava vestido de Freddy Krueger.
não falou nada, só me mandou o dedo do meio.
A cama estava forrada com um lençol verde-escuro e xadrez, e o travesseiro, com uma fronha das Tartarugas Ninja.
— Ui, foi aqui que você trouxe sua primeira namoradinha? — perguntei enquanto passava os dedos pelo colchão. E pela cara que ele fez, eu sabia que sua vontade era me mandar pra casa do caralho.
— Calar a boca você não quer, né?
Enquanto eu ria, me joguei de bunda no colchão, então deixei o corpo cair de lado e deitei a cabeça no travesseiro, por sinal, fino como uma folha de papel. Previsível. Fui observando cada detalhe da minha nova vista – a escrivaninha com um computador, um abajur com o fio embolado, mais um bonequinho –, tudo para achar outra coisa que eu pudesse implicar. Foi quando eu vi, na lateral do armário, umas letrinhas gravadas na madeira.
— E aquilo ali? O que é?
— Aquilo? — ele seguiu meu olhar. — Coisa antiga, de mais de dez anos atrás.
— Que coisa?
— Curiosa.
Me levantei e o ultrapassei para ver mais de perto. Eram três nomes e seus respectivos telefones, numa caligrafia torta de criança. — “Connor, Tobby, JEFFFFF” — li em voz alta exatamente como estavam escritos. — Esse Connor é o mesmo lá da Oyster?
— Ah, você se lembra dele, não é? Ele mesmo. Somos amigos desde essa época.
— E os outros? O que aconteceu com o JEFFFFF?
Ele riu. — Éramos todos um grupo de amigos, coisa de quando eu tinha a idade da Max. Eles vinham muito pra cá depois da aula, porque a escola que a gente estudou fica a dois quarteirões daqui.
Aimeudeus, que fofos. Cadê eles? Você mantém contato?
— Ah, nos afatasmos um pouco depois da faculdade, infelizmente. Só continuei mais próximo do Connor. O Tobby me escreve umas bobajadas por e-mail de vez em quando.
— Entendi… — continuei circulando pelo quarto. Puxei um CD da pilha que quase a fez cair. — E esse CD aqui do New Kids From The Block? Pensei que eu e sua irmã que gostássemos de boybands ruins.
— Porra, já vi que não vou ter sossego nenhum hoje…
A manhã passou rápido, porque tinha tantas coisas para explorar. Minha curiosidade era interminável, minha vontade de encher o saco também.
Na hora do almoço, mãe de chegou lá para deixar Max, que ia passar suas férias de verão na casa. A mulher era alta, lindíssima, usava roupas de yoga e tinha um rabo de cavalo alto no topo da cabeleira loira. Max era uma versão dela em miniatura; nem se parecia tanto, no máximo o mesmo sorrisinho esperto. Tive poucos minutos com ela, que estava apressada para resolver pepinos do trabalho. Preso em sua cintura havia um Motorola que ficava tocando sem parar. “São meus clientes”, explicou, quando também contou que era uma advogada trabalhista. E foi embora tão rápido quanto apareceu – parecia um dia comum para ela, cheio de demandas.
Max tinha grandes olhos castanhos, bochechas sardentas e sobrancelhas grossas que delineavam seu olhar curioso. Conhecer a criança de onze anos foi o ápice do meu dia. Quietinha no início, ela se soltou em pouco tempo, bastou que eu puxasse assunto primeiro.
Depois de almoçarmos juntos, Genny mal serviu o pudim na mesa e a menina saiu marchando pela sala, porque seus tênis piscavam luzinhas coloridas toda vez que ela batia os pés no chão. Em seguida, abriu as portas de um armário e de lá tirou um aparelhinho eletrônico que ela trouxe até a mesa.
— Quer ver meu Tamagotchi?
— Ah, você tem um? Deixa eu ver.
Max queria me mostrar todas as coisas. Desde Barbies que ela tinha guardadas no quarto até um machucado embaixo de um band-aid em seu cotovelo. Durante o almoço, ela aproveitou para contar todo o seu dia-a-dia na quinta série e os dramas pré-adolescentes das amigas, além dos podres de , é claro.
Mas o ponto alto estava sendo agora, quando ela resolveu me apresentar seu bichinho virtual como se fosse um filho:
— Ele tem dois meses e… oito dias. Uma vez eu quase deixei ele morrer, mas não foi culpa minha.
riu e me explicou:
— Não desgrudou desse bicho na sala e a professora mandou uma advertência.
— Ela é uma jamanta. Fica falando a mesma coisa sempre, “guarde este aparelho eletrônico, mocinha” — Max imitou a voz da professora, e ia continuar, mas levou uma repreendida básica de sua avó. — Fala sério, eu detesto que me chamem de mocinha.
— Então você respondeu ela.
Claro que respondi.
Era engraçado como ela sempre frisava alguma palavra, como se precisasse mostrar para todo mundo como seus argumentos eram óbvios. Para ela, éramos apenas iniciantes na selva que era o seu ensino fundamental.
— E você? — Max encarou o irmão. — Quebrou o braço por quê, espertalhão?
— … Caí de bicicleta.
— Nossa, até hoje você cai de bicicleta? Que mico.
— É, eu tô precisando das suas rodinhas emprestado.
— Eu já ando sem rodinhas faz tempo, meu filho. Deixa eu ver seu gesso?
Ele ergueu o braço imobilizado e Max até largou seu Tamagotchi para ver mais de perto. Ela girava a cabeça para ler cada recado, até dar uma risada estridente quando encontrou o de Jenna.
— Quem escreveu isso?!
— Uma amiga.
— Genial. Foi você? — ela me olhou.
— Não, essa daí nem quis escrever nada pra mim.
— Eu também não quero — ela levantou os ombros, tentando provocá-lo. Eu ria de tudo. — Coisa brega isso.
— Vai… catar coquinho, Max.
— Tive uma ideia, mas eu não queria escrever, queria desenhar…
— Então desenha.
— Acontece que eu não sei desenhar que nem você, e também não sei desenhar a Sailor Moon.
— Nem eu. Pede pra , ela é boa com personagens.
Os dois ficaram olhando para mim, então não tive muita escolha. Max buscou um punhado de canetinhas e, no gesso de , desenhei a Sailor Moon. Max ficou encantada. Me pediu para desenhar todas as outras, e assim, aos poucos, o branco do gesso foi preenchido por lindas guerreiras mágicas de anime.
Com certeza tudo que ele queria.
implicava, mas só fingia, porque aquele ar felizinho estava sempre ali. Sua ternura não era mais um segredo bem guardado, e eu amava isso. Ele tinha a paciência de um monge do Himalaia enquanto esperava meus desenhos se completarem. Estava com o queixo apoiado na palma da mão livre, e eu sabia como ele podia manter o sorrisinho tranquilo no rosto e a mente perdida nas próprias ideias por tempo indeterminado. Contanto que sua irmãzinha estivesse se divertindo.
Àquele ponto, Genny estava distraída demais enquanto procurava alguma coisa nas gavetas da estante da sala. Foi ela quem quebrou o clima quando se aproximou da mesa outra vez. Com óculos de armação pontuda e um charme malicioso, de repente ela parecia uma diva dos anos cinquenta, e trouxe consigo um grande álbum nas mãos. Então, sentou-se entre a gente nas cadeiras e abriu a primeira página.
— Agora ela vai te contar a história de superação de cada parente da família — me avisou. Ele se arrastou para o outro lado da mesa e ficou largado na cadeira.
— Ai, que tosco isso…
— Olha o respeito, Maxine — Genny cuidadosamente se virou mais para o meu lado. — Aqui, , acho que você vai gostar. O vestido daquele desenho de lutinha com as iguanas mutantes.
Max estalou a língua.
— Que iguana o quê, vó. Tartarugas.
Eu já estava rindo. A foto que ela apontou tinha e os amigos fantasiados de Tartarugas Ninja para o Halloween, na porta daquela mesma casa onde eu estava; todos com uns dez anos de idade e fazendo poses de combate. As fantasias pareciam ter sido confeccionadas em casa – o tecido verde para cobrir o corpo, o casco feito de papelão nas costas, as máscaras coloridas nos olhos. A de era roxa, o que fazia dele o Donatello do grupo, claro – o que vivia grudado no computador, adorava gadgets e tudo que era high-tech.
— E essa aqui, que graça? — a voz aguda de Genny me chamou a atenção. — Ele no zoológico com os elefantes.
Vários retratos deste mesmo dia estampavam duas páginas inteiras. A mãe dele, mais nova do que eu na foto, o carregava no colo enquanto apontava para os animais atrás do cercado. Genny também aparecia rindo numa em que estava chorando.
— Coitadinho, o que aconteceu aqui? — perguntei.
— Um macaco tinha acabado de roubar um biscoito da mão dele.
Max riu, então se debruçou sobre o álbum para ver. Ela quem virou a página, e dessa vez vimos um monte de parentes naquela casa reunidos para o Natal.
— Olha, eu já existia aqui — ela apontou para o bebê recém-nascido no colo de sua mãe. Seu dedo percorreu por outras fotos, a unha curta com o esmalte descascando. — fazendo bagunça com Lassie… ganhando um skate… ganhando um videogame… O neto preferido.
— Pra quem ganhou a casa da Barbie ano passado, não sei se você fica muito atrás.
Max fez uma careta e mostrou a língua para ele.
— Olha o tio Ed de Papai Noel! — ela apontou para outra foto. — E essa barriga de almofada, que ridículo. Saudade dele.
— Saudade também. Olha o bigodão grisalho que ele deixou crescer.
Parecia um tio muito querido, mas pela minha cara de interrogação, Genny logo tratou de explicar:
— Ed era meu filho mais velho, morreu faz cinco anos. Ele adorava os meninos.
— Senta que lá vem história… — forçou um bocejo.
— Ele sempre teve um espírito muito empreendedor, sabe, ? Construiu do zero uma rede de restaurantes muito bem-sucedida lá em Boston, não sei se você conhece. O Ed's Pasta Palace, já ouviu falar?
— Ah, não conheço, mas eu sou de Louisiana. Os jecas lá do sul gostam mais de churrasco do que macarrão.
Max e Genny deram risada. já estava acostumado com minhas piadinhas autodepreciativas.
Sua avó continuou:
— Ed foi o paradigma máximo de sucesso financeiro nessa família… — ela realmente botava uma pitada de drama em cada fala. — Sempre foi muito esforçado, desde pequeno. Era impressionante como ele nunca dependeu de ninguém pra conquistar o que queria. Enfrentava cada desafio de cabeça erguida, cuidava de tudo sozinho, não aceitava ajuda de qualquer um e alcançou estabilidade, porque sabia exatamente em quem confiar. Era um homem de verdade.
Eu só queria saber como ele tinha morrido, mas achei indelicado perguntar. Ainda bem que tinha uma criança sem filtro na sala.
— E ele morreu de quê, mesmo? Infarto?
— Aneurisma. Ele estava na cozinha quando aconteceu — Genny lamentou, as mãos trêmulas de repente, apesar da alegria em exaltar o primogênito. Detalhou toda a morte do cara. Velhos tinham essa mania de tocar em assuntos pesados como se fossem conversinhas casuais. — Mas ele deixou o seu legado. E como deixou. E ao contrário dos hippies da época, que sempre precisaram de ajuda por aí — ela olhou para os netos por cima do óculos —, o tio Ed nunca se curvou a ninguém.
— Começou… — arrastou a voz. — Você não consegue, né? Sempre que fala dele, tem que falar da minha mãe.
— Ah, ela sempre achou que o sucesso do seu tio fosse uma grande bobagem.
Ele imediatamente revirou os olhos. Max tirou seu Tamagotchi do bolso e começou a apertar os botões. Como se já tivessem vivido aquilo pela milionésima vez, os dois só esperaram até que a avó terminasse o desabafo.
— Tanto é verdade que eu sempre disse pra ela parar de se meter em causas sociais e pensar em como podia te sustentar — ela fez um gesto com os dedos como de quem conta grana. — E foi o exatamente que ela fez. Tá bem de vida agora, não é? Pois então.
O remorso que Genny colocava em cada palavra foi como uma bala de canhão no colo deles. A família devia ser cheia de barracos, e ela tinha cara de quem tomava lados.
— Mas todos nós sabemos que o sucesso é resultado de muito esforço, determinação, resiliência… — Genny procurou pelo único par de olhos que ainda prestava atenção nela: o meu. — Não é, ?
— Nem vem tentar puxar ela pro seu lado — se levantou na mesma hora. — Já deu de palestra motivacional por hoje, né, velha? Vem, Max, vamos lá pra fora brincar com a Lassie — ele deu a volta pela mesa e cutucou o braço dela, depois o meu quando passou por mim.
Enquanto a gente se afastava, sob olhares tortos de Genny, só consegui reparar no quanto realmente tinha ficado tenso. Os ombros rígidos, a mão me puxando com mais força, os dedos contraídos entre os meus. O caminho até o quintal da casa foi praticamente uma rota de fuga.
Depois que ele fechou a porta de correr, nos sentamos na escadinha da varanda que dava para a grama; Max um degrau acima, bem atrás da gente. soltou todo o ar que tinha prendido até agora, e achei fofo quando sua irmã pegou três mechas do cabelo dele e começou a fazer uma trancinha.
— Relaxa — empurrei de leve meus joelhos nos dele. — Não leva isso tão a sério.
— Não tô levando.
Ele nem me olhava. Parecia que tentava conter uma tempestade de emoções. Fiquei me perguntando se esse era seu estado crônico agora, considerando os últimos dias.
— Tá, sim. Você só tem uma vovó conservadora e intrigueira, grandes coisas. Deixa isso pra lá.
não deixava nada para lá. Não cedia à pressão. Nada mais visível do que quando ele usava todo seu esforço mental para ignorar o que estava acontecendo ao seu redor. Ele tinha essa aversão a conflitos que era muito irritante pro meu gosto, e até tentava se abrir às vezes, mas quando esses sentimentos vinham de uma vez, tudo em seu corpo parecia suprimi-los com uma força silenciosa.
— Eu sei que essas coisas mexem com você — continuei. — Não precisa falar sobre isso se não quiser, ok? E também não precisa encher a cabeça agora com as aulas de sucesso empresarial do seu tio Ed.
— Fala sério — Max comentou. Quando vi, o cabelo de já tinha umas seis trancinhas aleatórias que pulavam de sua raiz. — Toda vez a vovó pinta o tio Ed como o Tio Patinhas, mas ele nem era tão rico assim. De Natal ele só me dava chocolate vencido. Argh.
Uma risada que escapou dele de repente irrompeu no ar, daquelas que fazem a barriga se contrair. se virou para trás e olhou para a irmã com gratidão nos olhos, e pela primeira vez parecia mais relaxado.
— Você é tão idiota, Maxine…
— Idiota é você.
— Mas se você não fosse tão idiota, eu nem ia gostar tanto assim de você, pirralha.
Ela sorriu sem graça, mas felizinha, e largou o cabelo dele. Os dois tinham essa mesma cara de bobos que se achavam espertos.
— Agora que eu terminei de te atender no meu salão, vou brincar de bolinha com a Lassie, tá bom? Tchau.
Max desceu os degraus e saiu correndo pelo jardim. Lassie foi atrás e abanou o rabo assim que viu sua bolinha amarela nas mãos da menina.
— Pega leve com ela, ok? — avisou. — Ela já tá velhinha e tudo mais.
Eu estava com vontade de falar um monte de coisas. Queria que ele soubesse que eu confiava nele, que estava ao seu lado, mesmo que a distância pudesse se tornar maior. Então assim que ficamos a sós, foi minha hora de soltar o verbo.
— Eu tô te vendo com outros olhos agora, sabia? — comecei, de imediato tendo sua atenção. — É diferente estar aqui e realmente testemunhar as coisas que você me contou, ver de onde você veio.
— É… Desculpa por essa parada toda da minha avó.
— Eu não ligo. Na verdade, acho que você pode tá pirando nessa coisa de se tornar bem-sucedido. Relaxa, tá bom? Eu sei que você não tá caindo cem por cento no papo dela, mas se parar pra pensar, é um tipo de cobrança indireta que pesa demais. Pesou na sua mãe, não foi?
— Muito. Até hoje ela sai fora desse assunto. Por isso acho tão injusto quando minha avó vem com essa conversa.
— Pois é. Mesmo se a gente tenta abstrair, o que a família espera de nós é muito forte. Sua avó deve tá super orgulhosa que você vai trabalhar na, uau, Microsoft, mas ela também não vai cansar de te perguntar quando você vai virar gerente, e depois quando vai virar coordenador, e depois sócio-diretor… e depois ter o próprio negócio.
— Porra, isso é a cara dela. Inclusive, eu nem contei que vou ficar só durante o período de experiência. Não contei pra ninguém daqui de casa.
— Não se sinta mal, eles não precisam saber. Literalmente ninguém mais vai viver sua vida por você, então que se dane, são decisões só suas.
— Mas… não é só isso que me preocupa, tá ligada? Tem a gente, . E eu sei que tô sendo contrafactual agora, mas… e se eu odiar o trampo? E se eu curtir… e querer ficar mais? — sua voz foi ficando mais difícil de sair, porque ele foi travando mandíbula à medida que falava. Eu esperava que estivesse lutando para finalmente sair daquele labirinto de hesitações. — Às vezes sinto que tô fazendo a coisa certa, às vezes sinto que tô numa ilusão do caralho, achando que tá tudo sob controle. Tá agora, mas tenho muito medo de não estar depois, e então te decepcionar… porque eu ainda não conheço a pessoa que vou me tornar depois de três meses em Seattle.
— Nem eu, … e quer saber de uma coisa? Se a gente não der certo… o mundo não vai acabar. Para de achar que você tá num tabuleiro de xadrez e precisa ganhar o jogo. Só aproveita essa oportunidade, porque como diria meu avô, “cavalo encilhado num passa duas vêiz” — imitei a voz do velho e riu do meu sotaque, como sempre. — O que a gente viveu até agora foi real, foi… a melhor coisa que me aconteceu desde que eu vim pra Nova York e… hoje eu tô feliz o suficiente só por ter te conhecido e vivido isso com você. E pronto, o futuro não vai me dizer como me sentir agora. Foda-se, valeu a pena.
Ficamos nos olhando por um tempo.
Eu sabia que a dor da separação era real, mas não queria me entregar a ela completamente. Eu queria amar e ser amada, mas também aceitei a dor que vinha com isso. Não como um fardo insuportável, mas como uma experiência que também moldaria quem eu seria dali em diante.
— Só não faz muita hora extra, tá? — apoiei minha cabeça no ombro dele e respirei fundo.
Que ódio. Fazia tão bem chutar o balde. Por que eu ainda só tinha vontade de chorar o tempo todo?
— Você não quer transformar esse “foda-se” em um “me beija agora”, não, ?
Afastei minha cabeça enquanto eu ria, e ia responder, mas pegou meu rosto e me deu um beijo inesperado. Meu coração deu um pulinho na hora, e sentir a maciez e a umidade de seus lábios fez evaporar meus pensamentos. Foi como se o quintal, a casa, o mundo, tudo desaparecesse, deixando só nós dois ali, nos beijando com a vagareza de quem queria guardar aqueles toques na memória.
Senti o calor dele atravessar meu corpo. Parecia algo místico, mas não era. Era presença.
Algo que eu não teria tão cedo de novo.

Porque sete meses se passaram, não três.


Capítulo 31 – Ausência

Meu mundo tinha virado de cabeça para baixo.
Cada dia uma torrente de acontecimentos. Cada semana se desdobrando como se fosse um capítulo à parte. Cada mês com as proporções de um ano inteiro.
Depois da universidade, o que restou foi atravessar um túnel de incertezas, e sem luz no fim – um teste fodido para meus limites psicológicos. Se eu quisesse enxergar alguma luz e me agarrar a ela, teria que criá-la da minha própria imaginação. A vida real não oferecia muitas perspectivas, e eu ainda estava aprendendo a caminhar no escuro.
Para início de conversa, toda vez que eu completava quatro horas ininterruptas de trabalho, a vontade era de jogar o computador pela janela. A dor latejava nos músculos e pulsava nos olhos quando eu via que ainda restavam mais quatro horas daquela tortura. Parecia brincadeira.
! — Bradley, o editor-chefe, me chamou. Era a zilhonésima vez que eu era solicitada só naquele turno. — Precisamos daquele layout da nova capa até o final do dia. O diretor de arte tá pressionando pra fecharmos isso logo. Consegue dar um gás aí pra nós?
— O cliente esticou o prazo — respondi, pensando que ele já deveria saber disso. Mas era o Bradley, ele sempre ia fingir que não, porque uma coisa era certa: se entregasse uma demanda adiantada, receberia elogios do diretor. E se acumulasse elogios o suficiente, talvez até um aumento no fim do ano iria direto para o seu bolso, mesmo que quem executasse as tarefas fosse eu. — Tenho até o fim dessa semana pra entregar, ok? Relaxa.
— Não tem nem uns rascunhos pra gente mostrar hoje na reunião?
Ah, a obsessão em mostrar serviço, como se já não fôssemos monitorados o suficiente.
Antes que eu respondesse, meus colegas o interromperam, parados à porta da nossa sala:
— Sossega, Bradley, é meio-dia. Vamos descer pra almoçar agora. Vem, .
Tecnicamente, a culpa não era dele. Bradley era só mais um jogador. A culpa era do jogo.
O departamento editorial da revista onde eu estava trabalhando, há mais ou menos seis meses, era um ambiente de pura vigilância, falsidade e competição. Foi fácil sacar tudo isso desde o primeiro dia. Difícil era manter a calma, mas se o que importa são os amigos que fazemos ao longo do caminho, pelo menos eu tinha encontrado os meus – éramos um grupinho de cinco pessoas que compartilhavam as mesmas revoltas.
Eu já estava enjoada da comida do restaurante de sempre, mas não tinha outra opção barata ali perto. Na mesa, entre o som dos talheres nos pratos e nossos risos escandalosos, a fofoca rolava solta.
— Eu não entendo como aquele imbecil do Bradley gosta tanto de usar o cargo dele como uma medalha de honra.
— Nem me fale. Parece um tonto.
— Editor-chefe é o novo CEO desde quando?
— Ele tá se achando o dono da Cosmopolitan, é? Calma, meu querido, desce aqui porque ainda somos a Fiasco Magazine.
Todos riram. Nos bastidores, era assim que a empresa nos fazia sentir como uma família: com deboche e trocadilhos.
— É a regra desse lugar, lembra? Exibir com orgulho seus sacrifícios pra todo mundo ver.
— Pois é. Essa ideia é espalhada aos quatro ventos, de que fazer mais do que o esperado é o único jeito de ganhar reconhecimento…
— Cara, é tipo um culto louco isso aqui. Eu não aguento mais.
— Eu não consigo — desabafei também. — Podem me chamar de preguiçosa, egoísta, o que for, mas eu não consigo fazer o trabalho ocupar um pódio tão alto na minha vida.
A verdade era que minha casca estava engrossando. Cada dia mais. Não me atraía nem um pouco participar daquela corrida incessante em direção ao sucesso. Não era justa. Não valia a pena. Só me fazia mal. Minha remuneração era irrisória em comparação ao valor que meu trabalho gerava para a empresa.
Dia após dia, eu notava como esse ambiente moldava as pessoas – elas seguiam um roteiro quase mecânico para falar em reuniões, dar bom dia e sorrisinhos cretinos, e, em alguns casos, ficavam completamente autocentradas em suas ambições profissionais, nem aí para quem estivesse em seu caminho.
Não era o meu estilo de vida, e em pouco tempo isso ficou mais do que estabelecido.
— Agora, voltando ao Bradley, vamos combinar… — um deles prosseguiu, e todo mundo sabia o que vinha a seguir. — O que ele tem de chato, tem de gostoso.
— Vocês viram ele ontem de regatinha indo pra academia depois do trampo? Nossa…
— Menina, eu vi. Que delícia, meu Senhor… Tenha piedade de nós.
— Putz, não posso nem dizer o que eu tô pensando…
— Eu digo. Queria ver a bunda dele.
— A Suellen é uma sortuda mesmo. Ela me contou que ele pediu o número dela, vocês acreditam? Seria o novo casalzinho da firma?
— Ele dá em cima de todo mundo. Deu em cima de mim mês passado e em cima de duas estagiárias na confraternização de fim de ano.
— E vocês, sairiam com ele?
— Mas é óbvio. O cara é chato, mas um gostoso. E alto. Já estamos andando em círculos aqui.
— Ok, agora chega. Vamos voltar a reclamar.
— Ótimo. Tô precisando de um copo d’água depois de pensar na mala desse homem.
— Agora é sério, sabem de uma coisa que eu pensei?
— O quê?
— Seis horas por dia, quatro dias por semana. Este deveria ser o tempo ideal pra felicidade humana, ponto final.
— Duvido que a gente alcance isso, sei lá, nos próximos cinquenta anos.
— Parabéns, fiquei deprimido de novo. Alguém muda de assunto...
— Tá bom. , atualiza a gente, vai. No que deu aquela treta do seu apartamento?
— Que treta? Por que eu não tô sabendo disso?
— A maluca que tava morando com ela vazou do apartamento antes do contrato do aluguel acabar. Pra se casar com o namorado em outra cidade.
— Mas ela vazou sem acertar os meses restantes?
— Ela disse que ia pagar — contei —, mas sumiu do mapa e não enviou dinheiro. Nem pra mim nem pro proprietário. Me deu o número de telefone errado, não responde meus e-mails…
— Caramba, que golpista, hein? E aí?
— Tô desesperada à procura de um novo colega de quarto.
— Até hoje não achou um que presta?
— Chama o Bradley…
Revirei os olhos.
Mas depois dei uma risadinha.
Para falar a verdade, eu odiava falar sobre esse assunto. Meu apartamento estava um caos; primeiro porque os problemas da infiltração tinham voltado, segundo porque Erin deixou sua gata destruir o carpete da sala, terceiro porque descobri que meu colchão estava com uma mola rebelde e agora parecia uma gangorra toda vez que eu me deitava nele.
Seria uma maravilha se esses fossem os únicos problemas. O maior deles era que meu apartamento não parecia um lar. Eu não me sentia confortável nele. Não era o meu lugar, não do jeito que eu esperava. Achei que seria tão simples… Era mais fácil dividir um quarto com duas Sadies do que morar sozinha em Nova York.
No fim do dia, eu estava tão cansada que preferi pedir um táxi do que pegar metrô. Eu guardava esse luxo para dias emergenciais, e este era um deles.
Durante a hora do rush, naquele inverno de fevereiro, as ruas de Manhattan ficavam cheias de pessoas vestidas com casacos pesados e cachecóis. O ar gélido cortava meu rosto como lâminas – eu mal podia ver a hora de me abrigar no quentinho de um carro até minha casa. Assim que avistei o primeiro se aproximando na rua, dei sinal, mas ele parou muito mais à frente.
Quando olhei para o lado, vi outro cara com o braço esticado para o táxi.
Eu ia matar aquele…
Bradley.
— Ei! Esse táxi era meu! — corri até ele, que já estava abrindo a porta traseira.
— Isso mesmo. Era.
— Não. Você já me infernizou demais hoje — entrei em sua frente e me atirei dentro do carro. — É minha vez.
Bradley segurou a porta e ficou me olhando, com ódio. Aos poucos, seu cenho franzido foi se suavizando e ele deu um sorriso de lado. Um sorriso daqueles que deveria me atingir no fundo da alma.
E atingiu.
Àquele ponto, infelizmente eu não estava de fora do clube Putinhas do Bradley.
Ele não falou nada, simplesmente entrou no carro e se sentou bem ao meu lado no banco traseiro. Então, virou o rosto para mim, ainda sorrindo:
— Você mora no Brooklyn, certo? Eu também. Problema resolvido.
Respirei fundo. Acabei dando o resto do meu endereço pro motorista e Bradley deu o dele em seguida. No próximo minuto, jurei para mim mesma repetidas vezes que não trocaria mais nenhuma palavra com ele.
— Acho melhor você se acostumar comigo, temos um trânsito do caralho pela frente — ele abriu mais as pernas e tirou o celular do bolso. — Eu tenho o seu número, ?
— Não, e não é agora que vai ter.
— Você roubou o meu táxi. Quem devia tá puto era eu.
Você roubou meu táxi!
— A culpa é minha se você não olhou pra trás?
Apertei os dentes. Tentei jurar mais algumas vezes. Não ia dar certo.
Eu estava com o rosto virado para a janela, mas cada vez que Bradley falava alguma coisa, mais ele inclinava a cabeça, como se buscasse pelo contato visual.
— Eu sei que você me acha um babaca. Eu te encho o saco no trabalho mesmo, desculpa. Mas só porque você é a única que consegue lidar com a minha hiperatividade insuportável.
Comecei a rir.
Pare de rir, .
— Como assim? — finalmente olhei para ele.
— “Porra, Bradley, assim não dá!” — ele me imitou. — “Preciso de um manual de sobrevivência pra conviver com você nessa porra dessa empresa!”
Ri mais ainda. — Isso é saber lidar com você?
— Claro. Os outros falam por trás.
Aquele sorriso de novo…
— Sabe, ainda tô precisando desse manual — comentei.
— Me passa seu número que eu mando ele pra você.
Por um segundo me peguei pensando se eu passava meu telefone fixo ou meu celular. Por um segundo.
— Você é um cara de pau mesmo.
— Que foi? Tenho o contato de todo mundo do setor, menos o seu, até hoje. E você também tem o de todos, menos o meu. Não percebeu? A gente se evita. Quero quebrar isso logo.
“Óbvio que eu te evito”, foi o que pensei. Um gostoso desse de quase dois metros de altura era bem mais seguro longe de mim. Ainda por cima era meu chefe, e um chefe insuportável, como ele mesmo admitiu. Porra, por que eu deveria explicar isso?
Espera aí.
— Você me evita desde quando? — perguntei, mas ele ficou em silêncio. Deixou no ar aquele charme difícil de ignorar.
— Ok, finalmente chegamos até aqui — ele levantou as palmas das mãos, em sinal de rendição. — Eu já te peguei me olhando algumas vezes, mas você fica tão concentrada no trabalho que nunca me pegou olhando pra você. Acho que a gente tem os mesmos motivos pra se evitar.
Pronto, fui pega.
Eu não tinha mais o que dizer.
Só terminei de me enterrar.
— Que novidade, eu e o escritório inteiro babamos em você. Que novidade, você dá em cima de todo mundo. O que tá acontecendo aqui é só mais uma terça-feira.
Ele adorou quando eu disse que babava nele. Tive certeza disso porque ficou congelado em surpresa desde o momento em que pronunciei aquelas palavras.
— Não esperava que você fosse dar o braço a torcer tão rápido, .
— E meu número, vai pedir de novo quando?
— Tô mais pra te chamar pra subir pro meu apartamento quando a gente descer desse táxi.
— Ainda bem que você disse isso, porque eu não ia te convidar pro meu. Minha cama tá fazendo um barulho horroroso.
Bradley desatou a rir.
E em seu quarto, horas depois, fui ao paraíso algumas vezes.


🙂🙃🙂


Fumar um baseado todo dia antes de dormir já tinha virado minha rotina há uns três meses. Me ajudava com a insônia. Eu ia para a escadinha de incêndio no fundo do prédio, e, ali, entre as estruturas de ferro, a vista aberta para o céu noturno se tornava meu refúgio pessoal.
Eu tinha acabado de desembrulhar as polaroids que Jenna havia me enviado pelo correio; ela e Lori passeando pelo Deserto do Mojave, num parque nacional, felizes da vida. Preguei duas em meu mural: Jenna abraçando uma árvore de Josué e as duas de mãos dadas em frente a um pôr do sol entre as rochas, os sorrisos cansados de quem tinham acabado de explorar a vastidão do deserto.
Para dar espaço às polaroids no meu mural, arranquei outras mais antigas. Uma delas, a foto que Jenna tinha tirado de e eu em Oakwood, e que acabei enfiando no bolso do meu moletom.
Eu estava olhando para ela agora. A vontade era soltar aquela foto e deixá-la cair lá embaixo na neve. As pessoas pisariam sem ver, por vários dias, até que ela ficasse soterrada, e, quando a primavera chegasse e a neve derretesse, a foto já estaria desbotada e amassada o suficiente. Morta.
Me debrucei sobre a grade e estiquei o braço.
Descanse em paz, foto.
Não consegui soltar. Apaguei o beck e voltei para dentro.
Ninguém ia acreditar que eu tinha transado com o Bradley. Entrei em pane depois de tudo, e até agora eu estava repassando as cenas pela minha cabeça, lutando com o fato de que tinha sido diferente – nada de beijos amorosos, piadinhas, nenhuma declaração de afeto. Um tipo diferente de intimidade, e, para completar meu choque, também foi… tão bom…
Tão bom.
Mas também sem sentido nenhum. Um fogo que se acendeu e se apagou. Descobri que até o fogo podia deixar ressacas, porque agora eu era só cinzas e não sabia que porra ia fazer com isso.
… Transar de novo?
Foda-se. Arrastei minhas pantufas pelo carpete velho até a sala. No meio das minhas correspondências, que eu tinha deixado sobre a mesa, havia folhetos sobre a nova banda larga, os pacotes de TV à cabo… e, por fim, um ultimato do proprietário sobre o atraso do aluguel, que eu evitei olhar por exatos três dias. Agora eu tinha certeza que a praga do envelope estava falando comigo.
“Psiu! Assim, numa boa, como você pretende me pagar? Pedindo dinheiro pros seus pais?”
— Amanhã vou resolver isso.
“Relaxa, não quero trazer uma bad trip pra você.”
— Obrigada.
Segui meu caminho e fui deitar com aquela merda na cabeça. E não consegui dormir, apesar de exausta. Ao invés disso, peguei meu laptop e abri meu e-mail. Só a luz branca da tela iluminava minha cara naquele quarto escuro – eu devia estar sinistra, os olhos mais vermelhos que o botão de desligar.
Avancei várias páginas da minha caixa de entrada até chegar em julho, no verão do ano passado.

28/07/2000
De:
75@yahoo.com
Para: popstar_glitter_girl@aol.com
Assunto: Primeira semana, finalmente instalado
Oi,
Te mandei aí umas fotos do Monte Rainier que comentei com vc. Qdo saí do avião e olhei ao redor, lá estava ele… Tenho crtz que vc teria amado tb. Até hj tô como quem chegou na Disney, fico alucinado com essas montanhas pra todo lado.
É uma chuva do caralho todos os dias aqui, mas as pessoas convivem numa boa com ela, eu gosto disso. Mas tb ñ tô acostumado a sair de casa sem olhar pro céu e calcular se preciso do guarda-chuva ou não.
O pessoal daqui é receptivo, a equipe do trabalho é legal, mas vou te falar, qdo o expediente acaba, sinto falta de umas saídas com você e os putos lá no Millard’s, na praia. Aqui a gente tá indo pro bar de um hotel em frente ao prédio do escritório. O ar-condicionado de lá fica no talo e a vibe é meio depressiva, cheio de velhos fumando charuto e executivos estrangeiros. Mas tô curtindo tomar umas no bar e ficar ouvindo as conversas. Fico viajando nos sotaques.
Seattle é um lugar peculiar, meio grunge :) meio cafona :( mas tô tentando me acostumar ainda. Tem pelo menos uma cafeteria em cada esquina, perdi a conta de quantos cafés já experimentei. Tô viciado. Vc vai falar que eu sempre fui, mas acredite, agora é real.
E aí, como vc tá? Manda um update. Uma hora dessas vc deve tá deitando e rolando com seus cachorros em Livingston. Aqui o único drama é o tempo nublado e a falta de erva :/
Me liga hj à noite
Te amo d+ garota popstar


Só para me torturar mais um pouquinho, voltei para a caixa de entrada e abri os e-mails dele de agosto.

04/08/2000
De:
75@yahoo.com
Para: popstar_glitter_girl@aol.com
Assunto: Semana corrida
Sim, Seattle tá OK, mas confesso que sinto falta (às vzs) do barulho da rua aí de NY e (às vzs) de vc.
(Brincadeira)
(É claro que eu tô morrendo de saudade de NY)

15/08/2000
De:
75@yahoo.com
Para: popstar_glitter_girl@aol.com
Assunto: Tomando no cu
Na moral, ando meio sem paciência com essa cidade. Deu p perceber pela minha voz esses dias, né? O trabalho tá foda. No início tava tudo tranquilo, agora parece que a simpatia do RH expirou e os superiores nem fingem mais que se importam, cagam e andam pras nossas ideias, então vc já pode imaginar. Nenhuma 9dade.
E vc, tá curtindo o Brooklyn? Laricou a torta de limão que eu te falei?
Feliz por vc que agora sua colega de quarto respeita sua privacidade hahhahah
E relaxa, já já vão te ligar pra marcar entrevistas. Sua parte vc fez.
Sei que vc tá dormindo agora, já é madrugada aí, então te ligo amanhã.
Saudade da sua risada maluca


Abri um pacote de biscoito recheado e comecei a comer.

24/08/2000
De:
75@yahoo.com
Para: popstar_glitter_girl@aol.com
Assunto: Como foi a entrevista?

Como foi a entrevista ontem? Deu tudo certo? Espero que vc consiga a vaga, e se ñ der, continua procurando, sei que é uma merda humilhante, mas é a vida. Relaxa, uma hora vem. E para de achar que seu portfólio tá ruim.
Queria que vc conhecesse um parque que descobri outro dia. Esqueci o nome agora. Fica na costa de um lago famoso daqui, é onde tenho escapado nos meus dias mais loucos (todos). Construíram esse lugar em volta de uma usina de gás antiga, tem uns pedaços de maquinaria gigantes e umas esculturas estranhas, vc ia adorar. Tenho levado meu sketchbook comigo, mas ainda ñ tenho nenhum desenho pronto.
Sinto sua falta p caralho. Nem acredito que falta mais 2 meses inteiros ainda… porra, parece uma vida.
Me liga na sexta, ñ vou no happy hour essa semana, tô ficando gripado. Prefiro ficar a noite toda ouvindo minha gostosa reclamar da vida no telefone.


Como a vida era engraçada, para não dizer irônica. Fiquei me lembrando de quando li aqueles e-mails meses atrás e meu sentimento tinha sido outro – a busca pelo meu primeiro emprego formal dominava minha cabeça. Enquanto sofria dificuldades de adaptação em Seattle, todas as empresas que eu tentei entrar fechavam as portas bem na minha cara. Enfrentar processos seletivos era um saco, principalmente fazer os testes práticos em tipo, três dias, e ainda exigiam a qualidade do nível de um doutorado.
A espera por uma resposta final jogava minha ansiedade nas alturas. Às vezes demorava mais do que o prazo para enviar um teste. Por mais que eu tentasse ser forte, cada rejeição me fez questionar meu próprio valor. Eu imaginava que, se não conseguisse um bom emprego a tempo, ficaria para trás, porque como qualquer infeliz da minha idade, comecei a fazer o inevitável: me comparei com todas as outras pessoas.
Naquela época, um monstro passou a morar debaixo da minha cama, e ele saía todas as noites só para sussurrar no meu ouvido: “Agradecemos seu interesse, mas infelizmente decidimos seguir com outro candidato...”

06/09/2000
De:
75@yahoo.com
Para: popstar_glitter_girl@aol.com
Assunto: Desabafo
É, continua a msm coisa. Meus chefes têm um plano muito claro, que é transformar nossa rotina num inferninho. Faz a galera se sentir mal e incompetente, msm ñ sendo o caso. Doideira. As reuniões são longas demais, cada e-mail uma granada, as demandas tão urgentes que todos tratam como se fosse normal apagar uma caralhada de incêndios por dia. Aí no fim vc vê que nem era tão urgente assim, dava p ter trabalhado o tempo todo sem uma tora de 20 metros pressionada no rabo, e nng teria morrido ou perdido um contrato milionário. Foda. Mas é a vida. É como vc disse, ñ tem a ver com meu trabalho, e sim o quanto ele rende a quem tá assinando o meu cheque. Mas ñ se preocupe, ok? Tô focado, tô bem.
Mal posso esperar p trocar ideia c vc pessoalmente.
Tbm te amo
Te ligo + tarde


já tinha seu próprio celular em meados setembro; eu ainda estava juntando meus centavos para comprar um. As ligações que fazíamos eram o ápice dos meus dias. Algumas rápidas durante a semana, outras mais longas aos sábados – em todo caso, era o momento de escapar para nosso mundinho à parte. Eu atendia com o coração saltando de expectativa, e ouvir a voz dele era como receber um abraço à distância. O problema era quando a gente desligava e éramos forçados a voltar para a realidade. Eu sempre me sentia mais solitária do que antes, se é que isso era possível.
A única coisa que me consolava era saber que aquela situação era temporária.

11/09/2000
De:
75@yahoo.com
Para: popstar_glitter_girl@aol.com
Assunto: Manda uma foto to morrendo de sdd
Por favor
Por favor
Por favor
Por favor
Por favor
Por favor
Por favor
Por favor
Quantos vc precisa?

12/09/2000
De:
75@yahoo.com
Para: popstar_glitter_girl@aol.com
Assunto: (sem assunto)⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

Emoji Art

⡴⠒⣄⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀saudade da minha gostosa  ⣼⠉⠳⡆⠀
⣇⠰⠉⢙⡄⠀⠀⣴⠖⢦⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠘⣆⠁⠙⡆
⠘⡇⢠⠞⠉⠙⣾⠃⢀⡼⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⢀⣼⡀⠄⢷⣄⣀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠰⠒⠲⡄⠀⣏⣆⣀⡍
⠀⢠⡏⠀⡤⠒⠃⠀⡜⠀⠀⠀⠀⠀⢀⣴⠾⠛⡁⠀⠀⢀⣈⡉⠙⠳⣤⡀⠀⠀⠀⠘⣆⠀⣇⡼⢋⠀⠀⢱
⠀⠘⣇⠀⠀⠀⠀⠀⡇⠀⠀⠀⠀⡴⢋⡣⠊⡩⠋⠀⠀⠀⠣⡉⠲⣄⠀⠙⢆⠀⠀⠀⣸⠀⢉⠀⢀⠿⠀⢸
⠀⠀⠸⡄⠀⠈⢳⣄⡇⠀⠀⢀⡞⠀⠈⠀⢀⣴⣾⣿⣿⣿⣿⣦⡀⠀⠀⠀⠈⢧⠀⠀⢳⣰⠁⠀⠀⠀⣠⠃
⠀⠀⠀⠘⢄⣀⣸⠃⠀⠀⠀⡸⠀⠀⠀⢠⣿⣿⣿⣿⣿⣿⣿⣿⣿⣆⠀⠀⠀⠈⣇⠀⠀⠙⢄⣀⠤⠚⠁⠀
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⡇⠀⠀⢠⣿⣿⣿⣿⣿⣿⣿⣿⣿⣿⣿⡄⠀⠀⠀⢹⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⡀⠀⠀⣿⣿⣿⣿⣿⣿⣿⣿⣿⣿⣿⣿⣿⡀⠀⠀⢘⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⡇⠀⢰⣿⣿⣿⡿⠛⠁⠀⠉⠛⢿⣿⣿⣿⣧⠀⠀⣼⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⢠⡀⣸⣿⣿⠟⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⢻⣿⣿⣿⡀⢀⠇⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠘⡇⠹⠿⠋⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠙⢿⡿⠁⡏⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠻⣤⣞⠁⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⢢⣀⣠⠇⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠙⠲⢤⣀⣀⠀⢀⣀⣀⠤⠒⠉⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
    

No final daquele segundo mês, a saudade que eu também sentia era como um machucado que não cicatrizava nunca, mas eu tentava não perder a calma. Porra, Ross e Rachel estão há muito mais tempo separados do que isso. Mas a terapia de reler aqueles e-mails agora me trouxe uma clareza que eu não tive na época: eu já tinha transformado a saudade em pura raiva.
Raiva da vida por ter tirado de mim, raiva porque tudo que eu queria era ficar com ele sem nenhuma pausa, e raiva porque a dor da falta dele estava lá o tempo todo, não importava o que eu fizesse. Raiva, raiva, raiva. Ela havia se tornado minha companheira constante.
Mas talvez fosse só um disfarce que eu tinha encontrado para esconder uma verdade que eu preferia não encarar de frente – mesmo fisicamente distante, estava sempre nos espaços vazios do meu apartamento, nos bancos desocupados dos bares que eu frequentava, nas filas das cafeterias, nos corredores das locadoras, nas caminhonetes retrôs que eu via pela rua, nas noites em que só um baseado nos ensurdeceria do caos de Nova York, ou em algum lugar tranquilo onde só ele veria a beleza de uma paisagem comum.
Mesmo quando eu tentava encontrar um refúgio de sua falta, estava lá, como se fosse um traço invisível. E continuava lá, nas ligações não atendidas e mensagens não enviadas, nas lembranças que me surgiam nos momentos mais inesperados. E era por isso que eu não conseguia aproveitar de fato a minha própria vida. O meu agora.
Setembro foi quando finalmente consegui um emprego; as coisas começaram a melhorar para mim e a piorar para o lado de . Mas uma barreira emocional já havia se erguido ao meu redor. Lembrei de como era difícil me sentir conectada com a vida dele lá do outro lado. Chegou num ponto em que suas palavras pareciam ecos distantes, e eles ficavam cada vez mais esporádicos.

15/09/2000
De:
75@yahoo.com
Para: popstar_glitter_girl@aol.com
Assunto: PARABÉNS
Eu sabia que vc ia conseguir a vaga, . Ñ te falei? Sua determinação smp foi massa, e agora vendo vc pegar esse trampo me enche de orgulho. Manda ver, mostra p eles do que vc é capaz. Sucesso ! ! !

25/09/2000
De:
75@yahoo.com
Para: popstar_glitter_girl@aol.com
Assunto: Desculpa o sumiço
Eh, foi mal ñ ter te respondido ontem, tava mto corrido. No meu tempo livre eu só tô querendo f1 e existir

01/10/2000
De:
75@yahoo.com
Para: popstar_glitter_girl@aol.com
Assunto: Foi mal a ligação perdida
Teve outra vez que te liguei tb, mas vc não retornou, achei que tivesse ocupada…

19/10/2000
De:
75@yahoo.com
Para: popstar_glitter_girl@aol.com
Assunto: A distância tá difícil :/
Ñ preocupa se ñ conseguir falar cmg, esse início é mais movimentado msm. Tá puxado do lado de cá tb, mas eu aguento. Outro dia vi que fiz em 2 dias um serviço de 15. Vou apresentar a ideia pro sistema que te falei na prox semana, então tb tô sem tempo. Tô desenvolvendo pra agilizar a vida do pessoal de operações, pq tá impossível o processo atual. Eles ainda usam aqueles gavetões pra arquivar papéis, preencher solicitações, controlar gastos… essa coisa toda. Pelo menos 50% da produtividade pode aumentar, e vou colocar esses dados todos na minha apresentação. Tá marcada com meus chefes e a equipe de TI. Me deseje sorte !


Enquanto eu me ajustava ao novo emprego, fui apresentada a um monte de pessoas interessantes e diferentes. Alguns colegas logo me convidaram para eventos, happy hours e outras saídas aleatórias. A tentação estava lá, mas eu ainda preferia as noites de sábado reservadas para as chamadas com , no meu próprio canto.
Até que eu não soube mais se era uma questão de preferência ou… rotina.
Num desses dias, ele estava tão cansado que dormiu durante a ligação. E eu tinha acabado de recusar um encontro com o pessoal do trabalho num bar irlandês que eu estava doida para conhecer. Fiquei com a maior cara de tacho. Eu achava que o medo de estar perdendo algo maior estava só começando a crescer, como uma sementinha dentro de mim, mas hoje eu sabia: ele já estava me consumindo há algum tempo.
Outubro chegava ao fim e eu só queria que voltasse. Não pensava em mais nada além disso. Por outro lado, ele parecia simplesmente não pensar – o cérebro estava moído pelo trabalho.

23/10/2000
De:
75@yahoo.com
Para: popstar_glitter_girl@aol.com
Assunto: Basicamente uma colega foi demitida
Hj foi meio louco. Fiquei feliz pq meus chefes autorizaram a levar minha ideia adiante p diretoria. E mal pq demitiram uma mulher da minha equipe 5 dias antes de ela entrar de licença-maternidade. Caralho, ñ sabia nem que uma sacanagem dessas era legalmente possível. Que merda. É uma parada tão bizarra que me deixa puto, e agora vai me fazer assumir mais responsabilidades ainda aqui dentro. Acho que tô ficando maluco. Ñ sei explicar. Desculpa pela pressa.

30/10/2000
De:
75@yahoo.com
Para: popstar_glitter_girl@aol.com
Assunto: Desculpa a demora
Atrasado na resposta, mas obrigado pelo apoio, . Tava precisando ouvir isso, mesmo agora… infelizmente sua msg ñ perdeu o timing, por incrível q pareça. Tem momentos que essa tela na minha frente parece uma barreira fria e mais nada. Ñ sei como tá sendo p vc… Sei que tem mto tempo que não nos falamos pelo tel. Tem o quê, 3 semanas? Ultimamente tudo parece um pouco... sei lá, distante? Talvez sejam os quilômetros, o fuso horário, ou só o jeito como a vida segue msm. A minha é assim, td dia eu pego a Interestadual 90 com vontade de desviar pra saída do aeroporto, mas tenho que me segurar. Já tô acostumado com a vista das montanhas. Chego no trabalho e já tô acostumado com as mesmas pessoas, o msm papo corporativo de merda, o msm café, os mesmos bares e restaurantes, até as mesmas músicas. Fui em shows irados nesses últimos meses, de bandas que smp quis ver tocando ao vivo, e caralho, o último do Chris Cornell foi inesquecível, mas vou te falar… ainda sinto uma sensação estranha, como se algo estivesse errado. Algo que persiste sempre, que eu sei que não tá certo, e por mais que eu tente ignorar, está lá, rondando meus pensamentos…
Acho que vc entende, não é?


Retornar a todos aqueles e-mails era tipo visitar o memorial de um amor perdido. Mais triste que acordar cedo, mais amargo que um beck mofado. Talvez eu não estivesse preparada para reler o próximo, porque sabia que era o último que tínhamos trocado.

02/11/2000
De:
75@yahoo.com
Para: popstar_glitter_girl@aol.com
Assunto: Cansado
Digitando isso com a energia de algm que passou mtas noites sem dormir. Sentado aqui há horas. A última notícia é que a diretoria torceu a cara p inovação que estamos propondo. Msm assim, deram sinal verde p equipe apostar nisso e implementar o novo sistema, mas com algumas condições. Preciso falar com vc amanhã sobre isso, pq preciso tomar algumas decisões difíceis. Tá disponível às 9?


Naquela noite, quando me ligou, eu já tinha minha decisão tomada. Me sentia presa numa esperança que eu tentava alimentar, mas que, no fim das contas, só me trouxe mais saudades e vazios.
Para ele também.
Não aguentava mais perder pequenas coisas que estavam acontecendo na minha vida. A raiva não passava, a impotência me isolava. Fiquei à mercê de como a vida dele se desdobrava, não a minha. partiu ocupando um lugar de prioridade na minha vida, mas quando percebi que não dava mais para esperar por ele indefinidamente, eu quis ter a sensação de não precisar mais disso.
Fazia quatro meses que ele decidiu ficar pela carreira. E quatro meses que retomei o controle do meu próprio caminho.
Comecei a chorar. Não sei por que achei que reler aquelas mensagens me traria alguma paz e sabedoria. Só se fosse a sabedoria de um guru fuleiro.
Entre lágrimas e farelos de biscoito, fechei o laptop querendo sumir do mundo. Mas eu ainda estava tão doida que ele também começou a falar comigo:
“Ei, psiu… Parabéns pela tentativa, mas você tá longe de superar esse cara.”


🙂🙃🙂


Durante a semana, fiquei mais uma vez com Bradley depois do trabalho. De novo não contei para ninguém, porque a última coisa que eu queria era ouvir comentários sobre isso enquanto passava por uma crise interna.
E ela não ia embora por nada.
Tive sonhos recorrentes com , muitas vezes perturbadores; outros tão vívidos e nostálgicos que demoravam a desaparecer da minha mente, e eu continuava vivendo aquilo mesmo depois de acordar.
No sábado, depois de um banho demorado que com certeza aumentaria a infiltração na parede, eu estava com uma toalha enrolada na cabeça quando decidi ligar lá para casa. Sim, eu queria minha mamãe. Havia uma chance muito alta de eu falar que queria voltar a morar em Livingston, mas ainda não sabia o que sairia da minha boca quando ela atendesse.
Sinto muito, ela não tá aqui.
— Mas… é muito importante, Lizzie — eu tentava convencê-la, mas era inútil. — Preciso que você deixe um recado, por favor, não esquece.
É caso de vida ou morte?
— Totalmente.
Dramática. Me conta, o que é? Eu posso te ajudar?
Fiquei pensando no que responder. Eu queria poder pedir ajuda à minha irmã mais velha, mas ela ignorava tudo que não tinha a ver com sua própria vida. Para ela, seu maridinho era a coisa mais importante do universo. Fez trinta anos no final do ano passado e desde então tornou-se a embaixadora da felicidade. Não calava a boca sobre o quão maravilhosa era essa nova fase.
— … Desculpa, acho que não.
Por que não?
— O que você tá fazendo aí na casa dos nossos pais?
Eu moro aqui agora.
— O quê? Por quê, brigou com o Lucas?
Não só briguei, como estou finalizando nosso divórcio.
— O QUÊ?
Ele me traiu com nossa personal trainer. Se quiser, te conto o caso todo. Te ajuda em alguma coisa?
— Por favor, me cure da minha própria existência com essa fofoca.
Lizzie começou a rir e, por mais louco que aquilo soasse, ficamos por horas a fio no telefone. Não éramos tão íntimas, aliás, não depois de ela ter se casado três anos atrás com seu príncipe rico e se isolado em sua mansão de contos de fadas. Ela me contou sua história toda e, no embalo, acabei lhe contando o meu drama também. Só desligamos quando meu pai veio reclamar que a ligação estava ficando cara.
Fiz Lizzie prometer que não ia contar para ele, nem para minha mãe, sobre o atraso do meu aluguel.
Tarde da noite, Jackel quem me ligou com uma voz preocupada, mas esclareci todas as suas dúvidas. Aí, ele passou o telefone para Lizzie, e a maluca me contou que simplesmente decidiu gastar trezentos dólares numa passagem para Nova York para vir me visitar.
Eu não seria nada sem meus irmãos.


🙂🙃🙂


Era plena quarta-feira quando saí mais cedo do trabalho para receber minha irmã em casa. Desci correndo do metrô, mas minha pressa era só mais uma no meio da estação, lotada de pessoas imersas em seus próprios compromissos. Subi a escada rolante e, assim que cheguei na rua, os últimos raios de sol já iluminavam os prédios e as árvores despidas de folhas, todas enfileiradas na calçada. Há muito tempo eu não apreciava o pôr do sol fora do escritório.
Lutando contra o frio, ali fora mesmo, em frente às escadinhas de concreto na entrada de onde eu morava, esperei Lizzie chegar. Depois de longos quinze minutos, o táxi finalmente trouxe a patricinha mais chata de Louisiana.
Da janela ela já veio dando um tchauzinho. O motorista encostou o carro e ela desceu, então veio direto ao meu encontro e me apertou num abraço.
— Que saudade da minha irmãzinha!
— Pra ser sincera… eu também tava com saudade.
Seu cabelo loiro tinha ganhado mechas mais claras, um corte impecável, um brilho bonito. A boca estava melada de gloss, as bochechas vermelhas pelo frio e o blush exagerado. Ela tinha um olhar confiante, revigorado, como de quem havia descoberto um mundo novo depois de ter assinado simples documentos de separação.
— Tô orgulhosa de você — admiti.
Ainda segurando meus ombros, Lizzie olhou para mim cheia de emoção enquanto balançava a cabeça, me analisando de perto. De repente, seus lábios e queixo estremeceram, o rosto enrugou todo. Tive vontade de rir. Ela sempre teve uma cara de choro muito engraçada.
— O que foi? — perguntei. Enquanto isso, o motorista tirava as bagagens do banco e do porta-malas e ia empilhando-as no chão.
— É que… Há muito tempo você me disse que se mudaria pra Nova York, antes de contar pro papai e pra mamãe. O tempo passou e, mesmo assim, todos continuamos pensando que você ficaria em Livingston até se casar… assim como eu e o Lucas. E olha só pra você! Você realmente conseguiu, . Eu que tô orgulhosa de você…
BAM.
Foi o barulho da última mala.
— Lizzie, você trouxe… oito malas?!
— Pensei em ficar até você se estabilizar. Vim pra cá pra te dar um suporte de verdade, ok? Queria mudar os ares também. Passar por um divórcio em Nova York é muito mais chique. Pago a outra metade do aluguel até o fim do contrato, sem problema nenhum, você junta uma grana de novo e eu te ajudo a procurar por um novo lugar depois. Ok? Prometo que as oito malas são temporárias.
— Meu Deus…
— Não precisa agradecer.
— Existe mesmo uma luz no fim do túnel.
— Claro que existe! — ela parou numa pose de modelo. — Ela se chama Elizabeth !


🙂🙃🙂


Era indescritível o alívio que eu sentia sabendo que Lizzie estava dormindo debaixo do mesmo teto que eu. Não seria a mesma coisa se fosse qualquer outra colega de quarto. Ela não era muito boa em lavar a louça, também não sabia fritar um ovo, mas pelo menos garantia minhas risadas quando fazia coisas absurdas, tipo um suco de laranja com o espremedor de alho.
Era curioso como ambas entrávamos em pânico com uma barata, ou gostávamos de reality shows específicos. Na última semana, acompanhamos todos os episódios de Survivor, e hoje não seria diferente.
— Mamãe te mataria se soubesse que tá jantando pipoca e macarrão instantâneo todo dia — ela se sentou no sofá ao meu lado e colocou os pezinhos em cima da mesa de centro. Em seguida, roubou algumas pipocas do balde que eu segurava.
— Bem-vinda a Nova York — balancei os os ombros. Era a qualidade de vida que meu salário proporcionava.
— Lá em casa tem janta quentinha todo dia e comida de verdade, mas posso te falar? Livingston é um casulo apertado demais pras asas que você tem agora. Você voltaria pra cá no máximo em dois dias depois que mamãe começasse a te infernizar, querendo planejar o resto da sua vida do jeitinho que ela acha que tem que ser vivida.
— É verdade… — dei um suspiro pesado. — Ah, Lizzie… Faz uma semana que consigo fechar os olhos e dormir sem me preocupar se vou ser despejada ou não. Você curou minha insônia, sabia? Obrigada por isso.
— Fico feliz, irmãzinha. Viu, eu não sou tão lixosa assim. Só um pouco atrevida.
Comecei a rir. Logo depois, resolvemos abrir um vinho, e o plano era empurrar para dentro pelo menos duas garrafas até a madrugada, afinal, era sexta-feira. Não demorou muito para falarmos mal do Lucas – esse era um evento indispensável para Lizzie, e ele vinha acontecendo todos os dias. Ela se sentia melhor depois de botar tudo para fora, mas naquela noite eu estava especialmente desinteressada. Eu já tinha gastado toda a minha lista de xingamentos naquele cara.
Fiquei ouvindo os desabafos da minha irmã por algum tempo, e a garrafa só esvaziou mais. Eu estava me servindo quando a interrompi:
— Não vai beber, querida?
— Tô esquecendo de tanto falar.
— Pois é.
Completei a taça dela e voltei para o sofá com o celular na mão, porque ele tinha acabado de vibrar com um SMS do Bradley. Fiquei digitando uma resposta enquanto Lizzie virava alguns goles.
— Tá mandando o quê pra ele? — ela quis saber.
— Dispensando de novo.
— Você não disse que ele é uma delícia?
— Sim, mas tá ficando desconfortável. Sinto que o povo do trabalho tá começando a desconfiar — enviei a mensagem e larguei o celular na mesa. — Foi bom enquanto durou.
— Tô te achando melancólica hoje.
— Normal. Vai passar.
— Sei — ela cruzou os braços e ficou balançando a taça em círculos. Ficamos em silêncio por uns dois minutos. — A gente podia abrir a próxima garrafa, né?
Virei o resto do meu vinho sem hesitar, então decidi abrir o segundo, como se estivéssemos encerrando uma era e começando outra. Lizzie, com seu sorriso elegante, propôs um brinde às reviravoltas da vida, então batemos as taças uma na outra e as esvaziamos com sede de afogar as mágoas.
O bom foi que não teve choro. O álcool começou a surtir efeito, e logo nos encontramos em uma espiral de risos descontrolados. Eu estava dando os devidos detalhes sobre o Bradley quando ela do nada pulou do sofá:
— Acabei de ter a mais brilhante ideia. Sabe o que a gente podia fazer? Fuçar o seu celular.
— … Nossa, que ideia ótima.
— Calma, eu só quero te arrancar mais algumas risadas. Sei que vai ser fácil. Menu… Mensagens…
— Cuidado com o que você vai abrir. Ele não é nada… romântico.
Lizzie continuou apertando o botão da setinha para baixo e não parou mais. Tudo que se ouvia era o som repetitivo.
— O que você tá fazendo?!
— Não quero saber do Bradley. Quero saber do .
Fiquei sem reação por um momento.
— Pra quê? Não, Lizzie, por favor… Eu achei que você queria me fazer rir.
, escuta o que tô te falando. Quem foge nunca tem o prazer da vitória.
— Você tá ficando lelé das ideias.
— ACHEI.
Bati minha mão na testa, tão forte que joguei minha cabeça para trás.
— Hmmmm… O que fazer… — ela murmurou, batendo as unhas perfeitas no queixo.
— Se você apertar o botão de chamada, Lizzie, eu sou capaz de arrancar todos os fios do seu cabelo, lembre-se bem disso.
— Pode ter certeza que eu amo o meu cabelo o suficiente pra não fazer bobagem. Só vou mudar o nome do contato, fica tranquila… Ele nem vai saber — ela começou a digitar. — O que você acha de… “Vacilão que quebrou meu coração”? É uma boa!
— Não, não é uma boa. É ridículo — ri sem querer. Ri de ódio. — Chega, me dá aqui meu celular.
— Não! Espera só eu terminar de digitar. Va… ci…
— Me devolve aqui, Liz. É sério, não tem graça!
— Calma! Espera, deixa de ser chata! É só uma brincadeirinha entre a gente!
Eu já estava me debruçando sobre ela, que não conseguia mais esticar o braço para fora do sofá, então me levantei para puxar meu celular de suas mãos a qualquer custo. Quando tomei-o de volta, já estávamos ofegantes. Liz caiu na gargalhada.
— O que você fez?! — olhei para a tela verde sem entender nada, mas ela continuava rindo que nem uma louca. — Lizzie, o que você fez?
— Nada. Tô rindo do seu desespero. Eu ia terminar de digitar, mas você arrancou o troço da minha mão.
— Como assim? O nome dele continua o mesmo.
— Ai, que engraçado…
— Você me ouviu? O nome dele continua o mesmo. Tá aqui, “” — mostrei o aparelho para ela, e seu rosto imediatamente mudou de expressão.
— Como, se eu alterei o início? E ainda acho que salvei.
— Você não tava em “Contatos”, idiota. Você tava em “Mensagens”. Puta merda, você enviou um SMS pra ele. LIZZIE, VOCÊ VAI FICAR CARECA!
Fiquei fora de mim. Aquilo abriu a caixa de Pandora do meu inferno pessoal, nada menos do que isso. Preferia mil vezes ter meu saldo no banco negativado do que ter que lidar com aquela mensagem enviada por engano. Porra, poderia ter sido para qualquer outro contato, menos , com quem eu não trocava uma palavra há quase cinco meses. Quem botou o título de ex nele fui eu. Lizzie poderia ter mandado o proprietário do meu apartamento ir se foder que eu estaria mais tranquila.
— Calma! Fica calma! Sério? Espera aí… O que eu enviei? Calma, eu juro que foi sem querer. Eu juro, , juro pela minha vida.
De repente, soltei um longo suspiro de alívio. Um peso evaporou do meu corpo todo assim que vi que a mensagem enviada tinha sido apenas palavras desconexas.
— O quê, o que foi? — ela se levantou também e surgiu atrás dos meus ombros.
— “Vaci444”. Foi a merda que você digitou. Graças a Deus. Ele não vai entender nada.
Lizzie ficou me olhando enquanto eu respirava fundo e colava o celular no peito, como se estivesse o protegendo dela. Ela deu uma risadinha:
— Tô imaginando ele recebendo isso agora mesmo…
Aquele comentário me deixou estranhamente nervosa.
— Ele só vai ignorar — respondi.
— Será? É sexta à noite… Ele deve tá tão doido quanto você. Pronto. Foi o que precisou para minha cabeça montar infinitos cenários.
— É, ele deve tá que nem eu, principalmente ficando com outras pessoas.
Eu não queria mais falar sobre aquilo. Me recusei. Bani o assunto pelo resto da noite. Porém, à medida que o tempo foi passando, mais o vinho foi entrando e mais fui despejando uns segredinhos aqui e ali. Os programas malucos na TV serviam como som de fundo para um papo mais maluco ainda. E quando finalmente apagamos as luzes da sala, a tagarelice continuou no escuro – os risos diminuíram, as palavras foram se transformando em bocejos.
— Ai, ai… Eu tava pensando aqui — Lizzie arrastava a voz e ria sozinha.
— No quê?
— Sabe, às vezes a vida é só um grande vaci444…
Explodi em gargalhadas num minuto. No outro, ela já tinha começado a roncar.


🙂🙃🙂


O sol já estava alto quando abri os olhos. O quarto estava completamente iluminado. Despertei como um gato preguiçoso, com uma leve dor de cabeça, e notei que o relógio digital ao lado da cama piscava duas da tarde.
Meu Deus.
Fui até o banheiro procurar uma aspirina e, para minha surpresa, encontrei meu celular dentro da pia. Aparentemente eu tinha beirado a insanidade de madrugada.

3 mensagens recebidas
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Eu ainda estava tão lenta que demorei a entender a real situação. Uma onda de ansiedade me percorreu só de imaginar que as mensagens pudessem ser de .
Meu primeiro instinto foi chamar minha irmã, mas ela não acordou por nada; fui até seu quarto e ela parecia um urso hibernando. Voltei então para o meu, sentei na beira da cama e decidi abrir as mensagens por minha própria conta e risco – uma parte de mim rezando secretamente para que fossem de ; a outra torcia para que fossem de qualquer outro macho, menos , só para não eu ter que passar pela humilhação de me explicar.

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Nao consigo te esquecer
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Meu Deus.
Não consegui fazer nada além de encarar o nome dele no meu celular por cinco minutos eternos, mesmo depois que o visor escureceu. Meu coração derreteu quando li o que ele tentou digitar – e depois conseguiu.
Por que ele…? O que ele…?
As perguntas se multiplicavam na minha mente. Todas desequilibrando meu frágil castelinho de cartas que tanto demorei para manter de pé. Eu ia empilhando cada perrengue diferente que consegui superar até hoje com tanto orgulho, como prova de que eu poderia muito bem viver, de cabeça erguida, a vida que um dia tanto sonhei naquela cidade. Mas ele se desfez inteiro diante de uma simples mensagem de . Isso me deu um tapa na cara. Um tapa não, um murro.
Não estava esperando sentir tudo isso. Ainda mais sóbria. Processar aquela mensagem me fez reviver tantas coisas, principalmente o período que ficamos sem nos falar. Me transportou para um lugar onde o tempo parecia suspenso, como se nada tivesse mudado desde então, porque foi foda resistir à vontade de clicar em “Responder”. Mas me contive. Minhas emoções não poderiam tomar o controle do volante agora.
Resolvi ignorar num ato de autopreservação. também estava bêbado quando recebeu meu SMS ontem, além do mais, eu não sabia o que exatamente responder. Nem tinha que fazer isso. Pouco depois, quando Lizzie finalmente acordou, eu ainda estava que nem uma planta no quarto sem conseguir pensar em outra coisa. Minha irmã parou na porta para me desejar “bom dia”, mas antes que ela fizesse qualquer outro comentário, mostrei-lhe as mensagens.
— Que diabos é “N”?
— Vai passando.
— Não… acredito… — ela abriu a boca e não fechou mais. — Menina, ele te respondeu mesmo. Que horas foi isso?
— Quatro da manhã, a gente já tava dormindo. Seja sincera, você não acha que foi só um devaneio de bêbado? Que ele me respondeu sem pensar?
— Hmm. Acho que não… Quero dizer, também pode ter sido um devaneio, mas… acho que ele sabe que a sua mensagem foi sem querer, e aí aproveitou a chance pra se comunicar com você.
— … Você tá falando isso só pra eu responder ele de volta e você acompanhar o drama, né.
— Não, … Minha nossa, isso tá me fazendo pensar numa coisa. Escuta — ela segurou meus ombros —, você me falou um dia desses que ele tem uma irmã mais nova, né?
— Sim...? O que tem isso?
— Semana passada, quando você tava no trabalho, uma garotinha ligou pra cá à tarde e deixou uma mensagem na secretária eletrônica. Acho que era ela. No início eu achei que fosse um trote, tanto que nem ouvi a mensagem toda.
Meus olhos se arregalaram. Uma frustração do tamanho de um planeta me atingiu e se espalhou rapidamente. Ainda absorvendo aquela informação, me soltei dela aos poucos.
— E por que você decidiu não comentar isso comigo?!
— Porque foi num dia que você saiu mais tarde com o Bradley, e ainda por cima voltou toda felizinha pra casa. Eu só pensei, “deixa quieto, ela tá se divertindo, não vou jogar um balde de água fria”. Sei lá, eu não queria que você deixasse de viver sua vida por causa do . Toda vez que a gente cita esse nome, você fica com essa cara de vadia triste igual tá fazendo agora.
A cara dela de quem estava se achando coberta de razão só me irritou mais. Me senti com quinze anos de novo, quando brigávamos por bobagens, e Liz sempre achava que sabia o que era melhor para mim só porque era mais velha.
— A gente volta nisso depois — avisei. — Vou ouvir o recado. A situação acabou de mudar.
Dei uma corrida até a sala em direção ao telefone fixo. Pressionei uns botões até finalmente ouvirmos a voz metálica da secretária eletrônica: “Não há novas mensagens no momento. Para ouvir suas mensagens antigas, pressione 3.” Apertei o número e passei por elas até ouvir a primeira que tivesse uma voz de criança.
Oiiii… Tudo bem? É a Max. Olha…
— É ela mesmo, Liz.
— Sshhh!
Eu sei que a gente só se viu uma vez, mas eu aposto que você é a namorada do meu irmão e coisa e tal, e eu que não ia ligar pros amigos chatolóides dele, então… — ela soava hesitante. — É que ele tá muito estranho. Não sei se ele me odeia ou algo assim, mas ele nem quis saber do meu aniversário hoje. Sabia que hoje é o meu aniversário? Tô com raiva. No Natal ele veio, tudo bem, mas foi embora no dia seguinte porque tinha que trabalhar. Minha vó disse que agora ele é adulto, e minha mãe disse que ele não tem falado com ninguém, mas ela nem lembrava de você, eu que lembrei. Então queria te perguntar se ele tá falando com você em segredo, porque eu sei que ele tá guardando algum e não quer contar pra mim. É isso, obrigada, beijo, tchau!
Tu-tu-tu-tu-tu.

Senti um aperto no peito inexplicável. Lizzie olhava fixamente para mim, preocupada, esperando o meu tempo de processar tudo.
— Então… não era só comigo?
A situação de não se limitava só a mim – aquilo não parava de se repetir em ecos na minha cabeça. Caramba, como ele chegou a esse ponto? Por que estava se isolando assim…? Por que ele estava deixando Max de lado? Será que tinha acontecido alguma coisa e eu não percebi? Ou será que ele estava passando por algo que não queria compartilhar?
Cada vez que eu me fazia mais perguntas, a sensação de impotência crescia como um peso insuportável. Não dava mais.
Eu estava olhando para o nada quando minha irmã resolveu quebrar o silêncio:
— Você podia responder a mensagem dele agora, né?
Ela tinha razão. Eu não conseguiria seguir em frente sem pelo menos tentar descobrir o que estava acontecendo. Minha desconexão com só crescia, e tudo que fiz nos últimos meses foi tentando me acostumar com essa nova realidade. Mas agora eu não suportava mais a ideia de que essa distância pudesse se tornar irreversível, mesmo que de forma natural, sabendo que algo dentro dele estava desmoronando.
Responder sua mensagem parecia tão insuficiente. Eu só queria seguir meu instinto sem ponderar tanto. Estava cansada de me proteger e ser protegida de arrependimentos. Eu queria me arrepender. Queria escolher o caminho menos seguro e sentir a adrenalina de tomar decisões impulsivas.
Eu precisava fazer isso por mim quantas vezes eu sentisse que fosse necessário, do contrário, não seria eu.
— Tenho horas extras pra tirar folga sexta que vem — foi a primeira coisa que falei, pensando alto. — Quer saber? Tô precisando dar uma fugida daqui, nem que seja só pra recuperar um pedaço da minha própria paz.
— E pra onde você vai?

— Preciso mesmo dizer?


Continua...



Nota da autora: me diverti muitooooooo escrevendo esse capítulo. espero que tenham se divertido tbm apesar de tudo 😭 estou preparadíssima pro último e vcs? vou gritar e explodir FOGOS. me contem por favor o que estão achando vamo conversar!!!!! como tá sendo a experiência??? como foi p vcs a montanha russa de emoçoes desse último cap? QUERO SABER. estou me despedindo aos poucos disso aqui 💔

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