Capítulo Único
Ao ouvir de seu médico que teria de ficar alguns dias em observação, suspirou aliviada com a ideia de ter o feriado prolongado todo para si. Talvez passar dias sozinha em um hospital não fosse o maior sonho de uma adolescente de 16 anos, mas era melhor do que passar ao lado da família.
Decidiu fingir estar num hotel cinco estrelas para compensar a realidade não tão glamurosa. Seguiu até o quarto todo branco com sua mãe fingindo que o avental que vestia era na verdade um roupão e que não tardaria a chegar o seu serviço de quarto trazendo o café da manhã. Sem demora, sua mãe foi a poltrona ao lado da cama e ao invés de sentar-se nela, pousou uma caixinha sobre um bilhete curto que acabara de escrever.
“Cuide-se, filha.” — leu os lábios da mulher mais velha e não fez qualquer menção de retribuir o beijo que a mãe lhe dava na testa. Esperou estar finalmente sozinha para jogar-se na cama.
Era melhor assim: estar sozinha. Estar com sua mãe lhe tirava qualquer ânimo, não havia forma de agradar àquela mulher — não que não houvesse tentado, mas parir uma filha surda fora decepcionante o suficiente para ela e todas as expectativas que reunira durante os nove meses de gestação. Por anos tentou encontrar alguma forma de driblar aquele obstáculo inicial, mas uma hora ela simplesmente deu por perdida a guerra e jurou nunca mais tentar se enquadrar no perfil de filha perfeita idealizado por sua mãe.
Rolou na cama e estendeu seu braço para alcançar o bilhete, com ele em mãos, o rasgou. Era um número de telefone, o da casa de veraneio para onde sua mãe preocupada com as aparências, seu pai banana, sua irmã mais velha fútil e seu irmão caçula — ao menos este tinha uma boa personalidade e caráter — passariam o feriado. Ela não faria e nem atenderia chamadas. Por isso mesmo, pegou a caixinha preta onde se encontrava seu aparelho auditivo e o guardou bem fundo dentro da mala que trouxera.
Para os demais parecia uma rebeldia sem causa, mas a recusa em utilizar o aparelho era apenas para dificultar a comunicação com sua mãe, que jamais se prestara a aprender a Língua de Sinais. Na verdade, em sua casa, apenas o irmão caçula Josh sabia comunicar-se com , por isso tinham um laço de família mais profundo. Enquanto a mãe exigia ser ouvida para ser compreendida, reivindicava o direito de comunicar-se através daquela que considerava ser a sua forma de falar, afinal, os sons nunca fizeram parte de sua vida. Ao redor dela, o mundo era um eterno e completo silêncio.
As horas do seu primeiro dia no Hospital passaram rápidas.
trouxera livros — seu passatempo favorito —, muitos livros. Sua leitura estava atrasada havia dias.
Ela chegou a acompanhar da janela o sol se pôr. Lindo, pensou ela comovida pelo sol, que se escondia atrás dos prédios da cidade como se fosse tímido.
E seguiu lendo, mesmo quando as luzes de seu quarto foram apagadas pela enfermeira que recolhia as bandejas do horário do jantar, continuou a ler com sua caneta/lanterna.
Era tarde da noite quando sentiu a necessidade de desviar a atenção das palavras do livro que transbordavam romance, intrigas e traições para voltar seu olhar para a pequena janela de vidro encontrada próxima ao topo da porta de entrada de seu quarto.
Havia alguém lá.
Havia luz no corredor, mas a falta de iluminação em seu quarto dificultava que ela visse direito quem era: uma enfermeira? O médico, talvez?
Logo, o indivíduo se foi.
tratou de acalmar sua respiração, desejando que o frio em sua espinha desaparecesse rápido. Quis acreditar que se fechasse seus olhos e pensasse sobre o livro que vinha lendo até poucos minutos antes, entraria no mundo dos sonhos e não se preocuparia mais com nada.
• • •
A manhã pareceu não tardar em chegar.
sentiu-se boba ao pensar no pequeno ataque de pânico que tivera sozinha na noite anterior, chegando até a rir de si mesma.
Esperou pacientemente pela enfermeira que lhe traria seu café da manhã, mas quando viu no grande relógio pendurado na parede da porta que era quase hora do almoço, resolveu levantar-se da cama e ir buscar ela mesma algo no refeitório.
Ao abrir a porta, pensou estar no meio da cena de um filme dramático. O corredor, também impecavelmente branco, estava consideravelmente cheio por inúmeras figuras: médicos corriam com pranchetas contendo as informações dos pacientes debaixo do braço; enfermeiras seguiam agitadas para todos os lados, entrando e saindo dos vários quartos; alguns visitantes choravam jogados no chão, outros eram segurados para não atacarem os doutores ou clínicos.
O cenário era confuso e nenhum dos funcionários do hospital parava um segundo para explicar a o que acontecia — uns apenas silabavam que ela deveria retornar ao seu quarto. Ela até quis atender à ordem, mas seu estômago clamava por comida.
À medida que seguia pelo corredor cheio, conseguiu olhar por um instante o que se passava dentro dos outros quartos e viu o corpo de um homem de meia idade ser encoberto pela própria manta da cama. No quarto seguinte, a mesma cena, mudaram apenas os funcionários e agora quem era encoberto era uma mulher.
O refeitório ficava no 2º andar — ela estava no 3º — e durante o percurso, a cena repetiu-se inúmeras vezes, em todo quarto onde o paciente estava sendo mantido vivo por meio de máquinas.
• • •
Horas depois, já de volta ao quarto e a sua leitura, aguardava a enfermeira responsável por trazer sua janta. Se a funcionária aparecesse, tentaria informar-se sobre o ocorrido na parte da manhã. Mas não foi uma enfermeira que entrou pela sua porta.
Com o nome de no crachá pendurado ao lado do bolso do avental branco, deu-se conta que se tratava de sua paixonite.
Sua mãe nem suspeitava que ela tivesse algum interesse naquele homem que, certamente, tinha dez anos a mais que sua filha. Porém, a jovem adolescente não conseguia evitar perder o fôlego e sorrir mais abertamente toda vez que o via. Além disso, ele sabia um pouco como comunicar-se com ela:
“Olá, . Espero que esteja tudo bem com você”, disse ele em Língua de Sinais.
“Está tudo normal, doutor.”
“Vim ver como você está... Espero que não se incomode”, ele aproximou-se para examiná-la com o estetoscópio.
“Doutor”, ela precisava e muito saber. As lembranças do dia incentivando sua curiosidade. “o que aconteceu hoje? Com aquelas pessoas?”
“Aparentemente, uma pequena falha de energia que resultou na morte daqueles pacientes que dependiam de máquinas para seguir vivendo.”
não sentiu remorso por mentir, era necessário — mentira para muitos outros pacientes e para os familiares dos que haviam morrido naquele dia. A jovem sentiu-se desconfortável, pois sabia que ele acabara de tentá-la enganar. Desviou seu olhar do dele, sabia dizer quando as pessoas mentiam ao ler suas expressões faciais.
Não fora falha mecânica, alguém fizera aquilo ciente do que aconteceria em seguida. Fora um homicídio em massa. E para piorar, os que estavam trabalhando no período da madrugada alegaram não ter visto nada — na verdade, o que muitos alegaram foi que parecia que fecharam os olhos por um segundo e ao abri-los, deparam-se com aquela situação caótica. Todos no hospital eram suspeitos: desde pacientes até funcionários. Todos.
No noticiário daquele mesmo dia o incidente foi reportado como uma falha no gerador de energia responsável por alimentar as máquinas do hospital, que não quis se pronunciar — ninguém queria falar sobre algo que nem mesmo eles entendiam como acontecera, sabia-se apenas que a notícia era uma medida provisória até que descobrissem os fatos e pegassem o culpado. Um inquérito foi aberto e eles teriam até 30 dias para encontrar quem gerou tantas mortes.
• • •
acordou cedo no seu terceiro dia no hospital. Decidira dormir cedo na noite passada por conta do clima pesado no ambiente — sem contar que ela tinha medo de flagrar outra vez um indivíduo observando-a através da janela da porta. E se ele fosse o culpado do terrível incidente das máquinas?
Um tanto farta de ler apenas livros, a jovem considerou a ideia de fazer algo que raramente fazia: ver televisão. Tirando o fato de que ela não podia ouvir, as legendas disponibilizadas em alguns canais não eram devidamente sincronizadas, tornando o possível passatempo num tédio total. Enquanto trocava de canais rapidamente com o controle remoto, uma enfermeira e um enfermeiro adentraram seu quarto com o carrinho onde traziam o seu prato de café da manhã e o de outros pacientes dos quartos ao lado.
A enfermeira parecia um tanto afobada e falava sem parar, dando a a curiosidade em prestar atenção aos movimentos labiais que a mulher fazia para conseguir descobrir o que dizia. A arte da leitura labial é algo praticamente impossível de ser dominada, e o sucesso depende muito mais daquele que o realiza em pressupor o assunto. A jovem pensou que se tivesse nascido com a capacidade de ouvir, com certeza teria ficado aterrorizada com o que parecia ter entendido: mais pacientes haviam morrido, e desta vez, eram crianças. Quis então acreditar que não podia ter compreendido mais errado. Voltou-se para o enfermeiro que a acompanhava para ler o que seus lábios diziam, mas quando olhou a região da boca, soube que não poderia compreendê-lo: era portador de uma pequena má formação do lábio superior onde se encontrava uma cicatriz em decorrência de uma possível correção cirúrgica realizada em pessoas que nascem com uma fissura labiopalatina. As palavras saídas da boca daquele rapaz eram impossíveis de serem decodificadas pelos olhos atentos de .
Ambos saíram, deixando a paciente para comer em paz, mas ela não conseguia pensar em colocar uma colher de mingau sequer na boca sem descobrir se aquilo que havia entendido era verdade. Crianças assassinadass?, perguntou a si mesma entre pensamentos. Aquela era uma imagem horrível. Decidida, afastou a bandeja com seu café da manhã para o lado, jogou longe a coberta e o lençol branco que a envolviam, calçou suas chinelas e seguiu em direção à porta. Tentava lembrar-se em qual andar encontrava-se a ala infantil.
Com os elevadores quase sempre cheios — e dentro deles pessoas aflitas, chorando, e policiais — passou a ter certeza de que mais mortes haviam ocorrido. Foi até as escadarias e subiu dois andares, ao abrir a porta que dava ao 4º andar, viu se repetir a mesma situação desordenada do dia anterior. Pensou então nas mães que por pouco tempo viram seus filhos crescerem e já teriam de enterrá-los; pensou nos pais que nunca mais teriam em seus braços seus pequenos; nos avôs e avós órfãos de netos; e pensou nas crianças, que tão jovens e sem experiência de vida foram tão subitamente privadas do direito de viver.
Poderia ela fazer algo? Poderia ela ajudar de alguma forma a alguém?
• • •
Era de noite.
A enfermeira que trouxera sua janta havia acabado de levar embora a bandeja de . A jovem até chegou a perguntar sobre o ocorrido naquele mesmo dia, mas a mulher negou-se a dar muitas informações. Comentou apenas que “Tudo aconteceu entre um abrir e fechar de olhos”. A adolescente não se conformou, não era possível que mais uma vez ninguém houvesse visto nada: algo, ou alguém suspeito.
A madrugada iniciou-se e estava em seu quarto lendo seu livro com sua caneta/lanterna. Mesmo atenta às palavras da história, seus olhos não deixavam de voltar-se vez e outra para a janela da porta, na esperança de ver alguma movimentação estranha. Assim que percebeu um vulto com roupa de paciente passar, a adolescente levantou-se da cama e colou seu rosto à janela, tentando enxergar quem passara e se era seguro sair.
Os sons podiam não fazer parte de sua vida, mas eles eram importantíssimos na vida dos demais, assim, sabia que não podia atrair atenção para si com nenhum barulho e para que nenhum grande ruído fosse produzido, ela tinha de fazer tudo com delicadeza. O segurar na maçaneta da porta e o abrir foram ações que ela desempenhou vagarosamente e com leveza. Olhou para os dois lados do corredor: ninguém.
Lembrou-se da enfermeira dizer que os funcionários de plantão não haviam visto nada e acreditou que a razão disso devia-se ao possível fato de eles estarem dormindo em serviço, por isso, seguiu em direção à recepção. Iria certificar-se de que estavam despertos e sugerir que vistoriassem todos os andares do prédio, usaria como argumento a pessoa que vira passar pelo seu corredor, muito embora fossem altas horas da madrugada e os pacientes devessem estar dormindo em seus devidos quartos.
Ao chegar à recepção, viu três funcionários atrás do balcão redondo. Ela estranhou o fato dos três estarem tão parados e foi logo pensando em diversas injúrias por não estarem trabalhando, ainda mais quando o hospital passou por dois incidentes trágicos nos últimos dois dias.
Cutucar, chacoalhar, estapear. Nada pareceu ser efetivo para despertar os dois homens e a mulher daquele específico local — chegou ao ponto de se certificar se todos estavam mesmo vivos, e estavam. sentiu que aquilo era um sinal de que algo ruim também iria acontecer naquela madrugada. O fato dos três não acordarem podia indicar que alguém podia tê-los deixado assim de propósito — podiam estar sob o efeito de um Boa-noite, Cinderela.
Ela pensava em como podia chamar a polícia em sua dada condição, quando viu uma figura: era o carrinho que levava as refeições dos pacientes. abaixou-se atrás do balcão, seu coração e mente brigando para saber se deveria revelar-se para a pessoa que empurrava o carrinho ou não. Podia ser a enfermeira que levara sua bandeja, ela devia ter terminado de recolher tudo e dirigia-se ao lugar onde tudo seria limpo e preparado para a refeição seguinte, o café da manhã. Todavia, sentia que não fazia sentido que se andasse com o carrinho pelo hospital àquela hora, era tarde demais. A jovem não sabia o que fazer, não tinha pistas de quando seria um bom momento para levantar-se um pouco e espiar com os olhos o que realmente acontecia — ela teria de arriscar daquele jeito.
Seus olhos não compreenderam o que viram. Via alguns pacientes andando lentamente, entrando no corredor, pareciam seguir alguém. O pouco que a adolescente pôde ver do começo daquela estranha e curiosa “parada”: era um homem sentado sobre o carrinho, que era empurrado por um dos seguidores. esperou que eles estivessem bem à frente, mas sem perdê-los de vista, e passou a segui-los — o que era consideravelmente difícil, uma vez que não havia muita disponibilidade de objetos para que ela se escondesse. Para sua sorte, viu que se dirigiram às escadas.
esperou não só alguns minutos, como também a coragem voltar a suas pernas antes de ir pelo mesmo caminho. Ao abrir devagar a porta da saída de emergência que dava acesso às escadas, encontrou o carrinho de refeições abandonado próximo ao lance de escadas que subiam — assim era mais fácil saber por onde deveria ir.
Pelo que pôde notar toda vez que colocava sua cabeça entre aquele espaço próximo ao corrimão entre um lance de escada e o outro, permitindo-lhe ver quantos andares ainda faltam ou se alguém estava subindo ou descendo, viu que a “parada” seguiu até o telhado do hospital. Ainda sem saber se aqueles eram assassinos ou vítimas, a jovem continuou. Ao deparar-se com a porta da saída de emergência, ela respirou fundo e a abriu da mesma forma que fizera das outras vezes: suave e lentamente. Mas a cena que viu a seguir pediu por uma ação mais veloz.
Na beirada do prédio encontrava-se uma figura com um avental branco — parecia pronto para pular os cerca de cinco andares. Os olhos de arregalaram-se quando viu de quem se tratava: era sua paixonite, era . Precisava impedi-lo, precisava evitar mais mortes, mais pessoas chorando desesperadas. O homem abriu seus braços e entregou-se à gravidade — tão inescrupulosa com aqueles que desafiavam suas rígidas leis — enquanto a jovem escancarou a porta e correu em direção ao indivíduo para interromper aquela loucura, porém, a ponta de seus dedos mal o alcançou.
negou-se a assistir a queda. Não queria aquela terrível imagem repetindo sem parar em sua mente. Bastava-lhe já saber que fora incapaz de salvar uma única vida, justamente a daquele por quem ela nutria sentimentos. Lágrimas começaram a percorrer seu rosto e logo ela percebeu que não estava sozinha. Era um homem, o mesmo enfermeiro que levara seu jantar e apresentava um lábio levemente deformado. ele tinha um olhar sereno, como se nada houvesse acabado de acontecer, como se não houvesse testemunhado também o suicídio daquele homem. pensou em correr e fugir o mais longe possível daquele homem, pensando que aquela postura estranha dele podia qualificá-lo como o autor dos estranhos incidentes dos outros dias. Porém, suas pernas assustadas e sem firmeza a fizeram cair. Viu que o homem moveu-se em sua direção e ela esperou por aquele que podia ser o seu fim.
Um par de aparelho auditivo. Isso era o que estava na palma da mão do enfermeiro e ele o oferecia a . Seria o seu próprio? Aquele que ela guardara bem fundo dentro de sua mala e jurara não usar? A jovem, ainda receosa, tomou posse vagarosamente do que lhe era ofertado e os colocou devidamente em suas orelhas — se ela quisesse entender o que ele tinha a dizer, aquela seria a única forma.
— Pode me escutar agora? — perguntou ele. A sua pronúncia das palavras era notavelmente diferente.
— Sim. — respondeu. A pronúncia de suas palavras também saindo numa configuração estranha. Tinha muitas dúvidas e desejava perguntar muitas coisas, queria bancar a policial e fazer inúmeros questionamentos até descobrir se ele era o responsável por tantas mortes. Mas conseguiria perguntar? — Vo- você é o assassino?
— Não... — ele pareceu escolher bem as palavras antes de seguir com sua fala. — Eu sou mais um “mantenedor”.
— Mantenedor? Do quê?
— Da ordem. — ele sorriu. — Não seria possível haver Ordem sem um pouco de Caos.
o encarava sem saber o que ele dizia e por que lhe dava respostas sem sentido. Sabia que teria que seguir na conversa se quisesse entender algo — mesmo que não gostasse de falar muito por conta da maneira como as palavras saíam disformes ao serem ditas por ela. Sempre fugiu de suas consultas com a fonoaudióloga, fazia parte de sua rebeldia.
— Por que ele? — referiu-se a . Seu coração arrependendo-se por jamais ter insinuado seu interesse mais diretamente.
— Pois certas pessoas seguem vivendo, mesmo quando já estão mortas por dentro. E a Natureza não lida muito bem com isso.
— E as crianças?? — ele não poderia usar o mesmo argumento. Era impossível.
— Eles enveredariam pelo mesmo caminho. A Natureza não age da mesma forma com todos, e muito menos num tempo igual. Imagine! Se todos morressem em uma mesma etapa da vida, teria se estabelecido uma nova ordem e com isso, a Natureza precisaria criar um novo tipo de caos para manter essa norma.
Ele riu sozinho.
— Porém, desde de que surgiu essa tal "Sociedade Tecnológica", o número de pessoas que vivem sem estar realmente vivas cresceu. A Natureza é paciente: ela permite que muitas pessoas “ocas” sigam vivendo, apesar de todos os problemas que isso acarretará, até que Ela encontre a brecha para então dar fim a sua existência; e eu, querendo ajudá-la, ofertei-lhe meus serviços garantindo que o faria de forma diferente. — deu uma risadinha no final. — E, devo dizer, Ela está impressionada com meus saldos, muito mais altos do que de seus mantenedores mais comuns.
Ele deu alguns poucos passos até apoioar-se de costas no parapeito do prédio.
Calada, ela o observava e o ouvia, sem real certeza de que compreendia a tudo. — , quantos anos fazem que você vive sem realmente viver? — a pergunta a pegou de surpresa. — Em casa, na escola, em todos os lugares você é apenas a sombra de uma pessoa. Sempre tão crente de que os outros a destratarão quando notarem que você é surda, que nem se permite realmente relacionar-se com uma. Não são os demais que têm preconceito com a sua condição, é você mesma. Você é quem encara isso como um problema sem solução, um defeito, uma imperfeição.
— “Você é a maior vítima de si mesma”. — repetiu a mesma frase que a sua psicóloga lhe dizia nos tempos em que sua mãe tentara dar fim a sua rebeldia.
— Você tem livre arbítrio para escolher, . — ele deu um sorrisinho simpático e ajudou-a a ficar de pé. — Não se pode enganar a Natureza, ela é sabedora de quem é capaz de mudar ou não. E é por isso que deixo isso ao seu critério: você pode se enganar e tentar acreditar que pode se transformar, mesmo não podendo; pode esperar que a própria Natureza venha se encarregar de você; ou pode vir comigo agora e, se quiser, tornar-se uma mantenedora também.
— Eu mantenedora? Por que eu?— ela perguntou atônita.
— Porque você tem potencial.
Ele sorriu, deu meia-volta e pareceu recolher algo, depois se virou novamente para a moça e indicou uma flauta. Bonita, verde esmeralda e com detalhes em dourado, bem construída.
— É assim que faço tudo ser mais simples. — ele fingiu fazer uso do instrumento. — Há no Homem um desejo quase instintivo de viver nem que seja por mais um segundo, mesmo que nessa segunda chance ele não altere em nada sua forma de viver. O importante é seguir respirando, o coração batendo, mesmo que o corpo já esteja vazio de espírito.
Ele virou-se em direção ao parapeito do prédio e então tocou algumas poucas notas. Sem qualquer comando seu, as pernas de moveram-se e seguiram em direção ao flautista.
— E os outros, eles também tiveram livre arbítrio?!
— De certa forma, sim. — ele colocou-se ao seu lado sobre o peitoril, admirando a vista da cidade. — Mas eu não jogo limpo como a Natureza.
— Como assim?
— Eu toco e seus corpos passam a obedecer-me, desde que minha música possa ser ouvida, claro.
Quando alcançou o parapeito, ele tocou um pouco mais de uma música desconhecida, porém de melodia agradabilíssima. Ao fim das notas, o corpo da jovem subiu e ficou bem na borda do peitoril do prédio.
— Para isto me serve a flauta. Para ajudá-los a fazer aquilo que não têm coragem o suficiente.
Seus lábios aproximaram-se da entrada da flauta por onde o ar deveria passar a fim de criar o som. Os olhos dele a encararam, era hora de uma resposta:
— Também lhes ofereceu a oportunidade de se tornarem mantenedores? — perguntou referindo-se aos vários corpos estendidos e sem vida andares abaixo.
— Não. Você tem uma habilidade única com a qual eles não nasceram. — ele subiu no parapeito, colocando-se bem ao lado dela. — Você virá comigo?
— Eu deveria querer ficar, não é mesmo? Por que eu não estou dizendo: “Eu fico”?
— Pois no seu caso, ficar não será sinônimo de libertação, mas, sim, de seguir presa. Um confinamento estabelecido por si mesma, e do qual jamais sairia.
Liberdade.
Palavra de significado tão importante.
prestou atenção em cada detalhe da vista noturna da cidade: muitos prédios e poucas luzes — a cidade inteira dormia. Depois, tendo algum controle sobre seu corpo, com as mãos retirou dos ouvidos o par de aparelho auditivo. Sua atitude foi entendida pelo flautista como dizendo que ficaria, mas ela lhe sorriu e disse algo sem poder mais ouvir a si mesma:
— Eu vim a este mundo assim e sairei da mesma forma.
Foram suas últimas palavras antes de inclinar seu corpo para o nada. Era como se assistisse à televisão: a imagem do chão aproximando-se passava sem som algum — tudo parecia mais calmo assim.
• • •
Anos depois, os incidentes ocorridos naquele Hospital e a sua morte deram origem a uma nova lenda. Ela tinha por base o conto folclórico do Flautista de Hamelin, mas neste caso não se tratava de uma vingança contra aqueles que não o pagassem por seus serviços, ele levava embora todo aquele que não desse algum sentido a sua própria vida.
E diziam que uma mulher, sua esposa, era quem lhe dizia quem ele deveria levar. Porque ela era dotada com uma única capacidade: a de ouvir o silêncio da alma. Algo a que todos temiam, pois: o silêncio é um som assustador.
Decidiu fingir estar num hotel cinco estrelas para compensar a realidade não tão glamurosa. Seguiu até o quarto todo branco com sua mãe fingindo que o avental que vestia era na verdade um roupão e que não tardaria a chegar o seu serviço de quarto trazendo o café da manhã. Sem demora, sua mãe foi a poltrona ao lado da cama e ao invés de sentar-se nela, pousou uma caixinha sobre um bilhete curto que acabara de escrever.
“Cuide-se, filha.” — leu os lábios da mulher mais velha e não fez qualquer menção de retribuir o beijo que a mãe lhe dava na testa. Esperou estar finalmente sozinha para jogar-se na cama.
Era melhor assim: estar sozinha. Estar com sua mãe lhe tirava qualquer ânimo, não havia forma de agradar àquela mulher — não que não houvesse tentado, mas parir uma filha surda fora decepcionante o suficiente para ela e todas as expectativas que reunira durante os nove meses de gestação. Por anos tentou encontrar alguma forma de driblar aquele obstáculo inicial, mas uma hora ela simplesmente deu por perdida a guerra e jurou nunca mais tentar se enquadrar no perfil de filha perfeita idealizado por sua mãe.
Rolou na cama e estendeu seu braço para alcançar o bilhete, com ele em mãos, o rasgou. Era um número de telefone, o da casa de veraneio para onde sua mãe preocupada com as aparências, seu pai banana, sua irmã mais velha fútil e seu irmão caçula — ao menos este tinha uma boa personalidade e caráter — passariam o feriado. Ela não faria e nem atenderia chamadas. Por isso mesmo, pegou a caixinha preta onde se encontrava seu aparelho auditivo e o guardou bem fundo dentro da mala que trouxera.
Para os demais parecia uma rebeldia sem causa, mas a recusa em utilizar o aparelho era apenas para dificultar a comunicação com sua mãe, que jamais se prestara a aprender a Língua de Sinais. Na verdade, em sua casa, apenas o irmão caçula Josh sabia comunicar-se com , por isso tinham um laço de família mais profundo. Enquanto a mãe exigia ser ouvida para ser compreendida, reivindicava o direito de comunicar-se através daquela que considerava ser a sua forma de falar, afinal, os sons nunca fizeram parte de sua vida. Ao redor dela, o mundo era um eterno e completo silêncio.
As horas do seu primeiro dia no Hospital passaram rápidas.
trouxera livros — seu passatempo favorito —, muitos livros. Sua leitura estava atrasada havia dias.
Ela chegou a acompanhar da janela o sol se pôr. Lindo, pensou ela comovida pelo sol, que se escondia atrás dos prédios da cidade como se fosse tímido.
E seguiu lendo, mesmo quando as luzes de seu quarto foram apagadas pela enfermeira que recolhia as bandejas do horário do jantar, continuou a ler com sua caneta/lanterna.
Era tarde da noite quando sentiu a necessidade de desviar a atenção das palavras do livro que transbordavam romance, intrigas e traições para voltar seu olhar para a pequena janela de vidro encontrada próxima ao topo da porta de entrada de seu quarto.
Havia alguém lá.
Havia luz no corredor, mas a falta de iluminação em seu quarto dificultava que ela visse direito quem era: uma enfermeira? O médico, talvez?
Logo, o indivíduo se foi.
tratou de acalmar sua respiração, desejando que o frio em sua espinha desaparecesse rápido. Quis acreditar que se fechasse seus olhos e pensasse sobre o livro que vinha lendo até poucos minutos antes, entraria no mundo dos sonhos e não se preocuparia mais com nada.
A manhã pareceu não tardar em chegar.
sentiu-se boba ao pensar no pequeno ataque de pânico que tivera sozinha na noite anterior, chegando até a rir de si mesma.
Esperou pacientemente pela enfermeira que lhe traria seu café da manhã, mas quando viu no grande relógio pendurado na parede da porta que era quase hora do almoço, resolveu levantar-se da cama e ir buscar ela mesma algo no refeitório.
Ao abrir a porta, pensou estar no meio da cena de um filme dramático. O corredor, também impecavelmente branco, estava consideravelmente cheio por inúmeras figuras: médicos corriam com pranchetas contendo as informações dos pacientes debaixo do braço; enfermeiras seguiam agitadas para todos os lados, entrando e saindo dos vários quartos; alguns visitantes choravam jogados no chão, outros eram segurados para não atacarem os doutores ou clínicos.
O cenário era confuso e nenhum dos funcionários do hospital parava um segundo para explicar a o que acontecia — uns apenas silabavam que ela deveria retornar ao seu quarto. Ela até quis atender à ordem, mas seu estômago clamava por comida.
À medida que seguia pelo corredor cheio, conseguiu olhar por um instante o que se passava dentro dos outros quartos e viu o corpo de um homem de meia idade ser encoberto pela própria manta da cama. No quarto seguinte, a mesma cena, mudaram apenas os funcionários e agora quem era encoberto era uma mulher.
O refeitório ficava no 2º andar — ela estava no 3º — e durante o percurso, a cena repetiu-se inúmeras vezes, em todo quarto onde o paciente estava sendo mantido vivo por meio de máquinas.
Horas depois, já de volta ao quarto e a sua leitura, aguardava a enfermeira responsável por trazer sua janta. Se a funcionária aparecesse, tentaria informar-se sobre o ocorrido na parte da manhã. Mas não foi uma enfermeira que entrou pela sua porta.
Com o nome de no crachá pendurado ao lado do bolso do avental branco, deu-se conta que se tratava de sua paixonite.
Sua mãe nem suspeitava que ela tivesse algum interesse naquele homem que, certamente, tinha dez anos a mais que sua filha. Porém, a jovem adolescente não conseguia evitar perder o fôlego e sorrir mais abertamente toda vez que o via. Além disso, ele sabia um pouco como comunicar-se com ela:
“Olá, . Espero que esteja tudo bem com você”, disse ele em Língua de Sinais.
“Está tudo normal, doutor.”
“Vim ver como você está... Espero que não se incomode”, ele aproximou-se para examiná-la com o estetoscópio.
“Doutor”, ela precisava e muito saber. As lembranças do dia incentivando sua curiosidade. “o que aconteceu hoje? Com aquelas pessoas?”
“Aparentemente, uma pequena falha de energia que resultou na morte daqueles pacientes que dependiam de máquinas para seguir vivendo.”
não sentiu remorso por mentir, era necessário — mentira para muitos outros pacientes e para os familiares dos que haviam morrido naquele dia. A jovem sentiu-se desconfortável, pois sabia que ele acabara de tentá-la enganar. Desviou seu olhar do dele, sabia dizer quando as pessoas mentiam ao ler suas expressões faciais.
Não fora falha mecânica, alguém fizera aquilo ciente do que aconteceria em seguida. Fora um homicídio em massa. E para piorar, os que estavam trabalhando no período da madrugada alegaram não ter visto nada — na verdade, o que muitos alegaram foi que parecia que fecharam os olhos por um segundo e ao abri-los, deparam-se com aquela situação caótica. Todos no hospital eram suspeitos: desde pacientes até funcionários. Todos.
No noticiário daquele mesmo dia o incidente foi reportado como uma falha no gerador de energia responsável por alimentar as máquinas do hospital, que não quis se pronunciar — ninguém queria falar sobre algo que nem mesmo eles entendiam como acontecera, sabia-se apenas que a notícia era uma medida provisória até que descobrissem os fatos e pegassem o culpado. Um inquérito foi aberto e eles teriam até 30 dias para encontrar quem gerou tantas mortes.
acordou cedo no seu terceiro dia no hospital. Decidira dormir cedo na noite passada por conta do clima pesado no ambiente — sem contar que ela tinha medo de flagrar outra vez um indivíduo observando-a através da janela da porta. E se ele fosse o culpado do terrível incidente das máquinas?
Um tanto farta de ler apenas livros, a jovem considerou a ideia de fazer algo que raramente fazia: ver televisão. Tirando o fato de que ela não podia ouvir, as legendas disponibilizadas em alguns canais não eram devidamente sincronizadas, tornando o possível passatempo num tédio total. Enquanto trocava de canais rapidamente com o controle remoto, uma enfermeira e um enfermeiro adentraram seu quarto com o carrinho onde traziam o seu prato de café da manhã e o de outros pacientes dos quartos ao lado.
A enfermeira parecia um tanto afobada e falava sem parar, dando a a curiosidade em prestar atenção aos movimentos labiais que a mulher fazia para conseguir descobrir o que dizia. A arte da leitura labial é algo praticamente impossível de ser dominada, e o sucesso depende muito mais daquele que o realiza em pressupor o assunto. A jovem pensou que se tivesse nascido com a capacidade de ouvir, com certeza teria ficado aterrorizada com o que parecia ter entendido: mais pacientes haviam morrido, e desta vez, eram crianças. Quis então acreditar que não podia ter compreendido mais errado. Voltou-se para o enfermeiro que a acompanhava para ler o que seus lábios diziam, mas quando olhou a região da boca, soube que não poderia compreendê-lo: era portador de uma pequena má formação do lábio superior onde se encontrava uma cicatriz em decorrência de uma possível correção cirúrgica realizada em pessoas que nascem com uma fissura labiopalatina. As palavras saídas da boca daquele rapaz eram impossíveis de serem decodificadas pelos olhos atentos de .
Ambos saíram, deixando a paciente para comer em paz, mas ela não conseguia pensar em colocar uma colher de mingau sequer na boca sem descobrir se aquilo que havia entendido era verdade. Crianças assassinadass?, perguntou a si mesma entre pensamentos. Aquela era uma imagem horrível. Decidida, afastou a bandeja com seu café da manhã para o lado, jogou longe a coberta e o lençol branco que a envolviam, calçou suas chinelas e seguiu em direção à porta. Tentava lembrar-se em qual andar encontrava-se a ala infantil.
Com os elevadores quase sempre cheios — e dentro deles pessoas aflitas, chorando, e policiais — passou a ter certeza de que mais mortes haviam ocorrido. Foi até as escadarias e subiu dois andares, ao abrir a porta que dava ao 4º andar, viu se repetir a mesma situação desordenada do dia anterior. Pensou então nas mães que por pouco tempo viram seus filhos crescerem e já teriam de enterrá-los; pensou nos pais que nunca mais teriam em seus braços seus pequenos; nos avôs e avós órfãos de netos; e pensou nas crianças, que tão jovens e sem experiência de vida foram tão subitamente privadas do direito de viver.
Poderia ela fazer algo? Poderia ela ajudar de alguma forma a alguém?
Era de noite.
A enfermeira que trouxera sua janta havia acabado de levar embora a bandeja de . A jovem até chegou a perguntar sobre o ocorrido naquele mesmo dia, mas a mulher negou-se a dar muitas informações. Comentou apenas que “Tudo aconteceu entre um abrir e fechar de olhos”. A adolescente não se conformou, não era possível que mais uma vez ninguém houvesse visto nada: algo, ou alguém suspeito.
A madrugada iniciou-se e estava em seu quarto lendo seu livro com sua caneta/lanterna. Mesmo atenta às palavras da história, seus olhos não deixavam de voltar-se vez e outra para a janela da porta, na esperança de ver alguma movimentação estranha. Assim que percebeu um vulto com roupa de paciente passar, a adolescente levantou-se da cama e colou seu rosto à janela, tentando enxergar quem passara e se era seguro sair.
Os sons podiam não fazer parte de sua vida, mas eles eram importantíssimos na vida dos demais, assim, sabia que não podia atrair atenção para si com nenhum barulho e para que nenhum grande ruído fosse produzido, ela tinha de fazer tudo com delicadeza. O segurar na maçaneta da porta e o abrir foram ações que ela desempenhou vagarosamente e com leveza. Olhou para os dois lados do corredor: ninguém.
Lembrou-se da enfermeira dizer que os funcionários de plantão não haviam visto nada e acreditou que a razão disso devia-se ao possível fato de eles estarem dormindo em serviço, por isso, seguiu em direção à recepção. Iria certificar-se de que estavam despertos e sugerir que vistoriassem todos os andares do prédio, usaria como argumento a pessoa que vira passar pelo seu corredor, muito embora fossem altas horas da madrugada e os pacientes devessem estar dormindo em seus devidos quartos.
Ao chegar à recepção, viu três funcionários atrás do balcão redondo. Ela estranhou o fato dos três estarem tão parados e foi logo pensando em diversas injúrias por não estarem trabalhando, ainda mais quando o hospital passou por dois incidentes trágicos nos últimos dois dias.
Cutucar, chacoalhar, estapear. Nada pareceu ser efetivo para despertar os dois homens e a mulher daquele específico local — chegou ao ponto de se certificar se todos estavam mesmo vivos, e estavam. sentiu que aquilo era um sinal de que algo ruim também iria acontecer naquela madrugada. O fato dos três não acordarem podia indicar que alguém podia tê-los deixado assim de propósito — podiam estar sob o efeito de um Boa-noite, Cinderela.
Ela pensava em como podia chamar a polícia em sua dada condição, quando viu uma figura: era o carrinho que levava as refeições dos pacientes. abaixou-se atrás do balcão, seu coração e mente brigando para saber se deveria revelar-se para a pessoa que empurrava o carrinho ou não. Podia ser a enfermeira que levara sua bandeja, ela devia ter terminado de recolher tudo e dirigia-se ao lugar onde tudo seria limpo e preparado para a refeição seguinte, o café da manhã. Todavia, sentia que não fazia sentido que se andasse com o carrinho pelo hospital àquela hora, era tarde demais. A jovem não sabia o que fazer, não tinha pistas de quando seria um bom momento para levantar-se um pouco e espiar com os olhos o que realmente acontecia — ela teria de arriscar daquele jeito.
Seus olhos não compreenderam o que viram. Via alguns pacientes andando lentamente, entrando no corredor, pareciam seguir alguém. O pouco que a adolescente pôde ver do começo daquela estranha e curiosa “parada”: era um homem sentado sobre o carrinho, que era empurrado por um dos seguidores. esperou que eles estivessem bem à frente, mas sem perdê-los de vista, e passou a segui-los — o que era consideravelmente difícil, uma vez que não havia muita disponibilidade de objetos para que ela se escondesse. Para sua sorte, viu que se dirigiram às escadas.
esperou não só alguns minutos, como também a coragem voltar a suas pernas antes de ir pelo mesmo caminho. Ao abrir devagar a porta da saída de emergência que dava acesso às escadas, encontrou o carrinho de refeições abandonado próximo ao lance de escadas que subiam — assim era mais fácil saber por onde deveria ir.
Pelo que pôde notar toda vez que colocava sua cabeça entre aquele espaço próximo ao corrimão entre um lance de escada e o outro, permitindo-lhe ver quantos andares ainda faltam ou se alguém estava subindo ou descendo, viu que a “parada” seguiu até o telhado do hospital. Ainda sem saber se aqueles eram assassinos ou vítimas, a jovem continuou. Ao deparar-se com a porta da saída de emergência, ela respirou fundo e a abriu da mesma forma que fizera das outras vezes: suave e lentamente. Mas a cena que viu a seguir pediu por uma ação mais veloz.
Na beirada do prédio encontrava-se uma figura com um avental branco — parecia pronto para pular os cerca de cinco andares. Os olhos de arregalaram-se quando viu de quem se tratava: era sua paixonite, era . Precisava impedi-lo, precisava evitar mais mortes, mais pessoas chorando desesperadas. O homem abriu seus braços e entregou-se à gravidade — tão inescrupulosa com aqueles que desafiavam suas rígidas leis — enquanto a jovem escancarou a porta e correu em direção ao indivíduo para interromper aquela loucura, porém, a ponta de seus dedos mal o alcançou.
negou-se a assistir a queda. Não queria aquela terrível imagem repetindo sem parar em sua mente. Bastava-lhe já saber que fora incapaz de salvar uma única vida, justamente a daquele por quem ela nutria sentimentos. Lágrimas começaram a percorrer seu rosto e logo ela percebeu que não estava sozinha. Era um homem, o mesmo enfermeiro que levara seu jantar e apresentava um lábio levemente deformado. ele tinha um olhar sereno, como se nada houvesse acabado de acontecer, como se não houvesse testemunhado também o suicídio daquele homem. pensou em correr e fugir o mais longe possível daquele homem, pensando que aquela postura estranha dele podia qualificá-lo como o autor dos estranhos incidentes dos outros dias. Porém, suas pernas assustadas e sem firmeza a fizeram cair. Viu que o homem moveu-se em sua direção e ela esperou por aquele que podia ser o seu fim.
Um par de aparelho auditivo. Isso era o que estava na palma da mão do enfermeiro e ele o oferecia a . Seria o seu próprio? Aquele que ela guardara bem fundo dentro de sua mala e jurara não usar? A jovem, ainda receosa, tomou posse vagarosamente do que lhe era ofertado e os colocou devidamente em suas orelhas — se ela quisesse entender o que ele tinha a dizer, aquela seria a única forma.
— Pode me escutar agora? — perguntou ele. A sua pronúncia das palavras era notavelmente diferente.
— Sim. — respondeu. A pronúncia de suas palavras também saindo numa configuração estranha. Tinha muitas dúvidas e desejava perguntar muitas coisas, queria bancar a policial e fazer inúmeros questionamentos até descobrir se ele era o responsável por tantas mortes. Mas conseguiria perguntar? — Vo- você é o assassino?
— Não... — ele pareceu escolher bem as palavras antes de seguir com sua fala. — Eu sou mais um “mantenedor”.
— Mantenedor? Do quê?
— Da ordem. — ele sorriu. — Não seria possível haver Ordem sem um pouco de Caos.
o encarava sem saber o que ele dizia e por que lhe dava respostas sem sentido. Sabia que teria que seguir na conversa se quisesse entender algo — mesmo que não gostasse de falar muito por conta da maneira como as palavras saíam disformes ao serem ditas por ela. Sempre fugiu de suas consultas com a fonoaudióloga, fazia parte de sua rebeldia.
— Por que ele? — referiu-se a . Seu coração arrependendo-se por jamais ter insinuado seu interesse mais diretamente.
— Pois certas pessoas seguem vivendo, mesmo quando já estão mortas por dentro. E a Natureza não lida muito bem com isso.
— E as crianças?? — ele não poderia usar o mesmo argumento. Era impossível.
— Eles enveredariam pelo mesmo caminho. A Natureza não age da mesma forma com todos, e muito menos num tempo igual. Imagine! Se todos morressem em uma mesma etapa da vida, teria se estabelecido uma nova ordem e com isso, a Natureza precisaria criar um novo tipo de caos para manter essa norma.
Ele riu sozinho.
— Porém, desde de que surgiu essa tal "Sociedade Tecnológica", o número de pessoas que vivem sem estar realmente vivas cresceu. A Natureza é paciente: ela permite que muitas pessoas “ocas” sigam vivendo, apesar de todos os problemas que isso acarretará, até que Ela encontre a brecha para então dar fim a sua existência; e eu, querendo ajudá-la, ofertei-lhe meus serviços garantindo que o faria de forma diferente. — deu uma risadinha no final. — E, devo dizer, Ela está impressionada com meus saldos, muito mais altos do que de seus mantenedores mais comuns.
Ele deu alguns poucos passos até apoioar-se de costas no parapeito do prédio.
Calada, ela o observava e o ouvia, sem real certeza de que compreendia a tudo. — , quantos anos fazem que você vive sem realmente viver? — a pergunta a pegou de surpresa. — Em casa, na escola, em todos os lugares você é apenas a sombra de uma pessoa. Sempre tão crente de que os outros a destratarão quando notarem que você é surda, que nem se permite realmente relacionar-se com uma. Não são os demais que têm preconceito com a sua condição, é você mesma. Você é quem encara isso como um problema sem solução, um defeito, uma imperfeição.
— “Você é a maior vítima de si mesma”. — repetiu a mesma frase que a sua psicóloga lhe dizia nos tempos em que sua mãe tentara dar fim a sua rebeldia.
— Você tem livre arbítrio para escolher, . — ele deu um sorrisinho simpático e ajudou-a a ficar de pé. — Não se pode enganar a Natureza, ela é sabedora de quem é capaz de mudar ou não. E é por isso que deixo isso ao seu critério: você pode se enganar e tentar acreditar que pode se transformar, mesmo não podendo; pode esperar que a própria Natureza venha se encarregar de você; ou pode vir comigo agora e, se quiser, tornar-se uma mantenedora também.
— Eu mantenedora? Por que eu?— ela perguntou atônita.
— Porque você tem potencial.
Ele sorriu, deu meia-volta e pareceu recolher algo, depois se virou novamente para a moça e indicou uma flauta. Bonita, verde esmeralda e com detalhes em dourado, bem construída.
— É assim que faço tudo ser mais simples. — ele fingiu fazer uso do instrumento. — Há no Homem um desejo quase instintivo de viver nem que seja por mais um segundo, mesmo que nessa segunda chance ele não altere em nada sua forma de viver. O importante é seguir respirando, o coração batendo, mesmo que o corpo já esteja vazio de espírito.
Ele virou-se em direção ao parapeito do prédio e então tocou algumas poucas notas. Sem qualquer comando seu, as pernas de moveram-se e seguiram em direção ao flautista.
— E os outros, eles também tiveram livre arbítrio?!
— De certa forma, sim. — ele colocou-se ao seu lado sobre o peitoril, admirando a vista da cidade. — Mas eu não jogo limpo como a Natureza.
— Como assim?
— Eu toco e seus corpos passam a obedecer-me, desde que minha música possa ser ouvida, claro.
Quando alcançou o parapeito, ele tocou um pouco mais de uma música desconhecida, porém de melodia agradabilíssima. Ao fim das notas, o corpo da jovem subiu e ficou bem na borda do peitoril do prédio.
— Para isto me serve a flauta. Para ajudá-los a fazer aquilo que não têm coragem o suficiente.
Seus lábios aproximaram-se da entrada da flauta por onde o ar deveria passar a fim de criar o som. Os olhos dele a encararam, era hora de uma resposta:
— Também lhes ofereceu a oportunidade de se tornarem mantenedores? — perguntou referindo-se aos vários corpos estendidos e sem vida andares abaixo.
— Não. Você tem uma habilidade única com a qual eles não nasceram. — ele subiu no parapeito, colocando-se bem ao lado dela. — Você virá comigo?
— Eu deveria querer ficar, não é mesmo? Por que eu não estou dizendo: “Eu fico”?
— Pois no seu caso, ficar não será sinônimo de libertação, mas, sim, de seguir presa. Um confinamento estabelecido por si mesma, e do qual jamais sairia.
Liberdade.
Palavra de significado tão importante.
prestou atenção em cada detalhe da vista noturna da cidade: muitos prédios e poucas luzes — a cidade inteira dormia. Depois, tendo algum controle sobre seu corpo, com as mãos retirou dos ouvidos o par de aparelho auditivo. Sua atitude foi entendida pelo flautista como dizendo que ficaria, mas ela lhe sorriu e disse algo sem poder mais ouvir a si mesma:
— Eu vim a este mundo assim e sairei da mesma forma.
Foram suas últimas palavras antes de inclinar seu corpo para o nada. Era como se assistisse à televisão: a imagem do chão aproximando-se passava sem som algum — tudo parecia mais calmo assim.
Anos depois, os incidentes ocorridos naquele Hospital e a sua morte deram origem a uma nova lenda. Ela tinha por base o conto folclórico do Flautista de Hamelin, mas neste caso não se tratava de uma vingança contra aqueles que não o pagassem por seus serviços, ele levava embora todo aquele que não desse algum sentido a sua própria vida.
E diziam que uma mulher, sua esposa, era quem lhe dizia quem ele deveria levar. Porque ela era dotada com uma única capacidade: a de ouvir o silêncio da alma. Algo a que todos temiam, pois: o silêncio é um som assustador.
FIM
Nota da autora: Hey!
Esta fiction foi originalmente escrita para o Especial Dia do Músico. Mas quando chegou a hora fiquei insegura e resolvi não enviar.
Eu sei, o enredo da fiction é estranho. Entretanto, gosto dela. Dei umas alteradas para enviá-la de fato para o site, e espero que gostem ^^
E, por favor, não se esqueçam de comentar para que eu saiba o que acharam dessa história ;)
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