PARTE 01 | CAPÍTULO 01
Roma, Itália.
—— Porra null! Tem ideia do quanto você tá atrasada? Que caralho, se fosse para levar dias eu tinha chamado o Vaticano.
Eu abro um sorriso preguiçoso, enquanto inclino a cabeça para trás, encarando-o com uma mistura de divertimento e tédio, enquanto o rosto dele se retorce. Markus Zhao, ou apenas Mark, como eu o conhecia a algum tempo já, era um idiota, mas porra se não era um idiota gostoso. Qual é? Só porque estava em solo sagrado, não significava, categoricamente, que eu deveria ser uma santa —— que coisa mais chatapara ser afinal. Meus olhos percorrem demoradamente da cabeça aos pés dele, e então seu rosto novamente: que Markus Zhao era um puta gostoso, isso não era sequer uma questão, apenas uma eventual conclusão. Ele tinha aquele tipo de pele marrom clara, bronzeada, os cabelos lisos, escuros como a noite, pendendo pela testa e maçã do rosto dele em um corte de cabelo estilo curtain, destacando os olhos castanhos claros, quase âmbar, intensos e sempre tão sérios. Era levemente repuxados nos cantos, um fator impossível de ser perdido, embora ele desejasse manter sua herança o mais discreto possível —— ah, sim, problemas com pai, quem não tinha não? ——, era nítido sua herança asiática, provavelmente chinesa até onde eu sabia. As maçãs do rosto dele eram altas e bem marcadas, sobrancelhas grossas e uma mandíbula bem definida, cortante. As marcações em sua pele, espelham as minhas: runas antigas, inscrições de proteção, e um padrão esquisito de tentáculos que envolvia sua mão dominante, a esquerda, enquanto a minha era a direita. Parte do oficio, suponho. A única diferença, além da quantidade de tatuagens —— eu tinha orgulhosamente mais que ele —— eram as roupas. As minhas estavam amassadas, fedendo um pouco a álcool e por algum motivo latte de limão, enquanto as dele estavam em perfeito estado, embora fosse uma batina.
Talvez fosse efeito da batina ele estar tão atraente aos meus olhos no momento. Talvez fosse um adicional delicioso a composição geral. Filho da puta, era só uma chance e nem guindaste me tirava do pau dele.
—— Eu posso ver o que você tá pensando, null. Para, agora —— Mark rosna entre dentes, apontando o indicador na minha direção e eu me segurei para não rir. Quer dizer, me segurar seria dizer que eu estava me esforçando para não rir dele, e definitivamente eu não estava fazendo o mínimo esforço, mas qual é, me dá um desconto também, eu não ri... explicitamente. Ergui uma sobrancelha encarando-o desacreditada. Sempre me surpreendia com as pessoas ao meu redor acreditarem que eu tinha algum respeito por eles. Quer dizer, quando em minhas ações eu havia os guiado erroneamente a acreditar nisso? Além disso, o sorrisinho que Mark tenta esconder firmemente por trás de sua expressão severa me diz o suficiente para saber que, bem, ele não era assim tão arisco a ideia igualmente, mesmo com a batina e tudo mais. Afinal, o que era a promessa de um paraíso, se não houvesse aqueles dispostos a pecarem? Talvez, nossa única diferença fosse que eu gostava, enquanto ele recriminava. Perspectiva, certo?
—— Me obriga —— não dá para conter um sorriso ao observar a maneira com que ele trinca os dentes e cerra a mandíbula. Um músculo saltando na bochecha dele. Meu sorriso aumenta progressivamente com a restrição dele. Ah, ele me odeia, é claro e nítido, mas bem, quem naquele lugar não me odiava, não é mesmo? Mas igualmente há restrição e um convite silencioso que ele não vai aceitar, mas quer pra caralho. Deslizo as minhas mãos para dentro dos bolsos de meu casaco de trincheira velho e puído, dando um passo na direção de Mark, e então mais um, e mais um, até que estivéssemos apenas a poucos centímetros de distância. É mais alto que eu, é claro, e mais forte, pode me empurrar se quiser, mas não vai. Porque não importa o quão hipócrita e farisaico Zhao fosse, sempre teria aquela parte do cérebro dele que o trairia. Que queria. —— O que? Sem mais acusações e reprimendas? O gato finalmente comeu a sua língua? —— Mark me encara em silêncio, e por um breve momento, eu posso ver que ele considera tudo.
Os olhos ambares dele, desviam-se dos meus, e então repousam em meus lábios, e ele engole em seco. Ele cheira a vinho e a algo amadeirado, discreto, mas presente. Posso beijá-lo se quiser, descobrir se ele estava roubando o vinho da sacristia outra vez, ou se ele havia só derrubado vinho em sua batina novamente. Posso tomar seus lábios no meu e finalmente descobrir qual era o gosto que ele tinha, ao em vez de apenas fantasiar e especular sobre. Sua respiração é pesada, cálida enquanto choca-se e mistura-se com a minha, os lábios se entreabrem, como se ele estivesse prestes a falar alguma coisa que se perde ao fundo de sua garganta, as pupilas se dilatam, os olhos se semicerram um pouco mais, lutando com as emoções turbulentas que provavelmente o cega, e, ao mesmo tempo, luta para encontrar uma resposta a seu dilema pessoal. Eu posso beijá-lo, se quiser, mas não vou.
Não. Se ele quer alguma coisa, então ele teria que dar um passo a frente, ele teria que fazer um movimento. Mas isso não significava, categoricamente, que eu não poderia ao menos me divertir um pouco em atormentá-lo. A decisão era dele, mas esperar que eu me portasse virtuosamente era igualmente ridículo. Qual é? Se tudo estava indo para o inferno e pegando o fogo, porque não puxar uma cadeira, se sentar, e assistir comendo pipoca? Tento segurar uma risada baixa que começa a borbulhar ao fundo de meu peito, enquanto deixo minha cabeça pender para trás, sustentando o olhar dele, enquanto dava um passo para trás, colocando distância entre nós.
Algo atravessa o rosto dele, uma mistura de alívio, frustração e desapontamento. Que previsível, huh? A glória dos pecadores e a condenação dos santos. Agir no que se queria sem ser necessariamente apologética sobre. O que era mais uma condenação, para alguém já enterrado até o pescoço? Como diria Oscar Wilde: não havia outra maneira de se libertar de uma tentação se não se entregar a ela, ou coisa assim, olha eu não sou uma professora literária, sou uma caçadora. Não pressione o artista.—— Você disse que tinha um trabalho para mim, aqui estou —— Dou mais um passo para trás, e então dou de ombros, singelamente. Desvio meu olhar de Mark, ainda congelado no lugar, e parecendo decidir o que diabos fazer consigo mesmo, e então encaro a entrada da igreja. Estreito meus olhos, calculando mentalmente o que poderia ter o assustado ao ponto de me convocar no meio da noite, para aquela maldita igreja.
Chame-me do que for, mas eu duvidava muito que ele tivesse apenas sentido saudades de mim. Mark solta um pigarro, tentando clarear a própria garganta, como se estivesse buscando encontrar sua própria voz —— oh, ho, ho, eu amo isso ——, e quando o faz, está de volta a sua postura séria e distante de sempre.
—— Você já matou uma Banshee antes não foi? —— Mark diz com um tom de voz firme e direto, sem perder muito tempo com nada que não fosse o foco principal para ter me ligado no meio da noite, e eu até tento não revirar os olhos, mas não consigo evitar. Mark passa por mim com passos firmes, mantendo um olhar fixo a frente e não em mim, e sufocando uma risada seca em minha garganta, eu o sigo calmamente.
—— Matar é uma palavra muito forte —— faço uma careta tentando puxar em minha memória meu último confronto com uma Banshee. Retiro do bolso de meu casaco de trincheira um maço de cigarro, e então, prendendo o cigarro por entre os meus dentes, franzindo o cenho enquanto passava pelo portal da igreja, atrás de Mark. Apalpo meus bolsos em busca do meu maldito isqueiro, sem ter ideia de onde eu havia deixado, se no Hellgate de Vander, ou se no galpão de Darcelle. Seja onde quer que eu tenha perdido esta merda de novo, eu apenas dou de ombros comigo mesma, e me restrinjo a aproximar-me de uma das velas acesas para acender o cigarro.
Mark me lança um olhar e eu apenas dou de ombros. Problemas modernos, soluções modernas.
A Basílica de Santa Maria da Trastevere é um espaço monumental, uma espécie de obra de arte compelida em um espaço vagaroso e elegante, uma sobrevivente do tempo, exalando sua áurea original medieval. Pilares de mármore brancos greco-romanos, com detalhes reluzindo em dourado, como se fossem feitos de ouro —— se fossem, o quão pesado seria para pegá-los... hipoteticamente falando. Esculturas de gesso de santos extremamente detalhadas se espalham pelo espaço cobertas por penumbras e sombras vindas dos vitrais com a história da Paixão de Cristo. As cores espiralam ao redor da nave da igreja, apesar do brilho menor da lua, enquanto os sapatos de Mark ecoam pelo piso igualmente de mármore com padrões em formas de geométricas, formando flores ou o que eu achava que poderia ser flores, mas poderia ser, igualmente, apenas um padrão geométrico para algum brasão.
Trago o cigarro por um longo momento, sentindo o alívio e uma estranha sensação de estar desperta enquanto a nicotina entra em meu copo, alívio imediato de uma viciada, olha que maravilha —— papai estaria orgulhoso de mim! Seja lá quem diabos ele tenha sido. Mal hábito, é claro, provavelmente irá me matar eventualmente, mas bem, não era como se eu me importasse muito com isso, quer dizer, eu mal queria viver essa semana, imagine pela eternidade. Além disso, não era como se eu estivesse comprometendo mais alguém... tecnicamente. Livre arbítrio certo? Ah, caralho, eu tenho que parar com as desculpas algum dia.
Após descer um longo lance de escadas em espirais para o que deveria ser o porão da igreja medieval —— imagina as atrocidades que eram feitas aqui no passado? —— seguindo Mark como uma boa cadela sem perspectiva ou escolha alguma, a gente chega a duas portas duplas familiares, de carvalho antigo. Até seria um espaço comum da igreja, como a sacristia ou qualquer outra portinhola que você poderia seguir para ou se confessar ou sei lá mais o que padres e católicos faziam dentro de uma igreja, mas as runas cravadas na porta dupla, o desenho antigo e arcaico evidenciava outra coisa. Pertencia a pessoas como eu. Caçadores. Solto um suspiro pesado, deixando minha cabeça pender para trás.
Olha, vou ser honesta com você, eu não faço ideia de como funciona esse lance de Caçador. Vander diz que todas as criaturas que existem vem de um mesmo monstro, um sangue em comum que foi dispersado a muito, muito tempo em diferentes raças após algum tipo de metamorfose. Darcelle diz que é como uma doença; a licantropia e o vampirismo são doenças genéticas que se espalham por humanos como consequência de criaturas maiores, velhos deuses, que não souberam lidar com seus próprios sangues infectados e que espalharam isso para os humanos. Eu acredito que é tudo besteira e que não passa de algum tipo de evolução predatória. Seja qual for a verdade —— que honestamente eu não tenho a mínima vontade de saber —— chegamos ao ponto que chegamos com caçadores: nem seres sobrenaturais, nem humanos. Vander costuma a dizer que estamos no Limbo. Nem vivos, nem mortos. Nossas marcas nos impede de morrer, mas não nos transformam em humanos: apenas espelham as outras criaturas. Alguns espelham vampiros, mas sem a necessidade de beber sangue e viver para sempre. Outros espelham os lobisomens, mas sem a lua cheia e a prata. Alguns diriam que era uma benção, talvez, o melhor entre os dois mundos, mas para ser honesta, parecia-se mais com uma maldição.
Porque junto com a nova vida, e as marcas pelo corpo, vinham os pesadelos.
—— Espera aí, um segundo bonitão, segura a mão —— eu digo interrompendo-o assim que o vejo estender o pulso para o batedor de porta no formato de um leão. Puta merda, mas a criatividade que se espalhava pelas paredes havia deixado muito a desejar nos adornos da porta em questão. Leões? Sério mesmo? Que coisa mais brega. Mark estreita os olhos, desconfiado, e eu solto um riso nasalado, assoprando a fumaça do cigarro na direção dele enquanto o retirava de minha boca, prendendo-o por entre meu indicador e dedo médio. É, ele tá certo de desconfiar, foi inteligente, tenho que dar essa para ele. —— O pagamento. Sabe como funciona.
Mark nega com a cabeça, exasperado.
—— Isso é uma igreja, null.
Eu falho miseravelmente em ver como isso poderia ter conexão comigo.
—— Muitas pessoas teriam apenas a decência de se sentirem pelo menos envergonhadas por se mostrarem tão gananciosas como você o faz livremente, null —— Mark adverte e eu abro um sorriso preguiçoso encarando-o com uma ponta de tédio, me deixo escorar contra a porta, apoiando o braço sobre a madeira, enquanto fazia uma arminha com a mão apenas para incomodá-lo, antes de voltar meu olhar na direção de minhas unhas, analisando-as com desinteresse. Era ridículo que o esmalte roxo cintilante que eu havia comprado recentemente estivesse já descascando, eu havia feito minha mão, tipo... uma semana atrás!
—— Não tenho culpa se você acredita que eu posso ser alguém decente —— dou de ombros, gesticulando com desinteresse, antes de apagar a ponta do cigarro na porta. —— Eu literalmente já deixei claro que não sou. —— Endireito-me jogando o cigarro no chão, com desinteresse antes de ajeitar meu casaco de trincheira sustentando o olhar desacreditado e quase resignado com minha resposta. —— Vai dobrar o pagamento. Odeio ter que lidar com Banshees —— Pauso por um breve momento, abrindo a porta sem muita cerimônia, deparando-me com uma escuridão considerável do porão, o ar é gélido, percorre meu rosto, afastando algumas mechas rebeldes de minhas têmporas e pescoço. O cheiro putrefato é familiar e eu faço uma careta. Merda. —— Mais uma coisa. Vou precisar da batina.
Não. Eu não precisava da batina. Porque diabos eu precisaria da batina dele? Mas você pode apostar que eu não iria perder a chance de vê-lo sem camisa. Chame-me do que quiser, mas se havia lhe dava oportunidades, então, porque não se arriscar? É adorável ver o quão sério Mark leva meu pedido, mesmo que seu cenho tenha se franzido com confusão.
O cheiro punge é sufocante, a brisa gélida que percorria pelas pedras das escadas e paredes antigas, misturava-se com o calor dos gases em decomposição que a criatura trazia consigo. Há uma umidade irritante que se encontra com minha pele, misturando-se com o suor e eu tenho que me controlar para não praguejar. Detesto a sensação. Uma hipersensibilidade que me faz querer, ou rasgar minha pele para me livrar da sensação, ou apenas me jogar no balde de água gélido mais próximo possível. Pior do que o cheiro, era o mormaço. A chama da vela que carrego em minha mão esquerda treme, instável enquanto oferece um brilho amarelado fugaz para as paredes de pedras que me cercam. Mais estatuas de gesso se espalham pelo lugar, no formato de anjos, parecendo mais com corpos petrificados em gesso, do que uma escultura verdadeira, segurando espadas pesadas, antigas de metal reluzente, fincadas na pedra da base de sua estrutura. Tenho vontade de revirar os olhos, mas sou impedida de reagir ou sequer analisar um pouco mais afundo a necessidade de ter aquelas estatuas em uma das catacumbas da igreja antiga, apertando os meus lábios em uma fina linha rígida, quando os fungados suaves atinge meus ouvidos.
A chama da vela treme outra vez, quase desaparecendo enquanto eu prendo minha respiração. O fungado vem da minha esquerda, e sei o que vou encontrar quando me virar, mas a parte de mim que ainda se lembra dos instintos de autopreservação humanos é mais forte e por um segundo eu encaro apenas o chão de pedras. Meus dedos se apertam mais no castiçal que Zhao havia me emprestado para entrar naquele maldito lugar, e por um segundo apenas observo as pedras limpas, com marcas de sangue seco. Tinham formato de pegadas, o que, em suma era estranho. Parecia que a criatura havia entrado ali por vontade própria mas porque o faria?
Markus Zhao havia mentido para mim em algum momento e eu não havia percebido isso?
Não... ele não faria esse tipo de coisa. Quer dizer, tudo bem, tudo bem, eu entendo eu sou uma merda de uma pessoa insuportável e pior eu me orgulho muito de ser assim. Sou doente, propensa a incentivar brigas mesmo que eu esteja errada apenas para conseguir ter uma reação de outra pessoa —— ou vê-la se confundir no que diz, e se perder no personagem ——, eu não tenho exatamente uma ideia de futuro, e meu pensamento de caridade é comprar todos os cigarros de uma lojinha para evitar que mais pais comprem cigarros. Mas havia um código entre nós. Mentiras poderiam ser sustentadas e aceitas desde que a lealdade não fosse questionada. Parte do meu trabalho era ter a certeza que nenhum filha da puta não estava tentando me passar a perna para conter algum tipo de criatura a seu benefício próprio —— não que não tenham tentado antes para ser honesta. Mas Zhao era uma pessoa honrada, ele tinha princípios e, por mais que me enoje um pouco dogmas pessoais que ele nunca questionaria, não importava quão forte fosse a tentação. Ele não poderia ter me atraído para uma armadilha, poderia?... não, ele não era capaz disso, era?...
Engoli em seco, tencionando meus ombros, enquanto finalmente tomo coragem para me voltar na direção de onde o som está partindo. Eu odeio o escuro, eu odeio muito o escuro, caralho eu vou muito morrer no escuro...
Deparo-me com uma garota. Talvez não mais que 15 anos, talvez menos. É pequena, e tem uma aparecia frágil, de certa forma: corpo magricela, ossos protuberantes expostos nos pulsos e ombros, uniforme com manchas de sangue e rasgados. Tem os cabelos vermelhos como fogo, e se espalham por suas costas completamente desalinhados e embaraçados, são longos, e estão molhados, meio ressecados, sem vida, e quebradiços, com algumas pontos calvos revelando o couro cabeludo deformado. Tem ferimentos: nas mãos, na cabeça, mas principalmente nas pernas e coxas. Os cabelos estão grudados na pele dela, o corpo está brilhando levemente com o que parecia ser suor, mas não é; Tenho vontade de vomitar. É o corpo dela expelindo o necrochorume —— putrefação. Dou um passo cauteloso em sua direção, trincando meus dentes tentando não fazer barulho enquanto lentamente me aproximo dela.
Vermes escorrem por seus ferimentos e caem no chão de sua pele cinzenta. Pontos arroxeados se espalham por onde o sangue havia estacado dentro dela, enquanto os ferimentos já exibiam uma mancha marrom grotesca. Esse era o problema de se estar naquele maldito Limbo que Vander costumava a se referir. Nem morto, nem vivo: aquilo sim era uma condenação, uma punição. Poder sentir tudo, enquanto seu corpo lentamente apodrece e se desfaz, todo aquela... dor, todo o desespero, saber que havia algo de errado dentro de si, e não ter ideia do que era. Aperto meus lábios com força.
A dor que ela deveria estar sentindo é sufocante. Irradia dela como ondas, não são constantes e algumas são mais fracas do que as outras, mas está ali, está presente. E ela é só uma criança. Quero sair dali, quero dar as costas e não ter que lidar com aquilo. Porra é meu trabalho, e estou sendo paga, sim, é claro, mas dane-se, não como se Mark também fosse meu cliente principal, e não tivesse outra pessoa disposta a oferecer uma quantia considerável pelos meus serviços. Além disso, Zhao poderia pedir para Vander ou até mesmo Darcelle para vir resolver essa merda. Qualquer um. Alguém mais apropriado. Não. Sem chance. Estou fora. Sem chance mesmo!
Não percebo que olhos azuis grandes estão fixos no meu rosto até tentar dar minhas costas e congelar no meio da ação. Os olhos da garota se encontram com os meus. Eu prendo a respiração outra vez, não apenas por causa do cheiro, mas pelo o que eu encontro ali. Seus olhos são assustados e terrivelmente tristes. Porra, isso vai ser uma merda...
—— Shh... não se preocupa, eu estou aqui para ajudar, está tudo bem —— a mentira escapa de minha boca com naturalidade. Dou um passo hesitante na direção dela, colocando o candelabro com as velas e chamas tremeluzentes no chão, torcendo muito para que nenhum movimento brusco apagasse a vela ou perturbasse a garota. Ergo minhas duas mãos em uma demonstração de paz, enquanto calmamente tento me aproximar dela. Coloco-me de cócoras lentamente enquanto observo-a se encolher, arrastando-se para trás. —— Olha, eu sei que as coisas estão confusas, e que você está assustada. Você não tem ideia do que aconteceu, certo? Também aconteceu comigo isso —— tento enrolar a menina, para que sua atenção permaneça fixa em meu rosto, e não em minhas mãos. Dou mais um passos na direção dela, fazendo uma careta com os vermes que se aglomeram ao redor do pé dela, roendo sua carne. Meus dedos se fecham ao redor da adaga de prata presa em meu sinto enquanto prossigo: —— eu estava sozinha, como você, em um galpão, quando acordei. Minha única memória era um cheiro, sândalo, e aquele cheiro esquisito de livros velhos, sabe? Mas não faço ideia de quem ou do que que cheirava assim. Nenhuma memória. Apenas meu nome, e isso aqui —— giro a palma de minha mão para revelar as runas nórdicas cravadas em minha pele em uma espécie de linha reta que começavam da ponta de meu dedo médio, e chegavam ao final de meu pulso. Aperto meus lábios, tomando cuidado para não atrair a atenção dela com o movimento que faço para puxar a adaga, girando-a em meus dedos, para que pudesse ter um aperto mais firme. —— Então, Vander me encontrou, e me ajudou a me ajustar a esse novo mundo. Posso fazer isso por você, a gente se ajuda, pode ser? Eu prometo que fica mais fácil —— Se eu não merecia a porra de um Oscar por essa atuação.
Dou mais um passo na direção dela.
—— Confia em mim?
Ela hesita. Aperto com mais força o punha da adaga, tentando incentivá-la a pelo menos dar mais um passo em minha direção. Quero fazer com que isso seja rápido, preciso, mas para que isso aconteça preciso que ela dê mais um passo em minha direção, apenas um passo, para que ela esteja perto o suficiente para alcançá-la. Não era apenas fincar a adaga no peito dela, eu precisava cortar a garganta dela fundo o suficiente para que as cordas vocais fossem neutralizadas. Merda, merda, merda, o caralho dos infernos, eu me fodi tanto vindo aqui, era só ter ignorado, mandado pra puta que pariu, sei lá! A garota hesita novamente, analisando minha mão assustada, e eu praguejo mentalmente. Só pega a porra da minha mão desgraça, só pega logo!
Observo-a, tentando manter-me o mais estável possível, esticar sua mão em minha direção, os dedos finos necrosados, as unhas, estranhamente longas, obscurecidas, curvadas, tinham aparência afiadas —— para caça. Trinco meus dentes com força, tentando manter minha mão estável sem nenhum tremor enquanto ela repousa a mão dela sobre a minha. É áspera, e terrivelmente gélida. Eu ergo meus olhos para encará-la, vendo uma ponta de esperança surgir nos olhos dela, e tenho vontade de vomitar. Porra...
Não... não me olha assim...
Tento não pensar muito, deixando o instinto agir no lugar de minha racionalidade. Agarro o pulso da garota, em um aperto firme, meus dedos fincando e adentrando na carne necrosada que teria me feito vomitar se minha atenção estivesse ali, mas não está. Puxo-a com violência para frente, tentando ser o mais rápida que consigo, enquanto avanço com a adaga para cortar a garganta dela. Rápido, preciso, como era. Mas não é o que acontece dessa vez. A lâmina de prata da adaga atinge uma parede invisível a frente da garota, estraçalhando-se em pequenos pedaços enquanto meus olhos se arregalam. Puta merda. Puta merda!
A garota arregala os olhos, congelada e apavorada no lugar enquanto encara a adaga em minha mão, agora, quebrada. Porra! Meus olhos se encontram com o pingente pendendo no pescoço dela, com surpresa. Um selo de proteção? Para uma Banshee? Quem diabos poderia...
—— Ah porra... —— Não tenho tempo de dizer mais nada, sequer pensar quando a garota abre a boca, e um grito excruciante escapa de sua garganta, intenso, enlouquecedor, pura energia. Estoura meus tímpanos, enquanto a dor me cega. O empuxo do grito dela me arremessa para trás com violência.
A cabeça dela desaba nos meus pés com um baque molhado e nojento, enquanto o corpo pende para o outro lado.
Deixo-me cair sentada com uma careta. Um ombro deslocado, três dedos quebrados, e meu pé esquerdo estava virado para o lado contrário. Prendo minha respiração, trincando meus dentes com força, enquanto alcanço meu pé quebrado, soltando um grunhido com a dor que esvaia minha mente completamente, enquanto puxo o pé de volta para o lugar com um crack sonoro. Balanço minha cabeça, meus ouvidos zunindo em uma mistura dos tímpanos se regenerando lentamente, enquanto minha própria pulsação parece abafar tudo ao redor, como se eu estivesse abaixo d’água. O porão está destruído. Algumas estatuas estão espalhadas pelo chão, em pedaços, e eu lanço um breve olhar para a espada ainda com a mão de um dos anjos de pedra. Faço uma careta, batendo com o punho da arma contra o chão, afim de livrar-me da mão de pedra que ainda a segura. Faço uma careta, obrigando-me a levantar-me, enquanto prendia a espada em minhas costas. Cuspo o sangue que se acumula em minha boca no chão, fazendo uma careta, com o latejar de meu nariz, antes de endireitar meus ombros.
Não sei o que é pior nessa desgraça de lugar: se é os ossos que eu havia quebrado e se reconstituem do jeito errado, o que irá me levar pelo menos uma hora quebrando-os de novo para que pudessem se curar dessa vez, certos, se era a merda das estatuas destruídas e os riscos em algumas runas acabando com o poder delas ali, ou se era porque eu estava completamente encharcada com o icor da criatura —— e puta que pariu essa porra fede para um caralho! Eu vou muito vomitar...
Meu corpo se dobra para frente com a onda de náusea que me atinge e eu quase teria vomitado o que comi aquele dia, exceto que, eu não havia comido nada, então no máximo que faz é escorrer um pouco de fluído estomacal e meu próprio sangue. Faço uma careta com o desconforto da contração de meu estomago, antes de cuspir outra vez no chão, limpando minha boca na parte de trás da batina de Zhao.
É, até que serviu para alguma coisa.
Descarto meu casaco de trincheira, retirando apenas os meus pertences pessoais mais importantes —— canivete suíço, meu frasco com vodca, chaves, carteira, chaves, o meu maço de cigarros, e olha só, a porra do meu isqueiro. Guardo-os nos bolsos de minha calça cargo, e então visto a batina de Mark. Qual é, o cara era literalmente um padre, aquilo era o uniforme dele, ele com certeza teria outro para usar. Inspiro fundo algumas vezes, caminhando em direção do amontoado de cinzas que a garota havia virado, tensa e com raiva, enquanto me abaixo apenas para pegar o selo de proteção, estreitando meus olhos. Agora como isso havia ido parar no pescoço de uma Banshee, eu queria muito saber.
Enfio o selo de proteção, voltando a subir as escadas, em direção as portas duplas, e empurro-as com toda força, fazendo uma careta com a dor que meus dedos quebrados e curados do jeito errado me atinge, mancando para fora. Posso observar Zhao pelo o canto do meu olho, mas honestamente? Naquele momento? Ele poderia ir para o inferno, que pouco me importava. Eu inspiro fundo, o ar puro e límpido quase queimando meus pulmões enquanto fechava os olhos por um segundo. Percebo o erro tardiamente quando o faço, o rosto da garota, o olhar assustado, aquele medo... obrigo-me a abrir os olhos e não pensar naquilo.
Era meu trabalho. Tudo aquilo era só um trabalho, nada mais.
—— Quer saber? —— Aponto o indicador na direção de Markus, com raiva. Olha, eu tenho que dizer que pelo menos eu tenho um puta de um autocontrole do caralho, porque minha vontade de arrebentar a carinha bonitinha de Zhao é maior do que minha vontade de ser pacifica. Ah, certo, certo, sem mentiras, a quem quero enganar? A última coisa que eu sou é pacifica. Eu vou arrebentar alguém só pelo prazer de o fazer. E no entanto, o máximo que eu faço é silenciá-lo com um gesto de minha mão. —— Eu quero o triplo. E vou ficar com a batina.
Para minha surpresa, Mark solta um riso baixo, assentindo, mas sua reação apenas aumenta meu incômodo com ele. Brigue comigo. Porra, fale algo, seja depreciativo, diga-me o quão nojenta eu sou por ser quem sou. Grite. Faça alguma coisa, qualquer coisa! Mas não é isso que encontro no olhar de Mark. Eu encontro piedade. Eu odeio o que vejo. A maneira com que a expressão tensa dele se desfaz naquele olhar suave, preocupado, até mesmo... porra, até mesmo gentil. Como ele abre a boca, parecendo hesitar, tentando escolher as palavras corretas. Não. Não! Ignoro o que quer que ele queira falar, voltando a andar, sem olhar para trás.
Não. Eu não iria fazer aquilo. Eu não precisava daquilo. Não merecia...
—— null, espera, você tá bem? Espera, pelo menos diz como posso aju... —— Fecho a porta da igreja com um baque alto e satisfatório. Bom, pelo menos agora eu teria silêncio.
Fantástico.
Suspiro pesado, em um quase grunhido, descendo as escadas e xingando de todos os nome que conheço o vazio. Talvez a sorte. Talvez a vida por si mesma. Sei lá, eu só queria encontrar alguém para culpar que não fosse eu mesma, embora minha consciência deixasse explicito que, no fim, era. Mea máxima culpa, diriam. Que perda de tempo. Passo minhas mãos pelos meus cabelos, as mechas agora grossas, oleosas e embaraçadas pelo icor da Banshee, tentando limpá-los, mas não teria a atenção de ninguém que estivesse caminhando em plena madrugada em Roma mesmo se eu quisesse. Nunca havia tido problemas de me misturar com as sombras, mesmo que tivesse medo dela. Paro por um momento, escorando-me contra a parede de tijolos medieval da viela, e então suspiro pesado, recostando minha cabeça contra a parede, e então fechando meus olhos com força.
Quero desaparecer. Quero sumir da existência sem que tenha sequer existido algum registro da minha existência. Quero tornar-me cinzas se tivesse a certeza que não haveria mais nada do outro lado. Enfim, paz, suponho. Que paraíso seria esse. E então, lá está, o sopro desconhecido de um rosto que nunca havia visto. Olhos vermelhos, intensos, e vibrantes, a pele macia sob o toque, o cheiro forte de sândalo e papeis velhos, a maneira com que o rosto dele se contorcia, com o medo. O mesmo medo espelhado no rosto daquela garota, daquela Banshee. O problema era que eu não tinha ideia de quem ele era, e sendo honesta, não tinha o menor interesse de descobrir também.
—— Levou tempo o suficiente, huh? Eu já estava achando que havia escolhido a pessoa errada para o trabalho —— Congelo no lugar, abrindo meus olhos por instinto e voltando-me em direção de onde a voz aveludada havia partido. Faço-o não por medo, mas por puro alerta. Estreito meus olhos, olhando para os lados, em busca de onde a voz havia partido, até encontrar a outra figura solitária, a alguns passos de distancia de mim, escorada da na parede contraria, com braços cruzados e sorriso divertido, mas frio.
É uma gótica deslumbrante. Cabelos cheios e escuros como a noite, a pele uniforme e sem a mínima imperfeição possível, lábios cheios e olhos cinzentos, usa uma espécie de vestido discreto, longo, mas com duas fendas nas laterais de suas pernas, um corpete justo a cintura valorizando os seios dela, com uma cruz pendendo a frente de seu corpo, e um véu de renda preto lhe dariam o ar de uma mulher alternativa, gótica. Em qualquer outro momento, eu teria considerado me aproximar, talvez tentar a sorte, mas o sorriso dela me impede. A maneira com que ela sorri, revela duas presas pontiagudas, e eu tenciono minha mandíbula com força. Minha mão viajando em direção a minha cintura instintivamente, em busca de algo que possa usar como arma.
—— Não se preocupe querida, eu queria apenas chamar sua atenção, por isso usei a Banshee, nada pessoal, sabe, mas você é uma pessoa difícil de encontrar. Agora que a tenho, no entanto, acho que seria de bom grado lembrar que estou aqui, amigavelmente —— ela explica calmamente, o sotaque suave escapa por sua voz, e eu não posso deixar de unir minhas sobrancelhas. É familiar, ao mesmo tempo que não é, e isso me perturba. Que merda... —— Eu quero apenas conversar, isto é, se me oferecer um pouco de seu tempo. Tenho uma oferta para você, e tenho certeza que você vai se interessar. —— A vampira ergue uma sobrancelha, analisando-me com atenção. —— Então, o que me diz?
PARTE 01 | CAPÍTULO 02
Roma, Itália.
—— Pensei que tivesse sido claro, null —— Vander rosna baixo, lançando-me um olhar torto antes de voltar a focar no copo a sua frente, esfregando o pano branco, meio manchado com sangue e extrato de tomate, no vidro. —— Sem desconhecidos aqui.
Tento não revirar os olhos —— não porque me preocupo com minha educação e parecer desrespeitosa com o velhote, mas simplesmente porque tenho quase certeza que iria acabar tendo uma dor de cabeça insuportável se o fizesse. Forço um sorriso sarcástico para o velho, antes de voltar meu olhar para os amendoins salgados a minha frente, esperando que ele termine de, pelo menos, preparar as bebidas que eu havia pedido. Faço uma careta comigo mesma, jogando o resto dos amendoins salgados da tigela pequena de vidro, ignorando o sabor horrível enquanto limpava minhas mãos na batina de Zhao. Puta merda, como eu odiava amendoins salgados! Só quem deveria ser doente das ideias poderia gostar desse tipo de porcaria.
—— Oh, sim, eu deveria ter sugerido levá-la até o Vaticano e assistir de camarote enquanto ela queima até a morte —— dou de ombros, desdenhosa, enquanto cuspia em um guardanapo de papel os amendoins. Ugh. —— Teria me poupado o dinheiro, se quer saber —— Uso a unha do meu dedo mindinho para tentar tirar um fragmento de amendoim preso em meu dente antes de examinar outra vez minhas unhas.
Vander para de secar os copos, encarando-me com irritação. Mordo meu lábio inferior tentando não rir, mas falhando miseravelmente.
Qual é? Pode me culpar, mas até mesmo você precisa admitir que tem alguma coisa de muito divertida em conseguir tirar alguém do sério. É quase... catártico. Além disso, o desprezo não era algo que me preocupava muito, era familiar, conhecido, e até mesmo esperado. Alguém que te despreza não faz perguntas, e sendo honesta, depois da Banshee, talvez eu queira um pouco de caos. Talvez eu mereça. Salubridade, sabe? Para me manter mentalmente saudável.
—— Só não expulsei você daqui ainda, porque Darcelle tem um código e eu não vou ir contra este código, mas se quer saber, suas piadinhas não ajudam de nada, null —— Rosna Vander, um tom de voz mais baixo e ameaçador do que antes e eu tenho vontade de rir, desta vez não por achar divertido, mas simplesmente porque eu não tinha nenhum tipo de senso comum e queria uma briga fácil. Até consideraria só avançar na direção do velhote, mas eu não podia o fazer, a Strigoi estava me esperando em uma das cabines do pub, e eu ainda estava curiosa para saber porque uma vampira como ela queria tanto minha atenção.
Jogo meus cabelos para trás, alçando um hashi do copo de metal onde Vander os guardava para os clientes que chegavam e o pediam por yakissoba ou coisa do tipo, e o uso para prender meus cabelos, ao menos, com o único intuito de manter meus cabelos erguidos —— e, é claro, ter madeira perto de mim ao lidar com a vampira em questão. Faço um beicinho fingindo-me de magoada para o velhote, e o vejo tencionar a mandíbula, irritadiço.
Vander, seja lá qual fosse o nome real dele, era um homem de altura mediana, talvez quase do mesmo tamanho que eu. Tem maçãs do rosto largas, e olhos profundos, intensos, de uma cor azul gélida, normalmente, seu olhar penetrante e expressivo seria amigável, exceto quando se tratava de mim —— justo, eu não era também alguém que fazia muita questão de ser agradável com ninguém; porque diabos deveria? As sobrancelhas de Vander eram consideravelmente grossas, escuras, e seu nariz levemente adunco e orelhas consideravelmente acentuadas. Vestia-se como um perfeito cavalheiro inglês, e talvez, ele o tenha sido, ou talvez, ele só tivesse nascido durante a era da Rainha Vitória. Seja lá como for, eu nunca me importei muito com a história dele, assim como ele, igualmente, não se importava com a minha.
O ponto é: Vander era dono da Hellgate, um pub em um prédio histórico, próximo de um ponto turístico como qualquer outro, mesas de madeira e cabines separadas, normalmente com acentos estofados, e, se quer saber, manchados, e uma iluminação precária. Mas mais do que isso, assim como Darcelle, era ele que ficava de olho nas ameaças ao redor da cidade. Ele poderia não ser exatamente um caçador, mas a maioria dos nossos trabalhos vinham diretamente dele. Se havia alguém que sabia o que acontecia pelo Submundo, este alguém, certamente, era Vander, então era bem suspeito que nem mesmo Vander pudesse ter previsto a presença da Strigoi ali.
Se isso não tem cheiro de problemas, huh?
—— Outch, para —— resmungo com um gemido, revirando os olhos. Que ridículo. —— Você vai me fazer acreditar que você me odeia de verdade.
Vander trinca sua mandíbula, um músculo se movendo enquanto os olhos grandes dele se fixam em meu rosto. Talvez seja algo em minha expressão, ou talvez, seja apenas minha continua tentativa de tirar alguém do sério que o incomoda, mas posso ver por trás de tudo isso, uma pequena camada mal disfarçada de pena, e eu odeio isso. Sinta o que for, me odeie se assim quiser, eu não me importo, mas sou consciente o suficiente para saber que sou orgulhosa demais para aceitar que alguém sinta pena de mim. E é isso que Vander usa contra mim. É isso que me atinge mais rápido do que qualquer outra coisa.
Inspiro fundo, tentando encontrar uma paciência que realmente não sinto enquanto Vander repousa o copo que ele estava secando a minha frente. Por uma fração de segundos, sua natureza parece reverberar por seu rosto, normalmente, discreto e observador, revelando-se de maneira dourada antes de voltar para os tons originais. Nem todo lobisomem tinha uma relação ruim com a lua, ou com a fera dentro de si, mas todos eles, possuíam aquela maldita íris esquisita. Bem, esquisita para mim, não para eles, então, neste caso era apenas uma questão de opinião minha. Semântica, ou sei lá, algo do tipo.
—— Um Strigoi não aparece convenientemente do nada, null —— Vander diz com um tom de voz baixo, cautelosamente usando os ruídos do vidro deslizando pelo balcão de madeira para fazer barulho o suficiente para ocultar suas palavras da atenção da vampira, embora, sinceramente, levando em consideração o tempo em que ela estava viva, era bem mais fácil que ela só deveria ler os lábios dele para saber o que eles estavam falando. Uso minha língua para tirar um pequeno pedaço de amendoim enroscado em um canto do meu dente, assentindo lentamente para ele, contemplativa. —— Eles não observam pessoas aleatoriamente, e para estarem de olho em você, certamente é porque você deve ter feito alguma coisa.
Ergo minha linha de olhar e o encaro com uma ponta de irritação. Não que ele não estivesse certo, mas nem tudo o que acontecia de errado, tecnicamente, era minha culpa diretamente, as vezes eu não era um fator direto, só acontecia de estar por perto.
—— Eu não fiz nada dessa vez, Vander —— sussurro com um tom mais afiado, sem conseguir conter-me enquanto observava ele colocar o líquido vermelho e encorpado no copo. Sangue. Aí que delícia. —— Olha só, tudo o que eu sei é que Mark me ligou algumas horas atrás dizendo que ele e Lucius haviam capturado uma Banshee. Eu to me fodendo para o que você e a porra da sua alcateia faz, mas ele que precisava de ajuda, urgente, e eu concordei em ajudar. Ela que deu um jeito de colocar a Banshee lá dentro, agora eu sei o que ela quer? Não, ainda não, mas ajudaria ter um pouco de fé para variar. —— Pego o copo pequeno com a vodca que eu havia pedido para ele observando-o repousar a garrafa de vodca sobre o balcão, e então viro em direção a minha boca, fazendo uma careta com o gosto pungente, engolindo o líquido e sentindo minha garganta queimando, o álcool aquecendo minha corrente sanguínea enquanto exalo, balançando a cabeça. Agora sim, é um começo. —— Seja o que for, pelo menos o dinheiro vai valer apena.
—— Não pode estar falando sério agora, null.
—— O que? Sobre o dinheiro? Cara eu meio que tenho que pagar a minha parte na pocilga de Darcelle, se eu não fizer isso ela com certeza vai me expulsar e eu duvido que você e as suas garotas vão me aceitar no meio do... —— Começo a tentar me defender, mas Vander solta um chiado entre dentes, parecendo impaciente.
—— Cala a boca, por Deus! Não é isso! —— Ele toma o copo da minha mão, e eu simplesmente dou de ombros, alçando a garrafa de vodca e então viro-a em um copo de chopp limpo repousando no canto do balcão. Puxo a garrafa um pouco mais em minha direção quando ele ameaça tomá-la de volta. —— Ouça, null, eu sei que parece uma boa o dinheiro deles. Os filhos da puta estão no topo dessa merda por anos, mas não tem como sobreviver a isso. Você não está apenas arriscando o seu pescoço, tá arriscando o nosso. —— Devolvo a garrafa para ele, encarando-o com um dar de ombros. Por que aquilo deveria ser problema meu? Não era ele que estava praticamente gritando que eu não pertencia aquele lugar? Tenho vontade de rir, mas não o vou fazer. Talvez esteja sendo hipócrita, talvez eu valorize meu ego mais do que meu senso de comunidade, mas não posso deixar de observar a hipocrisia. Parecia algo recorrente, se quer saber, algo que nos conectava de certa forma, imortal ou não, apenas quem era ou havia sido humanos, a pura hipocrisia. —— Se tá com a porra de um desejo de morrer, então o faça, mas não envolva ninguém aqui, null.
—— Relaxa —— estalo meus lábios, impaciente, tencionando minha mandíbula, sustentando o olhar afiado dele. —— Pode falar o que quer, mas eu sempre finalizo meu trabalho.
Vander passa a língua em seu lábio inferior, afim de umedecê-lo enquanto exalava baixo, por entre sua boca, desviando seu olhar para o balcão, perdendo-se em seus pensamentos. Aproveito-me da distração momentânea para roubar o outro hashi, deslizando-o o mais discretamente possível para dentro da manga da batina de Zhao.
—— Não lembra mesmo o que aconteceu naquele dia?
Tenho vontade de rir, novamente, mas apenas lanço um olhar descrente para Vander, considerando se sequer iria me dar ao luxo de respondê-lo.
A pergunta é ridícula, e ainda mais ridícula por ser feita justamente por Vander, afinal, foi ele quem havia me encontrado no galpão. Foi ele o primeiro rosto que vi naquele dia, e igualmente o último. Roupas estraçalhadas, a imagem gritante de vermelho por todo lado, o gosto metálico em minha boca, sufocante pelo meu próprio sangue, e o cheiro insuportável de carne podre. Lembro-me apenas disso naquele dia estranho, e de um corvo, sentado sobre o parapeito de uma das janelas de ventilação do galpão abandonado.
Descobri posteriormente que aquilo era apenas um galpão de descarte de algum mafioso em questão. Nada de especial ou sobrenatural, mas certamente fazia jus a ideia do que muito provavelmente poderia ter acontecido comigo antes de morrer. Um descarte. Quem quer que null null tenha sido no passado, ela não era lá muito esperta, e a supor pelo estado em que eu havia acordado, os assassinos não havia sido lá muito misericordiosos também. É, docinho, nada de herdeiro da máfia gostosão para mim. As tatuagens já estavam gravadas em meu corpo quando Vander me encontrou, e havia sido o velhote a explicar o que elas significavam. É claro, eu deveria ter outras pelo corpo, assumindo que a cobra em minhas costas terminando no interior de minha coxa esquerda já precedia a um bom tempo e não tinha significado aparente, mas ainda assim, as tatuagens eram minha iniciação naquele maldito mundo, e embora a maioria dos caçadores não tivessem memórias de sua vida passada, havia sempre um propósito. Um desejo de vingança, uma retribuição ou um karma a ser debitado, normalmente estaria inscrito nas tatuagens também, através dos símbolos, e com a guia certa, você poderia transcrever e entender o que eles queriam dizer; o seu propósito teoricamente. A pendência que havia ficado para trás e que deveria ser paga agora.
Assumi que a minha missão seria localizar os assassinos. Ou ao menos, o responsável por me descartar daquela forma grotesca. Era de se esperar, certo? Há, você só acha. Quer saber qual é a piada desse circo todo, docinho? Eu tô quebrada. Totalmente quebrada. Falha de fabricação, aparentemente, ou... bem, refabricação se quiser chamar assim. Não a nenhum propósito, nenhuma marca, nada. É como se o fantasma do meu passado tivesse seguido com sua vida pós morte, e me deixado a ver navios aqui. Não há nada, e acredite eu tentei encontrar as respostas, eu tentei entender esse quebra cabeça, foi assim que descobri o meu nome e de onde eu vinha —— essa é uma longa história, e não é para agora. Eu tentei de tudo, mas as vezes, só não era para ser mesmo.
Sinceramente? É até um alívio. Não tenho nenhuma responsabilidade, nenhum débito. Para alguém com uma conta estourada como eu, certamente não ter mais uma dívida para pagar era um alívio do que uma miséria. Neste circo todo havia apenas uma coisa que nunca mudava. Ele.
Não deveríamos ter sonhos. Veja, a nossa parte “humana”, talvez um pedaço do cérebro ou se você quiser chamar de alma, seja como for, se foi. Está permanentemente comprometida e não como retornar disso. Muitas criaturas sobrenaturais não experienciam o sonho simplesmente porque seus corpos se adaptaram para o ambiente noturno. Outros, simplesmente porque não precisavam. O corpo se desligava em algum momento pela exaustão, e então retornava como uma máquina. E, todavia, eu os tinha.
Ah, sim, sim, eu sou aquela pessoa especial —— nem um pouco como as outras garotas, idêntica as outras garotas.
Eram mais frequentes no período que Vander me encontrou. Ajustar-me a essa nova realidade com as lacunas deixadas pela null do passado havia me sobrecarregado. Por muito tempo havia acreditado que talvez fossem pequenas pistas do meu passado, e que o homem de cabelos null e olhos sempre ocultados por lentes azuis teria alguma conexão com o meu passado. Olha, eu só precisava de uma pista, sabe? E qualquer coisa valia na época, mas quando Vander apenas disse que isso deveria ser um resquício da minha “humanidade”, e uma prova de que eu estava quebrada, apenas aceitei que essas visões não passavam de ecos fantasiosos ao fundo de minha mente.
Desde aquela época, os sonhos haviam diminuído, mas uma vez ou outra, ainda poderia ver o rosto dele com clareza em minha mente. Flashes, rápidos e pouco significativos, mas ainda presentes. A pior parte? É que seja lá quem ele fosse —— suponho que algum ator bonitão que a null do passado era obcecada —— era um puta de um gostoso. Tenho que admitir, ainda não havia o encontrado na internet, as vezes supunha que era apenas um “homem idealizado”, mas era bonito mesmo. Dessa forma, porque eu deveria me importar em ser assombrada pelo senhor bonitão?
Dou de ombros para Vander, indiferente.
—— Só de você, me dando boas vindas para essa merda de vida —— digo com um tom sarcástico, forçando um sorriso que eu realmente não sentia nenhuma vontade de oferecer para Vander. Encaro Vander por um breve momento, com um sorriso torto. —— Se formos usar a lógica, é muito provável que você saiba mais sobre mim, do que eu. Não está me contando o que, Vander?
Observo algo atravessar o rosto do velhote. É rápido, mas para minha surpresa, consigo perceber o breve vislumbre. Não sou capaz, todavia, de dizer o que se passou em seu rosto. Havia a tensão de sempre, afinal, era claro como o dia para mim que eu não era a pessoa preferida de Vander —— pra que tentar impressionar uma pessoa, se você poderia traumatiza-la? ——, mas havia mais do que apenas tensão. Havia surpresa, e uma ponta de medo. Estranho...
O que, ele realmente estava escondendo de mim?
Seja lá o que fosse, o rosto de Vander se torna mais guardado e irritadiço, enquanto ele volta sua atenção para o balcão, esfregando-o com mais força a madeira, as garras de sua mão se alongando um pouco mais quase arranhando o envernizamento da madeira do balcão dele enquanto esfregava o pano de prato branco ali.
—— Posso ter salvado você daquele galpão, null, mas eu não sou seu pai, e aqui, não é sua casa —— Vander cospe as palavras, e tento manter minha expressão o mais indiferente possível. É, é, eu ouvia aquilo o tempo todo, não sem razão, mas ainda assim doía um pouco. Bem pouquinho. Quase nada. Eu não sinto dor nenhuma, sou indiferente a tudo. Isso aí, confia. —— Qualquer merda que você queira fazer, é sua vida, só deixe minha alcateia fora disso. Incluindo Zhao.
—— Você fala como se Mark não tivesse poder de escolha —— resmungo sarcástica, me endireitando outra vez.
A rejeição até que dói bem mais do que eu gostaria de dizer que havia doido, mas sendo honesta também, não era como se eu tivesse esperanças de desenvolver um relacionamento afetivo com Vander. Olha, seria legal, e tudo mais, e é claro, havia sempre aquela parte do meu cérebro que tem uma evidente suspeita que a null do passado tinha algum tipo de Daddy Issues porque sejamos sinceros, ninguém seria como eu sou, se não tivesse no mínimo consideráveis problemas mentais não tratados —— e isso não é um flex, questiono-me o que diabos ela deveria ter na cabeça dela que não havia aceitado ajuda, muito provavelmente, eu não estaria agora aqui, se ela tivesse pelo menos, feito o trabalho. Mas tirando termos narrativos convincentes e apelativos, além da conveniência, nós dois éramos diferentes demais para funcionar juntos corretamente. Vander vivia por um código de honra pessoal, era um protetor; eu, olha... minha moralidade é baseada no quanto me pagam.
Seria legal, mas eu não sou esse tipo de pessoa.
—— Nossa, agora eu faço o que? Te dou uma estrelinha dourada pela fala? Parabéns? —— Questiono com uma expressão desdenhosa, antes de me permitir sorrir lentamente, me inclinando na direção dele como se estivesse prestes a contar um segredo. —— Sabe, se você precisa repetir em voz alta algo, certamente a única pessoa que você está tentando convencer é a si mesmo, não acha? —— Com uma piscadela, pego os dois copos, o meu com a vodca, e o da Strigoi, com o sangue, me afastando devagar do balcão com um sorriso petulante. Ah, ele me odeia, me odeia pra caralho pela maneira que está me encarando. Legal. —— Coloca na conta da Darce, ay?
Não deixo que ele me responda, girando em meus calcanhares e marchando na direção onde a Strigoi me esperava. Antes na conta de Darcelle, do que na minha.
—— Eu quero que você mate alguém para mim.
Aperto meus lábios encarando a Strigoi gótica, uma visão pitoresca da propriedade britânica do final do século 19, com uma expressão exasperada, embora precisasse admitir que eu estava me esforçando muito para me manter neutra naquela conversa.Aí, viu? Até que eu sei ser legal, às vezes...
Obviamente, ela quer matar alguém. O comentário é ridículo e redundante. Porque diabos uma vampira, especialmente uma Strigoi iria se aproximar de um caçador se não tivesse alguma intenção por trás disso? Esse não era meu problema, na verdade, estava tranquila em relação a isso. Vá em frente garota, mate todo mundo, pelos acertos e especialmente os erros das mulheres, ou coisa do tipo. Yay! Mulheres! Definitivamente, esse não era o problema, o meu problema era que vampiros não faziam nada que se não lhe fosse oferecido algum tipo de entretenimento em troca.
Era tudo o que isso era: jogos mentais de um bando de desocupado.
Malditos senis entediados.
Estavam vivos a tempo demais, entediados demais, e para uma criatura que possuía toda a eternidade e o dinheiro que desejasse a disposição, é claro que seu entretenimento pessoal viria sempre com alguma armadilha, eu só não estava conseguindo perceber ainda qual era o jogo dela comigo. Mas sabia que tinha um.
—— Esse ponto eu já havia entendido, cupcake —— reviro meus olhos, fazendo uma careta enquanto me deixo recostar no encosto da cadeira, apoiando meus braços para trás, no encosto da cadeira, o que se prova uma ideia estúpida e desnecessária da minha parte, já que o osso de meu braço esquerdo havia se curado do jeito errado, mas nem fodendo que eu vou reclamar de dor na frente de uma vampira. Concentro-me no copo de vodca em minha mão, girando-o distraidamente por entre meus dedos, pensativa.
Eu vou ficar com uma ressaca do caralho por causa dessa aqui.
Agora mais de perto, na segurança, ou bem, na parcial segurança que o Hellgate poderia proporcionar para alguém ali —— levando em consideração, os lobisomens, fadas, feiticeiros, djins, sereias, caçadores e até mesmo alguns outros vampiros não olhavam a Strigoi de maneira amigável ——, eu posso ver pequenos detalhes sobre a mesma que na viela perto da Basílica não podia. A pele pálida como porcelana é perfeita demais, antinatural. Posso ver que existem poros ali, mas são discretos e paralisados, nenhuma espinha ou cravo, sequer defeitos, é como se a pele dela tivesse sido conservada através do gelo, e mesmo algo estando congelado, era possível que se apodrecesse. Suponho que seja a personalidade deles que apodreça.
Ainda assim é perturbadoramente bonita. Há algo de necessário que vampiros sejam atraentes dessa forma, assim como Succubus e Inccubus —— é uma terminologia em latim, Inccubus é quase praticamente deitar-se sobre, enquanto Succubus seria deitar-se debaixo, ou coisa assim, olha eu não sou uma expert em linguística —— é necessário que exista um interesse da presa e, acima de tudo, seu consentimento. Querendo ou não, um vampiro jamais poderia beber o sangue de uma vítima se não tivesse seu consentimento, o que o faziam... bem, não viviam muito tempo para contar a história. Mesmo os malditos senis sabiam que não havia nada mais poderoso do que dar à humanidade um inimigo em comum.
Observo-a soltar um riso suave, que ecoa por meus ouvidos quase como um sinto delicado, os lábios dela são vermelhos, convidativos, não é surpresa que minha mente se desvirtue de seu prospecto em questão e passe a questionar-se como seria a sensação de beijá-la. Que sabor ela teria, qual seria a sensação da pele dela em meus lábios. Que maravilha ela está arruinando a minha calcinha.
Os faes tinham truques semelhantes, mas o jogo deles eram com palavras. Você precisava tomar cuidado com o que entendia e ouvia, porque poderia acabar aceitando um acordo sem querer, sem perceber. Vampiros usavam charme para convencer, mas pouco poderia se fazer sem ter o consentimento da vítima. Era necessário, portanto, enganar os sentidos, seduzir e deixar-se ser seduzido. Giro o copo de vidro precariamente por entre meu indicador, meu dedo médio e polegar enquanto a base do copo deslizava pela superfície intacta da mesa. O que diabos ela poderia querer tanto assim que se daria ao trabalho de vir até aqui, chamar minha atenção e tentar me convencer a matar alguém por ela?
—— Qual é, eu posso ser muitas coisas, mas burra, eu não sou —— pelo menos não muito. O que significa que, além de haver uma óbvia armadilha ali, provavelmente era bem maior do que eu poderia compreender no momento. Observo-a em silêncio por um momento, calculando meus movimentos. Eu poderia simplesmente negar e ir para casa, mas para alguém que havia se dado ao trabalho de criar uma Banshee, guia-la até o caminho de Mark, e por consequência me atrair para aquele local, eu duvidava muito que ela fosse aceitar, de bom grado, um não. Eu poderia usar meu ponto de vantagem ali com Vander e os outros espalhados pelo bar, e fazê-la ir embora, mas isso significava que eu teria que pedir a Vander ajuda, e sinceramente, eu preferia morrer a pedir ajuda. E eu poderia ouvir o que ela tinha a dizer.
Eu poderia aceitar sua proposta, mas significava que estava conscientemente aceitando cair em sua armadilha.
—— Desde quando tudo precisa ter um motivo? Às vezes as coisas podem ser simplesmente claras como são.
Solto um riso baixo, sarcástico, lançando um olhar na direção dela. Alço meu copo com a vodca, virando-o com a intenção de toma-lo de uma vez, mas acabo me engasgando pelo meio do caminho e preciso coloca-lo sobre a mesa novamente —— uma próxima vez, talvez eu tome gasolina direto da bomba, vai ser melhor. Limpo com meu antebraço minha boca, inspirando fundo e balançando a cabeça, ignorando a maneira com que a bebida alcoólica aquece meu corpo inteiro. Merda, se a Banshee não tivesse destruído minhas roupas, então pelo menos eu poderia tirar meu casaco, mas com a batina sendo meu único recurso, eu duvidava muito que Vander iria continuar me aceitando naquela porcaria de lugar por atentado ao pudor —— não que eu já não tivesse feito isso antes, mas bem, dessa vez, ele me expulsaria, tenho certeza.
Lanço um olhar ao meu redor contemplativa. Esforço-me para ocultar o que quer que surja em meu rosto, lembrando-me da máscara que eu havia me treinado a manter na frente de outra pessoa. Não era lá assim tão difícil se quer saber: tudo o que eu precisava fazer era dizer as palavras certas, as que as pessoas esperavam escutar, e ninguém se importaria com o que realmente estava sentido, com o que eu realmente estava pensando. Espelhar suas expressões e manter os músculos do meu rosto completamente relaxados, era um ato contínuo e consciente. As vezes chegava a sobrecarregar, mas se era o preço que eu precisava pagar para ter ao menos controle sobre alguma coisa, então que o fosse.
Percebo a inquietação da alcateia de Vander. Estão nos observando, os olhos lupinos, caracteristicamente de um tom castanho dourado, quase âmbar suave cintilando enquanto discretamente eles lançavam olhares em nossa direção. Posso observar Dante se inclinar na direção de Vander murmurando alguma coisa que faz com que o velhote se tencionar como elástico a poucos segundos de se estourar. Posso ver Felícia e Matteo fingindo tomar suas cervejas com uma demora deliberada. Ah, merda, isso vai ficar feio logo, logo...
—— Não ofenda minha inteligência, cupcake.
—— Olha, eu não chamaria o que você possui de inteligência —— Eu a encaro, quase divertida. É, essa foi boa, tenho que dar essa a ela. Ergo uma sobrancelha, silenciosamente questionando a ela seu nome, apenas pelo —— Zorya. Zorya Strigoi.
Ergo uma sobrancelha, cinicamente sustentando o olhar dela.
—— Saúde? —— Eu sei que é o nome dela. Eu sei que ela o usou para demonstrar poder. Oficialmente estou lidando com uma Strigoi agora, não mais uma vampira aleatória que queria minha atenção, que maravilha
, tentando me convencer a aceitar um trabalho em nome dela, com obviamente uma armadilha que provavelmente vai acabar com minha cabeça a exposição em algum lugar do trono deles ou seja lá o que aqueles malditos senis estivessem fazendo por agora.Zorya passa sua língua lentamente pelos dentes superiores, como se estivesse calculando suas possibilidades ali. É claro que ela não iria começar uma briga ali, ela era elegante demais para se permitir a isso, e uma vez que seu charme pode até estar conseguindo me excitar, mas não me convencer, talvez ela esteja analisando outras formas de me convencer a fazer aquele maldito trabalho, mas seja lá o que for, é visível que não quer me dizer, ao menos, a razão pela qual ela queria que o fizesse.
E a armadilha estava justamente ali. Que porra você está planejando Zorya Strigoi?...
—— Você é bem insistente, não é? —— Zorya resmunga, agora com um tom mais afiado do que estava usando antes. Olha só, alguém não sabe lidar com a frustração. Bom, isso é muito bom.
—— É que se eu vou morrer, pelo menos quero saber o motivo, dar uma razão, sabe? Coisa do tipo —— Dou de ombros alçando meu copo com a vodca novamente, mas hesitando. Por um breve momento apenas encaro a vampira a minha frente hesitante. Estou brincando com a minha sorte aqui, e sequer estou percebendo direito. Um alerta vermelho está pulsando ao fundo de minha mente e eu devolvo devagar o copo a minha frente, sem desviar meu olhar de Zorya. Ela apoia os dois cotovelos sobre a mesa, observando-me com igual intensidade. —— Assumindo que você não quer que eu saiba sua motivação, então significa que não vou sobreviver a este trabalho. Não precisa tentar me seduzir, Strigoi, eu sei como jogar o jogo, só preciso que me dê uma boa razão para isso, se é que me entende. Eu nunca quis viver para sempre, de qualquer forma.
—— Suicida?
Deixo um sorriso torto surgir por meus lábios enquanto escuto suas palavras.
—— Interesseira, cupcake, é diferente. —— Recosto-me contra a cadeira estofada da cabine, apoiando minha cabeça em minha mão esquerda, enquanto calculava mentalmente a distancia em que estamos, e a potencial idade da vampira. Pelas roupas e maneira de falar, ela definitivamente deveria ter sido transformada por volta de 1841, bem no começo do século XIX, mas suas roupas informavam o final do século XIX para o começo do século XX com aspecto georgiano. Não eram acaso. E se formos levar em consideração a idade considerável que a vampira possuí em questão, significa que vai prever quaisquer movimentos bruscos que eu fizer. Pode não me matar, mas irá irritar os Strigois e a última coisa que eu desejo é ter em minha porta um bando de aristocratas sanguessugas imortais pedindo por retribuição.
Zorya bufou consigo mesma, parecendo ter dificuldades para esconder o sorriso.
—— É a primeira que vejo falar tão honestamente, a sua raça não deveria pelo menos fingir que tem um código moral? —— Parece entretida, e eu não sei dizer se isso é bom ou não. Por via das dúvidas, só aumenta ainda mais o alvo em minhas costas.
Forço um sorriso falso que parece plástico em meu rosto. Meus dedos deslizam disfarçadamente para o hashi perdendo meu cabelo. Acertá-la vai ser difícil, terei só uma oportunidade, mas não é impossível. Se está vivo, você pode ter certeza que consigo matar, só preciso atravessar o hashi sem quebrar pelo olho dela até alojar em seu cérebro, vai desorienta-la por tempo o suficiente para decepar a cabeça dela.
—— Vai direto ao ponto, Zorya.
—— Eu quero a coroa —— Zorya se recosta contra o banco, dando de ombros enquanto seu dedo longo e fino desliza lentamente pela boca do copo. Minha garganta fica estranhamente seca, e por um breve momento imagino que aqueles dedos estão em minha pele e não no copo, o que é um pensamento completamente intrusivo. Ela ainda está tentando usar seu charme em mim? —— Simples assim, e você vai me entregar ela. —— Certo, é um jogo de poder então, mas porque tenho a sensação que ela não está me dizendo tudo? —— Vladmir null já está a tempo demais naquele maldito trono, e quem tem a Coroa, tem poder. A verdade que ninguém deseja admitir é que Vladmir não é mais o líder que merecemos, tornou-se errático por ser um tolo, e precisa ser deposto. Além disso, ele pode ter muitos apoiadores, mas este não irão hesitar em trocar de lado quando surgir a primeira oportunidade de mudança.
Eu tenho vontade de rir da maneira com que ela fala.
Zorya parece não perceber, ou talvez havia apenas perdido sua sensibilidade do tamanho das coisas. Quer dizer, eu poderia matar Banshees a noite inteira se fosse preciso. Eu poderia caçar desgarrados quando me fosse necessário e matá-los não seria um problema. Outra coisa completamente desconexa da realidade era eu arriscar a minha bunda para matar o Rei dos Vampiros, apenas porque uma idiota se sentiu na necessidade de ter uma coroa brilhante em suas mãos.
—— Você é velha, não deveria gostar de história? Sabe o que acontecer com qualquer idiota que tenta matar um Rei? —— É quase impossível, dessa vez, conter o impulso. Discretamente, apoio meu braço esquerdo no encosto da minha cadeira, fingindo que estou apoiando minha cabeça em minha mão, na minha postura mais blasé, enquanto tento, com o máximo de cuidado que eu tenho, alçar o maldito hashi preso em meus cabelos.
Não vou ter segundas chances. Antes que ela me mate, e ela irá o fazer, precisarei ser mais rápida e mais precisa. Ela é antiga, então significava que seus reflexos e reconhecimentos de padrões eram precisos. Muitos anos vivo faziam com que você aprendesse algumas coisas —— o que, você realmente acha que uma pessoa com mais de 320 anos vai continuar agindo como um adolescente em determinados momentos por pura inocência? Qual é, a gente sabe que não é assim ——, e estivesse especialmente atento a pequenas mudanças. Preciso tomar cuidado. Meus olhos percorrem o rosto dela, tentando conter ao máximo possível minha expressão a uma neutralidade que está longe de sequer ser genuína. Preciso ser rápida, fincar o hashi entre o olho e o supercílio dela, se o hashi enroscar no olho, então terei gastado minha oportunidade atoa.
A vantagem? Estou perto o suficiente dela para que possa ter uma chance, a desvantagem, se ela se inclinar para frente levarei muito mais tempo recalculando minha rota. Preciso ao menos tentar prever para onde ela vai se inclinar, e fincar essa merda de hashi entre o olho dela, fundo o suficiente para se alojar em seu cérebro. É claro, isso não irá matá-la, mas certamente a deixará atordoada o suficiente para que eu possa decepar sua cabeça.
Não é meu melhor plano, mas tempos desesperados, medidas desesperadas.
—— É por isso que você não vai matar Vladmir null, mas o filho dele —— Zorya diz calmamente como se tivesse previsto minha recusa e tivesse um plano alternativo para tudo o que eu pudesse falar em potencial. Ah, mas que porra, agora eu to fodida mesmo. Franzo meu cenho tentando digerir as palavras dela. Um príncipe poderia ser até um pouco mais fácil, mas não alterava o ponto de que o pai iria vir atrás de mim posteriormente. Zorya alça sua bolsinha pequena com o fecho de rosa estranhamente complexo e retira uma fotografia rasgada de dentro, repousando-a sobre a mesa virada para baixo. Observo-a empurrar em minha direção, e eu não me movo por um momento. —— null null.
O nome é um eco desconfortável em minha mente. Tenho a sensação de já tê-lo ouvido em algum lugar, e no entanto, não há memória alguma em minha mente que possa justificar essa familiaridade. No máximo, posso assumir que seja algum comentário no submundo que ouvi sobre um dos Príncipes dos Vampiros. Hesito por um breve momento, antes de alçar a fotografia virada para baixo para cima, girando-a por entre meus dedos, sentindo a textura áspera do papel antiquado e velho, poroso, e estranhamente fino. 1976, observo escrito na parte de trás da fotografia, caligrafia elegante, curvilínea, até mesmo suave.
Puta que pariu...
Observo o rosto dele encarando-me de volta quando viro a fotografia. Não usa as roupas de meus sonhos, estas eram mais modernas, mas ainda assim, eu reconheceria aqueles olhos, aquele formato de rosto, mesmo que o cabelo fosse mais curto, e tivesse costeletas, ainda assim eu jamais poderia esquecer o rosto que me assombrava. Sou obrigada a engolir em seco, o movimento é claro, atraindo os olhos de Zorya mas tento fingir que foi apenas um olhar de relance, um reflexo de uma garganta seca causada pelo álcool.
null null, ecoei em minha mente. Então o filho da puta era null null, mas porque diabos eu poderia estar sonhando com ele? Qual a ligação que ele poderia ter comigo, e acima de tudo que respostas ele teria? Meus olhos desviam-se brevemente para onde Vander está.
Vander não irá me contar nada. Darcelle igualmente não. De alguma forma, eu sabia que havia algo que eles estavam escondendo, mas nunca havia me importado com exatidão para descobrir a fundo —— porque diabos eu iria procurar um machucado para cuidar quando eu poderia simplesmente fingir que nada havia acontecido? Eu nunca havia tido problema em seguir em frente. Talvez eu esteja atirando em meu próprio pé, talvez esteja cometendo o maior erro de minha vida sem sequer perceber, mas importa? Tenciono minha mandíbula, voltando a encarar Zorya.
—— O pagamento será dividido em duas etapas, parcialmente você receberá...
—— Estou dentro —— Corto Zorya, sem me importar com a pequena urgência que escapa de minha tentativa de permanecer neutra. Forço um sorriso sarcástico, me inclinando para frente enquanto estendia a fotografia para ela. —— Parabéns, cupcake, você tem um acordo.
Veneza, Itália.
A melhor forma de roubar um otário era dizer que iria roubar seu relógio enquanto você pegava a carteira. Na hipótese distante desse otário perceber o movimento, ou já ter sido roubado antes e tiver uma pequena familiaridade com o truque, você o faz tropeçar e diz que estava o protegendo. Então enquanto ajusto meus óculos escuros, observando ao longe a Piazza de San Marco, contemplando minhas possibilidades, eu busco o rosto em questão. É claro que null não vai ser descuidado, e muito menos tolo, mas igualmente há um ponto em comum em todos os vampiros, uma vulnerabilidade que eu pretendo explorar a meu ganho.
A sede.
Queira ou não, a necessidade de caça está instaurada no corpo deles. É necessário encontrar humanos dispostos a servirem como comida se eles mesmos desejavam sobreviver. É claro que eles iriam usar o Carnaval para conseguir atrair a atenção de turistas ou até mesmo idiotas o suficiente para atraí-los até os territórios dos vampiros dentro do castelo de Vladmir null. Há toda uma mitologia por trás daquele castelo, que se movia, como um batimento cardíaco, mas eu irei te contar sobre isso uma vez que estiver dentro do castelo, por enquanto, tudo o que precisamos é achar um idiota que aceite ser minha isca.
Veja, eu não estou pretendendo inventar a roda, e muito menos acredito na minha potencialidade de atuação. Embora eu seja uma boa atriz, não vou assumir que sou mais inteligente do que um bando de senis com idades de três dígitos. Quer dizer, eventualmente, em algum momento, até o mais infantil dos homens, irá amadurecer com idades de três dígitos.
Abro meu sorriso mais gentil possível enquanto viro para a esquerda, e desço uma serie de escadas, pressionando-me contra os muros para evitar ter que pedir para que um dos gondoleiros me leve de um lado para o outro —— eu não tenho tanto dinheiro assim para gastar —— usando dos pequenos espaços para me locomover até onde a água não tomou conta inteiramente. Em becos escuros, em lugares escondidos e até mesmo abandonados, algumas criaturas costumavam se rastejar para viver entre vãos e brechas. A fome os levava a loucura, é claro, e as criaturas perdiam o controle. Nós costumamos a encontrá-los e os matar antes que seus atos se tornem chamativo de mais para o mundo exterior, mas antes que se tornassem realmente um problema, não era surpresa que fossem esquecidos por todos, periféricos, agonizando em cantos escuros, esperando apenas por um fragmento de comida.
Eu sei, eu sei, não é algo bonito, mas bem, o mundo não é um lugar bonito. Compaixão normalmente torna você um alvo, ao em vez de dar-lhe força.
—— Dia de sorte campeão! —— Aumento meu sorriso, colocando-me de cócoras enquanto encarava o recém transformado agonizando no chão, visivelmente esfomeado, com os ossos projetando-se por seu corpo e o olhar assombrado. Nem todas as pessoas que eram mordidas e transformadas aceitavam essa transformação. Alguns a viam como uma maldição, uma punição, e escolhiam definhar. Outros, apenas tentavam esconder de si mesmos para não enxergar os monstros que se tornaram. Jogo minha mochila na direção dele, os cabelos ensebados escuros, brilhando brevemente com as fissuras da estrutura curva do canal. Observo-o hesitar, arregalando os olhos, mas cedendo a sua fome, rasgando a mochila e deparando-se com as bolsas de sangue. Os dedos ávidos rasgando-as enquanto as presas se fincavam através do plástico. Para alguém esfomeado, quem oferece um pão, torna-se deus... posso trabalhar com isso. —— Agora, que tal fazer um favor para mim, huh?
Continua...


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