1.
Eu nunca soube se realmente gostava de garotos.
Esse era um pensamento que não surgira da noite pro dia. Minha vida não era lá muito longa, mas por toda ela eu me senti... diferente. Digo, eu sempre fui uma garota comum; estatura mediana, desempenho escolar dentro do esperado, via tanto filmes de romance da Netflix quanto os de heróis no cinema. Cresci inundada pelas histórias da Disney e acompanhando as séries policiais que meus pais viam. Tudo na mais absoluta normalidade. Porém, conforme fui crescendo e o assunto “namoro” foi se tornando constante entre as pessoas da minha idade, eu me sentia a última competidora da maratona.
E vinha ficando cada vez mais pra trás.
Até certo ponto, isso não me incomodara em nada. Eu não precisara me pressionar a ficar com alguém, não faria nada que não quisesse realmente fazer. Além da experiência inusitada de beijar um garoto que gostava de mim – e não era recíproco – na sétima série, eu não tinha muito o que contar. Na verdade, eu não tinha interesse em ninguém e vivia bem assim.
Quer dizer, teve a vez que senti alguma coisa por alguém. Talvez ainda sentisse, se a pessoa estivesse por perto, mas como não a vejo mais, acabei deixando pra lá e esquecendo. No fundo, fico feliz por não ter progredido em nada, pois nem mesmo conseguiria imaginar a vergonha que seria se alguém descobrisse. Pior, se descobrisse.
Para , tudo era fácil e simples. Ela era mais nova que eu, mas muito mais experiente porque só se arriscava e pronto, não ligava pro que fossem falar dela. Por ser assim, ela achava que todo mundo devia fazer o mesmo, incluindo eu. E eu não queria que ela tratasse algo que era delicado pra mim como “frescura”, dando soluções simplistas sem levar em consideração o que eu sentia. Por causa disso, eu nunca contei pra ela que gostava de alguém até então.
– Amiga, depois da aula vou passar com a minha mãe no shopping pra comprar minha roupa pra festa, quer ir também? – disse, secando as mãos na própria calça jeans. Estávamos no intervalo do curso, éramos da turma de horário duplo no sábado. Desde o começo do curso de espanhol, mesmo horário, mesmas turmas, há quase dois anos. Acabamos ficando bem próximas, principalmente pelo fato de morarmos perto uma da outra. Não fossem esses detalhes, seria uma amizade não impossível, mas talvez difícil de acontecer.
– Nossa, já tá perto, né? – conferi a data no meu celular. – Posso ir, sim, só preciso avisar minha mãe antes.
– Ótimo – ela estendeu as mãos para mim, pedindo de volta sua mochila, que eu segurava. – De repente você acha algo pra você também.
– Pode ser – respondi, sem emoção, enquanto seguíamos para nossa sala. Eu já sabia que nem tentaria, mesmo se visse algo legal, porque sabia como eu era chata para escolher roupas pra mim mesma. As roupas sempre ficavam mais legais no manequim ou em outra pessoa, eu parecia uma batata de fantasia. Além disso, escolhia vinte peças e, quando gostava de alguma coisa, era uma camiseta de algum personagem. Sempre. Até eu mesma já estava cansada, preferia evitar a fadiga.
2.
– Já vestiu? – a mãe de estava já impaciente, parada fora da cabine que minha amiga experimentava mais uma muda de roupa.
– Calma, mãe! – disse em um guincho, e a tia Martha bufou e revirou os olhos, em seguida olhando pra mim e apontando para a cortina da cabine.
– Como você aguenta?
– Ela não mora comigo... – respondi, um tanto divertida. Recebi mais uma mensagem de com foto do look no Telegram, o que costumávamos fazer uma com a outra pra salvar imagens importantes.
Impaciente, tia Martha puxou parte da cortina e pôs a cabeça para dentro da cabine, assustando enquanto ela tirava outra foto no espelho. Ri pela sequência de eventos, ouvindo o grito de “Mãe, sai!” e a pequena discussão entre as duas que se seguiu. Mais uma muda de roupa e muitos minutos depois, saiu com um tubinho dourado, de alças finas e decote nas costas, incrivelmente perfeito para seu corpo. Minha única reação foi abrir a boca em um icônico “O”.
– É esse! – tia Martha decidiu, admirada com a filha. Eu adorava o fato de as duas serem tão unidas, o que facilitava muito nas escolhas e atitudes da minha amiga. Elas conversavam sobre tudo, e até mesmo quando o assunto era meu, tia Martha participava sem forçar a barra. A diferença de idade não era grande, uma vez que tia Martha casou e foi mãe cedo, ajudando muito nisso. Eu por muitas vezes invejei a relação das duas, já que na minha casa era bem diferente. Não que meus pais fossem rígidos ou conservadores; ao invés disso, eram bastante compreensivos, entretanto as conversas simplesmente não surgiam de forma espontânea. Havia as possibilidades, mas não as oportunidades.
– E você, ? – fui tirada dos meus pensamentos, piscando mais que o usual ao olhar para tia Martha. – Não viu nada, não gostou de nada?
– Ah, não, eu... – tentei bolar uma desculpa rapidamente, sem querer desbloqueando meu celular com a digital. Um post no Instagram estava aberto, e como um clique consegui formular algo. – Fiquei distraída participando da promoção da Hayley, desculpa.
– Já pensou se a gente ganha? – se aproximou, já vestida com as próprias roupas. – Imagina ter meu aniversário, show da Hayley e a gente ainda conhecer ela, tudo no mesmo mês?
– Eu sempre gostei do mês do seu aniversário – pus a mão sobre o peito, fazendo uma careta enquanto puxava saco da minha amiga, que riu.
– Não mais que eu – ela me imitou. Segundos depois, pôs a mão em meu pulso e puxou de leve. – Mas agora vambora, eu vi um vestido que acho que você vai gostar.
– Vestido? – indaguei, sofrida. – Eu não gosto de vestido, fico estranha.
– Estranha a gente já é – rebateu , rindo. Uma completa mentira da parte dela. Continuei relutante, fazendo força para me manter sentada. – Vem, , o que custa?
– Experimenta, – tia Martha incentivou. – De repente você gosta.
– No pior dos casos – continuou –, você não leva o vestido. Não paga nada pra experimentar.
Olhei para as duas, cansada. Eu sabia que não ia adiantar negar, então aceitei minha derrota e fui com elas até as araras. A maior parte dos vestidos tinha cores bem vibrantes e decotes, além de serem apertados e curtos o suficiente para que eu não conseguisse usar um short por baixo. No entanto, o tal vestido que tinha falado parecia ser mais solto, ainda que marcasse a cintura, e seu comprimento devia ir entre a metade da coxa e o joelho. Fui obrigada a concordar que era uma boa escolha, e talvez eu pudesse gostar dele em mim.
Carregando o cabide até os provadores, respirei fundo, já preparada para a frustração de mais uma roupa linda ficar péssima quando eu a vestisse. Retirei minhas peças sem me olhar no espelho, arrependida de ter colocado uma calcinha enorme que provavelmente ficaria marcada debaixo do tecido. Dependendo de como ficasse, eu teria que usar uma calcinha fio dental?
Meu pai amado, que pesadelo.
Passei o vestido pela cabeça com os olhos fechados por mais tempo que o necessário, ajeitei as dobras que se formaram, respirei fundo mais uma vez e me olhei no espelho.
– E aí? – ouvi por trás da cortina.
O vestido era lindo. Mais do que isso, eu estava me sentindo linda com ele, supreendentemente. A última vez que tinha usado um vestido fora no terceiro casamento de uma tia paterna, e eu ainda era criança. Desde que tinha começado a escolher minhas próprias roupas, sempre optava por calças e shorts, pois me sentia muito mais confortável sem parecer tão... menina. A ideia de chamar a atenção para meu corpo, ao contrário da maioria das minhas amigas, me deixava extremamente desconfortável. Mas até mesmo o decote ali era modesto, quadrado e com alças largas. Parecia ter sido feito pensando em mim.
Dei meia volta, contente em abrir a cortina e mostrar como eu estava.
– Pronto.
– , você tá INCRÍVEL! – pareceu chocada ao me ver. – Olha, mãe!
Tia Martha, que estava um pouco mais distante, conversando com uma vendedora, virou-se para mim. Sua reação foi erguer os dois polegares, enfatizando sua aprovação com o rosto.
– Eu só não sei que sapato usar – virei a ponta do pé, erguendo um pouco o calcanhar. – Eu odeio salto, tá fora de cogitação.
– Pode ser uma sapatilha, então – sugeriu minha amiga, me analisando. – Acho que até com um tênis mais delicado fica legal.
Voltei-me para o espelho, tentando imaginar alguma das opções que eu tinha em casa. Não queria ter que enfrentar mais um dia de compras para escolher um sapato, apesar de estarmos bastante adiantadas ali – apesar de impulsiva, conseguia ser extremamente organizada em seus compromissos, programando até mesmo quanto tempo ela demoraria escolhendo uma roupa, como no caso. Pensar sobre comprar me lembrou do que eu havia ignorado até então: o preço do vestido. Procurei depressa pela etiqueta, e achá-la foi um balde de água fria.
– E então? – minha amiga já estava com as mãos unidas, na altura do rosto, pronta para bater palminhas de felicidade.
– Não vou levar – falei para , que pareceu surpresa.
3.
– Pronto, acabei a minha rodada de hoje! – bloqueei a tela do celular, jogando-o sobre a mesa da varanda do quarto de , no segundo andar. Horas depois da ida ao shopping, esperávamos meus pais chegarem para me buscar. A distância para minha casa era pouca, mas sendo já de noite, eles se sentiam receosos de me deixar voltar sozinha. Como eles estavam na rua, de carro, desviariam um pouco do caminho para casa e me levariam.
Enquanto nós aguardávamos, sentada em uma cadeira e com os pés no meu colo, fazíamos mais uma sequência de marcações num post do Instagram. Uma rádio local havia lançado uma promoção para levar duas pessoas ao camarim da Hayley Kiyoko, que faria um show no próximo mês, uma semana depois do aniversário da minha amiga. E eu era completamente doida pela Hayley.
De verdade, eu era doida por ela.
Era estranho pensar sobre o assunto, pois ao mesmo tempo que evitava olhar romanticamente para alguém, eu nutria um imenso sentimento de admiração e atração pelos meus ídolos. Eu me tornava obcecada por cantores e atores com uma facilidade imensa, algumas vezes até mesmo – vergonhosamente – sofria quando alguma notícia ruim surgia. Manter uma paixão platônica pelos meus ídolos era muito mais divertido e saudável que, bem, por pessoas comuns. E minha lista de ídolos era grandinha, com certeza. No entanto, Hayley Kiyoko estava definitivamente no topo.
Ela não era só mais uma cantora pop, pra mim. Apesar de ter visto Lemonade Mouth anos atrás totalmente por acaso, já que era parte do catálogo da TV a cabo, só algum tempo depois que fui reconhecer a garota que era a baixista do filme. Ela havia crescido, mudado, e suas canções falavam sobre sentimentos e ideias que eu também tinha. Eu me identificava com o que ela cantava, e ela representava algo que eu mesma via em mim, sem que eu precisasse me expressar por conta própria. Era reconfortante ver que uma pessoa completamente diferente de mim se aproximava tanto de um lado tão íntimo meu. Dessa forma, era fácil eu me sentir tão ligada a ela.
Óbvio que, como uma boa fã, eu surtei quando descobri que teria um show dela na minha cidade. Meus pais provavelmente não me deixariam ir sozinha, então antes mesmo da data do show chegar, fui influenciando minhas (poucas) amigas a ouvirem, e quem tinha se mostrado mais animada com isso foi . Ela topou ir comigo e recentemente participávamos dessa promoção para irmos juntas ao camarim. Era o meu sonho e uma história legal que ela teria pra contar.
Durante o dia, tirávamos pelo menos meia hora para participar da promoção, já que era o que multiplicavam as nossas chances. Eu nunca acreditei muito nesses posts, mas não custava tentar, né?
– Eu tô acabando aqui – disse , concentrada na tela do celular. Sem perceber, fiquei durante alguns segundos encarando minha amiga, notando o quanto as feições sérias dela também a deixavam muito bonita. Ela era uma daquelas pessoas que chegavam a dar raiva, de tão bonitas, pois sequer sofreram na adolescência sendo um patinho feio.
Eu não precisava nem dizer que era o próprio patinho feio, claro.
Desviei o olhar quando percebi o que fazia, vendo um rosto familiar se aproximando. acenou, abrindo o portão da sua casa e caminhando até perto de onde estávamos, do outro lado do muro que dividia o lote. se virou para ele também, ao ouvir o som do portão.
– E aí, mais uma maratona de filmes hoje? – ele perguntou, sorrindo.
– Hoje não – disse minha amiga, ajeitando-se na cadeira. – A vai pra casa daqui a pouco.
– Ah, sim. – ele pareceu se lembrar de algo rapidamente. – Deixa eu subir, tenho um negócio pra vocês!
– Achou um brinde perdido de Wifi Ralph, que eu te pedi desde que lançou?
negou com a cabeça para , rindo e sinalizando para esperamos. Pouco tempo depois, surgiu na varanda do próprio quarto, ao nosso lado. Segurava um pôster enrolado.
– É realmente algo perdido, mas desiste das princesas do Wifi Ralph que não vai rolar – disse, estendendo o pôster em nossa direção. Levantei-me para alcançá-lo, entregando direto para , que era quem geralmente ficava com os brindes que ele trazia do trabalho.
– Nossa, esse filme é péssimo – minha amiga resmungou, deixando-me confusa. Ela estendeu de volta para mim, que só espiaria antes de devolver para . – Toma.
Era o pôster de Os Últimos Jedi, pessoalmente um dos melhores da última sequência. Antes que eu terminasse de enrolar, me interrompeu.
– Pode ficar, se quiser – disse ele, sorrindo de forma amigável.
– Ah, brigada! – abracei o pôster contra o peito, respondendo ao seu sorriso com um maior ainda. – Por que você não gosta do episódio oito, ?
– Oito? – ela fez uma careta. – Esse não é o último que lançou, o nove?
e eu nos entreolhamos, ambos com a melhor expressão de “O que essa doida tá falando?” que conseguíamos fazer.
– Amiga, o último foi A Ascenção Skywalker, a gente viu tem pouco tempo até – expliquei, rindo de leve.
– Vocês até foram quando eu tava atendendo na pipoca, nesse dia – lembrou . – Por isso eu disse que esse pôster era um perdido, ele é do filme mais antigo.
O rosto de se acendeu quando ela se deu conta do mal entendido.
– Ah... Eu gostei desse filme, na verdade.
– Agora já era – ergui uma das mãos, rindo. – Já é meu.
– Isso não é justo! – disse minha amiga, emburrada. também ria.
– Foi totalmente justo – ele saiu em minha defesa. – Você podia ter perguntado antes sobre qual era o filme.
– Eu lá vou saber?! – rolou os olhos. – Mas tá, fica com isso. Nem queria, mesmo.
– Ótimo, porque mesmo se quisesse, eu não ia dar – dei a língua para minha amiga, de forma infantil, e ela respondeu igualzinho. Ouvimos todos uma buzina, e o carro dos meus pais estava parado na calçada em frente. – Chegou a minha carona!
Acenei para meus pais, e logo minha mãe surgiu na janela que se abriu, cumprimentando e . Virei-me para ele, que estava apoiado na grade da varanda. Apesar das casas serem geminadas e dividirem o mesmo terreno, não eram próximas o suficiente para que eu pudesse chegar perto.
– Eu te daria um abraço, mas tá meio complicado – comentei, fazendo-o rir brevemente.
– Fica pra outro dia – ele deu uma piscada e parecia feliz, mantendo o sorriso. Concordei com a cabeça. – Eu te cobro.
– Justo – concluí. Voltei minha atenção para , que já estava de pé na porta para seu quarto.
– Vamos, vou contigo até o portão – disse ela.
– Tchau, – acenei antes de entrar, vendo-o fazer o mesmo.
Minha amiga fechou a porta de vidro, parada com as mãos na cintura enquanto eu procurava as minhas coisas pela bagunça do seu quarto. Ainda sentia o coração quentinho por ter ganhado o pôster de Star Wars, que além de uma das minhas sagas favoritas, tinha o Adam Driver na sequência, e ele era um dos que constavam na minha lista de obsessões de fã. Eu já tinha um lugar perfeito para colar o pôster, na minha parede. Eu realmente devia um abraço em para agradecer.
4.
Era quem devia estar ansiosa e sem dormir a noite toda, às vésperas da sua festa de aniversário, entretanto eu quem estava. Tinha passado a madrugada de sexta tentando encontrar algo para vestir, mas absolutamente tudo que eu tinha era péssimo e eu odiava. Eu nunca tinha me sentido tão mal com a minha própria imagem quanto nas últimas horas, e nem mesmo tinha explicação para isso, o que me deixava ainda mais nervosa. Eu já tinha ido a festas de aniversário, obviamente; já tinha usado todas as roupas do meu armário, e elas ainda estavam ali porque eu gostava delas. Em determinado momento, já mental e fisicamente cansada, desisti de tudo e tentei descansar um pouco, cochilando algumas horas antes de ser acordada com batidas na porta.
– ? – ouvi minha mãe chamar antes de abrir a porta, já que eu não respondera às batidas. – O que aconteceu aqui?
Olhei por cima do ombro para as roupas espalhadas no chão, voltando a encarar a parede com um misto de raiva por me sentir assim e vergonha por terem me descoberto. Eu devia ter me lembrado de trancar a porta, a fim de evitar esse momento constrangedor. Só queria ficar sozinha até esquecer aquilo, mas eu sabia que minha mãe não iria ignorar. Pelo contrário, ela ainda estava ali, vindo até mim.
– , por que suas roupas estão assim?
Eu não queria conversar, não queria pensar, porque sabia que aquilo ia me machucar. Aquela conversa era um grande lago congelado, e cada passo sobre ele era uma sonora rachadura que surgia sob meus pés.
– Eu não vou sair daqui enquanto você fingir que não tá me ouvindo – minha mãe insistiu, sentando-se na beirada da cama. Inspirei fundo lentamente, soltando o ar todo de uma vez.
– Eu não vou sair de casa, hoje – falei com firmeza, sem deixar nada passar pela minha cabeça.
– O quê? Por quê? – minha mãe pareceu surpresa, eu ainda não a olhava. – Você e a brigaram? – neguei com a cabeça. Houve silêncio por alguns segundos. – Você tá bem?
E eu afundei. Imediatamente senti meus olhos cheios d’água, e pela posição que eu estava na cama, as lágrimas começaram a escapar. Como eu diria pra minha mãe que me olhava no espelho e me sentia a garota mais feia do mundo? Que nenhuma roupa me servia porque eu me sentia horrível? Que eu nem sabia por que motivo me sentia completamente inadequada? Que de uma hora pra outra eu simplesmente desabei? A sensação realmente era a de me afogar em águas geladas. Sem que eu percebesse, vieram os soluços.
– Ei – eu ouvia a voz da minha mãe abafada, distante. – Não fica assim, meu amor. Você não precisa ir se não quiser, mas não fica triste.
– Fico, sim, porque eu me sinto horrível – minha voz saiu como um miado, de tão fraca. – Todo mundo vai estar lá super arrumado e eu vou ser a jeca que não sabe se vestir.
– Você não tem que impressionar ninguém – ela rebateu, e eu finalmente tive forças para me virar. – Você nunca ligou pra essas coisas, , sempre foi você mesma.
– Mas e se ser eu mesma não for suficiente?
– Suficiente pra quê? – apesar de preocupada, minha mãe tentava falar com muito carinho. Seu tom de voz carregava algum conforto. – É só o aniversário da . Vocês são amigas há tanto tempo, ela já te conhece de todo jeito, até descabelada e de pijama velho quando ela vem dormir aqui.
Eu ri a contragosto. Vendo que finalmente ela havia quebrado o gelo, mamãe abriu os braços para mim, e eu me aninhei em seu colo como um cãozinho abandonado.
– Você não tem que se comparar com os outros pra se sentir melhor ou pior que eles, minha filha – ela disse, acariciando meu braço encolhido sobre o peito. – Eu não sei o que tá passando pela sua cabecinha e não precisa me contar agora, respeito o seu espaço. Mas você tem que entender que você não é horrível. Você é uma menina linda, inteligente, carinhosa, e não é a forma que você se veste que vai dizer quem você é.
– Mas a vai usar um vestido lindo e caro – funguei alto, secando as bochechas. – Ela queria que eu usasse um vestido que vimos outro dia no shopping, mas era muito caro e eu não ia conseguir pagar com a minha mesada. A tia Martha até ofereceu pra passar no cartão dela, e aí eu ia pagando aos poucos, mas eu não quis.
– A gente pode ir à loja, se você quiser...
– Não precisa – interrompi, olhando de novo para a pilha de roupas jogadas. – Eu vou olhar de novo o que eu tenho, alguma coisa tem que servir.
A questão não era ter dinheiro ou não, comprar o vestido ou não, e sim que eu estava nervosa por ir a um evento com várias pessoas desconhecidas e não queria chamar a atenção. Eu era amiga de , e só. Eu sabia bem como aniversariantes ficam ocupados, sem poder dar atenção para apenas uma pessoa. Conhecia brevemente a família dela e uma amiga ou outra que eventualmente estava na casa dela, mas não me parecia confortável passar a noite toda alugando alguém. Muito provavelmente eu ficaria deslocada, e estar mal vestida para a ocasião só reforçaria tudo isso. Seria fácil para qualquer um notar a garota desleixada e isolada. Antes mesmo disso acontecer, eu já estava apavorada e nem mesmo conseguia me expressar direito. Odiava ser o centro das atenções, principalmente de forma negativa. Eu só queria ser invisível.
– Não quer dar uma olhada no meu armário, então? – sugeriu minha mãe, e por um momento meu fluxo acelerado de pensamentos cessou. – Eu não sou nenhuma blogueira de moda, mas sei me vestir legalzinho.
Ri da forma que ela falou, tentando avaliar se seria uma boa opção.
– Pode ser – respondi, sem conseguir pensar em algo que pudesse sair errado daquilo. – Eu só preciso descansar um pouco, não consegui dormir essa noite.
– Tudo bem – mamãe me deu um beijo estalado na testa, e eu saí de seu colo. – Mas quando você acordar, vai guardar essa bagunça toda.
– Táaa booom – respondi, entediada de antemão, vendo-a se encaminhar para fora do cômodo. – Brigada, mãe.
– Boa noite, – ela sorriu, fechando a porta novamente.
Eu ainda não tinha certeza sobre como me sentiria mais tarde, como as coisas se desenrolariam. Talvez todo o meu medo se mostrasse irracional; talvez ele fosse mais real que eu imaginava. A única certeza que eu tinha era que eu precisava conversar com alguém, e por sorte minha mãe estava ali por mim. O pouco que tínhamos conversado já era o suficiente para que minha mente freasse e eu conseguisse respirar com mais calma, o que só acontecia quando eu passava horas ouvindo música e olhando para o teto. Eu poderia, então, dizer que gostava tanto da minha biblioteca do Spotify quanto gostava da minha própria mãe?
5.
Eu sabia que seria uma festa enorme e cara, mas não tinha noção do quanto. era uma menina muito popular, apesar de no curso andarmos só nós duas o tempo todo juntas. Gostávamos da nossa turma, inclusive, mas eram pessoas muito diferentes a cada semestre, o que dificultava a manter uma amizade mais consistente. Já na escola dela, pelo que ela mesma dizia e pelo que eu podia ver ali, naquela noite, ela com certeza era a queridinha de todos.
Olhei ao redor do salão, procurando rostos familiares pelas mesas. Tia Martha estava na recepção, onde me recebera com um abraço apertado e elogiara bastante o pretinho básico da minha mãe ajustado às pressas. O bom da roupa preta é esconder toda a costura esculhambada, porque nem eu, nem mamãe sabíamos fazer pence em linha reta. Esticando as rugas do vestido, respirei fundo e andei sem rumo por mais um tempo. Acabei próxima à mesa de frios, afinal eu estava ali também pela comida, não era de ferro.
– Eu recomendo tentar o queijo brie com mel – uma voz familiar disse atrás de mim, e eu sorri abertamente ao ver ali.
– ! – falei seu nome com alívio genuíno. – Você veio!
– Sim, consegui trocar o turno com uma amiga hoje – ele parecia feliz. – Ainda bem que você tá aqui, achei que eu fosse ter que socializar com a avó da .
O volume da sua voz tinha abaixado um pouco, como se alguém pudesse nos ouvir com a música alta que tocava. Ri com a mão no rosto, também fingindo discrição. Olhei para a mesa, vendo cubinhos de queijo sobre uma camada do que devia ser mel, conforme havia me dito, e peguei um para provar. Estava apenas divino.
– Você definitivamente tem bom gosto pra comida – eu ainda mastigava enquanto falava, meio desajeitada.
– Não só pra isso – ele lançou um olhar convencido, e eu rolei os olhos de propósito. – Já viu minha lista do Filmow?
– Lá vem você de novo, cinéfilo chato – impliquei com ele, pegando outro cubinho de queijo e examinando o restante da mesa. – O que mais você recomenda?
– A minha companhia – tentando parecer sério, me ofereceu seu braço. Olhei-o de cima a baixo, exagerando na neutralidade, aceitando em seguida. – Sou obrigado a dizer que isso implica em passar mais tempo aqui por essa mesa, porque pretendo dar mais uma volta nas opções de petiscos antes do jantar.
– Tomei a decisão certa, então – pus um sorriso satisfeito no rosto, e ambos começamos nossa excursão pelos quitutes da festa, vez ou outra interceptando garçons com bebidas.
Eu estava feliz por ter encontrado . Nós nos conhecíamos há quase o mesmo tempo que eu era amiga de , justamente por eles serem vizinhos, e as noites em que fizemos maratona de filmes com certeza me ajudaram a me sentir mais próxima e confortável quando ele estava presente. Não fosse a minha desconfiança de que ele era a fim de – e quem não era, não é mesmo? –, eu poderia dizer que a naturalidade com que ele se abria com a gente era algo que eu admirava muito. Claro, ele poderia ser assim, não só parecer para impressionar minha amiga, mas eu realmente sentia aquele leve interesse no ar e acreditava que seu jeito era mais flerte que qualquer coisa. E, bem, ele era bonito e do tipo de cara que ela gostava. , no entanto, nunca havia me contado nada sobre eles dois, e ela sempre me contava quando ficava com alguém.
De qualquer forma, no momento nada disso importava, éramos só nos dois fazendo companhia um ao outro. E era leve e divertido. Depois de um tempo considerável dando prejuízo na comida, tentamos dançar um pouco, apesar de ambos serem péssimos. As pernas de pareciam ter vida própria, dobrando-se sem jeito algum enquanto seus braços seguiam outro ritmo que não o da música. Eu ficava nos passos mais contidos, que também eram meio fora de sincronia, assumo, até que ele segurou minha mão e me fez guiar o giro dele sobre meu braço, muito menor que a altura necessária. Minhas bochechas doíam de rir das brincadeiras de . Ele realmente era uma pessoa e tanto.
Quando a música ficou mais lenta, em comum acordo fomos procurar um lugar para nos sentarmos. O salão já estava cheio, com a grande maioria das mesas ocupadas, então tivemos que pedir cadeiras avulsas a pessoas diferentes e procurar um lugar que não ficasse no meio do caminho. fez menção de buscar mais bebidas, então fiquei encarregada de cuidar do seu lugar, o que fiz me sentando no meio das duas cadeiras unidas. Enquanto ele vinha na minha direção, cuidadosamente segurando uma tulipa e um copo, não consegui desviar o olhar.
– O que foi? – ele perguntou, parando à minha frente e me oferecendo o copo. Neguei com a cabeça.
– Brigada – tomei um gole do suco. – Será que vai demorar muito pro parabéns? Já tô ficando cansada.
– Meus movimentos na pista de dança são demais pra você? – ele forjou uma expressão exageradamente sedutora, quase ridícula. Tive de me segurar para não cuspir a bebida sem querer. – Epa, cuidado aí.
– Você todo é demais – argumentei, um elogio sincero e sem pretensão. – Fico feliz que você tenha vindo.
– Eu também – respondeu, tomando um gole da sua cerveja. – E você tá muito bonita hoje, .
Ele apontou para uma das cadeiras, e eu rapidamente cedi espaço para que ele pudesse se sentar, sentindo não só minhas bochechas esquentarem. Aproveitei o breve momento para não precisar encará-lo diretamente. Tentei pensar em algo que eu pudesse falar e desviar o foco rapidamente.
– Eu pendurei o pôster que você me deu – falei em um sobressalto. – Tem uma parede do meu quarto, atrás da cabeceira da cama, que eu colo pôsteres e tal... Coloquei ali, ficou bem legal.
– Então posso cobrar meu abraço hoje? – antes mesmo de terminar a pergunta, já abria os braços para mim. Meu nervosismo continuava, mas eu mesma havia concordado com aquilo antes... E no fim, era só um abraço, que mal havia?
Em um segundo eu me perguntei como seria beijar .
Logo em seguida morri de vergonha por me pegar pensando nisso.
Deixei meu copo no chão antes de me virar para ele, sem olhá-lo nos olhos, e o abracei pela cintura, enfiando meu rosto em seu peito. Ele se encaixou sobre mim, apoiando a cabeça em meu ombro e apertando os braços ao redor das minhas costas. Embora aquele pequeno ato não significasse muita coisa, senti uma leveza estranha dentro de mim. Aquela não era a primeira vez que eu tinha essa sensação, mas nunca antes tinha surgido pelo toque de alguém. Eu me negava a chance de me aproximar das pessoas se não fosse por amizade, tanto que uma coisa tão simples e tão curta estava me tirando dos eixos. Eu era uma boba.
Separei-me de com a cabeça baixa, vendo meus braços aos poucos se afastando do seu tronco. Mas eu não queria aquilo. Ergui meu rosto, encontrando seus olhos sobre mim; ele sorria, e eu via carinho ali. Mais uma vez eu não pude desviar o olhar.
– ! – a voz de me trouxe de volta à realidade como uma flecha. Deixei a distância entre mim e crescer, tentando achar minha amiga entre os convidados. Ela estava um pouco mais atrás de mim. – Vem cá!
– Desculpa, eu... – tentei formular uma frase completa, conseguindo somente me embolar com sílabas e gestos. apenas concordou com a cabeça, rindo sem graça. e seu vestido magnífico estavam acompanhados de outras meninas, um rosto ou outro eu já conhecia, pelo menos por fotos.
– Amiga, quero te apresentar as meninas – disse ela, alcançando minha mão nos últimos passos que eu dava à rodinha. – Essa é a Tiemi, Marie, você já conhece a Helga e essa aqui é a Vivian.
Acenei e trocamos todas alguns “Prazer te conhecer”, eu me esforçando para estar de corpo e mente presente ali. Recordei-me que não tinha ainda entregado o presente de , o que finalmente desanuviou minha cabeça. Estava numa expectativa grande para entregar o presente da minha amiga, um berloque em formato de coração cravejado de cristais para sua pulseira Pandora. Não tinha sido uma pechincha, mas eu não ligava, pois era uma forma de reconhecer nossa amizade. Procurei a caixinha na minha bolsa, entregando-a para assim que a encontrei.
– Não precisava, ! Brigada – disse ela, contente, me abraçando apertado. – Minha mãe pediu pra eu abrir tudo depois, pra não acabar perdendo algum presente aqui na festa. Se não fosse por isso, abriria agora mesmo, tá bom?
– Não precisa se explicar – sorri em resposta.
– Por que você não chama seu namorado pra cá? – Tiemi perguntou, e não me dei ao trabalho de olhá-la, já que não era comigo. Mantive a atenção à minha bolsa, tentando fechar o zíper chatinho dela.
– , é com você – Vivian advertiu, e eu ergui uma sobrancelha só. – Aquele garoto contigo não é seu namorado?
– Deus me livre, não! – respondi de imediato, rindo com nervosismo.
– Que garoto? – se virou para onde eu estava antes, e continuava sentado ao lado da minha cadeira vazia, mexendo em seu celular. – ?! Ah não, gente, nada a ver.
– É, nada a ver – repeti, internamente feliz por minha amiga sair em minha defesa. – Ele é o vizinho da , a gente é amigo, só.
– E a não gosta muito dessa fruta – completou, e mais uma vez uma onda de vergonha me atingiu.
Ali era o último lugar que eu queria que esse assunto viesse à tona.
Para o meu alívio, as outras meninas pareceram (ou fingiram) entender a mensagem e não transformaram aquilo na pauta principal.
– Ele tá solteiro? – Tiemi ainda falava sobre , vez ou outra olhando na direção dele. Confirmei com a cabeça, sentindo que eu precisava beber alguma coisa com urgência.
– Quer que eu fale com ele? – ficou interessada no que a amiga tinha falado. – Ele é bem gatinho, né?
– Eu tô com sede, mais alguém quer pegar uma bebida? – perguntei, mais baixo do que eu gostaria, no entanto, Helga me ouviu e assentiu. Saí de perto do grupo o quanto antes, em silêncio à procura de um garçom ou do bar, o que aparecesse antes. Misteriosamente todos os garçons tinham sumido da minha vista, então tivemos de ir até o bar, onde havia uma pequena fila de espera.
– Tá tudo bem? – Helga perguntou, e eu não consegui ler bem suas expressões. Apenas assenti com a cabeça. – Tem certeza?
– Sim, sim – falei rapidamente. Eu realmente estava bem, era só um leve desconforto pela sequência de eventos, mas nada que me abalasse tanto. – Por quê?
– Sei lá, tive a impressão de que você queria uma desculpa pra fugir – ela riu, dando de ombros.
– Ah, não foi isso – forcei um riso também. – A falou besteira, mas não tem importância. Não é nada demais.
– Se você diz... – Helga se virou para o cardápio do bar. – Quer tentar pegar um drink alcóolico?
– Mas não vão perguntar a nossa idade?
– Fake it until you make it – ela disse com um sorriso travesso. – Tenta manter a pose e foca no que você quer, não o que você é. Aqui tem um monte de gente que já é adulta, mas tem cara de novinha, e eu vi que os bartenders não estão pedindo identidade nem nada. Aproveita!
Isso era certamente contra a lei, mas eu não achava nem um pouco errado. Era uma festa, eu estava ali para me divertir e não ia passar mal com um drink só. E talvez, além do conselho de Helga, eu pudesse me dar o conselho de beber para esquecer os problemas, não? Não existia um problema, de fato, mas eu sentia que a ocasião pedia por aquilo. E logo iriam cantar parabéns, a festa acabaria em um instante. Era agora ou nunca.
– Verdade – tomei uma postura mais firme, mais confiante. – Vamos!
Na nossa vez o bartender realmente nos olhou de um jeito desconfiado, provavelmente sabendo que não tínhamos idade ainda para drinks alcóolicos, mas ainda assim fez o que pedimos. Nenhuma de nós hesitou nem no pedido, nem no momento crítico, e como prêmio tínhamos uma piña colada e um drink de frutas vermelhas para aproveitarmos. Dali para o fim da festa, o tempo passou corrido e sem mais nenhuma neura minha. Dancei mais um pouco com Helga e , cantamos parabéns na pista de dança – o que foi surpresa até para a aniversariante –, o bolo e os doces foram distribuídos e os convidados começaram a ir embora. Enquanto me despedia de tia Martha, veio até mim.
– , quer passar lá em casa amanhã? – perguntou, animada. – Vou abrir os presentes, queria ajuda pra postar no Instagram. A Vivian falou pra fazer live, mas acho mico demais.
– Qual a diferença de live pra um post normal? – franzi o cenho, confusa.
– Duh, um é ao vivo e o outro não – ela revirou os olhos, rindo. – Não quero fazer live porque se não tiver ninguém assistindo vai ser péssimo. Mas o post todo mundo vê, né?
– Ah... – minha voz se perdeu no ar quando vi passar, sozinho. – Eu vou ver, não sei se vou poder.
Honestamente, eu só queria passar o domingo inteiro dormindo, mas essa era uma justificativa que não aceitaria de jeito nenhum. Depois de tanto tempo de convivência, já sabia que a melhor opção era dar a entender que eu poderia fazer o que ela quisesse, mesmo que não estivesse nem um pouco a fim. E, bem, não era por mal, eu só realmente estava cansada. A festa tinha sido boa, no fim das contas.
6.
“Meus pais acham que eu sou lésbica.”
Depois de pensar bastante se devia ou não falar sobre isso, enviei a mensagem para . Estava perto do fim da aula de Matemática, na segunda-feira após a festa de aniversário da minha amiga. Era estranho pensar como os últimos dias vinham convergindo para isso, como se houvesse uma data limite para que eu admitisse publicamente por quem eu me atraía. Mas eu simplesmente não podia nem conseguia me decidir por diversos motivos. Um deles era o fato de eu nunca ter realmente me envolvido com alguém.
Eu já tinha visto vários relatos pela internet de pessoas que, mesmo sem ter se relacionado com alguém, sabiam que eram homossexuais desde muito novas – mas eu não era uma dessas. Há anos eu apenas reprimia meus sentimentos pelas pessoas, a ponto de anular minha própria sexualidade. Eu não sentia nada por ninguém, e só a ideia de isso acontecer me apavorava tanto que eu bloqueava. Imaginar ter que lidar com a rejeição me deixava extremamente ansiosa, e eu não sabia como lidar com isso, logo fugia de qualquer possibilidade. E agora as pessoas começavam a desconfiar e sugerir coisas que nem mesmo eu sabia se era verdade. Eu gostava de garotas? Ou de garotos? Ou de ninguém?
Um fato era real: eu estava mexida por causa de . E por isso passei a evitá-lo desde aquele abraço, mais uma vez voltando ao hábito de reprimir sentimentos. Entretanto, estava incomodada por não conseguir; era difícil esquecer algo que era real, não só inventado na minha cabeça. Eu tinha realmente me sentido... atraída por ele. E eu só sabia lidar com paixões platônicas. Ou seja, eu não conseguia – porque não sabia como – esquecer que ele existia.
Enquanto isso, ao longo de um domingo de preguiça e cabelo pro alto, ouvi meus pais conversando sobre, bem, minha vida amorosa. Com a festa de terminando de madrugada, fui dormir quase de manhã e acordar no meio da tarde. Meus pais tinham me buscado de carro, como de costume, então minha mãe não tinha me acordado – coisa que fazia normalmente –, pois sabia que eu tinha ido dormir tarde e não tinha nenhum compromisso. Eles não perceberam quando eu acordei, provavelmente porque a TV estava alta demais para me ouvirem andar pelo corredor, contudo, eu os ouvia falando em alto e bom som.
– Talvez... – disse minha mãe, e eu parei no corredor, uns passos antes do campo de visão dela, que estava na sala. Meus pais costumavam conversar coisas sérias entre si que evitavam falar na minha frente, diziam que eu não tinha que ouvir certas coisas. Eu continuava ouvindo, porque tinha me tornado uma fofoqueira profissional dentro de casa, inclusive andando sempre de meias para não fazer barulho. – Eu achei estranho ela ter entrado em crise por causa das roupas, mas agora faz algum sentido.
– E ela sempre gostou dessas coisas – meu pai pausou, procurando a palavra certa para falar – diferentes, né?
– Como assim?
– LBTG, sei lá a sigla – respondeu ele, e eu arregalei os olhos, prendendo a respiração sem necessidade alguma. – Aquela cantora que ela vai ver semana que vem mesmo, não sei se você percebeu, mas as letras são sobre gostar de garotas. Garotas gostarem de garotas.
– Mas isso não diz nada – minha mãe replicou. – Você gosta de Queen e nem por isso é gay.
Soprei um riso, imaginando meu pai reencenando I Want to Break Free.
– É totalmente diferente, Lydia! – ele pareceu não gostar da comparação, e eu ouvi o som dos seus passos, o que me fez correr para o quarto e fechar a porta rápido o bastante para que eles não me vissem, mas suave o bastante para não fazer barulho. – Queen é uma das maiores bandas do mundo!
– Enfim, se for isso mesmo, ela uma hora vai falar com a gente. Ainda mais se ela e a realmente tiverem alguma coisa, o que eu acho difícil.
Desencostei da porta, surpresa com o que tinha ouvido. Eles achavam que eu gostava da ? Pelo amor de Deus, nada a ver!
“????????” Foi o que respondeu. Quando abri nossa conversa, outra mensagem chegou. “Mas você não é?”
“Não????” Mas até ela?! Eu realmente dava tanto essa impressão? Eu só não tinha interesse em ninguém, por que todo mundo automaticamente achava que eu era lésbica? Eu era obrigada a demonstrar interesse em garotos, agora?
“Tem certeza?”
“É CLARO!!!!!!” Senti meu rosto esquentar, e por sorte o sinal do fim da aula tocou, pois o professor já começava a olhar demais para mim, desconfiado de que eu estava no celular. Juntei rapidamente meu material e saí da sala em meio a horda de alunos que se apressava para passar pela porta ao mesmo tempo. Meu celular vibrou, mas ignorei imaginando ser ainda; eu não queria falar com ela naquele momento. Meu peito estava cada vez mais apertado, incapaz de sustentar o ar dentro dele. Por que eu não podia só viver minha vida em paz, sem que alguém tirasse conclusões sobre mim? Por que minha vida amorosa importava tanto pros outros? Por que justo as pessoas que eu mais gostava faziam isso comigo? Eu me sentia encurralada, pressionada a falar sobre o que não queria.
Entrei no banheiro feminino, enfiando-me em uma cabine sem nem olhar para o lado. Sentei-me sobre a tampa fechada da privada, o rosto enterrado em minhas mãos. Eu não podia chorar por causa disso. Eu não havia feito absolutamente nada de errado, mas por que me sentia tão mal? E o que eu sentia, afinal?
A desconfiança dos meus pais e a certeza com que afirmava que eu era lésbica mexiam comigo não porque eu achava aquilo errado. Eu não poderia achar errado gostar de garotas, porque sim, eu já havia me apaixonado por uma. E não poderia nem sonhar com isso, já que era a nossa monitora do curso. Eu morreria de vergonha se ela descobrisse que eu gostava de Erika, na época, pois as chances de isso parar nos ouvidos de outras pessoas era enorme. A própria Erika poderia descobrir, e isso seria o mesmo que um caminhão passar por cima de mim. Ela era mais velha, nem mesmo olharia para uma pirralha como eu. Eu sabia que não era só mais uma paixão platônica, como as várias que tenho pelos meus ídolos, porque eu tinha vontade de estar com ela. Eu imaginava como seria namorar ela. Ficava ansiosa para chegar logo sábado e poder conversar com ela, o que era o máximo que eu conseguiria fazer. Quando não estava no curso, eu me pegava aleatoriamente pensando nela. E quando ela deixou a monitoria, eu silenciosamente me vi perdendo uma pequena parte de mim.
Eu não sabia como ou quando aquilo tinha começado, muito menos por quê. Repentinamente me via atraída por uma pessoa que eu mal conhecia, e alimentava esse meu gostar com as ilusões que eu criava na minha própria cabeça. Era sufocante, me consumia. Mas eu não me arrependia, porque me motivava. No fundo, eu gostava de gostar de alguém. Ainda assim, aquele era um segredo que poderia custar minha sanidade, e eu morria de medo de um dia ser descoberta.
E naquele momento, estava prestes a ser descoberta.
Sem nem mesmo saber o que eu realmente era.
Olhei para o alto da cabine, inspirando e expirando fundo e alto. Tentei contar os segundos, pondo “Mississipi” entre eles. Ficar nervosa seria pior, eu precisava me acalmar para pensar direito. Eu não tinha feito nada de errado. Sempre tentava me manter longe das atenções, mas sabia que em algum momento teria que passar por aquilo, só não esperava que fosse dessa forma. Eu não poderia continuar fugindo de algo que era parte de mim, e que mesmo dizendo respeito somente a mim, trazia dúvidas às pessoas ao meu redor. O meu maior medo, na verdade, não era a rejeição de alguém que eu estava a fim, mas a rejeição que poderia sofrer dos meus pais. A partir dali, eu sabia que meu maior desafio seria ter essa conversa.
Fechei os olhos, com o controle sobre meu corpo retomado. Virei o visor do celular para mim, em cima do fichário sobre as minhas pernas, e notificações do Instagram estavam ali. Abri o aplicativo direto da tela de bloqueio, fazendo uma leitura rápida do que apareceu, e colocar a mão à frente da boca não foi suficiente para conter o grito que surgiu do fundo da garganta.
Eu ia conhecer a Hayley Kiyoko!
7.
Abri a porta da sala já preparada para pular em cima de , antes mesmo de ela entrar no apartamento. Já fazia algumas horas do resultado do sorteio, mas a euforia continuava a mesma. Eu estava no ponto mais alto da montanha russa de emoções, de cabeça para baixo, completamente inundada pela adrenalina e torcendo para que aquele momento de felicidade se alongasse o máximo possível. Finalmente dei passagem para minha amiga, então fomos direto para o quarto, de onde se ouvia a discografia da Hayley tocando alto o suficiente para os vizinhos reclamarem.
– Como a gente vai fazer? – perguntou , após retirar os sapatos e se sentar de pernas cruzadas sobre a minha cama.
– Eu tô falando com a produção ainda – respondi, continuando em pé e com o celular nas mãos. – Parece que vamos falar com ela antes do show, porque me passaram um horário pra chegar na casa de show no fim da tarde. E vou precisar dar os seus dados, também.
Minha amiga concordou, abrindo a mochila para procurar sua carteira. Tinha vindo direto da escola para minha casa, após o almoço, uma vez que eu não me contive e liguei para ela imediatamente depois de saber que fomos sorteadas.
– Aqui – estendeu para mim sua identidade. Nem mesmo numa 3x4 a desgraçada saía feia. – O show vai cair no dia dos namorados, né?
Abri o calendário rapidamente, confirmando o que ela tinha dito.
– Sim, e?
– Nada, só comentando – deu de ombros. – Minha mãe provavelmente vai querer sair com o novo namorado dela. Graças a Deus ela não chamou ele pro meu aniversário.
– Ele é tão ruim assim? – devolvi a ela seu documento, vendo em seu rosto a nítida reprovação pelo potencial padrasto.
– Péssimo. Tudo dele é melhor, mais caro... – ela continuou falando, mas confesso não ter ouvido muita coisa enquanto me voltava para o celular. tinha me seguido e curtido minha última foto, não por acaso a mesma que tinha postado de nós duas no perfil dela, ontem à tarde. O assessor da rádio respondeu novamente.
– Temos um pequeno problema – interrompi , que ainda estava em seu monólogo, porém tinha se jogado de costas no colchão, o que explicava ela não ter notado minha falta de resposta. Ela ergueu apenas a cabeça, confusa. – A gente é menor de idade, precisamos da companhia de um adulto.
– Mas pra que essa palhaçada? – minha amiga se apoiou nos cotovelos. – A gente ia pro show sozinha, aí por causa de um meet tem que ir com pai e mãe? – Assenti, igualmente indignada. – Mas você já é quase adulta!
– Ainda faltam quatro meses – lembrei a ela. Não era tão quase assim. – Eu duvido muito que meus pais vão querer ficar com a gente lá, eles não iam perder um dia livres de mim pra acompanhar a gente numa fila de show. Principalmente sendo dia dos namorados.
– Eu também não faria isso, no lugar deles – ponderou, ponto a mão fechada sob o queixo, pensativa. – A propósito, que história é essa de eles acharem que...
– Eu sou lésbica? – completei por ela, que concordou com a cabeça. Todos os últimos acontecimentos passaram pela minha cabeça em milésimos de segundo, causando até mesmo uma pontada de dor. De olhos fechados, massageei as têmporas após largar o celular sobre a escrivaninha.
– Não precisa falar, se não quiser – disse minha amiga. – Eu só perguntei por curiosidade.
Mas eu queria falar, na verdade. era minha melhor amiga, afinal de contas, e se eu realmente quisesse me preparar para falar com meus pais sobre aquilo, o melhor treinamento seria com ela.
– Não, tudo bem – suspirei, cansada de fugir do assunto. – Eu quero falar.
– Que raridade – arregalou os olhos, genuinamente surpresa. Voltou à posição inicial da conversa, procurando uma almofada para abraçar. – Pode começar, vai, manda!
– Ontem eu ouvi meus pais falando de mim – tentei medir as palavras enquanto as dizia. – Meu pai tem certeza de que eu sou lésbica, mas minha mãe nem tanto.
– O que eles falaram?
– Não sei muito bem, peguei a conversa na metade – notei que eu não conseguia olhar diretamente para , e não sabia se era vergonha ou qualquer outro motivo. – Eles falaram sobre eu ter tido uma crise pra escolher a roupa pra sua festa e eu gostar da Hayley, porque ela é lésbica assumida, né? Acho que ele ficou meio... chocado com Girls Like Girls.
– Que nada a ver – finalmente a olhei, e ela estava com o cenho franzido. – Todo mundo já deu chilique pra se vestir e existe um monte de cantor LGBT por aí.
– Sim! – concordei, aliviada por mais alguém pensar como eu. – Minha mãe até zoou meu pai, porque ele é fã de Queen.
A reação de , em vez de me ajudar a me abrir mais, teve um efeito reverso: ela concordava comigo que a conclusão dos meus pais era precipitada, o que me daria chances de voltar à estaca zero em toda a situação. Eu não precisaria admitir nada para ninguém, se as evidências se provassem insustentáveis. Contudo, elas se sustentavam sobre a ideia de que eu era a fim de . Eu sabia que isso também era só suposição, no entanto, era crível. Assim como fora fácil para meus pais acreditarem que eu gostava dela em algum nível além da amizade, para ela também seria, já que ela igualmente tendia a acreditar que eu era, de fato, lésbica. Além disso, sua reação caso pensasse que eu era a fim dela era uma incógnita, eu poderia colocar nossa amizade em risco. Eu não queria dar a ela um argumento tão convincente quanto aquele, então recuei sobre essa parte.
– Mas, – falou, parecendo ainda em dúvida –, me responde com sinceridade.
Lá vinha a bomba.
Respirei fundo, ajeitando a postura na cadeira.
– Vem, senta aqui e olha nos meus olhos – ela deu tapinhas no espaço vazio ao seu lado. Tentando me preparar mentalmente para qualquer pergunta que ela pudesse falar, fiz o que ela me pediu. Estávamos frente a frente, seus olhos cravados nos meus. – Você é ou não é lésbica?
– Por que eu tenho que responder isso? – foi a primeira coisa que disse, as palavras todas se atropelando com tamanha rapidez que saíram.
– Por que você não responderia?
Eu podia sentir a energia de mesmo sem tocá-la, ela não me deixaria fugir.
– Porque eu não sei – e de alguma forma, eu não conseguia nem pensar em fugir. Meus pensamentos simplesmente saltavam para fora da boca, desenfreados.
– Como você não sabe?! – minha amiga soou desconfiada, com um leve traço de julgamento que só ela era capaz de dar.
– Não sabendo! – respondi mais alto que gostaria, minhas mãos denunciando meu nervosismo enquanto eu as estendia nas minhas laterais. se manteve em silêncio por segundos mais longos que eu gostaria, analisando-me.
– Você já beijou uma garota?
– Não sei se você lembra, mas a única pessoa que eu beijei foi o Theo, na sétima série – lembrar daquilo gerou uma careta. Beijar aquele menino no passeio da escola tinha sido traumático o bastante para eu evitar qualquer contato labial humano. Em resumo: muito dente para uma boca tão pequena. – Então não, eu nunca beijei uma garota.
– Mas você já quis?
– Não.
Eu nem mesmo percebi que menti, até me dar conta que tinha o feito. Talvez a ideia de não confessar nada estivesse mais consolidada que eu imaginava.
– Me beija – não pediu, e sua ordem me causou tamanho estranhamento que imediatamente me afastei.
– Quê?! Tá doida?!
– Você não sabe se gosta de garotas e nunca beijou uma, se você beijar uma talvez descubra – ela falou de uma só vez, como se sua lógica fosse impecável.
– Eu não quero te beijar! – me mantive na posição de antes, então ela riu, avançando até mim. – , sai!
– É só um beijinho, vem cá – na tentativa falha de evitá-la, acabei caindo sobre os travesseiros, e inesperadamente também caiu sobre mim, ainda rindo. De olhos arregalados e nervosamente desviando o rosto, esperei que ela saísse. – .
Olhei de soslaio para ela, negando-me a baixar a guarda. Não havia mais aquele ar de zombaria, nem a energia tensa do seu interrogatório. De maneira gradativa, voltei a encará-la de frente, sentindo o ar escapar em um sopro leve. Eu não havia notado meus lábios entreabertos até ver os de da mesma forma, aproximando-se sem que eu sequer pensasse em fugir. Os instantes em que meus olhos permaneceram fechados conseguiram suavizar qualquer peso que existia em mim; não havia tato, tampouco sensibilidade em outro lugar que não fosse onde os lábios de tocavam. E como numa descarga elétrica, fui completamente tomada pela sanidade de novo.
– Espera – espalmei as mãos nas clavículas da minha amiga. Comprimi meu rosto, numa reação mista de satisfação e nojo. – Isso foi estranho pra caralho, cara.
– Verdade, né? – desviou o olhar, afastando-se em seguida. – Você é tipo uma irmã pra mim, por que eu fiz isso?!
– Você é maluca – aproveitei a liberdade para me levantar. Definitivamente, eu não falaria para ela o que meus pais achavam de nós duas.
– Mas foi bom? – voltei-me para ela, que ostentava um sorriso travesso. Ela não queria saber por mim, e sim por ela mesma, se beijava bem.
– Eu não vou responder isso – foi tudo o que eu disse, com um dedo em riste e nem metade da seriedade que queria ter naquele momento. Odiava o fato de ser tão amiga de , porque até em um momento como aquele, em que eu estava claramente confusa, ela me fazia rir. Eu não estava com raiva dela, apesar dos pesares, porque sim, havia sido bom, mas eu nunca mais repetiria aquilo.
Lembrei-me do meu celular na escrivaninha e fui até ele. Ainda não tinha respondido a rádio sobre o nome do nosso responsável, além disso, a música alta começava a me incomodar.
– E se a gente convencer seus pais a saírem no dia dos namorados? – ouvi dizer, então parei para prestar atenção. – Eles só precisam estar com a gente na hora do meet, não é? – concordei com a cabeça. – Se eles toparem, fica tudo certo.
– Meu pai odeia sair nessas datas – argumentei, apoiando o rosto em uma das mãos. – Ele só faz isso se for um motivo muito bom.
– E tem motivo melhor que – ergui uma das sobrancelhas, já imaginando que não viria nada bom depois daquilo – levar a única filha dele pra curtir o primeiro dia dos namorados dela?
– Nós não estamos namorando – rebati, sem ânimo.
– Não de verdade...
– Nem de mentira – não dei tempo para que ela continuasse. Era irritante o quanto se esforçava para me fazer colaborar com as ideias dela, por mais absurdas que fossem. – Eu não te contei antes porque achei que seria estranho, mas nada pode ser mais estranho do que o que aconteceu cinco minutos atrás.
Curiosa, minha amiga nem mesmo tentou me interromper.
– Meus pais já acham que a gente tem alguma coisa – confessei, sentindo o gosto agridoce daquela confissão. – O que é um completo erro.
– , isso é perfeito! – disse , genuinamente alegre com a notícia. Naquele exato momento eu queria que fosse moral e legalmente aceito agredir uma pessoa por ideias idiotas.
– Que parte de “completo erro” você não entendeu?! – dei firmeza ao meu tom de voz. – Eu não sei em que mundo você tá, pra não perceber que eu não tô a fim de mentir sobre isso e que esse é um assunto delicado pra mim. Eu não vou fingir que a gente tá namorando, .
– Mas...
– Mas nada, não tem “mas”! – cortei o que ela diria logo no começo, irritada. – Será que pelo menos uma vez na vida você pode ouvir e respeitar o que eu tô falando?
– Ai, tá bom, não precisa disso! – ela concordou a contragosto, o que era suficiente para mim. – Mas ainda acho que seria muito melhor se pedíssemos pros seus pais levarem a gente pra comemorar o nosso dia dos namorados.
Eu já estava preparada para responder com mais uma grosseria, até o som da porta do meu quarto se abrindo cortar meus pensamentos. Olhei para o vão da porta em uma reação imediata, encontrando minha mãe com um sorriso estranho no rosto, talvez constrangido? Surpreso? Ambos?
8.
O que era pior: sair do armário sem sequer saber se eu estava nele ou negar que eu estava nele quando tudo indicava que sim?
Na primeira hipótese, eu poderia passar por todo o transtorno de uma conversa séria com meus pais que eu ainda não tinha me preparado para ter. Se eu estava confusa antes, ter beijado transformou todas as minhas dúvidas em um vazio. Eu simplesmente não conseguia pensar naquilo sozinha, porque além de tudo havia a nossa amizade em jogo. Eu estava com raiva da minha melhor amiga ou apenas reprimia o fato de ter gostado de beijar ela? Eu tinha gostado de beijar ela porque ela beijava bem ou porque, no fundo, me sentia atraída por ela?
Não sendo essa opção, eu fingiria que nada havia acontecido nem estava acontecendo, mas mantinha as suspeitas dos meus pais. E depois da infelicidade de minha mãe ter ouvido uma frase sem contexto de , eles com certeza jurariam de pés juntos que nós éramos um casal. O lado bom disso era que eles também fingiriam que nada estava acontecendo, o que me dava algum tempo para esclarecer as coisas na minha mente, acho eu. Já o lado ruim era a expectativa de quando eles tocariam no assunto, o que poderia me pegar desprevenida. De qualquer forma, eu continuaria tensa pelos próximos dias.
Mas, pelo menos naquele sábado, eu não pensaria em nada além de eu estar prestes a conhecer a Hayley Kiyoko.
Na segunda, consegui desconversar quando minha mãe perguntou o que tinha falado – ela sabia o que era, com toda certeza, do contrário não teria voltado nesse assunto. De terça a sexta, para endossar minha resposta de que não era nada demais, evitei falar com e de além do necessário, sem visitá-la ou chamá-la para minha casa. No sábado de manhã, inevitavelmente estávamos juntas por conta do cursinho, que eu já tinha faltado na semana anterior e nem em sonho minha mãe me deixaria faltar de novo. E na real, a animação para o evento de mais tarde era tanta que eu mal havia dormido, acordando antes do despertador para a aula.
Já estava tudo finalmente organizado: depois do curso, eu voltaria para casa para deixar meu material e me arrumar, então viria me encontrar e iríamos juntas com algum carro de aplicativo. Dizia ela que o problema com o nosso responsável já tinha sido resolvido, e eu imaginava que ela tinha feito alguma chantagem emocional com tia Martha para que ela nos acompanhasse, uma vez que meus pais estavam completamente fora de cogitação. De última hora, eu tinha descoberto que eles iriam passar parte do fim de semana na serra, pois era não só dia dos namorados, mas também a comemoração de bodas de prata deles. No fim, nem mesmo achei ruim a notícia, porque significava que eu teria a casa toda para mim até segunda de manhã. Com meus pais fora da cidade e em cargo de resolver nosso problema, realmente não restava muito além da mãe dela. Era fácil imaginar a minha surpresa, contudo, quando abri a porta e, além da minha amiga, vi ali.
– Ué?! – escapuliu pelos meus lábios. riu, divertida, estendendo as mãos para mostrar como um objeto à venda.
– Eis aqui a nossa salvação!
– Eu vou acompanhar vocês – disse ele, meneando a cabeça para os lados, não exatamente animado.
– Desculpa, eu não sabia que você vinha – me dei conta da minha falta de educação. – Entrem, eu já tô quase pronta.
Dei passagem para os dois, percebendo minha mãe descaradamente olhando para a porta, a fim de descobrir a visita inesperada. Ela acompanhou e com os olhos, em seguida buscando alguma resposta visual minha sobre quem era ele, mas eu apenas ignorei, o que a fez se levantar do sofá imediatamente.
– ! – ela estendeu os braços para minha amiga, um pouco mais animada que o normal. As duas se abraçaram, então foi a vez de . – E você é o...?
– – respondeu ele, tranquilo. – Sou amigo das meninas.
Eu conseguia ouvir o som das engrenagens funcionando na cabeça da minha mãe enquanto ela tentava extrair quaisquer informações dali. Aquela era a primeira vez que um garoto pisava em casa, o que não significava absolutamente nada, mas ainda assim parecia uma novidade incrível para ela. Para minha sorte, meu pai tinha ido ao clube para jogar futebol com os amigos e não faria parte daquilo.
– Eu tenho que terminar de me arrumar, vamos lá pro meu quarto – falei, me apressando para deixar a sala. Minha mãe, no entanto, não saiu do caminho.
– Vocês querem alguma coisa? Água, suco?
– Eu aceito uma água, por favor – respondeu. Enchi as bochechas de ar, segurando um grunhido, me recompondo em seguida.
– Tá, espera aqui e toma a sua água enquanto eu e vamos pra lá – mal esperei alguma resposta, guiando minha amiga pelos ombros, à minha frente. Dei alguns passos pelo corredor antes de tirar as mãos dela. – Você podia me avisar antes.
– Eu não sabia que seria um problema pra você – disse ela, em tom de obviedade. – Queria fazer uma surpresa, até porque foi de última hora.
Entramos no quarto e logo fechei a porta, parando um segundo a mais com as costas apoiadas ali.
– E ele aceitou assim, de boa vontade?
– Se por boa vontade você quis dizer em troca de algo mais interessante – gesticulava enquanto falava, sem me olhar –, então sim.
– Não acredito que ele é o nosso Brooks Rattigan* – ri da situação, voltando a me arrumar. Separei uma doleira para levar meu ingresso, documentos e algum dinheiro, já o celular e minhas chaves de casa ficariam no bolsos de zíper, fundos e seguros o bastante, da jaqueta sobre a minha cama.
– Isso faz de você a Celia? – minha amiga questionou, com uma sobrancelha arqueada. – É só porque não dá pra ser nós duas, e eu pareço mais a Shelby.
– Riquinha e esnobe?
– Demais pro bico dele – apesar de aquilo soar totalmente esnobe, eu concordava.
– Ok, mas isso ainda não me faz o par romântico dele – conclui, ajeitando a doleira sob a legging e a camiseta com “I’m too sensitive for this shit”, nome de um dos EPs da Hayley. Não estava tão frio quanto de costume para aquela época do ano, mas ainda assim amarrei uma camisa de flanela na cintura, que além de útil dava algum estilo. – Vai lá na cozinha socorrer ele, por favor, que eu já vou. Minha mãe deve estar falando alguma besteira, você tinha que ter visto a cara dela!
– Relaxa, ela sabe que sua namorada sou eu – me provocou, lançando um beijinho na minha direção. Senti o calor das minhas bochechas avermelhando, enquanto lancei uma almofada na direção dela como resposta.
Olhei-me no espelho, aprovando o que via e sorrindo boba já pensando no que aconteceria em algumas horas. Talvez tenha passado tempo demais dessa forma, pois pouco depois ouvi minha mãe me chamar. Na sala, encontrei minha mãe no começo do corredor, sentado com um olhar um pouco desconfortável em uma ponta do sofá e na poltrona mais próxima da porta, parecendo tranquila. Em uma análise rápida, antes de eu me despedir, eu diria que minha mãe realmente falou besteira para , mas parou assim que chegou, e minha amiga, meio desatenta como sempre, não notou o ar do ambiente. Qualquer que fosse a situação, naquele exato momento não me importava em nada. Eu ia conhecer a Hayley Kiyoko, o resto era resto.
*Personagem principal de “O Date Perfeito”, filme da Netflix.
9.
Chegamos à casa de show pouco antes do horário marcado pela produtora. No carro, distraídas enquanto imaginávamos como agiríamos durante o meet & greet, e eu mal vimos o tempo passar. Apesar de chegarmos cedo, ainda teríamos que enfrentar uma fila considerável, mas muito menor que a comum para o show – que dava voltas no quarteirão. Pelo que nos explicaram, iríamos do camarim direto para o show, então não precisaria mais estar com a gente e poderia voltar para casa. Tudo estava perfeitamente organizado e encaminhado, só faltava eu ligar para meus pais para lhes desejar boa viagem.
Então eu percebi que não estava agasalhada.
Por consequência, sem meu celular e as chaves de casa.
O sangue do meu corpo desceu em queda livre para meus pés, causando um choque que tanto quanto notaram imediatamente.
– , o que houve? – se pôs à frente do meu rosto estático. – Você tá pálida!
– Eu esqueci minha jaqueta – respondi, lentamente me virando para minha amiga.
– Posso te emprestar meu casaco, se quiser – disse , com a mão já sobre o zíper do moletom dele. Neguei com a cabeça, minhas ações fora de sincronia com os pensamentos.
– Não é isso, não precisa – falei. Botei as mãos nas têmporas, tentando processar a situação sem surtar. – Meu celular e minhas chaves ficaram na jaqueta, e meus pais vão ficar na serra até segunda de manhã. Eu preciso voltar em casa, senão vou ficar trancada pra fora até eles voltarem.
– Você não tem como ligar pra eles?
– Eu não sei o número de cabeça – ri por nervosismo ao responder minha amiga. – Eles iam sair no começo da noite, dá tempo de passar lá...
– Mas não dá tempo de voltar pro meet – me interrompeu, olhando a hora no próprio celular. – A essa hora minha mãe já saiu de casa, não sei se ela teria como resolver isso.
– Eu vou – sugeriu , apesar de ainda parecer meio perdido com tanta informação. – Vocês me esperam aqui.
– Não, você não pode ir – foi firme, segurando o braço dele antes de ele dar um segundo passo. – Se chegar a nossa vez e você não estiver aqui, não vão deixar nenhuma de nós duas entrar.
Encarei minha amiga, sabendo onde ela queria chegar. A decisão estava entre uma de nós duas voltar ou ambas perderem o meet. E se fosse preciso, eu passaria o fim de semana inteiro na casa dela, com a roupa do corpo, para não perder aquela chance única.
– O que a gente faz? – perguntei diretamente a ela, que começou a mexer na bolsinha que carregava. sacou o próprio ingresso e entregou a .
– Fica com isso por enquanto, pra não ficar sozinha – explicou. – Eu vou e volto o mais rápido possível, mas caso eu não chegue a tempo, você vai no meu lugar.
– Tem certeza? – perguntei, apreensiva e levemente surpresa com a atitude. Aquele era o meu sonho, não o de , mas ainda assim estávamos ali por conta do dinheiro e empenho de ambas, não era justo ela abrir mão por um deslize meu. No entanto, minha amiga não pareceu hesitar quando confirmou sua decisão. – Toma cuidado, por favor.
– É só um Uber, – ela riu de mim, rolando os olhos. – Eu mando mensagem pro , compartilhando a viagem por GPS.
– Não esquece – falei um tom mais baixo, com a típica cara de bunda de quem tinha feito merda. mais uma vez concordou com a cabeça, se encaminhando para a saída. Somente depois de perdê-la de vista, lembrei-me de ali. – Tô me sentindo péssima.
Ele me lançou um sorriso compreensivo, abrindo um dos braços para mim, que aceitei.
– Não precisa, essas coisas acontecem – senti seu aperto de conforto, e logo me desfiz de seu abraço. – Não tinha como você prever que ia esquecer as coisas.
– Talvez você tenha razão – suspirei, tentando deixar passar. – Obrigada por ter vindo, . Mesmo que você só esteja aqui porque foi pago.
– Quem tá sendo pago? – ele franziu o cenho, e eu me mostrei confusa com a reação dele.
– disse que... – a frase morreu no meio do caminho. Repassei rapidamente as informações na minha cabeça. – Pera, se ela não te pagou, o que ela te ofereceu pra você vir de última hora?
balbuciou, sinal de que estava escondendo algo; seu rosto começou a avermelhar. Ele estava com vergonha?
– Nada – disse ele, ainda incerto. – Ela não me ofereceu nada. Eu só quis ajudar.
– Por que eu sinto que você não tá falando a verdade?
– Isso realmente importa? – seus olhos se estreitaram, enquanto ele passava a mão na própria nuca. Aquilo indicava nervosismo ainda, mas realmente, aquilo não importava. Provavelmente ele estava ali só para agradar , já que eu ainda desconfiava de que ele era a fim dela. Eu só torcia para não ficar de vela em algum momento.
– Tá bem, deixa quieto – desviei o olhar para onde eu então checaria de cinco em cinco minutos se apareceria. A ansiedade era em grande parte pela possibilidade da minha amiga não aparecer a tempo, mas uma pequena parcela ainda residia na última vez que e eu nos vimos. Já fazia uma semana, e em cada dia que passara os pensamentos persistentes perdiam força, porém a presença dele ali despertava emoções que eu não sabia se queria ter.
Talvez por isso eu fosse tão reticente em me abrir para qualquer pessoa: sentimentos eram complicados. Eu não sabia lidar com emoções.
Sem minha amiga para me distrair e sem meu celular para fugir de qualquer interação, eu acabei presa à inquietude da situação. estava fazendo um favor com segundas intenções para , e eu ali, me sentindo inadequada por ainda me sentir interessada nele, mesmo depois de todo o conflito interno sobre ter beijado . Para quem não costumava entrar nesse jogo, eu estava me mostrando uma participante bem ativa – ainda que nos meus padrões. Mas, mais uma vez disse a mim mesma, não era a hora nem lugar para pensar sobre aquilo.
– Então... – falei um pouco mais baixo do que gostaria, e ouviu mesmo assim. – Já que talvez você acabe indo comigo, acho que seria bom você ouvir alguma coisa da Hayley, né?
– Você não vai enjoar das músicas antes do show, não? – ele brincou, e eu balancei a cabeça para os lados com vontade, segurando o riso. Em seguida, sacou seu celular do bolso, junto aos fones de ouvido, e me estendeu ambos. – Vai, fica à vontade.
A notificação de avisando que estava chegando na minha casa me deixou mais tranquila por ela – avisei a sobre, que apenas assentiu. Digitei Hayley Kiyoko na busca do Spotify e selecionei uma música que imaginei que ele gostaria, Feelings. Ao som das primeiras batidas, eu já citando a letra sem usar a voz, ele pareceu bastante receptivo. Fechei os olhos por uns instantes, envolvida com a letra e tentando visualizar como seria ouvi-la ao vivo dali a pouco.
A melhor parte de ir a um show era ver ao vivo a pessoa que deu voz ao que você sente. E quando não só as composições, mas também o discurso, a postura e até o estilo do seu ídolo se aproxima do seu, a conexão pode ser tão forte quanto uma amizade de longa data. Eu me sentia assim com a Hayley, como se tivéssemos crescido juntas. O que não fazia muito sentido, já que ela era alguns anos mais velha, mas quem liga? O importante era o apego.
Abri os olhos ao fim dos três minutos para ver rindo da minha pequena performance. Pus a mão espalmada sobre o resto, tímida.
– Me empolguei, desculpa.
– Achei fofo – disse ele, abrindo mais o sorriso. – Você gosta muito dela, né?
– Demais – respondi prontamente. – Ela é uma inspiração enorme pra... maioria das pessoas que estão aqui.
Olhei ao redor, diversas bandeiras LGBT+ nas mãos de, em grande parte, garotas. E muitas que – não sendo a pessoa que adota rótulos, mas infelizmente rotulando – não pareciam hétero. Se eu estava tentando esconder alguma coisa de , era uma péssima escolha de palavras no local em que eu estava.
– Incluindo você? – e, bem, ele talvez tivesse percebido.
– Acho que não dá pra eu mentir, né? – ri fraco, aceitando que era isso, eu ia finalmente sair do armário para alguém. E logo quem. – Sim, pra mim também.
– Você tem vergonha de admitir isso? – o tom de era amigável, o que me deu conforto. – Não que seja um problema, não tenho nada contra!
– Na real... – respirei fundo, lembrando-me de não desviar o olhar. – Você é a primeira pessoa pra quem eu falo isso. – ergueu as sobrancelhas, surpreso. – Eu gosto muito da Hayley não só porque ela é lésbica, mas porque ela canta sobre isso também. Sabe quando você encontra algo que você gosta tanto a ponto de aquilo te definir de alguma forma? Tipo seu filme favorito? É mais ou menos assim.
– Eu me sinto meio idiota, então – ele respondeu, comprimindo os lábios, e eu não entendi porque exatamente aquilo acelerou meu coração. – Agora que você disse, tudo fez muito sentido. Só é estranho pensar que eu estava a fim de uma garota claramente lésbica.
– Não é claramente, é? – realmente era tão na cara? – Desculpa, você nem tá falando de mim.
– Você realmente vai fundo na negação – eu continuava sem entender onde ele queria chegar. – Eu vou ter mesmo que confessar que é, sim, sobre você?
– Ah – primeiro veio o choque, depois a surpresa e então a timidez. – Mas eu acho que você tá errado.
– Da minha parte, não tem como eu estar errado. E até onde eu lembro, foi você quem acabou de falar isso.
– Eu falei que gostar da Hayley me define de alguma forma – corrigi, salientando a diferença com o indicador erguido à minha frente –, porque eu sei que sinto atração por garotas.
Falar aquilo em voz alta foi como encaixar a peça certa do quebra-cabeças.
– E...?
– E o quê? – me fiz de desentendida, mas não funcionou, visto que ele gesticulou para que eu concluísse o raciocínio. – Ah... Bem, talvez eu também sinta atração por garotos.
Conferi as expressões de , que continuavam neutras. Como aquilo tinha se desenrolado tão rapidamente?
– Pra ser justo, eu vou guardar pra mim a esperança que você me deu agora – disse ele, e eu agradeci não só mentalmente. – Provavelmente agora não é a melhor hora pra isso.
– Pois é! – respondi, aliviada. – Eu tenho falando muito isso pra mim mesma, ultimamente.
Antes que um silêncio desconfortável surgisse, a fila para o camarim finalmente começou a andar. Olhei mais uma vez para a saída, torcendo para que se materializasse ali. Pela quantidade de pessoas por vez que entravam na sala, provavelmente seríamos os próximos. Tentamos mandar mensagem, mas ela não recebia, e a última vez que estivera online fora quando nos avisara que estava chegando na minha casa. Em seguida ligamos, mas caía direto na caixa postal – e ninguém em sã consciência ouve recados na caixa postal. Apesar dos nossos esforços para entrar em contato com , ela estava incomunicável sabe-se lá por que motivo. E no tempo impreciso que demorava demais para ela aparecer, mas passava depressa para chegar a minha vez, eu me vi passando pelo segurança que abriu a porta.
E Hayley estava ali, na minha frente.
Como uma boa fã, obviamente comecei a chorar de emoção e nervosismo, minhas mãos tremendo enquanto eu olhava para em um pedido de socorro de quem não fazia ideia do que falar. Ele ria, não por zombar de mim, ainda assim eu queria dar um soco na cara dele, pois tinha perdido o controle completamente. A produtora presente no camarim me pediu para esperar enquanto outra garota era atendida antes de mim, e eu assenti prontamente.
– Eu tô tremendo, – disse a ele, embora fosse evidente. – O que eu falo pra ela?
– Sei lá, tenta dizer o quanto você gosta dela ou das músicas – ele respondeu, tentando me acalmar. – Acho que até se você só der um oi já vai ser suficiente, relaxa.
Ouvi o “próxima” e finalmente era a minha vez. Hayley estava com seu sorriso enorme e branco, esperando que eu chegasse perto. Eu nem mesmo sabia se era permitido, porque honestamente não tinha prestado a menor atenção na pessoa da minha frente na fila, mas me aproximei dela já dando um abraço apertado, que talvez tenha durado mais que ela esperava.
– Desculpa – foi a primeira coisa que falei. Parabéns, , pela incrível apresentação!
– Não precisa se desculpar, eu também sou uma abraçadora – disse ela, rindo. A forma como ela estava tranquila e aberta para conversar prendeu minha atenção, deixando-me um pouco menos nervosa. – Você quer que eu assine sua blusa?
Assenti, ainda não muito preparada para falar algo. Muito atenciosa, Hayley me pediu para esticar o pedaço da camiseta que eu queria o autógrafo, e assim o fiz. Sempre que possível, eu voltava meu olhar para , numa tentativa boba de verificar se aquilo era realidade ou sonho.
– E qual o seu nome?
– – respondi, notando o ritmo da minha respiração. – Posso te perguntar uma coisa?
– Claro, pode falar – ela continuava atenta à camiseta.
– Quando você... – pausei, pensando na melhor forma de me expressar. – As pessoas te chamam de Jesus Lésbica, mas como você soube que era?
– Lésbica ou Jesus? – com um sorriso brincalhão, ela parou para me olhar rapidamente, e eu não consegui segurar a risada. – Eu sempre soube, me assumi pros meus pais quando era criança ainda. Nem todo mundo tem certeza ou a sorte que eu tive, mas quem tiver, torço pra que possa aproveitar isso.
– Eu meio que tô passando por isso agora – confessei, mordendo o lábio. Estranho como eu me sentia muito mais disposta a falar sobre quem eu era com uma pessoa que eu acabara de conhecer, apesar de no fundo eu sentir que já éramos melhores amigas. Talvez o que eu precisasse era alguém com quem me identificasse, pois não haveria julgamentos. Eu amava muito meus pais, não queria ter de me esconder deles, mas qualquer reação negativa deles acabaria comigo. Precisava estar preparada para aquilo, e de alguma forma me pareceu certo pedir conselho para a, como eu mesma tinha dito, Jesus Lésbica.
– Olha – ela terminou de autografar, ajeitando a postura à minha frente. – O que eu sempre tento dizer e passar pras pessoas é que, primeiro, elas devem aprender a aceitar quem elas são. Se você gosta de garotas, isso é parte de você, e você tem que estar em paz com isso. Sei bem como é estressante ser uma pessoa fora do padrão, mas isso não te faz menos que ninguém. Você não precisa ter vergonha de quem você é; ame quem você é em todas as circunstâncias.
Se antes eu já não conseguia falar muita coisa, naquele exato momento eu só conseguia sentir os breves soluços que antecediam o choro. Mas não era um choro triste, era de alívio. As lágrimas escorriam enquanto eu sorria, provavelmente com uma cara horrível de se ver, e Hayley me abraçou mais uma vez enquanto eu a agradecia e dizia o quanto ela era importante pra mim.
Eu só tinha conseguido viver aquele momento por causa de , e ela não estava ali. Entretanto, se ela estivesse, eu acreditava que não conseguiria colocar para fora tudo o que sentia, desde a minha conversa com à pergunta a Hayley, porque era preciso primeiro eu sentir vontade de falar. Eu precisava não só entender, mas realmente expressar e, então, aceitar, de forma espontânea, quem eu era. Precisava ouvir a minha própria voz, antes de tudo.
10.
Eu poderia facilmente dizer que o show da Hayley Kiyoko tinha sido um marco na minha vida. Simbolicamente, eu tinha que passar por aquilo sozinha. Ok, estava lá, mas se comparado a , sua presença tinha muito menos influência sobre mim. O essencial era: eu precisava viver aquele dia como uma descoberta pessoal, e não fiz nada diferente disso.
Tudo o que Hayley havia falado ecoava na minha cabeça como uma nova música favorita. A minha maior dificuldade não era entender minha orientação sexual, era tirar ela do meu subconsciente e adicionar à vida. Eu só me permitiria gostar de alguém como havia gostado de Erika quando parasse de reprimir o fato de que eu era como qualquer outra pessoa. Antes de e meus pais suporem qualquer coisa, eu já me sentia atraída por garotas. Antes de eu tentar esconder que não era só dos meus ídolos que eu gostava, eu já possuía a capacidade de gostar de alguém, independente de quem fosse. Não era porque eu achava o Adam Driver bonito – não obstante a controvérsia – e lia fanfics sobre ele, me imaginando como sua namorada, que isso me impedia de achar uma garota comum bonita também.
Além disso, eu finalmente entendia que achava atraente. No fundo, eu tinha consciência de que sua beleza mexia comigo um pouco mais que o normal, então tentava bloquear qualquer cenário em que eu pudesse parecer apaixonada por ela. Ela era atraente porque era muito bonita, e isso era da sua natureza. Mas mais que bonita, ela era a minha melhor amiga, e o que importava era como tínhamos construído a nossa relação. Me dar conta desse fato não estragaria nossa amizade, uma vez que tínhamos concordado que aquele beijo não significava nada. Quer dizer, significava que eu tinha beijado uma garota pela primeira vez, e pra minha sorte ela era linda e minha amiga. Se algum dia isso viesse a mudar, nós duas deveríamos resolver juntas.
Por fim, o fato de eu me sentir atraída por não invalidava toda a minha jornada, visto que era só mais um evento dentro dela. Não existia uma fórmula secreta ou explicação exata sobre como e por que eu ficaria a fim de alguém, eu só saberia quando acontecesse. A menos que eu me permitisse deixar isso prosseguir, não haveria outro jeito de aprender a lidar com meus sentimentos. E por acaso, levando em conta a minha enorme lista de ídolos, eu parecia ser alguém com muitos sentimentos para oferecer. Principalmente depois de ouvir a Jesus Lésbica ao vivo.
Eu estava em êxtase.
– Ainda não acredito que a perdeu o show – disse a enquanto esperávamos a multidão dispersar na saída. tinha ficado sem bateria, então, depois de pegar meu celular e as chaves, teve que ir em casa carregar pelo menos o mínimo para pedir outro carro. O tempo, no entanto, não foi suficiente para que ela chegasse novamente onde estávamos. Apesar de chateada por pagar um ingresso à toa, ela se conformou que iria em seu lugar. Sem muito o que fazer, também me restou aceitar e curtir o show o máximo que podia. Eu devia estar com uma aparência péssima depois de tantos gritos, suor e lágrimas, mas completamente satisfeita. Minha voz era apenas um grunhido, rouca.
– Pelo menos você curtiu pelas duas – observou, divertido. Assenti com um sorriso satisfeito. – Depois eu te passo as fotos e vídeos.
– Brigada por tudo – mantive minhas expressões. Eu não conseguia parar de sorrir, estava literalmente borbulhando por dentro. Ele desviou o olhar do celular, onde chamava um carro para voltarmos para casa, encarando-me de um jeito que era familiar. Em vez de sentir vergonha, no entanto, eu fiquei satisfeita por notar.
– Não foi nada, – ele coçou o nariz, e eu podia jurar que vi seu rosto enrubescer por trás da sua mão. Não era como se os papéis tivessem trocado repentinamente, eu só estava feliz e confortável demais com todo o acontecido a ponto de não me dar nenhuma trava. No dia seguinte, talvez, eu voltasse a me esquivar das pessoas, mas naquele momento eu me sentia plena e no lugar certo.
Lembrei-me da festa de , da exata sensação que tive quando estava mais ou menos à mesma distância, de braços abertos para mim. Alguns dias não eram suficientes para cessar a vontade que surgira de saber como era beijá-lo, eu percebi ali. Havia algo na companhia dele que me fazia querer mais. Se era seu jeito descontraído, o sorriso fácil ou conforto dos seus braços, eu não sabia, mas estava disposta a descobrir.
– Ei – chamei sua atenção, um passo mais perto dele. Ele notou que eu continuava me aproximando, então baixou a guarda, enfiando o celular no bolso. Por instinto, sua mão encaixou sob meu maxilar; pouco a pouco seu olhar deslizou pelo meu rosto, parando em meus lábios segundos antes de eu tocar os seus. Tinha urgência e tinha carinho em sua boca, resultando no alívio de nós dois. Tão rápido quanto o instante em que se iniciou, o beijo se encerrou.
– Ouviu? – me olhava com expectativa, então notei que eu continuava no mesmo lugar.
Eu havia delirado?!
– Desculpa, o quê? – balancei a cabeça, jogando para longe o que quer que tenha acontecido dentro dela.
– Vamos pra saída, o motorista tá chegando – disse ele, provavelmente repetindo o que tinha dito. – Botei o endereço lá de casa como a primeira parada, pra você pegar suas coisas com a .
– Ah, tudo bem – respondi sem dar muita atenção, ainda chocada com a peça que eu tinha pregado em mim mesma. Eu com certeza precisava dormir, o cansaço daquele dia agitado já começava a bagunçar algumas coisas.
Era difícil aceitar que eu estava vergonhosamente sonhando acordada com , pois eu só fazia isso com os famosos da minha lista de paixões platônicas. A fanfiqueira e a da vida real podiam até habitar a mesma mente, mas – por Deus – limites! Ou será que era assim com todo mundo, quando estavam a fim de alguém? Eu me sentiria assim sempre? E em dobro? Eu achava que admitir para mim mesma que gostava de garotas e garotos também resolveria as questões que há tanto tempo me rondavam... Ledo engano.
Aparentemente, as questões de verdade começariam agora.
FIM
Nota da autora (16/06/2020): OI
Primeiro de tudo, obrigada por chegar até aqui! Em pouco mais de um mês a fic chegou ao top fics vip, eu nem esperava por isso, só tenho a agradecer! ♥
Em segundo: bem, digamos que eu tenha me apegado a história a ponto de continuar escrevendo, ou seja, vai ter parte 2. I L.G.B.T.? era pra ser só um recorte, passando pelas principais emoções que uma garota pode ter ao se descobrir, mas sinto que ainda falta coisa pra ser dita, além de vivida pela pp, por isso comecei a escrever hoje mesmo hehe
Então se você leu e gostou, não deixe de me contar o que achou! Pode ser aqui na caixinha de comentários ou em uma das minhas redes sociais, só clicar nos ícones ;)
xx Abby
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