Destinos Entrelaçados

Última atualização: 29/05/2024

Capítulo 1


Era mais uma manhã comum de terça-feira. null acordou, lavou o rosto, ligou a televisão no canal de notícias e foi preparar seu café, abriu a geladeira, mas parecia que nada lá agradava seu paladar. A matéria no jornal era sobre um assalto que tinha acontecido no dia anterior.
“Muita tragédia pra logo cedo” ele pensou e desligou o aparelho. Foi até seu armário e trocou de roupa, garantiu que pegou um boné e óculos de sol, então pegou a chave do carro e saiu.
“O tempo até Café Rosário é de quinze minutos” disse o GPS assim que ele digitou o endereço de onde amava tomar café nos dias em que não tinha disposição para preparar nada. Aquele lugar era especial, foi onde tomou café quase todos os dias quando era estagiário da gravadora, muito antes de ser null null, o artista mundialmente conhecido e vencedor de Grammys, naquela época ele era só null, o estagiário.
Antes de sair do carro, ele colocou o boné e o óculos de sol, para garantir que as pessoas demorassem mais para reconhecê-lo. Enquanto andava até o café, viu uma mulher passando em sua frente, ela carregava por volta de seis caixas e de repente parou, equilibrou todas elas em uma mão e com a outra começou a tatear o bolso frontal da calça. Foi como se ele visse em câmera lenta: as caixas de cima começaram a escorregar e em breve cairiam no chão.
- Moça, precisa de ajuda? – ele perguntou correndo até ela.
- Está tudo bem! – ela disse ofegante, mas sem passar confiança.
- Por favor, deixa eu te ajudar! – null pegou quatro caixas de cima da pilha a aliviando.
- Ai, obrigada! Eu preciso ver o número certo de onde vou entregar isso! - Ela enfim pegou o celular e em poucos segundos olhou ao redor, buscando algo. – Conhece aqui o bairro?
- Um pouco.
- Essa rua é perto? – Ela virou o celular na direção dele.
- Virando ali a esquina, acho que já é bem no começo do quarteirão esse número.
- Perfeito! Muito obrigada pela ajuda, pode deixar que eu levo agora.
Algo em null pareceu estar errado, ela tinha se mostrado totalmente capaz de carregar todas as caixas sozinha e equilibrá-las para pegar o celular no bolso, mas aquele bairro não era conhecido por ser o mais seguro de Nova York.
- Eu posso te acompanhar, se quiser, é aqui perto mesmo!
Pela primeira vez ela o olhou, null teve medo de que ela o reconhecesse, mas ao invés de surpresa ou felicidade, seu rosto transmitia a sensação de estranheza com a oferta. null entendeu imediatamente e tentou se justificar:
- Juro que é só pra te ajudar mesmo!
- Acho que tudo bem! Coloca uma caixa aqui, assim ficamos iguais.
Satisfeito, pois ela não era uma fã, os dois caminharam lado a lado e em poucos metros viraram a esquina. Ela olhou a placa com o nome da rua, estava no lugar certo.
- Número 72 é aqui! – Ela parou em frente a um prédio e tocou o interfone no número cinco.
Nenhuma resposta. Ela tocou novamente. Nada de novo.
- Será possível? – Ela resmungou e colocou a mão no bolso novamente, mexeu rapidamente e levou o celular ao ouvido. – Oi! Estou em frente ao seu prédio com o pedido. Sério? Quanto tempo mais ou menos? Tá, acho que posso esperar sim. Até já!
Ela desligou a chamada e respirou fundo.
- A moça que vai receber a entrega não está em casa, vai demorar mais quinze minutos, acho que vou esperar aqui na frente. Muito obrigada pela sua ajuda, vou deixar as caixas aqui na calçada mesmo e aguardar.
Ela posicionou as caixas que estava segurando no chão perto do muro, pegou as restantes que estavam nas mãos de null e colocou em cima das demais. null olhou para o outro lado da rua, era um prédio abandonado, todo destruído e pichado, na calçada tinham alguns homens sentados, outros em pé, todos conversando entre si, eventualmente olhavam para eles e desviavam.
- Aqui é um lugar meio perigoso pra você ficar sozinha. – Ele a olhou, mas, sem perceber, seu olhar se desviou para o outro lado da rua. Ela olhou discretamente na direção apontada.
- Ah, entendi...
- Se você não se importar, eu fico aqui com você ou vamos até o Café Rosário e você pode esperar tranquila a sua cliente chegar.
- Eu vou ter que voar daqui até a universidade, quase do outro lado da cidade. Acho que vou ficar por aqui caso ela chegue mais cedo.
- Então ficamos aqui mesmo! – Ele disse sorrindo e sentou-se na calçada perto da entrada e ao lado das caixas. Ela o olhou com curiosidade:
- Desculpa, eu aceitei a sua ajuda, mas eu nem sei o seu nome! – Ela disse rindo baixo e sentando-se do outro lado das caixas.
- null e você é?
- null! – Ela estendeu a mão e ele a cumprimentou.
- Onde você faz faculdade, null?
- Eu faço na Universidade de Nova York, mestrado em escrita para roteiros.
- Mestrado?! Caramba, você aparenta ser nova pra fazer mestrado já!
- As aparências enganam! – Ela riu e ele a acompanhou.
“Você nem imagina o quanto”, null pensou.
- Por que mestrado em escrita para roteiros?
- Eu me graduei em artes cênicas, pós-graduação em cinema e audiovisual, fiz uma especialização em teatro musical, a única coisa que parecia faltar era estudar roteiros e não tem lugar melhor pra isso do que Nova York...
- Espera, então você é atriz e cantora?
- Sim!
- Uau, e você veio de qual estado?
- Na verdade eu vim de outro país, Brasil.
- Ah, señorita! null disse sorrindo.
- Tirando o fato de que no Brasil...
- Vocês não falam espanhol, eu sei! É por isso que eu não sou daqui também, sou da Colômbia!
- Isso explica o conhecimento básico em geografia. – Os dois riram.
- E por que escolheu essa profissão? Esse curso?
- Eu decidi fazer esse mestrado porque eu amo contar histórias, tanto escrevendo como encenando, e o teatro musical ainda por cima trabalha com música, uma coisa que faz parte da vida de todo mundo.
- E aí você saiu do Brasil pra fazer esse mestrado aqui e vai ficar?
- Se tudo der certo, é possível!
null olhou para o outro lado da rua e os homens o fitavam, alguns desviavam o olhar, conversavam entre si, ele ajeitou o boné e os óculos. null olhou para o céu e mexeu na camisa para se abanar. Pegou o celular e em poucos segundos o guardou no bolso novamente.
- Será que isso aqui tá bom ainda? Tá muito quente e eu não esperava ficar quinze minutos aqui no calor.
Ela pegou uma das caixas e abriu a tampa para verificar o conteúdo.
- Eu te ajudo a ver se tá tudo bem! – null se prontificou pegando uma das caixas.
- Não precisa, não!
Quando null abriu a tampa, viu que dentro tinham diversos cupcakes com cobertura de chocolate e em cima... pequenas esculturas de pênis. Sua feição mudou automaticamente para surpresa e null começou a rir, escondendo o rosto em suas mãos.
- Eu disse que não precisava! – Ela falou entre o riso.
- Tá tudo certo... eu acho. Nessa caixa aqui está tudo inteiro. – null fechou a tampa e começou a rir.
- Pode deixar que eu vejo o resto!
- Achei meio ofensivo, sabe. – null olhou para ele sem saber o que dizer. – São pênis muito comuns, onde está a diversidade? Os menores, apesar que esses as mulheres não são muito fãs, os ‘meio tortos’, os completamente tortos?
null riu novamente e assentiu com a cabeça.
- Você tem razão, falta diversidade e inclusão!
null observou enquanto, uma a uma, ela abria as caixas para verificar a integridade do conteúdo.
- Além de cantora, atriz e roteirista, você também é confeiteira de artigos para maiores de idade?
- Confeitaria é um dom que eu não carrego comigo, quem faz é minha amiga, Luna, a melhor confeiteira que eu já conheci na vida. Eu só ajudo ela com a entrega e outras coisas pontuais.
Ele viu que em cima da caixa estava escrito “Delícias da Luna”.
- Mas me conta sobre você: o que você faz, além de ajudar desconhecidas a carregar caixas?
- Eu também sou da área artística, sou cantor.
- Não acredito! Faz tempo?
- Algum tempo já...
- E qual estilo de música você canta?
- A grande maioria é pop.
- Como é pra você viver da música? É difícil? Tem bastante trabalho?
- Atualmente estou bem tranquilo de shows, mas eu vivo confortavelmente com esse emprego.
null não sabia se deveria revelar quem era de verdade, estava gostando de ter uma conversa em que era tratado somente como uma pessoa e não uma estrela.
- Cúando te veo no puedo explicar lo que siento, pero sé que nos conocemos en una vida pasada!
Os homens do outro lado da rua começaram a cantar em uníssono, todos com sorriso no rosto e olhando para null, que ficou envergonhado, mas sorriu e no ritmo da música acenou para eles, que comemoraram.
- O que tá acontecendo? – null perguntou.
- Tá. Eu não fui completamente sincero com você.
null o olhou com muita suspeita, não estava entendendo nada.
- Quando eu disse que era cantor, eu na verdade posso ter omitido que sou um cantor famoso.
- Famoso quanto? Qual é o seu sobrenome?
- null. null null.
A feição de null estava completamente diferente, uma mistura entre desconfiança, curiosidade e incredulidade. Ela imediatamente pegou o celular, digitou algo e sua cara era de total surpresa.
- Dois Grammys? Pra mim, isso é ser bem famoso!
- Um Grammy Latino, um Grammy usual...
null colocou seu celular ao lado do rosto de null, tinha uma imagem dele aberta. Ele a viu pelo canto do olho e tirou os óculos escuros para ela ter uma visão clara de seu rosto:
- Tá tentando ver se eu sou golpista?
- Mas é claro, por que do nada um cantor famoso, estou enfatizando o famoso, ajudaria uma pessoa no meio da rua? O que você quer? Favores sexuais?
null começou a rir sem intenção e colocou os óculos novamente. null ainda o encarava e, apesar de tentar permanecer séria, estava quase rindo também.
- Antes de ser um artista famoso, enfatizando o famoso, eu sou uma pessoa. Eu vi que você podia precisar de ajuda e resolvi ajudar! – Ela serrou os olhos e seu olhar ainda transmitia desconfiança. – Mas acho que não sou tão famoso assim, já que você não faz a menor ideia de quem eu sou...
null apoiou a mão na testa, estava envergonhada.
- Isso é típico da null, sabe? Se aparecesse aqui na minha frente o Lin-Manuel Miranda, Stephen Sondheim, apesar de que ia ser estranho porque ele já morreu, Alan Menken, Stephen Schwartz, qualquer outra pessoa de teatro musical, eu saberia imediatamente, agora as pessoas famosas, estrelas pop, eu não faço ideia.
- Pra ser honesto, eu não faço a mínima ideia de quem são essas pessoas que você mencionou.
null tentou fazer ela se sentir melhor e null sorriu como resposta.
- Então, senhor famoso, preciso assinar algum termo de confidencialidade pra nossa conversa?
- De forma alguma, inclusive eu fiquei feliz porque você não me conhecia, é realmente muito bom só conversar como pessoa e não como artista.
- Sua família mora por aqui também?
- Não, eles ficaram na Colômbia, não falam inglês e não queriam se mudar.
- No fim das contas, você é como eu: imigrante solitário tentando ganhar a vida com arte. Só que no seu caso, você meio que já conseguiu fazer isso! – null disse rindo fraco.
Apesar de querer, null não sabia se era o momento de fazer perguntas mais pessoais para null, não sabia se ela entenderia errado, se ficaria incomodada, se pensaria que ele estava se aproveitando do fato de ser famoso, então só riu do que ela disse. Os dois ficaram em silêncio por curto tempo, ouviram passos correndo em sua direção e em poucos segundos uma mulher apareceu, ela estava ofegante e um pouco vermelha e suada:
- Demorei muito?
- Chegou até antes do que falou no telefone! – null se levantou e null fez o mesmo. Antes que ela se abaixasse, ele pegou as caixas. – Ah, obrigada!
- Aqui está o dinheiro. – A mulher entregou para null, que começou a conferir. Enquanto isso, a mulher encarou null, que automaticamente ficou nervoso.
- Tudo certo! Aqui está sua encomenda, precisa de ajuda pra levar? – null entregou as caixas para a mulher.
- Não precisa, tem elevador aqui e as caixas não estão tão pesadas, mas obrigada!
Antes que null falasse mais alguma coisa, a mulher encarou o homem novamente:
- Eu te conheço de algum lugar?
- Ah, eu duvido! Mas as pessoas sempre perguntam isso pro meu irmão, sabia? Falam que ele se parece com um cara famoso... – null disse de prontidão e deu um empurrão em null, tentando fazer parecer uma implicação normal entre irmãos.
- Parece muito! Podia ser sósia.
- Pois é, quem sabe a gente não fatura um dinheiro extra com isso? Obrigada e espero que goste da encomenda! – null sorriu e se virou sem dar a oportunidade de a cliente perguntar nada. Andaram até virar a esquina em que se conheceram e null começou a rir:
- Foi perfeito! Você é uma baita atriz, a voz nem tremeu.
- E correr o risco de sair nas manchetes: “cantor famoso é visto entregando cupcake com desenhos adultos no Harlem”? Não quero esse peso de arruinar a sua carreira!
- Falando sério, valeu mesmo por ter agido tão rápido. Tá vendo só, algumas pessoas me conhecem!
- É, você deve ser bem famoso mesmo, mas eu que agradeço por não ter me deixado lá! Apesar de ter mentido sobre sua identidade, você fez boa companhia.
- Mentido, não. Omitido! E você vai correr agora pra NYU?
- Se eu pudesse, eu iria voando, mas acho que de trem dá tempo.
- Quer carona? – A feição de null mudou novamente para desconfiança.
- Apesar de isso ser completamente suspeito, eu acredito que um artista renomado como você não perderia seu tempo sequestrando uma qualquer. Mas não precisa, obrigada! – Ele riu:
- Tem certeza?
- Absoluta, vou aproveitar esse tempo pra rever uns exercícios. Foi um prazer te conhecer, null! – Ela estendeu a mão.
- O prazer foi todo meu, null! – Ele apertou a mão dela e os dois sorriram.
null observou null se virar e caminhar em direção a estação de trem. Ele sorria enquanto relembrava a conversa que acabara de ter, não imaginava nem por um segundo que, ao sair de casa, aconteceria tudo o que aconteceu. Ele também se virou e caminhou até o Café Rosário para finalmente tomar seu café da manhã.

***

Após tomar o café da manhã, null foi até o prédio de sua gravadora. Ao chegar, foi recebido por seu assessor, null. null conhecia null desde quando ele se apresentava em bares e festas sociais, já tinham uma intimidade quase digna de irmãos e, por isso, às vezes era difícil trabalhar um com o outro.
- Boas novas, recebi a versão final do roteiro do seu clipe! – Ele disse empolgado.
- A versão final vem com uma reunião ou vem impressa?
- Como eu te conheço muito bem, vem impressa e dentro de uma sala silenciosa. – null respirou aliviado. Os dois caminharam até uma sala de concentração, um nome pomposo para uma sala pequena em que as pessoas vão exclusivamente para se concentrar sem serem interrompidas.
null abriu a porta da sala e em cima da pequena mesa, tinha um chumaço de papel, um marca-textos e canetas.
- Quer alguma coisa pra beber?
- Tudo tranquilo. Acho que não vou demorar! – null disse entrando na sala e fechando a porta. Era a terceira vez que ele avaliava aquele roteiro e não entendia qual a dificuldade em conseguir um roteiro que fizesse sentido com o que a música expressava. Fazia um longo tempo desde que null não emplacava nenhum sucesso ou ganhava algum prêmio, mesmo que fosse uma indicação, ele queria que essa música marcasse o início de uma nova guinada na carreira dele, mas pra isso acontecer, ele precisava que o clipe fosse perfeito.
Do lado de fora da sala, null estava aflito e, enquanto esperava, estalava compulsivamente os dedos e pensava:
“De forma alguma o null pode reprovar aquele roteiro novamente, esse diretor só trabalha com esse roteirista e nós estamos ficando sem tempo”.
Mal se passaram cinco minutos e null saiu da sala com a cara fechada, o que significava más notícias:
- Não me fala que você odiou.
- Eu não gostei, acho que não passa a mensagem que a música pede, a gente tá apostando muito nessa canção e o clipe precisa estar de acordo, null. Se esse roteirista não é capaz de entender isso, a gente arruma um que seja.
- Mas aquele diretor insuportável só trabalha com esse roteirista!
- Então arrumamos outro diretor. – null revirou os olhos, mas conhecia muto bem seu amigo, quando tinha uma ideia, ninguém podia mudar seus pensamentos.
- Você tem alguma sugestão ou começo minha busca de novo do zero? Você não quer trabalhar de novo com nenhum produtor dos vídeos antigos, assim fica difícil...
- Será que é tão difícil assim querer um profissional que saiba contar uma história? Roteirista é pra isso, não?!
Nesse exato momento, foi como se null ouvisse uma voz ecoar no fundo de sua mente, mais precisamente, uma voz feminina:
“Eu decidi fazer esse mestrado porque eu amo contar histórias, tanto escrevendo como encenando”.
- Vou começar a procurar roteirista de filmes, de teatro, qualquer um...
- Espera, eu sei quem é a pessoa!
- Lembrou de alguém?
- Na verdade, conheci alguém hoje! Quando eu fui tomar o café da manhã, esbarrei com essa moça e ela me disse que fazia mestrado em escrita para roteiros.
- Isso é o que eu chamo de coincidência. Qual o nome dela?
- null.
- null do que?
null percebeu que nunca perguntou o sobrenome dela e ficou congelado.
- Você não sabe?
- Eu não perguntei... só sei que é null, brasileira, faz mestrado na NYU. Ajuda?
- Com certeza, vou ligar agora na universidade e pedir todas as informações sobre ela.
- Sério?
- Claro que não, tenho cara de polícia agora? Eles não passam esse tipo de informação.
Por um momento, null tinha a solução dos seus problemas na mão, mas assim como veio, foi embora.
- Você já foi melhor, sabia? Havia uma época em que você teria pedido o número dela.
- É que nós ficamos conversando e nem pensei nisso, era como se eu já conhecesse ela há muito tempo.
- Mas não conhece e agora eu nem sei como vou encontrá-la! Ela vai muito naquele café?
- Ela não estava tomando café, eu encontrei ela no caminho até o café. É isso, é isso! Ela estava fazendo a entrega de uma encomenda da amiga dela, acho que se encontrarmos essa confeitaria, encontramos ela!
- Me sobrou um belíssimo trabalho de detetive. Qual é o nome da confeitaria?
- Delícias da... – null congelou novamente.
- null, como é que você se lembra da letra de todas as músicas que já cantou na vida e não consegue lembrar um nome?
- Eu não sei, eu lembro que vi muito bem o logo que tava na caixa, mas não lembro o nome.
- Perfeito, agora eu vou sair pela internet pesquisando sobre uma null de não-sei-o-que, que trabalha na confeitaria delícias de não-sei-quem-lá.
- Eu juro que se vir o logo da empresa eu vou saber identificar, eu juro!
- É sério que você vai querer chamar essa desconhecida pra um trabalho?
- Não é você que vive dizendo que eu preciso experimentar coisas novas?
- Sim, comidas e bebidas, não pessoas que você não sabe nem o sobrenome!
- Eu sempre confio em você, mas dessa vez você precisa confiar em mim, eu acho que a null não-sei-o-que pode ser a solução de alguns problemas.
null respirou fundo. De fato, null sempre confiava na palavra e nas opiniões dele, essa era uma das poucas vezes em que ele tinha que fazer o mesmo, mesmo que tivesse que procurar por toda cidade de Nova York por uma garota.
- Eu acho bom meu presente de aniversário desse ano ser fantástico, porque honestamente, olha as coisas que eu faço por você, null!

***

Já era final de tarde quando null voltou de sua última entrega de encomendas. Após ir para NYU, ela voltou para Washington Heights, onde a confeitaria de Luna ficava, entregou pedidos no balcão e, mais para o final da tarde, saiu para a entrega da última encomenda.
- Acabou por hoje? – Ela perguntou entrando na confeitaria e sentando-se em uma cadeira que ficava atrás do balcão de atendimento.
- Por hoje sim, obrigada pela ajuda, o Santino volta amanhã a fazer as entregas! – Luna era uma mulher porto-riquenha de meia idade, cabelos castanhos claros, negra de pele clara, muito bom humor e um dom incrível para confeitaria.
- Fica tranquila, de vez em quando é bom sair da rotina um pouco, conhecer novos bairros de Nova York.
De repente, null se deu conta de que não havia contado para Luna sobre sua aventura matinal:
- Por acaso você conhece um tal de null null?
- O cantor? Muy guapo, Dios mio! – Ela se abanou e sua amiga riu.
- Ele mesmo. Acredita que eu conheci ele hoje? – Luna parou o que estava fazendo e encarou null.
- O que?! Conheceu onde, como?
null explicou brevemente o ocorrido da manhã, como ele a ajudou com as caixas e depois esperou a cliente com ela. Ao final, Luna estava boquiaberta:
- null, eu não acredito que você conheceu um famoso e nem sabia o nome dele!
- Não é minha culpa, se ele fosse um ator de teatro musical eu provavelmente saberia! – Luna revirou os olhos e riu.
- Ele pediu o seu número?
- É óbvio que não, você acha que ele faria isso? Gente famosa não fica pedindo o número de desconhecidas na rua, além do mais, ele provavelmente tem uma lista enorme de mulheres lindas nos contatos dele.
- Você não sabe disso.
- E nem você.
- Fico feliz pela sua experiência, mas fico triste em saber que você não se considera linda o suficiente para entrar na lista de contatos dele.
Era comum Luna fazer aquilo: deixar null sem palavras ao falar coisas que se passavam bem no fundo da mente dela, mas que ela não permitia que chegassem até o seu consciente.
- As coisas acontecem por um motivo, às vezes esse encontro casual aconteceu só porque precisava acontecer. Além disso, me relembrou como o mundo é pequeno, hoje eu encontrei ele, amanhã eu posso encontrar um diretor famoso ou um produtor executivo, e aí sim minha carreira vai adiante.
- Si crees que este encuentro fue mera casualidad...
null não gostava de criar expectativas e, apesar de ter facilidade para imaginar diversos cenários e possibilidades, preferia não imergir em cada um deles, pois só assim poderia manter seus pés no chão e traçar seu caminho sem desvios até a carreira que tanto lutou e almejou.

Capítulo 2


Três dias haviam se passado desde o encontro casual entre null e null. null estava em seu apartamento tentando compor algo, quando a campainha tocou.
- Deve ser o null – ele disse caminhando até a porta, já que não o interfonaram para avisar nada. Ao abrir, viu seu amigo parado com uma feição que mais parecia que estava com azia.
- Bom dia, null null! – null disse sorrindo e entrando no apartamento. Reparou que algumas folhas de papel estavam no chão, o violão estava apoiado no sofá e suspeitou que ele estava compondo.
- Não gosto quando você me chama assim, significa que são más notícias. Achou a null?
- Você é muito pessimista. Mas sim, são más notícias. Não encontrei a null ainda, porque não tive tempo de procurar todas as empresas de Nova York com “delícias da ou de” no nome.
- Deixa eu ver o que você tem até agora – ele estendeu a mão e seu amigo colocou o celular em cima. null deu uma olhada nas três imagens que ele separou e não reconheceu nenhuma – não é nenhuma dessas.
- Porque seria sorte demais mesmo encontrarmos essa confeitaria logo de cara. Você chegou a olhar nos seus seguidores do Instagram? De repente ela te segue e você está dando bobeira.
- Eu já te disse, ela nem sabia quem eu era, dificilmente ela me seguiria no Instagram.
- Ela pode ter começado a te seguir depois.
null pegou seu celular em cima do sofá, foi até seus seguidores e digitou ‘null’. Algumas pessoas apareceram, mas nenhuma se parecia com ela.
- Não, ninguém – null bufou e sentou-se no sofá – você não veio até aqui só pra me falar isso, podia ter mandado mensagem, o que foi de verdade?
- David, também conhecido como meu superior, está extremamente ansioso pra saber sobre suas novas músicas! – Ele disse irônico.
- Não tem novas músicas.
- Eu sei que não tem! Por isso nos últimos três dias eu tenho fugido dele, dando desculpas pra todo mundo, falando que você está tão concentrado nesse novo álbum que não quer deixar ninguém ver, inclusive eu. Você precisa apresentar pelo menos UMA música!
- Eu não entendo qual é a pressa por um álbum novo, lancei um ano passado porque eles estavam me pressionando e foi uma merda, nenhuma música dentro do top 100 da Billboard! Eu não vou jogar um monte de música lixo no colo deles só porque eles querem e não vou gravar nada que eu não aprove e que não esteja de acordo com a linha musical que eu quero seguir!
null havia se exaltado e null ficou em silêncio, ele sabia como esse assunto era delicado e, por isso mesmo, não estava nem um pouco feliz por ser o portador das notícias ruins.
- E qual estilo musical você quer seguir?
- Não sei.
- Você precisa me ajudar pra eu poder te ajudar, null!
- Eu não sei mesmo! Você acha que é divertido pra mim falar isso pra você? É a minha carreira que está em jogo, minha vida, meu nome, minha voz e minha cara.
- Você tem um contrato, eles vão fazer de tudo pra você cumpri-lo.
- É por isso que eu preciso encontrar a null. Tenta entender a minha linha de raciocínio: se eu tiver um vídeo foda, ele vai complementar a minha música foda, o que vai me deixar com um lançamento ultrafoda e eu vou poder usar isso como barganha praqueles malditos da gravadora me deixarem criar em paz!
Aquilo fazia muito sentido, tanto para null quando para null, e se tinha uma coisa que null aprendeu ao longo dos anos trabalhando na indústria da música, era que nenhum artista se mantinha no topo somente com um hit de sucesso.
- Então a gente vai encontrar a null hoje! – null tinha um tom de voz determinado e animado. Ele pegou seu celular e começou a procurar, null sentou-se perto dele e conforme seu amigo encontrava algo, ia mostrando.
Após duas horas e um almoço, as esperanças de null já tinham se esgotado, ele teria que encontrar uma outra pessoa para escrever o roteiro que colocaria sua carreira de volta ao estrelato.
- Site meio suspeito, mas apareceu aqui: melhores lojas de doce e sobremesas de Washington Heights.
- Deixa pra lá, null, acho que a gente nunca vai encontrar essa confeitaria. Vai ver é um aviso pra eu prestar mais atenção ao meu redor...
- Tem aqui uma “Delícias da Luna”, olha, ótimas avaliações.
- Já falei pra deixar pra lá.
- Olha logo essa porra desse logo. Nossa, comeria um brownie desses facilmente agora – null praticamente enfiou o celular na cara de null, que já tinha ficado tão desanimado que estava deitado.
null não esperava receber tamanha iluminação na cara repentinamente, tanto que seu olho até doeu, mas quando ele focou, viu um logo que parecia familiar. Era ele, o logo que tinha visto na caixa com os cupcakes de pênis. Ele se levantou em um salto.
- É esse! null null, é esse o logo!
- Você tem certeza?!
- Absoluta, eu nunca tive tanta certeza na vida!
- Puta merda, logo o último do dia, quanta sorte.
- E agora?
- Vamos ver se eles têm Instagram – null dizia enquanto seus dedos se movimentavam rápido – não tem? Quem não tem Instagram hoje em dia?
- É muito azar pra uma pessoa só.
- Pelo menos eu achei um número e endereço.
- Ótimo! Você liga e pergunta se alguma null trabalha lá – null começou a rir após a fala de null e o encarou – o que?
- Esse é o seu plano?
- Não entendi.
- Se uma pessoa desconhecida me liga perguntando se eu trabalho com algum null, você acha que eu falaria sim ou não? Agora pense nisso se colocando no lugar de uma mulher recebendo a ligação de um homem desconhecido.
- Eu desligaria a ligação.
- Eu vou fazer assim, ligar lá e encomendar algumas coisas, na hora da retirada eu me apresento pra... como é mesmo o nome?
- Luna.
- Me apresento pra Luna e pergunto sobre a null. Se a null estiver lá eu me apresento para a null e pergunto a porra do sobrenome dela e o telefone de contato. – null riu e assentiu.
null se levantou e foi para outro cômodo fazer a ligação, em poucos minutos ele tinha voltado, novamente com a cara de azia.
- Tenho boas e más notícias. A boa é que eu consegui fazer a encomenda, a má é que eu só consigo buscar na segunda-feira após o almoço. Aparentemente essa tal de Luna tem uma agenda bem cheia de encomendas!
- Que merda.
- Pensa pelo lado positivo, pelo menos você está muito mais perto da sua roteirista do que estava até hoje de manhã!
- Valeu de verdade pelo esforço e pela ajuda, eu não sei o que faria sem você!
- Provavelmente estaria gravando alguma música horrível que a gravadora te forçaria a aceitar – os dois riram.
Nem todas as palavras positivas de null, sobre como as coisas se resolveriam na segunda-feira à tarde, foram capazes de tirar a ansiedade que se instaurou durante todo o final de semana. Além da preocupação sobre a sua falta de criatividade ou inspiração para compor novas canções, ele pensava sobre a gravadora, como estava o influenciando e quase o forçando a gravar um álbum pelo simples fato de terem um contrato e não porque ele tinha músicas de qualidade. Também estava ansioso para finalmente rever null, mas o que mais o preocupou foi começar a pensar se ela aceitaria trabalhar com ele.
O que aconteceu naquela manhã parecia tão surreal, null sentiu uma conexão tão natural com null que quando pensou nela para o trabalho, foi como se uma voz sussurrasse que ela aceitaria, mas quando a razão tomou conta de seus pensamentos, ele finalmente pensou em outras possibilidades. Ele não saberia o que fazer se null não aceitasse sua proposta, e se ela já estivesse trabalhando com outra pessoa? E se ela não estivesse mais em Nova York e tivesse voltado para o Brasil? Esse era o pior dos cenários.
Ainda tinha o fato de que ela não o conhecia, podia achar que ele não era o tipo de profissional que ela gostaria de trabalhar, um cantorzinho de músicas pop que não conseguia lançar uma canção de sucesso há quase dois anos. Ela era muito mais culta do que ele, falou nomes de pessoas que ele nunca ouviu na vida, tinha uma graduação, uma pós-graduação e estava fazendo um mestrado, enquanto isso ele tinha um apartamento, dois Grammys e um conhecimento básico em música. Ela estava muito além do seu alcance, pessoal e profissional.
O final de semana parecia ter durado dois anos ao invés de dois dias. Quando a manhã de segunda-feira chegou, ele estava tão ansioso que acordou antes do despertador, afinal de contas, hoje era o grande dia.
Do outro lado da cidade, null acordou, tomou seu café da manhã, fez alguns exercícios de alongamento para despertar seu corpo e sua mente, então foi para a frente do computador fazer aquilo que mais temia: verificar as correções do seu professor do mestrado. Toda vez que ela tinha que entregar uma atividade, era como se ela estivesse se provando e entregando a parte mais pessoal de si, eram as suas ideias, suas palavras, sua mente que estava naqueles exercícios.
“O exercício está bom, mas falta desenvolvimento maior dos personagens, suas motivações, medos, objetivos, empecilhos para alcançar os objetivos e o mais importante, as ações do personagem. Lembre-se, a história não anda se o personagem não tem atitudes!”.
Era tudo o que ela precisava ler para deixá-la desanimada logo no início da semana. Escrever personagens sempre foi difícil para null, ela imaginava todo o desenrolar da história, tudo o que poderia acontecer, todos os possíveis diálogos, mas ela sempre se esquecia do principal, a essência do personagem, as motivações, as dores, as felicidades, a personalidade, os conflitos e, sem isso, sem história.
“Algo que pode te ajudar é escrever personagem por personagem, características, personalidades, medos. Revisite o exercício de personas e defina a persona de cada personagem, isso dará um norte para você”.
null bufou e se preparou para um longo dia quebrado a cabeça na frente do computador. Mas estava tudo bem, foi justamente para isso que ela tinha saído de seu país, estava longe da família, dos amigos e de tudo o que conhecia: para ter um diploma e poder exercer sua profissão em um lugar com muitas oportunidades, pelo menos bem mais do que no Brasil.
Quando o horário do almoço se aproximou, null recebeu uma mensagem de null, lembrando-o sobre o compromisso da tarde e reforçando algumas informações sobre null, na verdade, as poucas informações que ele tinha sobre ela.
Após almoçar, ele dirigiu até Washington Heights, para o endereço que constava naquele artigo que ele tinha lido na sexta-feira. Parou em frente a um estabelecimento simples e pequeno, com uma placa escrito “Delícias da Luna”, ele respirou fundo enquanto pensava: “se você soubesse o quanto te procuramos, Luna, você daria cem bolinhos de graça!”. Ao entrar na loja, reparou nas mesas de café que ficavam encostadas nas paredes e uma que ficava bem na vitrine, muito aconchegantes e um tanto quanto caseiras.
Mais ao fundo, a vitrine do balcão estava repleto de bolos, tortas e outras sobremesas que pareciam ser apetitosas. Atrás do balcão estava um homem, era alto, bem magro, cabelos e olhos escuros e um sorriso simpático, ele vestia uma roupa preta e um avental em degradê rosa e roxo claros. Certamente, ele não era null. Será que ela estava lá?
- Boa tarde! Como posso ajudar? – ele perguntou. null notou um leve sotaque.
- Olá! Eu vim retirar uma encomenda, está em nome de null, null null. – O homem atrás do balcão olhou em um caderno e assentiu com a cabeça.
- O seu pedido ficou pronto agora, vou buscar ali dentro da cozinha, só um minuto! – Ele saiu por uma porta que ficava atrás do balcão. Pelo pouco tempo em que ficou aberta, ele não conseguiu ver se tinham mais pessoas lá. Seus dedos começaram a tamborilar em cima do balcão, estava ficando ansioso. E se null não trabalhasse lá? De zero a dez, quão estranho seria se ele perguntasse sobre ela, de repente?
Conforme essas dúvidas pipocavam em sua mente, ele desejava cada vez mais que o homem ficasse mais tempo na cozinha. Entretanto, poucos segundos depois ele saiu pela porta com uma caixa média, posicionou-a em cima do balcão e abriu a tampa para que null pudesse ver o conteúdo: doze cupcakes de chocolate com coberturas diversificadas. Se o gosto estivesse tão bom quanto a aparência, provavelmente ele se tornaria um cliente fiel.
- Tudo certo com o seu pedido? – O homem perguntou.
- A aparência está ótima! – null respondeu sorrindo. O homem sorriu em retribuição e fechou a caixa, colocou alguns adesivos para que ela não abrisse e mexeu no computador que ficava parcialmente escondido no balcão.
- Ficou cinquenta dólares. Qual a forma de pagamento?
- Cartão – null tinha que agir logo, estava acabando seu tempo e ele não teve coragem de perguntar sobre a tal null. Se ele voltasse para a gravadora sem um número de telefone ou qualquer outro meio de contato, null o mataria. Estava prestes a entregar o cartão quando a porta de entrada se abriu. O homem atrás do balcão olhou para a pessoa e fez uma cara de confusão.
- Você por aqui hoje? – O homem perguntou e null olhou discretamente para trás, viu uma mulher colocando um computador em cima de uma das mesas.
- Eu não aguentava mais ficar no apartamento. Aquela correção do exercício tá acabando com a minha criatividade!
Correção do exercício? Isso acendeu uma luz na mente de null, talvez fosse a null.
- Aqui, pode aproximar o cartão – o homem disse para null. Ele tomou coragem e se manifestou.
- De vez em quando é bom arejar a mente, não é? – Ele disse sorrindo e a mulher olhou para ele concordando com a cabeça.
- De vez em quando, tudo o que eu preciso é de um pedaço de uma das tortas da Luna, isso abre minha mente! – Ela disse se aproximando dele e do balcão para ver o que tinha lá. null notou que ela também tinha um pouco de sotaque, mas null não tinha mencionado isso. Talvez não fosse ela.
- Aqui está a sua nota e o seu pedido, aproveite!
Antes de pegar o pedido, null respirou fundo, olhou para null e decidiu se arriscar:
- Espero que não pareça estranho, mas você se chama null? – Ele olhou para a mulher que estava meio abaixada olhando para os doces na vitrine do balcão. Ela o encarou profundamente enquanto se levantava. O homem atrás do balcão automaticamente se aproximou mais.
- Sim. E você seria?
Foi como se ele ouvisse uma voz ecoando em sua mente: “ela é meio desconfiada, então não estranhe!”. Era ela. Finalmente ele tinha a encontrado.
- Sou null null. Nós temos um conhecido em comum. – Ele estendeu a mão e ela não reagiu, apenas olhou para ele. – null null! Ele me contou do encontro de vocês.
A feição dela mudou completamente, o olhar de desconfiança se tornou um olhar de total entendimento e um toque de confusão.
- Claro! É um prazer te conhecer, sou null null.
Aí estava o nome e sobrenome. Como null não tinha tido a capacidade de pegar uma informação simples como essa? Ela finalmente estendeu sua mão, apertando em seguida.
- Aconteceu alguma coisa? Eu vou precisar assinar algo? Foi uma conversa de menos de quinze minutos! – Ela disse rapidamente e ele riu baixo. Bem que null tinha o avisado.
- null null? O cantor? Quando foi que você conheceu ele? – O homem atrás do balcão perguntou olhando a amiga.
- Lembra quando semana passada você foi fazer aquela prova e eu cobri as suas entregas? Nesse dia aí.
- Eu faço entregas todos os dias e no único dia em que você vai no meu lugar, você conhece um cantor famoso e vai ter que assinar um termo de confidencialidade? Isso não é justo! – Ele parecia indignado, mas não a ponto de ficar bravo de verdade com ela, pois ela sorriu para ele e ele retribuiu.
- Na verdade, eu não sou advogado do null, sou assessor dele. Ele quer conversar com você, te fazer uma proposta.
- Que tipo de proposta? – Ela novamente assumiu um tom desconfiado.
- De trabalho!
- Ele quer trabalhar comigo? Pra fazer o que?
- Que tal se você conversar pessoalmente com ele? Pode ser no escritório da gravadora, fica perto da quinta avenida.
- Pode ser!
- Você pode agora?
- Agora eu não consigo, que tal amanhã de manhã?
- Às nove?
- Combinado!
Após algumas trocas de palavras, null saiu e Santino encarou null.
- O que foi?
- null null? Você tá falando sério que conheceu ele?
- Sim, foi muita coincidência na verdade, foi quando eu estava no Queens fazendo uma entrega...
- Ainda por cima no meu bairro? – Ele a interrompeu. – Por que raios você não foi agora lá fazer a reunião?
- Olha pra mim, tô com o cabelo todo despenteado, com uma roupa de ficar em casa e sem uma gota de maquiagem. Você acha que eu iria desse jeito numa reunião que pode me dar um emprego?
Santino a olhou de cima baixo e assentiu:
- Amanhã espero que você esteja minimamente apresentável, espero que você consiga esse emprego e que você me apresente o null, já que em tese, eu deveria ter conhecido ele!
- Talvez não, talvez ele só tenha me ajudado por eu ser mulher!
- Nós nunca saberemos então.

***

Tinha se passado duas horas desde que null saiu para almoçar, mas para null estava mais para duas semanas. O tempo todo ele checava seu celular por mensagens ou olhava para o elevador quando ele fazia algum barulho, estava impaciente, já tinha esperado muito tempo. Estava pronto para enviar uma mensagem quando o elevador se abriu fazendo um barulho e, ao olhar pela milésima vez naquela direção, ele finalmente viu seu amigo, estava segurando uma caixa e seu rosto não esboçava nenhuma reação.
null se levantou e o encontrou no meio do caminho:
- E aí?
null pegou seu celular e mexeu rapidamente em algo:
- Por acaso, essa aqui seria a null? – Ele perguntou virando o celular em um perfil do Instagram. null reconheceu imediatamente ela e sorriu.
- Você encontrou ela! – Ele quase não se conteve de tanta felicidade.
- Guarde esse nome: null null. Peguei o perfil do Instagram dela e também o número do celular, só por garantia...
- null null. E cadê ela?
- Só vem amanhã de manhã.
- Amanhã de manhã?! – Repentinamente ele ficou indignado.
- Ela tinha mais o que fazer, nem todo mundo vive por você, null! – De vez em quando, null precisava lembrá-lo de que as pessoas trabalhavam para ele, mas não viviam para satisfazê-lo.
- Tem razão, pelo menos agora temos o contato dela e finalmente vou poder conversar com ela. Isso vai ser incrível!
- Sabe o que é incrível de verdade? Esse cupcake. Eu nunca provei nada assim na minha vida!
null olhou a caixa e reconheceu de imediato, era igual à caixa daquele fatídico dia. Lembrou-se também do conteúdo interno e riu fraco.
O dia seguinte chegou mais rápido do que qualquer outro dia e, após o retorno de null, pareceu que um enorme peso foi tirado dos ombros de null, além disso, boa parte dos seus pensamentos se tornaram mais tranquilos, mas isso não mudava o fato de que ele não se aguentava de ansiedade para reencontrar null e saber se ela aceitaria a proposta.
Ele acordou antes do despertador, tomou banho, se barbeou, escolheu uma roupa que passasse seriedade, mas ao mesmo tempo que mantivesse a personalidade e estilo dele. Ao chegar no prédio da gravadora, null já estava o esperando, ele parecia ansioso.
- Más notícias.
- Bom dia pra você também.
- David está no prédio.
Isso realmente não era boa notícia. Se David estava pressionando null para que null enviasse logo suas novas músicas, encontrar com ele era pior, significava que null seria pressionado pessoalmente e teria que confrontá-lo, coisa que não queria fazer.
- Ele está em uma reunião, mas conhecendo ele, sei que assim que terminar, ele vem direto falar com você.
- Deixa ele vir então! – null bufou. O dia mal tinha começado, mas já não estava correndo como ele imaginou. Antes que null pudesse responder, seu celular tocou:
- Aqui é o null. Sim, pode deixar ela subir – ele desligou e o encarou. – null chegou!
O estômago de null deu um salto triplo carpado ao ouvir essas duas palavras. E se null chegasse ao mesmo tempo em que David? E se David barrasse a contratação de null? null sentou-se em uma das muitas poltronas que ficavam naquele andar e respirou fundo, tentando não vomitar seu café da manhã. null foi em direção ao elevador para recepcioná-la, em poucos segundos o som de aviso do elevador anunciou a chegada da pessoa mais aguardada por null.
- null, muito bom rever você! – null sorriu para ela e estendeu a mão, ela o cumprimentou.
- Bom te ver também, null! – Era a voz dela, null se levantou e olhou na direção em que estavam, null estava totalmente diferente daquele dia, estava com uma roupa mais social, sua postura tinha algo diferente também.
- null, não. Só null, por favor! Quem me chama assim é a minha mãe e nunca vem acompanhado de alguma frase positiva. – null riu e, sem perceber, null sorriu.
- Quer dizer que seu sobrenome é null, senhorita null. – null disse e ela o encarou pela primeira vez depois de exatamente uma semana.
- Quer dizer que vocês praticamente me procuraram pela cidade inteira, senhor null null? – Ela respondeu sorrindo e ele olhou para null, que deu de ombros.
- Eu contei, ué! Ela estava achando estranho eu aparecer do nada na loja da amiga dela, você queria que eu fizesse o que? – null ficou envergonhado e sentiu suas bochechas queimarem. null observou a reação dele e sorriu fraco.
- Eu confesso que fiquei lisonjeada, na verdade, eu pensei que alguma coisa tivesse acontecido e eu tinha que assinar um termo de confidencialidade.
- Você acha que alguma coisa que nós conversamos era um risco? – null brincou.
- Eu não sei, tinha um conteúdo para maiores de idade, se é que você me entende. – null se referia aos desenhos nos cupcakes e null riu.
null encarava os dois, mas não entendia sobre o que estavam conversando. Será que null tinha chamado null por que estava interessado nela? Seu motivo era puramente profissional, mas vendo os dois conversarem, era nítido que existia algo. Apesar de ter vontade de mandar os dois para uma sala reservada, ele não podia. David estava no prédio e apareceria a qualquer momento.
- Vamos ao que interessa, então? – Ele interrompeu os dois, parecendo que acabara de os tirar de um transe.
- Sim! null, não sei se null te contou alguma coisa, mas em breve eu vou lançar uma música e eu acredito tanto no potencial dela, que quero fazer um videoclipe que não seja simplesmente bom, quero que ele seja fantástico!
Enquanto explicava, null notou um brilho nos olhos dele, um brilho que não tinha visto durante aquela pequena conversa que tiveram. Talvez esse fosse o mesmo olhar que seus amigos e familiares se referiam quando ela começava a falar sobre o teatro, sobre as histórias. Parecia que ela o estava conhecendo pela primeira vez, o imigrante solitário tentando ganhar a vida com arte.
Antes que ele pudesse continuar sua explicação, o elevador se abriu e de dentro, saiu um homem com roupas sociais, postura muito correta e um ar de superioridade:
- null, null, preciso falar com vocês agora! – null e null se olharam.
- David, que bom ver você! Pode ser daqui a pouco? Estou no meio de uma reunião. – null respondeu tentando parecer calmo.
- Não pode ser depois, você dispensou outro roteirista e outro diretor. O que te faz pensar que aquelas pessoas não eram qualificadas? Nós temos prazos, compromissos e aqui vai um pra você: em trinta minutos nós vamos entrar naquela sala de reuniões e você vai aceitar a última proposta que te enviaram.
- Isso não vai ser possível, eu me recuso a aceitar aquela proposta, não tem nenhuma conexão com a música. Não vou fazer.
- Conexão com a música? É só um vídeo, que tipo de conexão precisa ser feita?
null nem precisava que null explicasse mais nada para ela, pois já tinha entendido tudo. Chefe tirano? Já teve. Pessoas que não entendiam a importância de uma boa narrativa? Conhecia aos montes. Aquela discussão estava quase se tornando pessoal para ela, sem ela ter sido sequer mencionada.
- Não é só um vídeo. É um meio de contar uma história. Muito antes de existir som nos filmes, as pessoas entendiam toda uma história só com imagens e ações. – null interrompeu null, que estava pronto para defender seu esforço. David a olhou de cima a baixo.
- E você é?
- null null, muito prazer!
- null é uma grande roteirista, ela está aqui justamente pra finalizar essa pendência, David! – null se prontificou.
- Quantos clipes você já roteirizou, null?
- Nenhum. – David riu sarcástico.
- E o que te faz pensar, null, que a null é mais qualificada do que roteiristas com anos de experiência?
Agora estava ficando pessoal para null. Como uma pessoa poderia ser tão insensível assim? E então, um momento súbito de coragem e autoconfiança emergiu:
- Você tem uma reunião em trinta minutos? Eu te apresento uma proposta melhor do que qualquer outra que você já viu em quinze.
null e null olharam para ela, em seguida trocaram olhares e encararam David, que ficou em silêncio. Ele encarou null e cedeu:
- Tudo bem então.
- O que você precisa? – null perguntou para null, eufórico.
- Uma sala silenciosa, um papel, caneta ou lápis, quero a letra da música, e se a música já estiver gravada eu preciso ouvi-la, se não estiver, a partitura já serve.
- Seu desejo é uma ordem, vem comigo! – null começou a andar e null o seguiu. David e null ficaram para trás em silêncio.
- Quem é ela, null?
- É a futura roteirista e diretora do meu clipe.
- Eu sei que você quer que tudo seja perfeito, mas não se esqueça de que nós temos um contrato.
null travou seu maxilar de raiva, mas não disse nada, apenas andou em direção à sala que null tinha acabado de sair.
- Que ideia de milhões, null! – null resmungou para si própria enquanto sentava-se em uma das cadeiras disponíveis. Tinha recebido um tablet que continha a letra da música, assim como a própria música gravada.
“Destinos Entrelaçados” estava escrito como título da música. Só com isso ela já conseguia visualizar diferentes histórias. Estava pronta para ouvir a música quando a porta se abriu e null entrou, parecia nervoso.
- O que é? – Ela perguntou um pouco mais brava do que gostaria e ele parou no caminho.
- Que grossa! – Ele disse sério e depois sorriu. Ela fez o mesmo.
- Eu só tenho quinze minutos pra provar que sou uma roteirista melhor do que qualquer outro.
- Um prazo que você mesma estipulou!
- Mais uma das belíssimas coisas que eu eventualmente faço: me colocar em situações que vou me arrepender.
- Você foi brilhante lá fora, nem precisei te dizer nada.
- A não ser que você queira dizer pro tal do David que eu vou precisar de mais tempo, sugiro que você saia da sala! - Ela disse firme, mas sorrindo.
- Sim, senhora! – null se levantou, quando saiu da sala, não viu nem null, nem David.
Em uma sala de ensaios, David chamou null e pediu que ele fechasse a porta ao entrar:
- null, eu sei que você é amigo do null, mas algumas decisões que ele toma não prejudicam somente a carreira dele, podem prejudicar a sua e a minha.
- Eu entendo.
- null null. Quem é ela?
Aí estava. David fez a pergunta de um milhão de dólares e null tinha duas escolhas: falar a verdade e prejudicar seu amigo ou mentir e correr mais riscos do que já estavam correndo.
- É uma antiga colega do null. Ela é brasileira e estava passando um tempo com a família, chegou ontem de viagem, por isso a demora.
David o encarou profundamente. Ele tinha aquela habilidade de ver dentro da alma das pessoas, parecia até que sabia ler mentes, talvez lesse o comportamento.
- Ok. Vamos aguardar a proposta dela. – Ele assentiu e null saiu da sala.
Parecia até a recepção de um hospital de tão silencioso que estava aquele andar do prédio. De um lado, null estava rabiscando freneticamente um pedaço de papel para tentar se acalmar. Do outro, null tamborilava os dedos na perna em um ritmo tão rápido que em breve começaria a sentir cãibra. A porta da sala de ensaios se abriu e David apareceu olhando no relógio de pulso:
- Quinze minutos.
Todos olharam em direção à porta fechada da sala de reuniões. null respirou fundo e se levantou:
- Vou chamá-la. – Antes que pudesse fazer isso, a porta se abriu e null surgiu com um maço de papeis. Ela entregou todas as folhas para null.
- Espero que vocês entendam a proposta, se eu tivesse mais quinze minutos eu tinha formatado esse roteiro melhor. Agora, onde é que eu consigo um copo enorme de café nesse lugar?
- Eu te acompanho! – null sugeriu e os dois caminharam até uma cozinha. Ele pegou duas xícaras de café, colocou a bebida para ela, e um pouco menos para ele.
- Esse David é sempre assim?
- Assim como?
- Você sabe como, nós estávamos no mesmo lugar durante a conversa.
- Ele é sempre assim, muito intenso. Mas você precisa entender, ele produziu grandes nomes da indústria, você tem que ter um certo tipo de personalidade pra sobreviver nesse meio.
- Não sei se isso justifica certas atitudes.
- Com certeza não justifica. – null encarou null, pareceu que ele tinha dito aquilo do fundo do coração, quase um desabafo de quem já tinha sido tratado pior. Ela não disse mais nada, apenas tomou seu café e apreciou a pausa que deu para seu cérebro, fazia muito tempo que ele não trabalhava freneticamente em uma ideia. Ainda mais uma ideia que literalmente poderia mudar a vida dela.
Muitos minutos se passaram em silêncio, eles ouviram passos apressados vindo em sua direção, cada vez mais alto e mais próximos, até o dono entrar no recinto com um sorriso que ia de um canto ao outro do rosto. null caminhou até null e a abraçou. A mulher não esboçou nenhuma reação, a não ser surpresa.
- Como?
- Como o que? – Ela perguntou.
- Como foi que você conseguiu dar vida às minhas palavras?
- O que você escreveu já tinha vida, eu só organizei de uma forma que visualmente contasse uma história.
- O que o David disse? – null não se aguentava de ansiedade.
- Você devia ter visto, ele disse: parece promissor! – null imitou a voz de David e eles sorriram.
- Isso é praticamente um: você mandou muito bem, null! – null comemorou enquanto explicava.
- E o que isso quer dizer? – A mulher questionou.
- Quer dizer que, se você quiser, a vaga é sua. null null, quer ser a diretora e roteirista do meu vídeo?
- Diretora?! – Ela não esperava tanto.
- Eu não consigo pensar em mais ninguém, mesmo que eu tente, mais qualificado que você pra dar vida a esse roteiro. O que me diz?



Continua...



Nota da autora: Olá! Espero que vocês gostem dessa história que tem um espaço enorme no meu coração. Esse é só o começo de algo muito bom!





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